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Da renovação do sacrifício do Calvário ao

memorial da presença
Nota do editor: Continuamos com a terceira parte do estudo de José Antonio
Ureta sobre Desiderio desideravi. Para a Parte 1, veja aqui. Para a Parte 2,
veja aqui. [colocar os hiperlinks]

A Santa Missa é um verdadeiro e


próprio sacrifício
Ao tratar do sacrifício eucarístico, a Mediator Dei reitera o ensinamento do
Concílio de Trento no sentido de que a Santa Missa é um sacrifício próprio e
verdadeiro, e não apenas um memorial da Paixão ou da Última Ceia:
“O Cristo Senhor, ‘sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque’ (Sl
59,4), ‘tendo amado os seus que estavam no mundo’ (Jo 13,1), ‘na última
ceia, na noite em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um
sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual representasse o
sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só vez, e para que a sua
lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos fosse aplicada sua
salutar virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos ... ofereceu a Deus
Pai o seu corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e deu-os aos
apóstolos então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob
essas mesmas espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores
no sacerdócio, que o oferecessem’ (Concílio de Trento, 22, 1)” (n° 60).
“O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração
da paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício,
no qual, imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez
uma vez sobre a cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima.
‘Uma ... e idêntica é a vítima: aquele mesmo, que agora oferece pelo
ministério dos sacerdotes, se ofereceu então sobre a cruz; é diferente apenas,
o modo de fazer a oferta’ (Concílio de Trento, 22, 2)” (n° 61).
A razão para isto último é que, devido ao presente estado glorioso da natureza
humana de Jesus Cristo, o derramamento de sangue é agora impossível, pelo
que o sacrifício de Cristo se manifesta externamente pela separação das
espécies eucarísticas sob as quais está presente, e que simbolizam a separação
sangrenta do Corpo e do Sangue. “Assim o memorial da sua morte real sobre
o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de
símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em
estado de vítima” (no. 63).

Reformadores mudam a ênfase


para “memorial”
Esta apresentação tradicional não era do gosto dos inovadores, que
começaram a dar ênfase à comemoração, embora sem a conotação de nuda
commemoratio dos reformadores protestantes, mas dando-lhe o significado de
um memorial objetivo e real que “re-apresenta” o que aconteceu
historicamente e o comunica aqui e agora de forma eficaz.
Nessa nova perspectiva, R. Gerardi explica que “o memorial expressa a
realidade do evento, a ‘atualização objetiva’ e a presença do que é
comemorado. Não é que se repita, já que o evento foi definido
historicamente de uma vez por todas (ephápax); mas está presente. O ato de
Cristo se faz sentir hoje e aqui, engajando quem o comemora. O sacrifício de
Cristo foi historicamente realizado apenas uma vez: a Eucaristia é o seu
memorial (no sentido mais amplo da palavra), uma presença viva da graça”
[14].
O já mencionado jesuíta Pe. Martín-Moreno nos explica por que não é uma
reiteração multiplicada do único sacrifício de Cristo: “Não é que o tempo da
salvação se repita aqui e agora, mas que o homem aqui e agora entra em
comunicação uma e outra vez com uma presença permanente que está além
do tempo decorrido. (…) Na liturgia chega-se ao ponto de intersecção do
tempo e da eternidade. Ali o participante torna-se contemporâneo dos
acontecimentos bíblicos. O homem torna-se uma testemunha contemporânea
do que aconteceu então. Cristo nasce no Natal, ressuscita na Páscoa. A
anamnese é obra do homem ou de Deus? O homem é quem comemora, mas
como ato humano, seu ato de lembrar não pode transcender o tempo, não
pode entrar no túnel do tempo para retornar ao passado. É apenas a ação
divina que, transcendendo o tempo, traz os mistérios ao nosso aqui e agora.
É por isso que a liturgia, antes da ação do homem, é a ação de Deus” [15].
O caminho havia sido aberto pelas teses pioneiras do então padre Charles
Journet (posteriormente cardeal por Paulo VI) e do filósofo francês Jacques
Maritain, para quem a presença real de Jesus Cristo duplicar-se-ia em uma
espécie de presença real do sacrifício [16].
Esta opção teológica a favor do memorial, que omite que a missa é uma
renovação incruenta do sacrifício do Calvário e afirma que durante a sua
celebração o sacrifício somente se torna presente, oferece uma interpretação
fraca do dogma da fé proclamado pelo Concílio de Trento, segundo o qual
cada missa é “um sacrifício próprio e verdadeiro” feito em forma
sacramental, porque a transubstanciação torna o Corpo e o Sangue da Vítima
divina verdadeiramente presentes e simbolicamente separados [17].

Papa Francisco opta por uma


“memorialização” extrema
Desiderio desideravi faz clara e insistentemente essa opção teológica em favor
da missa como memorial que só secundariamente tem o aspecto sacrificial na
medida em que é uma comemoração.
Já no início, na descrição da Última Ceia que o Senhor quis comer com os
Apóstolos, Francisco diz: “Ele sabe que é o Cordeiro daquela ceia pascal; ele
sabe que ele é a Páscoa. Esta é a novidade absoluta, a originalidade absoluta
daquela Ceia, a única coisa verdadeiramente nova na história, que torna
aquela Ceia única e por isso “a Última Ceia”, irrepetível. No entanto, seu
desejo infinito de restabelecer aquela comunhão conosco que era e continua
sendo seu projeto original, não será satisfeito até que todo homem e mulher,
de toda tribo, língua, povo e nação (Ap 5:9), tenha comido seu Corpo e bebeu
seu Sangue. E por isso essa mesma Ceia se fará presente na celebração da
Eucaristia até que ele volte novamente” (n° 4).
A propósito, note-se que, naquele primeiro parágrafo descritivo da missa no
documento, além da teoria da representação de um ato irrepetível, o Papa
afirma que a missa é uma representação da Ceia, e não do sacrifício do
Calvário. Isso lembra a definição original de sabor protestante da Missa
(defeituosa e posteriormente alterada) oferecida no nº 7 da Instrução Geral do
Missal Romano, à qual os cardeais Ottaviani e Bacci se opuseram tão
fortemente em seu Breve exame crítico. Também vale a pena notar que este
parágrafo sugere que todo homem e mulher deve comer e beber do Corpo e
Sangue de Cristo, ou seja, comungar. Isso sugere um universalismo
soteriológico consistente com a autorização prática dada pelo Papa Francisco a
todos os cristãos – católicos ou não, estejam ou não em estado de graça, vivam
ou não de acordo com o Decálogo – para receber a Eucaristia.
Voltando ao tema principal, cumpre notar que em Desiderio desideravi há
algumas referências ao sacrifício de Jesus na cruz, mas em nenhum momento
se diz que tal sacrifício se renova de forma incruenta a cada missa. Pelo
contrário, um dos primeiros parágrafos, embora afirme que “o conteúdo do
Pão partido é a cruz de Jesus, seu sacrifício de obediência por amor ao Pai”,
diz logo após que os Apóstolos, depois de terem participado na Última Ceia,
antecipação ritual de sua morte, deveriam ter entendido “o que significava
para Jesus dizer ‘corpo oferecido’, ‘sangue derramado’. É disto que fazemos
memória em cada Eucaristia” (n° 7). Teria sido o momento mais apropriado
para ensinar que na missa não só se faz memória, mas também se renova de
modo incruento o sacrifício do Calvário, sacramentalmente representado na
separação das espécies eucarísticas. O Papa Francisco optou por omitir essa
verdade de fé e referir-se apenas ao memorial.
Alguns parágrafos depois, o documento insiste que a Liturgia não é uma
relembrança da recordação dos Apóstolos, mas um verdadeiro encontro com o
Ressuscitado (uma ideia que se repete nove vezes ao longo do documento), e
continua: “A Liturgia nos garante a possibilidade de tal encontro. Para nós,
uma vaga lembrança da Última Ceia não adiantaria. Precisamos estar
presentes nessa Ceia, para poder ouvir a sua voz, comer o seu Corpo e beber
o seu Sangue. Nós precisamos Dele. Na Eucaristia e em todos os sacramentos
é-nos garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de fazer chegar
até nós a força do seu mistério pascal. O poder salvífico do sacrifício de
Jesus, cada palavra sua, cada gesto, olhar e sentimento chega até nós através
da celebração dos sacramentos” (n° 11). Note-se que, mais uma vez, a ênfase
é colocada na participação na Ceia, e não na união espiritual com Jesus que Se
oferece ao Pai em sacrifício em cada missa, aspecto completamente omitido.
A missa como lembrança do
“imenso dom” que Jesus
presenteou na Última Ceia?
Ao falar da correta compreensão do dinamismo que se desenvolve através da
Liturgia, Francisco usa as palavras já citadas na seção anterior, as quais
deixam claro que para ele o caráter sacrificial da missa resulta da
comemoração da Páscoa de Jesus: “A ação da celebração é o lugar em que,
por meio do memorial, o mistério pascal se torna presente para que os
batizados, por meio de sua participação, possam experimentá-lo em sua
própria vida” (n° 49).
Esta ideia se torna mais explícita ao referir-se posteriormente ao núcleo
central da missa: “Na oração eucarística — da qual também participam todos
os batizados, ouvindo com reverência e em silêncio e intervindo nas
aclamações (IGMR 78-79) — quem preside tem a força, em nome de todo o
povo santo, para recordar diante do Pai a oferta de seu Filho na Última
Ceia, para que aquele imenso dom se tornasse novamente presente no altar”
(nº 60). Ele não só omite completamente a oferta de Cristo durante a Paixão
(da qual a Ceia foi uma antecipação ritual), não só evita dizer que o sacrifício
é renovado, mas evita a própria palavra “sacrifício”, chamando-o de “imenso
dom”.
Acrescente-se a tudo isso que em nenhum lugar de Desiderio desideravi
aparecem expressões como “transubstanciação”, “presença real”, ou
formulações análogas que indiquem que “o alimento eucarístico, como todos
sabem, "verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue junto com a
alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo”, como diz Pio XII na sua
encíclica (nº 115), citando o Concílio de Trento (sess. 13 cân. l.). Tampouco
nada há que se assemelhe à exortação da Mediator Dei no sentido de que os
párocos não permitam que se descuidem as “devotas e mesmo cotidianas
visitas ao divino tabernáculo” e a “adoração do augusto sacramento
publicamente exposto” (n° 118) ou “que as Igrejas sejam fechadas durante as
horas não destinadas às funções públicas”, algo que alguns já defendiam
“com a desculpa de renovação da liturgia, ou falando com leviandade de uma
eficácia e dignidade exclusivas dos ritos litúrgicos” (n° 161).
Foram apresentações unilaterais da Santa Missa, do teor de Desiderio
desideravi, as responsáveis pela perda desastrosa (ou pelo menos a grave
diluição) da fé na presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo sob as espécies
eucarísticas, confirmada por pesquisas de opinião em vários países, a mais
expressiva das quais é a do Pew Research Center, que descobriu que “apenas
um terço dos católicos americanos concordam com a Igreja de que a
Eucaristia é o corpo e o sangue de Cristo” [18].
NOTAS:
[14] Verbete “Memorial” do Dicionário Teológico Enciclopédico em
https://apps.idteologia.org/index.php?r=sagradaTeologia/view&id=16
[15] Op. cit., p. 46.
[16] Philippe-Marie Margelidon O.P., em «La théologie du sacrifício
eucharistique chez Jacques Maritain», na Revue Thomiste, janeiro-março de
2015, pp. 101-147.
[17] Ver Claude Barthe, La Messe de Vatican II – dossier historique, Via
Romana, Versalhes, 2018, p. 181.
[18] https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/08/05/transsubstantiation-
eucharist-u-s-catholics/

Para a Parte 1, veja aqui. Para a Parte 2, clique aqui [acrescdentar os


hiperlinks].
Continuará amanhã.
Inglês original: https://onepeterfive.com/sacrifice-calvary-memorial-presence/

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