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de Desiderio desideravi
José Antonio Ureta
Nenhuma crítica teológica dos princípios desenvolvidos pelo Papa Francisco em sua
meditação sobre a liturgia chegou às minhas mãos (ou melhor, à tela do computador).
Vejo até com preocupação que alguns artigos, embora condenando as duas falhas de
Desiderio desideravi acima mencionadas, implicam admitir que se seus princípios e
alguns dos comentários do Papa fossem postos em prática nas paróquias, o resultado
seria positivo. “De fato, grande parte das recomendações litúrgicas do Papa Francisco
podem ser lidas como uma bandeira de mobilização pelo tradicionalismo litúrgico”,
escreve um destacado líder tradicionalista, que acrescenta, após citar trechos da
exortação sobre a riqueza da linguagem simbólica: “Se aqueles responsáveis pela
liturgia diocesana levassem a sério essas declarações, veríamos uma transformação
universal da liturgia católica, em uma direção tradicional” 1. Os padres bi-ritualistas da
diocese de Versalhes que animam o Padreblog, afirmam, por sua vez, que “muitos
elementos da carta têm em comum que não são específicos do missal de 1962 ou do
missal de 1970”, para concluir que “o melhor do missal de São Pio V encontrará
naturalmente seu lugar no aprofundamento litúrgico solicitado pelo Santo Padre” 2. O
capelão da missa tradicional a que assisto regularmente (pertencente a uma
comunidade Ecclesia Dei) parece ser da mesma opinião, pois no final de um sermão
recente sugeriu esquecer o desagrado produzido pelo parágrafo 31 do Desiderio
desideravi e aproveitar a férias de verão europeu para alimentar-se espiritualmente
com a leitura do documento pontifício.
1
https://onepeterfive.com/pope-francis-liturgical-longing/
2
https://www.la-croix.com/Debats/Au-dela-querelles-liturgiques-pape-nous-fait-contempler-souffle-
doit-habiter-toute-liturgie-2022-07-06-1201223716
1
da nova orientação teológica assumida pelo Constituição Sacrosantum Concilium do
Vaticano II. Fá-lo-ei comparando a visão da liturgia que foi ensinada no último
documento pré-conciliar sobre o assunto, ou seja, a encíclica Mediator Dei de Pio XII,
com a que emerge de Desiderio desideravi. A conclusão será que esta última merece,
pelo menos, a crítica que o Cardeal Giovanni Colombo fez à Gaudium et Spes, a saber,
que “esse texto tem todas as palavras certas; são os acentos que estão mal colocados”
3
. Infelizmente, o que os leitores tiram do recente texto do Papa são mais os acentos
errados do que as palavras certas...
A Mediator Dei 4 estabelece com clareza solar que o culto católico tem dois
propósitos principais que se cruzam e se sustentam: a glória de Deus e a santificação
das almas. Mas, evidentemente, o primado corresponde à homenagem prestada ao
Criador.
Mesmo o fim subsidiário (e, de fato, primário de outro ponto de vista) de santificar
as almas tem como fim último a glória de Deus: “Tal é a essência e a razão de ser da
sagrada liturgia. Ela cuida do sacrifício, dos sacramentos e do louvor a Deus; da união
das nossas almas com Cristo e da santificação por meio do divino Redentor, afim de
ser honrado Cristo e, por ele e nele, a Santíssima Trindade. Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo” (n° 156).
3
http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1347506.html
4
As citações da encíclica e sua numeração correspondem à versão publicada no site da Santa Sé:
https://www.vatican.va/content/pius-xii/es/encyclicals/documents/hf_p-
xii_enc_20111947_mediator -dei. html.
2
Por influência dos teólogos do chamado “Movimento litúrgico”, cujas ideias foram
recolhidas no Concílio Sacrosantum, essa relação entre a glorificação de Deus e a
santificação das almas na liturgia foi invertida.
“Sempre se reconheceu uma dupla dimensão ao ato litúrgico. Por um lado, tem
como objetivo a glorificação de Deus (dimensão ascensional ou anabática) e, por
outro, a salvação e santificação dos homens (dimensão descendente ou catabática).
(…)
5
https://www.academia.edu/34752512/Apuntes_de_Liturgia.doc.
6
Op. cit., p. 47-48.
3
Igreja Católica, durante a maior parte de sua história, tivesse errado ao considerar a
natureza do culto divino.
As palavras são justas, porque é verdade que o homem acrescenta a Deus uma
glória apenas “acidental”, mas foi o próprio Deus que quis recebê-la do homem ao
7
As citações da exortação e sua numeração correspondem à versão publicada no site dos
franciscanos: https://ofm.org.br/integra-desiderio-desideravi/
4
criá-lo. Porém, as ênfases, por seu caráter unilateral, levam os fiéis a uma posição
equivocada, que facilmente degenera no culto do bezerro de ouro, ou seja, em “uma
festa que a comunidade cria por si mesma; ao celebrá-la, a comunidade nada mais faz
que se confirmar a si própria”, atitude denunciada em seu tempo pelo então Cardeal
Joseph Ratzinger 8.
“A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua
vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que
nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que
morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos
envia o Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: ‘Jesus Cristo ontem e hoje: ele
por todos os séculos’ (Hb 13,8) E, além disso, não no-lo apresenta somente como um
exemplo a imitar mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como
mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que
somos membros, vivendo da sua própria vida.
Pio XII se refere anteriormente aos fins do sacrifício eucarístico (adoração, ação de
graças, propiciação e impetração). Ao descrever o terceiro fim, o Papa Pacelli destaca
mais uma vez o papel da Paixão e Morte do divino Redentor, resumindo em poucas
linhas a doutrina de Santo Anselmo sobre a expiação vicária de Jesus Cristo na cruz:
“O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia
dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele,
pois, quis imolar-se na cruz, ‘propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo’ (1 Jo 2, 2)” (n° 66).
8
Joseph Ratzinger, Introdução ao Espírito da liturgia, Eds. Loyola, São Paulo, 2013, p. 19.
5
não têm limites: estendem-se à universalidade dos homens de todo lugar e de todo
tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação
como a sua obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como
Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. ‘Considera como foi tratado o nosso
resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço comprou; ...derramou o seu
sangue, comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o
sangue do unigênito Filho de Deus... Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a
aquisição é todo o mundo’ (S. Agostinho, Enarr. in Ps,147, n.16)” (n° 69).
“A forma cruel como Jesus sofreu sua morte não é consequência de um destino
inelutável fixado por Deus Pai, mas sim da crueldade de homens que não podiam
tolerar a presença dos justos em seu meio.
“Quando dizemos que Jesus morreu ‘por nossos pecados’, queremos dizer que Ele
morreu porque a humanidade pecadora não pôde deixar de matá-lo. Ele morreu porque
nós éramos pecadores. Se tivéssemos sido justos, nunca o teríamos matado e Jesus não
teria sofrido essa morte. Não é o Pai que quer a morte de Jesus na cruz, mas a
humanidade pecadora.
“Jesus morre porque foi fiel à linha de conduta que Lhe foi traçada, mostrando-nos
o verdadeiro rosto do Pai. Nesse sentido podemos dizer que Ele morreu para o
cumprimento da vontade de Deus. (…)
6
humanidade de Jesus foi ressuscitada pelo Pai. Com isso, abriu-se também para todos
nós a porta da ressurreição e da vida eterna (…) A nossa salvação é o efeito da sua
encarnação, da sua vida, da sua morte, da sua ressurreição e do dom do seu Espírito” 9.
Não poderia ser mais claro: a porta da ressurreição e da vida eterna nos foi aberta,
não tanto pelo sangue derramado na cruz, mas porque a humanidade de Jesus foi
ressuscitada pelo Pai. Esta mudança de paradigma, descrita pedagogicamente pelo Pe.
Martín-Moreno, deixou de ser mera especulação dos teólogos e começou a passar para
as cátedras eclesiásticas já no período de elaboração do esquema prévio da
Constituição sobre a liturgia, antes mesmo do início da primeira sessão conciliar. O
título original do capítulo sobre a Eucaristia, aprovado em 10 de agosto de 1961, era
De sacro sancto Missae sacrificio; mas na sessão de 15 de novembro do mesmo ano
se tornou De sacro sancto Eucharistiae misterio 10.
No início dos debates sobre o esquema anteriormente referido – o único que, pelo
seu caráter inovador voluntariamente moderado 11, não foi totalmente rejeitado, mas
apenas emendado – Dom Henri Jenny, então Bispo Auxiliar de Cambrai e membro da
comissão preparatória comissão sobre a liturgia (e mais tarde membro do Concilium
que elaborou a nova missa), observou que faltava no esquema o essencial: uma
doutrina sobre o mistério da liturgia. Constituiu-se então uma subcomissão que redigiu
o primeiro capítulo da Sacrosantum Concilium 12, cujo conteúdo se tornou o núcleo
doutrinal não só daquela constituição conciliar, mas também da reforma litúrgica de
Paulo VI e de todo o magistério pós-conciliar sobre a liturgia .
9
Op. cit., p. 43-44.
10
https://www.cairn.info/revue-recherches-de-science-religieuse-2013-1-page-13.htm
11
https://www.crisismagazine.com/2021/sacrosanctum-concilium-the-ultimate-trojan-horse
12
http://www.fraternites-jerusalem.ca/wordpress_sdssm/wp-
content/uploads/2013/04/Présentation-Sacrosanctum-Concilium.pdf
7
em todos eles a expressão foi entendida no marco da concepção tradicional da
Redenção como um resgate operado principalmente pelo Sangue derramado na Paixão
e Morte do Salvador (ver, por exemplo, a oração da Sexta-feira Santa: “Lembrai-Vos
das vossas misericórdias, Senhor; santificai e protegei sempre os vossos servos, para
os quais Jesus Cristo vosso Filho instituiu no seu Sangue o mistério pascal” – per
suum cruorem, instituit paschale mysterium). Enquanto em seu significado moderno o
mistério pascal passou a ser entendido principalmente como a plena revelação do amor
do Pai, que se expressa sobretudo na Ressurreição de Jesus: “Quando se passa da
redenção ao mistério pascal, a ênfase muda completamente. Quem fala de redenção
pensa primeiro na Paixão e depois na ressurreição como complemento. Quem fala da
Páscoa pensa primeiro em Cristo ressuscitado” 13, escreveu o dominicano Aimon-
Marie Roguet em um artigo que marcou época, publicado pela revista Maison-Dieu,
bastião parisiense do movimento litúrgico.
A própria definição que ele oferece da liturgia sofre dessa parcialidade. Para
Francisco, é “o sacerdócio de Cristo, revelado a nós e dado no seu mistério pascal,
tornado presente e ativo por meio de sinais dirigidos aos sentidos (água, óleo, pão,
vinho, gestos, palavras), para que o Espírito, mergulhando-nos no mistério pascal,
transforme todas as dimensões da nossa vida, conformando-nos cada vez mais a
Cristo” (n° 21). E falando do respeito devido às rubricas, diz que é preciso não roubar
à assembleia o que lhe corresponde, “ou seja, o mistério pascal celebrado de acordo
com o ritual que a Igreja estabelece” (n° 23), o que deve causar assombro nos
participantes, descrito como ficar “maravilhado pelo fato de o desígnio salvífico de
Deus se ter revelado no ato pascal de Jesus (cf. Ef 1,3-14), e a força deste ato pascal
continua a chegar até nós no celebração dos ‘mistérios’, dos sacramentos.” (n° 25).
Mais adiante, afirma que “a ação da celebração é o lugar em que, por meio do
memorial, o mistério pascal se torna presente para que os batizados, por meio de sua
participação, possam experimentá-lo em sua própria vida” (n° 49).
13
https://www.la-croix.com/Culture/revue-Maison-Dieu-liturgie-coeur-2020-11-29-1201127197
8
O risco com esta mudança de ênfase é que a fé dos fiéis (ou mais bem o pouco que
ainda resta dela) pode ser deformada em duas dimensões. Por um lado, podem ser
levados a pensar que a obra da salvação deve ser atribuída mais ao Pai e ao Espírito
Santo do que a Jesus, o Verbo Encarnado, filho de Maria, que derramou seu sangue
por nossos pecados. Por outro lado, poderiam ser levados a pensar que Jesus Cristo
não é exatamente o Redentor, mas o “lugar” em que Deus nos salva, pois é na Páscoa
de Cristo que o amor do Pai nos é revelado. Também a piedade dos fiéis pode levar a
desvalorizar todas as devoções tradicionais que os encorajam a expiar seus pecados e
os da humanidade, induzindo-os a julgar-se salvos apenas pela fé no desígnio salvífico
de Deus, sem completar na sua carne “o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Col 1,
24); ou, pior ainda, acreditar em uma salvação universal por causa da aliança
indefectível de Deus com a raça humana.
9
A razão para isto último é que, devido ao presente estado glorioso da natureza
humana de Jesus Cristo, o derramamento de sangue é agora impossível, pelo que o
sacrifício de Cristo se manifesta externamente pela separação das espécies eucarísticas
sob as quais está presente, e que simbolizam a separação sangrenta do Corpo e do
Sangue. “Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no
sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que
Jesus Cristo se encontra em estado de vítima” (no. 63).
Esta apresentação tradicional não era do gosto dos inovadores, que começaram a dar
ênfase à comemoração, embora sem a conotação de nuda commemoratio dos
reformadores protestantes, mas dando-lhe o significado de um memorial objetivo e
real que “re-apresenta” o que aconteceu historicamente e o comunica aqui e agora de
forma eficaz.
O já mencionado jesuíta Pe. Martín-Moreno nos explica por que não é uma
reiteração multiplicada do único sacrifício de Cristo: “Não é que o tempo da salvação
se repita aqui e agora, mas que o homem aqui e agora entra em comunicação uma e
outra vez com uma presença permanente que está além do tempo decorrido. (…)
Na liturgia chega-se ao ponto de intersecção do tempo e da eternidade. Ali o
participante torna-se contemporâneo dos acontecimentos bíblicos. O homem
torna-se uma testemunha contemporânea do que aconteceu então. Cristo nasce no
Natal, ressuscita na Páscoa. A anamnese é obra do homem ou de Deus? O homem é
quem comemora, mas como ato humano, seu ato de lembrar não pode transcender o
tempo, não pode entrar no túnel do tempo para retornar ao passado. É apenas a ação
divina que, transcendendo o tempo, traz os mistérios ao nosso aqui e agora. É por
isso que a liturgia, antes da ação do homem, é a ação de Deus” 15.
O caminho havia sido aberto pelas teses pioneiras do então padre Charles Journet
(posteriormente cardeal por Paulo VI) e do filósofo francês Jacques Maritain, para
14
Verbete “Memorial” do Dicionário Teológico Enciclopédico em
https://apps.idteologia.org/index.php?r=sagradaTeologia/view&id=16
15
Op. cit., p. 46.
10
quem a presença real de Jesus Cristo duplicar-se-ia em uma espécie de presença real
do sacrifício 16.
Esta opção teológica a favor do memorial, que omite que a missa é uma renovação
incruenta do sacrifício do Calvário e afirma que durante a sua celebração o sacrifício
somente se torna presente, oferece uma interpretação fraca do dogma da fé proclamado
pelo Concílio de Trento, segundo o qual cada missa é “um sacrifício próprio e
verdadeiro” feito em forma sacramental, porque a transubstanciação torna o Corpo e
o Sangue da Vítima divina verdadeiramente presentes e simbolicamente separados 17.
16
Philippe-Marie Margelidon O.P., em «La théologie du sacrifice eucharistique chez Jacques
Maritain», na Revue Thomiste, janeiro-março de 2015, pp. 101-147.
17
Ver Claude Barthe, La Messe de Vatican II – dossier historique, Via Romana, Versalhes, 2018, p.
181.
11
Voltando ao tema principal, cumpre notar que em Desiderio desideravi há algumas
referências ao sacrifício de Jesus na cruz, mas em nenhum momento se diz que tal
sacrifício se renova de forma incruenta a cada missa. Pelo contrário, um dos primeiros
parágrafos, embora afirme que “o conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, seu
sacrifício de obediência por amor ao Pai”, diz logo após que os Apóstolos, depois de
terem participado na Última Ceia, antecipação ritual de sua morte, deveriam ter
entendido “o que significava para Jesus dizer ‘corpo oferecido’, ‘sangue derramado’.
É disto que fazemos memória em cada Eucaristia” (n° 7). Teria sido o momento
mais apropriado para ensinar que na missa não só se faz memória, mas também se
renova de modo incruento o sacrifício do Calvário, sacramentalmente representado na
separação das espécies eucarísticas. O Papa Francisco optou por omitir essa verdade
de fé e referir-se apenas ao memorial.
A missa como lembrança do “imenso dom” que Jesus presenteou na Última Ceia?
Na Mediator Dei, Pio XII ensina explicitamente que “Somente aos apóstolos e
àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é
conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo
que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de
Deus”(n° 35). Mas, acrescenta, na Santa Missa “o sacerdote faz as vezes do povo
porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de
todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como
ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo (São Roberto Belarmino, De
missa II c.l.). O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do
divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de
nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais” (n° 76).
18
https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/08/05/transsubstantiation-eucharist-u-s-catholics/
13
É claro que os ritos e orações do sacrifício eucarístico “a oblação da vítima é feita
pelos sacerdotes em união com o povo” (n° 78), pois “com a água do batismo, com
efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo místico de Cristo
sacerdote, e, por meio do ‘caráter’ que se imprime nas suas almas, são delegados ao
culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio
de Cristo” (n° 79).
Mas como é a participação do povo nos atos do sacerdócio de Cristo? “Em contato
íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: ‘Tende em vós os mesmos
sentimentos que Jesus Cristo experimentou’(Fl 2,5.) oferecendo com ele e por ele,
santificando-se com ele” (n° 73). Mas Pio XII se crê no dever de reiterar mais uma vez
que “o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que
eles gozem de poderes sacerdotais”. Tal insistência se justifica porque já então alguns
acreditavam “o preceito dado por Jesus aos apóstolos na última ceia – fazer o que ele
havia feito – se refere diretamente a toda a Igreja dos cristãos”, e julgavam que “o
sacrifício eucarístico é uma verdadeira e própria ‘concelebração’” (n° 75).
Contra este erro, a Mediador Dei ensinou que “a imolação incruenta por meio da
qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente
no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a
pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis”. Os fiéis oferecem o
sacrifício pelas mãos do sacerdote “pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo
enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom
direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima”.
Porém, “não se afirma que os membros da Igreja de maneira idêntica à do próprio
sacerdote realizam o rito litúrgico visível – o que pertence somente ao ministro de
Deus para isso designado – mas sim que une os seus votos de louvor, de impetração,
de expiação e a sua ação de graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio sumo
pontífice, a fim de que sejam apresentados a Deus Pai na própria oblação da vítima,
embora com o rito externo do sacerdote” (n° 83). [note que a tradução oficial da
Mediator Dei diz “imolação incruenta” – é uma expressão habitual da teologia
tradicional – se o público não sabe ... que aprenda!]
Logicamente, Pio XII conclui explicando que não se pode condenar as missas
privadas sem a participação do povo, nem a celebração simultânea de várias missas
privadas em diferentes altares, alegando erroneamente a “índole social do sacrifício
eucarístico”. Porque o santo sacrifício da missa, “tem sempre e em qualquer lugar
necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função pública e social, enquanto o
ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos, dos quais o divino Redentor é Cabeça,
e oferece a Deus pela santa Igreja católica e pelos vivos e defuntos”. Por isso, não é
“de nenhum modo requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro” (n°
14
86), nem é necessário que o povo cristão se aproxime da mesa eucarística para
assegurar a integridade do sacrifício, como afirmam capciosamente os que “fazem da
santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração” (nos 100-102).
“A eclesiologia que partiu da divisão entre clero e leigos teve sua perfeita
visibilidade na liturgia pré-vaticana. Os coros dos cônegos localizavam-se na parte
privilegiada das catedrais, isolados dos demais por grades. O presbitério localizava-se
nas alturas, separado dos fiéis por uma grandiosa escadaria. Desta forma, destacou-se
o papel mediador do sacerdote localizado lá em cima, a meio caminho entre o Céu e a
Terra.
19
Permitam-nos um pequeno desvio, para destacar a imprecisão do conceito de “eclesiologia de
comunhão”, que se encontra em todos os lábios após o Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985,
numa tentativa frustrada de resolver o conflito entre o conceito tradicional da Igreja, sociedade
perfeita e hierárquica, e aquele da Igreja-Povo-de-Deus, igualitária, das comunidades de base. O Pe.
Juan Manuel Martín-Moreno talvez tenha razão em incluir o conceito de “eclesiologia de
comunhão” em sua visão de como deve ser uma assembleia litúrgica…
15
à parte ou fora da comunidade”. O ministro não recebe seu mandato diretamente de
Cristo, como os apóstolos ou Paulo 20. (…)
“Daí surge a consciência de que as ações litúrgicas não são privadas, mas têm
caráter comunitário (SC 26). É preciso devolver ao corpo da Igreja o que sempre foi
seu patrimônio; a assembleia deve recuperar o protagonismo que havia perdido
devido ao clericalismo abusivo. (…)
Que o celebrante seja toda a assembleia e que o ministro do altar seja reduzido à
condição de presidente da assembleia é o que Desiderio desideravi enfatiza, não
negando, mas omitindo completamente que só ele realiza in persona Christi a
imolação incruenta do sacrifício eucarístico.
21
Op. cit., p. 60-62.
22
Isso não acontece na versão em português, porque a palavra “presbítero” nunca se tornou comum
entre os católicos de língua portugeusa para se referir aos padres. Ela é usada apenas como
adjetivo, em expressões como “ministério presbiteral”, “conselho presbiteral”, etc. Por isso, a
versão portuguesa usa “sacerdote” lá onde o original italiano e a tradução ao espanhol empregam
“presbítero”.
17
O documento reconhece que o ofício dos padres “não é principalmente um dever
que lhe é atribuído pela comunidade, mas sim uma consequência do derramamento do
Espírito Santo recebido na ordenação que o capacita para tal tarefa”. Mas, ao definir
sua tarefa, não diz ser aquela sacerdotal de sacrificar sacramentalmente a Vítima, mas
a de presidir as assembleias: “O sacerdote vive sua participação característica na
celebração em virtude do dom recebido no sacramento da Ordem, e isso se expressa
precisamente na presidência” (n° 56).
“Para que este serviço seja bem feito — aliás, com arte! — é de fundamental
importância que o sacerdote tenha a consciência viva de ser, pela misericórdia de
Deus, uma presença particular do Senhor ressuscitado. O ministro ordenado é ele
próprio um dos tipos de presença do Senhor que torna a assembleia cristã única,
diferente de qualquer outra assembleia. (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7) Este fato
confere peso “sacramental” (em sentido amplo) a todos os gestos e palavras de quem
preside. A assembléia tem o direito de poder sentir naqueles gestos e palavras o desejo
que o Senhor tem, hoje como na Última Ceia, de comer a Páscoa conosco” (n° 57).
“A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e dissemelhantes que
nem todos podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos
cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as
18
disposições das almas não são iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em cada
um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos cristãos não
podem participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente
que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando
piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras
orações que, embora na forma difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem
pela sua natureza” (n° 133).
Nos quatro itens analisados acima – (1) a finalidade do culto litúrgico, (2) o mistério
pascal como centro da celebração, (3) o caráter memorial da Santa Missa e, por fim,
(4) a presidência da assembleia litúrgica – fica bastante claro que a visão da Liturgia
de Desiderio desideravi é unilateral, pois coloca todos os acentos nas sílabas erradas,
embora suas palavras, consideradas individualmente, possam parecer justas a ponto de
merecerem elogios de alguns tradicionalistas, mesmo entre os mais instruídos. O que o
Papa Francisco parece querer enfatizar são as teorias e preferências dos liturgistas
inovadores, não a doutrina tradicional da Igreja.
Mas uma análise detalhada mostra que o resultado final é uma apresentação da vida
sacramental da Igreja, em particular do rito da Santa Missa, que em seu conjunto não
parece estar em harmonia com os princípios e conselhos pastorais da última grande
encíclica litúrgica prévia ao Concílio Vaticano II, a saber, a Mediator Dei do Papa Pio
XII.
A pergunta incômoda que surge é a seguinte: essas duas formas rituais muito
diferentes realmente correspondem à mesma Fé?
19
No campo dos inovadores mais avançados, a resposta é clara: trata-se de duas
posições litúrgicas incompatíveis, que correspondem a duas posições dogmáticas
incompatíveis: uma é a fé que permeia o rito tradicional; outra fé é aquela que permeia
o novo rito. É por isso que o jesuíta que citamos, Pe. Martín-Moreno, insiste com tanta
veemência que a “Missa nova” definitivamente suplanta (e, é preciso dizer, repudia) a
orientação e a posição teológica da Missa antiga.
“Pelo contrário! Uma fé ainda derivada da lex orandi de ontem, que fez do
catolicismo a religião de um deus perverso que faz seu filho morrer para aplacar sua
ira, uma religião de perpétua mea culpa e reparação, levaria a um ‘antitestemunho’ de
fé , a uma imagem desastrosa de Cristo. Prova irrefutável: a concessão ainda muito
frequente de indulgências, vinculadas entre outras coisas às missas-sacrifício, em
remissão dos pecados.
“Nossas Missas, infelizmente, ainda estão marcadas com um forte caráter sacrificial
‘expiatório’ com finalidade ‘propiciatória’ para aniquilar os pecados (mencionados 20
vezes), para alcançar nossa salvação e salvar almas da vingança divina. ‘Propiciação’
que as comunidades Ecclesia Dei defendem com unhas e dentes, com seus sacerdotes
votados ao sacrifício treinados para rezar o Santo Sacrifício da Missa, verdadeira
imolação. (…)
23
Aline e Alain Weidert, em La Croix, 02-10-2022, https://www.la-croix.com/Debats/fin-messes-
dautre-foi-chance-Christ-2022-02-10- 1201199636
20
“É dessa parte submersa da Missa Tridentina, desvio histórico curiosamente
passado em silêncio (tabu?) nos debates atuais, que precisamos acabar de sair. Desde o
Concílio Vaticano II percorremos um longo caminho rumo ao fato inicial de uma
Eucaristia positiva, de um ‘Fazei isto em memória de mim!’, onde todos são
convidados a ser diariamente sacramento da Aliança: ‘Pelo mistério desta água e deste
vinho sejamos participantes da divindade d’Aquele que assumiu a nossa humanidade’.
Sacramento da Aliança, um conceito novo nesta oração [do ofertório] desde o Concílio
Vaticano II. (…)
“Se quisermos poder oferecer no futuro uma fé e uma prática cristã atraentes,
devemos nos aventurar, através da reflexão e da formação, a descobrir um fundo ainda
desaproveitado (e inexplorado) de salvação por Jesus, não colocando em primeiro
lugar sua morte contra (‘pelos’) pecados, mas sua existência como uma Aliança.
Porque ‘a sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa
salvação’ (Vaticano II Sacrosanctum Concilium, 5). A opção é clara! Não entre
sensibilidades e estéticas religiosas diferentes, mas entre intermináveis sacrifícios para
apagar os pecados e Eucaristias que selam a Aliança/Cristo”.
Pelo menos aqui as coisas são ditas com clareza e sem rodeios semânticos. Mas se
colocássemos o cursor de Desiderio desideravi entre as duas visões da liturgia e da
missa descritas neste artigo, tememos que o cursor se encontrasse muito próximo ao
polo da Aliança. Tanto é assim, que Alain Weidert acaba de publicar em La Croix um
novo artigo, eufórico com o conteúdo da exortação 24[24].
Em todo caso, os objetivos que o Papa Francisco se propôs com a publicação de sua
última exortação apostólica – ou seja, que “abandonemos nossas polêmicas” (n° 65) e
que “a beleza da celebração cristã e suas consequências necessárias para a vida da
Igreja não sejam prejudicadas por uma compreensão superficial e escorçada de seu
valor ou, pior ainda, por serem exploradas a serviço de alguma visão ideológica” (n°
16) – estão ainda muito longe de serem alcançados.
A razão é dada pelo próprio pontífice: “Seria trivial ler as tensões, infelizmente
presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes
gostos em relação a uma determinada forma ritual” (n° 31). Isso é exato. É
principalmente por razões teológicas que os modernistas enragés consideram que o
rito de São Pio V é a missa de “outra fé”, como é também por razões teológicas que os
tradicionalistas consideram que o rito de Paulo VI se afasta em alguns pontos
essenciais dos ensinamentos tradicionais sobre a missa. É em nome da fé de todos os
24
https://www.la-croix.com/Debats/Francois-lurgence-dune-formation-liturgie-2022-07-08-
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tempos que eles não aceitam que o novo rito seja a “expressão única da lex orandi do
Rito Romano”, como afirma Traditionis custodes e reitera Desiderio desideravi (n°
31).
Em todo caso, fica aqui um convite para que teólogos e especialistas em Liturgia
tratem do assunto e analisem, de forma mais profunda e científica, a contribuição que
Desiderio desideravi deu ao debate em curso.
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