Você está na página 1de 22

Breve estudo sobre alguns desvios teológicos

de Desiderio desideravi
José Antonio Ureta

A necessidade de um exame cuidadoso

Nos meios tradicionalistas, os comentários sobre a exortação apostólica Desiderio


desideravi limitaram-se até agora a lamentar a reiteração da tese de que a missa de
Paulo VI é a única forma do rito romano e a negar que o novo Ordinário da Missa é
uma tradução fiel dos desejos de reforma expressos pelos Padres conciliares na
Constituição Sacrosantum Concilium.

Nenhuma crítica teológica dos princípios desenvolvidos pelo Papa Francisco em sua
meditação sobre a liturgia chegou às minhas mãos (ou melhor, à tela do computador).
Vejo até com preocupação que alguns artigos, embora condenando as duas falhas de
Desiderio desideravi acima mencionadas, implicam admitir que se seus princípios e
alguns dos comentários do Papa fossem postos em prática nas paróquias, o resultado
seria positivo. “De fato, grande parte das recomendações litúrgicas do Papa Francisco
podem ser lidas como uma bandeira de mobilização pelo tradicionalismo litúrgico”,
escreve um destacado líder tradicionalista, que acrescenta, após citar trechos da
exortação sobre a riqueza da linguagem simbólica: “Se aqueles responsáveis pela
liturgia diocesana levassem a sério essas declarações, veríamos uma transformação
universal da liturgia católica, em uma direção tradicional” 1. Os padres bi-ritualistas da
diocese de Versalhes que animam o Padreblog, afirmam, por sua vez, que “muitos
elementos da carta têm em comum que não são específicos do missal de 1962 ou do
missal de 1970”, para concluir que “o melhor do missal de São Pio V encontrará
naturalmente seu lugar no aprofundamento litúrgico solicitado pelo Santo Padre” 2. O
capelão da missa tradicional a que assisto regularmente (pertencente a uma
comunidade Ecclesia Dei) parece ser da mesma opinião, pois no final de um sermão
recente sugeriu esquecer o desagrado produzido pelo parágrafo 31 do Desiderio
desideravi e aproveitar a férias de verão europeu para alimentar-se espiritualmente
com a leitura do documento pontifício.

Temendo que essa atitude benevolente se espalhe na mídia tradicionalista, pretendo


mostrar nos parágrafos seguintes os desvios doutrinários que, em minha modesta
opinião, regam as meditações do Papa Francisco sobre a liturgia, desvios que resultam

1
https://onepeterfive.com/pope-francis-liturgical-longing/
2
https://www.la-croix.com/Debats/Au-dela-querelles-liturgiques-pape-nous-fait-contempler-souffle-
doit-habiter-toute-liturgie-2022-07-06-1201223716
1
da nova orientação teológica assumida pelo Constituição Sacrosantum Concilium do
Vaticano II. Fá-lo-ei comparando a visão da liturgia que foi ensinada no último
documento pré-conciliar sobre o assunto, ou seja, a encíclica Mediator Dei de Pio XII,
com a que emerge de Desiderio desideravi. A conclusão será que esta última merece,
pelo menos, a crítica que o Cardeal Giovanni Colombo fez à Gaudium et Spes, a saber,
que “esse texto tem todas as palavras certas; são os acentos que estão mal colocados”
3
. Infelizmente, o que os leitores tiram do recente texto do Papa são mais os acentos
errados do que as palavras certas...

A comparação entre a visão de Pio XII e a de Francisco se centrará em quatro


pontos específicos: a finalidade do culto litúrgico, o mistério pascal como centro da
celebração, o caráter memorial da Santa Missa e, por fim, a presidência da assembléia
litúrgica.

1. Uma descrição desequilibrada do culto

Finalidade principal da liturgia: prestar homenagem ao Deus Um e Trino

A Mediator Dei 4 estabelece com clareza solar que o culto católico tem dois
propósitos principais que se cruzam e se sustentam: a glória de Deus e a santificação
das almas. Mas, evidentemente, o primado corresponde à homenagem prestada ao
Criador.

Depois de explicar que “o dever fundamental do homem é certamente este de


orientar a si mesmo e a própria vida para Deus”, reconhecendo Sua suprema majestade
e dando-Lhe “pela virtude da religião, o devido culto” (n° 11), Pio XII recorda que a
Igreja o faz continuando a função sacerdotal de Jesus Cristo (n° 2-3), e conclui com a
seguinte definição: “A sagrada liturgia é, portanto, o culto público que o nosso
Redentor rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade dos fiéis
rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em uma palavra, o culto integral
do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da cabeça e de seus membros” (n° 17).

Mesmo o fim subsidiário (e, de fato, primário de outro ponto de vista) de santificar
as almas tem como fim último a glória de Deus: “Tal é a essência e a razão de ser da
sagrada liturgia. Ela cuida do sacrifício, dos sacramentos e do louvor a Deus; da união
das nossas almas com Cristo e da santificação por meio do divino Redentor, afim de
ser honrado Cristo e, por ele e nele, a Santíssima Trindade. Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo” (n° 156).

3
http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1347506.html
4
As citações da encíclica e sua numeração correspondem à versão publicada no site da Santa Sé:
https://www.vatican.va/content/pius-xii/es/encyclicals/documents/hf_p-
xii_enc_20111947_mediator -dei. html.
2
Por influência dos teólogos do chamado “Movimento litúrgico”, cujas ideias foram
recolhidas no Concílio Sacrosantum, essa relação entre a glorificação de Deus e a
santificação das almas na liturgia foi invertida.

A inversão sistemática das finalidades do culto

O teólogo jesuíta Pe. Juan Manuel Martín-Moreno explica de forma muito


pedagógica em suas Notas sobre a Liturgia 5 para o curso que ministrou na Pontifícia
Universidade de Comillas (da Companhia de Jesus) nos anos 2003-2004:

“Sempre se reconheceu uma dupla dimensão ao ato litúrgico. Por um lado, tem
como objetivo a glorificação de Deus (dimensão ascensional ou anabática) e, por
outro, a salvação e santificação dos homens (dimensão descendente ou catabática).
(…)

“A teologia litúrgica anterior ao Vaticano II partiu do conceito de culto concebido


anabaticamente. A liturgia era principalmente a glorificação de Deus, o cumprimento
da obrigação que a Igreja tem como sociedade perfeita de prestar culto público a Deus,
a fim de atrair suas bênçãos.

“Por outro lado, para o Vaticano II prevalece a dimensão descendente. A Trindade


divina se manifesta na Encarnação e na Páscoa de Cristo. O Pai dando seu Filho ao
mundo na Encarnação, e seu Espírito na plenitude da Páscoa, comunica-nos como um
dom sua comunhão trinitária. Este duplo dom da Palavra e do Espírito nos é dado na
celebração litúrgica para nossa libertação e santificação. (…)

“A concepção anabática da liturgia focava no serviço do homem a Deus, enquanto a


catabática focava no serviço oferecido por Deus ao homem. A crítica ao culto,
entendido como serviço do homem a Deus, baseia-se no fato de que Deus não precisa
realmente desses serviços do homem. (…)

“Se a liturgia fosse basicamente adoração, seria supérflua. Mas se a liturgia é o


caminho pelo qual o homem pode chegar à posse da salvação de Deus, o caminho pelo
qual a ação salvífica se torna verdadeiramente presente aqui e agora para o homem, é
claro que o homem ainda precisa da liturgia” 6.

De fato, a dimensão catabática também tem o propósito anabático de conduzir os


homens a Deus e fazê-los glorificá-Lo. Deve-se notar que essa visão de que “a liturgia
... seria supérflua” se fosse “basicamente adoração” eliminaria, de fato, a maior parte
do conteúdo dos ritos cristãos tradicionais, tanto orientais quanto ocidentais; como se a

5
https://www.academia.edu/34752512/Apuntes_de_Liturgia.doc.
6
Op. cit., p. 47-48.
3
Igreja Católica, durante a maior parte de sua história, tivesse errado ao considerar a
natureza do culto divino.

O Papa Francisco adota essa inversão

Em Desiderio desideravi 7, o Papa Francisco enfatiza quase exclusivamente essa


concepção primordialmente catabática da liturgia e deixa na sombra a glorificação de
Deus, que para Pio XII é seu elemento primordial.

A sua meditação começa com as palavras iniciais do relato da Última Ceia –


“Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” – sublinhando que nos dão “a
surpreendente possibilidade de intuir a profundidade do amor das pessoas da
Santíssima Trindade por nós” (nº 2). “O mundo não sabe, mas todos estão convidados
para a ceia das bodas do Cordeiro (Ap 19, 9)” (n° 5), acrescenta o pontífice. No
entanto, “Antes de nossa resposta ao seu convite – bem antes! — há o desejo dele por
nós. Podemos até não estar cientes disso, mas toda vez que vamos à Missa, a primeira
razão é que somos atraídos por seu desejo por nós” (n. 6). A Liturgia, portanto, é antes
de tudo o lugar do encontro com Cristo, porque “nos garante a possibilidade de tal
encontro” (n° 11).

O significado catabático e descendente da liturgia – entrar em posse da salvação – é


muito bem destacado. Mas foi totalmente omitido o fato, destacado por Pio XII no
texto já citado, de que a primeira função sacerdotal de Cristo é adorar o Pai Eterno em
união com Seu Corpo Místico.

Essa unilateralidade é reforçada em outro parágrafo que trata especificamente do


aspecto anabático ascendente, ou seja, da glorificação da divindade pelos fiéis
reunidos. O referido texto do Papa Francisco insinua que a glória de Deus é
secundária, na medida em que não acrescenta nada ao que Ele já possui no Céu,
enquanto o que realmente conta é a Sua presença na terra e a transformação espiritual
que ela produz: “A Liturgia dá glória a Deus não porque possamos acrescentar algo à
beleza da luz inacessível em que Deus habita (cf. 1Tm 6,16). Tampouco podemos
acrescentar à perfeição do canto angélico que ressoa eternamente pelos lugares
celestiais. A liturgia dá glória a Deus porque nos permite – aqui, na terra – ver Deus na
celebração dos mistérios, e ao vê-lo tirar vida da sua Páscoa. Nós, que estávamos
mortos por nossos pecados e fomos vivificados novamente com Cristo - nós somos a
glória de Deus” (n° 43).

As palavras são justas, porque é verdade que o homem acrescenta a Deus uma
glória apenas “acidental”, mas foi o próprio Deus que quis recebê-la do homem ao

7
As citações da exortação e sua numeração correspondem à versão publicada no site dos
franciscanos: https://ofm.org.br/integra-desiderio-desideravi/
4
criá-lo. Porém, as ênfases, por seu caráter unilateral, levam os fiéis a uma posição
equivocada, que facilmente degenera no culto do bezerro de ouro, ou seja, em “uma
festa que a comunidade cria por si mesma; ao celebrá-la, a comunidade nada mais faz
que se confirmar a si própria”, atitude denunciada em seu tempo pelo então Cardeal
Joseph Ratzinger 8.

2. Obscurecimento da centralidade da Paixão redentora

O mistério pascal como centro da celebração

Na encíclica Mediator Dei, Pio XII sublinha a centralidade da Paixão na vida de


Nosso Senhor Jesus Cristo e na nossa redenção (doravante, todos os destaques em
negrito são nossos):

“A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua
vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que
nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que
morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos
envia o Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: ‘Jesus Cristo ontem e hoje: ele
por todos os séculos’ (Hb 13,8) E, além disso, não no-lo apresenta somente como um
exemplo a imitar mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como
mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que
somos membros, vivendo da sua própria vida.

“E assim como as suas acerbas dores constituem o mistério principal de que


provém a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica, colocar isto na
sua máxima luz, porque é como o centro do culto divino, por ser o sacrifício
eucarístico a sua cotidiana representação e renovação, e estarem todos os sacramentos
unidos com estreitíssimo vínculo à cruz” (n°s 148-149).

Pio XII se refere anteriormente aos fins do sacrifício eucarístico (adoração, ação de
graças, propiciação e impetração). Ao descrever o terceiro fim, o Papa Pacelli destaca
mais uma vez o papel da Paixão e Morte do divino Redentor, resumindo em poucas
linhas a doutrina de Santo Anselmo sobre a expiação vicária de Jesus Cristo na cruz:
“O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia
dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele,
pois, quis imolar-se na cruz, ‘propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo’ (1 Jo 2, 2)” (n° 66).

E reitera esse ensinamento tradicional ao descrever o fruto do sacrifício divino,


citando Santo Agostinho: “Os infinitos e imensos méritos desse sacrifício, com efeito,

8
Joseph Ratzinger, Introdução ao Espírito da liturgia, Eds. Loyola, São Paulo, 2013, p. 19.
5
não têm limites: estendem-se à universalidade dos homens de todo lugar e de todo
tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação
como a sua obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como
Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. ‘Considera como foi tratado o nosso
resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço comprou; ...derramou o seu
sangue, comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o
sangue do unigênito Filho de Deus... Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a
aquisição é todo o mundo’ (S. Agostinho, Enarr. in Ps,147, n.16)” (n° 69).

Reinterpretando a Redenção por meio da Ressurreição

Essa insistência na centralidade do sacrifício da cruz para a redenção do gênero


humano foi uma resposta às elucubrações dos teólogos mais radicais do movimento
litúrgico que, já naquela época, o colocaram nas sombras, enfatizando o triunfo e a
Ressurreição de Cristo e seu presente estado glorioso. O jesuíta Juan Manuel Martín-
Moreno nos servirá novamente como guia para esclarecer a mudança de ênfase
introduzida pelos inovadores:

“A teologia ocidental está em vias de libertar-se desse modelo anselmiano de


redenção, que afetou tão negativamente a liturgia. Na realidade, verdadeiramente, a
salvação foi uma iniciativa do Pai que já nos amou quando ainda éramos pecadores
(Rm 5,10). Foi iniciativa do Pai enviar-nos o seu Filho Salvador, como cabeça de uma
nova Humanidade. Jesus não morreu porque Ele mesmo buscou a morte, nem porque o
Pai a exigiu dele. O Pai não O enviou para morrer, mas para viver. A ação do Pai não
consiste em matar seu Filho, mas em ressuscitá-lo, aceitando sua oferta amorosa. (…)

“A forma cruel como Jesus sofreu sua morte não é consequência de um destino
inelutável fixado por Deus Pai, mas sim da crueldade de homens que não podiam
tolerar a presença dos justos em seu meio.

“Quando dizemos que Jesus morreu ‘por nossos pecados’, queremos dizer que Ele
morreu porque a humanidade pecadora não pôde deixar de matá-lo. Ele morreu porque
nós éramos pecadores. Se tivéssemos sido justos, nunca o teríamos matado e Jesus não
teria sofrido essa morte. Não é o Pai que quer a morte de Jesus na cruz, mas a
humanidade pecadora.

“Jesus morre porque foi fiel à linha de conduta que Lhe foi traçada, mostrando-nos
o verdadeiro rosto do Pai. Nesse sentido podemos dizer que Ele morreu para o
cumprimento da vontade de Deus. (…)

“Porque morreu no cumprimento da sua missão e assumiu a nossa natureza humana


até às últimas consequências, tendo uma morte semelhante à nossa; é por isso que a

6
humanidade de Jesus foi ressuscitada pelo Pai. Com isso, abriu-se também para todos
nós a porta da ressurreição e da vida eterna (…) A nossa salvação é o efeito da sua
encarnação, da sua vida, da sua morte, da sua ressurreição e do dom do seu Espírito” 9.

Não poderia ser mais claro: a porta da ressurreição e da vida eterna nos foi aberta,
não tanto pelo sangue derramado na cruz, mas porque a humanidade de Jesus foi
ressuscitada pelo Pai. Esta mudança de paradigma, descrita pedagogicamente pelo Pe.
Martín-Moreno, deixou de ser mera especulação dos teólogos e começou a passar para
as cátedras eclesiásticas já no período de elaboração do esquema prévio da
Constituição sobre a liturgia, antes mesmo do início da primeira sessão conciliar. O
título original do capítulo sobre a Eucaristia, aprovado em 10 de agosto de 1961, era
De sacro sancto Missae sacrificio; mas na sessão de 15 de novembro do mesmo ano
se tornou De sacro sancto Eucharistiae misterio 10.

Como esse ponto de vista entrou na constituição conciliar sobre a Liturgia

No início dos debates sobre o esquema anteriormente referido – o único que, pelo
seu caráter inovador voluntariamente moderado 11, não foi totalmente rejeitado, mas
apenas emendado – Dom Henri Jenny, então Bispo Auxiliar de Cambrai e membro da
comissão preparatória comissão sobre a liturgia (e mais tarde membro do Concilium
que elaborou a nova missa), observou que faltava no esquema o essencial: uma
doutrina sobre o mistério da liturgia. Constituiu-se então uma subcomissão que redigiu
o primeiro capítulo da Sacrosantum Concilium 12, cujo conteúdo se tornou o núcleo
doutrinal não só daquela constituição conciliar, mas também da reforma litúrgica de
Paulo VI e de todo o magistério pós-conciliar sobre a liturgia .

Aquele primeiro capítulo da Sacrosantum Concilium dilui a centralidade da morte


de cruz em todo o “mistério pascal”: “Esta obra da redenção dos homens e da
glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes obras no povo da Antiga
Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua
bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, em que
‘morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida’ (Missal
Romano, Prefácio pascal). Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o
sacramento admirável de toda a Igreja” (n° 5).

Não há dúvida de que a expressão paschale sacramentum (isto é, “mistério pascal”)


é frequente nos textos dos Padres da Igreja e nas orações do missal tradicional. Mas

9
Op. cit., p. 43-44.
10
https://www.cairn.info/revue-recherches-de-science-religieuse-2013-1-page-13.htm
11
https://www.crisismagazine.com/2021/sacrosanctum-concilium-the-ultimate-trojan-horse
12
http://www.fraternites-jerusalem.ca/wordpress_sdssm/wp-
content/uploads/2013/04/Présentation-Sacrosanctum-Concilium.pdf
7
em todos eles a expressão foi entendida no marco da concepção tradicional da
Redenção como um resgate operado principalmente pelo Sangue derramado na Paixão
e Morte do Salvador (ver, por exemplo, a oração da Sexta-feira Santa: “Lembrai-Vos
das vossas misericórdias, Senhor; santificai e protegei sempre os vossos servos, para
os quais Jesus Cristo vosso Filho instituiu no seu Sangue o mistério pascal” – per
suum cruorem, instituit paschale mysterium). Enquanto em seu significado moderno o
mistério pascal passou a ser entendido principalmente como a plena revelação do amor
do Pai, que se expressa sobretudo na Ressurreição de Jesus: “Quando se passa da
redenção ao mistério pascal, a ênfase muda completamente. Quem fala de redenção
pensa primeiro na Paixão e depois na ressurreição como complemento. Quem fala da
Páscoa pensa primeiro em Cristo ressuscitado” 13, escreveu o dominicano Aimon-
Marie Roguet em um artigo que marcou época, publicado pela revista Maison-Dieu,
bastião parisiense do movimento litúrgico.

O Papa Francisco minimiza a morte redentora de Cristo

É precisamente esta acentuação unilateral a favor da Páscoa em detrimento da


Paixão – contrária ao equilíbrio tradicional – que transparece por todos os poros da
Desiderio desideravi. O documento não usa uma só vez as palavras “Redenção”,
“Redentor”, “resgatar”, que evocam a libertação do pecado através do pagamento de
uma dívida. Usa sempre “salvação”, que não tem essa conotação, e a associa
preferencialmente à Páscoa, citada nada menos que 29 vezes ao longo do texto,
enquanto a Ressurreição é mencionada 14 vezes e a morte do Senhor apenas 6 vezes.

A própria definição que ele oferece da liturgia sofre dessa parcialidade. Para
Francisco, é “o sacerdócio de Cristo, revelado a nós e dado no seu mistério pascal,
tornado presente e ativo por meio de sinais dirigidos aos sentidos (água, óleo, pão,
vinho, gestos, palavras), para que o Espírito, mergulhando-nos no mistério pascal,
transforme todas as dimensões da nossa vida, conformando-nos cada vez mais a
Cristo” (n° 21). E falando do respeito devido às rubricas, diz que é preciso não roubar
à assembleia o que lhe corresponde, “ou seja, o mistério pascal celebrado de acordo
com o ritual que a Igreja estabelece” (n° 23), o que deve causar assombro nos
participantes, descrito como ficar “maravilhado pelo fato de o desígnio salvífico de
Deus se ter revelado no ato pascal de Jesus (cf. Ef 1,3-14), e a força deste ato pascal
continua a chegar até nós no celebração dos ‘mistérios’, dos sacramentos.” (n° 25).
Mais adiante, afirma que “a ação da celebração é o lugar em que, por meio do
memorial, o mistério pascal se torna presente para que os batizados, por meio de sua
participação, possam experimentá-lo em sua própria vida” (n° 49).

13
https://www.la-croix.com/Culture/revue-Maison-Dieu-liturgie-coeur-2020-11-29-1201127197
8
O risco com esta mudança de ênfase é que a fé dos fiéis (ou mais bem o pouco que
ainda resta dela) pode ser deformada em duas dimensões. Por um lado, podem ser
levados a pensar que a obra da salvação deve ser atribuída mais ao Pai e ao Espírito
Santo do que a Jesus, o Verbo Encarnado, filho de Maria, que derramou seu sangue
por nossos pecados. Por outro lado, poderiam ser levados a pensar que Jesus Cristo
não é exatamente o Redentor, mas o “lugar” em que Deus nos salva, pois é na Páscoa
de Cristo que o amor do Pai nos é revelado. Também a piedade dos fiéis pode levar a
desvalorizar todas as devoções tradicionais que os encorajam a expiar seus pecados e
os da humanidade, induzindo-os a julgar-se salvos apenas pela fé no desígnio salvífico
de Deus, sem completar na sua carne “o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Col 1,
24); ou, pior ainda, acreditar em uma salvação universal por causa da aliança
indefectível de Deus com a raça humana.

3. Da renovação do sacrifício do Calvário ao memorial da presença

A Santa Missa é um verdadeiro e próprio sacrifício

Ao tratar do sacrifício eucarístico, a Mediator Dei reitera o ensinamento do Concílio


de Trento no sentido de que a Santa Missa é um sacrifício próprio e verdadeiro, e não
apenas um memorial da Paixão ou da Última Ceia:

“O Cristo Senhor, ‘sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque’ (Sl 59,4),


‘tendo amado os seus que estavam no mundo’ (Jo 13,1), ‘na última ceia, na noite em
que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um sacrifício visível, como exige
a natureza dos homens, o qual representasse o sacrifício cruento que devia cumprir-se
na cruz uma só vez, e para que a sua lembrança permanecesse até o fim dos séculos e
nos fosse aplicada sua salutar virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos ...
ofereceu a Deus Pai o seu corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e
deu-os aos apóstolos então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob
essas mesmas espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no
sacerdócio, que o oferecessem’ (Concílio de Trento, 22, 1)” (n° 60).

“O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração da


paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício, no qual,
imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a
cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima. ‘Uma ... e idêntica é a vítima:
aquele mesmo, que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes, se ofereceu então
sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer a oferta’ (Concílio de Trento, 22, 2)”
(n° 61).

9
A razão para isto último é que, devido ao presente estado glorioso da natureza
humana de Jesus Cristo, o derramamento de sangue é agora impossível, pelo que o
sacrifício de Cristo se manifesta externamente pela separação das espécies eucarísticas
sob as quais está presente, e que simbolizam a separação sangrenta do Corpo e do
Sangue. “Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no
sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que
Jesus Cristo se encontra em estado de vítima” (no. 63).

Reformadores mudam a ênfase para “memorial”

Esta apresentação tradicional não era do gosto dos inovadores, que começaram a dar
ênfase à comemoração, embora sem a conotação de nuda commemoratio dos
reformadores protestantes, mas dando-lhe o significado de um memorial objetivo e
real que “re-apresenta” o que aconteceu historicamente e o comunica aqui e agora de
forma eficaz.

Nessa nova perspectiva, R. Gerardi explica que “o memorial expressa a realidade do


evento, a ‘atualização objetiva’ e a presença do que é comemorado. Não é que se
repita, já que o evento foi definido historicamente de uma vez por todas
(ephápax); mas está presente. O ato de Cristo se faz sentir hoje e aqui, engajando
quem o comemora. O sacrifício de Cristo foi historicamente realizado apenas uma
vez: a Eucaristia é o seu memorial (no sentido mais amplo da palavra), uma presença
viva da graça” 14.

O já mencionado jesuíta Pe. Martín-Moreno nos explica por que não é uma
reiteração multiplicada do único sacrifício de Cristo: “Não é que o tempo da salvação
se repita aqui e agora, mas que o homem aqui e agora entra em comunicação uma e
outra vez com uma presença permanente que está além do tempo decorrido. (…)
Na liturgia chega-se ao ponto de intersecção do tempo e da eternidade. Ali o
participante torna-se contemporâneo dos acontecimentos bíblicos. O homem
torna-se uma testemunha contemporânea do que aconteceu então. Cristo nasce no
Natal, ressuscita na Páscoa. A anamnese é obra do homem ou de Deus? O homem é
quem comemora, mas como ato humano, seu ato de lembrar não pode transcender o
tempo, não pode entrar no túnel do tempo para retornar ao passado. É apenas a ação
divina que, transcendendo o tempo, traz os mistérios ao nosso aqui e agora. É por
isso que a liturgia, antes da ação do homem, é a ação de Deus” 15.

O caminho havia sido aberto pelas teses pioneiras do então padre Charles Journet
(posteriormente cardeal por Paulo VI) e do filósofo francês Jacques Maritain, para

14
Verbete “Memorial” do Dicionário Teológico Enciclopédico em
https://apps.idteologia.org/index.php?r=sagradaTeologia/view&id=16
15
Op. cit., p. 46.
10
quem a presença real de Jesus Cristo duplicar-se-ia em uma espécie de presença real
do sacrifício 16.

Esta opção teológica a favor do memorial, que omite que a missa é uma renovação
incruenta do sacrifício do Calvário e afirma que durante a sua celebração o sacrifício
somente se torna presente, oferece uma interpretação fraca do dogma da fé proclamado
pelo Concílio de Trento, segundo o qual cada missa é “um sacrifício próprio e
verdadeiro” feito em forma sacramental, porque a transubstanciação torna o Corpo e
o Sangue da Vítima divina verdadeiramente presentes e simbolicamente separados 17.

Papa Francisco opta por uma “memorialização” extrema

Desiderio desideravi faz clara e insistentemente essa opção teológica em favor da


missa como memorial que só secundariamente tem o aspecto sacrificial na medida em
que é uma comemoração.

Já no início, na descrição da Última Ceia que o Senhor quis comer com os


Apóstolos, Francisco diz: “Ele sabe que é o Cordeiro daquela ceia pascal; ele sabe que
ele é a Páscoa. Esta é a novidade absoluta, a originalidade absoluta daquela Ceia, a
única coisa verdadeiramente nova na história, que torna aquela Ceia única e por isso “a
Última Ceia”, irrepetível. No entanto, seu desejo infinito de restabelecer aquela
comunhão conosco que era e continua sendo seu projeto original, não será satisfeito
até que todo homem e mulher, de toda tribo, língua, povo e nação (Ap 5:9), tenha
comido seu Corpo e bebeu seu Sangue. E por isso essa mesma Ceia se fará presente
na celebração da Eucaristia até que ele volte novamente” (n° 4).

A propósito, note-se que, naquele primeiro parágrafo descritivo da missa no


documento, além da teoria da representação de um ato irrepetível, o Papa afirma que a
missa é uma representação da Ceia, e não do sacrifício do Calvário. Isso lembra a
definição original de sabor protestante da Missa (defeituosa e posteriormente alterada)
oferecida no nº 7 da Instrução Geral do Missal Romano, à qual os cardeais Ottaviani e
Bacci se opuseram tão fortemente em seu Breve exame crítico. Também vale a pena
notar que este parágrafo sugere que todo homem e mulher deve comer e beber do
Corpo e Sangue de Cristo, ou seja, comungar. Isso sugere um universalismo
soteriológico consistente com a autorização prática dada pelo Papa Francisco a todos
os cristãos – católicos ou não, estejam ou não em estado de graça, vivam ou não de
acordo com o Decálogo – para receber a Eucaristia.

16
Philippe-Marie Margelidon O.P., em «La théologie du sacrifice eucharistique chez Jacques
Maritain», na Revue Thomiste, janeiro-março de 2015, pp. 101-147.
17
Ver Claude Barthe, La Messe de Vatican II – dossier historique, Via Romana, Versalhes, 2018, p.
181.
11
Voltando ao tema principal, cumpre notar que em Desiderio desideravi há algumas
referências ao sacrifício de Jesus na cruz, mas em nenhum momento se diz que tal
sacrifício se renova de forma incruenta a cada missa. Pelo contrário, um dos primeiros
parágrafos, embora afirme que “o conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, seu
sacrifício de obediência por amor ao Pai”, diz logo após que os Apóstolos, depois de
terem participado na Última Ceia, antecipação ritual de sua morte, deveriam ter
entendido “o que significava para Jesus dizer ‘corpo oferecido’, ‘sangue derramado’.
É disto que fazemos memória em cada Eucaristia” (n° 7). Teria sido o momento
mais apropriado para ensinar que na missa não só se faz memória, mas também se
renova de modo incruento o sacrifício do Calvário, sacramentalmente representado na
separação das espécies eucarísticas. O Papa Francisco optou por omitir essa verdade
de fé e referir-se apenas ao memorial.

Alguns parágrafos depois, o documento insiste que a Liturgia não é uma


relembrança da recordação dos Apóstolos, mas um verdadeiro encontro com o
Ressuscitado (uma ideia que se repete nove vezes ao longo do documento), e continua:
“A Liturgia nos garante a possibilidade de tal encontro. Para nós, uma vaga lembrança
da Última Ceia não adiantaria. Precisamos estar presentes nessa Ceia, para poder
ouvir a sua voz, comer o seu Corpo e beber o seu Sangue. Nós precisamos Dele. Na
Eucaristia e em todos os sacramentos é-nos garantida a possibilidade de encontrar o
Senhor Jesus e de fazer chegar até nós a força do seu mistério pascal. O poder salvífico
do sacrifício de Jesus, cada palavra sua, cada gesto, olhar e sentimento chega até nós
através da celebração dos sacramentos” (n° 11). Note-se que, mais uma vez, a ênfase é
colocada na participação na Ceia, e não na união espiritual com Jesus que Se oferece
ao Pai em sacrifício em cada missa, aspecto completamente omitido.

A missa como lembrança do “imenso dom” que Jesus presenteou na Última Ceia?

Ao falar da correta compreensão do dinamismo que se desenvolve através da


Liturgia, Francisco usa as palavras já citadas na seção anterior, as quais deixam claro
que para ele o caráter sacrificial da missa resulta da comemoração da Páscoa de Jesus:
“A ação da celebração é o lugar em que, por meio do memorial, o mistério pascal se
torna presente para que os batizados, por meio de sua participação, possam
experimentá-lo em sua própria vida” (n° 49).

Esta ideia se torna mais explícita ao referir-se posteriormente ao núcleo central da


missa: “Na oração eucarística — da qual também participam todos os batizados,
ouvindo com reverência e em silêncio e intervindo nas aclamações (Institutio
Generalis Missale Romanum 78-79) — quem preside tem a força, em nome de todo o
povo santo, para recordar diante do Pai a oferta de seu Filho na Última Ceia, para
que aquele imenso dom se tornasse novamente presente no altar” (nº 60). Ele não
só omite completamente a oferta de Cristo durante a Paixão (da qual a Ceia foi uma
12
antecipação ritual), não só evita dizer que o sacrifício é renovado, mas evita a própria
palavra “sacrifício”, chamando-o de “imenso dom”.

Acrescente-se a tudo isso que em nenhum lugar de Desiderio desideravi aparecem


expressões como “transubstanciação”, “presença real”, ou formulações análogas que
indiquem que “o alimento eucarístico, como todos sabem, "verdadeira, real e
substancialmente o corpo e o sangue junto com a alma e a divindade de nosso Senhor
Jesus Cristo”, como diz Pio XII na sua encíclica (nº 115), citando o Concílio de Trento
(sess. 13 cân. l.). Tampouco nada há que se assemelhe à exortação da Mediator Dei no
sentido de que os párocos não permitam que se descuidem as “devotas e mesmo
cotidianas visitas ao divino tabernáculo” e a “adoração do augusto sacramento
publicamente exposto” (n° 118) ou “que as Igrejas sejam fechadas durante as horas
não destinadas às funções públicas”, algo que alguns já defendiam “com a desculpa de
renovação da liturgia, ou falando com leviandade de uma eficácia e dignidade
exclusivas dos ritos litúrgicos” (n° 161).

Foram apresentações unilaterais da Santa Missa, do teor de Desiderio desideravi, as


responsáveis pela perda desastrosa (ou pelo menos a grave diluição) da fé na presença
real de Nosso Senhor Jesus Cristo sob as espécies eucarísticas, confirmada por
pesquisas de opinião em vários países, a mais expressiva das quais é a do Pew
Research Center, que descobriu que “apenas um terço dos católicos americanos
concordam com a Igreja de que a Eucaristia é o corpo e o sangue de Cristo” 18.

4. De sacerdotes do Sacrifício a Presidentes de Assembleias

O Papel único do Padre na Missa

Na Mediator Dei, Pio XII ensina explicitamente que “Somente aos apóstolos e
àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é
conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo
que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de
Deus”(n° 35). Mas, acrescenta, na Santa Missa “o sacerdote faz as vezes do povo
porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de
todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como
ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo (São Roberto Belarmino, De
missa II c.l.). O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do
divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de
nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais” (n° 76).

18
https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/08/05/transsubstantiation-eucharist-u-s-catholics/
13
É claro que os ritos e orações do sacrifício eucarístico “a oblação da vítima é feita
pelos sacerdotes em união com o povo” (n° 78), pois “com a água do batismo, com
efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo místico de Cristo
sacerdote, e, por meio do ‘caráter’ que se imprime nas suas almas, são delegados ao
culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio
de Cristo” (n° 79).

Mas como é a participação do povo nos atos do sacerdócio de Cristo? “Em contato
íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: ‘Tende em vós os mesmos
sentimentos que Jesus Cristo experimentou’(Fl 2,5.) oferecendo com ele e por ele,
santificando-se com ele” (n° 73). Mas Pio XII se crê no dever de reiterar mais uma vez
que “o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que
eles gozem de poderes sacerdotais”. Tal insistência se justifica porque já então alguns
acreditavam “o preceito dado por Jesus aos apóstolos na última ceia – fazer o que ele
havia feito – se refere diretamente a toda a Igreja dos cristãos”, e julgavam que “o
sacrifício eucarístico é uma verdadeira e própria ‘concelebração’” (n° 75).

Contra este erro, a Mediador Dei ensinou que “a imolação incruenta por meio da
qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente
no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a
pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis”. Os fiéis oferecem o
sacrifício pelas mãos do sacerdote “pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo
enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom
direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima”.
Porém, “não se afirma que os membros da Igreja de maneira idêntica à do próprio
sacerdote realizam o rito litúrgico visível – o que pertence somente ao ministro de
Deus para isso designado – mas sim que une os seus votos de louvor, de impetração,
de expiação e a sua ação de graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio sumo
pontífice, a fim de que sejam apresentados a Deus Pai na própria oblação da vítima,
embora com o rito externo do sacerdote” (n° 83). [note que a tradução oficial da
Mediator Dei diz “imolação incruenta” – é uma expressão habitual da teologia
tradicional – se o público não sabe ... que aprenda!]

Logicamente, Pio XII conclui explicando que não se pode condenar as missas
privadas sem a participação do povo, nem a celebração simultânea de várias missas
privadas em diferentes altares, alegando erroneamente a “índole social do sacrifício
eucarístico”. Porque o santo sacrifício da missa, “tem sempre e em qualquer lugar
necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função pública e social, enquanto o
ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos, dos quais o divino Redentor é Cabeça,
e oferece a Deus pela santa Igreja católica e pelos vivos e defuntos”. Por isso, não é
“de nenhum modo requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro” (n°

14
86), nem é necessário que o povo cristão se aproxime da mesa eucarística para
assegurar a integridade do sacrifício, como afirmam capciosamente os que “fazem da
santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração” (nos 100-102).

Os reformadores rejeitam o papel único do sacerdote e o submergem em uma


“assembleia comemorativa”

Evidentemente aquela clara distinção hierárquica entre celebrante e fiéis – muito


clara até as reformas conciliares, pela existência da mesa de comunhão, que separava o
presbitério, reservado aos ministros do altar, da nave onde permaneciam os fiéis – era
insuportável para reformadores com espírito igualitário. Para reduzi-la, recorreram ao
estratagema de “redescobrir” a assembleia. O já mencionado jesuíta Juan Manuel
Martín-Moreno nos explica:

“A eclesiologia que partiu da divisão entre clero e leigos teve sua perfeita
visibilidade na liturgia pré-vaticana. Os coros dos cônegos localizavam-se na parte
privilegiada das catedrais, isolados dos demais por grades. O presbitério localizava-se
nas alturas, separado dos fiéis por uma grandiosa escadaria. Desta forma, destacou-se
o papel mediador do sacerdote localizado lá em cima, a meio caminho entre o Céu e a
Terra.

“Mas a Lumen Gentium parte da consideração do Povo de Deus antes de passar a


falar dos diferentes ministérios da Igreja. A eclesiologia de comunhão 19 que o
Vaticano II abraçou se refletirá na grande importância que a assembleia adquire na
liturgia. Esta é talvez uma das características mais emblemáticas da reforma litúrgica.

“O papel mediador entre Deus e os homens não é mais desempenhado pelo


presbítero, mas pela assembleia, na qual o presbítero exerce sua função. Não
contrapomos o presbítero à assembleia. Da mesma forma que não contrapomos a
cabeça ao corpo. A cabeça também faz parte do corpo. Não existe corpo sem cabeça.
Não há assembleia sem ministérios.

“Mas tampouco há ministérios sem assembleia. A origem última do ministério


não é a assembleia, mas Cristo; porém, como diz Borobio, “o ministério não se origina

19
Permitam-nos um pequeno desvio, para destacar a imprecisão do conceito de “eclesiologia de
comunhão”, que se encontra em todos os lábios após o Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985,
numa tentativa frustrada de resolver o conflito entre o conceito tradicional da Igreja, sociedade
perfeita e hierárquica, e aquele da Igreja-Povo-de-Deus, igualitária, das comunidades de base. O Pe.
Juan Manuel Martín-Moreno talvez tenha razão em incluir o conceito de “eclesiologia de
comunhão” em sua visão de como deve ser uma assembleia litúrgica…
15
à parte ou fora da comunidade”. O ministro não recebe seu mandato diretamente de
Cristo, como os apóstolos ou Paulo 20. (…)

“A assembleia é a tradução de QHL, que em grego é traduzido como ekklesia ou


synagoge. Essas palavras designam a convocação, o ato de reunir e a comunidade
reunida. Qahal é a assembleia geral do povo. Em sua evolução semântica designou o
chamado, a imposição, a reunião, a comunidade reunida, a Igreja. Ecclesía não é
apenas Igreja, mas Igreja convocada e reunida em um lugar específico e em um
momento preciso para celebrar os mistérios do culto. (…)

“É essa Igreja ou assembleia, que inclui o bispo, sacerdotes e diáconos, que


participa direta e formalmente do sacerdócio de Cristo. A assembleia reunida é o
reflexo e a expressão da Igreja. Nela a Igreja se encarna e se torna visível; nela e por
meio dela se projeta no mundo, especialmente na Igreja local que celebra presidida
pelo Bispo. Com isso, o Concílio não quer excluir que haja outras manifestações da
Igreja. A liturgia é a expressão mais visível da Igreja, mas não a única. A Igreja
também se manifesta na ação caritativa dos cristãos e de muitas outras maneiras.

“O fundamento desta participação está, como já dissemos, no sacerdócio comum


dos fiéis. Na Eucaristia o povo oferece os presentes junto com o presidente. Na SC
[Sacrosanctum Concilium] 48 se diz que os fiéis ‘aprendam a oferecer-se a si mesmos,
ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia
imaculada’. Nesse ponto a SC vai além da Mediator Dei, que usou a expressão
quodammodo, ‘de certa forma’. Esta expressão foi suprimida pelo Concílio.

“Daí surge a consciência de que as ações litúrgicas não são privadas, mas têm
caráter comunitário (SC 26). É preciso devolver ao corpo da Igreja o que sempre foi
seu patrimônio; a assembleia deve recuperar o protagonismo que havia perdido
devido ao clericalismo abusivo. (…)

“Esta insistência no caráter comunitário da celebração é o que motiva a recuperação


da concelebração, que contribuiu para desprivatizar a Missa e destacar a unidade do
sacerdócio e do sacrifício eucarístico (SC 57). Nesta perspectiva, torna-se hoje
incompreensível que na liturgia pré-vaticana pudessem ser celebradas diferentes
liturgias simultâneas no mesmo templo, e que alguns fiéis assistissem a uma e outros
a outra.
20
É óbvio que os atuais ministros do altar não receberam seu mandato diretamente de Cristo, mas
do bispo que os ordenou. Porém, a opinião segundo a qual essa transmissão se faz por intermédio
da comunidade foi condenada pelo Papa Pio VI na Bula Auctorem fidei: “A proposição que
estabelece que o poder foi dado por Deus à Igreja para ser comunicado aos pastores que são seus
ministros, para a salvação das almas; entendida no sentido de que a comunidade dos fiéis
transmite aos pastores o poder do ministério e do regime eclesiástico, é herética” (Denz./Hün.
2602).
16
“Portanto, hoje não podemos mais falar de uma assembleia que assiste à Missa,
mas de uma assembleia que celebra a Missa. O bispo ou sacerdote que preside a
celebração não pode mais ser chamado de ‘celebrante’, porque todos são
celebrantes, mas sim de ‘presidente’. Isso, que já foi sugerido na SC 26, é
expressamente declarado no I[nstitutio] G[eneralis] M[issale] R[omanum] 1 e 7. Fica
desterrada para sempre a expressão popular ‘ouvir Missa’. (…)

“Esta eclesiologia de comunhão acaba influenciando até os menores detalhes da


reforma litúrgica. Influencia muito a arquitetura das igrejas pós-conciliares, onde o
presbitério só é elevado acima da assembleia o mínimo para que suas ações possam ser
vistas por todos. As grades, as mesas de comunhão foram eliminadas. O centro da
Igreja é o altar e não o sacrário, que agora foi transferido para uma capela lateral. O
traçado da nave não é mais retilíneo, como um bonde, mas semicircular, para que os
fiéis se vejam melhor e se sintam mais parte um do outro. Os altares laterais
encostados às naves foram removidos. O coro localizado na parte de trás da igreja
desapareceu. O ministério do canto não pode situar-se fora da assembleia, mas como
parte dela” 21.

O sacerdote reduzido a “presidente da assembleia” e os leigos elevados a


concelebrantes

Que o celebrante seja toda a assembleia e que o ministro do altar seja reduzido à
condição de presidente da assembleia é o que Desiderio desideravi enfatiza, não
negando, mas omitindo completamente que só ele realiza in persona Christi a
imolação incruenta do sacrifício eucarístico.

A palavra sacerdote – que define precisamente aquele que realiza e oferece o


sacrifício – aparece apenas três vezes nas versões italiana (original) e espanhola da
exortação 22, duas das quais apenas para se referir a um clérigo ordenado. Mas a
expressão “presbítero” – que em sua origem grega e latina significa apenas “o mais
velho”, o “decano” – é usada 12 vezes em italiano e 15 vezes em espanhol. Enquanto
“presidência” e o verbo presidir (ou suas conjugações) aparecem 14 vezes, a expressão
“celebrante” aparece apenas uma vez e insinua que se aplica a toda a assembleia:
“Recordemos sempre que é a Igreja, o Corpo de Cristo, que é o sujeito celebrante e
não apenas o sacerdote” (n° 36). E depois o afirma explicitamente: “O sacerdote
também é formado por ele presidir à assembléia celebrante” (n° 56).

21
Op. cit., p. 60-62.
22
Isso não acontece na versão em português, porque a palavra “presbítero” nunca se tornou comum
entre os católicos de língua portugeusa para se referir aos padres. Ela é usada apenas como
adjetivo, em expressões como “ministério presbiteral”, “conselho presbiteral”, etc. Por isso, a
versão portuguesa usa “sacerdote” lá onde o original italiano e a tradução ao espanhol empregam
“presbítero”.
17
O documento reconhece que o ofício dos padres “não é principalmente um dever
que lhe é atribuído pela comunidade, mas sim uma consequência do derramamento do
Espírito Santo recebido na ordenação que o capacita para tal tarefa”. Mas, ao definir
sua tarefa, não diz ser aquela sacerdotal de sacrificar sacramentalmente a Vítima, mas
a de presidir as assembleias: “O sacerdote vive sua participação característica na
celebração em virtude do dom recebido no sacramento da Ordem, e isso se expressa
precisamente na presidência” (n° 56).

No parágrafo seguinte proporciona uma interpretação exclusivamente anabática e


descendente de sua missão mediadora, omitindo que o sacerdote oferece o sacrifício a
Deus em nome de toda a Igreja:

“Para que este serviço seja bem feito — aliás, com arte! — é de fundamental
importância que o sacerdote tenha a consciência viva de ser, pela misericórdia de
Deus, uma presença particular do Senhor ressuscitado. O ministro ordenado é ele
próprio um dos tipos de presença do Senhor que torna a assembleia cristã única,
diferente de qualquer outra assembleia. (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7) Este fato
confere peso “sacramental” (em sentido amplo) a todos os gestos e palavras de quem
preside. A assembléia tem o direito de poder sentir naqueles gestos e palavras o desejo
que o Senhor tem, hoje como na Última Ceia, de comer a Páscoa conosco” (n° 57).

As individualidades fundidas na coletividade

Esta imersão quase total do ministro ordenado na “assembleia” verifica-se, por


outro lado, no fato de ela ser mencionada 18 vezes, destacando a sua função
celebrativa e o seu caráter coletivo, o que muitas vezes dificulta para cada fiel render a
Deus um culto verdadeiramente interior, oferecendo-se a Ele pessoalmente em íntima
união com Cristo-vítima. “Penso em todos os gestos e palavras que pertencem à
assembléia: reunir-se, andar cuidadoso em procissão, estar sentado, de pé, ajoelhar-se,
cantar, ficar em silêncio, aclamações, olhar, ouvir. Há muitas maneiras pelas quais a
assembléia, como um corpo, (Ne 8:1) participa da celebração. Todos juntos fazendo o
mesmo gesto, todos falando juntos em uma só voz — isso transmite a cada indivíduo a
energia de toda a assembléia. É uma uniformidade que não apenas não amortece, mas,
ao contrário, educa os crentes individuais para descobrir a singularidade autêntica de
suas personalidades não em atitudes individualistas, mas na consciência de ser um só
corpo.” (n° 51).

Quão mais judiciosa foi a seguinte recomendação de Pio XII!:

“A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e dissemelhantes que
nem todos podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos
cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as

18
disposições das almas não são iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em cada
um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos cristãos não
podem participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente
que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando
piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras
orações que, embora na forma difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem
pela sua natureza” (n° 133).

Caberia perguntar se boa parte da deserção da missa dominical que se seguiu à


reforma litúrgica não vem do descontentamento de muitos fiéis diante do caráter
“assembleísta” e coletivista com que o novo rito foi celebrado na maior parte das
paróquias, não deixando espaço para a piedade individual. E, sobretudo, dever-se-ia
perguntar se a queda vertiginosa das admissões aos seminários não se deve ao fato de
que alguns daqueles que sentem o chamado de sua vocação não respondem
positivamente porque a imagem de um ministro ordenado apenas “presidente da
assembleia” não corresponde à imagem tradicional do sacerdócio, onde o sacrifício
pessoal da própria vida encontra o seu modelo e consumação na realidade sacrifical da
Santa Missa.

5. A missa de “outra Fé”?

Uma pergunta incômoda

Nos quatro itens analisados acima – (1) a finalidade do culto litúrgico, (2) o mistério
pascal como centro da celebração, (3) o caráter memorial da Santa Missa e, por fim,
(4) a presidência da assembleia litúrgica – fica bastante claro que a visão da Liturgia
de Desiderio desideravi é unilateral, pois coloca todos os acentos nas sílabas erradas,
embora suas palavras, consideradas individualmente, possam parecer justas a ponto de
merecerem elogios de alguns tradicionalistas, mesmo entre os mais instruídos. O que o
Papa Francisco parece querer enfatizar são as teorias e preferências dos liturgistas
inovadores, não a doutrina tradicional da Igreja.

Mas uma análise detalhada mostra que o resultado final é uma apresentação da vida
sacramental da Igreja, em particular do rito da Santa Missa, que em seu conjunto não
parece estar em harmonia com os princípios e conselhos pastorais da última grande
encíclica litúrgica prévia ao Concílio Vaticano II, a saber, a Mediator Dei do Papa Pio
XII.

A pergunta incômoda que surge é a seguinte: essas duas formas rituais muito
diferentes realmente correspondem à mesma Fé?

19
No campo dos inovadores mais avançados, a resposta é clara: trata-se de duas
posições litúrgicas incompatíveis, que correspondem a duas posições dogmáticas
incompatíveis: uma é a fé que permeia o rito tradicional; outra fé é aquela que permeia
o novo rito. É por isso que o jesuíta que citamos, Pe. Martín-Moreno, insiste com tanta
veemência que a “Missa nova” definitivamente suplanta (e, é preciso dizer, repudia) a
orientação e a posição teológica da Missa antiga.

A missa de ontem já “não pode ser a norma” para a fé de hoje

De fato, a meio caminho entre o controverso motu proprio Traditionis custodes e a


última exortação apostólica em fevereiro deste ano, um casal de animadores da
autoproclamada Conferência Católica dos Batizados Francófonos publicou um
eloquente artigo no jornal La Croix. Aproveitando que, na França, as pessoas se
referem amiúde ao rito tradicional com a expressão “la messe d’autrefois” (a missa de
outrora), e que autrefois e autre foi (outra fé; fé diferente) se pronunciam em francês
exatamente da mesma forma, eles exprimiram a sua opinião com um trocadilho, sob o
seguinte título: “La fin des messes d’autre ‘foi’, une chance pour le Christ!” (O fim
das missas de outra fé, uma chance para Cristo!) 23. O artigo de Aline e Alain Weidert
tem o mérito de chamar as coisas pelo nome e ser lógico em suas conclusões. Seguem
alguns longos trechos que falam por si e dispensam comentários (os destaques são do
original):

“O espírito da liturgia de outra ‘fé’, sua teologia, as normas da oração e da Missa de


outrora (a lex orandi do passado), não podem mais, sem discernimento, continuar a ser
as normas da fé de hoje, seu conteúdo (nossa lex credendi). A prudência sugeriria não
refletir muito sobre esse conteúdo para não desestabilizar ainda mais a Igreja.

“Pelo contrário! Uma fé ainda derivada da lex orandi de ontem, que fez do
catolicismo a religião de um deus perverso que faz seu filho morrer para aplacar sua
ira, uma religião de perpétua mea culpa e reparação, levaria a um ‘antitestemunho’ de
fé , a uma imagem desastrosa de Cristo. Prova irrefutável: a concessão ainda muito
frequente de indulgências, vinculadas entre outras coisas às missas-sacrifício, em
remissão dos pecados.

“Nossas Missas, infelizmente, ainda estão marcadas com um forte caráter sacrificial
‘expiatório’ com finalidade ‘propiciatória’ para aniquilar os pecados (mencionados 20
vezes), para alcançar nossa salvação e salvar almas da vingança divina. ‘Propiciação’
que as comunidades Ecclesia Dei defendem com unhas e dentes, com seus sacerdotes
votados ao sacrifício treinados para rezar o Santo Sacrifício da Missa, verdadeira
imolação. (…)
23
Aline e Alain Weidert, em La Croix, 02-10-2022, https://www.la-croix.com/Debats/fin-messes-
dautre-foi-chance-Christ-2022-02-10- 1201199636
20
“É dessa parte submersa da Missa Tridentina, desvio histórico curiosamente
passado em silêncio (tabu?) nos debates atuais, que precisamos acabar de sair. Desde o
Concílio Vaticano II percorremos um longo caminho rumo ao fato inicial de uma
Eucaristia positiva, de um ‘Fazei isto em memória de mim!’, onde todos são
convidados a ser diariamente sacramento da Aliança: ‘Pelo mistério desta água e deste
vinho sejamos participantes da divindade d’Aquele que assumiu a nossa humanidade’.
Sacramento da Aliança, um conceito novo nesta oração [do ofertório] desde o Concílio
Vaticano II. (…)

“Se quisermos poder oferecer no futuro uma fé e uma prática cristã atraentes,
devemos nos aventurar, através da reflexão e da formação, a descobrir um fundo ainda
desaproveitado (e inexplorado) de salvação por Jesus, não colocando em primeiro
lugar sua morte contra (‘pelos’) pecados, mas sua existência como uma Aliança.
Porque ‘a sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa
salvação’ (Vaticano II Sacrosanctum Concilium, 5). A opção é clara! Não entre
sensibilidades e estéticas religiosas diferentes, mas entre intermináveis sacrifícios para
apagar os pecados e Eucaristias que selam a Aliança/Cristo”.

Pelo menos aqui as coisas são ditas com clareza e sem rodeios semânticos. Mas se
colocássemos o cursor de Desiderio desideravi entre as duas visões da liturgia e da
missa descritas neste artigo, tememos que o cursor se encontrasse muito próximo ao
polo da Aliança. Tanto é assim, que Alain Weidert acaba de publicar em La Croix um
novo artigo, eufórico com o conteúdo da exortação 24[24].

A fé perene e a nova teologia são incompatíveis

Em todo caso, os objetivos que o Papa Francisco se propôs com a publicação de sua
última exortação apostólica – ou seja, que “abandonemos nossas polêmicas” (n° 65) e
que “a beleza da celebração cristã e suas consequências necessárias para a vida da
Igreja não sejam prejudicadas por uma compreensão superficial e escorçada de seu
valor ou, pior ainda, por serem exploradas a serviço de alguma visão ideológica” (n°
16) – estão ainda muito longe de serem alcançados.

A razão é dada pelo próprio pontífice: “Seria trivial ler as tensões, infelizmente
presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes
gostos em relação a uma determinada forma ritual” (n° 31). Isso é exato. É
principalmente por razões teológicas que os modernistas enragés consideram que o
rito de São Pio V é a missa de “outra fé”, como é também por razões teológicas que os
tradicionalistas consideram que o rito de Paulo VI se afasta em alguns pontos
essenciais dos ensinamentos tradicionais sobre a missa. É em nome da fé de todos os
24
https://www.la-croix.com/Debats/Francois-lurgence-dune-formation-liturgie-2022-07-08-
1201224067
21
tempos que eles não aceitam que o novo rito seja a “expressão única da lex orandi do
Rito Romano”, como afirma Traditionis custodes e reitera Desiderio desideravi (n°
31).

Se a recente exortação apostólica procurou dar fundamento teológico a essa


afirmação, devemos confirmar, após esta breve análise, que o tiro parece ter saído pela
culatra, pois suas unilateralidades apenas confirmam a convicção dos meios
tradicionalistas de que a nova lex orandi não corresponde à lex credendi que a Igreja
recebeu em depósito. E o argumento invocado pelo Papa Francisco como ultima ratio
– ou seja, que os tradicionalistas devem aceitar a nova missa porque ela corresponde
aos ensinamentos do Concílio Vaticano II –, não é de molde a fazê-los mudar de ideia.
Precisamente porque a Constituição Sacrosantum Concilium, o magistério litúrgico
subsequente e a Desiderio desideravi também merecem as mesmas objeções
teológicas.

Em todo caso, fica aqui um convite para que teólogos e especialistas em Liturgia
tratem do assunto e analisem, de forma mais profunda e científica, a contribuição que
Desiderio desideravi deu ao debate em curso.

22

Você também pode gostar