Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A reforma litúrgica empreendida pelo Concílio Vaticano II foi uma das grandes preocupações dos
padres conciliares, sendo o tema o primeiro a ter um documento aprovado: a Sacrosanctum
Concilium. O texto, inspirado na Tradição da Igreja e no Depósito da Fé, contribuiu para a
renovação do espírito litúrgico e enriquecimento das Celebrações Eucarísticas. Todavia, não por
causa do Concílio, mas por um errôneo desejo de ruptura com o passado, também cresceu em não
poucos ambientes católicos uma má compreensão acerca do que é e o que significa o mistério da
Santa Missa.
Essa crise no modo como se celebra a liturgia teve especial atenção no pontificado de Bento
XVI. Para o Papa Emérito, "a crise na Igreja, pela qual passamos hoje, é causada em grande parte
pela decadência da liturgia". É o que se vê, por exemplo, num grande número de comunidades
que, motivadas por um desejo de protagonismo, deixam de lado o culto devido a Deus e acabam
celebrando a si mesmas. Celebra-se antes o homem, do que Deus. Assim, surgem variadas
modalidades de inovações e arbitrariedades que oprimem o rito litúrgico e o tornam propriedade
humana, não divina.
Contra essa tendência de ruptura e desvio na liturgia, o mestre de cerimônias pontifícias,
Monsenhor Guido Marini, evoca a "hermenêutica da continuidade" proposta por Bento XVI como
único termo válido para interpretação dos textos conciliares. Marini se questiona se é possível
imaginar "que a Esposa de Cristo, no passado, tenha transcorrido algum tempo histórico em que
o Espírito não tenha dado assistência a ela, como se tal tempo devesse ser esquecido e
cancelado". Ora, não há nada mais absurdo que tal proposição, sobretudo quando se tem em
mente o discurso de abertura do Concílio, no qual o Bem-aventurado João XXIII pedia com
insistência para que o depósito sagrado da doutrina cristã fosse guardado e ensinado de forma mais
eficaz.
A Sacrosanctum Concilium apresenta a liturgia como um dom de Deus, uma vez que "toda
celebração litúrgica, enquanto obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, é ação
sagrada por excelência..." (Cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7). Ainda citando a Encíclica
Mediator Dei, de Pio XII, define-a como "o culto público... o culto integral do corpo místico de
Jesus Cristo, isto é, da cabeça e de seus membros". Com efeito, diz Guido Marini, é na liturgia
que a Igreja se reconhece "oficialmente" a si mesma, "o seu mistério de união esponsal com
Cristo, e aí "oficialmente" se manifesta". Desse modo, cada expressão do rito comunica a
presença e a ação de Deus na humanidade muito mais que qualquer acréscimo
inoportuno. Sendo assim, a liturgia precede e supera o homem, pois é "dom que vem do alto" e
"mistério de salvação". E é por isso que ela não pode ser modificada ou negligenciada.
O Cardeal Malcom Ranjith, Arcebispo de Colombo, Sri Lanka, alertou para o perigo de querer
"tornar a liturgia mais interessante ou apetecível" durante sua conferência no encontro Sacra
Liturgia, que foi realizado em Roma entre os dias 25 a 28 do mês passado, na Pontifícia
Universidade da Santa Cruz. O cardeal interpelou aos que estavam presentes à conferência
perguntando: "Se tais improvisações tornassem a Liturgia verdadeiramente mais eficaz e
interessante, então, por que com tais experimentações e criatividade o número dos participantes
aos domingos caiu tanto e tão drasticamente em nossos dias?" E, ainda assim, por mais que
essas inovações fizessem sucesso e atraíssem um grande público - o que é patentemente falso
- não é este o critério com o qual um cristão presta adoração a Deus em "espírito e verdade". A
Santa Missa não é um espetáculo com pipoca e refrigerante, é antes o sacrifício para a redenção da
humanidade.
A obediência às normas litúrgicas é, portanto, de suma importância para a reta compreensão
dos mistérios cristãos, "pois são textos onde estão contidas riquezas que guardam e exprimem a
fé e o caminho do povo de Deus ao longo de dois milênios da sua história" (Cf. Sacramentum
caritatis, n. 40). Além disso, recorda também o Mons. Guido Marini, "existe um direito do povo de
Deus que não pode jamais ser menosprezado", que é o direito de assistir à Missa tal como ela
deve ser. Aliás, é bom recordar que o referido direito não é apenas um piedoso desejo do
respeitado liturgista. O próprio Código de Direito Canônico afirma isto ao elencar os direitos de
todos os fieis: "Os fiéis têm o direito de prestar culto a Deus segundo as prescrições do rito próprio
aprovado pelos legítimos Pastores da Igreja" (Cân 214).
"E em virtude de tal direito - prossegue o monsenhor - todos precisamos estar em condições de
alcançar o que não é simplesmente fruto pobre do agir humano, e sim obra de Deus, e
exatamente por isso é fonte de salvação e vida nova".
A pessoa a quem o cristão se dirige quando reza é Deus. Pense-se, por exemplo, no diálogo
introduzido pelo prefácio, no momento da liturgia eucarística, quando o sacerdote se volta para o
povo e diz: "corações ao alto" e a assembleia responde: "o nosso coração está em Deus". É o
tempo no qual pastor e rebanho se recolhem e olham juntos para o céu à procura da luz que emana
de Cristo. É uma ação sobretudo interior, mas que através da sabedoria da Igreja, ganhou sinais
exteriores de modo a indicar a correta atitude espiritual do fiel.
A disposição arquitetônica das igrejas e os espaços litúrgicos foram alguns dos elementos que
buscaram simbolizar - ao longo da história - a maneira como os cristãos rezam.
Tradicionalmente, a chamada oração voltada para o oriente também foi um desses sinais.
Conforme explica o mestre de cerimônias pontifícias, Monsenhor Guido Marini, entende-se por
oração voltada para o oriente o "coração orante orientado para Cristo, do qual provém a salvação e
para o qual todos tendem como Princípio e Termo da história". Mas por que para o oriente?
Porque é onde nasce o Sol, e sendo ele símbolo de Cristo, a Tradição achou por bem acolher na
Liturgia o que é dito de maneira simples no Evangelho de São Lucas: "O sol que surge no
Oriente vem nos visitar" (Cf. Lc 1, 78).
Posto isso, não é difícil de entender o quão equivocadas são certas críticas à maneira como a
Igreja celebrava a Santa Missa antes da reforma litúrgica de Paulo VI. Afirmar que o sacerdote
rezava de costas para o povo é, no mínimo, injusto. Pelo contrário, a posição do celebrante
indicava que tanto ele quanto o resto da assembleia estavam direcionados para o verdadeiro
protagonista da Celebração Eucarística: Jesus Cristo. E mesmo no Missal de 1969, no qual o
ministro celebra de frente para a assembleia, é a Deus que as orações se dirigem, pois como
explica Marini, a expressão celebrar voltado para o povo não tem significado teológico, sendo
apenas uma descrição topográfica. Ademais, "a missa, teologicamente falando, está voltada para
Deus, através de Cristo nosso Senhor, e seria um grave erro imaginar que a orientação principal da
ação sacrifical fosse a comunidade", ensina Marini.
Na Liturgia, indica o Concílio Vaticano II, "os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira,
realizam a santificação dos homens" (Cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7). Nisso se insere a
proposta de Bento XVI, radicada naquilo que se convencionou chamar arranjo beneditino. Trata-
se, explica o Santo Padre, de "não buscar novas transformações, mas colocar simplesmente a
cruz no centro do altar, para a qual sacerdote e fiéis possam juntos olhar, para deixarem guiar de
tal maneira voltados para o Senhor, a quem oramos todos unidos" (Introdução ao espírito da
liturgia, p. 70-80). Uma vez que não é para o celebrante que o fiel deve olhar durante esse
momento litúrgico, mas para o Senhor, a cruz - lembra Guido Marini - "não impede a visão; ao
contrário, lhe abre o horizonte para o mundo de Deus, e a faz contemplar o mistério, a introduz
no céu, de onde provém a única luz capaz de dar sentido à vida neste mundo".
O ponto central da Santa Missa é onde se encontra o Senhor, e por isso a presença do crucifixo
no altar ajuda a comunidade e o celebrante a lembrarem o mistério que ali acontece. Com efeito,
recorda o Catecismo da Igreja Católica, "a liturgia, pela qual, principalmente no divino sacrifício
da Eucaristia, 'se exerce a obra de nossa redenção', contribui de modo mais excelente para que
os fiéis, em sua vida, exprimam e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a genuína
natureza da verdadeira Igreja", (Cf. CIC 1068).
Neste terceiro artigo sobre os ensinamentos de Monsenhor Guido Marini a
respeito da liturgia, o texto reflete sobre adoração e união com Deus na Santa
Missa
Sendo a Missa, portanto, o lugar do encontro com Deus nas espécies eucarísticas, é de suma
importância que todos os sinais da liturgia conduzam à adoração. E isso, observa Marini, inclui
"a música, o canto, o silêncio, a maneira de proclamar a Palavra de Deus e o modo de rezar, as
vestes litúrgicas e objetos sagrados, como também o edifício sagrado no seu complexo". Tudo
deve ser belo, pois Deus é belo. Não se trata, porém, de esteticismo ou espetáculo, mas de
conceder a Deus o seu devido culto, uma vez que na liturgia deve resplandecer o mistério da
beleza do amor de Deus. É o que praticaram santos como São João Maria Vianney e São
Josemaria Escrivá que, não obstante à vida de pobreza e imensa caridade, sempre buscaram
celebrar a Eucaristia com os melhores paramentos possíveis. Eis o que ensina também o Papa
Emérito Bento XVI:
"As nossas liturgias da terra, inteiramente dedicadas a celebrar este gesto único da história, nunca
conseguirão expressar totalmente a sua densidade infinita. Sem dúvida, a beleza dos ritos jamais será
bastante requintada, suficientemente cuidada nem muito elaborada, porque nada é demasiado belo para
Deus, que é a Beleza infinita. As nossas liturgias terrenas não poderão ser senão um pálido reflexo da
liturgia que se celebra na Jerusalém do céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na terra. Possam,
porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela, permitindo-nos antegozá-la!" (Cf. Homilia
durante a celebração das Vésperas na Catedral de Notre Dame, Paris, 12 de Setembro de 2008)
É exatamente nesta perspectiva que se insere a decisão de Bento XVI de, a partir de 2008,
distribuir a Sagrada Comunhão diretamente na língua dos fiéis de joelhos. Ora, o próprio Santo
Agostinho advertia: "ninguém come desta carne, sem antes adorá-la". Ademais, é importante
salientar que a comunhão na boca e de joelhos é um direito dos católicos assegurado pela Santa
Sé: "todo fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na boca ou
se, o que vai comungar, quer receber na mão o Sacramento", (nº 92; vid. ainda Missale
Romanum, Institutio Generalis, nº 161). A isso também se soma a lição da Exortação apostólica
pós-sinodal Sacramentum caritatis que "receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de
adoração diante daquele que recebemos" (n. 66)
Por outro lado, algumas teologias difundiram em vários ambientes uma ideia um tanto quanto
materialista acerca do Sacramento da Comunhão, como se não fosse necessário adorá-lo,
somente comê-lo. Há também a acusação de que a adoração obscureceria a dimensão social da
caridade. Todavia, a história dos santos mostra uma realidade totalmente diversa. Basta pensar
nas horas em que Madre Teresa gastava à frente do sacrário para se desfazer esse pensamento
equivocado. Na verdade, novamente explica Guido Marini, "somente através de uma renovada
adoração do mistério de Deus em Cristo, mistério que toma forma no ato litúrgico, poderá brotar
uma autêntica comunhão fraterna e uma nova história de caridade, conforme a fantasia e
heroicidade que só a graça de Deus pode doar aos nossos pobres corações".
Neste sentido, o Papa Francisco deu um belo exemplo a toda a Igreja, quando a 2 de junho
convocou uma adoração eucarística universal, na qual dioceses do mundo inteiro se reuniram
para adorar o Senhor no mesmo horário que o seu vigário. Como não recordar o belíssimo hino
de Santo Tomás de Aquino, Adoro te devote? Adorar a Cristo com devoção significa reconhecer
Nele o bondoso pelicano, aquele que lava a sujeira do mundo com o próprio sangue, sendo uma
só gota capaz de salvar todo o mundo e apagar todo pecado.
A Missa católica foi o grande berço da música ocidental. Através da polifonia e do tradicional
cantochão - o gregoriano -, a Igreja pôde transmitir a Palavra de Deus aos quatro cantos da
terra, atingindo tanto os incautos quanto as almas mais elevadas. Foi precisamente por isso que,
ao longo de sua história, o Magistério procurou distinguir, repetidas vezes, a música litúrgica ou
sacra dos cantos seculares.
Com efeito, assim como o simplismo de Calvino acabou com a música na França de sua época,
o mesmo raciocínio está destruindo as celebrações católicas de agora, pois no centro da ação
não está Deus e a reverência devida a Ele, mas o gosto pessoal de um grupo que prevalece, de
paróquia em paróquia, sobre o de outros03. E "uma Igreja que se baseia nas decisões da
maioria" - recorda o Cardeal Joseph Ratzinger - "torna-se uma Igreja meramente humana", uma
vez que o que se faz a si mesmo "tem sabor do 'si mesmo’ que desagrada a outros 'si mesmos' e
bem cedo revela a sua insignificância" 04.
No seu livro sobre a liturgia, Monsenhor Guido Marini procura lembrar que "a música sacra não
pode ser entendida como expressão da pura subjetividade" já que "essas formas musicais", ou
seja, o gregoriano e a polifonia - "na sua santidade, bondade e universalidade - são
precisamente as que traduzem o autêntico espírito litúrgico em notas, melodia e canto:
encaminhando para a adoração do mistério celebrado; tornando-se musicada exegese da
palavra de Deus". Do mesmo modo, concorda Bento XVI quando diz que "nem sequer a grande
música o gregoriano, ou Bach, ou Mozart é algo do passado, mas vive da vitalidade da liturgia e
da nossa fé. Se a fé for viva, a cultura cristã não se tornará algo do "passado", mas permanecerá
viva e presente."05
Recentemente, a escritora brasileira Adélia Prado fez uma ótima colocação acerca da
dessacralização da liturgia. A teologia da libertação, comentava, na ânsia de atingir o pobre
acabou por torná-lo mais pobre, pois retirou-lhe a única riqueza que ainda lhe restava: a beleza
da liturgia.06 No lugar do órgão colocou-se a sanfona, no lugar das antífonas, os gritos de guerra,
e a isso somados os pés de bananeiras, cocos, os berrantes e bandeirolas de festa junina. Ora,
é evidente que assim a missa se torna um passatempo, um entretenimento tacanho e brega que,
mais cedo ou mais tarde, deixará de ser interessante como qualquer programa de auditório.
O rigor da Igreja com o canto e com as demais partes da missa tem um nome: amor. É por amor
a seu Divino Esposo, Jesus, que a Igreja adorna o templo com as mais belas peças e objetos. E
assim também com a música. Ela deve se unir ao louvor dos anjos do céu, sendo uma
verdadeira expressão de adoração a Deus, que motive sempre e mais e mais o seu rebanho a
responder o imperativo das Sagradas Escrituras: "Cantai ao Senhor um cântico novo" (Cf. Sl 96,
1)