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A Ivy League compreende as oito universidades mais antigas dos Estados Unidos. Esse
nome — Liga de Hera — provavelmente deve-se às trepadeiras (hera) que recobrem os
prédios históricos dessas escolas da costa leste norte-americana. À exceção de Cornell,
localizada em Nova York, as outras sete instituições foram criadas no período colonial.
Essa circunstância é importante para se recordar seus nomes originais, todos com forte
sabor britânico ou latino, como a Universidade de Colúmbia, antigo King’s College; a
Universidade Brown, que nasceu como College of Rhode Island, ou a Universidade
Yale, originalmente criada em 1701 como Collegiate School.
A troca dos nomes de algumas dessas universidades não ocorreu por mero efeito da
independência das treze colônias e o natural abandono de símbolos do poder
metropolitano nos Estados Unidos.
A Universidade Yale ganhou seu nome em honra de Elihu Yale (1649-1721), nascido
em Boston, governador da Companhia das Índias Orientais, posteriormente afastado do
cargo por denúncias de corrupção, que fez uma vultosa doação ao antigo Collegiate
School. Em reconhecimento, mudaram o nome da sede do college para Yale. Com o
tempo, Yale passou a denominar toda a universidade.
O que lhes parece uma universidade que teve em seus quadros de alunos e professores o
Prêmio Nobel Thomas Mann, o papa Bento XVI, o físico Max Planck, o sociólogo Max
Weber, o dramaturgo Bertolt Brecht, o chanceler Konrad Adenauer e os jovens heróis
da resistência antinazista Sophie e Hans Scholl? É de fato impressionante. Trata-se da
Universidade de Munique -Ludwig-Maximilian (LMU) , uma das mais antigas e
melhores da Alemanha.
Em todas essas instituições universitárias, por razões históricas que não cabem neste
restrito espaço, os cursos das chamadas “humanidades” ocupam posição de
preeminência cronológica e, por muitos séculos, foram as mais importantes. O avanço
do denominado “conhecimento científico”, que se delineou fortemente nos séculos
XVIII e XIX, retirou-lhes a primazia, embora não a precedência. As ditas Ciências
Exatas e as Ciências Biológicas obtiveram uma consagração de tal ordem que são raras
as universidades, os comitês de pesquisa, as agências de fomento e as fundações de
amparo à investigação científica que não são controladas ou lideradas por docentes e
pesquisadores da Física, da Matemática, da Medicina (uma quase intrusa nesse meio,
porque ainda conserva enormes espaço à ciência aplicada) e das Engenharias. A esse
respeito, lembro-me de um diálogo com um amigo, pesquisador do Instituto Max-
Planck de Hamburgo, que me relatou o desconforto eventualmente experimentado pelos
juristas quando algum físico se espantava com o orçamento dedicado à pesquisa jurídica
pela Sociedade Max-Planck. O conhecimento produzido nos institutos dedicados ao
Direito, segundo o físico, não seria científico e isso subtraia recursos essenciais para as
áreas verdadeiramente geradoras de saberes aplicáveis à melhoria das condições de
vida. Ao ouvir aquilo, de modo quase espontâneo, retruquei: “E ele parece desconhecer
que nós garantimos a liberdade para que os físicos, matemáticos e biólogos possam
pesquisar?”
Vamos ao primeiro aspecto. O Brasil — e isso ainda está por ser melhor estudado
— deve muito de sua extensão geográfica e de sua estrutura de acomodação de conflitos
às tradições do velho Império Austro-Húngaro, homenageado de modo extremamente
sensível pelo filme Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson. A influência da
imperatriz D. Leopoldina é maior do que se supõe e ela ficou marcada em seu filho, D.
Pedro II. O Direito, a Diplomacia e as Forças Armadas foram os pontos de sustentação
da unidade nacional e da difícil travessia do jovem império no século XIX. A
importância do Direito, visto isoladamente, foi tamanha que se criou uma expressão
para caracterizá-la (e criticá-la), o dito bacharelismo, que sobreviveu até a Revolução de
1930, a qual, até para o contrapor, adotou a estética modernizante da técnica. Se
olharmos para a Índia, país com mais advogados do que os Estados Unidos, o Paquistão,
onde os advogados são uma incômoda e respeitada elite intelectual, a África do Sul, a
Turquia e mesmo Portugal, nossa pátria-mãe, exemplos de nações pós-coloniais ou pós-
imperiais, encontraremos idêntica primazia do Direito.
O segundo aspecto, que é mais recente, deve-se à perda do papel de elemento arbitrador
de conflitos políticos pelas Forças Armadas. O Brasil presta-se aqui também como
exemplo desse processo. Após 1988, embora não imediatamente, o protagonismo do
Supremo Tribunal Federal e, por consequência, do Poder Judiciário, cresceu na exata
medida em que os militares saíram de modo ostensivo da função de moderação dos
embates entre as forças políticas. A respeito dessa leitura, sugere-se a consulta ao texto
do ministro José Antonio Dias Toffoli em Notas jurídico-históricas sobre os conflitos
federativos e patrimonialismo no estado brasileiro[2], que tem sido, de modo
paradoxal, um membro desse novo poder moderador mas que exibe coragem ao
defender sua autocontenção e o respeito às prerrogativas do sistema democrático
representativo.
Se o Direito possui tamanha nos dias de hoje, para o bem e para o mal, é importante
examinar como se formam os cadetes das “academias das Agulhas Negras” de nosso
tempo. Se graduar-se oficial era símbolo do status social até duas ou três décadas, hoje a
graduação em Direito é o brevê que permitirá ao jovem o vislumbre de um futuro
carregado de esperanças. Remuneração desproporcional a outras carreiras; exercício de
um imenso poder simbólico, em detrimento da cada vez mais relaxada cobrança por
racionalidade e pelos custos argumentativos, que se revela em decisões judiciais,
propositura de ações e elaboração de pareceres para órgãos públicos, o qual termina por
se revelar o exercício de um poder real; participação quase que obrigatória em decisões
da vida privada dos indivíduos, seja como agente estatal ou mesmo como assessor de
elementares atos de administração de um condomínio, enfim, são inúmeras as
possibilidades de intervenção do jurista na vida contemporânea. E essas intervenções
traduzem-se no controle potestativo da vida.
Nesse cenário, os debates sobre o ensino jurídico ganham cada vez mais relevância,
embora se possa afirmar que são mais antigos do que se pensa e menos originais do que
muitos de seus autores supõem. Na atualidade, a reforma dos currículos dos cursos de
Direito também se tornou um tema de grande interesse nas universidades e mesmo fora
delas. Muitos modelos estrangeiros passaram a ser invocados como exemplos a serem
seguidos no Brasil, sem se considerar as peculiaridades de nossa cultura jurídica,
quando não se dá a pura e simples mistificação ou o falseamento de dados, seja por
ignorância, seja pela cópia da cópia de estudos que ninguém se deu ao trabalho de ir às
fontes e cotejar seus resultados.
É como esta introdução que se inicia uma série de colunas sobre o ensino, a formação e
a carreira docente jurídica em alguns países relevantes no mundo do Direito. As colunas
tentarão seguir uma ordem sequencial, embora, por diversas razões, como o
aparecimento de algum tema mais urgente, ela possa ser interrompida. Os leitores estão
convidados a esta interessante, curiosa e reveladora viagem.
[1] Essa tese é contestada por Maria de Lourdes de A. Fávero no artigo intitulado O
título de doutor honoris causa ao rei dos belgas e a criação da URJ. Disponível em
http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe1/anais/104_maria_lurdes_a.pdf. Acesso
em 18-1-2015.
[2] In. Estudos jurídicos : em homenagem ao Ministro Cesar Asfor Rocha. Ribeirão
Preto : Migalhas, 2012, p. 176-197, v. 2.
[3] Para maior desenvolvimento, veja-se: DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES
JUNIOR, Otavio Luiz. A primeira constituição do Brasil. Folha de São Paulo,
25.3.2014. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/03/1430288-
jose-antonio-dias-toffoli-e-otavio-luiz-rodrigues-jr-a-primeira-constituicao-do-
brasil.shtml. Acesso em 27.1.2015.
No Segundo Reich, nascido após as guerras prussianas contra a Dinamarca (Guerra dos
Ducados do Elba), a Áustria e a França, o mito do “bom imperador” ressurge com força,
especialmente em um cenário marcado pela conservação de enormes poderes pelos reis,
príncipes e duques da Alemanha recém-unificada em 1870. Essa rivalidade entre o
imperador e a fidalguia regional foi muito bem explorada pelos soberanos da nova
Alemanha. Entre os camponeses e a crescente classe operária, o poder central era um
anteparo contra os excessos dos representantes do poder local, que, por estar próximo e
visível, é sempre mais odioso do que aquel’outro, mais distante e por isso mesmo com
menor capacidade de controle. Um exemplo da impopularidade dessa aristocracia rural
está no belíssimo filme A fita branca, de 2009, dirigido por Michael Haneke.
Para auxiliá-lo a administrar o estado alemão, sem ficar refém da aristocracia, que já
dominava o Exército e a carreira diplomática, após 1870, os imperadores firmaram uma
aliança informal com uma classe antiga, mas que só a partir do século XVIII começou a
ganhar consciência de seu próprio poder. Tratava-se dos acadêmicos, dos professores
universitários, ou, como prefere Franz K. Ringer, dos “intelectuais mandarins”. Ringer
formulou a interessante hipótese de que os soberanos do Segundo Reich incentivaram a
ocupação de postos relevantes na burocracia estatal pelos professores, aproveitando-se
de seus conhecimentos superiores e de seu senso de superioridade moral (quase
religiosa naqueles tempos de cientificismo extremo), a fim de criar uma nova
aristocracia do mérito.
Um símbolo dessa condição notável está nos 105 prêmios Nobel que a Alemanha
recebeu, o que a coloca em terceiro lugar no ranking das nações agraciadas, perdendo
apenas para os Estados Unidos da América (352), por razões óbvias, e para o Reino
Unido (120), durante muito tempo a sede do “império onde o sol nunca se põe”.
Considerando-se que a Alemanha foi arrasada duas vezes no século XX, não deixa de
ser um número impressionante.
Em uma série de colunas sobre ensino jurídico, não se poderia ignorar essas
particularidades da Alemanha, o país que será estudado hoje. Vamos agora examinar um
pouco sobre a carreira docente alemã, com evidente ênfase no Direito, embora muitos
dados sejam intercambiáveis para outras áreas.
A escolha dos candidatos à cátedra (Lehrstuhl, literalmente “cadeira de lente”) dá-se por
meio de uma seleção pública composta de etapas como entrevista, análise de currículo e
uma exposição, que pode ser uma palestra ou uma aula, com base em texto escrito para
esse fim. Evidentemente, é pré-requisito ter o candidato a Habilitation. As bancas
funcionam como autênticos “comitês de busca”, elegendo para as vagas um perfil de
professor ideal, cujas características o escolhido deve preencher. Para um brasileiro,
esse sistema seria chocante pelo elevado grau de subjetividade e pessoalidade da
seleção. Há, no entanto, uma série de contrapesos: não se pode ser professor na
instituição que foi a alma mater do candidato, o que impõe uma severa exogenia e faz
com que se oxigenem as composições dos corpos docentes. A figura do Doktorvater
(orientador) é muito relevante para o futuro da carreira do candidato à docência.
Gerd Bucerius (1906-1995), fundador do jornal Die Zeit, que foi juiz nos anos 1930 e
lutou contra os nazistas, além de defender judeus. A ideia de Bucerius era criar um think
tank e uma escola jurídica de qualidade, para o que deixou expressivos recursos em
legado para essa finalidade.
O leitor deve-se indagar neste momento como podem tão poucos catedráticos exerceram
o magistério para tantos alunos e em tão poucas instituições? A pergunta é mais do que
oportuna e ela se justifica por uma aparente contradição decorrente de haver poucos
professores, muitos alunos e poucas faculdades.
Em segundo lugar, deve-se ter em mente que o professor catedrático alemão não possui
um regime de aulas sequenciais como se dá no Brasil. Ele profere a Vorlesung, uma
espécie de aula magna, em períodos específicos (semanais ou quinzenais), para
auditórios lotados com 100, 200 a 400. Em muitos casos, as aulas ocorrem em
pavimentos diferentes, com uma parte da turma assistindo a Vorlesung por meio de
telões, às quais também comparecem os alunos do Magister, um curso de pós-
graduação, de variável natureza, conforme a universidade que o ofereça, equiparável, na
maior parte dos casos, a uma especialização ou, mais raramente, a um mestrado.
Posteriormente, os alunos reúnem-se com os assistentes e vão fazer estudos de casos,
fortemente baseados no método subsuntivo e na exegese do Código Civil, nas
disciplinas de Direito Civil.
Finalmente, há uma maior liberdade no comparecimento dessas aulas e no modo como
os alunos se relacionam com a universidade e com as avaliações internas, do que se
cuidará na próxima coluna.
Existe ainda uma forte tradição de clivagem ideológica entre os professores de Direito.
Os dois grandes partidos políticos – a União Democrática Cristã e o Partido Social
Democrata – possuem fundações, à semelhança do que ocorre no Brasil, que financiam
pesadamente estudantes e pesquisadores, além de publicações de teses (que são pagas
pelos autores) e outros projetos acadêmicos, diferentemente do que se dá no Brasil.
Desde cedo é possível identificar a orientação ideológica de muitos docentes, o que se
reflete nas universidades. Em larga medida, isso não afeta a independência científica,
porque não há uma apropriação “partidária” das instituições em níveis que
comprometam sua independência.
***
[1] Comparatives Studies in Society and History, v. 14, n.2, 1972, pp. 215-244.
Cambridge Univ. Press, London. (Agradeço a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima
pela referência).
[2] Parte dos dados quantitativos (informações não oficiais) foi extraída deste site:
http://www.lto.de/jura/studium/uni/augsburg/. Acesso em 2-2-2015.
[3] P.156
Os estudantes estiveram no centro das lutas pela unificação alemã, muitos deles tendo-
se engajado nas guerras bismarckianas, e também foram os primeiros a apoiar a entrada
da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. No século XX, a maioria deles uniu-se ao
nazismo, embora alguns poucos hajam protagonizado episódios de heroísmo, como
Sophie Scholl, Hans Scholl e Cristoph Probst. Esses três jovens, guilhotinados em 1943
pela Polícia Secreta do Estado, distribuíram panfletos na Universidade de Munique nos
quais denunciavam o regime e o fracasso militar na frente russa. É célebre a frase de
Sophie Scholl: “O povo alemão vem sendo enganado sob o prestígio de uma fraude”.
Em seus infames julgamentos no Tribunal do Povo, mantiveram-se firmes em suas
posições contra o regime.
Os estudantes são a classe idealizada em nosso tempo graças à sua enorme generosidade
de morrer por causas às vezes perdidas, mas que é a classe também capaz de enormes
equívocos e desatinos históricos, como os já apontados. É sobre os estudantes de
Direito na Alemanha, sua formação, as disciplinas, as avaliações e o método de ensino
jurídico de que se ocupará a coluna de hoje.
A coluna, em diversas passagens, terá por fonte o artigo de Tilman Quarch, intitulado
Introdução à hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil, publicado na Revista
de Direito Civil Contemporâneo, v.1, outubro-dezembro de 2014, p.251 e seguintes, que
pode ser considerado um marco doutrinário sobre o ensino jurídico alemão em língua
portuguesa.
Já aqui se apresentam três “verdades inconvenientes” para muitos que criticam o ensino
jurídico no Brasil e que defendem alternativas a nosso modelo. Vamos a esses
interessantes contrastes.
Sim, virou um chavão condenar-se o estudo do Direito sob a óptica das codificações. Na
verdade, mais do que um chavão, tem-se um consenso em torno desse tema, o que
resulta do bem sucedido projeto de demolição das estruturas do formalismo jurídico e
de uma das faces do positivismo, que se iniciou na década de 1950, ganhou fôlego nos
anos 1980 e, com a nova Constituição, se tornou hegemônico no país.
A caricata figura do velho professor que decorava o código e recitava-o para os alunos,
com paráfrases ou adendos estéreis, é hoje um espantalho muito fácil de ser atacado.
Embora ele ainda exista, deu-se sua substituição, em muitos casos, por três espécies: (a)
o reprodutor da jurisprudência (sem criticá-la e sem desconstrui-la); (b) aquele que
ignora por completo a doutrina e se vale apenas do “que é justo” (algo como “decido
conforme minha consciência” aplicado a docentes) ou (c) por quem só expõe o que
“cai nos concursos”. Até mesmo pensadores progressistas, que lideraram o movimento
de reforma desde os anos 1980-2000, estão na linha de frente contra esse “novo”
modelo, como é o caso de Marcelo Cattoni (a preocupação com a integridade e a
legitimidade democrática do Direito) e Lenio Streck (a crítica ao solipsismo e à
banalização do conhecimento jurídico), para ficarmos com dois dos mais
representativos.
Os alemães estudam os códigos sim. E muito! Não os temem e nem os depreciam. Nos
dias que correm, trata-se indiretamente de uma homenagem ao legislador democrático.
O método pigeonhole exige dos alunos a solução de casos que se aproximam da prática
forense. Os estudantes aprendem para “pensar” e redigir pareceres ou sentenças, como
quem resolve problemas postos pelas partes no Judiciário. A hermenêutica alemã, como
salienta Tilman Quarch, organiza-se em torno do Gutachtenstil, que se estrutura em 3
elementos: os fatos, as leis e as relações entre ambos. Formam-se os silogismos
aristotélicos típicos para se oferecer uma resposta a um caso muito próximo do real: (1)
premissa maior (Obersatz); (2) premissa menor (Untersatz) e (3) conclusão
(Schlussfolgerung).[3]
Trata-se de um método...subsuntivo. Sim, meu caro amigo. Lamento informar-lhe mas a
subsunção não é uma velharia, um artigo exposto na vitrine de um belchior qualquer. É
algo útil e ainda extremamente central no melhor ensino jurídico da Europa. Conforme
Tilman Quarch: “Sendo que a subsunção corresponde à aplicação de regras (rules) e a
ponderação à aplicação de princípios (principles) do sistema dworkiano, aquela técnica
predomina nos ramos civil e penal do direito alemão, enquanto essa é mais frequente no
direito público, mais precisamente no direito constitucional”. A entrada da ponderação
dá-se em situações específicas, quando se analisa o caso à luz da “eficácia indireta” dos
direitos fundamentais em relação aos privados ou no uso do “princípio da segurança
jurídica no âmbito do direito penal” [4].
O estudo silogístico tem início desde o primeiro ano da faculdade. No Direito Civil,
ainda se segue a interpretação escalonada (gramatical, histórica, sistemática e
teleológica), com a utilização eventual e nos casos em que isso cabe da “interpretação
conforme à Constituição” e da europarechtskonforme Auslegungen (interpretação
conforme o direito europeu).[5] Ainda com ênfase no Direito Civil, o aluno é chamado
a, antes de iniciar a solução de um caso, tentar responder às perguntas: Wer will was von
wem woraus? (Quem quer, o que quer, de quem se quer, com base em que se quer?)[6]
Tal se opera também na despreocupação com o Direito estrangeiro, embora haja cada
vez maior afluência de alunos interessados em Direito Europeu, o que se explica pela
enorme interpenetração das diretivas da União Europeia com as normas internas. Esse
alheamento talvez mude em razão do crescente intercâmbio de alunos europeus, como
parte de sua formação no bacharelado.
Um exemplo desse grave problema, que só avança no Brasil, está na forma como as
questões dos concursos públicos e dos exames de Ordem são hoje apresentadas aos
milhares de candidatos. Salvo raras exceções, notáveis em certas carreiras que ainda
organizam as provas com bancas internas e para poucos candidatos (comparados a
outras carreiras), os examinadores tentam fugir da praga da judicialização, um
movimento crescente hoje em ordem a se contestar os resultados das provas. E para isso
as bancas têm cobrado cada vez mais questões sobre posições da jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ou do texto da lei. Ao
menos assim são reduzidas as hipóteses de contestação judicial das respostas. Embora,
por descuido do examinador, algumas anulações sejam obtidas pois a questão ignorou
posições divergentes na mesma corte (orientação da 1ª Turma e que não é seguida pela
2ª Turma do STJ, por exemplo).
Por consequência, além de sua própria autodepreciação, a doutrina perde a cada dia sua
importância por efeito do empobrecimento generalizado da cultura jurídica e da morte
da “alta literatura jurídica”, encalhada nas livrarias e vetada pelos editores ciosos de não
terem prejuízos certos em seus balanços anuais.
Segundo, o ensino com base no conhecimento profundo da legislação soa como heresia
no Brasil. A Alemanha mostra que isso não é de per si negativo, especialmente quando
se combina a lei com o estudo dos casos. Não se pode confundir a leitura ou a paráfrase
de códigos, à moda dos antigos professores, com o modelo alemão. No entanto, ensino
com base nos códigos é muito importante na Alemanha para disciplinas como o Direito
Civil ou o Direito Penal, assim como o silogismo é bastante respeitado.
Terceiro, há críticas na Alemanha a esse modelo autocentrado de ensino jurídico. E não
são poucas. O sucesso do modelo, porém, faz com que ele se preserve. Sob o prisma
consequencialista, ele funciona. Se é o ideal, eis um ponto discutível.
Quarto, há sérios experimentos no Brasil sobre o estudo dos casos, como se encontra na
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, conduzido, por exemplo, pelo professor
Luciano Camargo Penteado, ou, em minha Faculdade, no Largo São Francisco, pelo
professor Rodrigo Broglia Mendes, em Direito Comercial.
São exemplos que podem ser explorados. A dúvida que se coloca nesta é coluna está na
possibilidade de sua universalização em um sistema viciado pela judicialização, pelo
baixo respeito à autoridade do professor e pela ausência de um consenso social sobre a
respeitabilidade da “resposta correta”.
E na próxima semana?
A coluna sobre a Alemanha se estendeu mais do que o autor imaginava. Na próxima
semana, encerrar-se-á o exame do modelo alemão com a apresentação sobre o Segundo
Exame de Estado, a relação dos alunos com a universidade e, se houver espaço, o
problema dos cursinhos. Na sequência, o ensino jurídico em Portugal.
[1] O livro Viagem ao Harz foi traduzido para o português por Maurício Mendonça
Cardoso e editado pela 34, de São Paulo, no ano 2013.
A usina de mandarins
O Império da China era governado “de cima para baixo por uma burocracia confuciana,
recrutada com base no sistema de exames que talvez seja o mais exigente de toda a
história”. De fato, “aqueles que aspiravam a uma carreira no serviço imperial tinham de
se submeter a três etapas de exaustivas provas realizadas em centros de exame
constituídos especialmente para essa finalidade, como aquele que ainda hoje pode ser
visto em Nanquim: um enorme complexo murado contendo milhares de minúsculas
celas um pouco maiores que o lavatório de um trem”. Nesses lugares tão estreitos, “o
único movimento permitido era a entrada e saída de funcionários para repor comida e
água, ou recolher dejetos humanos”. Alguns dos postulantes, “ficavam completamente
loucos sob a pressão”.[1]
Essa descrição dos exames para ingresso no serviço do Senhor dos Dez Mil anos, o
Filho do Céu, o imperador da China, nos tempos da dinastia M’ing, é interessante para
se comprovar que, mesmo com séculos e quilômetros de distância, a mística dos exames
admissionais integra a cultura de diferentes povos. E ela vem sempre acompanhada de
um momentum, um curto hiato de tempo no qual os candidatos têm de demonstrar sua
capacidade para vencer o desafio imposto por examinadores. Seria este o coroamento de
anos de preparação, com a abertura de um pedaço do céu para os vencedores e a oferta
de uma vida mais perigosa e incerta para os derrotados.
O cargo é privativo de nacionais alemães e não há, como visto, um concurso público
para ingresso na carreira. É necessário, porém, que o candidato seja bacharel em Direito
e haja sido aprovado no Segundo Exame de Estado. Suas notas nesses exames definirão
fortemente suas possibilidades de ser escolhido para o cargo.
O que há de comum entre elas? A ausência da figura do concurso público, como nós o
conhecemos no Brasil. Entretanto, o filtro de entrada é comum às três carreiras e ele tem
natureza dupla: é aplicado no final do curso de bacharelado (Primeiro Exame de Estado)
e depois do período de 2 anos que antecede à aplicação do Segundo Exame de
Estado. Não é sem causa que um jurista alemão coloque em suas páginas pessoais,
currículo e, alguns, em seus livros que foram aprovados nesses exames, com indicação
do local (pois há variações entre exames aplicados por este ou aquele Lander) e da nota
obtida. É este o mais importante cartão de visitas de um jurista alemão para o mercado
de trabalho. Pode-se dizer que esses exames são o combustível da usina de mandarins
alemães.
O Repetitorium
Como prometido na última coluna, vamos falar muito brevemente dos cursinhos
jurídicos alemães. Trata-se de uma instituição muito antiga, oriunda do final do século
XVIII e que hoje é operada majoritariamente por lucrativas empresas privadas (bem
longe do conceito de “instituição de caridade”), apesar de algumas universidades
manterem um Repetitorium público para seus estudantes. As aulas são voltadas à
preparação para o exame estatal e têm seu público formado por estudantes
universitários.
Muito da literatura jurídica alemã sobre Direito Civil ou Direito Penal, traduzida para o
português e que é citada por autores brasileiros como se fossem “grandes obras”, não
passam de livros de cursinhos alemães, com seus estudos de casos e questões
específicas para quem deseja se submeter ao exame estatal.
Alguns desses “resumos” são elaborados por professores universitários, pelo que
recebem bons valores em direitos autorais. No entanto, eles não lecionam nessas
instituições. É igualmente impensável que um docente de Repetitorium seja admitido
como professor em uma universidade alemã respeitável.
Conclusões
Encerramos hoje a longa viagem pelo riquíssimo modelo de ensino jurídico alemão.
Com suas virtudes e seus problemas, o exemplo da Alemanha deve ser estudado com
profundidade. Muitas das soluções ali encontradas não são compatíveis com a realidade
nacional, seja pela diferença na seleção dos professores, seu prestígio e sua
representação social, a existência dos exames estatais e a formação prático-profissional
ser diferida para depois da universidade. Apesar disso, a investigação sobre essa
experiência evita que se propaguem muitos mitos sobre o que seria melhor para a
qualidade do ensino jurídico, como se procurou demonstrar nesta série de colunas.
“O professor Schwab então me disse: ‘Aqui na Alemanha, as pessoas estudam. Elas não
ficam esperando o professor ensinar, elas vão à biblioteca, leem e estudam, não ficam
esperando pelo professor’. Foi um grande contraste para mim. (...) O estudante lá é um
estudante, na acepção da palavra. (...) Isso tudo me impressionou muito. O aluno
alemão tem de estudar em profundidade os assuntos. Ele deve fazer esses trabalhos de
pesquisa, com referências em vários autores, com notas de rodapé”.[12]
Reflitamos sobre essas palavras de um de nossos grandes juristas. Na próxima coluna, o
ensino jurídico em Portugal.
[9] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit. Dados também disponíveis aqui:
http://www.jum.baden-
wuerttemberg.de/pb/site/jum/get/documents/jum1/JuM/import/pb5start/pdf/ii/II%20F%
2013%20-%20Ergebnisse.pdf. Acesso em 16-2-2015.
[12] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Entrevista com Nelson Nery Jr. Revista de
Direito Civil Contemporâneo. v. 1, p. 367, out.-dez. 2014.
“Sei muito bem o que quero e para onde vou”: o governo dos juristas
Com a crise econômica que assolava Portugal, governado por uma ditadura militar, ele
foi chamado pelo general Oscar Carmona, então presidente da República, para pôr
ordem nas finanças nacionais. Ao ser empossado, proferiu o célebre discurso, que ficou
marcado pela frase: “Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija
que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame,
discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar”[1].
Salazar conduziu o país a uma ditadura cada vez mais forte, o que foi facilitado por sua
habilidade em se manter fora da Segunda Guerra Mundial e pela guerra fria pós-1945,
que o colocou na posição de um mal menor no cenário internacional. Era melhor um
ditador como ele do que a ascensão comunista em Portugal e suas colônias.
Nos anos 1960, Portugal envolveu-se totalmente nas guerras coloniais em África. Ao
passo em que França e Reino Unido descolonizavam seus antigos impérios. Salazar
manteve-se aferrado ao ideal de um Portugal uno, transnacional e pluricontinental. Com
a mesma coragem de seus antepassados, milhares de soldados portugueses tombaram
em defesa de uma causa perdida. Graças a um acidente, Salazar perdeu a consciência
em 1968 e foi sucedido pelo catedrático de Direito Administrativo Marcelo Caetano, até
que este veio a ser derrubado em 1974 na Revolução dos Cravos.
a) A média de idade de 44 anos, compatível com a juventude do líder, era esta: “25,7%
dos ministros tinham entre 20 e 29 anos, 48% tinham entre 40 e 49 anos e apenas 25,7%
tinham mais de 50 anos”. Sendo que “se fossem apenas incluídos os ministros civis, a
média baixaria, pois era a componente militar que fazia subir a idade média, com a
presença de oficiais generais activos durante a ditadura militar e mais velhos, em geral,
do que a elite civil”.
Salazar não inventou essa ideologia dos “professores mandarins”. Ele próprio é um
fruto desse novo modelo.
A elite política portuguesa, embora não mais com a predominância do passado, ainda
recolhe muitos de seus quadros ministeriais nas universidades, de modo particular nas
faculdades de Direito. Em novas bases, as relações com o poder político se conservaram
muito próximas do que se dá na Alemanha contemporânea.
Até breve
Nesta primeira coluna sobre o ensino jurídico em Portugal, buscou-se apresentar ao
leitor um panorama histórico sobre a construção do “moderno” conceito de docente
universitário naquele país, com todas as implicações que isso possui para a
compreensão do modelo.
[1] Discurso proferido aos 27 de abril de 1928, no ato de posse de Antonio de Oliveira
Salazar no Ministério das Finanças. A íntegra está disponível aqui:
http://www.arqnet.pt/portal/discursos/abril01.html. Acesso em 16-2-2015.
[3] FARIA, Cristina Azeredo. A elite universitária da ditadura. História. n.23-24, ago.-
set. 1996. p.48-49.
2) Universidade de Lisboa: (a) 22; (b) 3; (c) 17; (d) 56 (excluídos os auxiliares
convidados) e (e) 33.
Há críticas sobre a qualidade dos egressos dos cursos particulares não confessionais.
Essa circunstância levou a Ordem dos Advogados portuguesa a sugerir a criação de uma
espécie de exame de Ordem, no que foi rechaçada pelos professores de Lisboa e
Coimbra.[2]
Só se admite o ingresso dos docentes das três categorias por concurso (artigos 9º c/c
11º). Há, no entanto, uma diferença: o catedrático e o associado contratam-se por tempo
indeterminado (artigo 19º). Na prática, isso quer dizer que eles são estáveis. A
legislação portuguesa usa de um termo comum no serviço docente norte-americano,
a tenure, ao declarar que eles gozam de um “estatuto reforçado de estabilidade no
emprego (tenure) que se traduz na garantia da manutenção do posto de trabalho, na
mesma categoria e carreira ainda que em instituição diferente”.
Nos concursos para catedrático é necessário que o candidato seja doutor e tenha a
chamada agregação há mais de cinco anos (artigo 40o). Para associado, é necessário que
o postulante seja doutor há mais de 5 anos (artigo 41o). O cargo de auxiliar só pode ser
disputado por quem detenha o título de doutor. Os antigos assistentes podiam prescindir
do doutorado.
O professor associado não apresenta uma tese como nossa livre-docência. Ele submete-
se ao procedimento de agregação, que são provas nas quais se avaliam o currículo do
candidato (um associado sem agregação), levando-se em conta sua produção acadêmica,
suas atividades de formação de discípulos, seus projetos de pesquisa e pela prestação de
serviços de interesse comunitário. Há, no entanto, a obrigatoriedade de se apresentar um
relatório sobre uma disciplina ou grupo de disciplinas, no qual o autor examina
problemas epistemológicos da área onde deseja se agregar. Esse relatório tem sido
objeto de muitas críticas, sendo bastante comum encontrar-se um parágrafo de estilo no
qual o candidato faz uma censura a esse critério de seleção. Finalmente, pode-se exigir
do postulante a apresentação de um seminário ou de uma aula sobre um tema da área de
conhecimento ou da especialidade vinculada às provas.[5]
Conclusões
Nesta coluna, três pontos essenciais podem ser destacados. O primeiro está na
aproximação da estrutura de carreira docente portuguesa e alemã. Estabilidade e
exclusividade no topo associadas à precariedade e multiplicidade na base. O segundo
está na conservação do doutorado como eixo fundamental da formação do professor
português. Nesse aspecto, há diferença do modelo alemão, cujo opus magnum da
carreira universitária é a tese de habilitação, equivalente a nossa livre-docência. O
terceiro ponto está na rigidez curricular e na prevalência das disciplinas jurídicas. Há
aqui um termo médio entre o modelo alemão e o brasileiro. Os portugueses também
valorizam disciplinas jurídicas não dogmáticas, o que se percebe por uma maior
abertura para estudos de Filosofia do Direito e História do Direito. O currículo mantém-
se fechado, com baixa quantidade de optativas e, mais que isso, um número restrito de
matérias não obrigatórias elegíveis ao longo do curso. Nem por essa razão é admissível
dizer que o ensino jurídico público em Portugal seja de má qualidade.
[6] Tabela salarial dos professores universitários portugueses de 2009, disponível em:
http://sigarra.up.pt/fpceup/pt/legislacao_geral.legislacao_ver_ficheiro?pct_gdoc_id=219
0. Acesso em 22-2-2015. Podem ter ocorrido reduções em razão das contribuições
extraordinárias instituídas pelo Governo português para atender aos controles da União
Europeia, após a crise econômica iniciada em 2008.
Na Holanda e na Bélgica, a questão foi resolvida com uma solução radical e perplexa,
posto que eficiente: fala-se inglês nas universidades. Para os belgas, às voltas com o
separatismo dos flamengos, terminou por ser uma forma inteligente de superar essa
cisão nos meios acadêmicos.
O inglês, língua imperial há mais de 200 anos, tornou-se o latim de nosso tempo,
especialmente após a hegemonia norte-americana no século XX. Se o inglês é o latim,
restou ao alemão ser o equivalente contemporâneo do idioma grego. A sofisticação do
pensamento grego sempre foi superior ao caráter analítico do latim e sua literatura no
Império Romano. No Direito, esse papel do alemão é ainda mais relevante, assim como
na Filosofia, na Sociologia ou na Psicologia.
Para os países de tradição de civil law, a utilização do inglês como idioma franco é
motivo de tormenta ou de ridículo, de modo especial quando se volta para ramos
clássicos como o Direito Civil. Alguns exemplos comprovam isso. O primeiro está na
simples consulta a abstracts de artigos publicados em português no Brasil. O segundo
está no uso frequente de parêntesis com palavras latinas em obras de autores alemães
para esclarecer dúvidas sobre a correta versão de certa categoria jurídica para o inglês.
O terceiro está em que, nos países de common law, não há, por exemplo, o conceito de
“Direito Civil”, como disciplina única e sistêmica, mas de Torts (responsabilidade
delitual), Contracts e Family Law, também exemplificativamente. Daí ser um equívoco
traduzir Direito Civil por Civil Law. Este é apenas um de entre vários exemplos, que são
mais ou menos intensos a depender da província jurídica. Em Direito Constitucional,
disciplina mais jovem e com desenvolvimento mais aproximado nos dois sistemas,
essas assimetrias diminuem.
Essa “opção preferencial” pelo “grego”, sedimentada por mais de 100 anos, converteu o
Direito português, mormente sua doutrina, em um espaço de grande respeito por seus
homólogos do Direito continental. E, de certo modo, a estrutura das universidades, o
ensino e a carreira docente mostram-se muito próximos do modelo alemão. Entretanto,
Portugal adotou soluções autóctones em muitos setores do ensino jurídico,
aproximando-se da realidade brasileira, o que explica a atenção que faz por merecer o
Direito de nossa pátria-mãe.
É sobre essas características de que cuidará a coluna de hoje, pela qual se encerrará o
exame da experiência de nossa antiga metrópole e agora, com carinho, nossa pátria-
mãe.
A função dos assistentes, que regem grupos menores de alunos, é a de retomar as lições
magistrais (de magister, mestre) do catedrático, explicar pontos pouco compreendidos
pelos alunos e, a depender da natureza da disciplina, resolver casos práticos. Uma vez
mais observa-se a semelhança entre o ensino jurídico alemão e o português. Não se
pode, contudo, negar a Portugal a precedência histórica em muitos pontos desse método.
Nota-se, porém, uma diferença sensível entre Alemanha e Portugal quanto ao estudo de
casos. Não há nas universidades portuguesas o caráter predominante de uma preparação
dos alunos para resolver casos práticos. Tal se deve porque não há o sistema de exames
de Estado no território lusitano. Desse modo, existe maior flexibilidade no conteúdo das
aulas magistrais e na atividade dos repetidores. As disciplinas propedêuticas e as
teóricas são mais prestigiadas e seus docentes tem maior liberdade para fugir da
preocupação com casos. Ao passo em que, nas dogmáticas, existe maior emprego de
casos. Mas, os elementos conceituais e as perguntas teóricas são prestigiados nas aulas,
nas repetições e nos exames.
Percebe-se que as aulas de Direito em Portugal são híbridas quanto ao modelo alemão e
ao que é praticado no Brasil. Os conteúdos teóricos são mais importantes, posto que
exista também a preocupação com os casos.
É necessário ressaltar que as aulas magistrais, seguidas de aulas com questões práticas
ou de revisão de conceitos pelos assistentes, não são “modernas”. Nem por isso, há
perda de qualidade no ensino. Este é mais um exemplo de que não correlação
demonstrável entre o emprego de “novos métodos” e resultados educacionais superiores
nos cursos jurídicos portugueses.
Internacionalização
O aluno português de Direito tende a explorar mais intensamente as oportunidades de
internacionalização. Muitos estudantes participam de programas de intercâmbio, como o
Erasmus, o que se segue na pós-graduação. Diferentemente do que se dá no Brasil, o
inglês é bem lecionado nos níveis fundamental e médio na própria escola. Ao
conhecimento razoável do inglês, o estudante sabe que o domínio do alemão é essencial
para se progredir na carreira acadêmica. O estágio nos Institutos Max-Planck ou em
algum centro de pesquisa das universidades alemãs mais prestigiosas faz parte desse
percurso e é bastante comum no currículo de um scholar português.
A seleção dos magistrados é feita pelo Centro de Estudos Judiciários - CEJ, um órgão
do Ministério da Justiça. Há formas de ingresso por meio da “experiência acadêmica”, o
que exige o título de mestre ou doutor, ou da “experiência profissional”, compreensiva
de um mínio de 5 anos de atividades forenses ou afins. O concurso implica prova de
conhecimentos, avaliação de currículo, discussão sobre o currículo e a experiência
profissional e uma discussão sobre temas jurídicos, “baseada na experiência do
candidato”. Por fim, um exame psicológico é também realizado. A aprovação habilita o
candidato a um curso teórico-prático.[3]
Poucas faculdades, uma carreira docente respeitada e estável (nos níveis superiores),
rigor nas avaliações, matrizes curriculares fechadas, internacionalização dos estudantes
e professores e a conservação (inesperada) de uma “alta literatura jurídica” marcam
positivamente o modelo português. As sombras obviamente surgem no horizonte. A
crise das carreiras jurídicas, as portas fechadas para a renovação de quadros docentes, a
oferta de vagas por instituições privadas sem qualidade podem comprometer esses
resultados a médio prazo.
P.S. A recepção destas colunas pelos leitores tem sido incrivelmente alta. Só lhes tenho
a agradecer pela generosidade e pelo interesse. Alguns leitores, como Alexandre
Carvalho Simões, têm insistido para que eu crie uma página no Orkut, digo Facebook.
Infelizmente, não a possuo e creio que não deverei tê-la. De qualquer forma, os
interessados podem acompanhar não somente minhas atividades, mas as ações da Rede
de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo em sua página no Facebook, a qual não
acesso nem administro. Eu também estou nesta página no direito comparado. E ainda no
site academia.edu um interessante fórum de divulgação de nossas produções
acadêmicas.
A obra foi transformada em filme por Luchino Visconti, ele próprio um membro da
aristocracia italiana em decadência, com o título Il Gattopardo, com a participação de
estrelas internacionais como Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale.
Tanto o livro quanto o filme deixaram para a cultura popular uma célebre frase da
personagem central, D. Fabrizio Corbera, príncipe de Salina: “A não ser que nos
salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as
coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Na versão popular, a frase ficou
assim: “É preciso que tudo mude para que permaneça como está”.
Il Gattopardo deixa muito evidente esse problema ao narrar o convite feito ao príncipe
de Salina para que integre o Senado da nova monarquia. D. Fabrizio, de modo polido,
recusa o convite por se achar ligado a laços de lealdade com os “antigos soberanos da
Sicília” e indica o ambicioso burguês que enriquecia à custa da nobreza decadente e
cuja filha iria se casar com o sobrinho do príncipe, de modo a elevar seu status familiar.
Em Nápoles, a Università degli Studi di Napoli Federico II, cujo nome lembra os
equivalentes alemães, que unem o topônimo e a homenagem a um monarca, é herança
dos tempos imperiais, fundada que foi em 1224 pelo soberano do Sacro Império e rei de
Nápoles, Frederico II. Sua origem romano-germânica deu-lhe foros de instituição laica
desde sua fundação. Depois de um período de longa decadência, a universidade
aproximou-se da Igreja até que, com os efeitos da substituição dos Habsburgo pelos
Bourbon no domínio de Espanha e dos territórios italianos, ela ganhou novos ares.
Como todas as instituições universitárias peninsulares, após a unificação a Frederico II
teve de se adaptar aos padrões uniformes da monarquia dos Saboia.
A Itália, porém, foi sede de um curioso processo de nobilitação de amplos setores que
contribuíram para a unificação. Vitório Emanuel, primeiro rei da Itália moderna, antigo
soberano da Sardenha, do Piemonte e da Saboia, precisou de todos os apoios para
combater seus antigos colegas monarcas, os austríacos e as forças papais. Quando não
conseguiu a adesão de parte da nobreza local, aliou-se a segmentos burgueses com a
promessa de futuro exercício de poder regional. Até mesmo setores do operariado,
carbonários e revolucionários internacionais, como Giuseppe Garibaldi, mereceram
boas vindas, ainda que temporárias. Os sobreviventes e os que não foram
posteriormente descartados, como Garibaldi, passaram à linha de frente na burocracia e
nas forças armadas do Reino. A nobilitação foi uma importante arma de cooptação de
burgueses e membros das classes médias e baixas que auxiliaram no esforço de guerra e
na consolidação política do regime.
Surgiu, desse modo, uma nobreza ad hoc, que, em larga medida, não incomodava os
aristocratas de cepa, seja porque os não destruídos no processo de unificação seriam
aproveitados pelo regime, ou porque sua soberba não permitia que eles se molestassem
com os novos convidados para a festa do poder. Para estes últimos, só uma família com
raízes nos tempos das Cruzadas seria verdadeiramente digna de ser tida como nobre.
Nesse cenário, uma nobreza universitária era secundária e, muita vez, vinha
acompanhada de um título não acadêmico, como o de comendador ou cavaleiro, nada
elevados na hierarquia nobiliárquica. Diversamente da Alemanha, o docente
universitário italiano almejava esses títulos.
No plano interno, vê-se a adesão de grandes juristas da segunda metade do século XIX
ao projeto de Itália unificada. Carlo Fadda (1853-1931), professor da Universidade
de Nápoles, foi designado senador do Reino por Vitório Emanuel em 1912. Nascido na
Sardenha, território regido pelos Sabóia, é revelador que Fadda tenha feito sua carreira
em uma universidade do Sul (que resistiu à unificação), o que diz muito sobre a
importância dos docentes para a nova Itália. O título senatorial reforça o argumento da
busca por uma legitimidade extrauniversitária. Pode-se, ainda, mencionar a ligação
teuto-italiana no campo do Direito com o fato de Carlo Fadda ser relativamente
conhecido no Brasil por sua tradução da obra de Bernhard Windscheid, mais conhecida
por seu título em italiano Diritto dela Pandette, do que pelo original alemão Lehrbüch
des Pandektenrechts. A maioria dos manuais brasileiros do século XX, escritos por não
germanófonos, cita a versão italiana do clássico de Windscheid.
A Primeira Guerra Mundial foi particularmente trágica para a Itália. O Exército Real,
com apoio naval inglês e, posteriormente, da infantaria norte-americana, foi
pessimamente dirigido pelo marechal de campo Luigi Cadorna em sua luta contra o
Exército Real e Império austro-húngaro. O desastre de Caporetto, batalha na região do
Vêneto em 1971, quase pôs a perder a monarquia italiana e ceifou a vida de milhares de
jovens soldados e oficiais.
O pós-Primeira Guerra trouxe crise econômica e instabilidade política para a Itália, que
se viu nas mãos de um carismático jornalista chamado Benito Amilcare Andrea
Mussolini, que viria a governar o país como ditador a partir de 1922.
As mudanças ocorreram no final dos anos 1960 e pode-se destacar a grande reforma da
autonomia universitária nos anos 1990, com a Lei Ruberti 341/90, e, mais
recentemente, a polêmica Riforma Gelmini, um conjunto de normas aprovadas no
governo de Silvio Berlusconi, de 2008 a 2010, que alterou o ensino, a estrutura e as
carreiras docentes universitárias.
A universidade italiana hoje vive uma profunda crise, com cortes de recursos para
centros de pesquisa, bibliotecas e bolsas, o que se deu no rescaldo da situação
econômica europeia pós-2008.
1968 foi um ano, à semelhança de outros como 1848 ou 1792, de revolução. Desta vez,
liderada por uma “classe”, os estudantes, cujo acesso à universidade se deu, de modo
singular na História, de modo maciço. Os filhos da geração da Segunda Guerra, que não
conheceram as dificuldades de seus pais, tiveram acesso ao ensino superior e o choque
entre as gerações se deu de modo violento. A estrutura universitária, voltada para um
modelo mais restrito, não conseguiu se adaptar a esse novo contingente, com ideias
diferentes, influenciado pela contracultura, a liberação sexual e a contestação às guerras
coloniais. Se em França, o heroico general Charles de Gaulle quase foi derrubado do
poder, no resto do mundo os conflitos ganharam escala igualmente violenta.
O filósofo alemão Theodor Adorno, perseguido político pelo regime nazista, reitor da
Universidade de Frankfurt e um dos expoentes da famosa Escola Sudocidental Alemã,
teve sua sala de aula invadida pelos estudantes em 1969, durante os protestos da época.
Meses depois ele viria a falecer em decorrência de problemas no coração. Um brilhante
e inquieto teólogo alemão, com ideias originais e progressistas, também experimentou a
violência estudantil daquele período na Universidade de Tubinga, onde era professor.
Tal vivência foi tão marcante que ele fez uma radical transição e se tornou um dos mais
influentes teólogos da linha tradicional do catolicismo. Seu nome? Joseph Aloisius
Ratzinger, o futuro papa Bento XVI.
Nos dias de hoje, nomes como Oliviero Diliberto, Stefano Rodotà, Gustavo
Zagrebelsky, Guido Alpa, Romano Vaccarella, Glauco Giostra e Antonio Guarino
ocupam ou ocuparam posição de destaque na cena universitária e social da Itália.
No topo da carreira está o professor ordinário (também dito professor de primeira faixa),
cargo acessível por concurso público. Abaixo está o professor associado (ou professor
de segunda faixa), a que se atinge por concurso. Em terceiro lugar, o professor
contratado e, em quarto, o pesquisador universitário. Estes últimos, atualmente, são
apenas contratados por regime de tempo determinado.
Como professor associado, sua remuneração poderá ser de 2200 a 2700 euros por mês.
Conclusões parciais
As mudanças na sociedade italiana do pós-guerra para os dias de hoje foram sensíveis.
Muitos dos grandes ordinários italianos na faixa dos 75-90 anos experimentaram tempos
de fome e miséria em suas infâncias e adolescências após a queda do fascismo. Eles
fizeram parte de uma geração que teme o desperdício, a ostentação e outros valores tão
comuns em nossa época. Viviam como ascetas, até porque se acostumaram com esse
tipo de realidade. Nos anos 1980, com os avanços da União Europeia e o dinheiro farto
dos projetos da então União Econômica, a Itália ganhou novos padrões de consumo.
Esse cenário alterou as expectativas e a própria representação social de muitas
profissões, de entre elas da de docente universitário.
[4] Fonte:
http://www.unitelmasapienza.it/sites/default/files/albo_pretorio/allegatiparagrafo/24-05-
2013/legge_240-10_riforma_universitaria.pdf. Acesso em 30-3-2015.
É pensando nessa personagem – o aluno – que a terceira coluna sobre o ensino jurídico
na Itália tem início, na sequência das duas colunas anteriores (clique aqui e aqui).
O modelo das aulas é bastante similar ao que existe na Alemanha. Aulas magistrais com
um professor catedrático em salas que mais lembram auditórios e, posteriormente, a
divisão das turmas entre os assistentes. Não há grandes diferenças da aula expositiva
que é praticada em boa parte do continente europeu e também no Brasil. As aulas são
ministradas em italiano.
A formação do aluno é preponderantemente jurídica. Nesse ponto, a Itália é mais aberta
para disciplinas como o Direito Romano, o Direito Comparado e a História do Direito.
As razões para isso foram de certo modo adiantadas na primeira coluna: a forte herança
do Direito Romano, a ligação com a Alemanha e o papel dos italianos como agentes
difusores do Direito de língua alemã para os países latinos e a capacidade de formulação
original do pensamento jurídico pelos juristas italianos, que não temiam usar a seu favor
os métodos comparatistas. O elemento histórico-jurídico também foi favorecido por se
depositarem nas bibliotecas italianas um conjunto notável de obras jurídicas milenares,
graças à função de guardiã da memória cultural do Ocidente exercida pela Igreja
Católica desde antes do fim do Império Romano.
O acesso à literatura jurídica pelos alunos dá-se por meio de manuais, livros-texto ou
códigos com anotações breves. A Itália é a sede de editoras tradicionais e muito
conhecidas do público brasileiro, como a UTET, de Turim, a CEDAM, de Pádua, e a
Giuffrè, de Milão. Atualmente, existe o grave problema da cópia ilegal dos livros
jurídicos, o que tem enfraquecido a capacidade dessas casas editoriais de produzir as
clássicas obras monográficas italianas.
Mestrado e doutorado
O mestrado (laurea magistrale, considerando as adequações de carga horária e de
exigências nacionais para revalidação) e o doutorado (dottorato di ricerca) são títulos
universitários de pós-graduação, ao lado da especialização (diploma di
specializzazione).
As instituições são livres para organizar o currículo e o modo de acesso desses cursos de
pós-graduação, conforme as Lei Ruberti (Lei 341, de 1990, e a Lei 168, de 1989. Na
Universidade de Roma – La Sapienza exige-se que o candidato se submeta a uma prova
escrita e outra de natureza oral, esta última com a finalidade de expor e defender seu
projeto de pesquisa. Em outras instituições, exige-se apenas uma nota mínima global na
graduação e a apresentação do currículo.
Os togados percebem uma remuneração mensal fixada pelo Estado, cujo valor depende
de sua posição na carreira. Os magistrados honorários são remunerados em
conformidade com o número de sentenças produzidas e de audiências realizadas.
A prova oral, por sua vez, consiste na discussão sucinta sobre temas ligados ao Direito
Constitucional, Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Comercial, Direito do
Trabalho, Direito Penal, Direito Tributário, Direito Processual Civil, Direito Processual
Penal, Direito Internacional Privado, Direito Eclesiástico e Direito Comunitário. O
candidato escolhe 5 dessas matérias, sendo que uma delas tem de ser de natureza
processual. A prova oral também exige a demonstração de conhecimento das normas de
organização judiciária e da deontologia profissional.
Uma vez admitido na profissão, o advogado divide-se entre os ordinários, que podem
exercer suas atribuições em qualquer tribunal de primeiro ou de segundo graus, e os que
são habilitados a atuar também na Corte de Cassação. O ius postulandi é privativo dos
advogados, exceto perante os juízos de paz.
Os notários, por sua vez, submetem-se a um concurso público de caráter nacional, que
fica a cargo do Ministério da Justiça. É uma profissão extremamente prestigiada e que
oferece um excelente retorno financeiro, ainda que variável.
[2] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial. O texto
é baseado em paráfrases e as informações são totalmente atribuídas a essa fonte, sem
qualquer pretensão de originalidade:
http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_ita_pt.htm. Acesso em 7-4-2015.
Introdução
Na última coluna sobre o ensino jurídico na Itália, analisaremos a situação estrutural dos
cursos de Direito e seus currículos, mas começaremos com uma seção sobre o chamado
Processo de Bolonha, que reformulou profundamente o ensino superior na Europa.
Bolonha, vergonha!
Em muitos países europeus, tornou-se comum ouvir de autoridades educacionais e
professores universitários a expressão “Bolonha, vergonha!”, que, em português, é bem
mais sonora pelo efeito da aliteração. Trata-se de uma reação crítica aos efeitos do
Processo de Bolonha, a reforma do ensino superior na União Europeia que teve seu
marco na chamada Declaração de Bolonha, firmada em 19 de junho de 1999, com a
participação de ministros da Educação (ou equivalentes) de 29 estados da Europa.
Na prática, Bolonha permitiu aos estados europeus a redução do tempo mínimo de uma
graduação para 3 anos e a transformação do antigo quarto ano de graduação em uma
espécie de “mestrado profissional”, cuja equivalência, no Brasil, seria mais próxima ao
conceito de especialização (pós-graduação em sentido lato). Essas mudanças, na prática,
reduziram o tempo de permanência do aluno no curso de bacharelado, o que implicou
uma diminuição dos gastos com educação superior.[2]
Posteriormente, houve diversas outras declarações complementares a Bolonha, como as
firmadas em Berlim, Praga, Bergen e Londres, que visaram à ampliação das reformas,
ao exemplo da melhoria do sistema de acumulação e transferência de créditos (a
contabilização por ECTS’s) ou da busca por padrões comuns de qualidade do ensino.
Os efeitos da Declaração de 1999, como já demarcado por alguns, também se sentem
na “perda de protagonismo dos estados nacionais” no processo educacional, a ponto de
se “falar de uma espécie de ‘desnacionalização’ da educação superior ou, de outro ponto
de vista, de uma decisiva e definitiva ‘europeização’ das universidades e outras escolas
superiores, optando por políticas de liberalização”.[3]
Esse processo, que ainda não terminou, avança por diversas universidades europeias e,
de um modo geral, não afetou os grandes centros (Alemanha, Reino Unido e França),
mas permitiu uma maior flexibilização em estados menos centrais da União, o que é
visto com enormes resistências. E tudo teve início na sede da que é considerada uma das
mais antigas universidades europeias, a velha Università di Bologna.
As universidades italianas
Se o marco da “nova universidade” é a Declaração de Bolonha, convém iniciar a
análise da estrutura dos cursos jurídicos italianos.
A Libera Università Maria SS. Assunta - LUMSA é outra referência no ensino privado
italiano. Fundada em 1939, na cidade de Roma, tem hoje 8 mil alunos e é ligada ao
catolicismo desde sua origem. Seu curso de Direito funciona em Roma e Palermo.
Tenho muita desconfiança dos rankings universitários, seja porque sua estrutura leva
em conta fatores muitas vezes insusceptíveis de comparação por causa das normas
regulatórias de cada país, seja pela falta de atenção às peculiaridades de cada área. Veja-
se, por exemplo, um ranking que compare uma faculdade de Direito norte-americana
(cujos alunos são pós-graduandos e não graduandos, um caso único no mundo) com
uma equivalente europeia, cujos estudantes são realmente graduandos. Como se
comparar algo tão diferente?
A questão curricular
Um ponto que sempre desperta interesse nos leitores é a questão da matriz curricular nas
faculdades de Direito. Na Itália, no que não é diferente da Alemanha e de Portugal, as
instituições possuem ampla liberdade para compor suas matrizes. Como o primeiro
ciclo tem duração de 3 anos, um dos efeitos da Declaração de Bolonha, há bem menos
tempo para se ministrar o conteúdo do que nas congêneres brasileiras. Conforme o
Decreto no 270, de 22.10.2004, em seu art.11, a universidade tem competência para
elaborar as normas sobre a estrutura didática, de entre essas as relativas às disciplinas a
serem incluídas nas matrizes curriculares de cada unidade.
O curso de graduação deve atingir um total de 180 créditos, sendo que cada crédito
corresponde a 25 horas de atividades letivas. O crédito italiano equivale a um ECTS,
segundo a nomenclatura da Declaração de Bolonha. No entanto, só é possível cursar o
doutorado se, além do primeiro ciclo, o aluno comprovar que concluiu o segundo ciclo,
que corresponde a um “mestrado profissional”, equivalente, como já dito, a uma
especialização brasileira.
Cada ano é composto por um número variável de disciplinas. No primeiro ano, têm-se 7
disciplinas: Economia Política, Filosofia do Direito 1, Instituições de Direito Privado,
Instituições de Direito Público, Instituições de Direito Romano, Língua estrangeira e
Linguagem jurídica estrangeira e habilidades em informática. Note-se que, na prática,
há 2 semestres dedicados a cada uma dessas matérias. Não há grande possibilidade de
escolha pelo aluno dos créditos não obrigatórios.
Em termos gerais, nota-se uma preponderância do Direito Privado, que termina por ser
lecionado no primeiro ano (Instituições de Direito Privado e Instituições de Direito
Romano), no segundo ano (Direito Civil 1) e no terceiro ano (Direito Comercial), além
das cadeiras de Direito Privado Comparado e Direito Romano no quarto e quinto ano,
na sequência do chamado segundo ciclo. Essa preponderância também se nota entre as
optativas.
Conclusão
O ensino jurídico na Itália apresenta diversas convergências com a Alemanha e
Portugal, especialmente no formato das aulas, na estrutura das matérias e na
representação social do docente. Na Itália, a construção da unidade nacional passou pela
captura dos professores universitários pelo projeto da monarquia saboiana e, nos dois
períodos pós-guerra, houve um realinhamento dos docentes com o fascismo (com
muitas honrosas exceções) e com a república.
A geração de meus pais foi a última a ter no idioma francês sua segunda língua. O
inglês, ao menos para quem era jovem nos anos 1960, era uma língua técnica, voltada
para os que desejavam seguir carreira no mundo dos negócios, no mercado financeiro
ou em alguma multinacional britânica ou norte-americana. Na Medicina, apesar do
crescente desenvolvimento dos Estados Unidos no setor, fazer uma residência na França
ainda era o sonho da maioria dos melhores egressos de universidades brasileiras. Nas
Engenharias, a disputa era maior. Instituições norte-americanas, alemãs (em franco
processo de reconstrução) e francesas disputavam a primazia nesse campo. No Direito e,
em larga medida, nas Ciências Humanas, a liderança francesa permanecia insuperável.
A Universidade de São Paulo, fundada em 1934, muito deve de sua formulação original
à chamada “missão francesa”, da qual participaram Roger Bastide, Paul Arbousse-
Bastide, Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig, Paul Hugon e Fernand Braudel, quase
todos jovens e recém-formados docentes, cuja fama internacional só surgiria nas
décadas seguintes. Por um feliz acaso, esses desconhecidos professores converteram-se
em líderes ou expoentes de escolas de pensamento nos anos subsequentes. Essa
circunstância deu mais relevo aos professores brasileiros que se graduaram sob esse
influxo, ao exemplo de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e, no Direito,
Silvio Rodrigues. Os efeitos tardios da “missão francesa” fizeram-se sentir até os anos
1970. Silvio Rodrigues reforçou a “tradição francesa” na disciplina de Direito Civil na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o que se observa pela sequência de
titulares dessa disciplina até os dias de hoje, como Antonio Junqueira de Azevedo,
Teresa Ancona Lopez, Carlos Alberto Dabus Maluf e Silmara Chinellato, todos
membros da Associação Henri Capitant de Amigos da Cultura Jurídica Francesa.
No século XX, padres franceses educavam os filhos da classe média em muitas capitais
brasileiras. Tive relatos de amigos da geração de meus pais que se lembravam do
anúncio da derrota francesa para as forças vietnamitas do general Vo Nguyen Giap, na
célebre batalha de Dien Bien Phu, em 1954. Era o intervalo da aula e os professores
ouviam pelo rádio o anúncio do fim humilhante da Indochina francesa sob as armas de
guerrilheiros terceiro-mundistas. As escolas de línguas complementavam a formação
escolar básica em francês. Sartre, Foucault, Camus, a Nouvelle Vague, Brigitte Bardot,
Alain Delon, o mítico general Charles de Gaulle, o campeão da França Livre, uniam-se
aos grandes nomes do passado glorioso da France éternelle, como Pasteur, Napoleão,
Dumas, Balzac, Pascal, Luís XIV, Voltaire e Montesquieu.
Aquele esplendor dos anos 1960 era apenas a antecâmara de um longo período de
decadência, que se iniciaria nos anos imediatos e que se acentuaria, com maior ou
menor intensidade desde então. Acontecimentos como a criação da Comunidade e
depois União Europeia; o período presidencial de François Mitterrand ou o
desenvolvimento autônomo da bomba atômica foram aparentes intervalos nesse
processo, na medida em que expuseram a liderança francesa no cenário político
internacional, ainda que, em muitos casos, mais imaginária do que real.
Ao seu lado, desde a primeira hora, encontrava-se um homem com uma história muito
peculiar: doutor em Direito em 1914, foi mobilizado pelo Exército francês após a
deflagração da Primeira Guerra Mundial, com 27 anos de idade. Ferido em combate
após carregar com a infantaria francesa contra uma posição alemã, condecorado por
bravura e de volta à vida civil, ele ingressou na carreira universitária até assumir a
cátedra da Faculdade de Direito da Universidade de Paris em 1929. Judeu, cujos
antepassados eram marranos expulsos de Portugal pela Inquisição, esse homem foi um
dos primeiros a fugir de Paris, após a queda da cidade em 1940, e a juntar-se à França
Livre em Londres. Perdeu a nacionalidade francesa, por decreto do marechal Petáin, e
foi condenado à morte in absentia por alta traição. Seu nome? René Samuel Cassin
(1887-1976), o pai da Declaração Universal dos Direitos Humanos e prêmio Nobel da
Paz de 1968.
Se De Gaulle conseguiu por meio de blefes e de uma coragem suicida conduzir uma
França derrotada ao mito da vitória em 1945, Cassin fez algo parecido em termos
jurídicos. Ele elaborou todos os documentos constitucionais da França Livre (e suas
posteriores reinvenções jurídicas até que De Gaulle assumisse a presidência francesa em
1944) e teve de enfrentar Churchill e, com maior dificuldade, Roosevelt, a fim de
sustentar que o movimento gaullista era o único representante legítimo da verdadeira
França e não o governo de Vichy, que controlava efetivamente o país e o império
colonial. Indagado por um representante do presidente Franklin Delano Roosevelt sobre
em qual legitimidade ele se baseava para insistir que os americanos não mais
reconhecessem o governo do marechal Petáin, o professor judeu disse, com a coragem
dos loucos, que os colaboracionistas eram inconstitucionais por definição. Todos os
seus atos, como a deportação de judeus e a cooperação com o ocupante estrangeiro,
eram a negação quotidiana do texto constitucional.
Dez anos após a morte de Ripert e a reforma judiciária gaullista, o mundo se veria
abalado pelos movimentos estudantis de 1968. A República Francesa foi a base de uma
revolução liderada pelos universitários e que se propagou por diversos países do mundo,
em cada um deles assumindo pautas particulares, como a objeção à Guerra do Vietnã
(Estados Unidos), a luta pela democratização do regime (Primavera de Praga) ou à
rejeição à ditadura militar (Brasil). O ano de 1968 foi uma nova “esquina do mundo”,
para se referir ao ano revolucionário de 1848. Mas, em França, a insatisfação dos
estudantes com a estrutura universitária e à crise de oferta de vagas no ensino superior
para uma nova geração de filhos do pós-guerra estiveram na raiz da rebelião, que quase
derrubou o presidente De Gaulle.
Um dos efeitos desse novo quadro pôde-se sentir na divisão da Universidade de Paris,
ocorrida em 1970, que se desmembrou em Paris-I, Paris-II, Paris-IX, Paris-X, Paris-XII
e Paris-XIII, graças ao Decreto 70-928, de 8.10.1970, o qual deu efeito ao art.44 da Lei
68-978, de 12 de novembro de 1968, aprovada após o enfraquecimento do movimento
estudantil e a retomada do controle político pelo general De Gaulle.
Uma das principais notas do modelo jurídico francês está na paridade quase absoluta
entre as remunerações das principais carreiras do serviço público. Auditores,
engenheiros, militares, médicos, juízes e professores seguem, em suas respectivas áreas
do serviço público, uma tabela de correspondência de remunerações, que leva em conta
tempo de serviço e a equivalência de responsabilidades e de níveis na hierarquia dos
respectivos órgãos ou plexos administrativos. O almirante, o magistrado da Corte de
Cassação, o professor com agregação e o chefe de um serviço médico, salvo variações
pouco expressivas, decorrentes de gratificações de periculosidade, por exemplo,
percebem valores aproximados.
Não existe em França uma cultura de preeminência das carreiras jurídicas sobre as
demais na administração pública. Desse princípio igualitário geral e do reconhecimento
da dignidade intrínseca de cada uma das funções no Estado é que não se identificam
fenômenos tão tipicamente brasileiros como a hipertrofia dos cursos jurídicos, a
formação de um imenso exército de reserva de bacharéis em busca do Santo Graal do
“concurso público jurídico” (e não do “concurso público” simplesmente, faça-se esse
registro) e a representação social diferenciada dos membros das carreiras jurídicas em
face das demais.
No Brasil, há anúncios na televisão para que os “jovens” alistem-se nas Forças Armadas
para o serviço militar e ingressem nas corporações militares. Essa publicidade justifica-
se pela necessidade de lembrar seus destinatários do caráter compulsório do alistamento
e também para atrair quadros para o oficialato, o que se dá pela baixa atratividade dos
soldos. Em França, esses anúncios podem ser encontrados nos jornais para várias
carreiras, e, o mais surpreendente, para a magistratura. Seria algo impensável para um
brasileiro imaginar que o tribunal de Justiça ou o tribunal federal pagasse por um
anúncio de abertura de inscrições para concurso de ingresso em suas carreiras.
Nas próximas colunas, far-se-á o exame das universidades, da formação discente e das
carreiras jurídicas francesas. Será mais uma oportunidade para se contrastar a
experiência de uma nação que muito influenciou e ainda influencia o Direito brasileiro e
suas instituições jurídicas e judiciárias, a despeito de sua substituição, nos últimos 30
anos, por novos paradigmas, como a Alemanha e os Estados Unidos.
P.S. Na confecção das colunas sobre o Direito francês, o autor contará com o importante
auxílio dos professores Fernando de Castro Fontainha (Uerj), Alexandre Veronese
(UnB) e Reinaldo Couto Filho (Uneb), representantes da nova geração de docentes
brasileiros de formação francófona.
[1] RIPERT, Georges. La règle morale dans les obligations civiles. Paris: LGDJ, 1925.
O império da República
Luís XIV (1638-1715), o rei-sol, autor da famosa frase “o Estado sou eu” (L’État c’est
moi”), é considerado o grande responsável pela consolidação do conceito de estado-
nacional francês e pela consagração do regime absolutista. Sua infância foi
profundamente marcada pelo movimento da Fronda, uma reação político-militar da
aristocracia francesa contra o processo de centralização dos poderes na pessoa do rei,
por meio de uma política tributária opressiva, algo que se iniciou com o regime dos
“validos reais”, os ministros e cardeais de Richilieu e Mazarino. A revolta dos nobres
gerou revoltas em Paris, que ameaçaram a vida da Família Real.
Uma nova França nascia daquele mar de sangue que foi o período do Terror. Quando
Napoleão, após ter sido um cabo de guerra do regime revolucionário, tomou o poder no
18 Brumário, ele tentou refundar o país com um arranjo insustentável: unir a velha
aristocracia das Cruzadas com os novos “aristocratas” da espada, forjados nas guerras
revolucionárias e napoleônicas. O ideal igualitário, tingido pelo sangue de tantos nobres
assassinados, foi apagado no curto período do Império de Napoleão I. A iniciativa não
deu certo. Em 1815, há 200 anos, o Exército Imperial seria derrotado por uma
coalização de monarquias nos campos belgas de Waterloo pelo irlandês Duque de
Wellington e pelo general prussiano Blücher.
Convém agora fazer um exame das principais carreiras jurídicas em França, suas
atribuições e suas formas de acesso.[1]
De modo vulgar, pode-se dizer que esses níveis guardam correspondência na estrutura
do Ministério Público, cujos cargos também variam conforme os graus, os tribunais de
grande instance, a Corte de Apelação e a Corte de Cassação. No segundo grau, por
exemplo, tem-se o substituto de procurador da República. No primeiro grau, o
procurador da República, com diversas variantes de nomes e funções. E, na hors-
hiérarchie, o procurador da República e o procurador da República adjunto. Na Corte
de Apelação, porém, há o procurador-geral e o advogado-geral. Ao passo em que, na
Corte de Cassação, têm-se o advogado-geral, o primeiro-advogado-geral e o procurador-
geral.
e) Juízes dos tribunais de comércio — Outra função muito antiga é a de juiz dos
tribunais do comércio, todos eles comerciantes que atuam sem remuneração e que se
elegem por escolha de seus pares. O mandato inicial é de dois anos e, posteriormente, de
quatro anos. É vedada a atuação por mais de quatro mandatos consecutivos.
Em 1990, criou-se o Conselho Nacional das Ordens dos Advogados, por efeito da Lei
de 31 de dezembro de 1990, que consiste em “uma associação de utilidade pública,
dotada de personalidade jurídica, encarregada de representar a profissão de advogado
junto dos poderes públicos e de zelar pela harmonização e pela unificação das regras e
costumes da profissão”.[4]
Conselho de Estado e na Corte de Cassação. Sua indicação para esse múnus é devida a
ato do Ministro da Justiça. Eles formam uma corporação à parte, com uma ordem
específica e distinta dos demais advogados. Desde 1814, o número desses advogados
limita-se a 60 membros. No entanto, ainda segundo a Rede Judiciária Europeia, “o
decreto de 22 de abril de 2009 permite ao Ministro da Justiça criar, por decreto, novos
postos de advogado junto do Conselho de Estado e do Tribunal de Cassação, para
assegurar uma boa administração da justiça dado o aumento do contencioso perante
estes dois órgãos jurisdicionais”.
[1] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial: https://e-
justice.europa.eu/content_legal_professions-29-fr-pt.do?member=1. Acesso em 12 de
maio de 2015.
[4] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial: https://e-
justice.europa.eu/content_legal_professions-29-fr-pt.do?member=1. Acesso em 12 de
maio de 2015.
1. Entrando na universidade
O ingresso na Faculdade de Direito na França é universal e não depende de exame
vestibular, mas com a obtenção do baccalauréat, que, conforme definido na página do
Ministério da Educação francês, é um diploma criado em 1808, que tem a dupla
finalidade de sancionar o final do ensino secundário e marcar o acesso ao ensino
superior.[1] Essa ampla abertura faz com que o filtro realmente ocorra no primeiro ano
do curso de Direito, quando “aproximadamente um quarto dos estudantes será depurado
da formação jurídica, processo este que se intensificará com a busca pelos diplomas
superiores, que oferecem muito menos vagas, e se completará na busca pelos exames e
concursos de acesso às profissões jurídicas”, segundo Fernando Fontainha.[2]
As aulas também seguem o modelo alemão, italiano e português: estilo magistral, com
alunos reunidos em grandes espaços (auditórios, anfiteatros e salas amplas) e com a
centralidade do professor. Não é usual o emprego de métodos alternativos de ensino,
salvo projetores em algumas aulas. As exposições seguem o conteúdo dos programas,
com forte carga teórica. Nesse ponto, os franceses estão mais próximos dos italianos e
portugueses do que dos alemães, pois estes últimos privilegiam o método do caso.
Quanto aos livros, em Direito Civil, por exemplo, seguem-se os manuais clássicos, em
geral editados em brochuras no formato de bolso ou superbolso, com papel mais barato
e a preços acessíveis.
As avaliações são rigorosas, até porque é por meio delas que se filtra o enorme número
de admitidos nos cursos jurídicos. Na maior parte das faculdades de Direito, há duas
avaliações por semestre. As provas não são identificadas e a ausência implica atribuição
de nota zero. Existem também avaliações orais e faz-se um complexo sistema de
contagem de notas para que o candidato prossiga para as fases seguintes. O aluno pode
receber as seguintes menções: a) passable: nota superior ou igual a 10/20 e inferior a
12/20; b) assez bien: notasuperior ou igual a 12/20 e igual a 14/20; c) bien: notasuperior
ou igual a 14/20 e inferior a 16/20; d) menção très bien: nota superior ou igual a 16/20.
Abaixo de 10/20 (equivalente a um 5 no Brasil), o candidato é reprovado.
O Doctorat reliza-se em um prazo de três anos, embora não haja aulas obrigatórias e o
tempo seja dedicado à pesquisa, em geral realizada nas bibliotecas, com uma rotina de
imersão na literatura sobre o tema, associada ou não à pesquisa de campo, conforme o
objeto investigado. No Arrêté de 2006, menciona-se também que o aluno deve
participar de seminários, estágios e atividades organizadas no âmbito da pós-
graduação. O limite de três anos pode ser renovado após aprovação do pedido por um
colegiado da Faculdade de Direito, com manifestação do orientador e do coordenador
do curso de doutorado. Existem casos de doutorandos que estendem seu doutoramento
por dez anos.
Esse maior rigor na outorga dos títulos doutorais, ao menos no que se refere ao Direito,
criou uma tradição de edições de teses por grandes editoras jurídicas. É conhecida a
Biblioteca de Teses Dalloz e as publicações da LGDJ, ambas de renome internacional.
O candidato à HDR tem seus documentos examinados por três relatores (dois deles
devem ser externos à instituição para a qual se apresentou a inscrição), os quais hão de
apresentar um parecer escrito e fundamentado. Antes da apresentação perante banca
examinadora, se os pareceres recomendarem a defesa pública pelo candidato, são
distribuídas cópias de um resumo do trabalho do inscrito para os professores da
universidade. A banca examinadora será composta por, no mínimo, cinco membros. A
exogenia é preservada também nesta fase: ao menos dois dos membros devem ser de
outras instituições, admitindo-se a convocação de estrangeiros, e a eles caberá a
elaboração de parecer sobre a defesa.
3. O currículo
A estrutura curricular é variável conforme a universidade. Veja-se, por exemplo, o curso
de Direito e Ciência Política da Universidade de Bordeaux.[7] No primeiro semestre,
com total de 175 horas, há disciplinas de Introdução geral ao Estudo do Direito, Teoria
Geral do Direito Constitucional, Introdução Histórica ao Direito, Instituições
Jurisdicionais e, à escolha do aluno, tem-se o direito de cursar 2 disciplinas: História
Contemporânea, Problemas Econômicos Contemporâneos ou Inglês. No segundo
semestre, com 195 horas, estuda-se Direito Civil, Direito Constitucional, História das
Instituições, Instituições Administrativas. Pode-se ainda escolher duas disciplinas de
entre estas: História das Ideias Política, Problemas jurídicos, filosóficos e sociais
contemporâneos, Espanhol, Alemão e Atividades Físicas e Esportivas.
No segundo ano, são as seguintes disciplinas: a) Primeiro semestre (200 a 205 horas):
Direito Civil 1, Direito Administrativo 1, Instituições Europeias e Introdução ao Direito
Internacional Público.Podem ser escolhidas duas de entre estas matérias: Inglês,
Espanhol, Alemão, História das Instituições Jurisdicionais, Filosofia do Direito e
Direitos Constitucionais Europeus; b) Segundo Semestre (210 a 215 horas): Direito
Civil 2, Direito Administrativo 2, Regime Geral da Obrigação e Direito das Coisas. À
escolha dos alunos, têm-se duas matérias de entre estas: Inglês, Espanhol, Alemão,
Ciência Política, Introdução ao Direito Penal e à Ciência Criminal, Política Econômica e
Orçamentária; Pré-profissionalização para carreiras educacionais.
O terceiro ano, último do ciclo da licenciatura, perfaz um total de 240 a 261 horas,
também se divide em 2 semestres letivos, mas com uma maior oferta de disciplinas e
com a escolha pelos alunos tanto nas obrigatórias quanto nas optativas.
No primeiro semestre, o aluno deve cursar 2 disciplinas da seguinte lista: Direito Civil
(Contratos em espécie), Direito do Trabalho 1 (Relações coletivas de trabalho), Direito
dos Negócios (Direito Comercial Geral), Processo Civil (Teorias da jurisdição e da
ação), Direito Penal Geral, História do Direito 1 (História do Direito dos Contratos e
dos Seguros), Direito das Liberdades Fundamentais, Direito Internacional Público
(Sistema Jurídico Internacional) e Direito Administrativo (Responsabilidade Civil das
Pessoas Jurídicas de Direito Público). Pode-se ainda escolher três disciplinas, à exceção
das já transcritas, de entre as já referidas no primeiro grupo deste parágrafo, com
acréscimo de Direito Orçamentário, História do Direito 2 (Instituições Políticas e
Sociais da Antiguidade) e Processo Civil. Remanescem ainda Inglês, Espanhol e
Alemão.
No segundo semestre, com um total de 240 a 266 horas, persiste o sistema de escolha de
duas disciplinas de entre estas: Direito Civil 2 (Direito dos Seguros), Direito do
Trabalho 2 (Relações Individuais de Trabalho), Direito dos Negócios (Direito
Societário), Processo Penal (Órgãos, Ações e Princípios Reitores), História do Direito 3
(História do Direito das Coisas), Direito da União Europeia, Direito Internacional
Público 2 (Sanções do Direito Internacional) e Direito Administrativo 2 (Contencioso
Administrativo). Finalmente, escolhem-se duas de outro grupo, no qual se reproduzem
as citadas neste parágrafo, além do Direito Tributário e História do Direito 4 (História
do Pensamento Jurídico). Como sempre, ainda há a possibilidade de se cursar duas
disciplinas de línguas (Inglês, Alemão ou Espanhol).
***
A próxima e última coluna sobre o ensino jurídico francês cuidará das faculdades de
Direito e da formação profissional. Agradeço ao professor Reinaldo Couto (UNEB) por
sua contribuição para esta coluna.
A estrutura física dos cursos é variável e não é possível fazer uma descrição genérica de
qualidades de “uma” faculdade de Direito. Nas mais importantes, contudo, prevalece a
estrutura tradicional de salas, anfiteatros e auditórios, cujo espaço é inversamente
proporcional à evolução do curso, dada a existência dos filtros ao longo do estudo
universitário, como já salientado em outras colunas.
2. O professor de Direito
Se a faculdade de Direito não é mais uma instituição central para a formação da elite
política e administrativa em França, o professor de Direito conserva um status
comparável ao catedrático alemão ou português.
A carreira de docente jurídico em França, diversamente do que ocorre no Brasil, não é
socialmente representada de modo inferior do que em relação a outras carreiras no
Direito. A causa disso é dúplice: não há tantos professores como no Brasil (e existe uma
hierarquização que permite pagar remunerações bem assimétricas entre os níveis inicial
e final na carreira) e inexiste, como no Brasil, a diferenciação de remuneração entre
carreiras jurídicas e não jurídicas, como já salientado nas colunas anteriores. Some-se a
isso a impossibilidade de acumulação de remunerações públicas, o que torna o modelo
francês um exemplo típico de monoprofissionalismo do docente. A importação deste
modelo para o Brasil implicaria, contudo, a existência de 3 condições aqui ausentes: a)
carreiras simétricas no serviço público; b) número menor de docentes (o que é facilitado
pelas turmas com 100, 200 alunos) e c) hierarquia na carreira professoral.
Há, contudo, muitas críticas em França aos valores pagos aos docentes e ao modo de
evolução remuneratória, que implica uma dobra ao longo da carreira, o que é
considerado injusto.
As aulas dos institutos são orientadas para as matérias das provas de acesso e não se
limitam aos conteúdos jurídicos, mas também ao modo como se deve portar nos
exames.
“M. Miaille – Podemos fazer perguntas um pouco difíceis, às vezes, dizendo talvez que
o candidato não saberá, mas, veremos como ele responde. Eu tomo um exemplo. (...) Eu
fiz uma pergunta a uma candidata, que foi: ‘você saberia...’ sim eu coloquei no
condicional para que isso não parecesse como uma evidência... ‘você saberia qual era a
língua pela qual Cristo falava com seus discípulos?’ Que língua se falava na Palestina?
Pergunto ao senhor... o que você responderia? [Apontando com o dedo]”[11].
4. Conclusão
Encerra-se hoje a parte relativa ao ensino jurídico francês. É pretensão do colunista
prosseguir, a despeito do caráter extenuante que tem sido realizar esta pesquisa e
condensar tantas informações em um espaço tão restrito. Agradeço imensamente aos
leitores que me tem apoiado nesta iniciativa. Sim, se tudo der certo, as colunas serão
reunidas em um livro. É uma promessa que já fiz a mim mesmo. Precisamos apenas sair
da Europa e atravessar o Atlântico para cuidar de alguns países da América. Até breve!
Ao final do dia, Haroldo Hardadra e o conde Tostig receberam a terra prometida pelo rei
Harald, onde até hoje descansam juntamente com os 8 mil soldados noruegueses
mortos, dos 9 mil que entraram em ordem de batalha.
Em 1940, a frase de Harald seria repetida. Não em uma conversa ao pé da batalha, mas
em um discurso no Parlamento britânico, proferido pelo recente primeiro-ministro
Winston Churchill, após a queda da França e a conquista de quase toda Europa pelos
alemães. A uma proposta de Hitler para que fizessem um acordo de paz, Churchill disse
no Parlamento: “A mesma promessa feita nos campos de Hastings, há quase mil anos,
está de pé. Ao Sr. Hitler, só posso oferecer sete palmos da boa terra inglesa. E nada
mais!”
Esses dois episódios simbolizam o caráter insular da História das ilhas britânicas, para
não se referir ao próprio povo, embora se rejeite esse tipo de explicação estruturalista.
Essa insularidade revela-se em quase tudo e, no Direito, com maior intensidade ainda.
Dario Moura Vicente, cujo livro é a melhor obra em língua portuguesa sobre Direito
Comparado (equiparável aos grandes clássicos de René David), transcreve uma
passagem da aula inaugural de Blackstone, em 1758, na Universidade de Oxford, que é
explicativa sobre as causas dessa singularidade do Direito inglês: “Não devemos
preferir o edito do pretor ou o rescrito do imperador romano aos nossos costumes
imemoriais ou às leis de um Parlamento inglês; a não ser que prefiramos também a
monarquia despótica de Roma e Bizâncio, para cujas populações os primeiros foram
gizados, à Constituição livre da Grã-Bretanha, que os últimos estão aptos a
perpetuar”.[3]
A formação jurídica inglesa fica, portanto, a meio caminho do que ocorre nos Estados
Unidos, onde os cursos de Direito não são graduações no sentido continental, e o que se
opera na Europa. Essas diferenciações têm enorme relevância para qualquer estudo
nesse campo.
[1] O episódio é narrado em: CHURCHILL, Winston S. Uma história dos povos de
língua inglesa. Edição condensada dos quatro volumes por Henry Steele Commager.
Tradução de Vera Giambastiani, Antonio Sepulveda e Gleuber Vieira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, Univercidade, 2009. p.45-46.
[2] MOURA VICENTE, Dario. Direito comparado. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2014.
v.1 p.225-228.
Introdução
Na coluna passada, começamos a análise do modelo jurídico inglês de ensino,
formação, estrutura universitária e de carreiras profissionais. Nossa análise hoje se
ocupará da regulação do ensino jurídico, o acesso à universidade, a formação do futuro
jurista na Inglaterra e no País de Gales.
O texto de hoje é fortemente baseado no relatório para a Inglaterra e País de Gales sobre
o papel da prática na formação jurídica, elaborado por Julian Lonbay, da Universidade
de Birmingham.[1] Agradeço ao lecture Mattew Dyson, da Universidade de Cambridge,
pelo auxílio nesta série de colunas.
A divisão entre SRA e BSB dá-se por efeito de uma divisão da advocacia em duas
classes: solicitors e barristers, uma tradicional e antiga peculiaridade inglesa. Os
solicitors são representados pela Law Society. A representação dos barristers cabe ao
Bar Council. É absolutamente equivocado dizer que tanto a Law Society quando o Bar
Council seriam uma “OAB inglesa”, como é frequente se ler em algumas publicações.
Nenhuma dessas entidades possui natureza institucional ou prerrogativas político-
jurídicas semelhantes ao que é conferido à OAB pela Constituição e pelo Estatuto da
Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Em outra coluna, vai-se tratar
especificamente das profissões jurídicas inglesas e galesas. No entanto, adiantam-se
duas diferenças básicas entre solicitors e barristers: os últimos elaboram peças, emitem
pareceres e eventualmente lecionam nas universidades. Eles não representam
diretamente as partes em juízo e, duramente séculos, exerceram o monopólio da
sustentação oral nos tribunais superiores. Essa restrição desapareceu de direito, mas, de
fato, só os barristers têm exercido esse papel nos dias de hoje. Quantos aos solicitors,
eles têm a função da representação judicial e extrajudicial das partes. Eles são os
advogados, no sentido brasileiro, nos processos judiciais e em negócios jurídicos que
dependam da participação de um profissional dessa natureza.
A SRA é um órgão regulatório da profissão de solicitor, ao passo em que o BSB exerce
idêntica função em face do barristers.
A SRA é uma entidade que exerce uma função regulatória dos serviços jurídicos dos
solicitors e bancas de advocacia, que foi instituída pelo Legal Services Act de 2007,
tendo por objeto a defesa do interesse público, da rule of law, a melhoria da Justiça, a
proteção e a defesa da concorrência dos serviços jurídicos, a defesa dos consumidores e
o estímulo a uma boa formação dos profissionais do Direito.
Por sua vez, o BSB foi criado para idênticas funções em relação aos barristers. Sua
composição é mista, tendo em seu conselho barristers e leigos, o que se justifica por
uma necessidade de se dotar a classe de alguma forma de controle externo.
Segundo dados de 2008, 27.384 mil estudantes candidataram-se a um vaga nos cursos
jurídicos ingleses e galeses, tendo sido admitidos 19.020 postulantes, o que implica um
percentual de 69,5% candidatos aprovados.[7]
A estrutura do curso jurídico na Inglaterra e no País de Gales
Como vimos nas várias colunas anteriores, o ensino jurídico europeu foi transformado
após a Declaração de Bolonha e, salvo exceções, sua estrutura é baseada em ciclos,
sendo que o primeiro deles corresponde a uma média de 3 anos, seguido de 2 anos de
formação complementar acadêmica (o “Mestrado de Bolonha”) ou de formação
profissional voltada para os Exames de Estado. Na Inglaterra e no País de Gales, um
curso jurídico padrão dura 3 anos, à semelhança do ciclo de formação básica europeia. É
possível que ele se estenda por mais 1 ano se o aluno optar por cursar disciplinas de
outra faculdade.[8]
Existem ainda cursos jurídicos com duração de 2 anos, mas que exige do aluno a
comprovação de que ele já é graduado em outra faculdade. [9] Por fim, é também
possível obter o GDL – Graduate Law Diploma Courses, que é realizado em apenas 1
ano, em circunstâncias específicas (desenvolver).[10]
O terceiro aspecto está na leitura prudente sobre outra afirmação comum hoje no debate
sobre reformas curriculares no Brasil. O modelo inglês não adota uma variedade
significativa de conteúdos curriculares “inovadores”. Em verdade, como se observou da
enumeração acima, eles são tradicionais e voltados para a boa formação de um
profissional que irá atuar nos espaços da advocacia, magistratura e Ministério Público.
Evidentemente que cada instituição inglesa ou galesa possui liberdade para conformar
suas matrizes curriculares e que existem inúmeras disciplinas que mesclam conteúdos
jurídicos, políticos, econômicos ou de administração. No entanto, estas matérias
atendem a uma demanda comum aos cursos jurídicos e não jurídicos, bem como às
escolhas formativas dos estudantes. Não se constituem, porém, no eixo central da
formação e nem se integram em um projeto uniforme ou em um planejamento
acadêmico mais abrangente.
Um ponto também notável é que o curso jurídico anglo-galês, nesta chave, é mais
próximo da realidade norte-americana, no que se refere ao compartilhamento de
disciplinas e à abertura para alunos e docentes estrangeiros. O multiculturalismo e a
diversidade, que são marcas da sociedade inglesa contemporânea, revelam-se também
nos cursos jurídicos.
***
[1] LONBAY, Julian. Report for England and Wales: the role of practice in legal
education. p. 1-19. Abr. 2010.
[2] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[3] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[4] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[5] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[6] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[7] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[8] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[9] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[10] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
Abandonado pelos britânicos, o emprego das perucas resistiu no Poder Judiciário e é até
os dias de hoje encontrável não só no Reino Unido, mas em diversas ex-colônias e
domínios do antigo Império Britânico. Desde 2008, no entanto, as perucas deixaram de
ser usadas no cotidiano das principais cortes do Reino Unido. Elas sobrevivem em
sessões cerimoniais, nas divisões criminais e algumas situações que podem ser descritas
como residuais.
As profissões jurídicas inglesas e galesas, para se manter fiel ao escopo desta parte da
série de colunas sobre como se forma um jurista em alguns países do mundo, têm sido
alcançadas pelas grandes e silenciosas transformações da sociedade britânica dos
últimos 20 anos. E é sobre essas profissões o objeto desta coluna, colocando-se ênfase
nas particularidades da formação inglesa.
O curso de Direito não é pré-requisito para o ingresso nas principais carreiras jurídicas e
há uma nítida divisão de funções entre a formação acadêmica e a formação para as
profissões jurídicas, cabendo a primeira ao locus universitário e a segunda aos órgãos de
classe.[1]
O impedimento a que os solicitors atuassem nos tribunais superiores foi abolido graças
às reformas dos serviços jurídicos iniciadas com o Courts and Legal Services Act 1990.
No entanto, ainda persiste o hábito de os solicitors indicarem os barristers para essa
atuação. Como se verá a seguir, cabe aos barristers a elaboração de pareceres e a
redação de peças processuais de maior importância. Há outra interessante divisão de
trabalho aqui: os solicitors obtém provas, dialogam com os clientes sobre os fatos,
investigam elementos de fato que podem ser úteis ao julgamento, conversam com
testemunhas e “preparam” o caso para a redação de petições pelos barristers.
A Law Society é o órgão que congrega e representa os solicitors. Fundada em 1825, ela
atua como órgão de regulação e de representação da classe. Com a reforma dos serviços
jurídicos, as funções regulatórias são exercidas por intermédio da Solicitors Regulation
Authority, com funções que hoje extrapolam o mero interesse corporativo e alcança o
interesse público, a Justiça e os direitos dos consumidores de serviços jurídicos. A parte
disciplinar cabe ao Office for Legal Complaints, órgão com atribuições de ouvidoria e
de recepção de queixas de usuários dos serviços advocatícios.
Pode-se tornar um solicitor por duas vias principais: a obtenção do título de bachelor of
laws (denominado de bachelor of arts em Cambridge e Oxford até hoje), após a
conclusão de uma graduação em Direito, ou outro curso não jurídico (vide coluna
anterior), seguido da aprovação no Common Professional Examination (para não
graduados em Direito) e de um curso de prática jurídica, além de um estágio
profissional de 2 anos em um escritório dirigido por solicitors mais antigos.
A etapa final de ingresso na profissão jurídica de solicitor é a “admissão ao rol”
(admission to the roll). Os dados da SRA permitem conhecer os nomes dos admitidos no
rol dos solicitors em 2015 (clique aqui). Não é um número muito expressivo,
considerando-se que a relação compreende toda a Inglaterra e o País de Gales. A leitura
dos nomes é também reveladora do grau de diversidade das origens étnicas dos
aprovados, o que comprova a afirmação da coluna passada quanto ao multiculturalismo
da sociedade inglesa atual.
Por simetria com os solicitors, que se organizam sob a Law Society, os barristers
subordinam-se ao General Council of the Bar, também conhecido por Bar Council. A
regulação profissional e seu controle externo está a cargo do Bar Standards
Board (BSB), formado por leigos e não leigos.
Um número bem menor de barristers integra o Queen’s Counsel (QC), embora haja
alguns solicitors indicados após a reforma que lhes deu o direito de atuar em tribunais
superiores. É uma posição de enorme prestígio e que permite a incorporação ao nome
do profissional das letras QC, geralmente entre parêntesis, como se fosse um título de
nobreza ou de professor catedrático. Embora não mais de modo exclusivo, é do QC que
saem as principais autoridades judiciárias do país e são esses profissionais que atuam
nos processos de maior complexidade.
Desde o Constitutional Reform Act 2005 (CRA 2005), os juízes dos tribunais superiores
e das cortes especializadas são nomeados pela rainha por indicação da Judicial
Appointments Commission (JAC), um órgão independente que recruta os candidatos à
magistratura em funções nos órgãos indicados no anexo 14 do CRA 2005.
3. Conclusões
As carreiras jurídicas inglesas e galesas são marcadas pela diferenciação de funções e
pelos rígidos controles das respectivas corporações. No campo da magistratura, a
seleção faz-se geralmente de entre os profissionais da advocacia, com preferência a
elementos com a experiência em sua especialidade jurídica.
O acesso à Justiça é caro. Entrar nas malhas do aparato judicial custa e não existe o
espírito de “aventurar-se” em questões, dadas as consequências economicamente
pesadas para os perdedores. As últimas reformas judiciárias tendem a ampliar a
independência do Poder Judiciário, mas não romperam com a ausência de centralidade
da burocracia judicial, que ainda é pequena e compartilha muitas funções com os leigos.
Nem juízes, nem professores, são os advogados na Inglaterra e no País de Gales a
ocupar a centralidade das carreiras jurídicas.
[1] Parte dos dados desta seção foram extraídos do Portal Europeu de Justiça: https://e-
justice.europa.eu/content_legal_professions-29-ew-pt.do. Acesso em 14-6-2015.
[2] Disponível em: http://www.sra.org.uk/sra/how-we-
work/reports/data/population_solicitors.page. Acesso em 15-6-2015.
O professor de Direito
A docência jurídica na Inglaterra e no País de Gales não é tão relevante quanto sua
homóloga nos países europeus continentais já estudados nesta série de colunas. Para
além dessa diferença, que é bastante em si mesma, há outras características da profissão
que a tornam bem peculiar em comparação com sua equivalente no resto da Europa.
Uma delas é a abertura para estrangeiros, o que se justifica pela universalidade do
idioma inglês e pela diretriz das instituições britânicas de seguirem o modelo norte-
americano de diversidade étnica e geográfica em seus corpos docente e discente.
Segundo dados do Instituto Universitário Europeu, em 2007, na LSE – London School
of Economics, uma das mais prestigiadas escolas do mundo, 47% dos professores eram
de origem não britânica.[1]
Não se limitando apenas à Inglaterra e ao País de Gales, mas a todo o Reino Unido,
pode-se também afirmar que há uma política de incentivos remuneratórios e de
financiamento de pesquisas mais próxima do que se pratica nos Estados Unidos, com
ênfase em controles de mérito acadêmico por meio de publicações em revistas
indexadas, participação em eventos internacionais e parcerias com o setor privado. Esse
“novo caminho” do ensino universitário britânico em geral não tem passado incólume a
críticas internas. A transformação da universidade em um espaço com objetivos, metas e
governança típicos de uma empresa não é algo aceito de modo silencioso. A cultura do
fordismo ou do controle de resultados acadêmicos – qualificação que pode variar
conforme sejam defensores ou críticos do modelo – instalou-se de modo firme nas
universidades.
Note-se que a idade média para se doutorar no Reino Unido é bem mais baixa que no
continente: 26-27 anos. Desse modo, a carreira de alguém interessado na docência
começa relativamente mais cedo. Outro aspecto digno de nota é que a falta de
familiaridade dos brasileiros com os títulos universitários britânicos. É bem comum
confundir-se um Fellow ou um Research Fellow com um professor no sentido usado na
Europa Continental ou mesmo com um professor submetido ao regime estatutário
brasileiro, o que não é correto. Essa confusão de nomes têm levado algumas
universidades a adotar a nomenclatura norte-americana: Assistant Professor, Associate
Professor e Full Professor. O peso da palavra “professor” é a razão dessa mudança.
A evolução na carreira não se dá de modo maquinal ou “controlável” por meio de
decurso de tempo. Faz-se necessário um estágio pós-doutoral para se chegar ao estágio
de Lecture A. A depender das qualificações, o candidato pode saltar diretamente para o
cargo de Lecture B. Atingir a condição de Professor é algo de depende das regras da
instituição e pode-se dar por diferentes modos: a) concurso para uma vaga aberta por
morte, aposentadoria ou remoção do titular para outra universidade; b) indicação dos
titulares das unidades acadêmicas, o que pressupõe um excelente currículo e, segundo as
más línguas, ótimas conexões políticas; c) participar de uma seleção interna, de acordo
com as regras de cada universidade, para progressão na carreira.
Aspecto interessante é que não existe a figura da defesa de uma tese de cátedra
(titularidade) e outra de livre-docência, como se dá nas universidades estaduais paulistas
e em algumas federais brasileiras. Mas, entende-se que o candidato ao cargo de
Professor deve ter publicado ao menos 2 livros em sua carreira. É muito forte nas ilhas
britânicas a figura da tomada de referências de um candidato. A instituição pede
opiniões reservadas sobre a pessoa e a carreira do postulante a pessoas do meio
acadêmico nacional ou estrangeiro. No Brasil, essas cartas de “referência” ou de
“recomendação” transformaram-se em verdadeiros textos hagiográficos. No Reino
Unido, são esperadas análises criteriosas e isentas por parte dos convidados a se
manifestar, sem qualquer constrangimento em se expressar opiniões críticas sobre o
candidato.
Como já salientado em colunas anteriores, a leitura isolada desses números é algo muito
superficial, até pelos problemas de se comparar instituições de grande porte com outras
médias ou pequenas. No Direito, tal situação é ainda mais difícil ante as diferenças de
modelos. Os ingleses e galeses estão mais próximos da realidade americana, salvo em
questões como ser o curso de Direito – em regra – uma graduação e não uma pós-
graduação.
Em outro ranking, do jornal The Guardian, exclusivo para cursos de Direito, assim
estão colocados os melhores cursos: 1) Cambridge; 2) Oxford; 3) Queen Mary; 4)
University College London; 5) LSE; 6) Durham; 7) Nottingham; 8) York; 9) King’s
College London; 10) The School of Oriental and African Studies – SOAS, University of
London.[5]
Conclusão
O ensino jurídico inglês e galês está a meio-termo dos modelos continentais europeus e
norte-americanos. Colocado em uma realidade britanicamente peculiar, esse modelo
não se centraliza na figura do docente e apresenta uma nítida divisão de tarefas
formativas entre a universidade (de 1 a 3 anos, a depender do tipo de curso) e as
corporações profissionais, estas últimas extremamente ciosas do número de ingressantes
e de sua qualidade, o que se revela por cursos de ingresso próprios e pela força de seus
órgãos de classe, a despeito de seu enfraquecimento no campo disciplinar nos últimos
anos.
Com professores bem remunerados, o que deve ser visto também em termos, dado o
elevado custo de vida nas ilhas britânicas, e com uma flexibilidade maior de carreira, o
Direito é ensinado pelo método de tutorias, associado às aulas magistrais e aos
seminários. A base da carreira é desproporcionalmente maior do que o topo, o que
permite o emprego de muitos auxiliares de ensino e assistentes no tutorial system.
***
[2] Disponível
em: http://www.eui.eu/ProgrammesAndFellowships/AcademicCareersObservatory/Aca
demicCareersbyCountry/UnitedKingdom.aspx#Higer. Acesso em 29-6-2015.
Seu prolongamento oriental, que durou até a queda de Constantinopla no ano de 1453,
também encontrou na pessoa de Justiniano o símbolo ideal de um monarca-legislador. O
Corpus Iuris Civiles é outra herança imortal de um império cujos vestígios em outros
campos do saber humano não lhes são comparáveis. Carlos Magno, tido como
restaurador da civilização no Ocidente, também é lembrado como um conquistador
militar e um legislador. Os impérios coloniais português e espanhol, ao lado da força
das armas, ergueram-se com base em estruturas burocráticas de significativa
dependência do Direito, a se ver pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas,
para não se mencionar outras tantas dos últimos 500 anos.
O Império Britânico também conjugou a força militar, mais precisamente sua gigantesca
Marinha Real, e um reduzido corpo burocrático que conseguiu administrar territórios
onde o Sol nunca se punha com esteio em uma respeitável estrutura jurídica. Os
britânicos, com seus documentos constitucionais ou pré-constitucionais, ao exemplo da
Magna Carta ou da Carta de Direitos, exportaram para o mundo ocidental os conceitos
de rule of law, liberdades individuais, democracia parlamentar e limitações recíprocas
aos poderes do Estado.
Um dos objetivos dos governantes britânicos do século XIX era alcançar a pax
britannica, o equivalente Oitocentista à pax romana, um conceito desenvolvido por
Otavio Augusto. A paz nas fronteiras e, mais que isso, dentro das fronteiras, era um
meio eficaz de se conseguir o desenvolvimento econômico sem que este fosse tragado
por gastos militares excessivos. Nesse sentido, o Direito atuava como um sucedâneo da
guerra na composição ou na solução de conflitos internos. Uma “ordem jurídica”, aqui
referida em tom metafórico, pois é difícil assimilá-la a estágios históricos pré-modernos,
era um instrumento essencial para que o império se conservasse estável. O longevo
império da dinastia Habsburgo, que se expandiu da pequena Áustria até boa parte da
Europa Oriental, Itália, Espanha e parte da Holanda, foi outro exemplo dessa
combinação entre Direito e poderio militar, com o adicional toque da exímia atuação
diplomática, cujos resultados, no entanto, volviam para o campo jurídico sob a forma de
tratados internacionais.
Todo império perecerá é o título principal de uma obra de Jean-Baptiste Duroselle, que
se tornou mundialmente famosa. Pode-se aproveitar desse título para dizer que, de fato,
o destino de todos os impérios foi ou será sua ruína. As causas podem variar, mas o
resultado é inevitável. É também correto dizer que os impérios se sucedem. Hoje, os
Estados Unidos da América são o país que mais se aproxima desse conceito. Seu
domínio, desde o fim de seu homólogo no Oriente, o Império Soviético, é hoje
inquestionável e só encontra algum contraponto no renascimento do Império Chinês
(em termos econômicos) e no ainda respeitável poderio militar da Federação Russa,
sucessora do Império Soviético (e este do Império Czarista).
Veja-se que o grande conflito interno do século XIX foi a Guerra Civil norte-americana.
O presidente que conduziu a vitória do Norte contra o Sul foi o advogado Abraham
Lincoln e este não se furtou de usar o Direito em prol da causa nortista e
antiescravagista. Dois exemplos podem ser mencionados a este propósito. O primeiro
refere-se à Proclamação da Emancipação de 1863, que assumiu a natureza jurídica de
uma executive order presidencial. Por esse ato, Lincoln declarou livres todos os
escravos que habitassem os territórios confederados. Diversos efeitos políticos e
jurídicos advieram desse ato, um deles foi afirmar o caráter emancipacionista da guerra
em termos claramente normativos. Outro efeito estava no reconhecimento de que os
proprietários de escravos não seriam indenizados. Como se tratava de uma executive
order, sem aprovação do Congresso, e que se chocava com a própria Constituição,
Lincoln lutou – por meios legítimos e ilegítimos – para a validação de seu ato por meio
de uma emenda constitucional, que passou à História como a Décima Terceira Emenda,
aprovada que foi em 31.1.1865. Este foi o segundo exemplo da importância do Direito
para a vida norte-americana.
A escravidão foi um conflito que poderia ter sido resolvido juridicamente – por uma lei
ou por decisões da Suprema Corte. Só uma guerra conseguiu dissolvê-la. E, com isso,
na sequência de Lincoln, elegeu-se um presidente militar, o general Ulysses Simpson
Grant (governo de 1869 a 1877), da mesma forma como o general Eisenhower foi
eleito após o mandato de Truman, vice-presidente de Roosevelt e eleito por um
mandato, na sequência da Segunda Guerra Mundial.
No século XX, Franklin Delano Roosevelt introduziu uma série de leis de intervenção
no domínio econômico e social, no âmbito do que foi chamado de New Deal. Essas
medidas começaram a ser invalidadas por juízes da Suprema Corte, especialmente os
justices Pierce Butler, James McReynolds, George Sutherland e Willis Van Devanter,
chamados de “os quatro cavaleiros”, em uma alusão aos quatro cavaleiros do
Apocalipse. Roosevelt cogitou de submeter ao Congresso americano uma emenda
constitucional para refrear a atuação da Suprema Corte, mas foi dissuadido dessa ideia.
Instaurou-se no país uma enorme polêmica sobre a permanência no tribunal de juízes
com mais de 70 anos e a sociedade dividiu-se entre os críticos e os defensores de uma
maior liberdade de intervenção estatal na economia e de um papel mais ativo ou não do
Poder Judiciário. A crise só foi superada após uma mudança de posição de um membro
da Suprema Corte e, com isso, se permitiu a alteração na jurisprudência sobre os limites
do poder presidencial.
Na questão dos direitos civis e da igualdade racial, a Suprema Corte mudou lentamente
sua orientação sobre o tema, na sequência de leis de emancipação que começaram a ser
editadas na segunda metade do século XX. Mais recentemente, após grandes
julgamentos envolvendo a legislação de seguro-saúde (Obamacare) e o casamento
igualitário, retoma-se o debate sobre qual o papel da Suprema Corte e, indiretamente do
Direito, na solução dos grandes conflitos da sociedade americana.
No Direito, porém, a crise chegou e com enorme violência. Já se escreveu coluna sobre
a gravidade do problema nos Estados Unidos, oportunidade na qual se noticiou a
criação de uma Força-Tarefa para o Futuro da Educação Jurídica nos Estados Unidos
(Task Force on the Future of Legal Education). Reflexo ou não dessa crise está na
queda dos níveis remuneratórios dos advogados norte-americanos. De acordo com os
dados do órgão oficial do Governo, o Bureau of Labor Statistics, os médicos de
diferentes especialidades ocuparam as 9 primeiras posições no ranking de remuneração
média anual do ano de 2013, que vai de 235.070 dólares (primeiro lugar, médico
anestesiologista) até 182.660 dólares (nono lugar, médico psiquiatra). Os advogados
estão em 21o lugar, abaixo de engenheiros, dentistas, gerentes de marketing, piloto de
avião, presidentes de empresas e analistas de sistemas, com uma renda média anual de
131.990 dólares.[2]
Com as desculpas necessárias aos leitores por uma transcrição de tal modo extensa,
inicio a segunda coluna sobre o ensino jurídico nos Estados Unidos. E o faço na
companhia de um homem excepcional, o autor da passagem reproduzida, que vem a ser
o austro-húngaro naturalizado norte-americano Hans Kelsen, um dos mais influentes
juristas do século XX nos países da tradição romano-germânica.
Muito bem, é conveniente expor como são os cursos jurídicos nos Estados Unidos.
Após concluir a high school, o aluno norte-americano não pode ingressar em uma law
school. Ele precisa ter frequentado um curso de duração média de 4 anos em um college
ou uma universidade, que lhe conferirá o título de bachelor of Arts (B.A.) ou bachelor of
Science (B.S.). Somente após essa etapa é que esse graduado pode ser admitido em uma
law school.
A entrada na law school depende de alguns requisitos, que variam de universidade para
universidade. É muito comum encontrar-se, de entre esses requisitos, a realização de um
teste admissional de caráter objetivo, que vem a ser o Law School Admission Test –
LSAT, encontrável não apenas nos Estados Unidos mas também no Canadá, na
Austrália e em outros países da tradição de common law. O exame compreende questões
de múltipla escolha, nas quais se objetiva avaliar a capacidade de raciocínio lógico, de
compreensão de texto e de raciocínio analítico dos candidatos.
Somente após se haver tornado Juris Doctor é que o egresso da law school se pode
colocar no mercado de trabalho como advogado, juiz ou promotor. No caso da
advocacia, como se verá posteriormente, ele será submetido a um Bar Examination, que
geralmente se traduz por Exame de Ordem, mas é uma aproximação puramente literária
e não propriamente fiel ao conceito brasileiro homólogo, como também se verá em
outra coluna.
Existem ainda alguns cursos que permitem uma formação mais rápida. Trata-se do
accelerated JD program, oferecido, por exemplo, pelas universidades do Arizona, do
Kansas, de Iowa e de Columbia. O aluno pode obter um grau de bachelor em 3 anos e
um Juris Doctor em mais 3 anos. É o programa 3+3. Encontram-se também os diplomas
acelerados de JD em 2 anos.
Para compreender esse modelo, é necessária abordar o method case, aludido por Kelsen
em sua Autobiografia, e o problema dos currículos jurídicos. A próxima coluna iniciar-
se-á com esses dois tópicos.
[4] CLARK, Jessica L. Grades Matter; Legal Writing Grades Matter Most (2013).
Georgetown Law Faculty Publications and Other Works. Paper 1236.
Sua aclimatação no Brasil, que é defendida por alguns, deve levar em consideração
todos esses elementos. Não se pode considerar, de modo apriorístico, o case method
superior ao lecture method, muito menos admiti-lo como mais moderno — ele tem mais
de 100 anos — ou mais eficaz — a atual crise americana põe em dúvida esse êxito. Ele
é apenas um de entre os métodos disponíveis e deu certo durante muito tempo em uma
sociedade capitalista avançada, com elevado nível de competição e com a forte marca
de que o fracasso não admite solidariedade. Os alunos dedicam-se fortemente ao estudo
de seus casebooks e a vida universitária é tomada pela preocupação com a solução
desses casos. Como elemento negativo, está o desinteresse por sistematizações, teorias
gerais e questões metajurídicas.
O método alemão, que foi descrito nas colunas sobre o ensino jurídico na Alemanha,
tem diversos elementos do case method, mas com a necessária combinação com o
lecture method (as aulas magistrais) e um forte amparo no conhecimento literal da
legislação. Para além disso, os alemães acreditam na existência de “uma resposta
correta”, embora trabalhem com situações criadas pelos elaboradores dos casos, muitas
delas com enorme complexidade fática.[5]
O primeiro ano (First Level ou 1L) é a etapa mais importante para a formação jurídica
do aluno. Em Harvard, ingressam no 1L um número aproximado de 560 alunos, que se
dividem em 7 seções compostas por 80 estudantes, cada uma delas sob coordenação de
um docente sênior. É neste período que os alunos da Harvard Law School) são levados
a cursar as seguintes disciplinas obrigatórias: a) Direito Processual Civil (Civil
Procedure), b) Contratos (Contracts), que corresponde parcialmente a nosso conteúdo
de Direito das Obrigações, Direito dos Contratos e parte do Direito das Coisas; c)
Direito Penal (Criminal Law); d) Legislação e Regulação (Legislation and
Regulation), que abrange parte do conteúdo do que seria o Direito Constitucional; e)
Property, que corresponde parcialmente a nosso conceito de Direito das Coisas, dada a
ausência de linhas muito claras entre negócios jurídicos de translação dominial e o
Direito dos Contratos; f) Responsabilidade Civil (Torts); g) Direito Internacional ou
Comparado (International or Comparative Law); h) Oficina de Solução de Casos
Práticos (Problem Solving Workshop).[6]
***
[1] Registre-se que A. Almeida Júnior, na aula inaugural dos cursos da Faculdade de
Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo, proferida em 18 de
março de 1947, fez uma bela descrição do ensino jurídico norte-americano e do case
method na década de 1940. A conferência foi intitulada “A propósito do ensino de
direito nos Estados Unidos” e fez-se publicar na Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, ano 1947, v.42, p.125 a 159.
[2] Demonstrando as diferenças entre o método socrático e o método do caso, veja-se:
JACKSON, Jeffrey D. Socrates and Langdell in legal writing: is the socratic method a
proper tool for legal writing courses? California Western Law Review. v. 43, n. 2, pp.
267-308, Spring, 2007.
[4] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Direito e educação jurídica nos
Estados Unidos. Revista Seqüência, n.º 48, p. 29-40, jul. de 2004. p.38.
[7] “Para a pesquisa de casos, leis e artigos jurídicos, os EUA contam com duas editoras
gigantes na área de publicações jurídicas: a WestLaw e LexisNexis. Ambas são
empresas privadas que dominam grande parte do mercado de publicações de leis, casos
e artigos jurídicos (tanto impressos, como via internet. Este último é o mais popular,
pois oferece consultas e resultados múltiplos e instantâneos. Para profissionais e
escritórios de advocacia, os serviços ofertados por estas empresas são altamente
onerosos. Para estudantes, o serviço é gratuito. A intenção é tornar os futuros
profissionais desde logo dependentes das aludidas ferramentas de pesquisa, que depois
passarão a adquirir em suas vidas profissionais” (SAMPAIO, Rômulo Silveira da
Rocha. Breve panorama do ensino e sistema jurídico norte-americano. Disponível em
http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/file/Breve%20Panorama%20do%20En
sino%20e%20Sistema%20Jur%C3%ADdico%20Norte-Americanos.pdf. Acesso em 5-
7-2015).
Um dos pontos nos quais se manifestam tais incompreensões está nos law journals
universitários norte-americanos. Para se limitar a duas das mais famosas revistas
jurídicas dos Estados Unidos, Yale Law Journal e Harvard Law Review, é interessante
destacar que esses periódicos são editados e geridos por estudantes de Direito e não por
docentes de Yale ou Harvard.
Ocorre que é preciso lembrar que os law journals estadunidenses não são editados
graduandos, mas por alunos de Direito que já cursaram estudos de graduação e, em uma
comparação pouco rigorosa, seriam alunos de pós-graduação. Finalmente, mesmo que
gerenciadas por estudantes, as revistas têm publicado trabalhos de professores, juízes e
pesquisadores. Essa realidade é objeto de críticas muito fortes nos dias de hoje, ao
exemplo de um artigo de 2004, escrito por Richard A. Posner, no qual ele lamenta que o
principal veículo para publicação de escritos acadêmicos nos Estados Unidos sejam as
revistas editadas por estudantes, muitos deles influenciados por professores e sem o
necessário isolamento intelectual sobre os temas. Desse modo, segundo Posner, as
revistas jurídicas acadêmicas têm prestigiado “assuntos da moda”, com forte
engajamento ideológico mas com pouca utilidade para a solução de problemas jurídicos
que precisam de auxílio doutrinário para sua resolução.[2] O artigo de Posner gerou
enorme polêmica e foi objeto de um artigo no qual se tentou refutar as críticas
publicadas na revista Legal Affairs.[3]
Quem dera tivéssemos esse tipo de debate no Brasil sobre a qualidade das revistas
jurídicas, editadas principalmente por professores, e os critérios utilizados para sua
qualificação nos indexadores oficiais de qualidade editorial.
3. As law schools norte-americanas
Quando A. Almeida Júnior realizou sua visita aos Estados Unidos, no último trimestre
de 1946, ele encontrou um país com 130 milhões de habitantes e 150 escolas de Direito,
ao passo em que o Brasil, na mesma época, tinha uma população de 45 milhões e 21
faculdades de Direito. Segundo o professor do Largo São Francisco, o Brasil
“precisaria, para igualar essa proporção, criar mais 25 institutos da mesma espécie”,
além dos que já possuía. E concluía Almeida Júnior: “Em outras palavras, encarado
como fenômeno estatístico de escolas, o bacharelismo norte-americano é mais do que o
dobro do nosso bacharelismo”.[4]
Há diversos rankings das escolas de Direito nos Estados Unidos. Um dos mais famosos
é o U.S. News Best Grad Schools, no qual estão assim dispostas as 10 melhores escolas
de Direito norte-americanas em 2015: 1) Yale University; 2) Harvard University; 3)
Stanford University; 4) Columbia University e Chicago University; 6) New York
University; 7) Pennsylvania University; 8) Duke University, University of California-
Berkeley e University of Virginia.[9]
Esses valores estão no centro da polêmica sobre a crise do ensino jurídico, que se tornou
mais saliente após 2008, quando a economia mundial entrou em recessão após o
escândalo dos fundos subprime, que arruinou várias instituições financeiras centenárias
e milhares de pessoas nos Estados Unidos. Paul Campos, ao tratar desta questão,
anotou que, ao se matricular na Escola de Direito de Michigan, em 1986, pagou uma
anuidade para o curso de tempo integral no valor de 4.420 dólares, equivalentes, ao
câmbio de 2011, a 9.000 dólares. A matrícula equivalente para o ano de 2012-2013
corresponderia a 48.012 dólares, o que implicou um aumento 10 vezes o valor original
no período de 1986 a 2012.[12]
A obtenção do grau de Juris Doctor por uma das 14 melhores universidades norte-
americanas implicava um alto nível de empregabilidade, seja no serviço público, seja
para as grandes firmas de advocacia. Exemplos desse status diferenciado não faltam.
Barack Obama é egresso da Harvard Law School e foi editor-chefe de sua revista
acadêmica quando aluno da instituição. O 19º presidente dos Estados
Unidos, Rutherford B. Hayes, também se formou em Harvard. 11 procuradores-gerais,
35 senadores e 15 justices da Suprema Corte foram diplomados em Direito por
Harvard. A Escola de Direito de Yale ostenta de entre seus egressos os presidentes Bill
Clinton e Gerald Ford. 9 procuradores-gerais, 25 senadores e 10 magistrados da
Suprema Corte dos Estados Unidos.
No entanto, o cenário pós-crise de 2008 não é mais tão róseo para os egressos das
escolas de Direito norte-americanas. Não há mais tantas vagas para jovens advogados e,
com isso, eles não têm como pagar os custos de sua universidade, o que gera um círculo
vicioso de inadimplemento com efeitos retroativos. E essa realidade finalmente
começou a tocar os alunos das melhores law schools[13] e, se nada for feito, em breve
muitos cursos terão de fechar porque suas receitas não estão a ser alimentadas pelos
egressos, que não conseguem se colocar no mercado de trabalho. A ideia de que a
formação em Direito seria uma forma sensata de se investir o dinheiro é um mito prestes
a ser desmascarado[14].
***
[2] POSNER, Richard A. Against the Law Reviews: Welcome to a world where
inexperienced editors make articles about the wrong topics worse. Legal Affairs, dec.
2004.
[12] CAMPOS, Paul. The crisis of the american law school. University of Michigan
Journal of Law Reform.
[15] Sobre o desinteresse nos cursos de LLM e JSD por norte-americanos e sua não
exigência para a docência superior: SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Breve
panorama do ensino e sistema jurídico norte-americano. Disponível em
http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/file/Breve%20Panorama%20do%20En
sino%20e%20Sistema%20Jur%C3%ADdico%20Norte-Americanos.pdf. Acesso em 9-
7-2015); GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Direito e educação jurídica nos
Estados Unidos. Revista Seqüência, n.º 48, p. 29-40, jul. de 2004. p.37.
Os nove juízes da Suprema Corte são de livre escolha do presidente dos Estados
Unidos. É comum a indicação de pessoas ligadas ao ideário político do presente, mas
isso nem sempre ocorre e, mesmo quando há essa vinculação, existem situações nas
quais o nomeado assume posições liberais ou conservadoras em contradição com suas
antigas credenciais. Essa mudança ocorreu recentemente em julgamentos importantes
como o Obamacare e o casamento igualitário. O associate justice Anthony McLeod
Kennedy, indicado pelo presidente Ronald Reagan (Partido Republicano), é um
exemplo bastante atual dessa desvinculação ideológica, ao votar em favor do casamento
igualitário (caso Obergefell v. Hodges).
Nos Estados Unidos não há órgãos equivalentes a nossos tribunais superiores, mas a
jurisdição divide-se também em federal e estadual. No âmbito federal, existem as cortes
federais distritais, correspondentes a nosso conceito de órgão de primeiro grau, e as
cortes federais regionais (United States Circuit Courts of Appeal). Na jurisdição federal
encontram-se ainda os Tribunais Federais de Falências e os Tribunais de Comércio
Internacional.
Os magistrados federais são indicados pelo presidente dos Estados Unidos e dependem,
assim como os juízes da Suprema Corte, de aprovação do Senado. Os juízes federais
distritais recebem U$ 201.100 por ano. Os juízes federais dos circuitos de apelação
recebem U$ 213.300 anuais. Os juízes da Suprema Corte têm uma remuneração anual
de U$ 246.800, enquanto o presidente do tribunal (chief justice) ganha U$ 258.100[4]. É
lícito que recebam, por aulas ou conferências, U$ 21.000 anuais, no máximo.
***
O professor com tenure goza de estabilidade no cargo e não pode ser demitido sem uma
justa causa. Alcança-se a tenure após uma combinação variável, conforme a instituição,
de alguns fatores como: a) tempo de serviço; b) qualidade da produção intelectual; c)
publicações em revistas indexadas; d) publicação de livros; e) obtenção de bolsas de
pesquisa e estágios no exterior. A manifestação do colegiado da unidade e a indicação
do deão ou do reitor também se apresentam como requisitos importantes para o ingresso
no regime de tenure.
Não faltam, porém, críticas à tenure. A obtenção da tenure levaria a uma queda
qualitativa na produção dos docentes, ao passo em que os professores sem tenure
mostrar-se-iam mais dedicados e interessados nas atividades de ensino e pesquisa.
6. Conclusões
A mais longa das séries de colunas sobre o ensino jurídico no Direito Comparado
encerra-se nesta semana. Foram seis colunas em sequência sobre os Estados Unidos, o
que se justifica pela complexidade e pela dimensão da realidade norte-americana. Como
em todos os países já estudados, as implicações do Direito com a política, o poder e a
sociedade fizeram-se sentir com grande ênfase na sede do Império Romano de nosso
tempo.
O professor de Direito não é a figura central nos Estados Unidos, tal como se dá na
Alemanha ou em Portugal. Os advogados são a mola propulsora do sistema jurídico, o
que se percebe pelo número expressivo de 1.266.158 profissionais acreditados no país
em 2014. Os juízes são poucos, e os promotores, eleitos pelo povo, salvo no âmbito
federal.
O método de ensino mais utilizado ainda é do século XIX e foi introduzido por um
professor de Harvard, Christopher Columbus Langdell, que não pertencia ao
mainstream acadêmico de seu tempo. O case method exige leituras intensas dos alunos
e faz uso de técnicas socráticas de perguntas formuladas pelo professor. A competição
dá a tônica à aprendizagem, e o controle individual do desempenho dos alunos não dá
margem para táticas de proteção entre eles. Na atualidade, não faltam críticas ao método
langdelliano.
O número de law schools pouco cresceu ao longo dos últimos 70 anos e permanece o
sistema de credenciamento pela American Bar Association. Os professores anseiam pela
estabilidade conferida pela tenure, e as remunerações dos docentes não são muito
expressivas, se comparadas a outras carreiras jurídicas. Hoje, prevalece o modelo
publish or perish. Os professores são incentivados a publicar com frequência em
periódicos acadêmicos. No entanto, coexistem docentes monoprofissionais e
professores com atividades no governo, na advocacia e nas empresas.
Nem melhor nem pior do que outros modelos, o norte-americano apresenta diversas
nuances que precisam ser enaltecidas antes de se pretender importar elementos que o
compõem. Uma law school que não gradua é diferente de uma faculdade de Direito, que
recebe estudantes de 17, 18 anos para um primeiro contato com o ensino superior.
Uma law school com forte caráter profissionalizante é bem distinta de uma faculdade
de Direito que oferece uma formação teórica intensa em seus primeiros três anos. Uma
law school que submete seus estudantes aos rigores do case method, com ênfase nos
precedentes, é muito diferente de uma faculdade de Direito que mal tem êxito em fazer
seus alunos lerem textos básicos da disciplina e cujo Direito é vinculado à tradição
romano-germânica.
***
Agradeço aos leitores por terem acompanhado esta sequência sobre os Estados Unidos.
Prosseguiremos agora com a experiência educacional jurídica em alguns países da
América do Sul.
[1] THE AMERICAN BAR FOUNDATION (Ed.). After Tenure: Post-Tenure Law
Professors in the United States. Chicago: The American Bar Foundation, 2011.
[2] A relação completa de docentes de Harvard encontra-se aqui:
http://hls.harvard.edu/faculty/index.html?s=15. Acesso em 11-7-2015.