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Direito Comparado

Direito, poder e formação: Como se produz um jurista


em alguns lugares do mundo? (Parte 1)
28 de janeiro de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A primitiva Sorbonne, correspondente hoje às Universidades de Paris I (Panthéon-


Sorbonne), III (Sorbonne-Nouvelle), IV (Paris-Sorbonne) e V (Paris Descartes), deve
sua origem a um alojamento para estudantes pobres, que foi criado no século XIII por
Roberto de Sorbon (1201-1247), um capelão e confessor de Luís IX, rei de França.
Sorbon é uma comuna francesa nas Ardenas, no nordeste francês, onde nasceu Roberto,
filho de humildes camponeses. Em homenagem ao benfeitor Roberto, nascia, então, na
Maison de Sorbonne, o Collège de Sorbonne, que viria a se transformar em um símbolo
internacional de ensino superior e que teve alunos como o Armand, Cardeal de
Richelieu, e o papa Clemente VI.

A Ivy League compreende as oito universidades mais antigas dos Estados Unidos. Esse
nome — Liga de Hera — provavelmente deve-se às trepadeiras (hera) que recobrem os
prédios históricos dessas escolas da costa leste norte-americana. À exceção de Cornell,
localizada em Nova York, as outras sete instituições foram criadas no período colonial.
Essa circunstância é importante para se recordar seus nomes originais, todos com forte
sabor britânico ou latino, como a Universidade de Colúmbia, antigo King’s College; a
Universidade Brown, que nasceu como College of Rhode Island, ou a Universidade
Yale, originalmente criada em 1701 como Collegiate School.

A troca dos nomes de algumas dessas universidades não ocorreu por mero efeito da
independência das treze colônias e o natural abandono de símbolos do poder
metropolitano nos Estados Unidos.

A Universidade Yale ganhou seu nome em honra de Elihu Yale (1649-1721), nascido
em Boston, governador da Companhia das Índias Orientais, posteriormente afastado do
cargo por denúncias de corrupção, que fez uma vultosa doação ao antigo Collegiate
School. Em reconhecimento, mudaram o nome da sede do college para Yale. Com o
tempo, Yale passou a denominar toda a universidade.

A arquirrival de Yale é a Universidade Harvard, fundada em 1636 pela assembleia de


representantes coloniais de Massachusetts sob o nome de New College. O londrino John
Harvard (1607-1638) migrou para a Nova Inglaterra e, antes de morrer, deixou em
testamento metade de seu patrimônio e 400 volumes de sua biblioteca particular para o
New College, que mudou seu nome para Harvard College em 1639, de modo a
homenagear seu benfeitor.

O que lhes parece uma universidade que teve em seus quadros de alunos e professores o
Prêmio Nobel Thomas Mann, o papa Bento XVI, o físico Max Planck, o sociólogo Max
Weber, o dramaturgo Bertolt Brecht, o chanceler Konrad Adenauer e os jovens heróis
da resistência antinazista Sophie e Hans Scholl? É de fato impressionante. Trata-se da
Universidade de Munique -Ludwig-Maximilian (LMU) , uma das mais antigas e
melhores da Alemanha.

Poder-se-ia continuar a fazer o inventário ou a narrativa histórica de várias outras


universidades, como as antiquíssimas instituições fundadas em Bolonha (1088),
Coimbra (1290), Viena (1365) ou a Universidade de São Marcos, a mais antiga das
Américas, fundada em Lima, no ano de 1551, pelo então Vice-Rei do Peru, a mando dos
reis de Espanha.

No Brasil, a despeito de existirem instituições de ensino superior nos séculos XVIII e


XIX, como a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, de 1792, a Escola de
Cirurgia da Bahia (1808) e as Faculdades de Direito de Olinda e São Paulo (1827),
apenas no século XX é que surgiram as primeiras universidades.

No ano de 1912, surgiu a Universidade do Paraná, de caráter estadual, sucedida pela


Universidade Federal do Paraná.

A primeira universidade “nacional”, criada pela União, só nasceria em 1920. Trata-se da


Universidade do Rio de Janeiro, posteriormente denominada de Universidade do Brasil
(atual Universidade Federal do Rio de Janeiro) e existe uma “tradição inventada”,
segundo Maria de Lourdes de A. Fávero, de que sua criação deveu-se à necessidade de
se outorgar um doutorado honorário ao Alberto, rei dos belgas, em visita ao Brasil,
acompanhado de sua esposa Elizabeth. A visita de Alberto, rei-soldado e herói da
resistência contra os alemães na Primeira Guerra Mundial, teria sido a causa da
apressada criação de uma universidade nacional no Brasil.[1]

Em todas essas instituições universitárias, por razões históricas que não cabem neste
restrito espaço, os cursos das chamadas “humanidades” ocupam posição de
preeminência cronológica e, por muitos séculos, foram as mais importantes. O avanço
do denominado “conhecimento científico”, que se delineou fortemente nos séculos
XVIII e XIX, retirou-lhes a primazia, embora não a precedência. As ditas Ciências
Exatas e as Ciências Biológicas obtiveram uma consagração de tal ordem que são raras
as universidades, os comitês de pesquisa, as agências de fomento e as fundações de
amparo à investigação científica que não são controladas ou lideradas por docentes e
pesquisadores da Física, da Matemática, da Medicina (uma quase intrusa nesse meio,
porque ainda conserva enormes espaço à ciência aplicada) e das Engenharias. A esse
respeito, lembro-me de um diálogo com um amigo, pesquisador do Instituto Max-
Planck de Hamburgo, que me relatou o desconforto eventualmente experimentado pelos
juristas quando algum físico se espantava com o orçamento dedicado à pesquisa jurídica
pela Sociedade Max-Planck. O conhecimento produzido nos institutos dedicados ao
Direito, segundo o físico, não seria científico e isso subtraia recursos essenciais para as
áreas verdadeiramente geradoras de saberes aplicáveis à melhoria das condições de
vida. Ao ouvir aquilo, de modo quase espontâneo, retruquei: “E ele parece desconhecer
que nós garantimos a liberdade para que os físicos, matemáticos e biólogos possam
pesquisar?”

Independentemente da diminuição do prestígio e da relevância das faculdades de Direito


no concerto das instituições universitárias, algo que se não pode afirmar seja
“contemporâneo”, ninguém lhes pode retirar o caráter fundador da universidade, ao lado
da Teologia, da Filosofia, das Letras e da Pedagogia, ainda que denominadas de modo
diferente em suas origens. Tal precedência ainda se revela na circunstância de que boa
parte das instituições citadas nesta coluna tiveram seu núcleo formador nas faculdades
de Direito. No Brasil, isso é mais do que verdadeiro, ao exemplo da Universidade de
São Paulo, da Universidade Federal de Pernambuco ou da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.

Mais do que reivindicar um “regime de capitulações especiais”, para se lembrar


metaforicamente da legislação do Império Otomano de imunidade judiciária dos súditos
estrangeiros, as Faculdades de Direito aparentemente recuperaram, ao menos nos
últimos 30 anos, um nível de prestígio social e político há muito desaparecido. É bom
fazer um excurso para melhor esclarecer esse ponto, que pode ser examinado sob dois
aspectos.

Vamos ao primeiro aspecto. O Brasil — e isso ainda está por ser melhor estudado
— deve muito de sua extensão geográfica e de sua estrutura de acomodação de conflitos
às tradições do velho Império Austro-Húngaro, homenageado de modo extremamente
sensível pelo filme Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson. A influência da
imperatriz D. Leopoldina é maior do que se supõe e ela ficou marcada em seu filho, D.
Pedro II. O Direito, a Diplomacia e as Forças Armadas foram os pontos de sustentação
da unidade nacional e da difícil travessia do jovem império no século XIX. A
importância do Direito, visto isoladamente, foi tamanha que se criou uma expressão
para caracterizá-la (e criticá-la), o dito bacharelismo, que sobreviveu até a Revolução de
1930, a qual, até para o contrapor, adotou a estética modernizante da técnica. Se
olharmos para a Índia, país com mais advogados do que os Estados Unidos, o Paquistão,
onde os advogados são uma incômoda e respeitada elite intelectual, a África do Sul, a
Turquia e mesmo Portugal, nossa pátria-mãe, exemplos de nações pós-coloniais ou pós-
imperiais, encontraremos idêntica primazia do Direito.

O segundo aspecto, que é mais recente, deve-se à perda do papel de elemento arbitrador
de conflitos políticos pelas Forças Armadas. O Brasil presta-se aqui também como
exemplo desse processo. Após 1988, embora não imediatamente, o protagonismo do
Supremo Tribunal Federal e, por consequência, do Poder Judiciário, cresceu na exata
medida em que os militares saíram de modo ostensivo da função de moderação dos
embates entre as forças políticas. A respeito dessa leitura, sugere-se a consulta ao texto
do ministro José Antonio Dias Toffoli em Notas jurídico-históricas sobre os conflitos
federativos e patrimonialismo no estado brasileiro[2], que tem sido, de modo
paradoxal, um membro desse novo poder moderador mas que exibe coragem ao
defender sua autocontenção e o respeito às prerrogativas do sistema democrático
representativo.

Semelhante papel é perceptível ao se observar a atuação das supremas cortes da África


do Sul, da Turquia ou da Tailândia (que legitimou a queda do governo do polêmico
primeiro-ministro Thaksin Shinawatra), embora seu grande modelo esteja no Tribunal
Constitucional Federal alemão. Essa corte, desde sua origem, travou sérios embates com
os primeiros gabinetes da então Alemanha Ocidental e conseguiu afirmar-se como
moderadora da política e da economia, ao exemplo dos recentes julgamentos sobre a
participação alemã na recuperação dos países da eurozona. No caso germânico, há a
coincidência com o primeiro aspecto: o passado imperial e militar tornou mais fácil essa
substituição de atores. O conceito de Verfassungspatriotismus (patriotismo
constitucional) bem revela essa passagem: o patriotismo fundado na figura do
imperador foi substituído por outro, alicerçado na Constituição. Uma vez mais o
paralelismo com o Brasil é apropriador. Basta recordar a passagem de Memorial de
Aires, o último romance de Machado de Assis, quando a personagem principal, o
diplomata Aires, no dia 25 de março, anotou em seu livro de memórias: “Era minha
ideia hoje, aniversário da Constituição, ir cumprimentar o imperador...”.[3]

Se o Direito possui tamanha nos dias de hoje, para o bem e para o mal, é importante
examinar como se formam os cadetes das “academias das Agulhas Negras” de nosso
tempo. Se graduar-se oficial era símbolo do status social até duas ou três décadas, hoje a
graduação em Direito é o brevê que permitirá ao jovem o vislumbre de um futuro
carregado de esperanças. Remuneração desproporcional a outras carreiras; exercício de
um imenso poder simbólico, em detrimento da cada vez mais relaxada cobrança por
racionalidade e pelos custos argumentativos, que se revela em decisões judiciais,
propositura de ações e elaboração de pareceres para órgãos públicos, o qual termina por
se revelar o exercício de um poder real; participação quase que obrigatória em decisões
da vida privada dos indivíduos, seja como agente estatal ou mesmo como assessor de
elementares atos de administração de um condomínio, enfim, são inúmeras as
possibilidades de intervenção do jurista na vida contemporânea. E essas intervenções
traduzem-se no controle potestativo da vida.

Em paralelo, como efeito natural da organização da vida sob o sistema capitalista, há


um imenso exército de pessoas graduadas em Direito, que não conseguem ser admitidas
nas grandes “provas admissionais” para ingresso na Cavalaria, na Infantaria, na
Intendência, nos Fuzileiros e em outras armas de maior ou menor prestígio. Subproduto
de um conjunto de fatores, de entre eles o elementar desejo de possuir uma “patente” de
“doutor” para ser respeitado nas ruas, não sofrer os constrangimentos policiais por sua
cor de pele ou condição social, essas pessoas não “herdarão o Reino dos Céus” e servem
para conservar máquinas milionárias de ensino superior ou dos famosos cursinhos.

Nesse cenário, os debates sobre o ensino jurídico ganham cada vez mais relevância,
embora se possa afirmar que são mais antigos do que se pensa e menos originais do que
muitos de seus autores supõem. Na atualidade, a reforma dos currículos dos cursos de
Direito também se tornou um tema de grande interesse nas universidades e mesmo fora
delas. Muitos modelos estrangeiros passaram a ser invocados como exemplos a serem
seguidos no Brasil, sem se considerar as peculiaridades de nossa cultura jurídica,
quando não se dá a pura e simples mistificação ou o falseamento de dados, seja por
ignorância, seja pela cópia da cópia de estudos que ninguém se deu ao trabalho de ir às
fontes e cotejar seus resultados.

É como esta introdução que se inicia uma série de colunas sobre o ensino, a formação e
a carreira docente jurídica em alguns países relevantes no mundo do Direito. As colunas
tentarão seguir uma ordem sequencial, embora, por diversas razões, como o
aparecimento de algum tema mais urgente, ela possa ser interrompida. Os leitores estão
convidados a esta interessante, curiosa e reveladora viagem.

[1] Essa tese é contestada por Maria de Lourdes de A. Fávero no artigo intitulado O
título de doutor honoris causa ao rei dos belgas e a criação da URJ. Disponível em
http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe1/anais/104_maria_lurdes_a.pdf. Acesso
em 18-1-2015.

[2] In. Estudos jurídicos : em homenagem ao Ministro Cesar Asfor Rocha. Ribeirão
Preto : Migalhas, 2012, p. 176-197, v. 2.

[3] Para maior desenvolvimento, veja-se: DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES
JUNIOR, Otavio Luiz. A primeira constituição do Brasil. Folha de São Paulo,
25.3.2014. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/03/1430288-
jose-antonio-dias-toffoli-e-otavio-luiz-rodrigues-jr-a-primeira-constituicao-do-
brasil.shtml. Acesso em 27.1.2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista em alguns lugares do


mundo? O modelo alemão
4 de fevereiro de 2015, 10h53

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A classe dos professores mandarins


A figura do imperador do Sacro Império Romano Germânico sempre foi envolta em
uma áurea de simpatia popular, ao menos em sua dimensão mítica. O exemplo mais
perfeito do soberano “desejado das gentes” é do Frederico Barba-Ruiva (1122-1190),
que morreu afogado ao tentar atravessar o rio Sèlef, na região da atual Turquia, quando
comandava a Terceira Cruzada, cujo objetivo era retomar Jerusalém das mãos de
Saladino. Seu desaparecimento, aliado ao fato de não terem encontrado seu corpo,
alimentou lendas muito parecidas com as que até hoje cercam D. Sebastião em Portugal.
Frederico tentou centralizar o poder em pleno feudalismo, combatendo os poderes da
aristocracia local, no que era visto pelo povo como alguém capaz de controlar os abusos
da nobreza sobre os camponeses e habitantes dos burgos.

No Segundo Reich, nascido após as guerras prussianas contra a Dinamarca (Guerra dos
Ducados do Elba), a Áustria e a França, o mito do “bom imperador” ressurge com força,
especialmente em um cenário marcado pela conservação de enormes poderes pelos reis,
príncipes e duques da Alemanha recém-unificada em 1870. Essa rivalidade entre o
imperador e a fidalguia regional foi muito bem explorada pelos soberanos da nova
Alemanha. Entre os camponeses e a crescente classe operária, o poder central era um
anteparo contra os excessos dos representantes do poder local, que, por estar próximo e
visível, é sempre mais odioso do que aquel’outro, mais distante e por isso mesmo com
menor capacidade de controle. Um exemplo da impopularidade dessa aristocracia rural
está no belíssimo filme A fita branca, de 2009, dirigido por Michael Haneke.

Para auxiliá-lo a administrar o estado alemão, sem ficar refém da aristocracia, que já
dominava o Exército e a carreira diplomática, após 1870, os imperadores firmaram uma
aliança informal com uma classe antiga, mas que só a partir do século XVIII começou a
ganhar consciência de seu próprio poder. Tratava-se dos acadêmicos, dos professores
universitários, ou, como prefere Franz K. Ringer, dos “intelectuais mandarins”. Ringer
formulou a interessante hipótese de que os soberanos do Segundo Reich incentivaram a
ocupação de postos relevantes na burocracia estatal pelos professores, aproveitando-se
de seus conhecimentos superiores e de seu senso de superioridade moral (quase
religiosa naqueles tempos de cientificismo extremo), a fim de criar uma nova
aristocracia do mérito.

Como bem assinalou Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, a hipótese de Ringer já


havia sido proposta em relação à burocracia imperial brasileira em artigo de Eul-So
Pang e Ronald Seckinger.[1] Como afirmado na coluna que abriu esta série (clique aqui
para ler), nossas ligações com as tradições imperiais de origem austro-alemã são mais
profundas do que se imagina.
Alguns efeitos dessa política de Estado da monarquia alemã oitocentista foram logo
sentidos. A qualificação de Herr Professor Doktor ganhou contornos de um autêntico
título de nobreza e tornou-se praticamente uma partícula do nome civil de seus titulares,
que figurava em cartões de visita, placas nas universidades e até em lápides e obituários
publicados nos jornais. Esse processo ganhou tal dimensão que, segundo Franz K.
Ringer, o recebimento dos títulos de Adel (fidalgo) e Ritter (cavaleiro), da baixa
nobreza, que conferiam o direito ao uso da partícula von (de), não mais despertava o
interesse dos “acadêmicos mandarins”, salvo notórias exceções como Otto Gierke, que
recebeu o título de nobreza na década de 1900 e passou a ostentá-lo em suas
publicações como Otto von Gierke.

Mesmo com a queda da Casa de Hohenzollern, a consciência de classe e a ocupação de


papeis relevantes na sociedade alemã persistiu na República de Weimar. Os
“acadêmicos mandarins”, desse modo referidos em alusão ao mandarinato, a classe
burocrática do velho Império da China, continuaram prestigiados, embora a crise de
1920-1930 haja comprometido sua condição remuneratória. Enfraquecidos
economicamente, com a chegada no nazismo, muitos jovens professores assistentes
agiram como alpinistas sociais e usaram da ideologia política (sociais democratas e
monarquistas) ou étnica (judeus) dos catedráticos para derrubá-los e ocupar suas
cadeiras nas universidades. Muitos dos demitidos nunca mais voltaram à universidade.

Com o pós-guerra, a universidade alemã foi reconstruída, seguindo-se os padrões de


excelência do passado. Os professores, embora não mais possam ser considerados como
uma classe de mandarins, dada a ampliação da elite econômica, política e cultural na
Alemanha, são ainda hoje um grupo especial na sociedade alemã. Pode-se arriscar a
dizer que não exista um país no mundo onde os catedráticos sejam tão bem
remunerados, respeitados e valorizados quanto na Alemanha. O cargo de professor
catedrático tem um prestígio equivalente ao de senador da República. O título de Herr
Professor Doktor ainda possui o brilho de uma partícula nobiliárquica e a sociedade
lhes reconhece uma preeminência nos negócios públicos sem par em muitas nações
desenvolvidas.

Um símbolo dessa condição notável está nos 105 prêmios Nobel que a Alemanha
recebeu, o que a coloca em terceiro lugar no ranking das nações agraciadas, perdendo
apenas para os Estados Unidos da América (352), por razões óbvias, e para o Reino
Unido (120), durante muito tempo a sede do “império onde o sol nunca se põe”.
Considerando-se que a Alemanha foi arrasada duas vezes no século XX, não deixa de
ser um número impressionante.

Em uma série de colunas sobre ensino jurídico, não se poderia ignorar essas
particularidades da Alemanha, o país que será estudado hoje. Vamos agora examinar um
pouco sobre a carreira docente alemã, com evidente ênfase no Direito, embora muitos
dados sejam intercambiáveis para outras áreas.

É importante conhecer as características do modelo alemão sob 3 aspectos: a) o docente;


b) a universidade e c) a formação discente.

A docência jurídica na Alemanha


Na Alemanha, diferentemente do que se dá no Brasil, a palavra professor é exclusiva do
ocupante do cargo equivalente brasileiro a “professor titular”. O professor alemão é o
catedrático e somente este. Nesse sentido, os professores assistentes, adjuntos e
associados (títulos brasileiros inferiores ao de titular) não correspondem tecnicamente às
expressões alemãs richtiger Professor, Vollprofessor, Ordentlicher Professor. No plano
de carreiras alemão, esses docentes são qualificados por letras, que correspondem a sua
remuneração. O catedrático é o professor C4, embora raramente se encontre nessa classe
os professores C3. É condição prévia para a obtenção desse cargo ter o candidato
prestado o exame de habilitação, com a defesa de uma tese (Habilitationsschrif), o
trabalho mais importante na carreira de um docente, que anteriormente já deve ter sido
aprovado no doutorado (Promotion).

Abaixo de catedrático, há uma série de posições acadêmicas, como a de Mitarbeiter,


Assitent, Privatdozent, Referent ou ainda außerplanmäßiger Professor. O professor
catedrático, à semelhança do modelo brasileiro pré-reforma educacional dos anos 1970,
é um polo em torno do qual se associam pesquisadores mais jovens, assistentes de
docência, estagiários em números inimagináveis para os padrões brasileiros.

A escolha dos candidatos à cátedra (Lehrstuhl, literalmente “cadeira de lente”) dá-se por
meio de uma seleção pública composta de etapas como entrevista, análise de currículo e
uma exposição, que pode ser uma palestra ou uma aula, com base em texto escrito para
esse fim. Evidentemente, é pré-requisito ter o candidato a Habilitation. As bancas
funcionam como autênticos “comitês de busca”, elegendo para as vagas um perfil de
professor ideal, cujas características o escolhido deve preencher. Para um brasileiro,
esse sistema seria chocante pelo elevado grau de subjetividade e pessoalidade da
seleção. Há, no entanto, uma série de contrapesos: não se pode ser professor na
instituição que foi a alma mater do candidato, o que impõe uma severa exogenia e faz
com que se oxigenem as composições dos corpos docentes. A figura do Doktorvater
(orientador) é muito relevante para o futuro da carreira do candidato à docência.

Existem, ainda, contratações de professores catedráticos entre instituições.


Universidades menores ou menos prestigiadas oferecem condições especiais para atrair
catedráticos de outras instituições, como, por exemplo, auxílio-moradia, transporte
ferroviário e bônus remuneratórios, à moda do que se dá nos Estados Unidos. Não
necessariamente o catedrático precisa residir na cidade-sede da instituição. É comum
haver professores com duplo domicílio ou mesmo exercendo atividades de pesquisador
em um local e docente em outro.

Um número também surpreendente: na Alemanha há, em termos aproximados, 950


catedráticos em cursos jurídicos.[2] Martônio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo D.
Varella, em estudo de enorme impacto sobre a revalidação de títulos estrangeiros no
Brasil, reforçam esses números: “A gigantesca Universidade Livre de Berlin possui 50
professores; a Universidade de Bremen tem 15 professores; a de Frankfurt/M. possui 28
professores; a de Munique, 31; e a de Münster, 30. Ocorre que em cada uma destas o
número de assistentes científicos, Lehrbeauftragter, Privatdozenten, Professor in
Vertretung e de pesquisadores com atividades em centros de pesquisa vinculados à área
de Direito ou em atividade conjunta com outras áreas (...), faz com que o reduzido
número de professores, somado a esta força de trabalho de boa qualidade, porém não
amadurecida, seja triplicado”.[3]

Essa quantidade tão reduzida de professores catedráticos, considerando-se os padrões


brasileiros, é ainda mais eloquente quando comparada ao número de alunos:
aproximadamente 100 mil discentes. E também ao número de faculdades de Direito: 43
escolas, sendo apenas três privadas, com sede em Hambugo, Wiesbaden e
Lüneburg. Um detalhe: essas instituições privadas são pequenas e tentam seguir um
caminho de excelência educacional. Exemplo disso é a Bucerius Law School, de
Hamburgo, fundada em 2000, com orçamento anual de 16,8 milhões de euros em 2014,
que possui menos de 600 estudantes de graduação, com 15 professores em dedicação
exclusiva e 30 em tempo parcial, além de assistentes e visitantes. A Bucerius foi uma
criação do político e jornalista

Gerd Bucerius (1906-1995), fundador do jornal Die Zeit, que foi juiz nos anos 1930 e
lutou contra os nazistas, além de defender judeus. A ideia de Bucerius era criar um think
tank e uma escola jurídica de qualidade, para o que deixou expressivos recursos em
legado para essa finalidade.

O leitor deve-se indagar neste momento como podem tão poucos catedráticos exerceram
o magistério para tantos alunos e em tão poucas instituições? A pergunta é mais do que
oportuna e ela se justifica por uma aparente contradição decorrente de haver poucos
professores, muitos alunos e poucas faculdades.

Não se quer avançar na estrutura das instituições e na formação discente, do que se


cuidará na próxima semana. Logo, a resposta será parcial. Mas, vamos a ela.

Primeiramente, é necessário referir que o número tão pequeno de catedráticos implica a


possibilidade do Estado alemão pagar boas remunerações para esses docentes, ao menos
seguindo-se o padrão do serviço público e, em termos comparativos, com certas
atividades do mercado privado. Segundo dados do CIHE - Center for International
Higher Education, [4] no topo da carreira docente, a Alemanha paga o equivalente a
6.377 dólares norte-americanos. Na Europa, está abaixo do Reino Unido (US$ 8.369),
Holanda (US$ 7.123), dois países com custo de vida mais elevado que o alemão. A
Itália surpreende com o valor de 9.118 dólares norte-americanos, o mais alto padrão em
solo europeu, perdendo apenas para o Canadá, quem melhor paga os catedráticos no
mundo, com remuneração de U$9.485. O Brasil paga U$4.500 a seus professores
titulares em final de carreira, o que implica uma diferença de 104 dólares a menos do
que o padrão japonês. Esses dados variam muito se forem tomados pela média do início,
do meio e do final da carreira. Nessa hipótese, a média brasileira seria de 3.179 dólares.
Como, para esta coluna, importa somente os valores pagos aos catedráticos, o quantum
médio é desconsiderado.

Em segundo lugar, deve-se ter em mente que o professor catedrático alemão não possui
um regime de aulas sequenciais como se dá no Brasil. Ele profere a Vorlesung, uma
espécie de aula magna, em períodos específicos (semanais ou quinzenais), para
auditórios lotados com 100, 200 a 400. Em muitos casos, as aulas ocorrem em
pavimentos diferentes, com uma parte da turma assistindo a Vorlesung por meio de
telões, às quais também comparecem os alunos do Magister, um curso de pós-
graduação, de variável natureza, conforme a universidade que o ofereça, equiparável, na
maior parte dos casos, a uma especialização ou, mais raramente, a um mestrado.
Posteriormente, os alunos reúnem-se com os assistentes e vão fazer estudos de casos,
fortemente baseados no método subsuntivo e na exegese do Código Civil, nas
disciplinas de Direito Civil.
Finalmente, há uma maior liberdade no comparecimento dessas aulas e no modo como
os alunos se relacionam com a universidade e com as avaliações internas, do que se
cuidará na próxima coluna.

Inserção jurídico-política do professor de Direito na Alemanha


A forte tradição de “acadêmicos mandarins”, embora relativamente transformada após
1949, não poderia deixar de repercutir nos dias de hoje. Os professores de Direito não se
isolam em suas cátedras e não são mal vistos quando deixam a universidade para atuar
politicamente ou em órgãos públicos. É muito comum a participação dos catedráticos de
Direito no processo legislativo, por meio de oferta de projetos de lei ou pela crítica
sistemática (e impiedosa) ao trabalho parlamentar, quando não são os próprios
professores que se candidatam a cargos públicos ou assumem a chefia de ministérios,
agências, autarquias e afins.

É igualmente vulgar a indicação de professores para cargos nos tribunais regionais ou


superiores, quando não ao próprio Tribunal Constitucional Federal. Como bem destacou
Tilman Quarch, em seu artigo Introdução à Hermenêutica do Direito Alemão: Der
Gutachtenstil, publicado no volume 1 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, a
relação entre professores e juízes é de complementariedade e de enorme respeito pelo
trabalho de lecionar e de julgar, a despeito das críticas ácidas dos docentes a muitas
decisões das cortes alemãs.

Existe ainda uma forte tradição de clivagem ideológica entre os professores de Direito.
Os dois grandes partidos políticos – a União Democrática Cristã e o Partido Social
Democrata – possuem fundações, à semelhança do que ocorre no Brasil, que financiam
pesadamente estudantes e pesquisadores, além de publicações de teses (que são pagas
pelos autores) e outros projetos acadêmicos, diferentemente do que se dá no Brasil.
Desde cedo é possível identificar a orientação ideológica de muitos docentes, o que se
reflete nas universidades. Em larga medida, isso não afeta a independência científica,
porque não há uma apropriação “partidária” das instituições em níveis que
comprometam sua independência.

Conclusões parciais e algumas comparações: é um sistema ideal?


O modelo de docência universitária alemão, particularmente a jurídica, tem enormes
méritos. A remuneração é boa, mas não é a maior da Europa. Os catedráticos possuem
condições de trabalho e de pesquisa muito superiores a seus congêneres europeus e
ainda podem ser “disputados” em um saudável processo de concorrência entre as
instituições, que só encontra paralelo equiparável nos Estados Unidos. A seleção é mais
dinâmica e focada nas necessidades da instituição e não somente em aspectos formais
que muitas vezes não selecionam os melhores candidatos. A existência de um grande
número de assistentes, adjuntos e associados em volta do catedrático permite-lhe
realizar pesquisas de maior qualidade, concentrar seu tempo para preparar aulas de
melhor nível, ao passo em que também lhe dá o reconhecimento social invulgar em
termos contemporâneos. A representação social do professor é superiormente
interessante na Alemanha.

A despeito de suas grandes qualidades, o modelo alemão, no que se refere à docência,


também possui problemas e alguns deles têm sido objeto de críticas por parte de setores
da sociedade. As mais graves, como se verá, dizem respeito ao modo como os
estudantes são avaliados.
Limitando-se o problema aos professores, existem algumas censuras veladas ao método
de seleção, que abriria muito espaço para o peso do orientador do candidato. É também
crescente a discussão sobre as relações entre o Doktorvater (orientador) e os
doutorandos. O número de denúncias de plágio cresceu muito e isso causou espécie na
sociedade alemã. Foi muito divulgado o escândalo envolvendo a tese de doutorado de
Karl-Theodor Freiherr von und zu Guttenberg, então ministro da Defesa do governo
Merkel, acusado de plágio no trabalho que apresentou à Universidade de Bayreuth, sob
orientação de Peter Häberle. O barão Guttenberg, ou barão Googleberg, como se tornou
jocosamente conhecido, era cotado para o cargo de chanceler federal e um nome muito
popular na Alemanha. Jovem, carismático, bem sucedido como ministro e com
impecáveis credenciais familiares: seus antepassados militaram ativamente contra Hitler
e envolveram-se na Operação Valquíria. Sua reputação foi abaixo com o plágio, o que
simboliza o valor de um título acadêmico na Alemanha.

A remuneração dos pesquisadores e assistentes é considerada baixa e seus vínculos são


precários. Eles firmam contratos temporários, que são renovados a depender de seu
desempenho e das verbas para se manter o grupo vinculado ao catedrático.

A transposição do modelo de docência alemã para o Brasil implicaria se rever a quase


inexistência de estrutura de carreira real nas universidades brasileiras. À exceção de
alguns departamentos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, são
poucas as escolas jurídicas que ainda dão posição de preeminência aos professores
titulares. Ademais, na prática, não seria sustentável a atual divisão entre professores
catedráticos (na acepção alemã) e os não catedráticos. Outra incompatibilidade está na
administração de equipes de docência e pesquisa, o que, com nossas regras de
estabilidade, é praticamente inviável. Para não se recordar da hipótese de migração por
“concorrência” entre instituições.

Elogiar ou se inspirar no modelo de docência alemã é muito interessante. Mas, não se


pode perder de vista que os regimes jurídicos únicos são fortes obstáculos a
transposição do exemplo da Alemanha. Embora se possa ficar com a seguinte reflexão:
não teriam sido esses regimes jurídicos, como o instituído pela Lei 8.112/1990, uma
reação natural aos desmandos e ao descontrole, ao compadrio e à pessoalidade
patrimonialista da Administração brasileira?

Na próxima coluna, a formação docente e, se houver espaço, o currículo e o método de


ensino alemães.

***

Agradeço imensamente à leitura e às contribuições de Tilman Quarch, Jan Peter


Schmidt e a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima.

[1] Comparatives Studies in Society and History, v. 14, n.2, 1972, pp. 215-244.
Cambridge Univ. Press, London. (Agradeço a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima
pela referência).
[2] Parte dos dados quantitativos (informações não oficiais) foi extraída deste site:
http://www.lto.de/jura/studium/uni/augsburg/. Acesso em 2-2-2015.

[3] P.156

[4] Disponível em: https://www.insidehighered.com/news/2012/03/22/new-study-


analyzes-how-faculty-pay-compares-worldwide. Acesso em 2-2-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 4 de fevereiro de 2015, 10h53


Direito Comparado

Como se produz um jurista em alguns lugares do


mundo? O modelo alemão (Parte 3)
11 de fevereiro de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Heinrich Heine, a alma inquieta do judeu-alemão que viveu a passagem do Antigo


Regime para a Europa pós-revolucionária, escreveu o opúsculo Viagem ao Harz, que
narra a desilusão de um jovem estudante de Direito e o abandono de seu curso na
Universidade de Gotinga.[1] As razões? O ensino entediante e os excessos de
bebedeiras, trotes e a brutalidade de seus colegas. Ele estava cercado por professores
aborrecidos e estudantes mais preocupados com carraspanas e festas promovidas pelas
Burschenschaften, as sociedades secretas de alunos, baseadas nos princípios do
liberalismo e do nacionalismo alemão e que tiveram louvável atuação contra o
absolutismo no Oitocentos. No Brasil, essa tradição das Burschenschaften chegou-nos
por meio da mítica figura de Julius Frank, também aluno na Universidade Gotinga, e
que lecionou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde está seu túmulo. A
corruptela dessa palavra alemã é Bucha, como ficou conhecida idêntica corporação de
alunos e que teve, durante o século XIX e parte do XX, enorme influência na política
nacional (Abolição, República e Revolução de 1932). Getúlio Vargas ter-se-ia lastimado
ao afirmar que era impossível governar com a Bucha.

Os estudantes estiveram no centro das lutas pela unificação alemã, muitos deles tendo-
se engajado nas guerras bismarckianas, e também foram os primeiros a apoiar a entrada
da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. No século XX, a maioria deles uniu-se ao
nazismo, embora alguns poucos hajam protagonizado episódios de heroísmo, como
Sophie Scholl, Hans Scholl e Cristoph Probst. Esses três jovens, guilhotinados em 1943
pela Polícia Secreta do Estado, distribuíram panfletos na Universidade de Munique nos
quais denunciavam o regime e o fracasso militar na frente russa. É célebre a frase de
Sophie Scholl: “O povo alemão vem sendo enganado sob o prestígio de uma fraude”.
Em seus infames julgamentos no Tribunal do Povo, mantiveram-se firmes em suas
posições contra o regime.

Na segunda metade do século XX, muitos estudantes envolveram-se na luta antinuclear,


no movimento ecológico e com as ações terroristas da Fração do Exército Vermelho,
mais conhecida como Grupo Baader-Meinhof, que cometeu vários atentados nos anos
1970.

Os estudantes são a classe idealizada em nosso tempo graças à sua enorme generosidade
de morrer por causas às vezes perdidas, mas que é a classe também capaz de enormes
equívocos e desatinos históricos, como os já apontados. É sobre os estudantes de
Direito na Alemanha, sua formação, as disciplinas, as avaliações e o método de ensino
jurídico de que se ocupará a coluna de hoje.

A coluna, em diversas passagens, terá por fonte o artigo de Tilman Quarch, intitulado
Introdução à hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil, publicado na Revista
de Direito Civil Contemporâneo, v.1, outubro-dezembro de 2014, p.251 e seguintes, que
pode ser considerado um marco doutrinário sobre o ensino jurídico alemão em língua
portuguesa.

Contraste com três “mitos” do ensino jurídico brasileiro


Se o Direito alemão é reconhecidamente o melhor da Europa e se as faculdades de
direito da Alemanha ocupam posição de preeminência no mundo, tal se deve pela bem-
sucedida combinação do estudo dos casos e do profundo conhecimento dos códigos. E,
por um terceiro ingrediente: a acentuada especialização do estudo jurídico. Além, é
claro, da estrutura docente, a que me referi na coluna anterior.

Já aqui se apresentam três “verdades inconvenientes” para muitos que criticam o ensino
jurídico no Brasil e que defendem alternativas a nosso modelo. Vamos a esses
interessantes contrastes.

Sim, virou um chavão condenar-se o estudo do Direito sob a óptica das codificações. Na
verdade, mais do que um chavão, tem-se um consenso em torno desse tema, o que
resulta do bem sucedido projeto de demolição das estruturas do formalismo jurídico e
de uma das faces do positivismo, que se iniciou na década de 1950, ganhou fôlego nos
anos 1980 e, com a nova Constituição, se tornou hegemônico no país.

A caricata figura do velho professor que decorava o código e recitava-o para os alunos,
com paráfrases ou adendos estéreis, é hoje um espantalho muito fácil de ser atacado.
Embora ele ainda exista, deu-se sua substituição, em muitos casos, por três espécies: (a)
o reprodutor da jurisprudência (sem criticá-la e sem desconstrui-la); (b) aquele que
ignora por completo a doutrina e se vale apenas do “que é justo” (algo como “decido
conforme minha consciência” aplicado a docentes) ou (c) por quem só expõe o que
“cai nos concursos”. Até mesmo pensadores progressistas, que lideraram o movimento
de reforma desde os anos 1980-2000, estão na linha de frente contra esse “novo”
modelo, como é o caso de Marcelo Cattoni (a preocupação com a integridade e a
legitimidade democrática do Direito) e Lenio Streck (a crítica ao solipsismo e à
banalização do conhecimento jurídico), para ficarmos com dois dos mais
representativos.

Os alemães estudam os códigos sim. E muito! Não os temem e nem os depreciam. Nos
dias que correm, trata-se indiretamente de uma homenagem ao legislador democrático.

E como isso se dá? Por meio da combinação do conhecimento da lei, com os


refinamentos da doutrina e da jurisprudência, com o chamado método pigeonhole, pois
“uma argumentação meramente abstrata é tão inapta para achar soluções viáveis quanto
aquela argumentação que se prende aos fatos”.[2]

O método pigeonhole exige dos alunos a solução de casos que se aproximam da prática
forense. Os estudantes aprendem para “pensar” e redigir pareceres ou sentenças, como
quem resolve problemas postos pelas partes no Judiciário. A hermenêutica alemã, como
salienta Tilman Quarch, organiza-se em torno do Gutachtenstil, que se estrutura em 3
elementos: os fatos, as leis e as relações entre ambos. Formam-se os silogismos
aristotélicos típicos para se oferecer uma resposta a um caso muito próximo do real: (1)
premissa maior (Obersatz); (2) premissa menor (Untersatz) e (3) conclusão
(Schlussfolgerung).[3]
Trata-se de um método...subsuntivo. Sim, meu caro amigo. Lamento informar-lhe mas a
subsunção não é uma velharia, um artigo exposto na vitrine de um belchior qualquer. É
algo útil e ainda extremamente central no melhor ensino jurídico da Europa. Conforme
Tilman Quarch: “Sendo que a subsunção corresponde à aplicação de regras (rules) e a
ponderação à aplicação de princípios (principles) do sistema dworkiano, aquela técnica
predomina nos ramos civil e penal do direito alemão, enquanto essa é mais frequente no
direito público, mais precisamente no direito constitucional”. A entrada da ponderação
dá-se em situações específicas, quando se analisa o caso à luz da “eficácia indireta” dos
direitos fundamentais em relação aos privados ou no uso do “princípio da segurança
jurídica no âmbito do direito penal” [4].

O estudo silogístico tem início desde o primeiro ano da faculdade. No Direito Civil,
ainda se segue a interpretação escalonada (gramatical, histórica, sistemática e
teleológica), com a utilização eventual e nos casos em que isso cabe da “interpretação
conforme à Constituição” e da europarechtskonforme Auslegungen (interpretação
conforme o direito europeu).[5] Ainda com ênfase no Direito Civil, o aluno é chamado
a, antes de iniciar a solução de um caso, tentar responder às perguntas: Wer will was von
wem woraus? (Quem quer, o que quer, de quem se quer, com base em que se quer?)[6]

O terceiro “mito” está na formação internacionalizada e multidisciplinar. O aluno


alemão aprende conceitos básicos de Direito Civil, Direito Penal e Direito
Constitucional, o eixo central dos currículos, além de outras matérias, que são variáveis
conforme a autonomia das universidades e a superposição de legislação federal e dos
Länder. É bem provável que um aluno de graduação ou mesmo de pós-graduação em
uma dessas disciplinas não conheça muito sobre grandes juristas (ou filósofos do
Direito) de outras áreas. A solução dos problemas é jurídica e não se socorre da
mediação sociológica ou filosófica. Entende-se que há muito o que se aprender em sua
especialidade e não há tempo para se saber “pouco de muito” e sim “muito de pouco”.

Tal se opera também na despreocupação com o Direito estrangeiro, embora haja cada
vez maior afluência de alunos interessados em Direito Europeu, o que se explica pela
enorme interpenetração das diretivas da União Europeia com as normas internas. Esse
alheamento talvez mude em razão do crescente intercâmbio de alunos europeus, como
parte de sua formação no bacharelado.

A causa mediata dessa especialização e da centralidade das disciplinas dogmáticas,


especialmente o núcleo Civil-Penal-Constitucional, é a “humildade” alemã em saber dos
limites de um conhecimento profundo sobre temas jurídicos e não jurídicos. O respeito
ao ofício do sociólogo ou do filósofo faz com que se não busque um saber superficial
sobre certos temas. É evidente que o aluno que pretende seguir carreira acadêmica
nessas áreas ou mesmo nas disciplinas mais dogmáticas deve procurar uma formação
complementar que lhe dê esses referenciais. A diferença é que se não coloca esse tipo de
conhecimento como central e universal para os estudantes.

O estudo dos casos como método central funcionaria no Brasil?


Eis uma pergunta que me intriga. A resposta, embora não seja definitiva para mim, é
negativa. O estudo dos casos não resistiria por duas razões. A primeira está em que não
uma deferência institucional às respostas “corretas” dos casos, tal como se dá na
Alemanha. Dito de outro modo: há um enorme respeito social pelas respostas aos
exames (sobre os quais se falará na próxima coluna), elaborados pelos professores,
ainda que exista alguma crítica se formando em torno disso. A segunda é que o próprio
modelo se estruturou com base em técnicas de subsunção, com esteio no fundamento
legal (com o já referido grau de refinamento doutrinário e jurisprudencial). No Brasil,
tem-se o incrível consenso de que “não há uma resposta correta”, o que é um efeito
natural de um Direito que se louva (no campo jurisprudencial) em “decido conforme
minha consciência” (Lenio Streck) e no qual muitos juízes e professores entendem ser
desnecessário usar a lei como baliza para suas decisões ou posições em classe. Se toda
resposta é válida, se qualquer fundamento é aceitável, se o Direito é “sentimento”,
“vontade” ou “bom senso”, como dizer que a resposta de um aluno para o caso proposto
com suporte no pigeonhole é insusceptível de contestação?

Um exemplo desse grave problema, que só avança no Brasil, está na forma como as
questões dos concursos públicos e dos exames de Ordem são hoje apresentadas aos
milhares de candidatos. Salvo raras exceções, notáveis em certas carreiras que ainda
organizam as provas com bancas internas e para poucos candidatos (comparados a
outras carreiras), os examinadores tentam fugir da praga da judicialização, um
movimento crescente hoje em ordem a se contestar os resultados das provas. E para isso
as bancas têm cobrado cada vez mais questões sobre posições da jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ou do texto da lei. Ao
menos assim são reduzidas as hipóteses de contestação judicial das respostas. Embora,
por descuido do examinador, algumas anulações sejam obtidas pois a questão ignorou
posições divergentes na mesma corte (orientação da 1ª Turma e que não é seguida pela
2ª Turma do STJ, por exemplo).

Por consequência, além de sua própria autodepreciação, a doutrina perde a cada dia sua
importância por efeito do empobrecimento generalizado da cultura jurídica e da morte
da “alta literatura jurídica”, encalhada nas livrarias e vetada pelos editores ciosos de não
terem prejuízos certos em seus balanços anuais.

Antes que me acusem do que não eu disse


Uma coluna com tantos dados e informações contrários ao lugar-comum sobre o ensino
jurídico poderá ser mal interpretada ou mesmo distorcida por pessoas menos honestas
intelectualmente. É necessário, portanto, explicar o que não foi dito e o que foi
realmente afirmado.

Primeiro, não se pôs em causa o valor da interdisciplinaridade, internacionalização, das


disciplinas como Filosofia ou Sociologia. Fez-se a descrição de um modelo bem
sucedido de ensino do Direito na Europa e no qual esses elementos são pouco relevantes
em sua essência. A despeito disso, o modelo alemão funciona e bem. Dizer que a
eliminação desses elementos é a chave para um bom currículo não pode ser inferido do
que eu escrevi. É legítimo defendê-los, mormente em um país tão pobre de
conhecimentos não jurídicos, mas não se pode, de modo empírico, afirmar que sua
inclusão irá melhorar de per si o ensino jurídico.

Segundo, o ensino com base no conhecimento profundo da legislação soa como heresia
no Brasil. A Alemanha mostra que isso não é de per si negativo, especialmente quando
se combina a lei com o estudo dos casos. Não se pode confundir a leitura ou a paráfrase
de códigos, à moda dos antigos professores, com o modelo alemão. No entanto, ensino
com base nos códigos é muito importante na Alemanha para disciplinas como o Direito
Civil ou o Direito Penal, assim como o silogismo é bastante respeitado.
Terceiro, há críticas na Alemanha a esse modelo autocentrado de ensino jurídico. E não
são poucas. O sucesso do modelo, porém, faz com que ele se preserve. Sob o prisma
consequencialista, ele funciona. Se é o ideal, eis um ponto discutível.

Quarto, há sérios experimentos no Brasil sobre o estudo dos casos, como se encontra na
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, conduzido, por exemplo, pelo professor
Luciano Camargo Penteado, ou, em minha Faculdade, no Largo São Francisco, pelo
professor Rodrigo Broglia Mendes, em Direito Comercial.

São exemplos que podem ser explorados. A dúvida que se coloca nesta é coluna está na
possibilidade de sua universalização em um sistema viciado pela judicialização, pelo
baixo respeito à autoridade do professor e pela ausência de um consenso social sobre a
respeitabilidade da “resposta correta”.

E na próxima semana?
A coluna sobre a Alemanha se estendeu mais do que o autor imaginava. Na próxima
semana, encerrar-se-á o exame do modelo alemão com a apresentação sobre o Segundo
Exame de Estado, a relação dos alunos com a universidade e, se houver espaço, o
problema dos cursinhos. Na sequência, o ensino jurídico em Portugal.

[1] O livro Viagem ao Harz foi traduzido para o português por Maurício Mendonça
Cardoso e editado pela 34, de São Paulo, no ano 2013.

[2] QUARCH, Tilman. Introdução à hermenêutica do direito alemão: der


Gutachtenstil.Revista de Direito Civil Contemporâneo, v.1, outubro-dezembro de
2014, p.251.

[3] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[4] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[5] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[6] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 11 de fevereiro de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista em alguns lugares do


mundo? O modelo alemão (parte 4)
18 de fevereiro de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A usina de mandarins
O Império da China era governado “de cima para baixo por uma burocracia confuciana,
recrutada com base no sistema de exames que talvez seja o mais exigente de toda a
história”. De fato, “aqueles que aspiravam a uma carreira no serviço imperial tinham de
se submeter a três etapas de exaustivas provas realizadas em centros de exame
constituídos especialmente para essa finalidade, como aquele que ainda hoje pode ser
visto em Nanquim: um enorme complexo murado contendo milhares de minúsculas
celas um pouco maiores que o lavatório de um trem”. Nesses lugares tão estreitos, “o
único movimento permitido era a entrada e saída de funcionários para repor comida e
água, ou recolher dejetos humanos”. Alguns dos postulantes, “ficavam completamente
loucos sob a pressão”.[1]

Essa descrição dos exames para ingresso no serviço do Senhor dos Dez Mil anos, o
Filho do Céu, o imperador da China, nos tempos da dinastia M’ing, é interessante para
se comprovar que, mesmo com séculos e quilômetros de distância, a mística dos exames
admissionais integra a cultura de diferentes povos. E ela vem sempre acompanhada de
um momentum, um curto hiato de tempo no qual os candidatos têm de demonstrar sua
capacidade para vencer o desafio imposto por examinadores. Seria este o coroamento de
anos de preparação, com a abertura de um pedaço do céu para os vencedores e a oferta
de uma vida mais perigosa e incerta para os derrotados.

Em certa medida, é este o ponto de culminância do ensino jurídico alemão: os famosos


Exames de Estado (ou Exames Estatais). Se a universidade alemã criou os “professores
mandarins”, como visto em coluna anterior (clique aqui para ler:
http://www.conjur.com.br/2015-fev-04/direito-comparado-produz-jurista-alguns-
lugares-mundo-parte), os estudantes de Direito da Alemanha tem de se submeter a um
duríssimo ritual de passagem, que definirá o resto de suas vidas profissionais e que
responde, em grande medida, pela elevação do nível médio de formação do jurista
daquele país.

A regionalização do ensino jurídico na Alemanha


Os Länder alemães gozam de considerável autonomia legislativa e executiva em termos
de ensino jurídico. Daí ser inadequado falar em modelo unificado de currículo e de
avaliações para todo o país. Essas discrepâncias são acompanhadas pela assimetria
qualitativa entre as faculdades de Direito de diversas regiões do país. Dito de modo
mais explícito: até na Alemanha há cursos de qualidade irregular e não é o fato de ser
uma instituição alemã que a torna de per si um centro de excelência jurídica. Dois
pontos, contudo, são comuns aos Länder: a quase totalidade dos cursos são públicos
(como visto na parte 2 desta série) e o acesso à universidade é amplo, desde que o
candidato haja preenchido os requisitos de ingresso. Por essa razão, as salas lotadas e a
dificuldade de se comparar o modelo alemão com o norte-americano, cujos alunos
custeiam pessoalmente seus estudos em instituições privadas.

Feitas essas advertências, vamos aos Exames de Estado:

Os Exames de Estado e seu impacto na formação discente e nas carreiras jurídicas


Vamos fazer uma apresentação diferente nesta seção da coluna. Começaremos do final
do processo para retornarmos ao início. O leitor compreenderá a vantagem desse
método.

Segundo dados da Rede Europeia de Justiça em matéria civil e comercial[2], as carreiras


jurídicas de magistrado, membro do Ministério Público e advogado possuem as
seguintes características:

a) Magistratura. O juiz (Richter) é um agente político e sua seleção varia conforme as


normas locais. Em geral, a escolha para os cargos de início de carreira dá-se pelo
ministro da Justiça das unidades federadas ou por meio de um comitê de busca, cuja
composição é variável, podendo haver juízes, advogado, políticos e personalidades de
relevo. Os tribunais federais (por exemplo, o Bundesgerichtshof -Tribunal Federal de
Justiça e o Bundesverwaltungsgericht - Tribunal Federal Administrativo) têm seus
membros escolhidos por um comitê de busca federal e pelo ministro de Estado
competente para o respectivo tribunal. Os magistrados federais devem sua nomeação ao
presidente da República.

O cargo é privativo de nacionais alemães e não há, como visto, um concurso público
para ingresso na carreira. É necessário, porém, que o candidato seja bacharel em Direito
e haja sido aprovado no Segundo Exame de Estado. Suas notas nesses exames definirão
fortemente suas possibilidades de ser escolhido para o cargo.

b) Ministério Público. Seus membros são denominados de magistrados do Ministério


Público (Staatsanwälte). O processo de seleção é muito assemelhado ao dos juízes. Não
há autonomia administrativa e independência funcional. Em última análise, reportam-se
ao ministro da Justiça do respectivo Lander ou da República Federal, conforme seus
vínculos de carreira. Os requisitos para o cargo equivalem-se aos de juiz, tendo enorme
peso a nota nos Exames de Estado. Não há restrição a que membros de outros Estados
da União Europeia sejam membros do Ministério Público.

c) Advogados. São profissionais liberais e possuem status de “órgãos independentes da


administração da justiça”. É necessário ter uma licença para o exercício da advocacia,
obtida por meio de um processo pelas Rechtsanwaltskammern (Câmaras de
Advogados). O ingresso na advocacia exige do interessado o atendimento dos mesmos
requisitos para o acesso à carreira de juiz, com ressalvas em se tratando de advogados
europeus. É necessária aprovação no Primeiro e no Segundo Exame de Estado.

Existem outras carreiras, mas fiquemos com essas três.

O que há de comum entre elas? A ausência da figura do concurso público, como nós o
conhecemos no Brasil. Entretanto, o filtro de entrada é comum às três carreiras e ele tem
natureza dupla: é aplicado no final do curso de bacharelado (Primeiro Exame de Estado)
e depois do período de 2 anos que antecede à aplicação do Segundo Exame de
Estado. Não é sem causa que um jurista alemão coloque em suas páginas pessoais,
currículo e, alguns, em seus livros que foram aprovados nesses exames, com indicação
do local (pois há variações entre exames aplicados por este ou aquele Lander) e da nota
obtida. É este o mais importante cartão de visitas de um jurista alemão para o mercado
de trabalho. Pode-se dizer que esses exames são o combustível da usina de mandarins
alemães.

O Primeiro Exame de Estado(PEE)[3]


Este primeiro exame, que é qualificado como “estatal” por ser aplicado pelos Länder e
suas autoridades, de modo independente das universidades, exige dos candidatos a
capacidade de solucionar problemas práticos (estudo dos casos) por meio da aplicação
da lei. As questões conceituais, como bem anota Tilman Quarch, “só são feitas na parte
das Zusatzfragen (perguntas adicionais)”. O paradigma das questões do Primeiro Exame
é o trabalho de cassação, ou seja, a verificação de erros de direito, à semelhança do que
faz o Superior Tribunal de Justiça no Brasil no exercício dessa competência, e do
Tribunal Federal de Justiça alemão, de modo mais específico. Neste exame, o
Gutachtenstil (estilo de parecer) é o predominante.[4]

As notas no PEE variam de zero a 18 pontos. Tilman Quarch, em tabela apresentada no


referido artigo publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo, que nós
coordenamos, demonstra a importância e o impacto desses resultados.[5] 0,15% dos
candidatos ficam com notas entre 14-18 pontos. No intervalo de 11,50-13,99, estão
3,10% dos certamistas. A terceira faixa – 9-11,49 pontos – compreende 14,24%. O
grosso das notas está nos intervalos de 6,50-8,99 (26,78%), 4,00-6,49(26,78) e 1,50-
3,99 mais 0-1,49 (28,95).[6]

O PEE é aplicado por tribunais locais (v.g. Renânia do Norte-Vestefália) ou por um


órgão do Ministério da Justiça do Lander (v.g. Baixa Saxônia), cabendo sua elaboração
e correção por comissões de variável composição (juízes, magistrados do Ministério
Público, advogados do Estado, professores.

O Segundo Exame de Estado (SEE)[7]


Durante a faculdade, não há formação prático-profissional, como os estágios no Brasil.
Essa etapa ocorre precisamente após o aluno ter concluído o curso e haver sido
aprovado no PEE. Após isso, ele inicia um período de Referendariat, um estágio
obrigatório de duração média de 2 anos, no qual “o Referendar (assim se chama o
jurista-estagiário durante o Referendariat) aprende a Relationstechnik, i.e., a “técnica de
relação” dos fatos que corresponde à observância dos ônus da alegação e da prova
(Darlegungs– und Beweislast) tal como está disciplinada pelo processo civil
alemão”.[8]

O Referendar, em tese, estagia em tribunais, no Ministério Público e em escritório de


advocacia, além de outros ofícios aonde tenha interesse ir. A intenção é que ele se
familiarize com as diferentes formas de exercício profissional e, ao fim, escolha a que
irá seguir. É possível que este venha a escolher o magistério superior. Nesse caso, a
experiência no Referendariat não lhe será inútil: ele a usará na docência ou, em muitos
casos, na oferta de pareceres (o que alguns professores fazem diretamente ou por meio
de contratação do instituto de pesquisa ao qual está vinculado) ou ainda quando os
professores são chamados a integrar os tribunais regionais ou as cortes superiores. Não
é necessário ter o SEE para ingressar no magistério. Mas, é quase impossível que
alguém seja aceito como docente universitário sem o SEE e com notas medíocres no
exame. O estagiário recebe um bolsa durante o Referendariat.

A estrutura de notas do SEE é muito próxima à do PEE. Tomando-se novamente o


exemplo do exame da primavera de 2013 no Estado de Baden-Württemberg, desta vez
com dados do SEE, veja-se essa aproximação nos resultados, em ordem decrescente:
14-18 pontos (muito bom, 0,37%); 11,50-13,99 (bom, 1,12); 9-11,49 (plenamente
satisfatório,19,33%); 6,50-8,99 (satisfatório, 38,66%); 4-6,49 (suficiente, 30,11%) e
1,5-3,99 (deficiente)e 0-1,49 (insuficiente), com o percentual de 10,41. As notas do
padrão baixo (deficiente e insuficiente) apresentaram maior diferente no SEE, o que se
explica pela seleção ocorrida no PEE, que eliminou os piores candidatos.[9]

O impacto dos Exames de Estado


Os efeitos dos resultados dos exames na vida profissional são imensos. A reprovação
por duas vezes impede a obtenção do título. Não há terceira oportunidade. As notas
acumuladas abaixo de 9 inviabilizam a contratação na maior parte dos escritórios e, se
estas ocorrem, dão-se em condições menos vantajosas e após maior tempo de espera. A
colocação nos exames também determina a carreira jurídica, sendo as mais prestigiadas
destinadas aos que obtiveram notas mais elevadas.[10]

Por conta de críticas ou de opções políticas governamentais, adotou-se uma composição


mista do Exame de Estado, com a integração de até 30% da nota por uma avaliação feita
pela própria universidade. Segundo Tilman Quarch, essas notas universitárias “não são
levadas a sério pelo mercado de trabalho”, o que leva os candidatos a pedirem que elas
sejam discriminadas no currículo, a fim de evitar confusões.[11]

O modelo alemão é meritocrático e implacável com os que não alcançam resultados


satisfatórios em sua vida universitária e no estágio preparatório ao SEE. A preocupação
em se ficar preso nas frestas do sistema ronda os estudantes e os torna mais
conscienciosos de que não há uma terceira oportunidade. Os efeitos colaterais são
também notórios: a) menor preocupação com disciplinas não dogmáticas; b)
direcionamento da vida universitária para uma boa formação voltada aos exames
estatais. Os defensores do modelo, contudo, reagem com 2 argumentos: a) os bons
alunos interessar-se-ão por disciplinas não dogmáticas e seguirão os estudos nesses
temas por vontade, associando os dois saberes. Saber Filosofia não é impeditivo que se
conheça bem Direito Penal; b) a média geral qualitativa dos alunos termina por se
elevar, o que justifica a conservação do modelo.

Quando este colunista participou da Comissão do Ministério da Educação para a


Reforma do Ensino Jurídico brasileiro (2013-2014), um dos pontos que colocamos para
apreciação dos pares foi a introdução de algo semelhante ao Primeiro Exame de Estado
no Brasil. Era uma forma de retirar o peso da avaliação dos alunos sobre os professores
e também de uniformizar os padrões de qualidade do ensino, além de inserir o Estado
como um agente mais próximo do que era produzido nas faculdades de Direito. A ideia
não foi apoiada pela maioria dos membros do comitê. Ponderou-se que não havia
condições de introdução desse modelo no Brasil nas circunstâncias atuais.

O Repetitorium
Como prometido na última coluna, vamos falar muito brevemente dos cursinhos
jurídicos alemães. Trata-se de uma instituição muito antiga, oriunda do final do século
XVIII e que hoje é operada majoritariamente por lucrativas empresas privadas (bem
longe do conceito de “instituição de caridade”), apesar de algumas universidades
manterem um Repetitorium público para seus estudantes. As aulas são voltadas à
preparação para o exame estatal e têm seu público formado por estudantes
universitários.

Muito da literatura jurídica alemã sobre Direito Civil ou Direito Penal, traduzida para o
português e que é citada por autores brasileiros como se fossem “grandes obras”, não
passam de livros de cursinhos alemães, com seus estudos de casos e questões
específicas para quem deseja se submeter ao exame estatal.

Alguns desses “resumos” são elaborados por professores universitários, pelo que
recebem bons valores em direitos autorais. No entanto, eles não lecionam nessas
instituições. É igualmente impensável que um docente de Repetitorium seja admitido
como professor em uma universidade alemã respeitável.

Conclusões

Encerramos hoje a longa viagem pelo riquíssimo modelo de ensino jurídico alemão.
Com suas virtudes e seus problemas, o exemplo da Alemanha deve ser estudado com
profundidade. Muitas das soluções ali encontradas não são compatíveis com a realidade
nacional, seja pela diferença na seleção dos professores, seu prestígio e sua
representação social, a existência dos exames estatais e a formação prático-profissional
ser diferida para depois da universidade. Apesar disso, a investigação sobre essa
experiência evita que se propaguem muitos mitos sobre o que seria melhor para a
qualidade do ensino jurídico, como se procurou demonstrar nesta série de colunas.

A ética meritocrática, a existência de mecanismos de exclusão (praticamente) definitiva


por insuficiência de notas, a valorização dos códigos (não no modelo de leitura
descontextualizada, evidentemente), a participação do Estado na seleção dos
universitários e graduados, são standards, práticas e valores cujo aproveitamento
deveria ser pensado a sério no Brasil. A específica questão dos exames deveria,
contudo, ser objeto de ampla discussão sobre sua metodologia, o tipo de conhecimento
exigido e, acima de tudo, seria imperativa a existência de controles sociais sobre o
processo. Não se poderia admitir a perpetuação de bancas, a ausência de critérios
formais para sua composição e que a sociedade deixasse de fiscalizar suas atividades,
como infelizmente se dá hoje em muitas provas de ingresso em carreiras jurídicas.

No volume 1 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, Nelson Nery Jr., em


entrevista concedida a este colunista, deu um depoimento dos mais eloquentes sobre as
qualidades do modelo alemão, que tanto influenciou sua formação e sua vida
profissional:

“O professor Schwab então me disse: ‘Aqui na Alemanha, as pessoas estudam. Elas não
ficam esperando o professor ensinar, elas vão à biblioteca, leem e estudam, não ficam
esperando pelo professor’. Foi um grande contraste para mim. (...) O estudante lá é um
estudante, na acepção da palavra. (...) Isso tudo me impressionou muito. O aluno
alemão tem de estudar em profundidade os assuntos. Ele deve fazer esses trabalhos de
pesquisa, com referências em vários autores, com notas de rodapé”.[12]
Reflitamos sobre essas palavras de um de nossos grandes juristas. Na próxima coluna, o
ensino jurídico em Portugal.

[1] FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente versus Oriente. Tradução de Janaína


Marcoantonio. 1. reimpressão. São Paulo: Planeta, 2012. p. 69.

[2] Disponíveis em: http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_ger_de.htm.


Acesso em 15-2-2015.

[3] Erste juristische Staatsprüfung.

[4] QUARCH, Tilman. Introdução à hermenêutica do direito alemão: der


Gutachtenstil.Revista de Direito Civil Contemporâneo, v.1, outubro-dezembro de
2014, p.251.

[5] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[6] Resultados do PEE da primavera de 2013 no Lander de Baden-Württemberg.

[7] Zweite juristische Staatsprüfung.

[8] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[9] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit. Dados também disponíveis aqui:
http://www.jum.baden-
wuerttemberg.de/pb/site/jum/get/documents/jum1/JuM/import/pb5start/pdf/ii/II%20F%
2013%20-%20Ergebnisse.pdf. Acesso em 16-2-2015.

[10] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[11] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[12] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Entrevista com Nelson Nery Jr. Revista de
Direito Civil Contemporâneo. v. 1, p. 367, out.-dez. 2014.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista em alguns lugares do


mundo? O modelos português (Parte 5)
25 de fevereiro de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

“Sei muito bem o que quero e para onde vou”: o governo dos juristas

O ideal platônico de uma sofocracia, o governo dos sábios, defendido no livro A


república, fracassou quando Platão tentou implementá-lo na Sicília, sob o reinado de
Dionísio I, o tirano de Siracusa. Platão terminou preso e vendido como escravo pelo rei,
que se irritara com o filósofo e seus planos de transformar Siracusa em um “estado
platônico”.

Algo próximo de um “governo de professores” começou a existir na República


Portuguesa, em 1928, quando assumiu o ministério das Finanças o professor Antônio de
Oliveira Salazar (1889-1970), catedrático de Economia Política, Ciência das Finanças e
Economia Social da Universidade de Coimbra. Licenciado em Direito no ano de 1914,
com a altíssima nota de 19 valores (algo como um 9,5), tendo-se convertido
posteriormente em um dos mais jovens catedráticos da história de Coimbra.

Com a crise econômica que assolava Portugal, governado por uma ditadura militar, ele
foi chamado pelo general Oscar Carmona, então presidente da República, para pôr
ordem nas finanças nacionais. Ao ser empossado, proferiu o célebre discurso, que ficou
marcado pela frase: “Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija
que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame,
discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar”[1].

O jovem scholar, filho de camponeses arrendatários de terras de um fidalgote rural de


Santa Comba, na região vinícola do Dão, é o símbolo da transformação social ocorrida
em terras portuguesas após a virada do século XIX. Embora houvesse, desde meados do
Oitocentos, a formação de uma burguesia e de um proletariado no país, o acesso aos
altos postos militares, diplomáticos e da burocracia real eram franqueados à nobreza,
embora esse conceito fosse mais elástico em um país com quase mil anos de história
como Estado nacional. Em quase todo lugar, poder-se-ia alegar a existência de “alguns
avos de sangue godo”, como se dizia à época.

Em 1910, proclamou-se a República Portuguesa, advinda do brutal assassínio del-rey D.


Carlos e de seu herdeiro o príncipe real D. Luís Felipe em 1908. Os novos senhores do
país acenaram aos donos dos meios de produção que a aliança Estado-burguesia seria
conservada. Isso não impediu que Portugal atravessasse anos difíceis, com rebeliões,
golpes de Estado e a sangrenta participação na Primeira Guerra Mundial, onde os
batalhões portugueses foram praticamente dizimados em combates como a Batalha do
Lys, tudo para se honrar a Aliança Luso-Inglesa de 1373, o mais antigo tratado
internacional em vigor no mundo.
Novos homens eram necessários para ocupar postos importantes no Estado português,
que ainda conservava um império colonial em África e Ásia. E Salazar era um desses. A
universidade constituiu-se no meio privilegiado de acesso a esses “novos homens” a um
mundo anteriormente dedicado a aristocratas, clérigos e filhos terceiros da burguesia.

Em pouco tempo, Salazar recuperou as finanças portuguesas e, à custa do prestígio


adquirido com esse inesperado êxito, passou a controlar paulatinamente o orçamento de
outras pastas ministeriais. Ato contínuo, foi-se elevando no gabinete até assumir a
presidência do Conselho de Ministros, equivalente a um primeiro-ministro, e,
finalmente, tornou-se o ditador virtual da nação. Apesar de eleições de fachada e da
conservação da presidência da República em poder dos militares, Salazar foi eliminando
ou mitigando as forças que lhe podiam fazer oposição. Enganou os monarquistas,
apaziguou a Igreja com uma concordata e jogou os líderes militares uns contra os
outros.

Salazar conduziu o país a uma ditadura cada vez mais forte, o que foi facilitado por sua
habilidade em se manter fora da Segunda Guerra Mundial e pela guerra fria pós-1945,
que o colocou na posição de um mal menor no cenário internacional. Era melhor um
ditador como ele do que a ascensão comunista em Portugal e suas colônias.

Nos anos 1960, Portugal envolveu-se totalmente nas guerras coloniais em África. Ao
passo em que França e Reino Unido descolonizavam seus antigos impérios. Salazar
manteve-se aferrado ao ideal de um Portugal uno, transnacional e pluricontinental. Com
a mesma coragem de seus antepassados, milhares de soldados portugueses tombaram
em defesa de uma causa perdida. Graças a um acidente, Salazar perdeu a consciência
em 1968 e foi sucedido pelo catedrático de Direito Administrativo Marcelo Caetano, até
que este veio a ser derrubado em 1974 na Revolução dos Cravos.

Os governos salazarista e marcelista foram, em sua maioria, compostos por catedráticos


das Universidades de Lisboa e de Coimbra. Evidentemente que eram docentes de várias
áreas do conhecimento, como Direito, Engenharia, Medicina ou Economia. Para nós
interessam apenas os professores de Direito. E eles foram muitos! Antonio Costa Pinto,
ao examinar o período de 1933-1945, apresenta dados interessantes sobre a composição
dos ministérios de Salazar:[2]

a) A média de idade de 44 anos, compatível com a juventude do líder, era esta: “25,7%
dos ministros tinham entre 20 e 29 anos, 48% tinham entre 40 e 49 anos e apenas 25,7%
tinham mais de 50 anos”. Sendo que “se fossem apenas incluídos os ministros civis, a
média baixaria, pois era a componente militar que fazia subir a idade média, com a
presença de oficiais generais activos durante a ditadura militar e mais velhos, em geral,
do que a elite civil”.

b) Do total, 40% dos ministros eram professores universitários. Em um segundo lugar,


estavam os militares (28,6%), por razões óbvias. Desses docentes, a grande maioria era
formada por juristas: “A Universidade de Coimbra continuava ainda neste período a
assegurar a grande maioria dos licenciados em Direito membros do governo (71%)
perante a mais jovem Faculdade de Direito de Lisboa (28,5%)”.
Em estudos de outra procedência, tem-se que 80% dos professores de Direito de
Coimbra ocuparam posições políticas de relevo no regime salazarista, enquanto 66,7%
dos catedráticos de Lisboa exerceram tais ofícios.[3]

Muitos juristas famosos no Brasil integraram os sucessivos gabinetes de Salazar e de


Marcelo Caetano. Citem-se alguns: a) Ministros da Educação: Fernando Andrade Pires
de Lima, Manuel Rodrigues Junior e Inocêncio Galvão Teles[4]; b) Ministros da
Justiça: Adriano Pais da Silva Vaz Serra (mentor do Código Civil português de 1967),
João de Matos Antunes Varela, Mário Júlio Brito de Almeida Costa (um dos mais
jovens ministros do regime). Não se incluíram aqui os cargos de reitor, vice-ministro,
governador ultramarino e outras funções de relevo.

A viragem das faculdades de Direito e suas relações atuais com o poder


Antes que se façam aquelas ilações fáceis entre conservadorismo e Direito ou entre a
ditadura e os professores, é necessário demarcar alguns espaços.

O primeiro é que não se compreende a situação política de Portugal sem se observar a


profunda transformação operada nos cursos jurídicos por Guilherme Alves Moreira
(1861-1922), catedrático de Direito Civil da Universidade de Coimbra, responsável pela
viragem das faculdades de Direito portuguesas da influência francesa para a alemã. Esse
processo está bem descrito no item 4.2. de meu artigo A influência do BGB e da
doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. Esse voltar-se para a
Alemanha trouxe consigo a importação dos modelos germânicos e não apenas de
conteúdo dogmático, mas também a representação social do docente universitário. Dito
de outro modo, a ideologia dos “professores mandarins” da Alemanha chegou a
Portugal e, com ela, a autoconsciência de uma classe que poderia, assim como naquele
país, ser usada para substituir as tradicionais elites aristocráticas ou religiosas nas
grandes funções do Estado.

Salazar não inventou essa ideologia dos “professores mandarins”. Ele próprio é um
fruto desse novo modelo.

O segundo espaço demarcável liga-se ao primeiro, da ascensão social dos catedráticos


não aristocratas. Assim como na Alemanha, o vocativo “Senhor Professor Doutor” (ou
a forma sincopada “Sotô”) transmudou-se em título de nobreza republicano. O respeito,
a deferência e a precedência acarretados por uma cátedra universitária suplantaram, em
certos círculos, idênticos efeitos causados por um título de conde, barão ou marquês.
Com isso, muitos jovens de classes sociais menos privilegiadas encontraram na
universidade uma forma de singular ascensão meritocrática.

Em processos históricos como o português, dá-se algo quase universalmente verificável:


jovens competentes, com fortes rancores por humilhações sofridas em sua estóica
corrida por ascensão (Salazar foi impedido de namorar a filha do fidalgote rural de
quem seu pai era um feitor, por causa da assimetria social entre ele e a moça), são
facilmente cooptáveis por regimes de força. Isso aconteceu na Alemanha nazista e
também no Brasil, especialmente no período de 1964-1984, além do Chile e de outros
países que viveram situações afins no século XX. No caso português, houve um
ingrediente adicional: um catedrático era o próprio ditador. Nada menos surpreendente
do que seus colegas o auxiliarem na governação do país. Ele era um deles afinal.
Com o fim da ditadura, Portugal continuou a ser um país dos catedráticos. A
radicalização do chamado “processo revolucionário em curso” — PREC, que durou até
o contragolpe de 25 de novembro de 1975, afastou dezenas de catedráticos tidos como
ligados ao regime e permitiu a ascensão de jovens professores diante do vácuo causado
pelos chamados “saneamentos”. Os docentes eram “saneados”, ou seja, exonerados de
seus cargos sem o devido processo legal. Muitos deles fugiram para o Brasil e aqui
lecionaram em grandes universidades, como o próprio Marcelo Caetano. Orlando
Gomes e Aliomar Baleeiro, pessoas que não gozavam das graças do regime militar
brasileiro, foram os anfitriões de muitos colegas portugueses. Ideologias antípodas não
impediram a demonstração de solidariedade.

Diferentemente do caso alemão, onde se deu a cumplicidade entre os jovens professores


e o regime, no Portugal pós-Revolução dos Cravos, a ocupação dessas cátedras operou-
se por simples efeito do vácuo nas universidades. É também importante registrar que
muitos desses acadêmicos foram orientados ou estudaram durante a ditadura e
conseguiram manter-se à margem da perseguição política, mesmo sendo socialistas (a
oposição de centro-esquerda) ou monarquistas e liberais (a oposição ao regime formada
pela centro-direita). Nas faculdades de Direito, com maior ou menor intensidade, houve
um espírito de corpo entre os professores de diferentes ideologias.

As faculdades de Direito portuguesas, desde a década de 1980, convivem com docentes


de variegada procedência, inclusive alguns dos “saneados” que retornaram ao país e
retomaram seus cargos. Existe a clivagem político-partidária, assim como na Alemanha,
especialmente notável pelas simpatias que se dividem entre o Partido Socialista (centro-
esquerda) e o Partido Social Democrata, em aliança com o Partido Popular-Centro
Democrático Social (centro-direita).

Jovens de 1974-1975 são hoje os jubilados catedráticos Jorge Miranda (membro da


Assembleia Constituinte) e José Joaquim Gomes Canotilho. Sérvulo da Cunha, Antonio
Castanheira Neves, Vital Moreira, Avelãs Nunes, José de Oliveira Ascensão, atualmente
aposentados, somam-se a nomes como Antonio Pinto Monteiro, Rui Figueiredo Marcos,
Jónatas Machado, Marcelo Rebelo de Souza, Antonio Menezes Cordeiro, Dario Moura
Vicente, Eduardo Véra-Cruz Pinto e outros ilustres catedráticos que são conhecidos e
respeitados no Brasil e em outros países.

A elite política portuguesa, embora não mais com a predominância do passado, ainda
recolhe muitos de seus quadros ministeriais nas universidades, de modo particular nas
faculdades de Direito. Em novas bases, as relações com o poder político se conservaram
muito próximas do que se dá na Alemanha contemporânea.

Um dos pontos mais impressionantes é a popularidade e o respeito social dos


catedráticos portugueses. Marcelo Rebelo de Souza, catedrático da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa, foi ministro para Assuntos Parlamentares do 8o Governo
Constitucional, é comentarista dominical de um dos programas de maior audiência da
televisão portuguesa e provável candidato à presidência da República em 2016, com
altos índices nas pesquisas eleitorais. Jorge Miranda, catedrático jubilado da
Universidade de Lisboa, um dos constitucionalistas mais famosos no Brasil, é
frequentemente convidado a falar sobre a situação portuguesa nos meios de
comunicação. Este colunista, que foi seu orientando no estágio pós-doutoral realizado
em Lisboa, testemunhou, em várias ocasiões, cenas públicas em restaurantes ou nas
ruas, nas quais Miranda era saudado pelos populares como seria no Brasil uma estrela
de futebol.

Até breve
Nesta primeira coluna sobre o ensino jurídico em Portugal, buscou-se apresentar ao
leitor um panorama histórico sobre a construção do “moderno” conceito de docente
universitário naquele país, com todas as implicações que isso possui para a
compreensão do modelo.

Na próxima semana, a universidade portuguesa e a estrutura docente.

[1] Discurso proferido aos 27 de abril de 1928, no ato de posse de Antonio de Oliveira
Salazar no Ministério das Finanças. A íntegra está disponível aqui:
http://www.arqnet.pt/portal/discursos/abril01.html. Acesso em 16-2-2015.

[2] PINTO, António Costa. O império do professor: Salazar e a elite ministerial do


Estado Novo (1933-1945). Análise Social, v. 35 (157), p.1-21, 2000. As passagens
entre aspas são citações literais deste autor.

[3] FARIA, Cristina Azeredo. A elite universitária da ditadura. História. n.23-24, ago.-
set. 1996. p.48-49.

[4] BRAGA, Paulo Drumond. Os ministros da Educação Nacional (1936-1974).


Sociologia de uma função. Revista Lusófona de Educação. v. 16, p. 23-38, 2010.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo português


(Parte 6)
4 de março de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Na coluna anterior, começamos a estudar o modelo de ensino jurídico português. A


formação de um quadro de “professores mandarins” e o papel dos docentes
universitários na república, ao longo do século XX, mereceram especial atenção.
Portugal e Alemanha aproximam-se nesse percurso histórico, em muito favorecido pela
mudança de matriz universitária iniciada em 1904, com abandono da França e escolha
da Alemanha como referencial.

Nesta coluna, veremos as faculdades de Direito, a carreira docente e o currículo em


Portugal.

As faculdades de Direito portuguesas


Os cursos jurídicos portugueses tradicionalmente limitaram-se aos núcleos de Coimbra
e de Lisboa. Ao longo do século XX, deu-se um sensível deslocamento da centralidade
na área jurídica de Coimbra para Lisboa. Tal se refletiu no número de cargos de
catedrático. Veja-se que as duas maiores faculdades de Direito públicas em Portugal
possuem os seguintes números de (a) catedráticos em atividade, (b) associados com
agregação, (c) associados sem agregação, (d) auxiliares e (e) assistentes:

1) Universidade de Coimbra: (a) 11; (b) 3; (c) 8; (d) 37 e (e) 27 (excluídos os


assistentes convidados).[1]

2) Universidade de Lisboa: (a) 22; (b) 3; (c) 17; (d) 56 (excluídos os auxiliares
convidados) e (e) 33.

Nos anos 1990, quando se radicalizou a europeização de Portugal, o número de


faculdades de Direito passou a crescer acentuadamente. Em 1993, são criadas a Escola
de Direito do Minho e Faculdade de Direito da Universidade do Porto. No ano de 1996,
fundou-se a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Os cursos privados
também se ampliaram desde então. Mesmo assim, o número de faculdades de Direito
em Portugal é relativamente pequeno:

a) Instituições públicas – 1) Escola de Direito da Universidade do Minho; 2) Faculdade


de Direito da Universidade de Coimbra; 3) Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa; 4) Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

b) Instituições privadas: 1) Curso de Direito da Universidade Autônoma Portuguesa; 2)


Universidade Lusíada de Lisboa; 3) Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias (Lisboa); 4) Escola de Direito da Universidade Católica de
Lisboa; 5) Escola de Direito da Universidade Católica do Porto; 6) Universidade
Lusófona do Porto; 7) Faculdade de Direito da Universidade Lusíada do Porto.
As estruturas físicas, de docência e de investigação são bastante variáveis. Em Coimbra,
os investimentos na assinatura de periódicos internacionais são constantes. A biblioteca,
uma das mais antigas da Europa, segue um estilo comum a algumas instituições
italianas. Os livros ficam em armários fechados e o acesso dá-se por meio de consulta
ao catálogo eletrônico e posterior solicitação à bibliotecária. Projeta-se a construção de
uma nova e moderna biblioteca para a Faculdade de Direito. Na faculdade de Lisboa, na
gestão do catedrático Jorge Miranda, ergueu-se um novo anexo ao prédio principal,
ocupado por uma nova biblioteca e por gabinetes dos docentes. A biblioteca é muito
completa, com periódicos internacionais, embora já se comecem a sentir os efeitos das
restrições orçamentárias advindas da crise econômica pela qual o país atravessa desde
2008.

Há críticas sobre a qualidade dos egressos dos cursos particulares não confessionais.
Essa circunstância levou a Ordem dos Advogados portuguesa a sugerir a criação de uma
espécie de exame de Ordem, no que foi rechaçada pelos professores de Lisboa e
Coimbra.[2]

A carreira docente universitária em Portugal


A norma central sobre a carreira de professor universitário é o Decreto-lei 448, de 13 de
novembro de 1979, com sucessivas modificações e republicado pelo Decreto-lei 205, de
31 de agosto de 2009.[3] A estrutura compõe-se de professor catedrático, professor
associado e professor auxiliar. A figura do professor assistente foi extinta, embora
permaneçam a existir nas universidades até que seus ocupantes se promovam,
exonerem-se ou se aposentem.

As atribuições dos catedráticos lembram e muito as equivalentes alemãs: “Ao professor


catedrático são atribuídas funções de coordenação da orientação pedagógica e científica
de uma disciplina, de um grupo de disciplinas ou de um departamento, consoante a
estrutura orgânica da respectiva instituição de ensino superior (...)”.[4] Ao professor
associado compete “coadjuvar” os catedráticos, além de reger disciplinas, orientar
trabalhos de pesquisa e colaborar com aqueles nas funções administrativas (item 2 do
artigo 5o). O professor auxiliar tem por função lecionar aulas, “podendo ser -lhe
igualmente distribuído serviço idêntico ao dos professores associados, caso conte cinco
anos de efetivo serviço como docente universitário e as condições de serviço o
permitam” (item 3 do artigo 5o). Nos cursos de Direito das universidades públicas
portuguesas, especialmente em Lisboa e Coimbra, são bem marcadas essas posições
hierárquicas, tal como ocorre na Alemanha.

Vamos à forma de recrutamento desses quadros docentes.

Só se admite o ingresso dos docentes das três categorias por concurso (artigos 9º c/c
11º). Há, no entanto, uma diferença: o catedrático e o associado contratam-se por tempo
indeterminado (artigo 19º). Na prática, isso quer dizer que eles são estáveis. A
legislação portuguesa usa de um termo comum no serviço docente norte-americano,
a tenure, ao declarar que eles gozam de um “estatuto reforçado de estabilidade no
emprego (tenure) que se traduz na garantia da manutenção do posto de trabalho, na
mesma categoria e carreira ainda que em instituição diferente”.

Os professores auxiliares são contratados inicialmente por um período experimental de


cinco anos. Após esse lapso, eles serão avaliados, segundo os critérios da universidade,
após o que será apresentada proposta ao órgão colegiado competente para: a) mantê-lo
na instituição com um contrato por tempo indeterminado; b) alternativamente, fazer
com que o docente volte à situação anterior, o que, na prática, implica não prosseguir na
carreira em regime de prazo indeterminado. Essa proposta, lastreada em um parecer
administrativo, deverá ser aprovada por dois terços do colegiado competente
(artigo 25o).

Nos concursos para catedrático é necessário que o candidato seja doutor e tenha a
chamada agregação há mais de cinco anos (artigo 40o). Para associado, é necessário que
o postulante seja doutor há mais de 5 anos (artigo 41o). O cargo de auxiliar só pode ser
disputado por quem detenha o título de doutor. Os antigos assistentes podiam prescindir
do doutorado.

E termos bem genéricos, poder-se-iam fazer as seguintes equiparações com o modelo


brasileiro: a) titular equivale a catedrático; b) associado equivale a professor associado
(na carreira da Universidade de São Paulo); c) auxiliar tem correspondência com o
cargo de professor doutor (na USP) ou de professor adjunto (nas universidades
federais). E o assistente português equiparava-se ao professor assistente das
universidades federais.

As bancas de concurso (denominadas de “júris dos concursos”) deverão ter um mínimo


de cinco e um máximo de nove membros, com maioria de examinadores externos à
instituição e com titulação superior à dos candidatos, salvo, por óbvio, nas seleções para
catedrático (artigo 46o).

A avaliação faz-se pelo currículo apresentado, levando-se em conta o “desempenho


científico” do postulante e “sua contribuição para o desenvolvimento e evolução da área
disciplinar”. A capacidade pedagógica é também apreciada, “tendo designadamente em
consideração, quando aplicável, a análise da sua prática pedagógica anterior”. Por
último, o júri considerará “outras atividades relevantes para a missão da instituição de
ensino superior que hajam sido desenvolvidas pelo candidato” (artigo 50o).
Diferentemente do que se dá nos concursos para professor titular no Brasil, em Portugal
inexiste a obrigação de se apresentar uma tese de cátedra, a espelho do modelo alemão.

O professor associado não apresenta uma tese como nossa livre-docência. Ele submete-
se ao procedimento de agregação, que são provas nas quais se avaliam o currículo do
candidato (um associado sem agregação), levando-se em conta sua produção acadêmica,
suas atividades de formação de discípulos, seus projetos de pesquisa e pela prestação de
serviços de interesse comunitário. Há, no entanto, a obrigatoriedade de se apresentar um
relatório sobre uma disciplina ou grupo de disciplinas, no qual o autor examina
problemas epistemológicos da área onde deseja se agregar. Esse relatório tem sido
objeto de muitas críticas, sendo bastante comum encontrar-se um parágrafo de estilo no
qual o candidato faz uma censura a esse critério de seleção. Finalmente, pode-se exigir
do postulante a apresentação de um seminário ou de uma aula sobre um tema da área de
conhecimento ou da especialidade vinculada às provas.[5]

A estrutura da carreira e a ausência de teses de livre-docência e de titularidade faz com


que ocorra em Portugal algo bem diverso do que ocorreu no Brasil. Aqui o título de
doutor em Direito converteu-se em um brevê, a partir do qual o novo doutor pode
almejar algum tipo de acesso à carreira docente em universidades de médio ou grande
porte. Em Portugal, o doutorado é ainda o opus magnum da carreira de um jurista. Não
é sem causa que as teses portuguesas impressionam por sua extensão, profundidade e
pela originalidade dos temas ali traçados. Além disso, teses mais antigas, como a de
Menezes Cordeiro, sobre a boa-fé, ou de Pinto Monteiro, sobre a cláusula penal, ambas
dos anos 1980, foram tão avançadas para a época que ainda hoje são obras fundamentais
no Direito Privado.

O regime de dedicação exclusiva (ou regime de dedicação integral à docência e à


pesquisa, na USP) existe em Portugal, o qual “implica a renúncia ao exercício de
qualquer função ou actividade remunerada, pública ou privada, incluindo o exercício de
profissão liberal” (artigo 70o). No entanto, admite-se que o docente exerça funções
como presidente da República, membro do Governo, procurador-geral da República,
juiz do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, deputado à
Assembleia da República, presidente ou membro de Câmara Municipal, assessor
jurídico e várias outras. Nesses casos, o docente não sofre qualquer prejuízo em sua
carreira.

Na prática, a maior parte dos catedráticos e associados das faculdades de Direito em


Portugal são docentes em regime de tempo parcial. Tal se deve, em larga medida, a um
aspecto muito peculiar: não há uma Advocacia-Geral da União ou equivalente em
Portugal. Muitos ministérios contratam escritórios privados para emissão de parecer ou
para ações judiciais e os docentes das faculdades de Direito mais respeitadas terminam
por ser os escolhidos para tais funções. Outras funções importantes como membros de
conselhos de administração ou fiscal de empresas públicas e privadas também são
exercidas por professores de Direito. A título de exemplo, veja-se que Menezes
Cordeiro, Pinto Monteiro, Jorge Miranda, José Joaquim Gomes Canotilho, Avelãs
Nunes, Dário Moura Vicente, Pedro Pais de Vasconcelos, Carneiro da Frada, José de
Oliveira Ascensão, e outros grandes juristas portugueses contemporâneos, não são
professores em regime de dedicação exclusiva.

Finalmente, a remuneração dos professores portugueses, conforme dados de 2009, é a


seguinte: 1) catedrático (último nível): a) dedicação exclusiva - €4.664,97; b) sem
dedicação exclusiva, com carga horária máxima: €3.109,98; 2) associado com
agregação (último nível): a) com dedicação exclusiva: €4.010,23; b) sem dedicação
exclusiva, com carga horária máxima: €2.673,49; 3) auxiliar: a) com dedicação
exclusiva: €3.191,82; b) sem dedicação exclusiva, com carga horária máxima:
€2.127,88.[6]

O currículo nas Faculdades de Direito


As universidades possuem enorme autonomia para fixação de seus currículos.
Diferentemente do que se tem afirmado em alguns fóruns, não há preponderância de
disciplinas optativas nos currículos das duas maiores faculdades de Direito de Portugal,
Lisboa e Coimbra.

Veja-se que, em Coimbra, há 37 disciplinas obrigatórias e 12 optativas, sendo que a


regra de distribuição entre umas e outras é muito objetiva: “No segundo semestre de
cada ano, o estudante deverá inscrever-se numa unidade curricular optativa de entre as
oferecidas para cada ano curricular em concreto”. Na prática, isso significa que o
aluno poder-se-á matricular, ao longo do curso, em 1 disciplina por ano, o que perfaz
uma mobilidade de quase 5% do total de cadeiras.[7]
Outra afirmação que se tem reproduzido equivocadamente sobre os currículos
portugueses está na prevalência de disciplinas não jurídicas (Psicologia, Antropologia,
por exemplo). Na Universidade de Coimbra, das 37 disciplinas obrigatórias, as únicas
não jurídicas são: a) Economia Política 1 e 2 (matéria já lecionada por António de
Oliveira Salazar); b) Medicina Legal (que não é bem um exemplo de uma disciplina não
jurídica). Nas optativas, encontram-se Alemão Jurídico, Inglês Jurídico, Direito do
Trabalho 2, Introdução ao Pensamento Jurídico Contemporâneo. Por sua vez, Direito
Romano, História do Direito Português e Direito da União Europeia são obrigatórias.

Essa correlação entre matérias obrigatórias e optativas ou entre disciplinas jurídicas e


não jurídicas é conservada, com ligeiras variações, na matriz curricular da Universidade
de Lisboa. No primeiro semestre, os alunos têm aulas de Introdução ao Estudo do
Direito 1, Teoria Geral do Direito Civil 1, Direito Romano, Direito Constitucional 1 e
Economia 1. No segundo semestre, as disciplinas são Introdução ao Estado do Direito
II, Teoria Geral do Direito Civil 2, Direito Constitucional 2 e História do Direito
Português. No segundo semestre, o aluno escolhe uma optativa de entre estas:
Economia 2, Filosofia do Direito, História das Ideias Políticas e Sociologia do Direito.
Como não jurídicas, têm-se apenas Economia e História das Ideias Políticas.[8]

Conclusões
Nesta coluna, três pontos essenciais podem ser destacados. O primeiro está na
aproximação da estrutura de carreira docente portuguesa e alemã. Estabilidade e
exclusividade no topo associadas à precariedade e multiplicidade na base. O segundo
está na conservação do doutorado como eixo fundamental da formação do professor
português. Nesse aspecto, há diferença do modelo alemão, cujo opus magnum da
carreira universitária é a tese de habilitação, equivalente a nossa livre-docência. O
terceiro ponto está na rigidez curricular e na prevalência das disciplinas jurídicas. Há
aqui um termo médio entre o modelo alemão e o brasileiro. Os portugueses também
valorizam disciplinas jurídicas não dogmáticas, o que se percebe por uma maior
abertura para estudos de Filosofia do Direito e História do Direito. O currículo mantém-
se fechado, com baixa quantidade de optativas e, mais que isso, um número restrito de
matérias não obrigatórias elegíveis ao longo do curso. Nem por essa razão é admissível
dizer que o ensino jurídico público em Portugal seja de má qualidade.

Na próxima semana, examinar-se-á a formação discente, os concursos públicos, a


literatura jurídica e a internacionalização no ensino jurídico português.

[1] Informações extraídas de: http://www.uc.pt/fduc/corpo_docente. Acesso em 17-2-


2015.

[2] Diário de Notícias, Lisboa, 2010. Disponível em:


http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1596295. Acesso em 20-2-
2015.

[3] Disponível em: http://www.dges.mctes.pt/NR/rdonlyres/40A12447-6D29-49BD-


B6B4-E32CBC29A04C/4616/DL_205_20091.pdf. Acesso em 22-2-2015.

[4] Art. 5o, item 1, Decreto-lei no 448, de 13.11.1979.


[5] Informações extraídas do Decreto-lei no 239, de 19 de junho de 2007, que regula a
agregação em Portugal. Disponível em:
https://dre.pt/application/dir/pdf1sdip/2007/06/11600/39003903.pdf. Acesso em 22-2-
2015.

[6] Tabela salarial dos professores universitários portugueses de 2009, disponível em:
http://sigarra.up.pt/fpceup/pt/legislacao_geral.legislacao_ver_ficheiro?pct_gdoc_id=219
0. Acesso em 22-2-2015. Podem ter ocorrido reduções em razão das contribuições
extraordinárias instituídas pelo Governo português para atender aos controles da União
Europeia, após a crise econômica iniciada em 2008.

[7] Confira-se a matriz curricular da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


aqui: https://apps.uc.pt/courses/PT/programme/1556/2012-2013?id_branch=2361).
Acesso em 22-2-2015.

[8] Informações extraídas do sítio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,


no campo Plano de Estudos. Disponível em:
http://www.fd.ulisboa.pt/CursosAlunos/Licenciatura.aspx. Acesso em 22-2-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 4 de março de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo português


(Parte 7)
11 de março de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Minha pátria é minha língua


“Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto
sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa”. Com esses belos versos,
Fernando Pessoa faz uma declaração de amor ao idioma, em seu Livro do
Desassossego, e converteu a frase-título em sede do que certos autores definem como
um “patriotismo linguístico”.

Portugal moderno, destituído do império ultramarino, atravessa uma crise econômica


muito grave, ampliada pela deterioração do sistema monetário europeu e pela perda do
financiamento dos fundos comunitários, tal como se experimentou nos anos de fartura
da década de 1990. O fim da estrutura colonial foi catastrófica, embora nada
comparável ao que houve após a independência do Brasil em 1822, fruto da atualmente
considerada insana regressão no arranjo constitucional posto em prática por D. João VI,
quando instituiu o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. No período de 1800 a
1827, as receitas da monarquia portuguesa caíram em 38% e o comércio exterior perdeu
75% de seu valor.[1]

A ruptura com o passado colonial, no entanto, manteve a nação portuguesa vinculada ao


legado linguístico e é precisamente esse ponto que importa mais diretamente à coluna
de hoje: a língua portuguesa não é um idioma franco no cenário acadêmico
internacional. Os efeitos disso, que se mostram também na Literatura (quantos prêmios
Nobel nossa língua já recebeu?), estão nos rankings das publicações e, por efeito, das
universidades. Em Direito, esse é um problema ainda mais sério, o que não se dá na
Física ou na Matemática. Nesse aspecto, os países lusófonos não estão sozinhos.
Italianos e agora os franceses sofrem com o isolamento linguístico. Desde meados do
século XX, o francês não é mais uma língua franca nos meios universitários.

Na Holanda e na Bélgica, a questão foi resolvida com uma solução radical e perplexa,
posto que eficiente: fala-se inglês nas universidades. Para os belgas, às voltas com o
separatismo dos flamengos, terminou por ser uma forma inteligente de superar essa
cisão nos meios acadêmicos.

O inglês, língua imperial há mais de 200 anos, tornou-se o latim de nosso tempo,
especialmente após a hegemonia norte-americana no século XX. Se o inglês é o latim,
restou ao alemão ser o equivalente contemporâneo do idioma grego. A sofisticação do
pensamento grego sempre foi superior ao caráter analítico do latim e sua literatura no
Império Romano. No Direito, esse papel do alemão é ainda mais relevante, assim como
na Filosofia, na Sociologia ou na Psicologia.
Para os países de tradição de civil law, a utilização do inglês como idioma franco é
motivo de tormenta ou de ridículo, de modo especial quando se volta para ramos
clássicos como o Direito Civil. Alguns exemplos comprovam isso. O primeiro está na
simples consulta a abstracts de artigos publicados em português no Brasil. O segundo
está no uso frequente de parêntesis com palavras latinas em obras de autores alemães
para esclarecer dúvidas sobre a correta versão de certa categoria jurídica para o inglês.
O terceiro está em que, nos países de common law, não há, por exemplo, o conceito de
“Direito Civil”, como disciplina única e sistêmica, mas de Torts (responsabilidade
delitual), Contracts e Family Law, também exemplificativamente. Daí ser um equívoco
traduzir Direito Civil por Civil Law. Este é apenas um de entre vários exemplos, que são
mais ou menos intensos a depender da província jurídica. Em Direito Constitucional,
disciplina mais jovem e com desenvolvimento mais aproximado nos dois sistemas,
essas assimetrias diminuem.

Nesse embate linguístico de nossa época, Portugal alinha-se escancaradamente com o


alemão. Essa viragem deu-se no início do século XX nas universidades portuguesas
graças ao projeto de reforma iniciado pelo civilista Guilherme Alves Moreira na
Universidade de Coimbra a partir de 1904. O abandono do francês e a opção pelo
idioma germânico fez-se sentido em todas as esferas do conhecimento e pode ser muito
bem acompanhada no item 4.2 de meu artigo A influência do BGB e da doutrina alemã
no direito civil brasileiro do século XX.

Essa “opção preferencial” pelo “grego”, sedimentada por mais de 100 anos, converteu o
Direito português, mormente sua doutrina, em um espaço de grande respeito por seus
homólogos do Direito continental. E, de certo modo, a estrutura das universidades, o
ensino e a carreira docente mostram-se muito próximos do modelo alemão. Entretanto,
Portugal adotou soluções autóctones em muitos setores do ensino jurídico,
aproximando-se da realidade brasileira, o que explica a atenção que faz por merecer o
Direito de nossa pátria-mãe.

É sobre essas características de que cuidará a coluna de hoje, pela qual se encerrará o
exame da experiência de nossa antiga metrópole e agora, com carinho, nossa pátria-
mãe.

Como se dá a formação do jurista português?


O estudante português candidata-se a uma vaga nas faculdades de Direito por meio da
média mínima de conceitos escolares pré-universitários, a qual varia de instituição para
instituição e de curso para curso. Na Faculdade de Direito de Coimbra, por exemplo, o
postulante deve ter a média mínima de 14 valores (equivalente a um 7 no Brasil, pois o
máximo são 20 valores), além, é claro, de fatores de desempate e de compatibilidade
com as vagas ofertadas.

Ao ser admitido na universidade, ele encontrará o curso dividido em anos ou semestres.


Em Coimbra, após a recente reforma, a divisão dá-se por semestres. A graduação pós-
Bolonha estende-se por quatro anos e é seguida de um curso de pós-graduação, um
mestrado profissional.

As aulas são organizadas, na maior parte das instituições, com o modelo de


cinco disciplinas por semestre, sendo uma delas optativa.
À semelhança da Alemanha, o número de matriculados por disciplina pode ultrapassar
100 ou 150 alunos. Em alguns casos, têm-se salas com 200 a 250 discentes. Um detalhe
interessante: a frequência não é obrigatória. Quando os alunos querem protestar, fazem,
muita vez, a chamada “greve de zelo” — um comparecimento em massa de todos os
alunos à aula.

A estrutura das aulas é também assemelhada ao modelo alemão. Os catedráticos ou, de


modo excepcional, os regentes não catedráticos são os titulares da disciplina.
Acompanham-no um número variável de assistentes — a depender do número de
matriculados. Cada catedrático tem de ministrar três horas semanais de aulas, ditas
aulas magistrais no estilo da Vorlesung alemã. O docente expõe o conteúdo semanal
nessa aula magistral, sem que haja interrupções ou perguntas dos alunos (ao menos em
tese). As exposições são relativas a elementos conceituais, teóricos e expõem o estado-
da-arte da matéria. Posteriormente, os alunos dividem-se nas turmas dos conduzidas
pelos assistentes.

Os assistentes, em Coimbra, também são conhecidos por “repetidores”, uma


nomenclatura que vem do século XV. A ideia de repetições não pode ser vista com
preconceito. Ela se reflete na própria estrutura da missa católica, que foi apropriada
pelas universidades. O professor catedrático equipara-se ao bispo, que ocupa a cadeira
episcopal, daí a palavra catedral para definir o templo que é sede de um bispado. O
catedrático e o bispo são docentes, eles ensinam algo novo a partir da leitura de um
texto. Desse ato de leitura derivaram as palavras lente, em português, que designava um
professor abaixo do catedrático, e lecture, em inglês, que serve para designar
professores associados (senior lecture) ou auxiliares (lecture) no Reino Unido. Sobre
esse paralelo, recomenda-se a leitura de nosso texto Dogmática e crítica da
jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo).

A função dos assistentes, que regem grupos menores de alunos, é a de retomar as lições
magistrais (de magister, mestre) do catedrático, explicar pontos pouco compreendidos
pelos alunos e, a depender da natureza da disciplina, resolver casos práticos. Uma vez
mais observa-se a semelhança entre o ensino jurídico alemão e o português. Não se
pode, contudo, negar a Portugal a precedência histórica em muitos pontos desse método.

Nota-se, porém, uma diferença sensível entre Alemanha e Portugal quanto ao estudo de
casos. Não há nas universidades portuguesas o caráter predominante de uma preparação
dos alunos para resolver casos práticos. Tal se deve porque não há o sistema de exames
de Estado no território lusitano. Desse modo, existe maior flexibilidade no conteúdo das
aulas magistrais e na atividade dos repetidores. As disciplinas propedêuticas e as
teóricas são mais prestigiadas e seus docentes tem maior liberdade para fugir da
preocupação com casos. Ao passo em que, nas dogmáticas, existe maior emprego de
casos. Mas, os elementos conceituais e as perguntas teóricas são prestigiados nas aulas,
nas repetições e nos exames.

Percebe-se que as aulas de Direito em Portugal são híbridas quanto ao modelo alemão e
ao que é praticado no Brasil. Os conteúdos teóricos são mais importantes, posto que
exista também a preocupação com os casos.

É necessário ressaltar que as aulas magistrais, seguidas de aulas com questões práticas
ou de revisão de conceitos pelos assistentes, não são “modernas”. Nem por isso, há
perda de qualidade no ensino. Este é mais um exemplo de que não correlação
demonstrável entre o emprego de “novos métodos” e resultados educacionais superiores
nos cursos jurídicos portugueses.

A avaliação do aluno de Direito em Portugal


Muito bem, se em Portugal há o catedrático e a figura do assistente, com nítida divisão
de trabalho, com muita proximidade à Alemanha, os exames portugueses apartam-se
dos alemães em muitos aspectos.

Não há exames de Estado em Portugal, como já dito, e muito menos um Exame de


Ordem, apesar de tentativas recentes da Ordem dos Advogados em instituir uma prova
admissional a seus quadros. Por esse efeito, ganha muito relevo o papel das avaliações
internas aplicadas nas universidades. Elas são determinantes para a progressão no curso
de Direito e seu nível de rigor é alto, o que se percebe com a queda do número de alunos
ao longo do curso. Muitos terminam por ficar no meio do caminho, graças a notas
insuficientes.

A nota máxima nas avaliações é de 20 valores, equivalente ao 10 no Brasil. É uma nota


praticamente impossível de se obter. Note-se que Antonio Salazar é reverenciado até
hoje pelos 19 valores obtidos ao final de seu curso de Direito em Coimbra. O aluno
pode tirar a nota mínima de 10 valores (equivalente a nosso 5). Os exames são escritos
e ocupam o intervalo fixo no semestre letivo, em geral 30 dias. As aulas cessam e toda a
faculdade se volta para essas avaliações, que são escritas. Os assistentes fiscalizam sua
aplicação e as correções cabem a eles. Os catedráticos não corrigem os exames escritos.

Se o aluno tirara nota entre 9 e 8 valores, poderá requerer um “exame oral de


passagem”, que será realizado pelos assistentes. Abaixo de 8 valores, existe a
reprovação, se o aluno não melhorar a nota no “exame de recurso”. Quem obtiver nota
superior a 10 valores poderá requerer o “exame oral de melhoria”, submetendo-se a
questões formuladas pelo catedrático. Em suma, só os melhores alunos são arguidos
pelo catedrático. E, desse modo, ele passa a conhecê-los mais de perto e a formar
vínculos com essa elite de cada turma. São desses alunos excepcionais que se forma o
corpo de futuros assistentes.

Os exames escritos consistem em dissertações, com uma proporção entre conceitos e


casos práticos, que ocupam de 6 a 12 páginas pautadas. Há uma preocupação com a
inovação das questões a cada semestre.

Reflexos do modelo português na literatura jurídica


Reflexo desse modelo de avaliações, no qual a nota atribuída pelo catedrático tem mais
peso, está na melhor qualidade da literatura estudada pelos alunos de graduação.
Manuais com 2 volumes em Direito das Obrigações (Antunes Varela ou Mario Julio de
Almeida Costa) contrastam com muitos livros brasileiros contemporâneos. A Teoria
Geral das Obrigações, de Mota Pinto, é uma obra que termina por ser consultada por
alunos de pós-graduação no Brasil, enquanto sua destinação em Portugal é para os
discentes das licenciaturas. A cultura dos “resumos” não é forte. Há, porém, obras
editadas por associações estudantis (equivalentes a nossos centros acadêmicos), de
autoria de assistentes (muitos dos quais se tornaram catedráticos com o tempo), que são
guias de estudos mais simplificados para auxiliar nos exames. Existe ainda a “sebenta”,
como a descreve Eça de Queiroz em seus livros, sem esconder o asco, que se constituem
em cadernos de anotações dos alunos, que copiam as lições dos catedráticos e dos
assistentes. É algo muito parecido com a tradição dos “cadernos” da Faculdade de
Direito do Largo São Francisco.

De um modo geral, a ausência de um Exame de Ordem e de uma política de Estado para


concursos públicos de massa, com exames de múltipla escolha, contribuiu para a “alta
literatura jurídica” portuguesa se conservar imune ao processo de degeneração que se
vem notando no Brasil há mais de uma década. A crise econômica, desde 2008, o
processo de reforma curricular de Bolonha, que reduziu em 1 ano a duração dos cursos,
e a perda de prestígio das profissões jurídicas, em alguma medida, acentuaram uma
queda ainda moderada na qualidade dos alunos portugueses e de seu desempenho
acadêmico. O tempo dirá sobre como isso ficará nos próximos anos.

Internacionalização
O aluno português de Direito tende a explorar mais intensamente as oportunidades de
internacionalização. Muitos estudantes participam de programas de intercâmbio, como o
Erasmus, o que se segue na pós-graduação. Diferentemente do que se dá no Brasil, o
inglês é bem lecionado nos níveis fundamental e médio na própria escola. Ao
conhecimento razoável do inglês, o estudante sabe que o domínio do alemão é essencial
para se progredir na carreira acadêmica. O estágio nos Institutos Max-Planck ou em
algum centro de pesquisa das universidades alemãs mais prestigiosas faz parte desse
percurso e é bastante comum no currículo de um scholar português.

Os concursos para a magistratura


Mais recentemente, há crescido a procura dos licenciados portugueses pelo concurso de
ingresso na magistratura. Segundo dados da Rede Judiciária Europeia em matéria civil
e comercial, os candidatos aos níveis iniciais da carreira de juiz devem comprovar a
licenciatura em Direito em universidade portuguesa ou “habilitação acadêmica
equivalente face à lei nacional, obtida há, pelo menos, dois anos contados à data de
abertura do concurso”. É necessário frequentar “com aproveitamento os cursos e
estágios de formação e satisfaçam os demais requisitos estabelecidos na lei para a
nomeação de funcionários do Estado”.[2]

A seleção dos magistrados é feita pelo Centro de Estudos Judiciários - CEJ, um órgão
do Ministério da Justiça. Há formas de ingresso por meio da “experiência acadêmica”, o
que exige o título de mestre ou doutor, ou da “experiência profissional”, compreensiva
de um mínio de 5 anos de atividades forenses ou afins. O concurso implica prova de
conhecimentos, avaliação de currículo, discussão sobre o currículo e a experiência
profissional e uma discussão sobre temas jurídicos, “baseada na experiência do
candidato”. Por fim, um exame psicológico é também realizado. A aprovação habilita o
candidato a um curso teórico-prático.[3]

A carreira judicial é prestigiosa, mas a remuneração não é particularmente atrativa e


diferenciada de outras carreiras de Estado, diversamente do Brasil. No entanto, cresce o
número de estudantes que ambicionam fazer as provas do CEJ. Em razão disso, surge
uma demanda maior pela ênfase na “formação jurisprudencial” em detrimento da
clássica “formação doutrinária” que os cursos portugueses oferecem, à semelhança do
que se praticava no Brasil até meados da década de 1990.
Conclusões
Termina esta semana a seção sobre o ensino jurídico em Portugal, parte da série sobre
“como se forma um jurista em alguns lugares do mundo”. Mesmo com a crise
econômica e as dificuldades de custeio da estrutura universitária, o modelo português
continua a fornecer bons exemplos para o Brasil.

Poucas faculdades, uma carreira docente respeitada e estável (nos níveis superiores),
rigor nas avaliações, matrizes curriculares fechadas, internacionalização dos estudantes
e professores e a conservação (inesperada) de uma “alta literatura jurídica” marcam
positivamente o modelo português. As sombras obviamente surgem no horizonte. A
crise das carreiras jurídicas, as portas fechadas para a renovação de quadros docentes, a
oferta de vagas por instituições privadas sem qualidade podem comprometer esses
resultados a médio prazo.

As dificuldades do idioma português diminuem a percepção sobre as qualidades dos


juristas de Portugal. No entanto, esse é um problema também dos alemães e, mais ainda,
dos italianos.

P.S. A recepção destas colunas pelos leitores tem sido incrivelmente alta. Só lhes tenho
a agradecer pela generosidade e pelo interesse. Alguns leitores, como Alexandre
Carvalho Simões, têm insistido para que eu crie uma página no Orkut, digo Facebook.
Infelizmente, não a possuo e creio que não deverei tê-la. De qualquer forma, os
interessados podem acompanhar não somente minhas atividades, mas as ações da Rede
de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo em sua página no Facebook, a qual não
acesso nem administro. Eu também estou nesta página no direito comparado. E ainda no
site academia.edu um interessante fórum de divulgação de nossas produções
acadêmicas.

[1] RAMOS, Rui (Coord)., VASCONCELOS E SOUSA, Bernando; MONTEIRO,


Nuno Gonçalo. História de Portugal. 6 ed. Lisboa: A esfera dos livros, 2010. p.457.

[2] Informações extraídas de:


http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_por_pt.htm. Acesso em 16-2-2015.

[3] Informações extraídas de: http://www.cej.mj.pt/cej/forma-ingresso/ing-


formacao.php. Acesso em 17-2-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 11 de março de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte


8)
25 de março de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Tudo deve mudar para permanecer como está


A ilha de Lampedusa é a porta de entrada de milhares de deserdados da vida, a maior
parte de subsaarianos ou magrebinos, para a Europa. Em um ponto distante da costa
siciliana, mais próxima até do Norte da África, a ilha transformou-se em símbolo das
misérias da imigração internacional. Por uma dessas curiosas coincidências que
convertem a vida em algo deliciosamente imprevisível, Lampedusa é também o
gentílico de uma família aristocrática, cujo título foi criado no século XVII, quando
reinavam em Espanha e em territórios do Sul da Itália os Habsburgo, na pessoa do rei
Carlos II. No entanto, a origem da família Tomasi de Lampedusa é admitida como ainda
mais avoenga, remontando a Bizâncio. O primeiro da linhagem foi Tomaso,
comandante da Guarda Imperial bizantina e cognominado de “o Leopardo”.

Essas histórias de linhagens antigas podem não interessar muito ao leitor


contemporâneo, mas o caso dos Tomasi de Lampedusa merece atenção: o último dos
príncipes da dinastia – ao menos por direito de sangue – chamava-se Guiseppe Tomasi
di Lampedusa, nascido em 1896 e falecido em 1957. Sua família já não possuía direitos
sobre a ilha, vendida ao Reino de Nápoles em 1840, e o palácio ancestral do clã fora
destruído em 1943 por um bombardeio aliado. Guiseppe tornou-se mundialmente
famoso por um único livro: Il gattopardo, traduzido por O leopardo, uma menção
cifrada ao primeiro dos Tomasi, o bizantino.

A obra foi transformada em filme por Luchino Visconti, ele próprio um membro da
aristocracia italiana em decadência, com o título Il Gattopardo, com a participação de
estrelas internacionais como Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale.

Tanto o livro quanto o filme deixaram para a cultura popular uma célebre frase da
personagem central, D. Fabrizio Corbera, príncipe de Salina: “A não ser que nos
salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as
coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Na versão popular, a frase ficou
assim: “É preciso que tudo mude para que permaneça como está”.

Não é pretensão do colunista narrar o enredo do livro e do filme. Recomenda-se


vivamente que se assista e leia a ambos. O essencial de se começar pela referência a
Lampedusa e seu esplêndido livro está na possibilidade de se capturar as raízes do país
cujo ensino jurídico terá hoje sua análise iniciada. Em Il Gattopardo, estão presentes os
sucessivos momentos de conquista, ocupação e derrota de povos e de dinastias que
dominaram o território italiano, desde o fim do Império Romano. Bárbaros, bizantinos,
árabes, normandos, austro-espanhóis, franceses e austríacos, finalmente, a guerra civil
entre as forças “modernas” em prol da unificação italiana e as forças do “passado”,
representativas das pequenas monarquias, cidades-estado e territórios ocupados pelo
Império Austro-Húngaro. A Itália moderna é uma ficção construída sob os escombros
de um riquíssimo passado multicultural, que se fez com a imposição de uma língua
comum, instituições monárquicas piemontesas (terra da dinastia de Sabóia, que liderou
a unificação) e um profundo sentimento de perplexidade diante do novo.

De uma nação fragmentada em pequenos reinos, repúblicas e domínios austríacos, a


Itália, na segunda metade do século XIX, formou-se de modo assustadoramente rápido e
precisava de uma nova elite “nacional” em substituição a muitos que se recusavam a
participar do novo regime ou que por ele não seriam aproveitados. Ao passo em que o
movimento emigratório acentuava-se para as Américas, tendo sido o Brasil um dos
destinos mais apreciados pelos italianos, as instituições da monarquia saboiana
tentavam romper com os quistos de resistência feudal e eclesiástica (só totalmente
resolvida após a Concordata de 1929), além dos movimentos carbonários e das forças
de esquerda, que permaneciam na esperança da instauração da república.

Il Gattopardo deixa muito evidente esse problema ao narrar o convite feito ao príncipe
de Salina para que integre o Senado da nova monarquia. D. Fabrizio, de modo polido,
recusa o convite por se achar ligado a laços de lealdade com os “antigos soberanos da
Sicília” e indica o ambicioso burguês que enriquecia à custa da nobreza decadente e
cuja filha iria se casar com o sobrinho do príncipe, de modo a elevar seu status familiar.

Nesse cenário de transformação é que a universidade italiana, cujos vínculos com a


Igreja e com as monarquias locais, vai-se convertendo em um celeiro de nomes para a
Itália pós-Ressurgimento.

Uma universidade em (trans)formação


Alguns exemplos dessa mudança de perfil e de natureza jurídica das universidades
italianas podem ser mencionados. A Universidade de Roma La Sapienza, no ano de
1870, perdeu seu título de instituição pontifical e passou à condição de universidade
real. Considerada a mais antiga de entre as universidades, Bolonha experimentou uma
trajetória diferente, graças a seus vínculos com o Sacro Império Romano-Germânico,
que lhe permitiu ter recebido uma constituição imperial de Frederico Barba-Ruiva, de
1158, por meio da qual passou a ter imunidade e autonomia de pesquisa em face de
poderes temporais ou espirituais. Em Veneza, a Università Venezia Ca’ Foscari tem
uma história diferente, mais proximamente ligada à formação do novo Reino da Itália.
Criada em 1868 como Real Escola Superior de Comércio, teve como seu primeiro
diretor o economista Franceso Ferrara.

Em Nápoles, a Università degli Studi di Napoli Federico II, cujo nome lembra os
equivalentes alemães, que unem o topônimo e a homenagem a um monarca, é herança
dos tempos imperiais, fundada que foi em 1224 pelo soberano do Sacro Império e rei de
Nápoles, Frederico II. Sua origem romano-germânica deu-lhe foros de instituição laica
desde sua fundação. Depois de um período de longa decadência, a universidade
aproximou-se da Igreja até que, com os efeitos da substituição dos Habsburgo pelos
Bourbon no domínio de Espanha e dos territórios italianos, ela ganhou novos ares.
Como todas as instituições universitárias peninsulares, após a unificação a Frederico II
teve de se adaptar aos padrões uniformes da monarquia dos Saboia.

A Universidade e a construção do Estado italiano moderno


Independentemente da origem, as universidades italianas, com a consumação do projeto
unificador, tornaram-se uma peça importante para os governos reais. Novos espaços
foram abertos para jovens de classes menos favorecidas e que só encontravam na Igreja
um caminho de ascensão social por meio das letras. No entanto, diferentemente do que
se operou na Alemanha ou, em menor escala, em Portugal, não se pode afirmar que
houve um movimento constitutivo de uma “classe dos mandarins”. A nobreza italiana
ainda serviria por muito tempo nos serviços burocráticos de maior relevo, como a
diplomacia, a administração provincial e as finanças públicas, além, é claro, de seu
clássico papel no oficialato.

A Itália, porém, foi sede de um curioso processo de nobilitação de amplos setores que
contribuíram para a unificação. Vitório Emanuel, primeiro rei da Itália moderna, antigo
soberano da Sardenha, do Piemonte e da Saboia, precisou de todos os apoios para
combater seus antigos colegas monarcas, os austríacos e as forças papais. Quando não
conseguiu a adesão de parte da nobreza local, aliou-se a segmentos burgueses com a
promessa de futuro exercício de poder regional. Até mesmo setores do operariado,
carbonários e revolucionários internacionais, como Giuseppe Garibaldi, mereceram
boas vindas, ainda que temporárias. Os sobreviventes e os que não foram
posteriormente descartados, como Garibaldi, passaram à linha de frente na burocracia e
nas forças armadas do Reino. A nobilitação foi uma importante arma de cooptação de
burgueses e membros das classes médias e baixas que auxiliaram no esforço de guerra e
na consolidação política do regime.

Surgiu, desse modo, uma nobreza ad hoc, que, em larga medida, não incomodava os
aristocratas de cepa, seja porque os não destruídos no processo de unificação seriam
aproveitados pelo regime, ou porque sua soberba não permitia que eles se molestassem
com os novos convidados para a festa do poder. Para estes últimos, só uma família com
raízes nos tempos das Cruzadas seria verdadeiramente digna de ser tida como nobre.

Nesse cenário, uma nobreza universitária era secundária e, muita vez, vinha
acompanhada de um título não acadêmico, como o de comendador ou cavaleiro, nada
elevados na hierarquia nobiliárquica. Diversamente da Alemanha, o docente
universitário italiano almejava esses títulos.

Nos séculos XIX-XX, muitos professores italianos gozaram de renome internacional em


razão do prestígio do Direito Romano, cujo estudo havia “renascido” na Alemanha, e
também pelo contato com os alemães, o que permitiu a “contaminação” da literatura
jurídica italiana pelo Direito alemão e a tradução dos clássicos do século XIX para um
idioma mais acessível ao público latino. A vocação comparatista italiana favoreceu
também a que os juristas peninsulares fossem mais abertos às experiências estrangeiras
(algo até hoje raro em relação aos germânicos) e que a Itália pudesse exercer uma
influência maior sobre outros Direitos, como é o caso de Portugal, Espanha, Romênia e
América Latina.

No plano interno, vê-se a adesão de grandes juristas da segunda metade do século XIX
ao projeto de Itália unificada. Carlo Fadda (1853-1931), professor da Universidade
de Nápoles, foi designado senador do Reino por Vitório Emanuel em 1912. Nascido na
Sardenha, território regido pelos Sabóia, é revelador que Fadda tenha feito sua carreira
em uma universidade do Sul (que resistiu à unificação), o que diz muito sobre a
importância dos docentes para a nova Itália. O título senatorial reforça o argumento da
busca por uma legitimidade extrauniversitária. Pode-se, ainda, mencionar a ligação
teuto-italiana no campo do Direito com o fato de Carlo Fadda ser relativamente
conhecido no Brasil por sua tradução da obra de Bernhard Windscheid, mais conhecida
por seu título em italiano Diritto dela Pandette, do que pelo original alemão Lehrbüch
des Pandektenrechts. A maioria dos manuais brasileiros do século XX, escritos por não
germanófonos, cita a versão italiana do clássico de Windscheid.

Ao lado de Fadda na tradução da obra de Windscheid, é necessário citar Paolo Emilio


Bensa (1858-1928), genovês e catedrático da Universidade de Gênova. Fluente no
alemão, Bensa também foi nomeado, em 1902, para o senado do Reino da Itália, em
uma trajetória muito similar a de seu colega da Universidade de Nápoles.

Outro exemplo desse momento histórico é Giovanni Pacchioni (1867-1946), um


civilista que os alunos veem associado às teorias sobre a natureza da obrigação.
Professor de Direito Romano em Camerino, também lecionou em Innsbruck e em
Turim, Pacchioni simboliza o caráter cosmopolita de muitos juristas do final do século
XIX e o quão útil para esse fim poderia ser a universidade.

Os judeus também encontraram na universidade um espaço para desenvolvimento


profissional e com menos percalços do que em outras áreas do serviço público, ao
menos até à ditadura fascista.

A Primeira Guerra Mundial foi particularmente trágica para a Itália. O Exército Real,
com apoio naval inglês e, posteriormente, da infantaria norte-americana, foi
pessimamente dirigido pelo marechal de campo Luigi Cadorna em sua luta contra o
Exército Real e Império austro-húngaro. O desastre de Caporetto, batalha na região do
Vêneto em 1971, quase pôs a perder a monarquia italiana e ceifou a vida de milhares de
jovens soldados e oficiais.

O pós-Primeira Guerra trouxe crise econômica e instabilidade política para a Itália, que
se viu nas mãos de um carismático jornalista chamado Benito Amilcare Andrea
Mussolini, que viria a governar o país como ditador a partir de 1922.

O regime fascista exerceu, como nunca antes, um papel de enorme preponderância no


meio universitário. As ligações com a Áustria e a Alemanha, que nunca deixaram de ser
fortes, de modo especial com as universidades do Norte da Itália, foram reforçadas com
a ascensão do Nazismo. Muitos catedráticos italianos se dividiram após o fascismo,
sendo notáveis os casos de resistência à ditadura ou de adesão servil ao totalitarismo.

É muito citado o exemplo do romanista Edoardo Volterra (1904-1984), professor em


diversas universidades (Cagliari, Camerino, Pisa, Bolonha e Roma), que foi colocado
em disponibilidade após as leis raciais de 1938 em razão de ser judeu. Após seu
afastamento da cátedra na Itália, lecionou no Egito, na França e no Brasil. Voltou a seu
país em 1940, já em plena Segunda Guerra Mundial, e foi preso em 1943 sob acusação
de militar contra o regime fascista. Pegou em armas contra o fascismo e lutou como
partigiano (guerrilheiro) atrás das linhas alemãs. Com várias condecorações por bravura
e por sua atuação na resistência, foi designado juiz da Corte Constitucional em 1973.

Muitos juristas vincularam-se ao fascismo, como Betti e Del Vecchio, mas é


interessante citar Pietro De Francisci (1883-1971), que foi professor catedrático de
Direito Romano na Universidade de Roma, ministro da Justiça e da Graça no governo
de Mussolini. Com a queda do fascismo, De Francisci foi exonerado de suas funções
universitárias, até que Volterra, homem forte na Itália democrática, que havia sido
orientando de Pietro Bonfante juntamente com De Francisci, lutou por sua reintegração
à universidade. Um gesto de raríssima nobreza.

Finda a guerra, a universidade e, em particular, os professores de Direito, tenderam a


acompanhar a viragem republicana. Ocupada pelas forças aliadas, de entre as quais as
brasileiras, a Itália submeteu-se a um referendo e fez a opção pela república,
extinguindo a curta experiência monárquica de menos de um século (1861-1946).

O segundo pós-guerra foi doloroso para a República Italiana. Fome, destruição do


parque industrial, instituições em frangalhos e outras misérias marcaram o renascimento
da antiga aliada Alemanha no Eixo Roma-Berlim-Tóquio. A reconstrução deu-se por
meio do equilíbrio tênue entre socialistas e democratas-cristãos, com a força nada
desprezível do Partido Comunista. Na década de 1960, o país conseguia se recuperar,
graças também a maciços aportes do Plano Marshall, ao passo em que as universidades
sofreram com a onda revolucionária estudantil do final de década. Em um exemplo que
nunca deve ser esquecido de arrogância e de intolerância, nomes como Norberto Bobbio
foram expulsos da universidade pelos alunos e encerraram suas carreiras universitárias.

Em relação ao Direito, nesse período, deu-se o reforço na universalização do acesso ao


ensino superior. No Direito, não havia uma pós-graduação com o sentido atual. O
bacharel em Direito era um dottore, título que até hoje os advogados usam, assim como
no Brasil, mesmo sem o título de doutor. Exigia-se dos graduandos a apresentação de
uma “tese de láurea”, uma espécie de trabalho de conclusão de curso. Aqueles que
desejavam seguir a carreira universitária, deveriam se submeter a um exame de
habilitação (equivalente a nossa livre-docência, mas que seria, em verdade um
doutorado).

As mudanças ocorreram no final dos anos 1960 e pode-se destacar a grande reforma da
autonomia universitária nos anos 1990, com a Lei Ruberti 341/90, e, mais
recentemente, a polêmica Riforma Gelmini, um conjunto de normas aprovadas no
governo de Silvio Berlusconi, de 2008 a 2010, que alterou o ensino, a estrutura e as
carreiras docentes universitárias.

A universidade italiana hoje vive uma profunda crise, com cortes de recursos para
centros de pesquisa, bibliotecas e bolsas, o que se deu no rescaldo da situação
econômica europeia pós-2008.

Na próxima semana, vamos examinar mais a fundo a carreira docente e a estrutura


universitária. Deixo aqui meus agradecimentos à professora Luciana Rodrigues,
doutoranda em Direito Romano na Universidade de Roma – Tor Vergata, cujas
informações ajudaram e muito a este colunista.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.
Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte


9)
1 de abril de 2015, 8h05

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Nem mesmo Norberto Bobbio...


Em 1968, Norberto Bobbio (1909-2004) já era um nome internacionalmente conhecido.
Nos anos 1930, teve sua nomeação para o cargo de professor ordinário (equivalente
italiano de professor catedrático) obstada por haver sido preso na luta contra o fascismo.
Na década seguinte, ligou-se à resistência política contra Mussolini. Com a
redemocratização, sua imagem como original filósofo do Direito ganha o mundo.

1968 foi um ano, à semelhança de outros como 1848 ou 1792, de revolução. Desta vez,
liderada por uma “classe”, os estudantes, cujo acesso à universidade se deu, de modo
singular na História, de modo maciço. Os filhos da geração da Segunda Guerra, que não
conheceram as dificuldades de seus pais, tiveram acesso ao ensino superior e o choque
entre as gerações se deu de modo violento. A estrutura universitária, voltada para um
modelo mais restrito, não conseguiu se adaptar a esse novo contingente, com ideias
diferentes, influenciado pela contracultura, a liberação sexual e a contestação às guerras
coloniais. Se em França, o heroico general Charles de Gaulle quase foi derrubado do
poder, no resto do mundo os conflitos ganharam escala igualmente violenta.

O filósofo alemão Theodor Adorno, perseguido político pelo regime nazista, reitor da
Universidade de Frankfurt e um dos expoentes da famosa Escola Sudocidental Alemã,
teve sua sala de aula invadida pelos estudantes em 1969, durante os protestos da época.
Meses depois ele viria a falecer em decorrência de problemas no coração. Um brilhante
e inquieto teólogo alemão, com ideias originais e progressistas, também experimentou a
violência estudantil daquele período na Universidade de Tubinga, onde era professor.
Tal vivência foi tão marcante que ele fez uma radical transição e se tornou um dos mais
influentes teólogos da linha tradicional do catolicismo. Seu nome? Joseph Aloisius
Ratzinger, o futuro papa Bento XVI.

Voltemos a Bobbio e a 1968. As aulas na Universidade de Turim, onde ele era


ordinário, haviam sido suspensas pelos estudantes. Com uma coragem que nunca lhe
faltara, Bobbio dirigiu-se à universidade disposto a dar suas aulas após o reitor haver
aberto as instalações da Reitoria para que os docentes retomassem suas funções. Poucos
tiveram coragem de enfrentar os alunos. Bobbio estava entre eles. Na manhã de 1969, o
catedrático, “um homem da Resistência, o mais ilustre dos estudiosos da Filosofia do
Direito”, apresentou-se para ministrar suas aulas. Ao chegar, deparou-se com os
estudantes, um deles, Luigi, cujo sobrenome era Bobbio. Seu próprio filho... O impasse
foi resolvido da pior forma: um conflito entre estudantes de direita e de esquerda findou
em pancadaria. Aquele episódio marcou Bobbio para o resto de sua vida e fez surgir
uma cicatriz na relação com seu filho, o hoje professor de Ciência Política na
Universidade de Turim.[1] Como escreve Maidé Gualtiero, não respeitaram ne anche a
Norberto Bobbio (nem mesmo a Norberto Bobbio).
Esse episódio, segundo Perry Anderson, catapultou Bobbio para uma série de debates
nos anos 1970, que o levariam ao um protagonismo diferenciado na política italiana e,
com o tempo, converteram-no em uma espécie de consciência crítica da nação.[2]

O professor ordinário italiano e sua representação social


No ano de 1984, Bobbio seguiria os passos de muitos de seus antecessores nas cátedras
universitárias italianas no período da monarquia dos Saboia: seria nomeado senador
vitalício. Como vimos na coluna da última semana, os catedráticos, desde o
ressurgimento da Itália no século XIX, encontraram no Senado ou nos títulos da baixa
nobiliarquia uma forma de reconhecimento pelos serviços prestados ao estado que se
formavam sob as ruínas de antigos reinos, territórios ocupados austro-húngaros e os
estados pontifícios.

No final do século XX, o papel dos professores ordinários de Direito mudou


sensivelmente. Seu envolvimento na política permaneceu, mas agora com linhas
ideológicas bem definidas, até que a faxina política iniciada pela Operação Mãos
Limpas destruiu o sistema partidário, que se dividia entre democratas-cristãos e
socialistas. Desde então, com a instabilidade dos gabinetes e com a chegada ao poder da
polêmica figura de Silvio Berlusconi, pode-se afirmar que o velho catedrático senatorial
deu lugar a uma personagem mais contida nos gabinetes universitários.

Diferentemente da clivagem política alemã ou portuguesa, na Itália, o professor


catedrático tem hoje menos ligações ideológicas do que seus equivalentes em um
passado próximo. Há ainda o respeito social, mas não se pode dizer que seja algo tão
elevado como na Alemanha ou em Portugal.

Nos dias de hoje, nomes como Oliviero Diliberto, Stefano Rodotà, Gustavo
Zagrebelsky, Guido Alpa, Romano Vaccarella, Glauco Giostra e Antonio Guarino
ocupam ou ocuparam posição de destaque na cena universitária e social da Itália.

Zagrebelsky, italiano de origem russa, foi presidente do Tribunal Constitucional e é


muito conhecido no Brasil por sua obra O direito dúctil (Il diritto mite. Legge, diritti,
giustizia). Rodotà, professor emérito de Direito Civil na Universidade de Roma – La
Sapienza, foi deputado à Assembleia da República Italiana e candidato às eleições
presidenciais em 2013. Ligado a partidos de esquerda, voltou nos últimos anos à vida
universitária. Falecido em 2014, Antonio Guarino foi professor emérito de Direito
Romano na Università degli Studi Federico II di Napoli, além de senador da República.
Guido Alpa é professor ordinário de Direito Civil da Universidade de Roma – La
Sapienza e atual presidente do Consiglio Nazionale Forense, equiparável, com extrema
licença poética, ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Com forte
atuação na advocacia, Alpa é muito citado na doutrina brasileira graças a seus manuais
de Direito Privado, livros sobre Direito Contratual e Responsabilidade Civil.

O professor ordinário italiano pode atuar sob o regime de dedicação exclusiva. No


entanto, são muitos os que conjugam a docência universitária com a vida política ou
uma intensa advocacia liberal. Admite-se a cumulação de cargos públicos (duas cátedras
em universidades públicas), mas não se concede a docência simultânea em uma
instituição pública e outra privada.
Não se chega à condição de ordinário antes dos quarenta anos. Em média, a cátedra é
alcançada entre 45 a 55 anos. A aposentação compulsória dá-se aos 70 anos.

A carreira docente italiana: cargos e remuneração


É complicado falar em “uma” carreira docente italiana, por efeito de tantas mudanças na
estrutura desde a década de 1990. Desse modo, com a ressalva para pequenos detalhes e
para cargos que permaneceram de modo residual, até sua extinção com a aposentadoria
do último ocupante, pode-se assim descrever o estado atual da docência universitária na
península, conforme a Reforma Gelmini, um conjunto de normas que alterou a
legislação universitária. Tais atos normativos receberam o nome da ministra da
Educação, Universidade e Pesquisa Mariastella Gelmini , que exerceu suas funções sob
as ordens de Silvio Berlusconi, entre 2008 e 2011.[3]

No topo da carreira está o professor ordinário (também dito professor de primeira faixa),
cargo acessível por concurso público. Abaixo está o professor associado (ou professor
de segunda faixa), a que se atinge por concurso. Em terceiro lugar, o professor
contratado e, em quarto, o pesquisador universitário. Estes últimos, atualmente, são
apenas contratados por regime de tempo determinado.

O professor universitário italiano depende de um concurso para ingressar na faculdade.


Os associados devem se submeter a um concurso específico, de caráter nacional,
chamado de habilitazione cientifica nazionale, que poderia ser comparada à prova de
agregação de Portugal ou à livre-docência brasileira, embora esta última seja limitada às
universidades estaduais de São Paulo e a algumas poucas instituições que a exigem
como requisito de acesso ao cargo de professor titular.

O professor ordinário pode receber, quando se aposenta, o título honorífico de


“professor emérito”, concessível por ato do Ministro de Estado da Educação,
Universidade e Pesquisa, aos ordinários com mais de 20 anos de docência e cujos
méritos assim o autorizem. Não há qualquer privilégio funcional deferido aos eméritos.

Ao docente italiano permite-se que assuma o regime de tempo parcial e de tempo


integral, que equivalem respectivamente a 250 ou 350 horas de aulas magistrais,
orientação de alunos e pesquisa. A remuneração variará conforme o regime de tempo
parcial ou integral, pois, no primeiro caso, é admitido o exercício de outra atividade
profissional remunerada. Entende-se que essa mescla de regimes é boa para a
universidade, pois conjuga a experiência com o mundo produtivo e o mundo acadêmico.
Ressalte-se que o professor de tempo parcial não assume funções de chefia
administrativa e de coordenação ou direção de departamentos, faculdades ou órgãos
reitores.

O pesquisador universitário pode exercer suas atividades em regime de tempo parcial ou


de tempo integral. A carga horária será também variável: no primeiro caso, ele é
obrigado a 350 no primeiro caso são obrigatórias 350 horas por ano de ensino, enquanto
no segundo caso, a carga é de 250 horas. Sua remuneração varia de 1200 a 1700 euros
mensais.

Como professor associado, sua remuneração poderá ser de 2200 a 2700 euros por mês.

Finalmente, o professor ordinário poderá receber de 3300 a 4000 euros mensais.[4]


Existe ainda a possibilidade de se obter bolsas e financiamentos para pesquisas. Cursos
no estrangeiro (ou para estrangeiros) são também passíveis de remuneração.

No entanto, o Decreto-Lei 112, de 25 de junho de 2008, 112, que baixou normas


urgentes para o desenvolvimento econômico, a simplificação, a competitividade, a
estabilização das finanças públicas, conhecido por Decreto Brunetta, em homenagem a
Renato Brunetta (ministro da Administração Pública e da Inovação, no governo Silvio
Berlusconi, de 2008 a 2011), afetou profundamente a vida universitária italiana e, por
via de consequência, as fontes de financiamento para projetos e bolsas.

Conclusões parciais
As mudanças na sociedade italiana do pós-guerra para os dias de hoje foram sensíveis.
Muitos dos grandes ordinários italianos na faixa dos 75-90 anos experimentaram tempos
de fome e miséria em suas infâncias e adolescências após a queda do fascismo. Eles
fizeram parte de uma geração que teme o desperdício, a ostentação e outros valores tão
comuns em nossa época. Viviam como ascetas, até porque se acostumaram com esse
tipo de realidade. Nos anos 1980, com os avanços da União Europeia e o dinheiro farto
dos projetos da então União Econômica, a Itália ganhou novos padrões de consumo.
Esse cenário alterou as expectativas e a própria representação social de muitas
profissões, de entre elas da de docente universitário.

A universidade passou a disputar seu espaço com novas oportunidades no mercado


privado, a despeito de haver na Itália uma antiga tradição de se conciliar a vida
acadêmica com os espaços da política e da profissão liberal. O caráter cosmopolita do
Direito italiano, salientado na coluna anterior, manteve-se intacto, mas o encarecimento
geral da vida e os novos padrões de conforto (e suas expectativas de fruição)
converteram essa abertura em uma etapa mais onerosa para um docente que vive com 2
ou 3 mil euros mensais.

Tais contradições se fazem presentes. A passagem de Silvio Berlusconi pelo poder,


especialmente no período de 2008-2011, foi particularmente dramática para o sistema
universitário. Um discurso de inovação, empreendedorismo e de abertura para o
mercado serviu de biombo para uma severa restrição orçamentária e para uma queda
nos investimentos em pesquisa e em bolsas. Apesar de tudo isso, a Itália segue como
um ótimo espaço para o estudo do Direito, mesmo com certa irregularidade qualitativa
entre suas universidades.

Na próxima semana, prosseguir-se-á o estudo do ensino jurídico italiano.

[1] MAIDÉ, Gualtiero. La rivolta studentesca. Mao all’Università.In. DI MONACO,


Bartolomeo. Il maestri: La fiera letteraria dal 1967 al 1968. Roma: s/d. v.2. p. 521.

[2] ANDERSON, Perry. As afinidades de Noberto Bobbio. Tradução de Heloísa Jahn.


Novos estudos, n. 24, p.14-41, jul. 1989. p. 20.
[3] Fonte:
http://www.miur.it/0006Menu_C/0012Docume/0098Normat/4640Modifi_cf2.htm.
Acesso em 30-3-2015.

[4] Fonte:
http://www.unitelmasapienza.it/sites/default/files/albo_pretorio/allegatiparagrafo/24-05-
2013/legge_240-10_riforma_universitaria.pdf. Acesso em 30-3-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 1 de abril de 2015, 8h05


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte


10)
8 de abril de 2015, 18h26

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

O aluno de Direito na Itália: ingresso, aulas e formação


Muitos desconhecem que as Institutas de Justiniano, um dos livros do famoso Corpus
Iuris Civilis, foi um dos primeiros manuais de ensino do Direito na História. Para
integrar o monumental projeto de consolidação normativa do imperador bizantino, era
de todo conveniente que houvesse um livro para uso nas faculdades de Direito do
Império.

Justiniano elaborou um prefácio para as Institutas, no qual se percebe imediatamente


sua dupla finalidade: explicar quem e como se elaborou o livro e convidar os estudantes
de Direito para que aprendessem as leis romanas a partir de suas próprias fontes e não
em textos antigos. Segundo Justiniano, o aprendizado das lições contidas em seu
manual viria acompanhado da esperança do imperador de que os alunos se ilustrassem a
fim de governar o Império nas funções que ele lhes confiaria. Em suma, Justiniano
passava a seguinte mensagem: aprendam o Direito, pois um Império não se governa
apenas com armas mas também com leis. E também compreendam que esse
aprendizado há de servir ao combate das injustiças, que muitas vezes se escondem nas
fímbrias das fórmulas da lei.[1]

É pensando nessa personagem – o aluno – que a terceira coluna sobre o ensino jurídico
na Itália tem início, na sequência das duas colunas anteriores (clique aqui e aqui).

Para os cursos jurídicos, não há um equivalente ao vestibular na Itália. À exceção das


faculdades de Medicina e de Arquitetura, para os quais existe um exame nacional de
admissão, o ingresso nas faculdades de Direito dá-se por efeito da classificação do aluno
no equivalente ao ensino médio. Essa nota definirá também a faculdade (de maior ou
menor nível) na qual ele ingressará.

Ao iniciar o curso de Direito, o estudante terá de cursar um número específico de


disciplinas obrigatórias e outra optativas (sobre as quais se cuidará na próxima e última
coluna sobre o ensino jurídico italiano). Não há um estágio curricular como no Brasil e
sim uma obrigação de exercício de atividade prática para quem deseja se submeter ao
exame que permite o acesso à profissão de advogado.

O modelo das aulas é bastante similar ao que existe na Alemanha. Aulas magistrais com
um professor catedrático em salas que mais lembram auditórios e, posteriormente, a
divisão das turmas entre os assistentes. Não há grandes diferenças da aula expositiva
que é praticada em boa parte do continente europeu e também no Brasil. As aulas são
ministradas em italiano.
A formação do aluno é preponderantemente jurídica. Nesse ponto, a Itália é mais aberta
para disciplinas como o Direito Romano, o Direito Comparado e a História do Direito.
As razões para isso foram de certo modo adiantadas na primeira coluna: a forte herança
do Direito Romano, a ligação com a Alemanha e o papel dos italianos como agentes
difusores do Direito de língua alemã para os países latinos e a capacidade de formulação
original do pensamento jurídico pelos juristas italianos, que não temiam usar a seu favor
os métodos comparatistas. O elemento histórico-jurídico também foi favorecido por se
depositarem nas bibliotecas italianas um conjunto notável de obras jurídicas milenares,
graças à função de guardiã da memória cultural do Ocidente exercida pela Igreja
Católica desde antes do fim do Império Romano.

Nas instituições tradicionais, não há a figura do curso noturno. A atividade didática é


desenvolvida nos períodos matutino e vespertino, com ênfase na pesquisa nas
bibliotecas. A estrutura das bibliotecas, até por seu caráter avoengo, não é comparável a
dos grandes centros de pesquisa na Alemanha, no Reino Unido ou nos Estados Unidos.
Em muitos lugares, os livros estão dispersos em locais reservados e o contato se dá por
meio de requisição ao bibliotecário.

O acesso à literatura jurídica pelos alunos dá-se por meio de manuais, livros-texto ou
códigos com anotações breves. A Itália é a sede de editoras tradicionais e muito
conhecidas do público brasileiro, como a UTET, de Turim, a CEDAM, de Pádua, e a
Giuffrè, de Milão. Atualmente, existe o grave problema da cópia ilegal dos livros
jurídicos, o que tem enfraquecido a capacidade dessas casas editoriais de produzir as
clássicas obras monográficas italianas.

Um detalhe interessante é que, em algumas universidades, existem regras que exigem a


adoção de um manual específico para cada matéria e é com base nesse livro que os
conteúdos devem ser exigidos nas provas. É uma disposição altamente polêmica e que
gera problemas operacionais de grande monta, além de limitar e muito a liberdade
expositiva do docente.

Uma nota característica da graduação italiana é a tese de láurea. No Brasil, seu


equivalente seria o trabalho de conclusão de curso, exigência das diretrizes curriculares
nacionais desde 2004, mas cuja forma de apresentação é mais livre que a tesi di laurea.
Em verdade, sua correspondência mais fiel no Brasil é a “tese de láurea” da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, uma monografia de apresentação obrigatória
pelos alunos que pretendem se graduar em Direito e que deve ser defendida, salvo
situações excepcionais, perante uma banca examinadora, presidida pelo orientador. O
modelo italiano é a matriz que serviu de inspiração à USP.

A importância da tesi di laurea é tamanha que Umberto Eco, em 1977, publicou um


opúsculo intitulado Come si fa uma tesi di láurea (Como se faz uma tese de láurea),
destinado a orientar os estudantes de graduação italianos na elaboração dessa
monografia. No Brasil, esse livro foi traduzido por Gilson Cesar Cardoso de Souza com
o ambíguo (para não se dizer algo mais forte a respeito dessa opção do tradutor ou da
editora) título Como se faz uma tese (22 ed. São Paulo: Perspectiva). Essa omissão do
qualificativo “de láurea” muda completamente o contexto do título, cuja versão mais
informativa ao leitor sobre seu conteúdo seria: Como se faz uma monografia. Muito
bem, o livro de Umberto Eco tem sido muito usado no Brasil como referência
metodológica para dissertações de mestrado e teses de doutorado. Isso diz muito sobre a
qualidade do livro, a importância da tesi di laurea e também como um erro(?) de
tradução pode gerar efeitos imprevisíveis.

O aluno de graduação, de acordo com o Decreto no 270, de 22.10.2004, é quem está


matriculado em um curso di laurea, o título básico oferecido pela universidade italiana
(art.3o), que tem por objetivo a aquisição de conceitos e o domínio de métodos
científicos gerais, ainda que tais venham a servir a um conhecimento de caráter
profissional.

O curso di laurea tem duração de 3 anos, após a criticada Reforma de Bolonha,


seguidos de 2 anos de uma laurea magistrale, um curso de pós-graduação que, a
depender do modo como ele é desenvolvido pode equivaler a uma especialização ou um
mestrado no Brasil.

Mestrado e doutorado
O mestrado (laurea magistrale, considerando as adequações de carga horária e de
exigências nacionais para revalidação) e o doutorado (dottorato di ricerca) são títulos
universitários de pós-graduação, ao lado da especialização (diploma di
specializzazione).

As instituições são livres para organizar o currículo e o modo de acesso desses cursos de
pós-graduação, conforme as Lei Ruberti (Lei 341, de 1990, e a Lei 168, de 1989. Na
Universidade de Roma – La Sapienza exige-se que o candidato se submeta a uma prova
escrita e outra de natureza oral, esta última com a finalidade de expor e defender seu
projeto de pesquisa. Em outras instituições, exige-se apenas uma nota mínima global na
graduação e a apresentação do currículo.

Se a laurea magistrale pode ser concluída em 2 anos, o dottorado di ricerca exige um


mínimo de 3 anos, com defesa de tese ao final. Como se dá na Alemanha, o doutorando
deve usar de seu tempo para realizar pesquisas e não assistir às aulas, o que se
pressupõe ocorreu durante o período de seminários no mestrado.

Carreiras jurídicas na Itália


Além da carreira docente, sobre a qual falamos na coluna anterior, é possível oferecer
informações sobre algumas das principais profissões jurídicas na Itália.[2]

Os magistrados compõem o Poder Judicial e são divididos em juízes togados e juízes


honorários, de entre os quais se incluem os juízes de paz, os juízes honorários de
primeiro grau e os agregados. Os primeiros são admitidos ao serviço público por meio
de concurso e integram uma carreira de Estado. O segundo grupo exerce suas
atribuições em caráter provisório e não se consideram membros da magistratura em
sentido estrito.

Os togados percebem uma remuneração mensal fixada pelo Estado, cujo valor depende
de sua posição na carreira. Os magistrados honorários são remunerados em
conformidade com o número de sentenças produzidas e de audiências realizadas.

Integram também a magistratura, mas com funções de investigação, aqueles que se


vinculam aos órgãos da Procuradoria da República Italiana, que oficiam junto à Corte
de Cassação, aos tribunais de relação e aos tribunais de primeiro grau. Esses
magistrados são procuradores, embora se considerem da mesma natureza que os juízes
togados, inclusive quanto ao ingresso por concurso público e às formas de remuneração.

Magistrados togados que exercem suas funções na judicatura ou na procuratura evoluem


na carreia por critério de exclusiva antiguidade, conforme a seguinte escala: a) auditor
judicial; b) magistrado de tribunal (de primeiro grau); c) magistrado da Relação (de
segundo grau); d) Magistrado de Cassação (ministro da Corte de Cassação); e)
magistrado habilitado para as funções de direção superior da magistratura.

A advocacia e o notariado não integram carreiras no serviço público, considerando-se


como profissionais liberais.

O ingresso na advocacia depende da aprovação em um exame nacional organizado pelo


Estado italiano, coordenado pelo Ministério da Justiça, que ocorre todos os anos e é
realizado junto a um tribunal de relação (segundo grau). As provas são teórico-práticas,
de natureza escrita e oral. A prova escrita divide-se em três: a) elaboração de um parecer
em matéria regida pelo Código Civil; b) redação de um parecer sobre tema submetido
ao Código Penal; c) confecção de um ato judiciário com aspectos de direito material e
de direito processual, cujo tema se liga ao quesito proposto, em matéria escolhida pelo
candidato nas áreas de Direito Privado, Direito Penal e Direito Administrativo.

A prova oral, por sua vez, consiste na discussão sucinta sobre temas ligados ao Direito
Constitucional, Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Comercial, Direito do
Trabalho, Direito Penal, Direito Tributário, Direito Processual Civil, Direito Processual
Penal, Direito Internacional Privado, Direito Eclesiástico e Direito Comunitário. O
candidato escolhe 5 dessas matérias, sendo que uma delas tem de ser de natureza
processual. A prova oral também exige a demonstração de conhecimento das normas de
organização judiciária e da deontologia profissional.

O conteúdo programático é fornecido pelo Ministério da Justiça a cada ano.

Uma vez admitido na profissão, o advogado divide-se entre os ordinários, que podem
exercer suas atribuições em qualquer tribunal de primeiro ou de segundo graus, e os que
são habilitados a atuar também na Corte de Cassação. O ius postulandi é privativo dos
advogados, exceto perante os juízos de paz.

Os notários, por sua vez, submetem-se a um concurso público de caráter nacional, que
fica a cargo do Ministério da Justiça. É uma profissão extremamente prestigiada e que
oferece um excelente retorno financeiro, ainda que variável.

Na próxima semana, concluiremos o estudo do modelo italiano com o exame das


universidades e da polêmica Reforma de Bolonha.

[1] O proêmio das Institutas está disponível aqui: http://droitromain.upmf-grenoble.fr/.


Acesso em 7-7-2015.

[2] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial. O texto
é baseado em paráfrases e as informações são totalmente atribuídas a essa fonte, sem
qualquer pretensão de originalidade:
http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_ita_pt.htm. Acesso em 7-4-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2015, 18h26


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte


11)
22 de abril de 2015, 16h06

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Introdução
Na última coluna sobre o ensino jurídico na Itália, analisaremos a situação estrutural dos
cursos de Direito e seus currículos, mas começaremos com uma seção sobre o chamado
Processo de Bolonha, que reformulou profundamente o ensino superior na Europa.

Bolonha, vergonha!
Em muitos países europeus, tornou-se comum ouvir de autoridades educacionais e
professores universitários a expressão “Bolonha, vergonha!”, que, em português, é bem
mais sonora pelo efeito da aliteração. Trata-se de uma reação crítica aos efeitos do
Processo de Bolonha, a reforma do ensino superior na União Europeia que teve seu
marco na chamada Declaração de Bolonha, firmada em 19 de junho de 1999, com a
participação de ministros da Educação (ou equivalentes) de 29 estados da Europa.

Para além do conteúdo puramente programático e mesmo se considerando que a


Declaração não possui natureza de um tratado europeu, esse documento alcançou
enorme eficácia no espaço da União e terminou por ser implementado na maior parte
dos estados signatários, com maior ou menor intensidade. Ressalvam-se a Alemanha e o
Reino Unido, que se conservaram quase imunes a vários aspectos da Declaração de
Bolonha.

Em termos bem sintéticos, a Declaração de Bolonha[1] apresenta o seguinte conteúdo,


considerado o que tem maior interesse para o exame dos cursos jurídicos:

a) O documento prevê a criação de um sistema comum de graus acadêmicos, com


objetivo de facilitar a equivalência de títulos no espaço europeu, que tem por base o
conceito de ECTS, sigla em inglês para European Credit Transfer and Accumulation
System (Sistema Europeu de Acumulação e Transferência de Créditos).

b) A educação superior dividir-se-ia em 3 ciclos: a) o primeiro com duração de 6 a 8


semestres; b) o segundo com duração de 3 a 4 semestres, com possibilidade excepcional
de se estender por 2 semestres apenas, que corresponderia a um “mestrado
profissional”; c) o terceiro, que equivaleria a um doutorado ou diploma equivalente
conforme a denominação em outros países.

Na prática, Bolonha permitiu aos estados europeus a redução do tempo mínimo de uma
graduação para 3 anos e a transformação do antigo quarto ano de graduação em uma
espécie de “mestrado profissional”, cuja equivalência, no Brasil, seria mais próxima ao
conceito de especialização (pós-graduação em sentido lato). Essas mudanças, na prática,
reduziram o tempo de permanência do aluno no curso de bacharelado, o que implicou
uma diminuição dos gastos com educação superior.[2]
Posteriormente, houve diversas outras declarações complementares a Bolonha, como as
firmadas em Berlim, Praga, Bergen e Londres, que visaram à ampliação das reformas,
ao exemplo da melhoria do sistema de acumulação e transferência de créditos (a
contabilização por ECTS’s) ou da busca por padrões comuns de qualidade do ensino.
Os efeitos da Declaração de 1999, como já demarcado por alguns, também se sentem
na “perda de protagonismo dos estados nacionais” no processo educacional, a ponto de
se “falar de uma espécie de ‘desnacionalização’ da educação superior ou, de outro ponto
de vista, de uma decisiva e definitiva ‘europeização’ das universidades e outras escolas
superiores, optando por políticas de liberalização”.[3]

Esse processo, que ainda não terminou, avança por diversas universidades europeias e,
de um modo geral, não afetou os grandes centros (Alemanha, Reino Unido e França),
mas permitiu uma maior flexibilização em estados menos centrais da União, o que é
visto com enormes resistências. E tudo teve início na sede da que é considerada uma das
mais antigas universidades europeias, a velha Università di Bologna.

As universidades italianas
Se o marco da “nova universidade” é a Declaração de Bolonha, convém iniciar a
análise da estrutura dos cursos jurídicos italianos.

A Itália, diferentemente de outros países já analisados, como a Alemanha e Portugal,


possui um conjunto de cursos jurídicos privados, ao lado dos tradicionais centros
mantidos pelo Estado. Há, por conseguinte, um espaço maior para as faculdades
particulares, algumas delas com relativo prestígio.

Em Milão, tem-se a Università Bocconi, fundada em 1902, com um curso de Economia.


O nome da instituição é uma homenagem ao filho de seu fundador Ferdinando Bocconi,
que veio a morrer em combate na Primeira Guerra Ítalo-Abissínia. De entre seus alunos
mais notáveis estão o ex-primeiro-ministro Mario Monti, um respeitado economista nos
círculos internacionais. O curso de Direito da Universidade Bocconi foi instalado em
2006 e é voltado para uma formação interdisciplinar com foco em Economia e
Negócios.

A Libera Università Maria SS. Assunta - LUMSA é outra referência no ensino privado
italiano. Fundada em 1939, na cidade de Roma, tem hoje 8 mil alunos e é ligada ao
catolicismo desde sua origem. Seu curso de Direito funciona em Roma e Palermo.

No entanto, as instituições públicas ainda são as melhores e apresentam maior


capilaridade do que suas congêneres privadas. Em termos comparativos com a realidade
brasileira, não deixa de causar certa estranheza essa assimetria, dada a preeminência das
universidades particulares no Brasil. Esse é, porém, o padrão europeu e suas raízes
estão, como salientado em coluna anterior, no modelo continental de amplo acesso ao
ensino superior e seu caráter de direito fundamental, além, é claro, da ausência de
centralidade universal do Direito na sociedade europeia contemporânea. Com isso, há
uma distribuição mais equitativa de “vocações” para outros cursos.

Tenho muita desconfiança dos rankings universitários, seja porque sua estrutura leva
em conta fatores muitas vezes insusceptíveis de comparação por causa das normas
regulatórias de cada país, seja pela falta de atenção às peculiaridades de cada área. Veja-
se, por exemplo, um ranking que compare uma faculdade de Direito norte-americana
(cujos alunos são pós-graduandos e não graduandos, um caso único no mundo) com
uma equivalente europeia, cujos estudantes são realmente graduandos. Como se
comparar algo tão diferente?

Feita essa ressalva, apresento aos leitores os resultados da classificação 2013-2014 da


fundação italiana Censis, que tem o mérito de distinguir as universidades em grupos
(mega, grandes, médias e pequenas), conforme o número de alunos matriculados (mais
de 40 mil; entre 20 e 40 mil; entre 10 e 20 mil e até 10 mil estudantes, respectivamente).
O levantamento leva em conta os serviços (alimentação e alojamento para os alunos), a
oferta de bolsas, a estrutura física (salas de aula, bibliotecas, laboratórios), a qualidade
do portal da instituição na web e o nível de internacionalização (matrículas de
estudantes estrangeiros e alunos intercambistas, além de outros fatores. Segundo o
Censis, as melhores universidades italianas são, em ordem decrescente[4]:

a) Mega-universidades: Bolonha, Pádua, Pisa, Florença, Turim, Roma-Sapienza,


Palermo, Milão, Bari, Catânia e Nápoles.

b) Grandes universidades: Pavia, Cosenza, Parma, Cagliari, Gênova, Perugia, Verona,


Roma-Tor Vergata, Milão-Bicocca, Salerno, Roma-3, Messina, Chieti, Pescara,
L’Aquila e Caserta.

c) Universidades médias: Siena, Trieste, Sassari, Trento, Módena, Reggio, Macerata,


Udine, Marche, Brescia, Salento, Urbino, Ferrara, Veneza, Foscari, Bérgamo, Cassino,
Forma e Nápoles.

d) Universidades pequenas: Provador, Teramo, Tuscia, Basilicata, Piemonte, Sannio,


Insubria, Campobasso, Catanzaro, Reggio Calabria e Nápoles Or.

A questão curricular
Um ponto que sempre desperta interesse nos leitores é a questão da matriz curricular nas
faculdades de Direito. Na Itália, no que não é diferente da Alemanha e de Portugal, as
instituições possuem ampla liberdade para compor suas matrizes. Como o primeiro
ciclo tem duração de 3 anos, um dos efeitos da Declaração de Bolonha, há bem menos
tempo para se ministrar o conteúdo do que nas congêneres brasileiras. Conforme o
Decreto no 270, de 22.10.2004, em seu art.11, a universidade tem competência para
elaborar as normas sobre a estrutura didática, de entre essas as relativas às disciplinas a
serem incluídas nas matrizes curriculares de cada unidade.

O curso de graduação deve atingir um total de 180 créditos, sendo que cada crédito
corresponde a 25 horas de atividades letivas. O crédito italiano equivale a um ECTS,
segundo a nomenclatura da Declaração de Bolonha. No entanto, só é possível cursar o
doutorado se, além do primeiro ciclo, o aluno comprovar que concluiu o segundo ciclo,
que corresponde a um “mestrado profissional”, equivalente, como já dito, a uma
especialização brasileira.

Como há enorme autonomia didático-pedagógica em cada universidade, não é possível


cuidar de diretrizes curriculares nacionais, como existe no Brasil. Em razão disso, deve-
se observar o modelo de algumas instituições mais representativas.
Fique-se, por exemplo, com a Universidade de Roma 2-Tor Vergata, que é muito
frequentada por estudantes brasileiros em cursos de pós-graduação. No primeiro ciclo
(graduação em 3 anos), há 22 disciplinas obrigatórias, a saber: Direito Administrativo 1
e 2, Direito Civil 1, Direito Comercial, Direito Constitucional, Direito do Trabalho,
Direito da União Europeia, Direito Eclesiástico, Direito Internacional, Direito Penal 1 e
2, Direito Privado Comparado, Direito Processual Civil, Direito Romano 1, Direito
Tributário, Economia Política, Filosofia do Direito 1, Instituições de Direito Privado,
Instituições de Direito Público, Instituições de Direito Romano, Direito Penal e História
do Direito Italiano 1. O aluno pode cursar até 5 disciplinas optativas, de entre as quais
Direito Agrário, Direito Bancário, Direito Comercial Europeu, História do Direito
Romano, Direito Romano 2, Direito Industrial, Direito de Família e outras matérias.
Não há disciplinas não jurídicas entre as optativas, salvo Ciências das Finanças, que é
uma matéria tradicional em qualquer curso jurídico. O conhecimento de língua
estrangeira é obrigatório e deve ser comprovado por meio de exames próprios, que
contam como créditos.

Cada ano é composto por um número variável de disciplinas. No primeiro ano, têm-se 7
disciplinas: Economia Política, Filosofia do Direito 1, Instituições de Direito Privado,
Instituições de Direito Público, Instituições de Direito Romano, Língua estrangeira e
Linguagem jurídica estrangeira e habilidades em informática. Note-se que, na prática,
há 2 semestres dedicados a cada uma dessas matérias. Não há grande possibilidade de
escolha pelo aluno dos créditos não obrigatórios.

Em termos gerais, nota-se uma preponderância do Direito Privado, que termina por ser
lecionado no primeiro ano (Instituições de Direito Privado e Instituições de Direito
Romano), no segundo ano (Direito Civil 1) e no terceiro ano (Direito Comercial), além
das cadeiras de Direito Privado Comparado e Direito Romano no quarto e quinto ano,
na sequência do chamado segundo ciclo. Essa preponderância também se nota entre as
optativas.

Conclusão
O ensino jurídico na Itália apresenta diversas convergências com a Alemanha e
Portugal, especialmente no formato das aulas, na estrutura das matérias e na
representação social do docente. Na Itália, a construção da unidade nacional passou pela
captura dos professores universitários pelo projeto da monarquia saboiana e, nos dois
períodos pós-guerra, houve um realinhamento dos docentes com o fascismo (com
muitas honrosas exceções) e com a república.

Os docentes italianos dividem-se entre os que exercem o magistério em regime parcial e


em regime de dedicação exclusiva. Há grandes nomes em ambos os grupos.
Diferentemente da Alemanha, o ensino privado tem mais espaço e algumas instituições
são respeitadas. Os currículos são livremente fixados pelas instituições. No entanto, há
uma característica comum: a correlação entre disciplinas obrigatórias e optativas é
muito próxima ao que ocorre em Portugal, com uma proporção de 25 para 5. Os cursos
são anualizados e há forte estímulo ao conhecimento de línguas estrangeiras. A série de
colunas terá continuidade na próxima semana.
[1] A íntegra da Declaração de Bolonha, em português, está disponível aqui:
http://www.ond.vlaanderen.be/hogeronderwijs/bologna/links/language/1999_Bologna_
Declaration_Portuguese.pdf. Acesso em 21-4-2015.
[2] LIMA, Licínio C.; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes. O
processo de Bolonha, a avaliação da educação superior e algumas considerações sobre a
Universidade Nova. Avaliação (Campinas) [online]. 2008, vol.13, n.1, pp. 7-36. ISSN
1414-4077. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-40772008000100002.
[3] LIMA, Licínio C.; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes.
Op. cit., loc. cit.
[4] Disponível em: http://www.censis.it/8?shadow_testo=1. Acesso em 21-4-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2015, 16h06


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo francês (Parte


12)
6 de maio de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A geração de meus pais foi a última a ter no idioma francês sua segunda língua. O
inglês, ao menos para quem era jovem nos anos 1960, era uma língua técnica, voltada
para os que desejavam seguir carreira no mundo dos negócios, no mercado financeiro
ou em alguma multinacional britânica ou norte-americana. Na Medicina, apesar do
crescente desenvolvimento dos Estados Unidos no setor, fazer uma residência na França
ainda era o sonho da maioria dos melhores egressos de universidades brasileiras. Nas
Engenharias, a disputa era maior. Instituições norte-americanas, alemãs (em franco
processo de reconstrução) e francesas disputavam a primazia nesse campo. No Direito e,
em larga medida, nas Ciências Humanas, a liderança francesa permanecia insuperável.

A Universidade de São Paulo, fundada em 1934, muito deve de sua formulação original
à chamada “missão francesa”, da qual participaram Roger Bastide, Paul Arbousse-
Bastide, Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig, Paul Hugon e Fernand Braudel, quase
todos jovens e recém-formados docentes, cuja fama internacional só surgiria nas
décadas seguintes. Por um feliz acaso, esses desconhecidos professores converteram-se
em líderes ou expoentes de escolas de pensamento nos anos subsequentes. Essa
circunstância deu mais relevo aos professores brasileiros que se graduaram sob esse
influxo, ao exemplo de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e, no Direito,
Silvio Rodrigues. Os efeitos tardios da “missão francesa” fizeram-se sentir até os anos
1970. Silvio Rodrigues reforçou a “tradição francesa” na disciplina de Direito Civil na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o que se observa pela sequência de
titulares dessa disciplina até os dias de hoje, como Antonio Junqueira de Azevedo,
Teresa Ancona Lopez, Carlos Alberto Dabus Maluf e Silmara Chinellato, todos
membros da Associação Henri Capitant de Amigos da Cultura Jurídica Francesa.

No século XX, padres franceses educavam os filhos da classe média em muitas capitais
brasileiras. Tive relatos de amigos da geração de meus pais que se lembravam do
anúncio da derrota francesa para as forças vietnamitas do general Vo Nguyen Giap, na
célebre batalha de Dien Bien Phu, em 1954. Era o intervalo da aula e os professores
ouviam pelo rádio o anúncio do fim humilhante da Indochina francesa sob as armas de
guerrilheiros terceiro-mundistas. As escolas de línguas complementavam a formação
escolar básica em francês. Sartre, Foucault, Camus, a Nouvelle Vague, Brigitte Bardot,
Alain Delon, o mítico general Charles de Gaulle, o campeão da França Livre, uniam-se
aos grandes nomes do passado glorioso da France éternelle, como Pasteur, Napoleão,
Dumas, Balzac, Pascal, Luís XIV, Voltaire e Montesquieu.

Aquele esplendor dos anos 1960 era apenas a antecâmara de um longo período de
decadência, que se iniciaria nos anos imediatos e que se acentuaria, com maior ou
menor intensidade desde então. Acontecimentos como a criação da Comunidade e
depois União Europeia; o período presidencial de François Mitterrand ou o
desenvolvimento autônomo da bomba atômica foram aparentes intervalos nesse
processo, na medida em que expuseram a liderança francesa no cenário político
internacional, ainda que, em muitos casos, mais imaginária do que real.

De Gaulle é uma síntese dessa França contemporânea. Líder de um movimento de


resistência contra o invasor de sua pátria, ele comandou tropas formadas por um
estranho amálgama de oficiais superiores da velha aristocracia do Antigo Regime,
legionários estrangeiros, republicanos espanhóis derrotados por Franco na Guerra Civil
de 1936, poloneses fugidos da ocupação alemã, batalhões coloniais de vietnamitas,
árabes e africanos. Todos com uniformes britânicos adaptados e armas americanas. A
esmagadora maioria de seus contemporâneos optou por servir ao regime de Vichy e
colaborar com o invasor nazista. Com esse exército simbólico, carregado nos ombros
por britânicos e americanos, reconquistou a França, invadiu a Alemanha com a
vanguarda de magrebinos e subsaarianos liderados por oficiais monarquistas da
República Francesa e ainda assinou o tratado de armistício ao lado dos vencedores,
embora ele não passasse de um brigadeiro general temporário e vice-ministro da Defesa
de um Estado que foi vencido em poucas semanas pelos alemães em 1940.

Ao seu lado, desde a primeira hora, encontrava-se um homem com uma história muito
peculiar: doutor em Direito em 1914, foi mobilizado pelo Exército francês após a
deflagração da Primeira Guerra Mundial, com 27 anos de idade. Ferido em combate
após carregar com a infantaria francesa contra uma posição alemã, condecorado por
bravura e de volta à vida civil, ele ingressou na carreira universitária até assumir a
cátedra da Faculdade de Direito da Universidade de Paris em 1929. Judeu, cujos
antepassados eram marranos expulsos de Portugal pela Inquisição, esse homem foi um
dos primeiros a fugir de Paris, após a queda da cidade em 1940, e a juntar-se à França
Livre em Londres. Perdeu a nacionalidade francesa, por decreto do marechal Petáin, e
foi condenado à morte in absentia por alta traição. Seu nome? René Samuel Cassin
(1887-1976), o pai da Declaração Universal dos Direitos Humanos e prêmio Nobel da
Paz de 1968.

Se De Gaulle conseguiu por meio de blefes e de uma coragem suicida conduzir uma
França derrotada ao mito da vitória em 1945, Cassin fez algo parecido em termos
jurídicos. Ele elaborou todos os documentos constitucionais da França Livre (e suas
posteriores reinvenções jurídicas até que De Gaulle assumisse a presidência francesa em
1944) e teve de enfrentar Churchill e, com maior dificuldade, Roosevelt, a fim de
sustentar que o movimento gaullista era o único representante legítimo da verdadeira
França e não o governo de Vichy, que controlava efetivamente o país e o império
colonial. Indagado por um representante do presidente Franklin Delano Roosevelt sobre
em qual legitimidade ele se baseava para insistir que os americanos não mais
reconhecessem o governo do marechal Petáin, o professor judeu disse, com a coragem
dos loucos, que os colaboracionistas eram inconstitucionais por definição. Todos os
seus atos, como a deportação de judeus e a cooperação com o ocupante estrangeiro,
eram a negação quotidiana do texto constitucional.

A coragem de Cassin em 1940, que foi o jurista combatente em substituição ao


combatente jurista de 1914, contrasta com a covardia de grande parte dos professores de
Direito franceses ao tempo da invasão alemã.
Um dos exemplos mais vergonhosos é o de um jurista muito citado e admirado no
Brasil, Adolphe Marie Louis Georges Ripert (1880-1958). La règle morale dans les
obligations civiles (A regra moral das obrigações civis) é provavelmente seu livro de
maior influência no Brasil[1]. Embora suas ideias mais importantes, em termos de
metodologia jurídica e de perspectiva sobre a suposta decadência do Direito Privado,
encontrem-se em Le déclin du droit: études sur la législation contemporaine (O declínio
do Direito: estudos sobre a legislação contemporânea),[2] como bem destacou Nelson
Nery Jr. em entrevista a nós concedida na Revista de Direito Civil Contemporâneo.[3]
Ripert foi um dos pioneiros na defesa de uma certa decadência do Direito Civil e de sua
publicização, que começou a se divulgar nos anos 1960 no país e ganhou ares quase
hegemônicos nos últimos 20 anos. O solidarismo ripertiano ainda é bem forte, a
despeito dos quase 70 anos de seu surgimento.

Ripert foi ministro de Estado da Educação e Juventude no governo de Vichy e, nessa


condição, abandonou suas posições filossemíticas dos anos 1930, ao tempo em que
autorizou a elaboração de listas de judeus que ocupavam postos no serviço educacional.
Cassin foi uma das vítimas de Ripert, tendo perdido sua cátedra universitária por efeito
da nova legislação antissemita. O ministro Georges Ripert assinou o ato de demissão de
Cassin.

As diferentes trajetórias de Cassin e Ripert unem-se em dois aspectos. O primeiro está


em sua condição de catedráticos franceses em um ambiente universitário elitista e ao
qual só havia acesso para um número pequeno de cidadãos. O segundo está na lenta
transformação no perfil das carreiras jurídicas francesas após a Segunda Guerra
Mundial e, de modo decisivo, sob o governo do presidente Charles de Gaulle, com as
reformas educacionais e na magistratura, esta última marcada pela Ordenança 58-1270,
que baixou a Lei Orgânica do Estatuto da Magistratura, com a criação do Centro
Nacional de Estudos Judiciários, como bem assinala Fernando Fontainha, no melhor
estudo já publicado em língua portuguesa sobre o recrutamento de juízes na França.[4]

Dez anos após a morte de Ripert e a reforma judiciária gaullista, o mundo se veria
abalado pelos movimentos estudantis de 1968. A República Francesa foi a base de uma
revolução liderada pelos universitários e que se propagou por diversos países do mundo,
em cada um deles assumindo pautas particulares, como a objeção à Guerra do Vietnã
(Estados Unidos), a luta pela democratização do regime (Primavera de Praga) ou à
rejeição à ditadura militar (Brasil). O ano de 1968 foi uma nova “esquina do mundo”,
para se referir ao ano revolucionário de 1848. Mas, em França, a insatisfação dos
estudantes com a estrutura universitária e à crise de oferta de vagas no ensino superior
para uma nova geração de filhos do pós-guerra estiveram na raiz da rebelião, que quase
derrubou o presidente De Gaulle.

Um dos efeitos desse novo quadro pôde-se sentir na divisão da Universidade de Paris,
ocorrida em 1970, que se desmembrou em Paris-I, Paris-II, Paris-IX, Paris-X, Paris-XII
e Paris-XIII, graças ao Decreto 70-928, de 8.10.1970, o qual deu efeito ao art.44 da Lei
68-978, de 12 de novembro de 1968, aprovada após o enfraquecimento do movimento
estudantil e a retomada do controle político pelo general De Gaulle.

As faculdades de Direito francesas transformaram na segunda metade do século


passado, na mesma ordem em que a própria universidade se abriu para um número
exponencialmente maior de pessoas. Essa universalização do ensino superior também
causou impactos nas carreiras jurídicas, com a mudança de perfil dos ingressantes e na
relação entre as elites e a ocupação desses postos.

Uma das principais notas do modelo jurídico francês está na paridade quase absoluta
entre as remunerações das principais carreiras do serviço público. Auditores,
engenheiros, militares, médicos, juízes e professores seguem, em suas respectivas áreas
do serviço público, uma tabela de correspondência de remunerações, que leva em conta
tempo de serviço e a equivalência de responsabilidades e de níveis na hierarquia dos
respectivos órgãos ou plexos administrativos. O almirante, o magistrado da Corte de
Cassação, o professor com agregação e o chefe de um serviço médico, salvo variações
pouco expressivas, decorrentes de gratificações de periculosidade, por exemplo,
percebem valores aproximados.

Não existe em França uma cultura de preeminência das carreiras jurídicas sobre as
demais na administração pública. Desse princípio igualitário geral e do reconhecimento
da dignidade intrínseca de cada uma das funções no Estado é que não se identificam
fenômenos tão tipicamente brasileiros como a hipertrofia dos cursos jurídicos, a
formação de um imenso exército de reserva de bacharéis em busca do Santo Graal do
“concurso público jurídico” (e não do “concurso público” simplesmente, faça-se esse
registro) e a representação social diferenciada dos membros das carreiras jurídicas em
face das demais.

No Brasil, há anúncios na televisão para que os “jovens” alistem-se nas Forças Armadas
para o serviço militar e ingressem nas corporações militares. Essa publicidade justifica-
se pela necessidade de lembrar seus destinatários do caráter compulsório do alistamento
e também para atrair quadros para o oficialato, o que se dá pela baixa atratividade dos
soldos. Em França, esses anúncios podem ser encontrados nos jornais para várias
carreiras, e, o mais surpreendente, para a magistratura. Seria algo impensável para um
brasileiro imaginar que o tribunal de Justiça ou o tribunal federal pagasse por um
anúncio de abertura de inscrições para concurso de ingresso em suas carreiras.

Nas próximas colunas, far-se-á o exame das universidades, da formação discente e das
carreiras jurídicas francesas. Será mais uma oportunidade para se contrastar a
experiência de uma nação que muito influenciou e ainda influencia o Direito brasileiro e
suas instituições jurídicas e judiciárias, a despeito de sua substituição, nos últimos 30
anos, por novos paradigmas, como a Alemanha e os Estados Unidos.

P.S. Na confecção das colunas sobre o Direito francês, o autor contará com o importante
auxílio dos professores Fernando de Castro Fontainha (Uerj), Alexandre Veronese
(UnB) e Reinaldo Couto Filho (Uneb), representantes da nova geração de docentes
brasileiros de formação francófona.

[1] RIPERT, Georges. La règle morale dans les obligations civiles. Paris: LGDJ, 1925.

[2] RIPERT, Georges. Le déclin du droit : études sur la législation contemporaine.


Paris: LGDJ, 1949.
[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Entrevista com Nelson Nery Jr. Revista de
Direito Civil Contemporâneo. v. 1, p. 367-388, out.-dez.2014.A entrevista está
disponível aqui:
https://www.academia.edu/11200822/Entrevista_com_Nelson_Nery_Jr. Acesso em 20-
5-2015.

[4] FONTAINHA, Fernando de Castro. Como tornar-se juiz? : uma análise


interacionista sobre o concurso da magistratura francesa.Curitiba: Juruá, 2013. p.45-
47.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 6 de maio de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo francês (Parte


13)
13 de maio de 2015, 19h52

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

O império da República
Luís XIV (1638-1715), o rei-sol, autor da famosa frase “o Estado sou eu” (L’État c’est
moi”), é considerado o grande responsável pela consolidação do conceito de estado-
nacional francês e pela consagração do regime absolutista. Sua infância foi
profundamente marcada pelo movimento da Fronda, uma reação político-militar da
aristocracia francesa contra o processo de centralização dos poderes na pessoa do rei,
por meio de uma política tributária opressiva, algo que se iniciou com o regime dos
“validos reais”, os ministros e cardeais de Richilieu e Mazarino. A revolta dos nobres
gerou revoltas em Paris, que ameaçaram a vida da Família Real.

Após colocar as finanças nacionais em ordem, graças ao trabalho incansável de Jean-


Baptiste Colbert, Luís XIV deu início a um processo de aproximação com a nobreza
nacional, cujo símbolo maior é o Palácio de Versalhes, a nova sede da monarquia, após
o abandono do Louvre, onde vivera os traumas das rebeliões contra seu falecido pai.
Essa política modificou, ao longo de seu duradouro reinado, as relações da aristocracia
com seus feudos e com o rei. Criou-se uma cultura cortesã inteiramente nova: ele trouxe
os nobres para junto de si, que trocaram a vida no interior por Paris e por novos hábitos
mundanos. Ligações ancestrais com o povo e com uma vida militar e ascética foram
substituídas pela busca pela proximidade com o rei (a fonte de todo o poder) e com a
moda, a música e os prazeres cortesãos. Em menos de um século, essa aristocracia
degenerada, que precisava espoliar seus feudos para manter a vida dupla em Paris,
alheia à vida d’armas (um dos fatores de sua legitimidade social), não conseguiu resistir
à devastadora e cíclica revolta iniciada em 1789, que culminou com a morte de Luís
XVI, o neto do rei-sol, e de sua esposa Maria Antonieta, de sangue Habsburgo, após o
julgamento pela Convenção, liderada pelos jacobinos de Robespierre.

Uma nova França nascia daquele mar de sangue que foi o período do Terror. Quando
Napoleão, após ter sido um cabo de guerra do regime revolucionário, tomou o poder no
18 Brumário, ele tentou refundar o país com um arranjo insustentável: unir a velha
aristocracia das Cruzadas com os novos “aristocratas” da espada, forjados nas guerras
revolucionárias e napoleônicas. O ideal igualitário, tingido pelo sangue de tantos nobres
assassinados, foi apagado no curto período do Império de Napoleão I. A iniciativa não
deu certo. Em 1815, há 200 anos, o Exército Imperial seria derrotado por uma
coalização de monarquias nos campos belgas de Waterloo pelo irlandês Duque de
Wellington e pelo general prussiano Blücher.

Desde 1815, a França viveu épocas monárquicas ou de regimes autoritários, ao tempo


em que foi palco de revoluções populares radicais, como a Comuna de Paris, até a
retomada da plena normalidade institucional com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Passados 200 anos, o igualitarismo tornou-se um valor fundante da República Francesa.
A última oportunidade de restauração monárquica na França foi o turbulento período da
queda do governo colaboracionista de Vichy e a reconquista nacional pelos exércitos
aliados e pelos franceses livres de Charles de Gaulle. O general nascera em uma família
monárquica legitimista (defensora da restauração dos Bourbon, a dinastia dos Luíses),
mas se converteu em republicano. A porta estava fechada.

A sociedade francesa vive hoje o império do republicanismo. Tal estado de coisas


reflete-se no quotidiano de greves, protestos, alto nível de sindicalização e de
politização social. Mas também em algo intangível: o profundo senso de dignidade
individual, que se reflete em todas as profissões, intelectuais ou não, o que muita vez é
confundido com arrogância (embora ela não possa ser desconsiderada). O garçom, o
pedreiro, o militar ou o magistrado não se colocam em posições assimétricas como
indivíduos por causa de suas profissões.

Esse igualitarismo radical só é atualmente fissurado pelo grave conflito de assimilação


dos netos e bisnetos de soldados das tropas coloniais e de regimentos de franceses livres
compostos por africanos subsaarianos e magrebinos, levantinos e indochineses, que
lutaram pela metrópole nas duas guerras mundiais do século XX, além das guerras da
Indochina (atual Vietnã, Laos e Camboja) e da Argélia. Para não serem massacrados por
haverem lutado pelo lado perdedor — a metrópole — esses homens e seus familiares
foram admitidos a emigrar para a França. Com a descolonização, outra leva de africanos
e árabes seguiu para o território francês. Atualmente, a pobreza e as guerras têm levado
nos contingentes para a França. O abismo cultural e religioso cresceu e a fratura social
vem corroendo o igualitarismo francês.

A despeito disso, prevalece a ideia de dignidade individual e, com isso, não há no


cenário profissional francês, uma assimetria tão profunda das carreiras jurídicas com as
não jurídicas, como se dá no Brasil contemporâneo.

As principais carreiras jurídicas francesas


Como visto na coluna anterior, a correlação de remunerações entre as carreiras do
serviço público e das forças armadas é notável em França. Com isso, não se formou um
“Estado dos juristas” dentro do Estado francês.

Convém agora fazer um exame das principais carreiras jurídicas em França, suas
atribuições e suas formas de acesso.[1]

a) Magistratura — A magistratura francesa, à semelhança do que se dá na Itália,


divide-se em juízes e procuradores, sendo os primeiros ditos “magistrados judiciários” e
os segundos “procuradores da República”, antigos procuradores do rei.

A Lei Orgânica da Magistratura francesa foi baixada pela Ordenança 58-1270, de


22.12.1958, modificada Lei Orgânica 94-100, de 5 de fevereiro de 1994, que tem como
órgão central o Conselho Superior da Magistratura.[2] A magistrat du siège divide-se
em 2 graus. O primeiro grau, nos chamados tribunais de grande instance, compõe-se de
juízes; juízes de instrução; juízes de menores; juiz de execução penal; juiz de instância;
e juiz alçado a um tribunal de recurso. Na Corte de Cassação, tem-se a figura do auditor.
No segundo grau, estão os “vice-presidentes”, uma típica tradição francesa que vem da
atribuição ao presidente da República o papel de “presidente” do Conselho de Estado
(verdadeiramente presidida pelo vice-presidente). Nas cortes de apelação, no segundo
grau, tem-se o conselheiro. E, na Corte de Cassação, o auditeur e o conseiller
référendaire.

Em um nível denominado de hors-hiérarchie, que não é propriamente um grau, há o


primeiro vice-presidente (como variações de nomenclatura), no tribunal de grande
instance, o presidente de câmara e o primeiro presidente (na Corte de Apelação) e o
conselheiro, presidente de câmara e primeiro presidente (na Corte de Cassação).

De modo vulgar, pode-se dizer que esses níveis guardam correspondência na estrutura
do Ministério Público, cujos cargos também variam conforme os graus, os tribunais de
grande instance, a Corte de Apelação e a Corte de Cassação. No segundo grau, por
exemplo, tem-se o substituto de procurador da República. No primeiro grau, o
procurador da República, com diversas variantes de nomes e funções. E, na hors-
hiérarchie, o procurador da República e o procurador da República adjunto. Na Corte
de Apelação, porém, há o procurador-geral e o advogado-geral. Ao passo em que, na
Corte de Cassação, têm-se o advogado-geral, o primeiro-advogado-geral e o procurador-
geral.

Ambas as carreiras da magistratura francesa equivalem-se, por efeito do princípio da


unidade do corpo judiciário, que permite a nomeação para quaisquer de suas expressões,
a magistratura ou a procuratura. Há, no entanto, algumas diferenças de regime como a
ausência de sujeição hierárquica e a garantia da inamovibilidade para os juízes, o que
não se tem para os procuradores, conforme os dados da Rede Judiciária Europeia.

As estatísticas da Rede Judiciária Europeia revelam que, em 2013, na França


metropolitana e nos territórios do ultramar, havia 8.090 magistrados.

Fernando Fontainha, baseado em pesquisas específicas de autores franceses, permite


colocar o número de 2013 em perspectiva: no ano de 1857, havia 6.254 juízes em
França, enquanto, no ano de 1970, esse número não passava de 4.160. Nesse intervalo, a
população do país passou de 37 para 50 milhões de habitantes. Outro dado importante,
na segunda metade do século XX, decresceu significativamente o número de candidatos
às provas da magistratura, caiu o interesse da elite em ingressar nessas carreiras e
ocorreu uma acentuada ampliação do número de mulheres na magistratura.[3]

b) Ministério Público — Os membros do Ministério Público são também magistrados,


no entanto, cabe-lhe defender a sociedade e fiscalizar a aplicação da lei. Sua estrutura é
hierárquica, à exceção da procuradoria-geral junto à Corte de Cassação.

Como ocorria no Brasil até a Constituição de 1988, o Ministro da Justiça, que em


França ainda conserva o nome monárquico de Garde des Sceaux (Guarda dos Selos).
Cada tribunal de grande instance possui um procurador da República que nele oficial,
tendo sob sua coordenação um grupo de procuradores.

Hierárquico o Ministério Público, ele também é indivisível, um conceito bastante


conhecido no Brasil e que permite a vinculação institucional dos atos individuais de
cada procurador.

Diversamente do que ocorre no Brasil pós-1988, os magistrados do Ministério Público


francês exercem atribuições majoritariamente no âmbito criminal e, de modo
residual, no âmbito cível nas ações envolvendo menores, nas ações de estado, na
fiscalização do cumprimento de atos administrativos (consumo de bebidas) e em
algumas ações comerciais.

c) Juízes leigos — A Lei de Orientação e Planejamento da Justiça, baixada em 9 de


setembro de 2002, dita Lei no 2002-1138, criou a figura juge de proximité, uma espécie
de juiz leigo, nomeados após uma decisão do Conselho Superior da Magistratura. Esse
juiz tem um mandato não renovável de sete anos, não renovável. Sua competência cível
limita-se a ações patrimoniais ou pessoais de valor inferior a 4 mil euros e que não se
enquadrem na jurisdição dos tribunais de grande instância. Em matéria penal, eles
atuam em processos de menor potencial ofensivo ou em auxílio aos tribunais penais.
Segundo a Rede Judiciária Europeia, no ano de 2013, havia 452 juízes leigos em
funções na França.

d) Os conselheiros “homens probos” — Figura histórica das mais antigas, o


conseillers prud’hommes converteram-se, após diversas mudanças desde sua criação no
século XIII, em um órgão que exerce jurisdição nas relações de trabalho, muito à
semelhança dos juízes vogais da Justiça do Trabalho, após sua extinção por reforma
constitucional. Esses conselheiros têm mandatos de 5 anos, sendo eleitos por indicação
de empregadores e empregados ou de representantes da agricultura, da indústria, do
comércio e do setor de serviços. São requisitos para ingresso a nacionalidade francesa,
a idade mínima de 21 anos e a capacidade civil plena.

e) Juízes dos tribunais de comércio — Outra função muito antiga é a de juiz dos
tribunais do comércio, todos eles comerciantes que atuam sem remuneração e que se
elegem por escolha de seus pares. O mandato inicial é de dois anos e, posteriormente, de
quatro anos. É vedada a atuação por mais de quatro mandatos consecutivos.

f) Advogados — Membros de outra antiga e respeitada carreira jurídica, os advogados


são auxiliares da Justiça e regem-se atualmente pela Lei 71-130, de 31 de dezembro de
1971, com reformas posteriores, especialmente a que extinguiu a antiga carreira
autônoma de consultor jurídico. Ambas as funções são hoje exercidas por “advogados”,
sem distinção.

Não há um órgão corporativo confederado, como é o Conselho Federal da Ordem dos


Advogados do Brasil, e sim um conjunto de 161 ordens distribuídas pelos
departamentos franceses metropolitanos e ultramarinos. A vinculação desses conselhos
dá-se com as unidades jurisdicionais locais. Sua presidência cabe a um bastonário.

Em 1990, criou-se o Conselho Nacional das Ordens dos Advogados, por efeito da Lei
de 31 de dezembro de 1990, que consiste em “uma associação de utilidade pública,
dotada de personalidade jurídica, encarregada de representar a profissão de advogado
junto dos poderes públicos e de zelar pela harmonização e pela unificação das regras e
costumes da profissão”.[4]

Os franceses possuem uma classe especial de advogados que atuam exclusivamente no

Conselho de Estado e na Corte de Cassação. Sua indicação para esse múnus é devida a
ato do Ministro da Justiça. Eles formam uma corporação à parte, com uma ordem
específica e distinta dos demais advogados. Desde 1814, o número desses advogados
limita-se a 60 membros. No entanto, ainda segundo a Rede Judiciária Europeia, “o
decreto de 22 de abril de 2009 permite ao Ministro da Justiça criar, por decreto, novos
postos de advogado junto do Conselho de Estado e do Tribunal de Cassação, para
assegurar uma boa administração da justiça dado o aumento do contencioso perante
estes dois órgãos jurisdicionais”.

[1] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial: https://e-
justice.europa.eu/content_legal_professions-29-fr-pt.do?member=1. Acesso em 12 de
maio de 2015.

[2] Disponível em versão consolidada aqui:


http://legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000364282. Acesso
em 12 de maio de 2015.

[3] FONTAINHA, Fernando de Castro. Como tornar-se juiz? : uma análise


interacionista sobre o concurso da magistratura francesa.Curitiba: Juruá, 2013. p.42-46.

[4] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial: https://e-
justice.europa.eu/content_legal_professions-29-fr-pt.do?member=1. Acesso em 12 de
maio de 2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 13 de maio de 2015, 19h52


Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo francês (Parte


14)
20 de maio de 2015, 15h50

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. Entrando na universidade
O ingresso na Faculdade de Direito na França é universal e não depende de exame
vestibular, mas com a obtenção do baccalauréat, que, conforme definido na página do
Ministério da Educação francês, é um diploma criado em 1808, que tem a dupla
finalidade de sancionar o final do ensino secundário e marcar o acesso ao ensino
superior.[1] Essa ampla abertura faz com que o filtro realmente ocorra no primeiro ano
do curso de Direito, quando “aproximadamente um quarto dos estudantes será depurado
da formação jurídica, processo este que se intensificará com a busca pelos diplomas
superiores, que oferecem muito menos vagas, e se completará na busca pelos exames e
concursos de acesso às profissões jurídicas”, segundo Fernando Fontainha.[2]

O modo de organização do acesso ao ensino superior francês é muito semelhante ao de


outros países europeus como a Itália. Se as oportunidades são iguais no acesso, ao longo
do curso, com suas diferentes etapas, a falta de vocação, o rigor dos exames e a procura
por outros caminhos diminui o número de futuros graduados em Direito.

2. O curso de Direito: ciclos, aulas, materiais didáticos e diplomas


O impacto da Declaração de Bolonha também se fez sentir em França. O curso de
Direito estrutura-se em ciclos: a) a Licence, que dura até três anos; b) o Master 1,
equivalente a uma pós-graduação brasileira, que se cursa no quarto ano; c) o Master 2,
que se dá em um quinto ano.[3]

O triênio da licenciatura é marcado pelo estudo em tempo integral, sem estágio ou


qualquer outra atividade de extensão, inclusive com eventuais provas em dias de
sábado: “Um estudante de Direito francês tem por principal ocupaçãoesta condição, e é
apenas no quarto ano que a faculdade o autoriza a estagiar,o que é feito com dura e
estrita supervisão da instituição”.[4]

As aulas também seguem o modelo alemão, italiano e português: estilo magistral, com
alunos reunidos em grandes espaços (auditórios, anfiteatros e salas amplas) e com a
centralidade do professor. Não é usual o emprego de métodos alternativos de ensino,
salvo projetores em algumas aulas. As exposições seguem o conteúdo dos programas,
com forte carga teórica. Nesse ponto, os franceses estão mais próximos dos italianos e
portugueses do que dos alemães, pois estes últimos privilegiam o método do caso.

Quanto aos livros, em Direito Civil, por exemplo, seguem-se os manuais clássicos, em
geral editados em brochuras no formato de bolso ou superbolso, com papel mais barato
e a preços acessíveis.
As avaliações são rigorosas, até porque é por meio delas que se filtra o enorme número
de admitidos nos cursos jurídicos. Na maior parte das faculdades de Direito, há duas
avaliações por semestre. As provas não são identificadas e a ausência implica atribuição
de nota zero. Existem também avaliações orais e faz-se um complexo sistema de
contagem de notas para que o candidato prossiga para as fases seguintes. O aluno pode
receber as seguintes menções: a) passable: nota superior ou igual a 10/20 e inferior a
12/20; b) assez bien: notasuperior ou igual a 12/20 e igual a 14/20; c) bien: notasuperior
ou igual a 14/20 e inferior a 16/20; d) menção très bien: nota superior ou igual a 16/20.
Abaixo de 10/20 (equivalente a um 5 no Brasil), o candidato é reprovado.

O francês é o idioma por excelência na licenciatura e no Master das faculdades de


Direito, embora existam no país mais de 450 cursos de licenciatura ou de Master
ministrados em língua inglesa. A perda de relevância do francês como idioma universal
fez-se sentir também em França. Crescem as publicações científicas francesas em inglês
e a demanda pela internacionalização tem exigido sua adoção em vários cursos. No
Direito, porém, segue firme a vinculação com o vernáculo, o que se compreende
também pela dificuldade de adaptação da terminologia jurídica de raiz romano-
germânica para o inglês.

O ensino à distância também se desenvolveu muito rapidamente na última década e tem


sido levado a efeito enormes investimentos para sua melhoria qualitativa e para o
aumento da base de alunos.

No Master, identicamente ao que se dá na Alemanha, há um afluxo maior de alunos


estrangeiros. Em muitos casos, convivem estudantes franceses e não franceses nas aulas
do Master, embora o objetivo desses grupos seja evidentemente diferenciado.

Em Direito, na licenciatura e nos cursos de Master, o idioma preponderante é o francês,


a despeito de haver

Os cursos de doutorado são regidos pelo Arrêtéde 7.10.2006, “relativo à formação


doutoral”, consolidado em 7.7.2008.[5] De acordo com essa normativa, a inscrição no
doutorado exige que o candidato possua um título de Master (ou equivalente
estrangeiro). A dedicação aos estudos, durante o doutorado, é exigida por meio da
integração do estudante à unidade de pesquisa de seu curso.

O Doctorat reliza-se em um prazo de três anos, embora não haja aulas obrigatórias e o
tempo seja dedicado à pesquisa, em geral realizada nas bibliotecas, com uma rotina de
imersão na literatura sobre o tema, associada ou não à pesquisa de campo, conforme o
objeto investigado. No Arrêté de 2006, menciona-se também que o aluno deve
participar de seminários, estágios e atividades organizadas no âmbito da pós-
graduação. O limite de três anos pode ser renovado após aprovação do pedido por um
colegiado da Faculdade de Direito, com manifestação do orientador e do coordenador
do curso de doutorado. Existem casos de doutorandos que estendem seu doutoramento
por dez anos.

Diferentemente do que se dá no Brasil, cujo processo de avaliação da tese é, em geral,


dividido em 2 fases, a qualificação e a defesa da tese, em França existe a figura do
parecerista externo. Cada tese é previamente submetida a pelo menos dois examinadores
externos, que fazem a leitura e a crítica do texto por meio de um relatório, o qual pode
ser objeto de recurso. Somente após essa duríssima etapa é que o diretor da escola
avaliará se autoriza ou não a defesa da tese, a qual se dá perante uma banca
examinadora. A sessão de defesa é pública, salvo se o tema da tese for
reconhecidamente sigiloso.

A existência desse filtro prévio – os pareceristas externos – e a flexibilidade na dilação


do prazo de apresentação tornam o modelo francês bastante diferenciado em relação ao
brasileiro, que, nos últimos anos, assistiu a um incremento exponencial no número de
teses defendidas. No caso francês, tal como ocorre ainda em algumas faculdades de
Direito no Brasil, existem menções para os aprovados: honorable, très honorable, très
honorable avec félicitations. A banca deve produzir um relatório circunstanciado com
as razões que a levaram a aprovar ou a reprovar o doutorando, bem como de sua
menção.

Esse maior rigor na outorga dos títulos doutorais, ao menos no que se refere ao Direito,
criou uma tradição de edições de teses por grandes editoras jurídicas. É conhecida a
Biblioteca de Teses Dalloz e as publicações da LGDJ, ambas de renome internacional.

A figura da habilitação, que assume variados perfis no Brasil (livre-docência),


Alemanha (Habilitation) e Portugal (agregação), é conhecida em França como
habilitation à diriger des recherches (HDR), ou seja, habilitação para direção de
pesquisas.Sua normatização encontra-se no Arrêté de 23.11.1998.[6]O diploma de
doutorado, ou equivalente, é pré-requisito para a candidatura à HDR, cuja inscrição
deve vir acompanhada de trabalho escrito e memorial que comprove a atividade
científica e sua experiência no âmbito da pesquisa.

O candidato à HDR tem seus documentos examinados por três relatores (dois deles
devem ser externos à instituição para a qual se apresentou a inscrição), os quais hão de
apresentar um parecer escrito e fundamentado. Antes da apresentação perante banca
examinadora, se os pareceres recomendarem a defesa pública pelo candidato, são
distribuídas cópias de um resumo do trabalho do inscrito para os professores da
universidade. A banca examinadora será composta por, no mínimo, cinco membros. A
exogenia é preservada também nesta fase: ao menos dois dos membros devem ser de
outras instituições, admitindo-se a convocação de estrangeiros, e a eles caberá a
elaboração de parecer sobre a defesa.

3. O currículo
A estrutura curricular é variável conforme a universidade. Veja-se, por exemplo, o curso
de Direito e Ciência Política da Universidade de Bordeaux.[7] No primeiro semestre,
com total de 175 horas, há disciplinas de Introdução geral ao Estudo do Direito, Teoria
Geral do Direito Constitucional, Introdução Histórica ao Direito, Instituições
Jurisdicionais e, à escolha do aluno, tem-se o direito de cursar 2 disciplinas: História
Contemporânea, Problemas Econômicos Contemporâneos ou Inglês. No segundo
semestre, com 195 horas, estuda-se Direito Civil, Direito Constitucional, História das
Instituições, Instituições Administrativas. Pode-se ainda escolher duas disciplinas de
entre estas: História das Ideias Política, Problemas jurídicos, filosóficos e sociais
contemporâneos, Espanhol, Alemão e Atividades Físicas e Esportivas.

No segundo ano, são as seguintes disciplinas: a) Primeiro semestre (200 a 205 horas):
Direito Civil 1, Direito Administrativo 1, Instituições Europeias e Introdução ao Direito
Internacional Público.Podem ser escolhidas duas de entre estas matérias: Inglês,
Espanhol, Alemão, História das Instituições Jurisdicionais, Filosofia do Direito e
Direitos Constitucionais Europeus; b) Segundo Semestre (210 a 215 horas): Direito
Civil 2, Direito Administrativo 2, Regime Geral da Obrigação e Direito das Coisas. À
escolha dos alunos, têm-se duas matérias de entre estas: Inglês, Espanhol, Alemão,
Ciência Política, Introdução ao Direito Penal e à Ciência Criminal, Política Econômica e
Orçamentária; Pré-profissionalização para carreiras educacionais.

O terceiro ano, último do ciclo da licenciatura, perfaz um total de 240 a 261 horas,
também se divide em 2 semestres letivos, mas com uma maior oferta de disciplinas e
com a escolha pelos alunos tanto nas obrigatórias quanto nas optativas.

No primeiro semestre, o aluno deve cursar 2 disciplinas da seguinte lista: Direito Civil
(Contratos em espécie), Direito do Trabalho 1 (Relações coletivas de trabalho), Direito
dos Negócios (Direito Comercial Geral), Processo Civil (Teorias da jurisdição e da
ação), Direito Penal Geral, História do Direito 1 (História do Direito dos Contratos e
dos Seguros), Direito das Liberdades Fundamentais, Direito Internacional Público
(Sistema Jurídico Internacional) e Direito Administrativo (Responsabilidade Civil das
Pessoas Jurídicas de Direito Público). Pode-se ainda escolher três disciplinas, à exceção
das já transcritas, de entre as já referidas no primeiro grupo deste parágrafo, com
acréscimo de Direito Orçamentário, História do Direito 2 (Instituições Políticas e
Sociais da Antiguidade) e Processo Civil. Remanescem ainda Inglês, Espanhol e
Alemão.

No segundo semestre, com um total de 240 a 266 horas, persiste o sistema de escolha de
duas disciplinas de entre estas: Direito Civil 2 (Direito dos Seguros), Direito do
Trabalho 2 (Relações Individuais de Trabalho), Direito dos Negócios (Direito
Societário), Processo Penal (Órgãos, Ações e Princípios Reitores), História do Direito 3
(História do Direito das Coisas), Direito da União Europeia, Direito Internacional
Público 2 (Sanções do Direito Internacional) e Direito Administrativo 2 (Contencioso
Administrativo). Finalmente, escolhem-se duas de outro grupo, no qual se reproduzem
as citadas neste parágrafo, além do Direito Tributário e História do Direito 4 (História
do Pensamento Jurídico). Como sempre, ainda há a possibilidade de se cursar duas
disciplinas de línguas (Inglês, Alemão ou Espanhol).

***

A próxima e última coluna sobre o ensino jurídico francês cuidará das faculdades de
Direito e da formação profissional. Agradeço ao professor Reinaldo Couto (UNEB) por
sua contribuição para esta coluna.

[1]Disponível em: http://www.education.gouv.fr/cid143/le-baccalaureat.html. Acesso


em 18-5-2015.

[2] FONTAINHA, Fernando. Como se faz um advogado no Brasil e na França: um


breve ensaio comparativo e crítico. Direito. Brasília: UnB, julho – dezembro de 2014,
p.67-86, v. 01, n.02
[3]FONTAINHA, Fernando. Op. cit. loc. cit.

[4]FONTAINHA, Fernando. Op. cit. loc. cit.

[5] Disponível em:


http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000267752&da
teTexte=20080707&fastPos=13&fastReqId=24524170&oldAction=rechTexte. Acesso
em 19-5-2015.

[6]Disponível em: https://www.univ-


paris1.fr/fileadmin/Service_recherche/inscription_these/arrt%C3%A9_351HDR23nove
mbre1988.pdf. Acesso em 19-5-2015.

[7] Disponível em: http://rof-images.u-


bordeaux.fr/images/FRUAI0332929EPRMELLDDRT1_211Maquette%20Licence%20
Droit%20et%20science%20politique.pdf. Acesso em 19-5-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 20 de maio de 2015, 15h50


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo francês (Parte


15)
27 de maio de 2015, 19h01

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. A Faculdade de Direito francesa: uma instituição sem a centralidade de outros


tempos
As faculdades de Direito em França são englobadas pelo conceito de unités de
formation et de recherche en droit (UFR), unidades de formação e de pesquisa em
Direito. Em muitos casos, é comum encontrar a faculté de droit associada ao ensino de
Ciência Política. Daí se falar, muita vez, em faculté de Droit et sciences politiques.

De modo semelhante ao que se dá na Alemanha, praticamente não há faculdades


privadas e, mesmo de entre estas, são poucas com alguma respeitabilidade social.[1] Há
alguns rankings das faculdades de Direito francesas. Um deles é da SMBG, que se
baseia na qualidade da formação dos egressos dos cursos jurídicos. Com todas as
ressalvas que sempre se fez nesta coluna em relação a tais classificações, apresenta-se
aqui o resultado da pesquisa 2014-2015 na área de Direito, para as Licences: 1)
Université Panthéon- Assas Paris II; 2) Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne; 3) Aix-
Marseille Université; 4) Université François Rabelais de Tours; 5) Université de
Lorraine; 6) Université Toulouse 1 – Capitole; 7) Université Montpellier 1; 8) Institut
Catholique de Paris; 9) Université Paris Ouest Nanterre La Défense; 10) Université
Montesquieu-Bordeaux IV. Até a sétima colocação, a licenciatura é apenas em Direito.
O Instituto Católico de Paris gradua seus alunos em Direito, com habilitação em Direito
Público e Ciência Política. A Universidade de Paris X-Nanterre tem graduação em
Direito, Negócios e Administração. Finalmente, a Universidade de Bordeaux IV-
Montesquieu concede um título de licenciado em Direito e Ciência Política.[2] Desse
ranking, a única escola privada é o Instituto Católico de Paris, uma universidade
fundada em 1875 e que até homem conserva graduações em Teologia, Direito e Direito
Canônico, Filosofia, Letras, Ciências Sociais e Econômicas e Pedagogia.[3]

A estrutura física dos cursos é variável e não é possível fazer uma descrição genérica de
qualidades de “uma” faculdade de Direito. Nas mais importantes, contudo, prevalece a
estrutura tradicional de salas, anfiteatros e auditórios, cujo espaço é inversamente
proporcional à evolução do curso, dada a existência dos filtros ao longo do estudo
universitário, como já salientado em outras colunas.

A biblioteca é também um ponto central para o curso jurídico, embora, em muitas


instituições, não haja o mesmo nível de conforto ou de espaço que suas congêneres
alemãs. As bibliotecas jurídicas francesas possuem acervos antiquíssimos, com
verdadeiras joias da cultura jurídica medieval. O acesso eletrônico, porém, ainda é
pouco eficiente, se comparado às bibliotecas norte-americanas. Mais recentemente é que
se vem notando o esforço para a digitalização universal dos acervos. Uma das grandes
novidades nesse campo é a chamada Biblioteca Gálica, um projeto da Biblioteca
Nacional de França, no qual são encontrados livros digitalizados de enorme importância
para a cultura jurídica ocidental, como as obras de Domat, Pothier, Acúrsio, Bártolo de
Saxoferrato e outros. O acesso é gratuito e pode ser consultado neste enlace:
http://gallica.bnf.fr/?lang=PT.

De modo similar ao que ocorre na maioria das bibliotecas universitárias europeias, as


francesas possuem uma política de aquisição permanente de acervos e facultam as
cópias pelos estudantes, mediante um acordo de repasse de direitos autorais às editoras.
Têm-se desenvolvido nos últimos anos os acervos digitais de editoras jurídicas
clássicas, como a Dalloz e a LGDJ.

Os cortes orçamentários têm atingido duramente as universidades francesas e isso há


causado problemas não pouco relevantes para o sistema. Os cursos jurídicos não fogem
dessa realidade. O problema mais grave, porém, está no isolamento relativo das
faculdades francesas no que se refere a sua influência internacional. A diminuição do
número de francófonos está na raiz desse problema. Mas, também concorre para isso a
forte atuação das universidades e dos centros de pesquisa alemães, que são os campeões
na oferta de bolsas para estrangeiros e em uma política de maior flexibilidade com
estudantes que são apenas anglófonos, além do forte incentivo para que o alemão seja a
segunda língua dos pesquisadores que já dominam o inglês.

Outro ponto que é importante destacar é que, no imaginário social e na realidade


profissional, as faculdades de direito e a formação jurídica deixaram de ser centrais na
França, especialmente após a criação pelo general Charles de Gaulle, em 1945, da
Escola Nacional de Administração- ENA. A ENA é o celeiro formador da elite político-
administrativa francesa e seleciona seus quadros após um dificílimo concurso, em geral
prestado por egressos do igualmente famoso Sciences Po - Institut d'études politiques
de Paris ou de outras escolas, mas que fizeram cursos preparatórios para o exame da
ENA. Essa instituição teve em seus quadros as maiores figuras políticas francesas do
pós-guerra, de entre esses três presidentes da República – o aristocrata Valéry Giscard
d'Estaing, o combatente da França Livre Jacques Chirac e o socialista François
Hollande, atual presidente francês. Um número significativo de enarcas (um trocadilho
com a sigla ENA e o sufixo arca, usado para monarca) também ocupou o cargo de
primeiro-ministro, como Laurent Fabius, Michel Rocard, Alain Juppé, Lionel Jospin,
Dominique de Vilepin e Édouard Balladur. Entre eles há nomes da direita e da esquerda,
o que comprova o caráter apartidário da ENA.

No entanto, um efeito colateral negativo dessa estrutura está no engessamento da vida


política francesa. Os dois partidos principais – o gaullista e o Partido Socialista –
extraem seus líderes de entre os enarcas, o que contribuiu para que pessoas muito pouco
carismáticas como François Hollande ou excessivamente aristocráticas (ao menos para
os padrões republicanos franceses) como Dominique de Vilepin ascendessem aos mais
altos postos da República. Nicolas Sarkozy, de origens húngaras e pertencente à nobreza
do Império Austro-Húngaro, foi o primeiro presidente francês nascido no pós-guerra a
romper com o monopólio dos enarcas e sempre foi visto como um elemento estranho na
estrutura de poder da França “enárquica”.

2. O professor de Direito
Se a faculdade de Direito não é mais uma instituição central para a formação da elite
política e administrativa em França, o professor de Direito conserva um status
comparável ao catedrático alemão ou português.
A carreira de docente jurídico em França, diversamente do que ocorre no Brasil, não é
socialmente representada de modo inferior do que em relação a outras carreiras no
Direito. A causa disso é dúplice: não há tantos professores como no Brasil (e existe uma
hierarquização que permite pagar remunerações bem assimétricas entre os níveis inicial
e final na carreira) e inexiste, como no Brasil, a diferenciação de remuneração entre
carreiras jurídicas e não jurídicas, como já salientado nas colunas anteriores. Some-se a
isso a impossibilidade de acumulação de remunerações públicas, o que torna o modelo
francês um exemplo típico de monoprofissionalismo do docente. A importação deste
modelo para o Brasil implicaria, contudo, a existência de 3 condições aqui ausentes: a)
carreiras simétricas no serviço público; b) número menor de docentes (o que é facilitado
pelas turmas com 100, 200 alunos) e c) hierarquia na carreira professoral.

A estrutura da “carreira” é iniciada pela figura do attaché temporaire d’enseignement et


de recherche (ATER), uma espécie de assistente de ensino e pesquisa, com vínculo
precário com a universidade, contratado para atividades de tutoria (uma espécie de
docência dirigida), de pesquisa ou atividades práticas. Exige-se a condição de
doutorando ou de professor estrangeiro, com prática mínima de 2 anos. Os ATER’s são
selecionados pelas próprias universidades. O ATER foi objeto de regulamentação pelo
Decreto no 88-654, de 7.5.1988 e, mais recentemente, pela Lei no 2013-660, de
22.7.2013. Há, porém, doutores e livre-docentes exercendo essas funções, ainda que em
percentuais bem menos representativos. A remuneração do ATER é variável: a) com
192 horas e exercício de atividades de ensino a tempo integral, 2.118,71 euros; b) com
96 horas e exercício de atividades de ensino a tempo parcial, 1.510,41 euros.[4]

Existe ainda o mestre de conferências (maître de conférence), equivalente à


nomenclatura anglófona de lecture e, no Brasil, ao professor adjunto nas universidades
federais ou professor-doutor nas universidades paulistas. Segundo dados de 2008, em
todo o país, há 5.088 mestres de conferências nas faculdades de Direito, Economia e
Administração francesas, número esse composto por profissionais na faixa dos 30
anos. A carreira divide-se em níveis, com remunerações diferenciadas por nível e por
tempo de dedicação ao ensino. Sua regulamentação deveu-se ao Decreto no 84-431, de
6.6.1984, com modificações posteriores.[5] De acordo com o art.22 do Decreto de 1984,
modificado pelo Decreto no 2014-997, de 2.9.2014, o recrutamento dos maîtres de
conférences far-se-á por cada faculdade a partir de requisitos nacionais estabelecidos
pelo Conselho Nacional de Universidades francês. É indispensável que o candidato seja
doutor. Há aqui diferentes níveis na carreira, o que pode implicar uma remuneração de
1.439 euros até 3.656 euros (valores líquidos máximos), no último estágio do plano de
cargos e salários.[6]

O professor com agregação é o equivalente ao catedrático alemão e português ou o


ordinário italiano e ao titular brasileiro. O acesso à condição de professeur agrégé pode-
se dar por diferentes formas, existindo uma “via longa”, geralmente por concurso entre
os mestres de conferência, e uma “via real”, aberta a pessoas que não são mestres de
conferência, mas igualmente por concurso. Existe, no modelo francês, a mobilidade
regional, o que faz com que, em princípio, não haja restrição a que professores de
diferentes universidades concorram para vagas abertas em outras instituições diversas
das suas. Essa praxe estimula a exogenia e permite uma renovação permanente dos
quadros do topo da hierarquia docente francesa. Trata-se do mais difícil, prestigioso e
importante concurso público nas carreiras de Estado em França. Só isso diz muita coisa
sobre a representação social do docente naquele país.[7]
A remuneração do professeur agrégé, em valores máximos líquidos, varia de 3.120
euros até 4.424 euros.[8] Existem, porém, vantagens e incentivos que são concedidos de
modo extraordinário, conforme critérios de mérito e de dedicação.

Há, contudo, muitas críticas em França aos valores pagos aos docentes e ao modo de
evolução remuneratória, que implica uma dobra ao longo da carreira, o que é
considerado injusto.

3. Os cursos de formação profissional


O ingresso na magistratura, na advocacia, na Polícia faz-se por meio da aprovação em
um concurso de ingresso nos respectivos cursos de formação profissional.

Foram criados em França, segundo Fernando Fontainha, após a reforma universitária de


Charles de Gaulle, em 1958, os Institutos de Estudos Judiciários (Instituts d’Études
Judiciaires -IEJs), agregados às faculdades de Direito. Esses institutos, “sempre tiveram
por concorrentes os Instituts d’Études Politiques (IEPs) na preparação ao concurso da
magistratura, uma vez que a lei exige quatro anos de qualquer formação universitária
para concorrer”. Esses Institutos de Estudos Políticos são “escolas de elite que não
ensinam apenas a Ciência Política, mas a Administração a Economia e o Direito”.[9]

Os institutos de estudos judiciários são frequentados por estudantes de Direito, que já


tenham concluído o quarto ano (Master 1), e as aulas são dirigidas para temas ligados
mais diretamente à respectiva carreira pública pretendida. No caso da advocacia, existe
um exame específico, que possibilita a obtenção do Certificat d’Aptitude à la
Profession d’Avocat, conhecido pela sigla CAPA, “documento que autoriza o exercício
efetivo da advocacia na França”.[10]

As aulas dos institutos são orientadas para as matérias das provas de acesso e não se
limitam aos conteúdos jurídicos, mas também ao modo como se deve portar nos
exames.

Em uma tese específica sobre o recrutamento para a magistratura francesa, Fernando


Fontainha acompanhou pessoalmente alguns exames orais. Transcrevo uma passagem
curiosíssima de sua pesquisa de campo, na qual ele entrevistou um dos membros de
banca examinadora, o conhecido professor Michel Miaille:

“M. Miaille – Podemos fazer perguntas um pouco difíceis, às vezes, dizendo talvez que
o candidato não saberá, mas, veremos como ele responde. Eu tomo um exemplo. (...) Eu
fiz uma pergunta a uma candidata, que foi: ‘você saberia...’ sim eu coloquei no
condicional para que isso não parecesse como uma evidência... ‘você saberia qual era a
língua pela qual Cristo falava com seus discípulos?’ Que língua se falava na Palestina?
Pergunto ao senhor... o que você responderia? [Apontando com o dedo]”[11].

A intenção do examinador não era propriamente saber se a candidata conhecia a língua


falada por Cristo, no caso, o aramaico. Mas esperar que ela não tentasse enganá-lo ou
embromá-lo. Responder que não sabia, caso ela realmente não dominasse o tema, seria
mais adequado. A candidata em questão respondeu que Cristo falava árabe. E foi
interpelada por Miaille:
“E lá, obviamente surpreso, digo-lhe, em seguida, ‘como você pode explicar que Cristo
falava árabe?’ Então ele se afunda ainda mais e ela me diz: ‘mas senhor, por causa dos
muçulmanos...’ eu digo: ‘mas espere, você sabe que o Islã nasceu sete séculos mais
tarde? Assim, os muçulmanos não existiam no tempo de Cristo, é sete séculos depois
que surge o Islã’.[12]

Evidentemente, nesses concursos há questões escritas e orais de caráter jurídico. O


importante, todavia, é que cabe a instituições universitárias preparar os concorrentes e
não a empresas privadas.

4. Conclusão
Encerra-se hoje a parte relativa ao ensino jurídico francês. É pretensão do colunista
prosseguir, a despeito do caráter extenuante que tem sido realizar esta pesquisa e
condensar tantas informações em um espaço tão restrito. Agradeço imensamente aos
leitores que me tem apoiado nesta iniciativa. Sim, se tudo der certo, as colunas serão
reunidas em um livro. É uma promessa que já fiz a mim mesmo. Precisamos apenas sair
da Europa e atravessar o Atlântico para cuidar de alguns países da América. Até breve!

[1] Fernando Fontainha (Como se faz um advogado no Brasil e na França: um breve


ensaio comparativo e crítico. Direito. Brasília: UnB, julho – dezembro de 2014, p.67-
86, v. 01, n.02) ressalva a Universidade Católica de Lille como uma instituição
reputada.
[2] Disponível em: http://www.meilleures-licences.com/licence-droit.html. Acesso em
26-5-2015.
[3] Informações extraídas do site da universidade, disponível aqui: http://www.icp.fr/.
Acesso em 27-5-2015.
[4] Fonte: http://cache.media.enseignementsup-recherche.gouv.fr/file/2014/66/0/2014-
ATER_351660.pdf. Acesso em 26-5-2015.
[5] Disponível em:
http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000520453.
Acesso em 26-5-2015.
[6] Fonte: http://www.education.gouv.fr/cid1054/professeur-agrege.html#Carrière et
rémunération du professeur agrégé. Acesso em 26-5-2015.
[7] “Professor é o profissional jurídico mais valorizado, o Concours d’Agrégation é
considerado o mais prestigioso e a supremacia professoral é flagrantemente constatada
quando de interações interprofissionais, como em bancas de concursos, como eu já tive
a oportunidade de observar no concurso da magistratura francesa em 2007 e 2008
(Fontainha: 2009)” (FONTAINHA, Fernando. Op. cit., loc. cit).
[8] Fonte: http://www.education.gouv.fr/cid1054/professeur-agrege.html. Acesso em
26-5-2015.
[9] FONTAINHA, Fernando. Op. cit., loc. cit.
[10] FONTAINHA, Fernando. Op. cit., loc. cit.
[11]FONTAINHA, Fernando de Castro. Como tornar-se juiz? : uma análise
interacionista sobre o concurso da magistratura francesa.Curitiba: Juruá, 2013. p 422.
[12] FONTAINHA, Fernando de Castro. Como tornar-se juiz?... p. 422-423.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 27 de maio de 2015, 19h01


Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo inglês (Parte


16)
3 de junho de 2015, 13h34

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. Uma história insular


O ano de 1066 é sempre considerado como o marco efetivo do nascimento da
monarquia britânica. Em 14 de outubro desse ano, o duque normando Guilherme (1035-
1087), cujo agnome é “o conquistador”, venceu as tropas anglo-saxãs do rei Harald,
iniciando o longo domínio normando sobre as ilhas britânicas e refundando a história
daquele país. O conflito ocorreu no velho Sussex e passou à posteridade como Batalha
de Hastings. Com Guilherme vieram nobres franco-normandos que constituíram a elite
nacional por séculos e, até os dias de hoje, a referência a alguma antepassado que
chegou às ilhas “com o Conquistador” é algo que confere enorme status.

A derrota de Harald em Hastings foi consequência de vitória, em 25 de setembro de


1066, na Batalha de Stamford Bridge. O rei anglo-saxão perdeu homens demais e não
teve como resistir ao desembarque normando três semanas depois após a sangrenta
batalha ocorrida na região de Yorkshire. Em Hastings, Harald confrontou-se com
Haroldo Hardrada, o Manto Cinzento, rei dos noruegueses, que também postulava o
trono da Inglaterra. Ao lado de Hardada encontrava-se o conde Tostig Godwinson,
irmão e traidor do rei Harald. Tostig, após o desembarque, a mando de Hardrada,
procurou o irmão e lhe propôs um acordo. O rei Harald, indignado com o irmão traidor,
deu uma resposta que passou à História: “Diga a Haroldo Hardrada, rei dos
noruegueses, que ele só terá direito a sete palmos da boa terra inglesa e nada mais do
que isso”.[1]

Ao final do dia, Haroldo Hardadra e o conde Tostig receberam a terra prometida pelo rei
Harald, onde até hoje descansam juntamente com os 8 mil soldados noruegueses
mortos, dos 9 mil que entraram em ordem de batalha.

Em 1940, a frase de Harald seria repetida. Não em uma conversa ao pé da batalha, mas
em um discurso no Parlamento britânico, proferido pelo recente primeiro-ministro
Winston Churchill, após a queda da França e a conquista de quase toda Europa pelos
alemães. A uma proposta de Hitler para que fizessem um acordo de paz, Churchill disse
no Parlamento: “A mesma promessa feita nos campos de Hastings, há quase mil anos,
está de pé. Ao Sr. Hitler, só posso oferecer sete palmos da boa terra inglesa. E nada
mais!”

Esses dois episódios simbolizam o caráter insular da História das ilhas britânicas, para
não se referir ao próprio povo, embora se rejeite esse tipo de explicação estruturalista.
Essa insularidade revela-se em quase tudo e, no Direito, com maior intensidade ainda.

2. Um direito inglês e as raízes de sua autonomização


Se, até agora, nossa série de colunas se ocupou de “modelos” de ensino jurídico e de
formação dos juristas em países das Europa continental, hoje se inicia o estudo desse
tema na Inglaterra e no País de Gales. Tal delimitação geográfica já é, de per si, muito
peculiar. Não se vai examinar o ensino jurídico britânico, mas anglo-galês, pois não
existe um direito britânico e sim um direito inglês, um direito escocês e um direito
irlandês. As diferenças entre esses são tão acentuadas que não é correto dar-lhes um
tratamento uniforme.

Outro aspecto digno de nota especial: a expressão “sistema”, “família” ou “tradição”


romano-germânica serve para caracterizar o Direito continental europeu e de todos os
países não europeus que assim se filiam. Segundo Dario Moura Vicente, a
“autonomização da família jurídica de Common Law”, cujas raízes estão no Direito
inglês, deveu-se a uma série de fatores, tais como: a) o fracasso das tentativas de se
promover a recepção do Direito produzido no Império Romano, na Idade Média, pelo
clero católico, que ocupou importantes postos na burocracia do Reino da Inglaterra; b) a
rejeição do Direito de tradição romana pelos tribunais ingleses, com posterior apoio dos
monarcas; c) o receio de que a introdução do Direito produzido em Roma,
especialmente nas fases finais do Dominado, mitigasse ou eliminasse o sistema
consuetudinário inglês e a tradição de liberdades individuais; d) a ausência de rupturas
institucionais como a Revolução Francesa. Mesmo nas guerras civis ou rebeliões como
a Revolução Gloriosa e a Revolução Puritana, conservou-se intacta a estrutura de poder
no país, a despeito da eliminação de parte dos membros da elite dominante; f) a forte
influência da filosofia utilitarista e liberal na formação de uma consciência coletiva de
pertencimento a um Estado de Direito fundado nas liberdades fundamentais; g) a
possibilidade retroalimentação e renovação do sistema por meio de sua expansão para as
colônias e pela crescente influência da língua inglesa, que se tornou o idioma franco
internacional.[2]

Dario Moura Vicente, cujo livro é a melhor obra em língua portuguesa sobre Direito
Comparado (equiparável aos grandes clássicos de René David), transcreve uma
passagem da aula inaugural de Blackstone, em 1758, na Universidade de Oxford, que é
explicativa sobre as causas dessa singularidade do Direito inglês: “Não devemos
preferir o edito do pretor ou o rescrito do imperador romano aos nossos costumes
imemoriais ou às leis de um Parlamento inglês; a não ser que prefiramos também a
monarquia despótica de Roma e Bizâncio, para cujas populações os primeiros foram
gizados, à Constituição livre da Grã-Bretanha, que os últimos estão aptos a
perpetuar”.[3]

Contemporaneamente, esse Direito tão particular há recebido fortes influxos do Direito


europeu. Esclareça-se: não me refiro ao direito continental europeu, que tem sentido
diverso do direito europeu, a saber, aquele produzido pelos órgãos da União Europeia.
Em diversas colunas, tive a oportunidade de tratar dessas evoluções mais recentes do
Direito inglês, ao exemplo das seguintes: a) retirada das funções jurisdicionais e a
mudança de papel da Câmara dos Lordes, que caminha para sua extinção ou para sua
conversão em uma espécie de Senado, embora ela seja hoje — nos moldes atuais — um
órgão legislativo mais plural e representativo da sociedade do que muitas casas
congêneres, cujos membros são eleitos por sufrágio universal; b) a criação da Suprema
Corte do Reino Unido, que começa a desempenhar funções próximas a de um “supremo
tribunal de justiça” europeu; c) o impacto do Tratado Europeu de Direitos Humanos
sobre a tradição de Common Law e a busca dos juízes locais por um caminho que
preserve as características tradicionais de seu Direito; d) os conflitos institucionais da
jurisdição interna com a jurisdição europeia e os sinais de que Londres irá denunciar o
Tratado Europeu de Direitos Humanos; e) a inflação legislativa britânica dos últimos
100 anos, que compromete a noção clássica de um país fundado majoritariamente em
direito costumeiro.

3. Um direito de juristas ou um direito de juízes?


Se o Direito alemão é um “direito dos professores”, na Inglaterra tem-se um “direito dos
juízes”. Embora não se encontre na Inglaterra uma realidade na formação jurídica como
a norte-americana, o modelo inglês diferencia-se fundamentalmente de seus congêneres
continentais pela ausência de centralidade do professor. Os ingleses atribuem essa
posição de preeminência ao juiz e ao advogado, neste último caso, mais precisamente,
aos barristers, que “são geralmente juristas altamente qualificados, gozando de grande
prestígio social” e que “constituem a elite da profissão e é entre eles que são recrutados
os juízes dos tribunais superiores”.[4]

Essa diferenciação reflete-se na remuneração e no caráter relativamente recente da


estrutura dos cursos jurídicos ingleses, que são integrados a um modelo de formação
jurídica cuja parte profissional é compartilhada com as corporações de classe, as quais
não exigem o bacharelado em Direito para o exercício de funções jurídicas. Tal modo
de se organizar o sistema de formação jurídica na Inglaterra soma-se às diferenças de
composição curricular e de estrutura das disciplinas, o que acentua a dificuldade de
conversão dessas estruturas para modelos ligados à tradição romano-germânica. Essa
assimetria é notável quando se percebe a baixíssima influência do Direito inglês em
áreas clássicas como Direito Civil, o Direito Penal e o Direito Administrativo. No
Direito Constitucional, o cenário é diferente, por óbvias razões históricas, da mesma
maneira como na Filosofia do Direito, na Teoria do Direito e em ramos mais modernos
como o Direito das Comunicações e do Entretinimento.

A grande vantagem “competitiva” do Direito inglês está na língua inglesa, o latim de


nosso tempo. Esse avanço do inglês gerou consequências importantes como a
aproximação cada vez maior de juristas alemães às universidades inglesas, como é
emblemático o exemplo de Reinhard Zimmermann. No entanto, as distinções
permanecem acentuadas, ao exemplo da inexistência de um “Direito Civil” abrangente
como se tem na tradição romano-germânica, cujo equivalente inglês são disciplinas
específicas como Torts, Contracts ou Family law. Até mesmo a tradução de Direito
Civil por Civil law é equívoca, dado que Civil law tem um sentido específico de
contraponto a Common law, embora hoje, até por persistência no erro, essa
nomenclatura se haja tornado frequente.

A formação jurídica inglesa fica, portanto, a meio caminho do que ocorre nos Estados
Unidos, onde os cursos de Direito não são graduações no sentido continental, e o que se
opera na Europa. Essas diferenciações têm enorme relevância para qualquer estudo
nesse campo.

4. A falta e o excesso de centralidade do Direito na sociedade inglesa


Na Inglaterra e no País de Gales, o Direito é central e não é central. Este paradoxo
explica-se. A consciência dos direitos individuais, a tradição de defesa desses direitos
em face do Estado e a presença efetiva do aparato judiciário-penal na vida cotidiana
convertem a sociedade inglesa em um espaço tipicamente jurídico. O Direito permeia a
sociedade e foi nele inserido de maneia suave e imperceptível. Ele se tornou parte da
estrutura social e as pessoas o encaram como algo próprio de suas vidas. Por outro lado,
não há uma percepção social diferenciada em relação aos juristas e ao Direito, como se
ele fosse responsável por dizer a última palavra nos conflitos e nos impasses políticos
ou econômicos. Reserva-se ainda um espaço saudável para a ágora político-partidária. O
Parlamento é o centro da vida política e não a Suprema Corte. Os conflitos são expostos
em outros cenários que não os tribunais. Ir à Justiça não é algo barato e não se concebe
um “amplo acesso à função jurisdicional” com algo inerente à cidadania e que deva ser
exercitado sem elevados ônus financeiros em relação a advogados e custas judiciais
realmente caras.

5. Nas próximas colunas


A sequência sobre ensino jurídico na Inglaterra ocupar-se-á das universidades, dos
currículos, das aulas, da remuneração dos docentes e seu recrutamento, além das
profissões jurídicas.

A viagem continua, desta vez com a travessia do canal da Mancha.

[1] O episódio é narrado em: CHURCHILL, Winston S. Uma história dos povos de
língua inglesa. Edição condensada dos quatro volumes por Henry Steele Commager.
Tradução de Vera Giambastiani, Antonio Sepulveda e Gleuber Vieira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, Univercidade, 2009. p.45-46.

[2] MOURA VICENTE, Dario. Direito comparado. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2014.
v.1 p.225-228.

[3] MOURA VICENTE, Dario. Op. cit. p.226.

[4] MOURA VICENTE, Dario. Op. cit. p.251.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2015, 13h34


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo inglês (parte


17)
10 de junho de 2015, 14h45

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Introdução
Na coluna passada, começamos a análise do modelo jurídico inglês de ensino,
formação, estrutura universitária e de carreiras profissionais. Nossa análise hoje se
ocupará da regulação do ensino jurídico, o acesso à universidade, a formação do futuro
jurista na Inglaterra e no País de Gales.

O texto de hoje é fortemente baseado no relatório para a Inglaterra e País de Gales sobre
o papel da prática na formação jurídica, elaborado por Julian Lonbay, da Universidade
de Birmingham.[1] Agradeço ao lecture Mattew Dyson, da Universidade de Cambridge,
pelo auxílio nesta série de colunas.

Diplomas e regulação do ensino jurídico


Até o ano de 2008, havia 108 instituições de ensino superior reconhecidas pela
Solicitors Regulation Authority (SRA) e pelo Bar Standards Board (BSB) como
dotadas de competência para emitir os Qualifying Law Degrees (QLD).[2] Essas
instituições de ensino superior não se localizam apenas na Inglaterra e no País de Gales,
mas também na Irlanda do Norte e na República da Irlanda.[3] No entanto, a Inglaterra
e o País de Gales só admitem a expedição de QLD para instituições que formem seus
alunos em Direito inglês, a despeito de todas elas terem liberdade na definição de seus
currículos.

A divisão entre SRA e BSB dá-se por efeito de uma divisão da advocacia em duas
classes: solicitors e barristers, uma tradicional e antiga peculiaridade inglesa. Os
solicitors são representados pela Law Society. A representação dos barristers cabe ao
Bar Council. É absolutamente equivocado dizer que tanto a Law Society quando o Bar
Council seriam uma “OAB inglesa”, como é frequente se ler em algumas publicações.
Nenhuma dessas entidades possui natureza institucional ou prerrogativas político-
jurídicas semelhantes ao que é conferido à OAB pela Constituição e pelo Estatuto da
Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Em outra coluna, vai-se tratar
especificamente das profissões jurídicas inglesas e galesas. No entanto, adiantam-se
duas diferenças básicas entre solicitors e barristers: os últimos elaboram peças, emitem
pareceres e eventualmente lecionam nas universidades. Eles não representam
diretamente as partes em juízo e, duramente séculos, exerceram o monopólio da
sustentação oral nos tribunais superiores. Essa restrição desapareceu de direito, mas, de
fato, só os barristers têm exercido esse papel nos dias de hoje. Quantos aos solicitors,
eles têm a função da representação judicial e extrajudicial das partes. Eles são os
advogados, no sentido brasileiro, nos processos judiciais e em negócios jurídicos que
dependam da participação de um profissional dessa natureza.
A SRA é um órgão regulatório da profissão de solicitor, ao passo em que o BSB exerce
idêntica função em face do barristers.

A SRA é uma entidade que exerce uma função regulatória dos serviços jurídicos dos
solicitors e bancas de advocacia, que foi instituída pelo Legal Services Act de 2007,
tendo por objeto a defesa do interesse público, da rule of law, a melhoria da Justiça, a
proteção e a defesa da concorrência dos serviços jurídicos, a defesa dos consumidores e
o estímulo a uma boa formação dos profissionais do Direito.

Por sua vez, o BSB foi criado para idênticas funções em relação aos barristers. Sua
composição é mista, tendo em seu conselho barristers e leigos, o que se justifica por
uma necessidade de se dotar a classe de alguma forma de controle externo.

O valor das anuidades nos cursos de Direito


Para um brasileiro, que convive com o ensino superior privado pago e seu equivalente
público sem qualquer contraprestação pelo aluno, é interessante observar que as
universidades inglesas e galesas cobram de seus estudantes uma anuidade com teto
fixado em 3.500 libras esterlinas, em valores de 2008. As universidades públicas são
financiadas pelo Estado por meio de recursos complementares aos auferidos das
anuidades.[4]

As universidades privadas, que são em número expressivamente menor que as públicas,


cobram valores bem mais altos, algumas delas chegando a anuidades de 10 mil libras. A
razão dessa disparidade é que as privadas não recebem qualquer tipo de subvenção ou
apoio estatal.[5]

Os estudantes pagam essas anuidades com dinheiro da família, por meio de


empréstimos (pagos após a conclusão do curso superior e muito onerosos para os
recém-formados) ou por intermédio de fundos educacionais, que são contratados desde
muito cedo por seus pais, à semelhança do que se faz no Brasil nos fundos de
previdência privada ou nas cadernetas de poupança abertas para os filhos quando estes
ainda são crianças. Cursar uma faculdade de Direito não é algo vulgar e exige enormes
sacrifícios pessoais ou familiares para os alunos.

Como os alunos ingressam nos cursos de Direito?


Não existe um padrão nas universidades inglesas para o acesso aos cursos de Direito.
Em algumas delas, o candidato tem de fazer um requerimento (a famosa aplication) no
qual demonstram sua excelência como estudante no ensino médio, por meio da
comprovação de um número específico de conceitos A (em geral, três conceitos A).
Outras universidades usam ainda o National Admission Test for Law (LNAT).[6]

O LNAT é um exame utilizado desde 2004 pelas universidades de Birmingham, Bristol,

Cambridge, Durham, East Anglia, Nottingham, Oxford e pela University College


London. Ele objetivou criar outros filtros para o ingress nos cursos jurídicos em razão
do aumento da competitividade e dos níveis dos conceitos dos alunos.

Segundo dados de 2008, 27.384 mil estudantes candidataram-se a um vaga nos cursos
jurídicos ingleses e galeses, tendo sido admitidos 19.020 postulantes, o que implica um
percentual de 69,5% candidatos aprovados.[7]
A estrutura do curso jurídico na Inglaterra e no País de Gales
Como vimos nas várias colunas anteriores, o ensino jurídico europeu foi transformado
após a Declaração de Bolonha e, salvo exceções, sua estrutura é baseada em ciclos,
sendo que o primeiro deles corresponde a uma média de 3 anos, seguido de 2 anos de
formação complementar acadêmica (o “Mestrado de Bolonha”) ou de formação
profissional voltada para os Exames de Estado. Na Inglaterra e no País de Gales, um
curso jurídico padrão dura 3 anos, à semelhança do ciclo de formação básica europeia. É
possível que ele se estenda por mais 1 ano se o aluno optar por cursar disciplinas de
outra faculdade.[8]

Existem ainda cursos jurídicos com duração de 2 anos, mas que exige do aluno a
comprovação de que ele já é graduado em outra faculdade. [9] Por fim, é também
possível obter o GDL – Graduate Law Diploma Courses, que é realizado em apenas 1
ano, em circunstâncias específicas (desenvolver).[10]

Uma peculiaridade do modelo anglo-galês, que o aproxima do modelo francês, é a não


obrigatoriedade da conclusão de uma faculdade de Direito para que alguém se habilite a
se tornar um solicitor ou um barrister.

O currículo e formação do aluno nas faculdades de Direito


A matriz curricular de um curso jurídico padrão (modelo de 3 anos) é formada por, no
mínimo, 2/3 de disciplinas obrigatórias. Há, assim como na Alemanha, uma correlação
entre as disciplinas obrigatórias e as “sete matérias fundamentais” exigidas para os
candidatos ao exame JASB, habilitante para as carreiras jurídicas. Essas 7 disciplinas do
JASB são as seguintes: a) Direito Penal; b) Equity and Trusts; c) Direito da União
Europeia; d) Obrigações 1 (Contratos); e) Obrigações 2 (Torts, que se pode traduzir
literariamente como Responsabilidade Civil, embora seja mais literal traduzir por
Delitos Privados); f) Property Law-Land Law, uma disciplina que geralmente é
traduzida para Direitos Reais, embora seu conteúdo seja bastante diverso e envolve
questões contratuais que, no Brasil, seriam típicas do Direito Obrigacional; g) Public
Law, uma espécie de guarda-chuva no qual se inserem o Direito Constitucional, o
Direito Administrativo e Direitos Humanos, esta última uma matéria mais voltada para
o estudo do Tratado Europeu de Direitos Humanos e menos para os conteúdos mais
elásticos que se costuma encontrar nos currículos brasileiros para as disciplinas sob esta
rubrica. É também componente curricular a formação em legal research, traduzível
literalmente por “pesquisa jurídica”, mas que em nada tem haver com o sentido
brasileiro. Trata-se de um treinamento para que os alunos saibam pesquisar no
emaranhando de precedentes do sistema jurídico inglês.

Alguns aspectos merecem especial atenção do leitor brasileiro.

O primeiro, que já se evidenciou nas traduções feitas acima, está na dificuldade de se


compatibilizar ou comparar os nomes e os conteúdos de certas disciplinas inglesas com
seus (aparentemente) correlatos brasileiros. Tal advertência pode parecer um truísmo,
mas é muito importante quando se faz estudos sobre a matriz curricular inglesa a fim de
apontar eventuais deficiências do modelo brasileiro ou mesmo com o intuito de transpor
para o Brasil a experiência inglesa.

O segundo aspecto é a indiferença da matriz curricular obrigatória com disciplinas


propedêuticas, como Filosofia, Sociologia, Antropologia ou Psicologia. O aluno inglês
pode até cursar essas disciplinas, mas elas não são obrigatórias e têm quase nenhuma
influência para a admissão do graduado em Direito nos exames que o habilitam ao
exercício das profissões jurídicas. Não há correlação empiricamente comprovável entre
qualidade de ensino e aumento de matérias metajurídicas nos modelos de formação
jurídica que estudamos até agora. Este colunista entende que tais matérias são muito
importantes para qualquer formação universitária – e não apenas a jurídica -, mas
considera que é mais honesto intelectualmente defendê-las sob fundamentos coerentes
com a realidade e não com base em impressões equivocadas sobre o modo como se
estruturam as matrizes curriculares dos sistemas jurídicos mais eficientes.

O terceiro aspecto está na leitura prudente sobre outra afirmação comum hoje no debate
sobre reformas curriculares no Brasil. O modelo inglês não adota uma variedade
significativa de conteúdos curriculares “inovadores”. Em verdade, como se observou da
enumeração acima, eles são tradicionais e voltados para a boa formação de um
profissional que irá atuar nos espaços da advocacia, magistratura e Ministério Público.
Evidentemente que cada instituição inglesa ou galesa possui liberdade para conformar
suas matrizes curriculares e que existem inúmeras disciplinas que mesclam conteúdos
jurídicos, políticos, econômicos ou de administração. No entanto, estas matérias
atendem a uma demanda comum aos cursos jurídicos e não jurídicos, bem como às
escolhas formativas dos estudantes. Não se constituem, porém, no eixo central da
formação e nem se integram em um projeto uniforme ou em um planejamento
acadêmico mais abrangente.

Um ponto também notável é que o curso jurídico anglo-galês, nesta chave, é mais
próximo da realidade norte-americana, no que se refere ao compartilhamento de
disciplinas e à abertura para alunos e docentes estrangeiros. O multiculturalismo e a
diversidade, que são marcas da sociedade inglesa contemporânea, revelam-se também
nos cursos jurídicos.

***

Na próxima semana, veremos as profissões jurídicas inglesas e mais alguns aspectos da


estrutura universitária.

[1] LONBAY, Julian. Report for England and Wales: the role of practice in legal
education. p. 1-19. Abr. 2010.
[2] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[3] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[4] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[5] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[6] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[7] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[8] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[9] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[10] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2015, 14h45


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo inglês (Parte


18)
17 de junho de 2015, 10h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1.Perucas brancas e profissões jurídicas inglesas


As origens das perucas brancas dos magistrados ingleses e membros da Câmara dos
Lordes. A introdução do costume de se usar a white wig é atribuída ao rei Carlos II,
filho de Carlos I, decapitado por ordem dos rebeldes puritanos de Oliver Cromwell, que
reconquistou o trono britânico após a morte do Lord Protector, o título oficial do
ditador da Commonwealth. Imitação de hábitos franceses ou efeito de uma praga de
piolhos que obrigou os londrinos a rasparem a cabeça, não há consenso sobre o que
levou Carlos Stuart, que viveu longos anos de exílio em França, a iniciar a moda das
perucas. O certo é que, desde a década de 1660, quando acedeu ao trono, até o início do
reinado do rei Jorge IV, em 1820, todos os monarcas britânicos mantiveram suas
cabeças ornadas com esse adereço. Não é sem razão que esse dress code passou a servir
de modelo para a sociedade nesses quase 200 anos.

Abandonado pelos britânicos, o emprego das perucas resistiu no Poder Judiciário e é até
os dias de hoje encontrável não só no Reino Unido, mas em diversas ex-colônias e
domínios do antigo Império Britânico. Desde 2008, no entanto, as perucas deixaram de
ser usadas no cotidiano das principais cortes do Reino Unido. Elas sobrevivem em
sessões cerimoniais, nas divisões criminais e algumas situações que podem ser descritas
como residuais.

A transformação simbólica do dress code de magistrados, advogados e serventuários


judiciais do Reino Unido não foi dissociada das grandes reformas dos anos 1990-2000,
de entre as quais estão a criação da Suprema Corte, o fim da Divisão Judicial da Câmara
dos Lordes (os antigos law lords), a extinção de dezenas cortes de primeiro grau em
todos o país, a ampliação da presença de juízes leigos, o fim da divisão estrita de
funções entre barristers e solicitors, a adoção de um Código de Processo Civil e a
instituição de uma lei de controle externo dos serviços judiciários e da atividade
advocatícia.

As profissões jurídicas inglesas e galesas, para se manter fiel ao escopo desta parte da
série de colunas sobre como se forma um jurista em alguns países do mundo, têm sido
alcançadas pelas grandes e silenciosas transformações da sociedade britânica dos
últimos 20 anos. E é sobre essas profissões o objeto desta coluna, colocando-se ênfase
nas particularidades da formação inglesa.

2.Profissões jurídicas: a centralidade da advocacia


Se na Europa continental há um direito dos professores, na Inglaterra e em Gales existe
um direito dos advogados. A principal e mais prestigiosa das profissões jurídicas é a
advocacia. Dela provêm os melhores quadros para a magistratura e muitos advogados
tornaram-se grandes professores. Essa realidade é especialmente notável quando se nota
que a “profissionalização” da docência jurídica, sob os moldes de um alheamento dos
práticos do ambiente universitário, é relativamente recente e não se completou ainda.

O curso de Direito não é pré-requisito para o ingresso nas principais carreiras jurídicas e
há uma nítida divisão de funções entre a formação acadêmica e a formação para as
profissões jurídicas, cabendo a primeira ao locus universitário e a segunda aos órgãos de
classe.[1]

a) Solicitors. Resultado de uma distinção de funções da carreira geralmente conhecida


na Europa continental e no Brasil como de “advocacia”, os solicitors são os
profissionais que representam judicial e extrajudicialmente as partes no sistema
judiciário anglo-galês. Eles são contratados por pessoas naturais ou jurídicas e prestam-
lhe serviços como típicos mandatários judiciais (ou extrajudiciais) nos moldes em que
um advogado brasileiro normalmente o faria: assinam documentos, recebem intimações,
participam de audiências nos graus inferiores de jurisdição, reúnem-se com advogados
ou com as partes adversárias. Os solicitors também funcionam como revisores ou
redatores de instrumentos negociais, orientam os clientes sobre como agir juridicamente
e podem atuar nas empresas. Cabe-lhes ainda a representação pro bono e a atuação em
escritórios de assistência judiciária aos necessitados, a maior parte mantido por doações
de trusts ou de pessoas individuais.

Conforme dados da Solicitors Regulation Authority (SRA), em maio de 2015, havia


132.520 solicitors na Inglaterra e no País de Gales. Em 2009, esse número era de
115.487 solicitors.[2] Esses profissionais atuam sozinhos ou por meio de firmas
advocatícias.

O impedimento a que os solicitors atuassem nos tribunais superiores foi abolido graças
às reformas dos serviços jurídicos iniciadas com o Courts and Legal Services Act 1990.
No entanto, ainda persiste o hábito de os solicitors indicarem os barristers para essa
atuação. Como se verá a seguir, cabe aos barristers a elaboração de pareceres e a
redação de peças processuais de maior importância. Há outra interessante divisão de
trabalho aqui: os solicitors obtém provas, dialogam com os clientes sobre os fatos,
investigam elementos de fato que podem ser úteis ao julgamento, conversam com
testemunhas e “preparam” o caso para a redação de petições pelos barristers.

A Law Society é o órgão que congrega e representa os solicitors. Fundada em 1825, ela
atua como órgão de regulação e de representação da classe. Com a reforma dos serviços
jurídicos, as funções regulatórias são exercidas por intermédio da Solicitors Regulation
Authority, com funções que hoje extrapolam o mero interesse corporativo e alcança o
interesse público, a Justiça e os direitos dos consumidores de serviços jurídicos. A parte
disciplinar cabe ao Office for Legal Complaints, órgão com atribuições de ouvidoria e
de recepção de queixas de usuários dos serviços advocatícios.

Pode-se tornar um solicitor por duas vias principais: a obtenção do título de bachelor of
laws (denominado de bachelor of arts em Cambridge e Oxford até hoje), após a
conclusão de uma graduação em Direito, ou outro curso não jurídico (vide coluna
anterior), seguido da aprovação no Common Professional Examination (para não
graduados em Direito) e de um curso de prática jurídica, além de um estágio
profissional de 2 anos em um escritório dirigido por solicitors mais antigos.
A etapa final de ingresso na profissão jurídica de solicitor é a “admissão ao rol”
(admission to the roll). Os dados da SRA permitem conhecer os nomes dos admitidos no
rol dos solicitors em 2015 (clique aqui). Não é um número muito expressivo,
considerando-se que a relação compreende toda a Inglaterra e o País de Gales. A leitura
dos nomes é também reveladora do grau de diversidade das origens étnicas dos
aprovados, o que comprova a afirmação da coluna passada quanto ao multiculturalismo
da sociedade inglesa atual.

b) Barristers. A figura clássica do advogado inglês, representada nos filmes do século


XX, corresponde ao barrister, com suas becas, seus punhos de renda e as perucas
brancas curtas. São os barristers, ao lado dos solicitors, que compõem a carreira
advocatícia inglesa e galesa. Seu nome deriva da barra dos tribunais, expressão
também comum nos Estados Unidos, que tem a American Bar Association.

Os barristers perderam o monopólio da atuação oral perante os tribunais superiores,


embora ainda sejam eles que preponderam nessa função nos dias de hoje. Conquanto já
se discuta a abolição desta regra, é típico da profissão de barrister não se organizar em
firmas, mas de modo individual ou em grupos, mas por razões de divisão de espaço ou
de estrutura dos escritórios. Cabe-lhes a produção de peças, recursos, pareceres. As
partes não contratam diretamente o barrister. Em geral, ele é indicado por um solicitor,
em razão de sua notória especialidade na matéria ou sua credibilidade e experiência. As
conversas com os clientes dão-se com a participação dos solicitors.

Em termos de prestígio, os barristers colocam-se em posição diferenciada dos


solicitors, o que também é explicado pelo fato de haver um número bem menor
daqueles em comparação com estes: há 15.000 barristers na Inglaterra e no País de
Gales.

Por simetria com os solicitors, que se organizam sob a Law Society, os barristers
subordinam-se ao General Council of the Bar, também conhecido por Bar Council. A
regulação profissional e seu controle externo está a cargo do Bar Standards
Board (BSB), formado por leigos e não leigos.

Um número bem menor de barristers integra o Queen’s Counsel (QC), embora haja
alguns solicitors indicados após a reforma que lhes deu o direito de atuar em tribunais
superiores. É uma posição de enorme prestígio e que permite a incorporação ao nome
do profissional das letras QC, geralmente entre parêntesis, como se fosse um título de
nobreza ou de professor catedrático. Embora não mais de modo exclusivo, é do QC que
saem as principais autoridades judiciárias do país e são esses profissionais que atuam
nos processos de maior complexidade.

c) Magistratura e Ministério Público. Atendendo a uma tradição medieval de que a


magistratura era uma atribuição delegada pelo rei aos nobres, a qual foi paulatinamente
alterada, de modo especial após o Act of Settlement de 1701, a magistratura inglesa e
galesa não apresenta número expressivo de juízes de carreira e a maioria de seus
membros foi selecionada de entre os advogados. Os juízes também compartilham parte
de seus misteres com o júri popular e com juízes de tempo parcial, juízes de paz e de
pequenas causas.
A maior autoridade judicial da Inglaterra e do País de Gales é o Lord Chief Justice, em
substituição ao papel exercido pelo Lord Chancellor, equivalente britânico a um
ministro de Estado da Justiça.

A Inglaterra e o País de Gales desconhecem uma instituição com o perfil do Ministério


Público brasileiro. Existe a Procuradoria da Coroa, conhecida como Crown Prosecution
Office, de caráter independente, mas que se vincula ao Poder Executivo, que detém a
representação do Estado em questões criminais, ao lado de particulares e de outros
órgãos públicos, dado que inexiste o monopólio da ação penal. Nos tribunais
superiores, cabe aos advogados representar a Coroa, o que é surpreendente para os
padrões brasileiros. Existe um procurador-geral da Coroa, que é responsável perante o
Parlamento britânico. De entre suas funções está a judicialização dos casos investigados
pela Polícia inglesa e galesa.

Desde o Constitutional Reform Act 2005 (CRA 2005), os juízes dos tribunais superiores
e das cortes especializadas são nomeados pela rainha por indicação da Judicial
Appointments Commission (JAC), um órgão independente que recruta os candidatos à
magistratura em funções nos órgãos indicados no anexo 14 do CRA 2005.

A Comissão de Nomeações Judiciais escolhe os juízes por meio de candidaturas dos


interessados, que se submetem a exames de currículo, apreciação da experiência
profissional e entrevistas. Não há nada parecido com o concurso público brasileiro e o
sistema prestigia a experiência e o equilíbrio do candidato, além da demonstração de
conhecimento dos precedentes. Nos últimos anos, fatores como diversidade étnica e
social têm pesado nas escolhas.

d) Notários. Antigos, tradicionais e muito prestigiosos são os notários. Eles são


recrutados por meio de um processo específico, com exames nacionais próprios e
devem ter cursos de pós-graduação em atividades notariais, geralmente conduzidos por
universidades de prestígio, como Cambridge.

3. Conclusões
As carreiras jurídicas inglesas e galesas são marcadas pela diferenciação de funções e
pelos rígidos controles das respectivas corporações. No campo da magistratura, a
seleção faz-se geralmente de entre os profissionais da advocacia, com preferência a
elementos com a experiência em sua especialidade jurídica.

O acesso à Justiça é caro. Entrar nas malhas do aparato judicial custa e não existe o
espírito de “aventurar-se” em questões, dadas as consequências economicamente
pesadas para os perdedores. As últimas reformas judiciárias tendem a ampliar a
independência do Poder Judiciário, mas não romperam com a ausência de centralidade
da burocracia judicial, que ainda é pequena e compartilha muitas funções com os leigos.
Nem juízes, nem professores, são os advogados na Inglaterra e no País de Gales a
ocupar a centralidade das carreiras jurídicas.

[1] Parte dos dados desta seção foram extraídos do Portal Europeu de Justiça: https://e-
justice.europa.eu/content_legal_professions-29-ew-pt.do. Acesso em 14-6-2015.
[2] Disponível em: http://www.sra.org.uk/sra/how-we-
work/reports/data/population_solicitors.page. Acesso em 15-6-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 17 de junho de 2015, 10h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo inglês (Parte


19)
1 de julho de 2015, 18h26

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

O professor de Direito
A docência jurídica na Inglaterra e no País de Gales não é tão relevante quanto sua
homóloga nos países europeus continentais já estudados nesta série de colunas. Para
além dessa diferença, que é bastante em si mesma, há outras características da profissão
que a tornam bem peculiar em comparação com sua equivalente no resto da Europa.
Uma delas é a abertura para estrangeiros, o que se justifica pela universalidade do
idioma inglês e pela diretriz das instituições britânicas de seguirem o modelo norte-
americano de diversidade étnica e geográfica em seus corpos docente e discente.
Segundo dados do Instituto Universitário Europeu, em 2007, na LSE – London School
of Economics, uma das mais prestigiadas escolas do mundo, 47% dos professores eram
de origem não britânica.[1]

Não se limitando apenas à Inglaterra e ao País de Gales, mas a todo o Reino Unido,
pode-se também afirmar que há uma política de incentivos remuneratórios e de
financiamento de pesquisas mais próxima do que se pratica nos Estados Unidos, com
ênfase em controles de mérito acadêmico por meio de publicações em revistas
indexadas, participação em eventos internacionais e parcerias com o setor privado. Esse
“novo caminho” do ensino universitário britânico em geral não tem passado incólume a
críticas internas. A transformação da universidade em um espaço com objetivos, metas e
governança típicos de uma empresa não é algo aceito de modo silencioso. A cultura do
fordismo ou do controle de resultados acadêmicos – qualificação que pode variar
conforme sejam defensores ou críticos do modelo – instalou-se de modo firme nas
universidades.

A autonomia universitária permite que se encontrem diferenças na estrutura da carreira


docente, mas, em linhas gerais, é possível identificar esta escala: a) assistente de
pesquisa (com grau mínimo de doutor e geralmente em estágio pós-doutoral); b)
Teaching Fellow; c) Research Fellow; d) Lecturer A; e) Lecturer B; f) Senior Lecture
ou Reader; g) Professor.[2]

Note-se que a idade média para se doutorar no Reino Unido é bem mais baixa que no
continente: 26-27 anos. Desse modo, a carreira de alguém interessado na docência
começa relativamente mais cedo. Outro aspecto digno de nota é que a falta de
familiaridade dos brasileiros com os títulos universitários britânicos. É bem comum
confundir-se um Fellow ou um Research Fellow com um professor no sentido usado na
Europa Continental ou mesmo com um professor submetido ao regime estatutário
brasileiro, o que não é correto. Essa confusão de nomes têm levado algumas
universidades a adotar a nomenclatura norte-americana: Assistant Professor, Associate
Professor e Full Professor. O peso da palavra “professor” é a razão dessa mudança.
A evolução na carreira não se dá de modo maquinal ou “controlável” por meio de
decurso de tempo. Faz-se necessário um estágio pós-doutoral para se chegar ao estágio
de Lecture A. A depender das qualificações, o candidato pode saltar diretamente para o
cargo de Lecture B. Atingir a condição de Professor é algo de depende das regras da
instituição e pode-se dar por diferentes modos: a) concurso para uma vaga aberta por
morte, aposentadoria ou remoção do titular para outra universidade; b) indicação dos
titulares das unidades acadêmicas, o que pressupõe um excelente currículo e, segundo as
más línguas, ótimas conexões políticas; c) participar de uma seleção interna, de acordo
com as regras de cada universidade, para progressão na carreira.

Aspecto interessante é que não existe a figura da defesa de uma tese de cátedra
(titularidade) e outra de livre-docência, como se dá nas universidades estaduais paulistas
e em algumas federais brasileiras. Mas, entende-se que o candidato ao cargo de
Professor deve ter publicado ao menos 2 livros em sua carreira. É muito forte nas ilhas
britânicas a figura da tomada de referências de um candidato. A instituição pede
opiniões reservadas sobre a pessoa e a carreira do postulante a pessoas do meio
acadêmico nacional ou estrangeiro. No Brasil, essas cartas de “referência” ou de
“recomendação” transformaram-se em verdadeiros textos hagiográficos. No Reino
Unido, são esperadas análises criteriosas e isentas por parte dos convidados a se
manifestar, sem qualquer constrangimento em se expressar opiniões críticas sobre o
candidato.

A exigência por produção de qualidade é determinante na promoção dos docentes. Há,


no entanto, outra razão de ser para essa demanda: a maior parte dos docentes é
vinculada à universidade por meio de contratos temporários renováveis. A tenure é um
privilégio muito restrito e não há a cultura da “estabilidade” como se vê no Brasil. Tal
circunstância torna a vida universitária bem mais competitiva e mais frágil a situação
dos fellows, lectures e readers. O sabático (um semestre ou um ano) é também uma
instituição consolidada. O professor tem direito a esse período a cada 4 ou 5 anos de
atividades.

Embora variável conforme as instituições e não se computando vantagens pessoais, a


remuneração bruta do professor universitário da LSE é a seguinte: a) Assistente de
Pesquisa: 3,520 €/mês; b) Lecturer A: 4,407 €/mês; c) Lecture B: não há no quadro; d)
Reader: 6.436 €/mês; e) Professor: 9,780 €/mês.[3] Deve-se registrar que esses valores
superam em até 20% o que é pago por outras universidades do Reino Unido. É também
necessário informar que sobre a remuneração bruta incide uma alíquota de 34% em
média. Finalmente, há uma política de negociação individual de valores além do salário
nominal. Cada instituição tem regras sobre o exercício da docência em simultâneo com
outras atividades profissionais. Nos últimos anos, em Direito, tem crescido o
monoprofissionalismo, mas, como a centralidade das profissões jurídicas está na
advocacia, é cedo para se afirmar que esse modelo prevalecerá.

Um professor em meio ao regime de tutorias


Restringindo-se novamente a análise à Inglaterra e ao País de Gales, volte-se para um
tópico de grande interesse comparativo: a ministração das aulas. A lecture, ou uma aula
magistral, ainda é o centro do ensino jurídico anglo-galês. Existem também os
seminários, com apresentação de estudos pelos alunos. No entanto, há uma
característica bem própria do modelo inglês: as tutorias (na linguagem de Oxford) ou
supervisões (na terminologia de Cambridge). O tutorial system consiste no
acompanhamento dirigido dos estudos de um grupo reduzido de alunos por fellows da
universidade. Esse acompanhamento compreende leitura de textos, discussões,
preparação para seminários, questionamentos e várias formas de estimular o aluno a
pensar e defender suas ideias. Trata-se de um método bem original, aplicado em
universidades de ponta e que depende de um enorme número de fellows para realizar
essa atividade e uma estrutura docente hierarquizada, que comete aos Professors a
elaboração das grandes linhas do curso e a ministração das lectures, enquanto que o
grande número de assistentes leva a efeito a tutoria.

No Brasil, só conheço um modelo parecido com o tutorial system, mas com a


peculiaridade de contar com monitores (alunos de graduação e de pós-graduação) e não
com fellows, que é o Grupo de Estudos de Direito Romano da Faculdade de Direito do
Largo São Francisco, existente há mais de 30 anos e criado pelo então professor doutor
Thomas Marky e hoje liderado por seu discípulo o professor titular Eduardo César
Silveira Vita Marchi. O já famoso “grupo de pesquisa de Direito Romano” tem sido o
responsável pela formação de gerações de novos estudiosos de Direito Privado no país.
Alternam-se as aulas magistrais, a leitura de textos e a discussão de casos, o que
também é possível graças à coesão dos professores associados e doutores de Direito
Romano e de História do Direito (Dárcio Roberto Martins Rodrigues, Bernardo Bissoto
Queiroz de Moraes e Hélcio Maciel França Madeira).

O ranking das faculdades de Direito


Favorecidas pelo idioma inglês, grandes volumes de recursos e sua administração
racional, abertura para docentes e discentes não nacionais, as universidades inglesas
estão dentre as melhores do mundo, segundo variados rankings. Usando-se apenas o
World University Rankings 2014-15, do Times Higher Education, encontram-se as
universidades de Oxford (terceiro lugar), Cambridge (quinto lugar) e o Imperial College
London (nono lugar) nas 10 primeiras colocações internacionais.[4]

Como já salientado em colunas anteriores, a leitura isolada desses números é algo muito
superficial, até pelos problemas de se comparar instituições de grande porte com outras
médias ou pequenas. No Direito, tal situação é ainda mais difícil ante as diferenças de
modelos. Os ingleses e galeses estão mais próximos da realidade americana, salvo em
questões como ser o curso de Direito – em regra – uma graduação e não uma pós-
graduação.

Em outro ranking, do jornal The Guardian, exclusivo para cursos de Direito, assim
estão colocados os melhores cursos: 1) Cambridge; 2) Oxford; 3) Queen Mary; 4)
University College London; 5) LSE; 6) Durham; 7) Nottingham; 8) York; 9) King’s
College London; 10) The School of Oriental and African Studies – SOAS, University of
London.[5]

Algumas informações interessantes sobre essas universidades. Primeiro, é necessário


dizer que todas são públicas. A SOAS é voltada primordialmente para estudantes
africanos e asiáticos. A University College London foi a primeira instituição laica do
país e também a pioneira em abolir restrições étnicas, de gênero ou religiosas. O King’s
College, que tem desenvolvido forte aproximação do Brasil nos últimos anos, alterou o
nome de sua faculdade de Direito para The Dickson Poon School of Law. Esse nome tão
diferente foi atribuído à faculdade em 2012 como uma forma de homenagear o
milionário de Hong Kong Sir Dickson Poon, Cavalheiro do Império Britânico, que doou
20 milhões de libras esterlinas à instituição. Essa foi a maior doação privada individual
da história do King’s College.

Conclusão
O ensino jurídico inglês e galês está a meio-termo dos modelos continentais europeus e
norte-americanos. Colocado em uma realidade britanicamente peculiar, esse modelo
não se centraliza na figura do docente e apresenta uma nítida divisão de tarefas
formativas entre a universidade (de 1 a 3 anos, a depender do tipo de curso) e as
corporações profissionais, estas últimas extremamente ciosas do número de ingressantes
e de sua qualidade, o que se revela por cursos de ingresso próprios e pela força de seus
órgãos de classe, a despeito de seu enfraquecimento no campo disciplinar nos últimos
anos.

Com professores bem remunerados, o que deve ser visto também em termos, dado o
elevado custo de vida nas ilhas britânicas, e com uma flexibilidade maior de carreira, o
Direito é ensinado pelo método de tutorias, associado às aulas magistrais e aos
seminários. A base da carreira é desproporcionalmente maior do que o topo, o que
permite o emprego de muitos auxiliares de ensino e assistentes no tutorial system.

As universidades são majoritariamente públicas, embora haja também instituições


particulares. Todos os alunos pagam os custos da faculdade, o que alimenta um mercado
de “fundos educacionais” e um sistema de poupança familiar ou de endividamento
pessoal. Não há um sistema de exames de Estado, mas as corporações selecionam com
rigor os advogados, que se dividem em duas classes tradicionais, com uma clivagem
que hoje se atenuou, mas que permanece em torno do direito de atuar perante tribunais
superiores e o contato com os clientes.

***

Na próxima semana, atravessaremos o Atlântico e vamos para a América. Até lá!

[1] Disponível em:


http://www.eui.eu/ProgrammesAndFellowships/AcademicCareersObservatory/Academi
cCareersbyCountry/UnitedKingdom.aspx#AccessibilityforNon-Nationals. Acesso em
30-6-2015.

[2] Disponível
em: http://www.eui.eu/ProgrammesAndFellowships/AcademicCareersObservatory/Aca
demicCareersbyCountry/UnitedKingdom.aspx#Higer. Acesso em 29-6-2015.

[3] Fonte: London School of Economics.

[4] Disponível em: https://www.timeshighereducation.co.uk/world-university-


rankings/2015/world-ranking#/. Acesso em 30-6-2015.
[5] Disponível em: http://www.theguardian.com/education/ng-
interactive/2014/jun/03/university-guide-2015-league-table-for-law. Acesso em 30-6-
2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 1 de julho de 2015, 18h26


Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-


americano (Parte 20)
8 de julho de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Pax Americana, Direito e Império


Desde Roma, todos os impérios ocidentais historicamente relevantes fundaram-se em
duas grandes estruturas de sustentação: as armas e as normas jurídicas. Se Roma nasceu
como um a república, que se baseava no consenso do Senado e do povo romano
(S.P.Q.R., Senatvs Popvlvsqve Romanvs, Senado e Povo de Roma), com o tempo ela se
converteu em um império multicontinental, mas cujas legiões ainda levavam em seus
estandartes esse famoso acrônimo. Não é sem causa que o Direito Romano é o legado
mais duradouro de um império que desapareceu nas brumas do passado ocidental em
476 da Era Comum.

Seu prolongamento oriental, que durou até a queda de Constantinopla no ano de 1453,
também encontrou na pessoa de Justiniano o símbolo ideal de um monarca-legislador. O
Corpus Iuris Civiles é outra herança imortal de um império cujos vestígios em outros
campos do saber humano não lhes são comparáveis. Carlos Magno, tido como
restaurador da civilização no Ocidente, também é lembrado como um conquistador
militar e um legislador. Os impérios coloniais português e espanhol, ao lado da força
das armas, ergueram-se com base em estruturas burocráticas de significativa
dependência do Direito, a se ver pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas,
para não se mencionar outras tantas dos últimos 500 anos.

O Império Britânico também conjugou a força militar, mais precisamente sua gigantesca
Marinha Real, e um reduzido corpo burocrático que conseguiu administrar territórios
onde o Sol nunca se punha com esteio em uma respeitável estrutura jurídica. Os
britânicos, com seus documentos constitucionais ou pré-constitucionais, ao exemplo da
Magna Carta ou da Carta de Direitos, exportaram para o mundo ocidental os conceitos
de rule of law, liberdades individuais, democracia parlamentar e limitações recíprocas
aos poderes do Estado.

Um dos objetivos dos governantes britânicos do século XIX era alcançar a pax
britannica, o equivalente Oitocentista à pax romana, um conceito desenvolvido por
Otavio Augusto. A paz nas fronteiras e, mais que isso, dentro das fronteiras, era um
meio eficaz de se conseguir o desenvolvimento econômico sem que este fosse tragado
por gastos militares excessivos. Nesse sentido, o Direito atuava como um sucedâneo da
guerra na composição ou na solução de conflitos internos. Uma “ordem jurídica”, aqui
referida em tom metafórico, pois é difícil assimilá-la a estágios históricos pré-modernos,
era um instrumento essencial para que o império se conservasse estável. O longevo
império da dinastia Habsburgo, que se expandiu da pequena Áustria até boa parte da
Europa Oriental, Itália, Espanha e parte da Holanda, foi outro exemplo dessa
combinação entre Direito e poderio militar, com o adicional toque da exímia atuação
diplomática, cujos resultados, no entanto, volviam para o campo jurídico sob a forma de
tratados internacionais.

Todo império perecerá é o título principal de uma obra de Jean-Baptiste Duroselle, que
se tornou mundialmente famosa. Pode-se aproveitar desse título para dizer que, de fato,
o destino de todos os impérios foi ou será sua ruína. As causas podem variar, mas o
resultado é inevitável. É também correto dizer que os impérios se sucedem. Hoje, os
Estados Unidos da América são o país que mais se aproxima desse conceito. Seu
domínio, desde o fim de seu homólogo no Oriente, o Império Soviético, é hoje
inquestionável e só encontra algum contraponto no renascimento do Império Chinês
(em termos econômicos) e no ainda respeitável poderio militar da Federação Russa,
sucessora do Império Soviético (e este do Império Czarista).

Os norte-americanos ensaiaram ainda a oferta ao mundo de uma pax americana, cujos


fundamentos estão no exercício do poderio econômico, na dissuasão militar, no soft
power e no exercício de uma atípica atividade de “polícia internacional”. Neste último
caso, os norte-americanos aliaram-se a seus “pais” britânicos e com eles dividem alguns
espólios como forma de se ressarcir pelos elevados custos da indústria bélica, a se ver
pelos contratos de reconstrução do Iraque e do Kwait. A Europa, hoje liderada pela
Alemanha, desistiu de gastar em armas e preferiu investir em indústria e serviços.
Incapaz de se autodefender, terceirizou a “morte pela pátria” para os americanos.

A trajetória imperial americana é muito similar ao exemplo-matriz romano. Há


identidade de símbolos (águias, o Senado, o Capitólio, a idealizada República), de
fundamentos (com as antigas legiões representadas pelos marines) e também pela
sucessão mais ou menos tranquila das elites imperiais. Em Roma, os antigos patrícios,
degenerados ou incapazes de lutar pelo império, foram sendo substituídos por habitantes
de províncias romanizadas. Grandes imperadores romanos, a partir do século I d.C.,
nasceram foram da Itália e vinham de origens humildes. A última etapa de decadência
deu-se com a penetração silenciosa dos bárbaros nos territórios romanos, inicialmente
para lutar como mercenários em lugar dos romanos. Nos Estados Unidos, basta observar
que as guerras permitiram essa troca de guarda na elite. O heroísmo de descendentes de
italianos e irlandeses, dois povos discriminados por suas origens católicas, nas guerras
do século XX fez com que na segunda metade do século XX fossem eleitos os primeiros
“césares” oriundos dessas colônias, como Kennedy e Reagan. A chegada de um negro à
presidência dos Estados Unidos, sob essa perspectiva, não pode ser dissociada da
participação militar dos afro-americanos, em caráter cada vez mais relevante, na
Segunda Guerra, na Guerra da Coreia e na Guerra do Vietnã. Quem luta nas legiões,
assim como em Roma, tem direito a se tornar césar.

Desde 1776, quando os americanos conquistaram sua independência política dos


britânicos, até aos dias atuais, o Direito não pode ser considerado como um ator
secundário nessa história. O padrão imperial também se revela nesse campo. É evidente
que essa hipótese pode ser demonstrada de diversas maneiras. Uma delas, ainda que seja
bastante frágil, está na observação do número de presidentes norte-americanos que
tiveram formação jurídica ou exerceram a advocacia. No século XIX, têm-se John
Adams, Thomas Jefferson (também fazendeiro), James Madison, James Monroe, John
Quincy Adams, Andrew Jackson (também militar), Martin van Buren (da elite
holandesa da velha Nova Amsterdã, depois Nova York), John Tyler, James Know,
Franklin Pierce, James Buchanan, Abraham Lincoln (que fez carreira política graças a
sua atuação como advogado de fazendeiros pobres), Rutherford Hayes, Chester Alan
Arthur, Stephen Grover Cleveland, Benjamin Harrison, Willian McKinley, que
encerrou seu mandato em 1901. A maioria dos mandatários norte-americanos do
Oitocentos foi composta por advogados. Em segundo lugar, estavam os presidentes de
formação militar.

Nos séculos XX e XXI, os presidentes de maior influência foram advogados ou pessoas


que se notabilizaram por uma passagem nas Forças Armadas com distinção. No
primeiro grupo, podem-se citar Franklin Delano Roosevelt, Richard Nixon, Bill Clinton
e Barack Obama. No segundo grupo, têm-se Theodore Roosevelt (herói na Guerra de
Cuba), Harry Truman (ex-combatente na Primeira Guerra), Dwight Eisenhower
(comandante supremo das Forças Aliadas no teatro de operações do Ocidente na
Segunda Guerra Mundial), John Kennedy (condecorado por sua atuação na Marinha
durante a Segunda Guerra Mundial) e George Bush (ex-combatente na Segunda Guerra
Mundial).

Conflitos e o papel do Direito nos Estados Unidos


É possível falar que os Estados Unidos são um país onde o Direito ocupa posição de
centralidade? Evidentemente que essa pergunta está mal formulada. Em qualquer
império, o Direito é central como elemento de sustentação da paz interna, de
organização formal da burocracia e como mecanismo de controle dos excessos das elites
imperiais. A centralidade, em termos políticos e econômicos, neste sentido, não
pertence ao Direito. Mas, quando surge a necessidade de arbitrar grandes conflitos, o
Direito atua de modo explícito ou, em muitos casos, atua quando deixa de agir. A
Suprema Corte norte-americana, desde sua origem, serviu como árbitro de diversos
conflitos históricos e, em muitos deles, optou por não se pronunciar ou por referendar
soluções tomadas no universo político ou militar.

Veja-se que o grande conflito interno do século XIX foi a Guerra Civil norte-americana.
O presidente que conduziu a vitória do Norte contra o Sul foi o advogado Abraham
Lincoln e este não se furtou de usar o Direito em prol da causa nortista e
antiescravagista. Dois exemplos podem ser mencionados a este propósito. O primeiro
refere-se à Proclamação da Emancipação de 1863, que assumiu a natureza jurídica de
uma executive order presidencial. Por esse ato, Lincoln declarou livres todos os
escravos que habitassem os territórios confederados. Diversos efeitos políticos e
jurídicos advieram desse ato, um deles foi afirmar o caráter emancipacionista da guerra
em termos claramente normativos. Outro efeito estava no reconhecimento de que os
proprietários de escravos não seriam indenizados. Como se tratava de uma executive
order, sem aprovação do Congresso, e que se chocava com a própria Constituição,
Lincoln lutou – por meios legítimos e ilegítimos – para a validação de seu ato por meio
de uma emenda constitucional, que passou à História como a Décima Terceira Emenda,
aprovada que foi em 31.1.1865. Este foi o segundo exemplo da importância do Direito
para a vida norte-americana.

A escravidão foi um conflito que poderia ter sido resolvido juridicamente – por uma lei
ou por decisões da Suprema Corte. Só uma guerra conseguiu dissolvê-la. E, com isso,
na sequência de Lincoln, elegeu-se um presidente militar, o general Ulysses Simpson
Grant (governo de 1869 a 1877), da mesma forma como o general Eisenhower foi
eleito após o mandato de Truman, vice-presidente de Roosevelt e eleito por um
mandato, na sequência da Segunda Guerra Mundial.
No século XX, Franklin Delano Roosevelt introduziu uma série de leis de intervenção
no domínio econômico e social, no âmbito do que foi chamado de New Deal. Essas
medidas começaram a ser invalidadas por juízes da Suprema Corte, especialmente os
justices Pierce Butler, James McReynolds, George Sutherland e Willis Van Devanter,
chamados de “os quatro cavaleiros”, em uma alusão aos quatro cavaleiros do
Apocalipse. Roosevelt cogitou de submeter ao Congresso americano uma emenda
constitucional para refrear a atuação da Suprema Corte, mas foi dissuadido dessa ideia.
Instaurou-se no país uma enorme polêmica sobre a permanência no tribunal de juízes
com mais de 70 anos e a sociedade dividiu-se entre os críticos e os defensores de uma
maior liberdade de intervenção estatal na economia e de um papel mais ativo ou não do
Poder Judiciário. A crise só foi superada após uma mudança de posição de um membro
da Suprema Corte e, com isso, se permitiu a alteração na jurisprudência sobre os limites
do poder presidencial.

Na questão dos direitos civis e da igualdade racial, a Suprema Corte mudou lentamente
sua orientação sobre o tema, na sequência de leis de emancipação que começaram a ser
editadas na segunda metade do século XX. Mais recentemente, após grandes
julgamentos envolvendo a legislação de seguro-saúde (Obamacare) e o casamento
igualitário, retoma-se o debate sobre qual o papel da Suprema Corte e, indiretamente do
Direito, na solução dos grandes conflitos da sociedade americana.

Uma federação de verdade e o pluralismo na formação jurídica


O Direito nos Estados Unidos é central e periférico, na medida em que ele é admitido a
resolver conflitos ou simplesmente abdica de os resolver em prol da luta política. Outra
importante característica é que há, até por efeito do real federalismo norte-americano,
duas importantes vertentes na formação dos juristas: a desregulamentação e a liberdade
de composição das matrizes curriculares.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, a participação estatal no controle de qualidade


e no modo de oferta dos cursos é bem menor. A ideia é que a qualidade, os rankings, a
aprovação nos exames de ingresso na advocacia e o prestígio social dos egressos serão
os parâmetros efetivos para se definir o êxito ou o insucesso de um curso jurídico.
Estudar em Harvard, Yale ou Princeton diz mais sobre o nível de conexões, a rede de
contatos e o prestígio que advém desses lugares do que propriamente sobre uma maior
ou menor qualidade na formação do jurista. O afluxo de estrangeiros é enorme e as
assimetrias formativas também. O aluno paga — e muito caro para os padrões
americanos — por sua instrução universitária, no que pode contar com poupança da
família, crédito educativo (a ser pago após a formatura), empréstimos (igualmente
quitáveis após a colação de grau), subvenção dos escritórios de advocacia
(posteriormente paga com trabalho ou com remuneração mais baixa) e, em muitos
casos, por meio de bolsas por mérito acadêmico ou por efeito de medidas inclusivas ou
por sucesso em atividades desportivas.

Além dessas duas importantes características, o pluralismo na formação e a baixa


normatividade estatal, existe uma terceira que coloca o ensino de Direito nos Estados
Unidos em uma posição insólita, em comparação com a Europa e o restante da América:
não se cursa Direito após a conclusão da high school e sim depois de um período de
estudos graduados.
Crise e ensino jurídico
A crise econômica de 2008 também deixou marcas no ensino de Direito nos Estados
Unidos, embora não apenas no Direito. A formação universitária norte-americana é
reconhecida internacionalmente e suas instituições ocupam o topo dos rankings de
educação superior. Na classificação geral do Times Higher Education World University
de 2014-2015, o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e a Universidade de
Harvard estão em primeiro e segundo lugares, respectivamente.[1] Muito dinheiro para
pesquisas e para a atração de jovens brilhantes de qualquer parte do planeta, estruturas
físicas em laboratórios e bibliotecas sem comparação, competição permanente entre as
universidades podem servir como hipóteses para esse sucesso. Some-se a isso, o estilo
de formação individual que obriga o estudante nos Estados Unidos a usar todo seu
tempo em leituras e estudos para se sobressair.

No Direito, porém, a crise chegou e com enorme violência. Já se escreveu coluna sobre
a gravidade do problema nos Estados Unidos, oportunidade na qual se noticiou a
criação de uma Força-Tarefa para o Futuro da Educação Jurídica nos Estados Unidos
(Task Force on the Future of Legal Education). Reflexo ou não dessa crise está na
queda dos níveis remuneratórios dos advogados norte-americanos. De acordo com os
dados do órgão oficial do Governo, o Bureau of Labor Statistics, os médicos de
diferentes especialidades ocuparam as 9 primeiras posições no ranking de remuneração
média anual do ano de 2013, que vai de 235.070 dólares (primeiro lugar, médico
anestesiologista) até 182.660 dólares (nono lugar, médico psiquiatra). Os advogados
estão em 21o lugar, abaixo de engenheiros, dentistas, gerentes de marketing, piloto de
avião, presidentes de empresas e analistas de sistemas, com uma renda média anual de
131.990 dólares.[2]

[1] Disponível em: https://www.timeshighereducation.co.uk/world-university-


rankings/2015/world-ranking/#/. Acesso em 6-7-2015.

[2] Disponível em http://www.bls.gov/data/. Acesso em 6-7-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 8 de julho de 2015, 8h00


Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-


americano (Parte 21)
15 de julho de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1.Uma insuspeita descrição das faculdades de direito estadunidenses


Sempre que releio esta passagem, escrita em 1947 por um homem que assistiu ao fim de
dois mundos, eu me emociono e mais admiro o autor do texto, que o concluiu aos 66
anos de idade. Reproduzo suas palavras, que são o fecho de seu livro autobiográfico:

“Desde 1945, sou professor titular. Minha atividade docente é


muito gratificante. É verdade que, por conta da minha teoria (...),
eu seria um professor mais indicado para a Faculdade de Direito.
Mas as faculdades de direito estadunidenses não têm interesse
particular por uma teoria científica do direito. Elas são training
schools – escolas jurídicas profissionalizantes; sua função é
preparar para a profissão prática de advogado. Ensina-se quase
exclusivamente direito estadunidense, e segundo o case method.
Como os tribunais estadunidenses baseiam suas decisões
essencialmente em precedentes, é compreensível que as faculdades
de direito considerem como seu objetivo educacional familiarizar
os estudantes com o maior número de casos possível. Ao concluir
os estudos jurídicos, um estudante estadunidense de direito está
certamente muito mais bem preparado para sua profissão como
advogado do que um jurista austríaco ou alemão. Talvez o direito
como objeto de conhecimento científico pertença realmente mais a
uma faculdade filosófica, histórica ou de ciências sociais. O que
me faz falta aqui no Departamento de Ciência Política é que, entre
os estudantes, inteligentes, aplicados e pessoalmente muito gentis
na sua maioria, há relativamente pouco interesse pelo trabalho
científico. É verdade que eles se preparam muito
conscienciosamente para suas provas e apresentam trabalhos de
seminário muito bons, mas em todos esses anos não encontrei um
único que quisesse se especializar no campo da teoria do direito ou
do direito internacional. Isso está certamente relacionado ao fato de
que esses temas são matérias acessórias no Departamento de
Ciência Política e de que quem se decide pela docência prefere
escolher outras áreas para o doutorado. Porém, minha atividade
docente deixa tempo para meu próprio trabalho científico. A
biblioteca da universidade é excelente, e tanto o clima como os
arredores não deixam nada a desejar. Adquiri em Berkeley uma
pequena casa com um jardinzinho, onde florescem rosas que me
dão muita alegria.
............................................................................................................
...

Durante a escrita destas memórias, completei 66 anos de idade.


Através da larga janela junto à qual está minha escrivaninha, olho
por cima dos jardins para a Baía de São Francisco e a ponte Golden
Gate, atrás da qual brilha o Oceano Pacífico. Aqui será com certeza
o último refúgio do viajante cansado.”

Com as desculpas necessárias aos leitores por uma transcrição de tal modo extensa,
inicio a segunda coluna sobre o ensino jurídico nos Estados Unidos. E o faço na
companhia de um homem excepcional, o autor da passagem reproduzida, que vem a ser
o austro-húngaro naturalizado norte-americano Hans Kelsen, um dos mais influentes
juristas do século XX nos países da tradição romano-germânica.

De modo extremamente gentil e humilde, esse gigante da Ciência do Direito assim


encerrou sua Autobiografia.[1] É perceptível o sentimento de frustração por não ser
compreendido pelos alunos e por se encontrar vinculado a um sistema de formação
jurídica tão diferente do europeu. Mas aquele foi o último refúgio do viajante cansado
(Wandermüden letzte Ruhestätte), uma referência ao verso de Heinrich Heine no poema
Wo?. A gratidão à acolhida dos americanos não poderia ser mitigada, daí o cuidado de
Kelsen com as palavras usadas para descrever o curso jurídico estadunidense.

2. Os cursos de Direito nos Estados Unidos


Boa parte das referências contidas no texto da Autobiografia de Hans Kelsen podem ser
aproveitadas para nosso tempo, tanto as explícitas quanto as implícitas. Uma esplêndida
biblioteca e a presença de grandes professores europeus (como Kelsen), ao menos nas
grandes universidades, é uma realidade até hoje. Pode-se dizer mais ainda: de
professores de diversas partes do mundo. O cosmopolitismo é uma tônica da boa
universidade estadunidense. Corretas também se mantêm suas palavras sobre o método
do caso, o caráter profissional das faculdades de Direito e o alheamento às grandes
construções teóricas ao estilo europeu.

Esse divórcio entre o modelo continental europeu e o norte-americano é também notável


pela baixa repercussão de autores jurídicos estadunidenses no Brasil, salvo em relação a
certas áreas, como o Direito Constitucional, a Análise Econômica do Direito e a
Filosofia do Direito. Com a (má?) importação de institutos e figuras jurídicas dos
Estados Unidos e a maior presença de estudantes brasileiros em universidades daquele
país esse quadro pode mudar um pouco.

Muito bem, é conveniente expor como são os cursos jurídicos nos Estados Unidos.

Após concluir a high school, o aluno norte-americano não pode ingressar em uma law
school. Ele precisa ter frequentado um curso de duração média de 4 anos em um college
ou uma universidade, que lhe conferirá o título de bachelor of Arts (B.A.) ou bachelor of
Science (B.S.). Somente após essa etapa é que esse graduado pode ser admitido em uma
law school.

A entrada na law school depende de alguns requisitos, que variam de universidade para
universidade. É muito comum encontrar-se, de entre esses requisitos, a realização de um
teste admissional de caráter objetivo, que vem a ser o Law School Admission Test –
LSAT, encontrável não apenas nos Estados Unidos mas também no Canadá, na
Austrália e em outros países da tradição de common law. O exame compreende questões
de múltipla escolha, nas quais se objetiva avaliar a capacidade de raciocínio lógico, de
compreensão de texto e de raciocínio analítico dos candidatos.

Após a média de 4 anos de estudos de graduação e o preenchimento dos requisitos


específicos da universidade para a qual o candidato se apresentou a concorrer, tem-se
sua admissão na law school para um curso de duração média de 3 anos. Caso único na
América e na Europa, o aluno norte-americano é, na prática, um estudante de pós-
graduação e, ao terminar esse período trienal, ele poderá fazer jus ao título de Juris
Doctor – JD. Literalmente traduzido para o português, ter-se-ia um “doutor em direito”.
Essa nomenclatura causa enorme confusão no Brasil, embora se deva lembrar o hábito
oitocentista de se tratar por “doutor” os licenciados em Direito que são advogados,
juízes, promotores ou tabeliães. Rigorosamente, porém, o Juris Doctor estadunidense
não é um doutor em Direito e também não é um graduado no sentido brasileiro, pois ele
já se graduou anteriormente.

Somente após se haver tornado Juris Doctor é que o egresso da law school se pode
colocar no mercado de trabalho como advogado, juiz ou promotor. No caso da
advocacia, como se verá posteriormente, ele será submetido a um Bar Examination, que
geralmente se traduz por Exame de Ordem, mas é uma aproximação puramente literária
e não propriamente fiel ao conceito brasileiro homólogo, como também se verá em
outra coluna.

Existem ainda alguns cursos que permitem uma formação mais rápida. Trata-se do
accelerated JD program, oferecido, por exemplo, pelas universidades do Arizona, do
Kansas, de Iowa e de Columbia. O aluno pode obter um grau de bachelor em 3 anos e
um Juris Doctor em mais 3 anos. É o programa 3+3. Encontram-se também os diplomas
acelerados de JD em 2 anos.

Há cursos de Direito à distância em quantidade reduzida e sujeitos a muita polêmica. A


ABA- American Bar Association, a partir de 2015, passou a não mais emprestar seu
reconhecimento a tais modalidades.

Os norte-americanos também podem frequentar um Master of Laws (LL.M),


equivalente a uma especialização no Brasil, segundo as regras de conversão de títulos
usualmente aplicadas no país. Tem-se ainda o JSD – Juridical Science Doctor, um
doutorado de pesquisa em algumas universidades, ao exemplo de Yale, Harvard,
Cornell, Stanford, Berkeley, Nova York, Georgetown, Duke, de entre outras. Mais
universal é o PhD (philosophiae doctor), que existe em várias universidades americanas
e é equivalente ao doutorado em Direito brasileiro. Na Yale Law School, o PhD é um
curso destinado a pessoas que obtiveram o diploma de Juris Doctor e é exigido um
período de 3 anos de “residência”, que compreende, no primeiro ano, algumas
disciplinas para auxiliar na pesquisa e no desenvolvimento da atividade de investigação.
No segundo ano, o aluno deve elaborar uma pré-tese e iniciar a elaboração de seu texto.
Admite-se que a tese seja substituída pela elaboração de 3 artigos ou que seja
apresentada sob a forma de um livro.[2] Em muitas universidades, a publicação desses
artigos é direcionada para revistas com revisão cega por pares e é fundamental que o
periódico seja bem qualificado segundo os padrões de classificação da área. O número
de publicações implica a obtenção de pontos para o programa e isso pode-se reverter em
vantagens indiretas para todo o curso.

Na Universidade da Califórnia-Berkeley oferece-se um PhD híbrido em Jurisprudence


and Social Policy, para o qual não se exige do candidato a comprovação de que este
possui um diploma de Juris Doctor.[3]

Em geral, o doutoramento é um diploma buscado por estrangeiros para utilização em


seus países de origem ou por americanos que desejam seguir uma carreira estritamente
acadêmica ou ainda que possa lhe ser útil como um diferencial de mercado para suas
profissões. No Direito, o recrutamento dos docentes não se dá necessariamente entre os
portadores do título de doutorado e também não existe um regime universal de
dedicação exclusiva. Muitos dos grandes professores de Direito são juízes e advogados.
Mas, sobre isso se cuidará em outra coluna.

3. Cursos jurídicos: formação e avaliação dos alunos


Não há uma formação uniforme nas law school’s norte-americanas, da mesma maneira
que o egresso não se pode dizer um conhecedor do Direito dos Estados Unidos e sim do
Direito federal, das principais decisões da Suprema Corte e dos tribunais federais, bem
assim dos aspectos comuns do Direito estadual e, conforme a universidade, do direito
do Estado onde se situa a instituição na qual ele se formou. Tal se deve à infinidade de
reservas de competências legais e judiciárias que cada Estado-membro da federação
possui e da formação particular de cada um desses entes, que pode ter maior ou menor
vínculo com a tradição de common law, de civil law, do Direito inglês ou mesmo de um
mélange dessas tradições e famílias jurídicas.

As palavras de Kelsen permanecem atuais: o foco da escola de Direito dos Estados


Unidos é profissional. O aluno recebeu uma formação generalista, mais humanista ou
mais técnica em seu bachelor, e terá, na law school, a oportunidade de aprender a
praticar o Direito.

Aqui se conectam as experiências anglo-inglesa e norte-americana, no que toca à ênfase


à formação prática. No entanto, sobressai-se uma diferença central dos modelos
americano e europeu: o estudante dos EUA tem uma educação profissional na
universidade, ao passo em que seu homólogo europeu só encontrará essa formação após
os 3 anos de estudos em regime de dedicação integral.

A avaliação dos estudantes norte-americanos é outro ponto sobre o qual não há um


modelo uniforme no país, embora exista um grande número de instituições que adotam
o modelo de avaliação dita GPA – grade on a curve, um método estatístico de
atribuição de notas aos alunos por meio de uma função matemática e que preestabelece
grupos de desempenho, aumentando a competição entre os alunos e eliminando os
desvios de avaliações de uma turma para outra.

A vantagem desse método está em sua impessoalidade relativa e pela eliminação de


fatores como uma maior benevolência de certos professores ou a pressão individual por
melhores notas, que muitos alunos exercem sobre seus docentes. O impacto da nota na
vida profissional é relevante e já se disse que o “desempenho em uma law school - tal
como mensurado pelas notas atribuídas nos cursos jurídicos – é o mais importante
augúrio de sucesso na carreira”[4]
A competitividade é algo que está na essência das melhores law schools norte-
americanas e isso se reflete no modo como os alunos estudam e participam das
atividades didáticas.

Para compreender esse modelo, é necessária abordar o method case, aludido por Kelsen
em sua Autobiografia, e o problema dos currículos jurídicos. A próxima coluna iniciar-
se-á com esses dois tópicos.

[1] KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira


Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Introdução de Mathias Jestaedt. Estudo
introdutório de Otavio Luiz Rodrigues Junior e José Antonio Dias Toffoli. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2012. p.108-109.

[2] Disponível em http://www.law.yale.edu/graduate/PHD_program.htm. Acesso em 6-


7-2015.

[3] Disponível em https://www.law.berkeley.edu/academics/ph-d-program-jsp/. Acesso


em 6-7-2015.

[4] CLARK, Jessica L. Grades Matter; Legal Writing Grades Matter Most (2013).
Georgetown Law Faculty Publications and Other Works. Paper 1236.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 15 de julho de 2015, 8h00


Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-


americano (Parte 22)
22 de julho de 2015, 8h04

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. O método do caso e a didática do ensino jurídico norte-americano


O ensino do Direito nos Estados Unidos da América poderia ser muito próximo do que
se pratica na Europa não fosse a intervenção de um homem, Christopher Columbus
Langdell (1826-1906), deão da Harvard Law School no período de 1870 a 1895. O que
é mencionado no Brasil como uma das grandes inovações pedagógicas — o método do
caso — foi criado por Langdell para a Universidade de Harvard no final do século XIX
e ainda hoje é um padrão para um número significativo dos cursos jurídicos
estadunidenses, apesar das críticas e das tentativas de sua superação.[1]

Langdell não pertencia ao mainstream acadêmico norte-americano. De origem


relativamente humilde para os padrões aristocráticos de Harvard, Langdell foi nomeado
para o decanato da escola de Direito por indicação do reitor Charles William Eliot. Tão
longo assumiu o cargo, Christopher Columbus Langdell iniciou uma série de reformas
na administração, no perfil pedagógico e na matriz curricular do curso de Direito.

O case method utiliza-se de fundamentos do método socrático e, muita vez, é a ele


reduzido, o que é um equívoco. [2] A concepção de Langdell abrange a maiêutica, mas
também admite elementos da aula magistral e a realização de seminários pelos alunos.
O centro do método, no entanto, é a análise de decisões das cortes norte-americanas em
detrimento do estudo de manuais ou da assistência das grandes aulas-magnas. O aluno é
convidado a ler, analisar e a interpretar os casos por si mesmo. O professor submete os
estudantes a uma série de perguntas e vai construindo as soluções a partir dessas
respostas. O conhecimento do caso e o estudo prévio são indispensáveis para a fluência
da aula e para que o método não fracasse.

No início do século XX, o case method disseminou-se pelas grandes universidades


americanas e, ainda hoje, é central para o sistema de educação jurídica daquele país.[3]

Na atualidade, com a crise generalizada do ensino jurídico norte-americano, reforçam-se


as críticas ao case method e começam a surgir alternativas ao modelo de Langdell. Os
adversários ao método afirmam que ele gera um nível elevado de estresse, de
competitividade e, não raras vezes, de humilhação aos alunos que não estudam
previamente os casos ou não conseguem ter participação mais efetiva nos debates e na
construção do raciocínio em sala de aula. Veja-se esta interessante descrição do método
de Langdell feita em um profundo estudo sobre o ensino jurídico norte-americano,
elaborado por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, baseado em Legal education as
training for hierarchy, de Duncan Kennedy:

“O case method parte de prévia determinação de pesada carga de leitura


para os alunos. A frequência das aulas é precedida de intenso estudo. O
aluno vai preparado. Decisões judiciais são rigorosamente lidas, estudadas,
digeridas. Há sabatina em todas as aulas. Professores torturam, assustam,
humilham os alunos. Alguns estudantes escondem-se. Sentam-se nas
últimas filas (back-benching) ou pedem formalmente (por bilhetes
depositados na mesa do professor antes do início da aula) para não serem
arguidos (no-hassle pass). Os lugares que os alunos ocupam na sala de aula,
nos auditórios, são escolhidos no primeiro de dia de aula. Os estudantes
marcam seus nomes em diagrama, que ficará em posse do professor. As
secretarias (registrars) enviam fotografias dos alunos aos professores. Esses
têm na mesa, ao lado dos livros, nome, fotografia e localização do aluno. O
controle é absoluto”.[4]

A ausência de um sistema legal codificado, a força dos precedentes, o caráter


estadualizado do Direito, a centralidade do juiz e a ruptura com os padrões romano-
germânicos de ensino são elementos que tornaram o case method tão bem-sucedido nos
Estados Unidos e também que explicam sua não proliferação para outros países. Some-
se a isso o fato de que o ensino de Direito nos Estados Unidos não é massificado como
no Brasil e nem possui um número tão grande de alunos nos semestres iniciais, como se
dá na Europa.

Sua aclimatação no Brasil, que é defendida por alguns, deve levar em consideração
todos esses elementos. Não se pode considerar, de modo apriorístico, o case method
superior ao lecture method, muito menos admiti-lo como mais moderno — ele tem mais
de 100 anos — ou mais eficaz — a atual crise americana põe em dúvida esse êxito. Ele
é apenas um de entre os métodos disponíveis e deu certo durante muito tempo em uma
sociedade capitalista avançada, com elevado nível de competição e com a forte marca
de que o fracasso não admite solidariedade. Os alunos dedicam-se fortemente ao estudo
de seus casebooks e a vida universitária é tomada pela preocupação com a solução
desses casos. Como elemento negativo, está o desinteresse por sistematizações, teorias
gerais e questões metajurídicas.

O método alemão, que foi descrito nas colunas sobre o ensino jurídico na Alemanha,
tem diversos elementos do case method, mas com a necessária combinação com o
lecture method (as aulas magistrais) e um forte amparo no conhecimento literal da
legislação. Para além disso, os alemães acreditam na existência de “uma resposta
correta”, embora trabalhem com situações criadas pelos elaboradores dos casos, muitas
delas com enorme complexidade fática.[5]

Como dito, além do método do caso, os estudantes norte-americanos também se


submetem a algumas aulas-magistrais, que mais se assemelham ao conceito brasileiro
de palestras ou conferências. As lectures são bem mais raras, no entanto. Existem
também os seminários, nos quais os alunos apresentam um determinado tópico e são
arguidos pelo professor e pelos colegas, sem qualquer abertura para o espírito de
proteção recíproca tão comum no Brasil.

A realização de julgamentos simulados (court moots) é também comum nos cursos


jurídicos norte-americanos.

As notas, os conceitos e o desempenho acadêmico podem definir o futuro do estudante.


Não há tempo a perder e o fracasso não será recompensado ou tratado com leniência. O
sistema elimina os menos aptos e as portas dos melhores empregos não se lhes abrem.
Evidentemente que o espaço para os menos dotados de méritos acadêmicos ou de
recursos financeiros existe: as atividades desportivas, a política, as Forças Armadas ou
seguir negócios familiares. Neste ponto, ricos e pobres assemelham-se. Mas, só neste
ponto.

2. A matriz curricular: o modelo da Escola de Direito de Harvard


Atribui-se também a Christopher Columbus Langdell a composição da matriz curricular
básica do primeiro ano dos cursos de Direito dos Estados Unidos, a qual segue até hoje
adotada em Harvard, com algumas modificações.

O primeiro ano (First Level ou 1L) é a etapa mais importante para a formação jurídica
do aluno. Em Harvard, ingressam no 1L um número aproximado de 560 alunos, que se
dividem em 7 seções compostas por 80 estudantes, cada uma delas sob coordenação de
um docente sênior. É neste período que os alunos da Harvard Law School) são levados
a cursar as seguintes disciplinas obrigatórias: a) Direito Processual Civil (Civil
Procedure), b) Contratos (Contracts), que corresponde parcialmente a nosso conteúdo
de Direito das Obrigações, Direito dos Contratos e parte do Direito das Coisas; c)
Direito Penal (Criminal Law); d) Legislação e Regulação (Legislation and
Regulation), que abrange parte do conteúdo do que seria o Direito Constitucional; e)
Property, que corresponde parcialmente a nosso conceito de Direito das Coisas, dada a
ausência de linhas muito claras entre negócios jurídicos de translação dominial e o
Direito dos Contratos; f) Responsabilidade Civil (Torts); g) Direito Internacional ou
Comparado (International or Comparative Law); h) Oficina de Solução de Casos
Práticos (Problem Solving Workshop).[6]

No primeiro ano, é também necessária a frequência à disciplina de Pesquisa e Redação


Jurídica para o Primeiro Ano (First-Year Legal Research and Writing). Diferentemente
do que se imagina no Brasil, não há qualquer preocupação em formar o aluno para a
“pesquisa científica” no sentido que se emprega em nossas faculdades. O objetivo é bem
menos ambicioso e muito mais pragmático: o discente tem a oportunidade de aprender,
sob a tutoria de bibliotecários, a pesquisar nas bases jurídicas contratadas pela escola de
Direito (LexisNexis, Jstor, WestLAw) e pelos diversos livros ou compêndios eletrônicos
de cases, que vêm substituindo os velhos tomos das grandes coleções de cases dos
tribunais norte-americanos.[7] O manuseio dessas fontes é essencial para que o futuro
advogado exerça sua profissão. Mais do que isso, é indispensável para que ele resolva
muitos dos problemas que serão colocados em sala-de-aula nas atividades do case
method.

Além dessa função de educar o estudante na pesquisa de bases de dados e de repertórios


de cases, a disciplina pretende moldar seu pensamento para raciocinar juridicamente e
resolver os casos, além de se adaptar a linguagem jurídica e ao método de elaboração
das peças jurídicas.

O aluno também deve participar do Programa Ames de Audiência Simulada do Primero


Ano (First-Year Ames Moot Court Program).[8] O nome do programa é uma
homenagem a James Barr Ames (1846-1910), em cujo nome há uma fundação
vinculada à Havard Law School e que foi um dos pioneiros do ensino jurídico por meio
de casos e do uso de simulações de atividades judiciárias[9]. Essa “disciplina”
compreende a pesquisa e a elaboração de uma peça relativa a um caso simulado que
tramitaria em um tribunal federal ou distrital. O trabalho é feito por dois alunos em
conjunto. No fim do semestre, o discente defende seu caso perante um painel composto
por 3 “juízes”, os quais são escolhidos de entre professores de Harvard, advogados ou
estudantes de nível mais elevado no curso.[10]

Se aprovados no severo regime do primeiro ano, o aluno seguirá para o segundo e


terceiro anos, nos quais ele terá maior liberdade de escolha das disciplinas, embora haja
uma distinção entre créditos de livre matrícula e créditos que são obrigatoriamente
escolhidos dentro de um rol específico de matérias. Nessa etapa do curso, haverá
disciplinas com carga horária em sala de aula, seminários, grupos de leitura, produção
de trabalhos escritos, atividades de extensão e algumas disciplinas fora do curso de
Direito.

A correlação entre disciplinas obrigatórias, optativas dentro de um rol fechado de


escolha e de escolha totalmente livre é de aproximadamente 80% para as duas primeiras
categorias e 20% para a última. Mesmo no sistema norte-americano, as disciplinas livres
não ultrapassam as obrigatórias e as de escolha tipificada.

A existência de disciplinas restritas e disciplinas livres fez com que a universidade


preestabelecesse grandes eixos temáticos no curso de Direito, de modo a impedir uma
formação completamente aleatória pelos alunos. Os programs of study correspondem a
esses eixos e assim se apresentam: a) Direito e Estado (Law and Government); b)
Direito e Negócios (Law and Business); c) Direito Internacional e Comparado
(International and Comparative Law); d) Direito, Ciência e Tecnologia (Law, Science,
and Technology); e) Direito e Mudança Social (Law and Social Change); f) Justiça
Criminal (Criminal Justice). g) Direito e História (Law and History)[11]. Se forem
pesquisados os conteúdos desses “programas” no site da Escola de Direito de Harvard,
ver-se-ão o quão eles se revelam assimétricos e de difícil transposição para o Direito
brasileiro. Por exemplo, no tópico Law and Business, estudam-se matérias de Direito
Societário, Propriedade, Direito Tributário e Direito Regulatório.[12] No
“programa” Law, Science, and Technology, é possível estudar Direito da Propriedade
Intelectual, Direito da Saúde e Direito da Internet.[13]

***

A infinidade de detalhes e a complexidade do modelo norte-americano não permite que


todos os aspectos sejam examinados em cada coluna. Na próxima semana, continuar-se-
á a análise da estrutura interna dos cursos jurídicos e, em seguida, iniciar-se-á a
exposição sobre as law schools, a carreira docente e, na sequência, as demais profissões
jurídicas nos Estados Unidos.

[1] Registre-se que A. Almeida Júnior, na aula inaugural dos cursos da Faculdade de
Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo, proferida em 18 de
março de 1947, fez uma bela descrição do ensino jurídico norte-americano e do case
method na década de 1940. A conferência foi intitulada “A propósito do ensino de
direito nos Estados Unidos” e fez-se publicar na Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, ano 1947, v.42, p.125 a 159.
[2] Demonstrando as diferenças entre o método socrático e o método do caso, veja-se:
JACKSON, Jeffrey D. Socrates and Langdell in legal writing: is the socratic method a
proper tool for legal writing courses? California Western Law Review. v. 43, n. 2, pp.
267-308, Spring, 2007.

[3] Sobre a evolução do ensino jurídico estadunidense e o impacto de Langdell em sua


transformação, consultar: STEVENS, Robert Bocking. Law school: Legal education
in America from the 1850s to 1980s. Chapel Hill: The University of North Carolina
Press, 1987; KIMBALL, Bruce A. The proliferation of case method teaching in
American Law Schools: Mr. Langdell's emblematic “abomination,” 1890-1915. History
of Education Quarterly. v. 46, Issue 2, pp.192–247, Jun, 2006.

[4] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Direito e educação jurídica nos
Estados Unidos. Revista Seqüência, n.º 48, p. 29-40, jul. de 2004. p.38.

[5] Sobre a comparação entre o método norte-americano e o germânico de ensino


jurídico, com ênfase no Direito Comparado, consulte-se este artigo escrito por um autor
alemão: GROTE, Rainer. Comparative Law and teaching law through the case method
in the Civil Law Tradition: A German perspective. University of Detroit Mercy Law
Review. v. 82, Winter, 2005.

[6] Disponível em:


http://www.law.harvard.edu/prospective/jd/why/academics/curriculum.html. Acesso em
8-7-2015.

[7] “Para a pesquisa de casos, leis e artigos jurídicos, os EUA contam com duas editoras
gigantes na área de publicações jurídicas: a WestLaw e LexisNexis. Ambas são
empresas privadas que dominam grande parte do mercado de publicações de leis, casos
e artigos jurídicos (tanto impressos, como via internet. Este último é o mais popular,
pois oferece consultas e resultados múltiplos e instantâneos. Para profissionais e
escritórios de advocacia, os serviços ofertados por estas empresas são altamente
onerosos. Para estudantes, o serviço é gratuito. A intenção é tornar os futuros
profissionais desde logo dependentes das aludidas ferramentas de pesquisa, que depois
passarão a adquirir em suas vidas profissionais” (SAMPAIO, Rômulo Silveira da
Rocha. Breve panorama do ensino e sistema jurídico norte-americano. Disponível em
http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/file/Breve%20Panorama%20do%20En
sino%20e%20Sistema%20Jur%C3%ADdico%20Norte-Americanos.pdf. Acesso em 5-
7-2015).

[8] Disponível em: http://hls.harvard.edu/dept/lrw/course-overview/. Acesso em 8-7-


2015.

[9] Sobre a Fundação Ames, consulte-se: http://hls.harvard.edu/dept/lrw/course-


overview/. Acesso em 9-7-2015.

[10] Disponível em: http://hls.harvard.edu/dept/lrw/course-overview/. Acesso em 8-7-


2015.

[11] Disponível em: http://hls.harvard.edu/dept/academics/programs-of-study/?redir=1.


Acesso em 10-7-2015.
[12] Disponível em: http://hls.harvard.edu/dept/academics/programs-of-study/law-and-
business/. Acesso em 10-7-2015.

[13] Disponível em: http://hls.harvard.edu/dept/academics/programs-of-study/law-


science-and-technology/. Acesso em 10-7-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2015, 8h04


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-


americano (Parte 23)
29 de julho de 2015, 10h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1.Críticas e refutações ao modelo norte-americano: Llewellyn e Kennedy


Nas últimas três colunas sobre o ensino jurídico norte-americano teve-se a oportunidade
de contextualizar o leitor sobre as relações entre o Direito e o poder naquele país e
também de apresentar a estrutura da formação jurídica nas law schools, com ênfase no
método langdelliano e na matriz curricular de Harvard. Não se deixou de salientar a
existência de muitas particularidades e diferenças internas no modelo estadunidense,
que não se pode entender como um bloco monolítico mas como um mosaico, no qual
algumas cores e certos materiais se sobressaem.

A preeminência do método do caso landgelliano não significa que inexistam


contestações ou experiências distintas dessa concepção do final do século XIX. O
realismo jurídico de Karl Nickerson Llewellyn tentou reagir ao método de Langdell na
segunda metade do século XX e até hoje seus sucessores têm formulado críticas e
alternativas ao que consideram um excesso de tecnicismo e pragmatismo na educação
dos jovens juristas. Duncan Kennedy escreveu, em vários trabalhos, uma série de
refutações ao modo como as escolas de Direito dos Estados Unidos se organizam e
formam seus alunos. Para ele, a lógica capitalista superou as preocupações de caráter
pedagógico e, ao contrário da aparente cientificidade e da isonomia que aparentam as
universidades, existe um ambiente marcado pelas camarilhas e por meios escusos de
valoração do mérito acadêmico.

Karl Nickerson Llewellyn (1893-1962) foi um dos líderes do movimento conhecido


como realismo jurídico. Sua vida pessoal é muito curiosa: encontrava-se estudando na
Universidade de Paris-Sorbonne quando a Primeira Guerra Mundial teve início em
1914. Ele se alistou no Exército da Prússia, um dos corpos militares do Império alemão,
embora não tenha renunciado à cidadania norte-americana e jurado fidelidade ao Kaiser.
Condecorado e ferido em batalha, quando os Estados Unidos entraram em combate, ele
foi liberado pelos alemães para retornar à pátria e lá tentou se alistar no Exército norte-
americano, no que foi rejeitado por haver lutado pelos alemães anteriormente. Ele
lecionou em Columbia e Chicago e se colocou na proa do movimento do realismo
jurídico, que se negava a entender o Direito como uma ciência dedutiva – como
defendia Langdell – e que se deveria valorizar o elemento fático e a investigação das
consequências das decisões judiciais.

Do realismo jurídico derivaram escolas ou movimentos jurídicos norte-americanos na


segunda metade do século XX. Um deles nasceu em Harvard e ficou conhecido como
critical legal studies, cujos maiores expoentes são Roberto Mangabeira Unger e Duncan
Kennedy.[1] Este último, nascido em 1942, é professor na Harvard Law School e autor
de uma monografia que se tornou clássica nos Estados Unidos por suas refutações ao
modelo de ensino jurídico estadunidense, cujo título é Legal Education and the
Reproduction of Hierarchy, que pode ser encontrada aqui.

2. As revistas jurídicas universitárias norte-americanas


A law school norte-americana é um espaço substancialmente diferente e, em muitos
aspectos, insusceptível de comparação simétrica com a faculdade de direito brasileira.
Como já acentuado nas colunas anteriores, nos Estados Unidos os alunos de Direito já
receberam formação graduada no college, antes de ingressarem no curso jurídico. Os
estudantes na law school são mais velhos que os equivalentes brasileiros. Além disso, o
curso estadunidense tem 3 anos de duração, o que é menos do que se exige no Brasil.
Mas, se for somado o tempo anterior de college, o norte-americano pode levar 7 anos
para concluir seu curso de Direito. Desconhecer ou relevar essas diferenças tão
acentuadas tem gerado muitas distorções no debate sobre a reforma do ensino jurídico
nacional.

Um dos pontos nos quais se manifestam tais incompreensões está nos law journals
universitários norte-americanos. Para se limitar a duas das mais famosas revistas
jurídicas dos Estados Unidos, Yale Law Journal e Harvard Law Review, é interessante
destacar que esses periódicos são editados e geridos por estudantes de Direito e não por
docentes de Yale ou Harvard.

Quando se transmite essa informação no Brasil há duas reações. A primeira é a de


desqualificar as duas revistas, ante o choque de se saber que seus editores são estudantes
de Direito. A segunda é a de valorizar esses periódicos porque são editados por alunos e
fazer comparações depreciativas com a falta de respeito às publicações estudantis no
Brasil. Ambas as reações se mostram equivocadas. Efetivamente, um periódico jurídico
europeu de alto ranking jamais seria gerido por acadêmicos de Direito e muitos
professores alemães não compreendem como algumas revistas jurídicas brasileiras
podem publicar artigos de não graduados.

Ocorre que é preciso lembrar que os law journals estadunidenses não são editados
graduandos, mas por alunos de Direito que já cursaram estudos de graduação e, em uma
comparação pouco rigorosa, seriam alunos de pós-graduação. Finalmente, mesmo que
gerenciadas por estudantes, as revistas têm publicado trabalhos de professores, juízes e
pesquisadores. Essa realidade é objeto de críticas muito fortes nos dias de hoje, ao
exemplo de um artigo de 2004, escrito por Richard A. Posner, no qual ele lamenta que o
principal veículo para publicação de escritos acadêmicos nos Estados Unidos sejam as
revistas editadas por estudantes, muitos deles influenciados por professores e sem o
necessário isolamento intelectual sobre os temas. Desse modo, segundo Posner, as
revistas jurídicas acadêmicas têm prestigiado “assuntos da moda”, com forte
engajamento ideológico mas com pouca utilidade para a solução de problemas jurídicos
que precisam de auxílio doutrinário para sua resolução.[2] O artigo de Posner gerou
enorme polêmica e foi objeto de um artigo no qual se tentou refutar as críticas
publicadas na revista Legal Affairs.[3]

Quem dera tivéssemos esse tipo de debate no Brasil sobre a qualidade das revistas
jurídicas, editadas principalmente por professores, e os critérios utilizados para sua
qualificação nos indexadores oficiais de qualidade editorial.
3. As law schools norte-americanas
Quando A. Almeida Júnior realizou sua visita aos Estados Unidos, no último trimestre
de 1946, ele encontrou um país com 130 milhões de habitantes e 150 escolas de Direito,
ao passo em que o Brasil, na mesma época, tinha uma população de 45 milhões e 21
faculdades de Direito. Segundo o professor do Largo São Francisco, o Brasil
“precisaria, para igualar essa proporção, criar mais 25 institutos da mesma espécie”,
além dos que já possuía. E concluía Almeida Júnior: “Em outras palavras, encarado
como fenômeno estatístico de escolas, o bacharelismo norte-americano é mais do que o
dobro do nosso bacharelismo”.[4]

No ano de 2015, o Brasil tem 1.298 faculdades de Direito[5] e uma população de


204.503.718 habitantes.[6] Em 2015, a população dos Estados Unidos é de
325.194.844 habitantes[7] e existem 205 instituições de ensino superior aprovadas pela
American Bar Association para oferecer o grau de Juris Doctor, além de 1 escola
aprovada para oferecer o grau de oficial jurídico, um militar com funções jurídicas, que
é a US Army Judge Advocate General’s School.[8]

Em síntese, no Brasil, de 1946 a 2015, houve um aumento de 1.277 faculdades de


Direito. Nos Estados Unidos, em igual período, foram criadas 55 novas escolas de
Direito.

Há diversos rankings das escolas de Direito nos Estados Unidos. Um dos mais famosos
é o U.S. News Best Grad Schools, no qual estão assim dispostas as 10 melhores escolas
de Direito norte-americanas em 2015: 1) Yale University; 2) Harvard University; 3)
Stanford University; 4) Columbia University e Chicago University; 6) New York
University; 7) Pennsylvania University; 8) Duke University, University of California-
Berkeley e University of Virginia.[9]

Na melhor das instituições do ranking do U.S. News, a anuidade, a tempo integral, na


Escola de Direito de Yale é de 56.200 dólares norte-americanos, o que corresponde, na
cotação do dólar comercial de 9-7-2015, a 179.840 reais. A mensalidade do melhor
curso jurídico norte-americano seria, portanto, de 14.986 reais. É de se recordar que
Yale é uma universidade pública e que o custo das anuidades recai sobre os alunos,
embora exista um sistema de bolsas de estudo. Em último lugar da classificação está o
South Texas College of Law, cuja anuidade é de 28.680 dólares norte-
americanos.[10] Muitas escolas de Direito possuem páginas nas quais expõem de
modo detalhado os custos diretos e indiretos (habitação, alimentação, seguros, creche,
aquisição de computadores) da formação do aluno em seu triênio na universidade.[11]

Esses valores estão no centro da polêmica sobre a crise do ensino jurídico, que se tornou
mais saliente após 2008, quando a economia mundial entrou em recessão após o
escândalo dos fundos subprime, que arruinou várias instituições financeiras centenárias
e milhares de pessoas nos Estados Unidos. Paul Campos, ao tratar desta questão,
anotou que, ao se matricular na Escola de Direito de Michigan, em 1986, pagou uma
anuidade para o curso de tempo integral no valor de 4.420 dólares, equivalentes, ao
câmbio de 2011, a 9.000 dólares. A matrícula equivalente para o ano de 2012-2013
corresponderia a 48.012 dólares, o que implicou um aumento 10 vezes o valor original
no período de 1986 a 2012.[12]
A obtenção do grau de Juris Doctor por uma das 14 melhores universidades norte-
americanas implicava um alto nível de empregabilidade, seja no serviço público, seja
para as grandes firmas de advocacia. Exemplos desse status diferenciado não faltam.
Barack Obama é egresso da Harvard Law School e foi editor-chefe de sua revista
acadêmica quando aluno da instituição. O 19º presidente dos Estados
Unidos, Rutherford B. Hayes, também se formou em Harvard. 11 procuradores-gerais,
35 senadores e 15 justices da Suprema Corte foram diplomados em Direito por
Harvard. A Escola de Direito de Yale ostenta de entre seus egressos os presidentes Bill
Clinton e Gerald Ford. 9 procuradores-gerais, 25 senadores e 10 magistrados da
Suprema Corte dos Estados Unidos.

No entanto, o cenário pós-crise de 2008 não é mais tão róseo para os egressos das
escolas de Direito norte-americanas. Não há mais tantas vagas para jovens advogados e,
com isso, eles não têm como pagar os custos de sua universidade, o que gera um círculo
vicioso de inadimplemento com efeitos retroativos. E essa realidade finalmente
começou a tocar os alunos das melhores law schools[13] e, se nada for feito, em breve
muitos cursos terão de fechar porque suas receitas não estão a ser alimentadas pelos
egressos, que não conseguem se colocar no mercado de trabalho. A ideia de que a
formação em Direito seria uma forma sensata de se investir o dinheiro é um mito prestes
a ser desmascarado[14].

Provavelmente em razão desse quadro, muitas escolas de Direito norte-americanas de


porte médio têm procurado atrair alunos brasileiros para cursos de média ou curta
duração ou ainda para seus cursos de LLM (Master of Laws) ou JSD (Juridical Science
Doctor), que são frequentados majoritariamente por estrangeiros, dado o pouco
interesse do norte-americano por esses títulos, até porque não são obrigatórios para o
ingresso na carreira docente superior da grande maioria das universidades.[15]

Como o sistema norte-americano é liberal em termos regulatórios, a American Bar


Association – ABA exerce um papel de órgão credenciador das escolas de Direito. Não
se trata de uma prerrogativa legalmente reconhecida, mas o credenciamento existe desde
1923 e ele é conferido às escolas que atendam aos requisitos da ABA. Os efeitos
jurídicos do não-credenciamento são variáveis conforme cada Estado-membro. Em
alguns deles, não é possível ser admitido como advogado na ABA se o inscrito houver se
formado em uma instituição sem credenciamento.

***

Na próxima semana, ter-se-á a penúltima coluna da série sobre o modelo norte-


americano. Seu objeto será o estudo das carreiras jurídicas de advogado, juiz e promotor
nos Estados Unidos.

[1] Há vasta literatura em língua portuguesa sobre o realismo jurídico norte-americano e


o movimento cls. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é um dos grandes divulgadores
do tema no Brasil e recomenda-se a leitura dos seguintes textos de sua autoria: O
Critical legal studies movement de Roberto Mangabeira Unger: um clássico da filosofia
jurídica e política. Revista Jurídica (Brasília), v. 8, p. 49-63, 2007; Introdução ao
movimento critical legal studies. 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005;
Introdução ao realismo jurídico norte-americano. 1. ed. Brasília: Edição do
autor/Uniceub, 2013.

[2] POSNER, Richard A. Against the Law Reviews: Welcome to a world where
inexperienced editors make articles about the wrong topics worse. Legal Affairs, dec.
2004.

[3] COTTON, Natalie. The competence of students as editors of Law Reviews: A


response to judge Posner

University of Pennsylvania Law Review. v. 154, n.4,p. 951-982, apr. 2006.

[4] ALMEIDA JÚNIOR, A. A propósito do ensino de direito nos Estados Unidos.


Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v.42, p.125-159, 1947.
p. 125-126.

[5] Dados de 9-7-2015, conforme: http://emec.mec.gov.br/. Acesso em 9-7-2015.

[6] Dados de 9-7-2015, conforme: http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/.


Acesso em 9-7-2015.

[7] Dados de 9-7-2015, conforme: http://www.worldometers.info/world-population/us-


population/. Acesso em 9-7-2015.

[8] Disponível em:


http://www.americanbar.org/groups/legal_education/resources/aba_approved_law_scho
ols.html. Acesso em 9-7-2015.

[9] Disponível em: http://grad-schools.usnews.rankingsandreviews.com/best-graduate-


schools/top-law-schools/law-rankings?int=a1d108. Acesso em 10-7-2015.

[10] Disponível em: http://grad-schools.usnews.rankingsandreviews.com/best-graduate-


schools/top-law-schools/law-rankings/page+7. Acesso em 10-7-2015.

[11] Veja-se um exemplo nesta


página: https://www.nesl.edu/admissions/financial_aid_budgeting.cfm. Acesso em 10-
7-2015.

[12] CAMPOS, Paul. The crisis of the american law school. University of Michigan
Journal of Law Reform.

v.46, Issue 1, p. 177-223, Fall, 2012.p. 179.

[13] CAMPOS, Paul. Op. cit. p. 197.

[14] CAMPOS, Paulo. Op. cit. p. 222-223.

[15] Sobre o desinteresse nos cursos de LLM e JSD por norte-americanos e sua não
exigência para a docência superior: SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Breve
panorama do ensino e sistema jurídico norte-americano. Disponível em
http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/file/Breve%20Panorama%20do%20En
sino%20e%20Sistema%20Jur%C3%ADdico%20Norte-Americanos.pdf. Acesso em 9-
7-2015); GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Direito e educação jurídica nos
Estados Unidos. Revista Seqüência, n.º 48, p. 29-40, jul. de 2004. p.37.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 29 de julho de 2015, 10h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-


americano (Parte 24)
5 de agosto de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. Um país de muitos advogados, poucos juízes e promotores eleitos pelo povo


O título que abre a primeira seção desta coluna é uma espécie de quadro das três
principais profissões jurídicas estadunidenses: grande número de advogados, poucos
juízes em comparação ao número de habitantes e promotores estaduais escolhidos por
voto popular.

Nada mais díspar da realidade profissional dos países da tradição romano-germânica,


como se pôde observar nas colunas sobre Alemanha, Portugal, Itália e França, ou
mesmo se comparado o modelo norte-americano com o brasileiro.

O advogado é a figura de maior interesse e com maior número de atribuições no sistema


jurídico norte-americano. Há um compartilhamento do poder judicial com o povo nos
julgamentos cíveis e criminais por meio do tribunal do júri. Existe enorme margem para
negociação entre defesa e acusação, o que se nota por institutos como a plea bargaining.
A arbitragem, a mediação, a existência de procedimentos administrativos nas agências
reguladoras, com independência relativa ao Poder Judiciário, são também características
peculiares do modelo norte-americano e que imprimem suas marcas no perfil e na
atribuição das profissões jurídicas dos Estados Unidos.

2. Os atores principais: os advogados


Tomando-se por base uma população de 318.857.056, existiam 1.266.158 advogados
nos Estados Unidos no ano de 2014. Para cada 10.000 habitantes, em 2014,
encontravam-se 39,7 advogados nos estados norte-americanos, incluindo-se Porto Rico
e o Distrito de Colúmbia nesse conceito. O Arkansas é o estado com o menor número
proporcional de advogados (5.970), o que equivale a 20,1 advogados por 10.000
habitantes. O Distrito de Colúmbia tem 51.928 advogados, com uma relação de 788,1
advogados por 10.000 habitantes. É o campeão nacional no número proporcional desses
profissionais. Nova York ocupa um distante segundo lugar na relação entre população e
advogados: 86 por cada 10.000 habitantes. Em termos absolutos, é o estado com mais
advogados no país: 169.756 profissionais.[1]

Comparativamente, conforme dados da Ordem dos Advogados do Brasil, em julho de


2015, há 879.672 advogados regularmente inscritos no País.[2] São Paulo, em números
absolutos, é o estado da federação com maior número de advogados: 263.897. A
unidade federada com menor quantidade de advogados, também em termos absolutos, é
o Estado de Roraima, com 1.247 profissionais inscritos na OAB. O Brasil tem
aproximadamente 386.486 advogados a menos que os Estados Unidos. A aproximação
– e não a exatidão – deve-se ao fato de que se está a comparar dados de 2014 (EUA)
com dados de 2015 (Brasil).
O advogado nos Estados Unidos, quando atua perante tribunais é referido como
attorney at law, embora exista o advogado consultivo externo (outside counsel) e o
consultivo interno (in-house counsel); o advogado que atua na elaboração de atos
extrajudiciais ou na assessoria pré-contenciosa (office practice attorney); o advogado
contencioso (litigators), que funciona em juízo, arbitragem ou em transações, além de
outras espécies.

O direito de exercer a advocacia é dependente da aprovação do egresso de uma law


school no bar examination, que é vulgarmente traduzido por exame de ordem, embora
sua natureza e suas características sejam bem diversos do equivalente brasileiro. Cada
bar association estadual tem regras próprias para admitir novos advogados a seus
quadros. Pré-condição mínima para se apresentar ao exame é possuir um título de juris
doctor. Sem o juris doctor, é possível ao titular de um juridical science doctor prestar o
bar examination, o que se torna muito conveniente para estrangeiros.

São poucas as universidades americanas que oferecem cursos de preparação para o


exame de ordem. Existem cursinhos preparatórios (bar review) para o bar examination
ou os próprios alunos se organizam para estudar em grupo em ordem a prestar esse
exame.

O conteúdo do bar examination é variável de estado para estado. Há alguns exames de


caráter interestadual e que permitem a portabilidade de pontos. O bar examination do
estado de New York, na versão de 2011, compôs-se de questões dissertativas
complexas, envolvendo casos práticos que deveriam ser resolvidos pelos candidatos em
matérias como Contratos, Propriedade, Direito Societário, Processo Civil,
Responsabilidade Civil, Questões Deontológicas, Direito Penal, Direito de Família e
Direito das Sucessões.[3]

3. Poucos e respeitáveis: os juízes


A figura do juiz nos Estados Unidos é cercada de muita reverência e de respeito. No
período colonial e nos primórdios da independência norte-americana, o juiz assumiu
funções administrativas e políticas que se mostraram fundamentais para a estabilidade
dos condados onde exerciam suas funções. Na construção do direito, os cases sempre
tiveram preeminência, o que se tornou irreversível no final do século XIX, quando o
método do caso de Langdell começou a ganhar espaço e iniciar sua trajetória de
preeminência no ensino jurídico estadunidense. Nos séculos XIX e XX, grandes
magistrados da Suprema Corte inscreveram seus nomes na história jurídica do país e
também se tornaram célebres no resto do mundo, mercê da crescente influência dos
Estados Unidos no cenário internacional. Um estudante de direito no Brasil, em algum
momento de sua graduação ou de sua pós-graduação, terá contato com os nomes ou as
decisões de: a) John Marshall (chief justice de 1801 a 1835), relator do histórico caso
Marbury v. Madison (1803); b) Earl Warren (chief justice de 1953 a 1969), político
californiano que se converteu em magistrado da Suprema Corte e foi relator da decisão
que pôs fim à segregação racial nas escolas públicas (Brown v. Board of Education -
1954); c) Louis Brandeis (associate justice de 1916 a 1939), primeiro judeu nomeado
para a Suprema Corte, notabilizou-se por seus votos vencidos em questões ligadas à
liberdade de expressão e ao direito à privacidade; d) Oliver Wendell Holmes (associate
justice de 1902 a 1932), que iniciou sua vida como herói na Guerra de Secessão
americana e posteriormente se tornou uma dos mais influentes pensadores do direito nos
Estados Unidos. É um dos juízes mais citados nas decisões da Suprema Corte até os
dias de hoje; e) Joseph Story (associate justice de 1812 a 1845), é conhecido como o
fundador do Direito Internacional nos Estados Unidos e também por sua atuação no
caso United States v. Amistad (1841), que viria servir de base para o filme Amistad, de
Steven Spielberg; f) Benjamin Nathan Cardozo (associate justice de 1932 a 1938),
descendente de judeus sefarditas de origem portuguesa, integrou a fação liberal da
Suprema Corte e ajudou o presidente Roosevelt a implementar o New Deal em sua
batalha judicial em prol das medidas sociais contidas na legislação aprovada pelo
congresso americano e levada ao escrutínio da Suprema Corte.

Os nove juízes da Suprema Corte são de livre escolha do presidente dos Estados
Unidos. É comum a indicação de pessoas ligadas ao ideário político do presente, mas
isso nem sempre ocorre e, mesmo quando há essa vinculação, existem situações nas
quais o nomeado assume posições liberais ou conservadoras em contradição com suas
antigas credenciais. Essa mudança ocorreu recentemente em julgamentos importantes
como o Obamacare e o casamento igualitário. O associate justice Anthony McLeod
Kennedy, indicado pelo presidente Ronald Reagan (Partido Republicano), é um
exemplo bastante atual dessa desvinculação ideológica, ao votar em favor do casamento
igualitário (caso Obergefell v. Hodges).

A Constituição não prevê requisitos formais para a nomeação. No entanto, o escrutínio


do Senado norte-americano é rigoroso e geralmente se demora por meses, não se
limitando a examinar questões de ordem jurídica, mas posições ideológicas, morais e a
vida pregressa do candidato. Inexiste também um limite de aposentadoria compulsória.
Há um dito jocoso com o seguinte conteúdo: “Os juízes da Suprema Corte não se
aposentam e raramente morrem”. O declínio mental ou de saúde, no entanto, é um fator
que provoca a renúncia de alguns desses magistrados.

Nos Estados Unidos não há órgãos equivalentes a nossos tribunais superiores, mas a
jurisdição divide-se também em federal e estadual. No âmbito federal, existem as cortes
federais distritais, correspondentes a nosso conceito de órgão de primeiro grau, e as
cortes federais regionais (United States Circuit Courts of Appeal). Na jurisdição federal
encontram-se ainda os Tribunais Federais de Falências e os Tribunais de Comércio
Internacional.

Os magistrados federais são indicados pelo presidente dos Estados Unidos e dependem,
assim como os juízes da Suprema Corte, de aprovação do Senado. Os juízes federais
distritais recebem U$ 201.100 por ano. Os juízes federais dos circuitos de apelação
recebem U$ 213.300 anuais. Os juízes da Suprema Corte têm uma remuneração anual
de U$ 246.800, enquanto o presidente do tribunal (chief justice) ganha U$ 258.100[4]. É
lícito que recebam, por aulas ou conferências, U$ 21.000 anuais, no máximo.

No âmbito estadual, os magistrados dependem do regime jurídico de cada unidade


federativa. Há diferentes tipos de investidura dos juízes estaduais, que se dá por
nomeação pelo governador, com as seguintes variantes em complementação ao ato do
chefe do Poder Executivo: a) nomeação direta; b) eleição popular; c) indicação por um
comitê de busca independente; d) sabatina pelo Poder Legislativo.

Segundo Dario Moura Vicente, “a ambos os níveis o número total de juízes é


relativamente baixo: em 2009, encontravam-se em funções 1.227 juízes federais e cerca
de 12.000 juízes estaduais”.[5]
4.O povo contra o crime: o U.S attorney e o state attorney
Quando foram presos os altos dirigentes da FIFA na Suíça, de entre eles o ex-presidente
da Confederação Brasileira de Futebol, a imagem de Loretta Lynch ocupou espaços
generosos na mídia internacional. O cargo da senhora Lynch denomina-se United States
Attorney General e ela é a titular do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Não
há parâmetros de comparação entre esse e um cargo equivalente no sistema jurídico
brasileiro. O United States Attorney General é membro do gabinete de ministros,
embora não receba o título respectivo (secretary) e, de modo particular, sua nomeação
depende de aprovação pelo Senado estadunidense.

Vinculado ao Departamento de Justiça estão os Offices of the United States Attorneys,


integrados por 93 United States Attorneys, que exercem suas funções nos respectivos
distritos. Sua atuação dá-se no âmbito da prevenção a crimes violentos, fraudes
financeiras, direitos fundamentais, direitos indígenas, segurança nacional, política
antidrogas, proteção à infância, sistema de proteção às vítimas, crimes cibernéticos e
proteção com o bullying. Existe também a figura do Assistant United States Attorneys,
que se organizam em quatro divisões: a) criminal; b) civil; c) de recursos; d) de
contencioso financeiro. Nos níveis iniciais da carreira de assistente dos procuradores
dos Estados Unidos têm remunerações anuais mínimas de U$ 45.447 e máximas de U$
77.311. No nível mais alto da carreira (mais de nove anos de experiência), pode-se
chegar a rendas anuais mínimas de U$ 78.928 e máximas de U$ 134.117 (dados de
2015).[6]

Em cada estado-membro há um state attorney-general, de caráter simétrico ao U.S.


Attorney General. Na maioria dos estados, o procurador-geral é eleito por voto popular,
embora haja excepcionalmente modelos de eleição pelas assembleias locais ou pela
Suprema Corte Estadual.

No estado da Califórnia, o Attorney-General é o titular do Departamento de Justiça


estadual e sua competência em matéria cível e criminal perante os juízos de primeiro e
segundo graus, além de oferecer assessoria jurídica aos órgãos e agências da
Califórnia.[7]

O sistema norte-americano combina elementos presentes nas constituições brasileiras


anteriores a 1988: a) vinculação do procurador-geral ao Departamento de Justiça,
confundindo-se a titularidade da pasta com a chefia dos procuradores vogais. No Brasil,
por muitas décadas, o procurador-geral da República era um subordinado do ministro da
Justiça; b) escolha por indicação presidencial ou por eleição popular, na maioria dos
Estados; c) remunerações assimétricas em face das que são pagas pelo Poder Judiciário;
d) atuação estreita com os órgãos policiais.

***

Na próxima coluna, encerrar-se-á a série sobre o modelo norte-americano.

[1] Disponível em: https://lawschooltuitionbubble.wordpress.com/original-research-


updated/lawyers-per-capita-by-state/. Acesso em 10-7-2015.
[2] Disponível em:
http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados. Acesso em 11-7-
2015.
[3] Disponível em: http://www.nybarexam.org/ExamQuestions/JULY2011QA.pdf.
Acesso em 11-7-2015.
[4] Dados de 2015, conforme tabela demonstrando a evolução remuneratória desde
1968: http://www.uscourts.gov/judges-judgeships/judicial-compensation. Acesso em
11-7-2015.
[5] MOURA VICENTE, Dario. Direito Comparado. Coimbra: Almedina, 2014. v.1. p.
310.
[6] Informações extraídas de: http://www.justice.gov/usao. Acesso em 11-7-2015.
[7] Informações extraídas de: https://oag.ca.gov/careers/exams. Acesso em 11-7-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 5 de agosto de 2015, 8h00


Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-


americano (Parte 25)
12 de agosto de 2015, 8h00

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. A docência universitária: o professor de Direito nos Estados Unidos


O inglês reserva duas palavras para designar o professor: teacher e professor. Professor
é um termo restrito aos docentes universitários, usado para denominar o que se chama
no Brasil de professor titular. Para os estágios inferiores, encontram-se outras
expressões, como assistant professor e associate professor. A palavra teacher é usada
para docentes não universitários. Na Alemanha, existe idêntica separação onomástica:
Professor, para o docente universitário, e Lehrer, para os docentes de nível fundamental
e médio.

Não é possível apresentar um regime de carreira e de remuneração de caráter universal


nos Estados Unidos. Há enormes diferenciações em razão do Estado, da universidade,
do tempo de serviço e da posição na carreira. No Direito, há uma situação particular: o
doutorado não é obrigatório em muitas instituições, pois o prestígio profissional fora da
academia é determinante para a contratação do professor. Existe também uma forte
cultura de “compra de passe” de professores renomados entre as universidades. Não é
sem causa que se encontram hoje nos Estados Unidos alguns catedráticos europeus
internacionalmente conhecidos.

2. A tenure e a docência universitária


Diferentemente do Brasil, onde existe um regime de estabilidade no serviço público
para os cargos iniciais na docência pública e que dificilmente resulta em posterior
afastamento do servidor estável, nos Estados Unidos a palavra mágica para os
professores universitários é a tenure.

O professor com tenure goza de estabilidade no cargo e não pode ser demitido sem uma
justa causa. Alcança-se a tenure após uma combinação variável, conforme a instituição,
de alguns fatores como: a) tempo de serviço; b) qualidade da produção intelectual; c)
publicações em revistas indexadas; d) publicação de livros; e) obtenção de bolsas de
pesquisa e estágios no exterior. A manifestação do colegiado da unidade e a indicação
do deão ou do reitor também se apresentam como requisitos importantes para o ingresso
no regime de tenure.

Não faltam, porém, críticas à tenure. A obtenção da tenure levaria a uma queda
qualitativa na produção dos docentes, ao passo em que os professores sem tenure
mostrar-se-iam mais dedicados e interessados nas atividades de ensino e pesquisa.

3. O perfil do professor de Direito nos Estados Unidos


Em 2011, a American Bar Foundation, um órgão da American Bar Association,
publicou os resultados de uma pesquisa sobre o perfil do professor de Direito nos
Estados Unidos antes e depois da obtenção da tenure. As dimensões desta coluna não
permitem a exposição de todos os dados, mas é possível apresentar algumas
informações de interesse sobre o docente jurídico norte-americano. Todos os dados
expostos nos itens seguintes foram extraídos da pesquisa, e não se fará referência a
páginas específicas[1]:

a) aproximadamente, 39% dos professores de Direito com tenure lecionam nas 50


melhores escolas do país;
b) a origem social dos professores com tenure é, em termos relativos, mais privilegiada.
Há uma prevalência de professores brancos e do sexo masculino. No entanto, houve
uma significativa diversificação demográfica nos cursos de Direito nos últimos 20 anos;
c) as mulheres ocupam 28% das vagas de professores com tenure;
d) a média salarial anual dos professores com tenure, no intervalo entre 1996 e 2005,
variou de US$ 100 mil a US$ 124.990. Não havia discrepâncias entre os valores pagos
por universidades públicas e suas homólogas privadas.

4. Os níveis na carreira docente


O cume da carreira docente é alcançado pelo professor, em regime de tenure. Abaixo
dele estão o associate professor, com equivalência relativa ao professor associado das
universidades estaduais paulistas, e o assistant professor, algo próximo ao professor
doutor nas universidades estaduais paulistas, ou ao professor adjunto nas universidades
federais. É sempre bom ressalvar a maior flexibilidade norte-americana com a questão
do doutorado. Em algumas universidades, como Harvard, conserva-se a nomenclatura
europeia de lecturer para os professores doutores e professores associados.

Os níveis remuneratórios são diferenciados. Cada universidade possui mecanismos de


premiação a docentes mais produtivos e negocia a contratação de professores famosos
com vantagens indiretas, ao exemplo de facilidades em moradia, transporte e
equipamentos.

O tempo de permanência em cada nível é variável. Estima-se que os assistentes tenham


de passar de três a sete anos para pleitear a passagem para o nível de associado. Os
professores associados são geralmente oriundos do corpo de assistentes. Exige-se a
publicação de ao menos um livro (o que seria equivalente a uma tese de livre-docência
para os padrões brasileiros), uma produção relevante em periódicos e uma passagem
como pesquisador em instituição estrangeira.

O nível de professor titular geralmente é alcançado por professores associados que


mantiveram uma boa produção acadêmica, com livros e artigos, além do exercício de
funções administrativas na instituição. A idade dos professores titulares é mais elevada.
Em alguns lugares, apenas com 50 anos é que alguém se torna elegível para o posto.

Em algumas universidades, existe o professor titular de uma cátedra em homenagem a


um jurista famoso ou a um mecenas que fez substanciosa doação à universidade.

No Direito, existe a possibilidade de se atingir esses postos graças a um caminho mais


curto, como a contratação de renomados advogados, ex-procuradores-gerais ou
magistrados para a docência, ainda que para funções intermediárias, como lectures ou
professores convidados.
5. A profissionalização do docente jurídico nos Estados Unidos
A profissionalização da docência é objeto de diferentes tratamentos nos modelos de
ensino jurídico já estudados nesta série de colunas. Há países que adotam o regime de
monoprofissionalismo (França e Alemanha) e outros que admitem professores em
dedicação exclusiva e com atividades paralelas à docência, como a advocacia (Itália e
Portugal). Inglaterra e País de Gales possuem uma realidade mais complexa, embora
haja a tendência a uma separação de regimes para os professores titulares. Não há, por
conseguinte, elementos para se afirmar que exista uma correlação empiricamente
demonstrável entre qualidade do ensino e monoprofissionalismo. Esse debate também
passa por questões muita vez ignoradas como: a) a diferenciação entre professores
catedráticos e não catedráticos, que traz enorme impacto na remuneração final e na
existência de precarização das funções; b) o número de professores catedráticos e; c) a
representação social do professor.

Nos Estados Unidos, a profissionalização da docência jurídica é um tema sobre o qual


se aumentou o debate nas últimas duas décadas. Se o monoprofissionalismo é essencial
à docência universitária em diversos campos, no Direito essa característica não se
mostra universal. Tal circunstância é compreensível em um modelo flexível de seleção
dos docentes e que prestigia o sucesso financeiro como fator determinante para a
valoração social de um indivíduo.

A título de ilustração, veja-se o corpo docente da Havard Law School. Em sua


composição atual e limitada aos 127 professores titulares, encontram-se docentes com
funções paralelas à docência, ao exemplo de administradores de fundações, membros de
conselhos de administração de empresas ou de fundos de pensão, consultores de
agências governamentais e outros com vasta experiência anterior em grandes firmas de
advocacia[2]. Nessa condição, podem-se citar: a) Robert C. Clark, titular da cátedra
“Austin Wakeman Scott”, membro do conselho diretor da Time Warner e trustee do
gigantesco fundo educacional TIAA); b) Alan Dershowitz, titular da cátedra “Felix
Frankfurter”, comentarista político, advogado militante na área dos direitos civis e
também reconhecido criminalista. Alguns de seus casos já foram transformados em
filmes, como sua defesa no processo criminal contra Claus von Bülow, filmado em
1990, com o título O Reverso da Fortuna. Jeremy Irons e Glenn Close foram os atores
principais, e o papel de Dershowitz coube ao ator Ron Silver. O. J. Simpson também foi
cliente de Dershowitz; c) Charles Fried foi advogado-geral dos Estados Unidos
(Solicitor Gereral) e associate justice da Suprema Corte de Massachusetts; d) Jack
Landman Goldsmith, titular da cátedra “Henry L. Shattuck”, antes de ingressar em
Harvard foi assessor especial do Departamento de Defesa e assistente do procurador-
geral dos Estados Unidos; e) Cass S. Sunstein, titular da cátedra “Robert Walmsley”,
entre 2009 e 2012, foi gestor do White House Office of Information and Regulatory
Affairs e contribui ativamente com comissões do Congresso dos Estados Unidos em
diversas questões jurídicas.

Em paralelo, há também dezenas de professores de Harvard que trabalham


exclusivamente na escola de Direito, como Duncan Kennedy, atualmente catedrático
emérito; Kathryn E. Spier, titular da cátedra “Domenico de Sole”, e Mark Tushnet,
titular da cátedra “William Nelson Cromwell”.

6. Conclusões
A mais longa das séries de colunas sobre o ensino jurídico no Direito Comparado
encerra-se nesta semana. Foram seis colunas em sequência sobre os Estados Unidos, o
que se justifica pela complexidade e pela dimensão da realidade norte-americana. Como
em todos os países já estudados, as implicações do Direito com a política, o poder e a
sociedade fizeram-se sentir com grande ênfase na sede do Império Romano de nosso
tempo.

O professor de Direito não é a figura central nos Estados Unidos, tal como se dá na
Alemanha ou em Portugal. Os advogados são a mola propulsora do sistema jurídico, o
que se percebe pelo número expressivo de 1.266.158 profissionais acreditados no país
em 2014. Os juízes são poucos, e os promotores, eleitos pelo povo, salvo no âmbito
federal.

O estudante de Direito não é propriamente um graduando, mas alguém que já concluiu


estudos de graduação em áreas absolutamente diversas, como artes, literatura,
administração ou matemática. Em três anos de um curso com perfil profissionalizante, o
aluno tem um primeiro ano com disciplinas obrigatórias, a maior parte delas definida no
final do século XIX, e os dois anos seguintes com disciplinas optativas de escolha
preordenada e totalmente livres, além de julgamentos simulados, apresentação de peças
processuais e pesquisa em repositórios jurisprudenciais.

O método de ensino mais utilizado ainda é do século XIX e foi introduzido por um
professor de Harvard, Christopher Columbus Langdell, que não pertencia ao
mainstream acadêmico de seu tempo. O case method exige leituras intensas dos alunos
e faz uso de técnicas socráticas de perguntas formuladas pelo professor. A competição
dá a tônica à aprendizagem, e o controle individual do desempenho dos alunos não dá
margem para táticas de proteção entre eles. Na atualidade, não faltam críticas ao método
langdelliano.

O número de law schools pouco cresceu ao longo dos últimos 70 anos e permanece o
sistema de credenciamento pela American Bar Association. Os professores anseiam pela
estabilidade conferida pela tenure, e as remunerações dos docentes não são muito
expressivas, se comparadas a outras carreiras jurídicas. Hoje, prevalece o modelo
publish or perish. Os professores são incentivados a publicar com frequência em
periódicos acadêmicos. No entanto, coexistem docentes monoprofissionais e
professores com atividades no governo, na advocacia e nas empresas.

Nem melhor nem pior do que outros modelos, o norte-americano apresenta diversas
nuances que precisam ser enaltecidas antes de se pretender importar elementos que o
compõem. Uma law school que não gradua é diferente de uma faculdade de Direito, que
recebe estudantes de 17, 18 anos para um primeiro contato com o ensino superior.
Uma law school com forte caráter profissionalizante é bem distinta de uma faculdade
de Direito que oferece uma formação teórica intensa em seus primeiros três anos. Uma
law school que submete seus estudantes aos rigores do case method, com ênfase nos
precedentes, é muito diferente de uma faculdade de Direito que mal tem êxito em fazer
seus alunos lerem textos básicos da disciplina e cujo Direito é vinculado à tradição
romano-germânica.

***
Agradeço aos leitores por terem acompanhado esta sequência sobre os Estados Unidos.
Prosseguiremos agora com a experiência educacional jurídica em alguns países da
América do Sul.

[1] THE AMERICAN BAR FOUNDATION (Ed.). After Tenure: Post-Tenure Law
Professors in the United States. Chicago: The American Bar Foundation, 2011.
[2] A relação completa de docentes de Harvard encontra-se aqui:
http://hls.harvard.edu/faculty/index.html?s=15. Acesso em 11-7-2015.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua
página.

Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2015, 8h00

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