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Estudos Medievais
16 a 18 de novembro de 2011
Organização
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Juliana Salgado Rafaeli
Leila Rodrigues da Silva
Copyright © by
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva; Juliana Salgado Rafaeli e
Leila Rodrigues da Silva (org.).
Edição:
Alexandre Santos de Moraes
ISBN: 978-85-88597-15-0
Bibliograia:
ISBN: 978-85-88597-15-0
1
MERÊA, Manuel Paulo. Introdução ao problema do feudalismo em Portugal:
origens do feudalismo e caracterização deste regimen. Coimbra: F. França
Amado. 1912.
155
deslocar para a França do século XI e observar sua formação social.
A divisão social do feudalismo francês, para Merêa, constituinte do
que o autor chama de complexum feudale, tem suas bases na existência
de duas populações distintas e sobrepostas: a proprietária do solo,
independente, soberana e guerreira (a nobreza); e a que trabalha no
solo que, de acordo com o autor, não “gosa de existência política” (os
servos).2 Para o autor, nesse modelo, os homens livres existem, porém
constituem uma exceção, assim como os proprietários de terra não-
nobres (alodiais). A burguesia concentra-se nas cidades, “livres sob
o ponto de vista civil mas politicamente subordinados”.3 A análise
de Merêa do modelo social francês vislumbra, portanto, somente as
relações dentro da aristocracia (vassalagem-suserania e guerras) e as
relações aristocratas-servos (impostos, trabalho e dominação), tendo
as outras relações sociais presentes apenas como exceções ou simples
detalhes do modelo em questão.
A divisão social, porém, não é o fator decisivo para a existência
ou não do feudalismo em uma região, de acordo com Merêa. Baseado
em Fustel de Coulanges, o autor defende que “o feudalismo não nasceu
dum sistema político, tem as suas raízes no terreno da vida privada”4
(grifos do autor), procurando as origens jurídicas das instituições
feudais de benefício e feudo, surgindo na tradição romana (de
precario e patronato) e transformando-se na germânica (em benefício
e vassalagem, respectivamente, além da imunidade e da apropriação
das funções públicas para ins privados). Estes resumem, em si, “os
elementos essenciaes do sistema feudal”, formadores do contrato feudal
determinante dos limites ao direito de propriedade, que tem as
seguintes características:
a) limitações ao direito de propriedade, reveladas
sobretudo na impossibilidade de alienar ou pelo
menos, em várias restrições a esta faculdade.
b) obrigação geral de idelidade e protecção.
c) existência de certos e determinados encargos, em
regra não-pecuniários e predominantemente militares.5
2
Ibidem, p. 6.
3
Ibidem, p. 10.
4
Ibidem, p. 37.
5
Ibidem, p. 108-110.
156
Ao analisar as características do contrato feudal apresentadas
por Merêa, observamos uma crítica às perspectivas de Alexandre
Herculano e Gama Barros. Ambos consideram que a centralização
precoce das monarquias ibéricas seriam contrárias à formação de um
sistema feudal como o francês,6 enquanto Merêa não vê a ausência de
uma segregação de poder enquanto uma característica do feudalismo.
Ainda assim, a construção do conceito de feudalismo por Merêa tem
por base uma análise jurídica e institucional, em consonância com
os autores liberais oitocentistas. Para ele, apenas as relações entre
membros da classe dominante deinem o que é feudalismo, apesar
destas relações ocorrerem em um ambiente social.
A perspectiva de Merêa e a escola jurídica tem sua crítica
diametralmente oposta, no que tange à ideia de feudalismo, na obra
dos autores marxistas. O representante desta escola que se debruçou
no tema com mais vigor foi Armando Castro. Ele defende que o
feudalismo é uma etapa do desenvolvimento econômico humano,
encontrado em várias sociedades, sucessão lógica do escravismo
e antecessor do capitalismo. Analisaremos o seu artigo A teoria
6
Reproduzo duas citações utilizadas pelo próprio Merêa em seu texto para
evidenciar a posição de seus antecessores portugueses: “A índole das instituições, ou
antes, do direito público, escrito ou consuetudinário, da velha monarquia ovetense-
leonesa e das que della procederam, não só foi estranha, mas até repugnante à índole
do feudalismo.” HERCULANO apud MERÊA, Op. Cit., p. 132; e “Achamos, nas
relações da classe nobre para com a corôa diferenças radicaes com o sistema feudal;
mas, considerando nos seus domínios próprios, o homem nobre apareceu-nos numa
situação que tem manifesta analogia com a dos senhores feudaes, na imunidade,
no exercício dos direitos jurisdicionais, e nos encargos e serviços que lhe deviam
os moradores e cultivadores das suas terras. Embora na origem esta situação
fosse de todo alheia ao regimen do feudalismo, reconhecemos o inluxo delle na
extensão dos direitos e prerogativas que se foram arrogando em Leão e Castella
os senhorios particulares. Nestes reinos e no de Portugal a acção e reacção entre o
princípio feudal, que era dominante em grande parte da Europa, e as circumstancias
peculiares da peninsula, que repeliam aquelle principio, produziram um sistema
politico especial, que não era o feudalismo porque lhe faltavam os caracteres
essenciaes, mas que também proporcionava à aristocracia elementos vigorosos de
resistência ao desenvolvimento do poder do rei nos amplissimos previlegios de que
a nobresa estava revestida”. BARROS apud MERÊA, Op. Cit., p. p. 137.
157
econômica do feudalismo,7 retirado de uma comunicação apresentada
em 1985 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Para construir sua noção de feudalismo, Castro, parte do
conceito de modo de produção. Considera-o o núcleo duro de uma
ciência econômica das formações sociais autônoma, tendo, assim, uma
orientação epistemológica-disciplinar.8 A partir destas proposições
basilares, trata o modo de produção como a primeira escolha lógica
e teórica para começar um estudo globalizante (chamado pelo autor
de “antropologia global”, que ele mesmo diz não existir de maneira
efetiva).
Na perspectiva de Castro, as“leis econômicas axiais do feudalismo”
devem partir dos seguintes pontos de análise: 1- a relação das classes
com os meios de produção, tendo sua base nos domínios senhoriais
(“conjunto de meios, objectos e forças de produção”9), onde os laços
de dependência feudal seriam apenas uma consequência dessa lei
econômica; 2- a importância das normas de coerção extra-econômicas,
dando foco ao papel da violência física na relação de senhores e
trabalhadores da terra (não necessariamente servos); 3- a observação
do excedente no que Castro chama de renda feudal e sua exploração
por parte do senhor, que tende a absorver em seus domínios toda a
população potencialmente ativa; e 4- observar as transformações
históricas, tanto exógenas quando endógenas ao sistema.
O modelo, de acordo com Castro, é totalmente aplicável para o
caso português. Em outra obra, o autor explicita sua posição no que
diz respeito à polêmica sobre o feudalismo em voga em sua época:
7
CASTRO, Armando. A teoria econômica do feudalismo. In: CASTRO, Armando.
Teoria do sistema feudal e transição para o capitalismo em Portugal. Caminho:
Lisboa. 1987. p. 19-52.
8
Ibidem, p. 28-31. De fato, tal conceito de modo de produção não é o único, mesmo
entre autores marxistas. Pode-se citar o exemplo de Pierre Vilar que, criticando a
ideia da autonomia da economia em relação à história, atrela o conceito de modo de
produção à perspectiva da história total.
9
Ibidem, p. 40.
158
política, social e jurídica, a verdade é que o nível das
forças produtivas, os tipos de relações econômicas entre
os homens, as perspectivas leis basilares, incluindo leis
especíicas desta formação histórica - circunstância
que é decisiva - são os mesmos. Por isso, chamemos a
este sistema econômico-social Feudalismo, Sociedade
feudal, Sociedade senhorial ou apliquemo-lhe outra
designação qualquer, não modiicamos em nada
a verdade histórica: trata-se do mesmo sistema
econômico-social.10
13
Ibidem, p. 51-53.
14
Ibidem, p. 84-85.
160
estabelecer as suas relações com os membros da classe
dominante. (...) O que, porém, explica esta preferência
do rei é certamente a sua íntima relação com a nobreza.
Justiica-se assim que seja a partir do estudo do regime
senhorial que passemos ao da mentalidade feudal,
mesmo quando esta se manifesta em regiões diferentes
daquela onde esse regime se implantou de maneira
mais típica.15
O referencial teórico de Mattoso, portanto, refere-se tanto às
perspectivas sócio-econômicas valorizadas por Castro, no âmbito
senhorial; quanto à mentalidade na qual funciona os mecanismos de
criação das relações entre as classes dominantes, ou seja, o contrato
feudal, vislumbrado por Merêa.
Sobre tal divisão conceitual, Oliveira Marques explicitou uma
crítica no verbete sobre feudalismo do Dicionário da História de
Portugal por ele coordenado:
18
Ibidem, p. 73-74.
162
e geograicamente delimitado, a interpretação do
Estado português da Idade Média e dos começos da
era moderna deixa de se apresentar como enigma,
embora continuando a levantar numerosos e inevitáveis
problemas.19
165