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Atas da IX Semana de

Estudos Medievais
16 a 18 de novembro de 2011

Organização
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Juliana Salgado Rafaeli
Leila Rodrigues da Silva

Programa de Estudos Medievais


Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Atas da IX Semana de Estudos Medievais

Copyright © by
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva; Juliana Salgado Rafaeli e
Leila Rodrigues da Silva (org.).

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Programa de Estudos Medievais (PEM)
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Edição:
Alexandre Santos de Moraes

ISBN: 978-85-88597-15-0

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; RAFFAELI, Juliana


Salgado; SILVA, Leila Rodrigues da (org.).
Atas da IX Semana de Estudos Medievais / Andréia Cristina
Lopes Frazão da Silva, Juliana Salgado Raffaeli e Leila
Rodrigues da Silva (organizadores). --
Rio de Janeiro: PEM, 2012.

Bibliograia:
ISBN: 978-85-88597-15-0

1. História Medieval 2. Programa de Estudos Medievais 3.


Instituto de História. I. Título.
O CONCEITO DE FEUDALISMO EM PORTUGAL - UMA
DISCUSSãO HISTORIOGRÁFICA

Bruno Marconi da Costa


(Mestrando PPGHC – UFRJ)

Tendo origem nas considerações de Alexandre Herculano sobre


a Idade Média portuguesa, uma das discussões mais frequentes
na historiograia portuguesa do século XX foi sobre a questão do
feudalismo. Poderia este conceito, discutido desde teóricos franceses
do século XVIII, ser aplicado à realidade do Portugal medieval? O
objetivo do presente artigo é apresentar a diversa conceitualização de
feudalismo que autores lusitanos desenvolveram durante o século XX
e discutir os limites de sua aplicabilidade ao caso concreto do reino.
Para empreender este trabalho, selecionamos quatro nomes
que consideramos os mais paradigmáticos na contenda em questão:
Manuel Paulo Merêa, representante da escola da História do Direito,
de grande tradição em Portugal; Armando Castro, que visa efetuar
uma ciência econômica das formações sociais, de base marxista; José
Mattoso, autor que lança mão das formulações teóricas de Georges
Duby para o reino português; e Antônio Henrique de Oliveira
Marques, que produz uma análise histórico-geográica da presença
do feudalismo em Portugal.
Não foi arbitrária a escolha de Manuel Paulo Merêa para
representar a historiograia jurídica de Portugal: é um autor
intermediário. Escrevendo nas primeiras décadas do século XX, é
bastante inluenciado pelas ideias liberais de Herculano e Gama
Barros, e é mestre de outro expoente na discussão sobre feudalismo,
Torquato de Sousa Soares. A obra de Merêa Introdução ao Problema
do Feudalismo em Portugal,1 publicada em 1912, nos oferece uma
posição expressiva da perspectiva institucionalista deste grupo de
historiadores, ainda que feita com o interesse de ser sintética.
Para Merêa, para empreender uma construção de um “minimum
exigível” do conceito de feudalismo em sua forma “pura”, devemos nos

1
MERÊA, Manuel Paulo. Introdução ao problema do feudalismo em Portugal:
origens do feudalismo e caracterização deste regimen. Coimbra: F. França
Amado. 1912.
155
deslocar para a França do século XI e observar sua formação social.
A divisão social do feudalismo francês, para Merêa, constituinte do
que o autor chama de complexum feudale, tem suas bases na existência
de duas populações distintas e sobrepostas: a proprietária do solo,
independente, soberana e guerreira (a nobreza); e a que trabalha no
solo que, de acordo com o autor, não “gosa de existência política” (os
servos).2 Para o autor, nesse modelo, os homens livres existem, porém
constituem uma exceção, assim como os proprietários de terra não-
nobres (alodiais). A burguesia concentra-se nas cidades, “livres sob
o ponto de vista civil mas politicamente subordinados”.3 A análise
de Merêa do modelo social francês vislumbra, portanto, somente as
relações dentro da aristocracia (vassalagem-suserania e guerras) e as
relações aristocratas-servos (impostos, trabalho e dominação), tendo
as outras relações sociais presentes apenas como exceções ou simples
detalhes do modelo em questão.
A divisão social, porém, não é o fator decisivo para a existência
ou não do feudalismo em uma região, de acordo com Merêa. Baseado
em Fustel de Coulanges, o autor defende que “o feudalismo não nasceu
dum sistema político, tem as suas raízes no terreno da vida privada”4
(grifos do autor), procurando as origens jurídicas das instituições
feudais de benefício e feudo, surgindo na tradição romana (de
precario e patronato) e transformando-se na germânica (em benefício
e vassalagem, respectivamente, além da imunidade e da apropriação
das funções públicas para ins privados). Estes resumem, em si, “os
elementos essenciaes do sistema feudal”, formadores do contrato feudal
determinante dos limites ao direito de propriedade, que tem as
seguintes características:
a) limitações ao direito de propriedade, reveladas
sobretudo na impossibilidade de alienar ou pelo
menos, em várias restrições a esta faculdade.
b) obrigação geral de idelidade e protecção.
c) existência de certos e determinados encargos, em
regra não-pecuniários e predominantemente militares.5

2
Ibidem, p. 6.
3
Ibidem, p. 10.
4
Ibidem, p. 37.
5
Ibidem, p. 108-110.
156
Ao analisar as características do contrato feudal apresentadas
por Merêa, observamos uma crítica às perspectivas de Alexandre
Herculano e Gama Barros. Ambos consideram que a centralização
precoce das monarquias ibéricas seriam contrárias à formação de um
sistema feudal como o francês,6 enquanto Merêa não vê a ausência de
uma segregação de poder enquanto uma característica do feudalismo.
Ainda assim, a construção do conceito de feudalismo por Merêa tem
por base uma análise jurídica e institucional, em consonância com
os autores liberais oitocentistas. Para ele, apenas as relações entre
membros da classe dominante deinem o que é feudalismo, apesar
destas relações ocorrerem em um ambiente social.
A perspectiva de Merêa e a escola jurídica tem sua crítica
diametralmente oposta, no que tange à ideia de feudalismo, na obra
dos autores marxistas. O representante desta escola que se debruçou
no tema com mais vigor foi Armando Castro. Ele defende que o
feudalismo é uma etapa do desenvolvimento econômico humano,
encontrado em várias sociedades, sucessão lógica do escravismo
e antecessor do capitalismo. Analisaremos o seu artigo A teoria

6
Reproduzo duas citações utilizadas pelo próprio Merêa em seu texto para
evidenciar a posição de seus antecessores portugueses: “A índole das instituições, ou
antes, do direito público, escrito ou consuetudinário, da velha monarquia ovetense-
leonesa e das que della procederam, não só foi estranha, mas até repugnante à índole
do feudalismo.” HERCULANO apud MERÊA, Op. Cit., p. 132; e “Achamos, nas
relações da classe nobre para com a corôa diferenças radicaes com o sistema feudal;
mas, considerando nos seus domínios próprios, o homem nobre apareceu-nos numa
situação que tem manifesta analogia com a dos senhores feudaes, na imunidade,
no exercício dos direitos jurisdicionais, e nos encargos e serviços que lhe deviam
os moradores e cultivadores das suas terras. Embora na origem esta situação
fosse de todo alheia ao regimen do feudalismo, reconhecemos o inluxo delle na
extensão dos direitos e prerogativas que se foram arrogando em Leão e Castella
os senhorios particulares. Nestes reinos e no de Portugal a acção e reacção entre o
princípio feudal, que era dominante em grande parte da Europa, e as circumstancias
peculiares da peninsula, que repeliam aquelle principio, produziram um sistema
politico especial, que não era o feudalismo porque lhe faltavam os caracteres
essenciaes, mas que também proporcionava à aristocracia elementos vigorosos de
resistência ao desenvolvimento do poder do rei nos amplissimos previlegios de que
a nobresa estava revestida”. BARROS apud MERÊA, Op. Cit., p. p. 137.
157
econômica do feudalismo,7 retirado de uma comunicação apresentada
em 1985 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Para construir sua noção de feudalismo, Castro, parte do
conceito de modo de produção. Considera-o o núcleo duro de uma
ciência econômica das formações sociais autônoma, tendo, assim, uma
orientação epistemológica-disciplinar.8 A partir destas proposições
basilares, trata o modo de produção como a primeira escolha lógica
e teórica para começar um estudo globalizante (chamado pelo autor
de “antropologia global”, que ele mesmo diz não existir de maneira
efetiva).
Na perspectiva de Castro, as“leis econômicas axiais do feudalismo”
devem partir dos seguintes pontos de análise: 1- a relação das classes
com os meios de produção, tendo sua base nos domínios senhoriais
(“conjunto de meios, objectos e forças de produção”9), onde os laços
de dependência feudal seriam apenas uma consequência dessa lei
econômica; 2- a importância das normas de coerção extra-econômicas,
dando foco ao papel da violência física na relação de senhores e
trabalhadores da terra (não necessariamente servos); 3- a observação
do excedente no que Castro chama de renda feudal e sua exploração
por parte do senhor, que tende a absorver em seus domínios toda a
população potencialmente ativa; e 4- observar as transformações
históricas, tanto exógenas quando endógenas ao sistema.
O modelo, de acordo com Castro, é totalmente aplicável para o
caso português. Em outra obra, o autor explicita sua posição no que
diz respeito à polêmica sobre o feudalismo em voga em sua época:

Se existem, inegavelmente, em Portugal, aspectos


particulares e especíicos, sobretudo nas esferas

7
CASTRO, Armando. A teoria econômica do feudalismo. In: CASTRO, Armando.
Teoria do sistema feudal e transição para o capitalismo em Portugal. Caminho:
Lisboa. 1987. p. 19-52.
8
Ibidem, p. 28-31. De fato, tal conceito de modo de produção não é o único, mesmo
entre autores marxistas. Pode-se citar o exemplo de Pierre Vilar que, criticando a
ideia da autonomia da economia em relação à história, atrela o conceito de modo de
produção à perspectiva da história total.
9
Ibidem, p. 40.
158
política, social e jurídica, a verdade é que o nível das
forças produtivas, os tipos de relações econômicas entre
os homens, as perspectivas leis basilares, incluindo leis
especíicas desta formação histórica - circunstância
que é decisiva - são os mesmos. Por isso, chamemos a
este sistema econômico-social Feudalismo, Sociedade
feudal, Sociedade senhorial ou apliquemo-lhe outra
designação qualquer, não modiicamos em nada
a verdade histórica: trata-se do mesmo sistema
econômico-social.10

A diferença basilar entre Merêa e Castro no que se refere à


formulação do conceito de feudalismo é no próprio objeto que
depositam suas análises: enquanto o primeiro deine o sistema a partir
de uma perspectiva institucional, o segundo observa o contrato feudal
como simples consequência das estruturas sócio-econômicas vigentes
na Idade Média portuguesa.
José Mattoso reconhece a contenda historiográica em sua obra
A Identificação de um País.11 Sua posição sobre a polêmica entre
historiadores do direito e marxistas é incisiva:

A discussão [entre historiadores jurídicos e marxistas


sobre o feudalismo] estabeleceu-se num clima de
autêntico diálogo de surdos. Enquanto os primeiros
limitavam o ‘feudalismo’ às relações entre os membros
da classe senhorial decorrentes do contrato feudal,
os segundos referiam-se apenas à exploração
do campesinato pela nobreza. Uns falavam das
instituições a que se deverá chamar, se se quiser utilizar
uma terminologia que exclua ambiguidades, ‘feudo-
vassálicas’; outros, das relações sociais de produção e da
luta de classes.12
10
CASTRO, Armando. Irrelevância, sob o aspecto econômico, do conhecido
debate acerca de ter ou não existido em Portugal, Leão e Castela o regime feudal.
In: CASTRO, Armando. A Evolução Econômica de Portugal do século XII-XV.
Lisboa: Portugália. 1966. p. 50-64.
11
MATTOSO, José. Identificação de um País - ensaio sobre as origens de
Portugal (1096-1325). Estampa: Lisboa, 1985.
12
Ibidem, p. 50-51. Grifo meu.
159
Após reconhecer o problema teórico no qual se encontrava a
historiograia portuguesa, Mattoso propõe uma solução também no
âmbito teórico. O autor buscou nos apontamentos de Robert Fossier
e Georges Duby sobre feudalismo a divisão do conceito para regime
senhorial e regime feudal.
O regime senhorial situa-se, para Mattoso, “no plano das relações
sociais de produção e dizem respeito às relações entre produtores e
detentores dos meios de produção”, e deinido, a partir da sua dimensão
política a partir da propriedade, por parte do senhor, não só da terra,
mas também “da autoridade e do poder nos domínios militar, judicial,
iscal e, chamemo-lhe assim, legislativo”, ou seja, seu poder banal.13
Seria, portanto, um campo material das relações de poder medievais,
envolvendo nobres e servos.
O regime feudal regula as relações dos detentores do poder
político e social entre si. Mattoso assim deine feudalismo:

os laços reais estabelecidos entre dois homens, com


serviços em princípio recíprocos, em virtude da
concessão de um bem, normalmente provisória, feita
por um senhor a um vassalo no im de uma série de
ritos públicos [...] e um estado de espírito, formado
no pequeno mundo dos guerreiros pouco a pouco
tornados nobres.14
A interrelação entre os dois regimes se dá a partir de uma
determinação do sistema senhorial. Nos diz Mattoso que se este
não existisse, enquanto realidade produtiva do período medieval, o
feudalismo não teria sentido. O regime senhorial, na região Norte
de Portugal, “cria o ambiente propício à difusão de uma mentalidade
feudal”. A atuação do rei encaixa-se aqui, de acordo com o autor, para
a expansão do feudalismo pelo reino, mesmo em regiões que o regime
senhorial não tenha propriamente se ixado.

O ideal feudal pode tornar-se o tipo de organização


social considerado modelar para o rei, como forma de

13
Ibidem, p. 51-53.
14
Ibidem, p. 84-85.
160
estabelecer as suas relações com os membros da classe
dominante. (...) O que, porém, explica esta preferência
do rei é certamente a sua íntima relação com a nobreza.
Justiica-se assim que seja a partir do estudo do regime
senhorial que passemos ao da mentalidade feudal,
mesmo quando esta se manifesta em regiões diferentes
daquela onde esse regime se implantou de maneira
mais típica.15
O referencial teórico de Mattoso, portanto, refere-se tanto às
perspectivas sócio-econômicas valorizadas por Castro, no âmbito
senhorial; quanto à mentalidade na qual funciona os mecanismos de
criação das relações entre as classes dominantes, ou seja, o contrato
feudal, vislumbrado por Merêa.
Sobre tal divisão conceitual, Oliveira Marques explicitou uma
crítica no verbete sobre feudalismo do Dicionário da História de
Portugal por ele coordenado:

O antigo e fundo debate sobre a existência ou não


existência do feudalismo em Portugal só adquire
signiicado do ponto de vista jurídico-político.
Economicamente, nada distinguia a senhoria do feudo.
Formas de renda, formas de distribuição e circulação
econômica eram as mesmas. Socialmente, também, é
pouco mais que um artifício tentar separar um sistema
do outro. A condição humana, exceptuadas as relações
entre o senhor e o rei, pouco variava.16

Sobre o assunto, porém, mesmo aproximando-se bastante da


perspectiva de Castro, Oliveira Marques falou pouco. A melhor
deinição de sua perspectiva sobre o feudalismo português encontra-se
em sua obra História de Portugal,17 onde parte que o Portugal Feudal é
composto por uma sobreposição de estruturas. Estas estruturas têm
15
Ibidem, p. 88-89.
16
Citado em SILVEIRA, Francisco Luiz Borges. Herculano e o problema do
feudalismo em Portugal. Convergência Lusíada. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. , 1977.
p. 204.
17
OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal - Das Origens ao
Renascimento. Lisboa: Presença, 2010. p. 73-178.
161
constituições histórico-geográicas, que se transformam na medida
em que o reino toma sua forma durante a Idade Média.

O Portugal dos séculos XIII a XV apresentava


muitas características próprias, consequência natural
do encontro e da fusão de estruturas do Norte com
estruturas do Sul. Reunia, na verdade a) elementos
tipicamente feudais, comuns a toda a Europa Ocidental,
resultado da evolução de categorias romanas e bárbaras
(principalmente visigodas) e, mais tarde, do declínio do
próprio feudalismo; b) elementos feudais deturpados,
consequência das necessidades e circunstâncias da
Reconquista; c) elementos moçárabes, com uma longa
tradição de autodesenvolvimento e isolamento da
Europa cristã; e d) elementos islâmicos típicos, comuns
a todo o mundo muçulmano, o qual, pelos séculos XII
e XIII, se mostrava já feudal ou rapidamente tendendo
ao feudalismo.18

De fato, a diferença da perspectiva de Oliveira Marques em relação


às propostas anteriores está no fato de admitir as estruturas que não
eram propriamente consideradas feudais pela historiograia ibérica
(como a tradição moçárabe e muçulmana) enquanto constitutivas
desse Portugal Feudal. Só na comparação com as diferentes sociedades
que constituíram o reino português é que podemos constituir um
estudo compreensivo de fato:

O Portugal feudal, como a Castela feudal, exibia assim


aspectos do maior interesse, que só em comparação
com os demais países europeus e com os Estados
islâmicos podem ser cabalmente interpretados e
compreendidos. Foi por, em geral, se recusarem a fazê-
la que os historiadores portugueses (com alguns dos
seus colegas espanhóis) vieram a criar e a defender um
Portugal artiicial, “senhorial, não-feudal”, espécie de
“avis rara” de incerta origem e difícil descrição. Uma
vez posta de parte a ideia de um feudalismo monolítico

18
Ibidem, p. 73-74.
162
e geograicamente delimitado, a interpretação do
Estado português da Idade Média e dos começos da
era moderna deixa de se apresentar como enigma,
embora continuando a levantar numerosos e inevitáveis
problemas.19

Oliveira Marques, portanto, desloca o eixo de análise do


feudalismo. Ao não aportar-se necessariamente ao modelo francês
para deinir o conceito, passa a considerá-lo um sistema maleável,
transformável de acordo com a localização geográica e o estado geral
do processo histórico do objeto analisado.
Enim, quais as contribuições que os autores envolvidos na
discussão aqui tratada podem herdar para a produção historiográica
portuguesa nos dias de hoje, para além da própria função da
historiograia?
Paulo Merêa, continuador das perspectivas jurídicas de Alexandre
Herculano e Gama Barros, ajuda-nos a observar a especiicidade do
reino português, tanto no que concerne a aplicação do que considera
ser central no modelo de feudalismo - o contrato feudal -, quanto
elementos que não fazem parte do conceito - como, por exemplo, a
dispersão do poder central em senhorios. Esta perspectiva, porém, é
insuiciente por não vislumbrar de fato a realidade social e política do
período medieval português, seus conlitos e relações entre categorias
que não pertencem ao extrato nobiliárquico.
Armando Castro, por outro lado, considera as estruturas sócio-
econômicas da sociedade portuguesa. Enquadra-se, porém, em uma
orientação já ultrapassada pela atual historiograia, a do determinismo
econômico, oriunda da sua defesa da autonomia disciplinar da ciência
econômica que pratica. Dentro do próprio marxismo podemos
encontrar interpretações críticas à tal posição positivística da teoria de
Marx, como nos casos de Edward hompson e Pierre Vilar. Isso não
signiica que suas considerações devam ser ignoradas ou vistas como
ultrapassadas: elas têm muito para contribuir. Sua análise econômica
inclui elementos antes relevados, como considerar a servidão uma
condição para a luta política das classes desprivilegiadas do período
19
Ibidem, p. 74-75.
163
medieval, ao contrário de negar-lhes a “existência política”, como faz
Merêa.
A solução de José Mattoso é, de fato, interessante. Ainda utilizando
o modelo da historiograia francesa para Portugal, consegue inserí-la
nas especiicidades do reino, como a precoce centralização régia e a
expansão da mentalidade feudal para o sul do reino, fruto do processo
de “Reconquista”. Cabe-nos perguntar, porém, se tal conceituação é
realmente proveitosa. Mesmo interligados, sistema senhorial e feudal
podem ser realmente vistos enquanto distintos? Pode-se observar,
empiricamente, na sociedade medieval, um sistema senhorial sem
uma mentalidade feudal nobiliárquica? O adjetivo “feudal” é realmente
efetivo quando apropriado somente para uma descrição mental de
uma classe dominante? Como considerar os dois sistemas de forma
distinta em uma sociedade que não separava-os em suas práticas
cotidianas? A separação dos conceitos resolve o problema inicial e cria
outros.
A justaposição de estruturas proposta por Oliveira Marques tem
a vantagem de analisar Portugal por suas próprias características, e
não na tentativa de encaixá-lo em um modelo francês de feudalismo.
Apesar disso, ainda observa mais continuidades do que diferenças
entre o caso franco e o lusitano, o que pode levar a queda na armadilha
que o próprio havia desviado: a de ver Portugal apenas como uma
continuidade “periférica” de um “centro” do mundo medieval. Possui,
ainda, características similares às de Castro, no que diz respeito
à irrelevância das especiicidades jurídicas de Portugal em sua
constituição.
Em alguns pontos, todos os autores concordam: Portugal possui
especiicidades jurídicas, sejam elas determinantes do feudalismo ou
apenas derivadas de características econômico-sociais. A presença da
centralização régia, precoce em relação aos outros reinos europeus, é
indiscutível entre os autores. O que os diferenciam é a relevância de tal
processo para a caracterização de Portugal feudal, seja ela nenhuma,
primordial ou enquanto forma de deturpação dos ideais feudais
advindos da Reconquista.
O século XX viu seu im e a discussão sobre a construção e
aplicabilidade do conceito de feudalismo em Portugal continuou em
164
aberto. Tomar uma posição sobre ela não é imperativo. Depende do
objeto a ser escolhido e do referencial teórico da pesquisa. O que ica,
por im, é isto: o conceito de feudalismo não possui um consenso na
historiograia sobre o Portugal medievo e é passível de discussão sobre
suas formulações.

165

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