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Universidade Federal de São Carlos

Gabriel Randi Donadelli


RA: 771596
História da Filosofia Contemporânea I

Questões dissertativas relativas ao primeiro capítulo do livro Matéria e memória, de


Henri Bergson: “Da seleção das imagens para a representação. O papel do corpo”.

1- Bergson define o corpo primeiramente como centro de ação e, num segundo


momento, como centro de indeterminação. O que isto quer dizer? Explore os
argumentos do autor.

2- Na página 36, Bergson afirma que a consciência, “no caso da percepção


exterior”, consiste numa escolha. Explique, explore, contextualize esta afirmação.
3- Por que tudo se passa como se a percepção consciente nascesse dos
movimentos interiores da substância cerebral? Bergson nos dá uma resposta na página
39. Explique-a, e depois complemente sua explicação tendo por base os argumentos
de Bergson no exemplo do ponto P (p.39-41).

1- Bergson começa seu primeiro capítulo do livro Matéria e memória demonstrando


como o universo é formado por imagens, sendo essas imagens aquilo que compõe o mundo
material. Essas imagens seriam objetos relacionados entre si pelas leis da natureza, ou leis da
física. Tais leis fazem com que seja possível prever o futuro das imagens por essa relação
inerente à todas elas entre si, ou seja, o próprio futuro estaria contido no presente da matéria,
por isso, baseando-se nesse argumento, o mundo material seria constante e incapaz de
mudanças. No entanto, dentre essas imagens existe uma que se destaca pois além de conhecer
seu exterior, é possível conhecer seu interior por meio de afecções: o corpo. Dessa forma, o
autor nos mostra como o corpo é uma imagem privilegiada, pois é capaz de se mover pelo
espaço e decidir o que vai fazer em relação aos múltiplos estímulos exteriores que estão à sua
volta. Portanto, conclui que nada no mundo seria passível de mudanças, senão fosse pelo
corpo com o “poder” de influenciar as imagens que o cercam.
Em seguida, ao realizar um breve estudo do sistema nervoso humano, o filósofo
mostra como os nervos aferentes, eferentes e o próprio cérebro fazem parte do mundo
material, pois são imagens como quaisquer outras no universo. “É o cérebro que faz parte do
mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro” (BERGSON, 1999, p.13).
Isso fica claro quando diz que se o mundo material inteiro for extinguido, tanto o cérebro
quanto os nervos seguirão o mesmo caminho, enquanto se apagarmos da realidade apenas
estes, o mundo material seguiria existindo. Esse argumento é utilizado para que não restem
dúvidas de que não são os nervos nem os centros nervosos os responsáveis pela existência
das imagens exteriores ao corpo. Por isso, fica evidente como o corpo se porta perante ao
resto do mundo material: as imagens transmitem movimentos a ele da mesma forma que a
recíproca é verdadeira, com a diferença de que o corpo é capaz de escolher de que forma irá
reagir ao que lhe é transmitido. Dessa forma, pode-se dizer que o corpo é um centro de ação,
continua sendo um objeto, porém com a habilidade de mover outros objetos, reflete apenas
aquilo que lhe é posto pelo mundo material, incapaz de fazer surgir representações.
Após isso, Bergson procura contradizer as doutrinas realista e idealista que, como ele
mesmo demonstra são inviáveis, mas possuem uma máxima em comum que serve de base
para sustentar suas ideologias: “a percepção tem um interesse inteiramente especulativo; ela
é conhecimento puro” (BERGSON, 1999, p. 24). O autor, para ir contra essa afirmação,
remonta como o sistema nervoso foi evoluindo nos seres vivos, desde o reino monera até os
vertebrados avançados, e após esse estudo conclui como fica evidente que o cérebro funciona
como uma espécie de “central telefônica” que serve somente para decidir quais sistemas
motores serão ativados ao receber determinado estímulo exterior.
“Mas o que percebo muito bem é que estas células das diversas regiões
ditas sensoriais do córtex, células interpostas entre as arborizações terminais das
fibras centrípetas e as células motoras do sulco de Rolando, permitem ao estímulo
recebido atingir à vontade este ou aquele mecanismo motor da medula espinhal e
escolher assim seu efeito.” (BERGSON, 1999, p.26).

Ou seja, o cérebro possui a função de determinar o que fazer com os estímulos recebidos.
Portanto, não pode-se dizer que o sistema nervoso, em sua totalidade, funcione para o
conhecimento, pois se resume em torno dos movimentos, na função de organizar ou realizar
ações.
Sabendo disso, agora o autor mostra como o fato de nosso sistema nervoso superior é
capaz de fazer surgir a percepção. Em organismos inferiores o estímulo de algum objeto em
seu corpo é necessário para que exista uma reação, mas como o ser humano possui diversos
jeitos de absorver as imagens do mundo material, sejam elas a audição, a visão ou olfato, isso
torna cada vez maior a hesitação possível na hora de agir, da mesma forma que aumenta a
quantidade de estímulos e a distância que são possíveis serem percebidos. Portanto, surge
essa zona de indeterminação, que pode ser medida pela distância dos objetos que podem
provocar estímulos no centro de ação e onde o indivíduo consegue agir, de certa forma,
livremente. Por isso, podemos chamar o corpo de centro de indeterminação. “a percepção
dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo.”(BERGSON, 1999,
p.29).

2- Após concluir sua ideia de como o sistema nervoso não é construído em prol da
representação e sim da ação, Bergson segue o texto explicando como a consciência, ou a
percepção exterior, baseia-se em uma escolha. Primeiramente, o filósofo irá criar um
exemplo em que abre mão das lembranças pois, para que seu argumento seja mais claro e
objetivo, retirar as lembranças da equação torna a tarefa mais simples, já que não existe
percepção que não possua dados de experiências passadas, dessa forma, irá apresentar uma
percepção pura.
A partir disso, explica que uma imagem pode existir, sem que seja percebida e que,
precisamente essa distância, entre a existência e a representação, é a medida da percepção
consciente que possuímos da matéria. As imagens do mundo material se apresentam ao
indivíduo, em sua zona de indeterminação, não em sua totalidade, mas apenas refletindo as
funções possíveis do centro de ação nelas. Dessa forma, não conseguimos enxergar as
relações de um objeto com os outros que o cercam sendo que o mesmo é solidário com estes
pelas leis naturais da física. Retiramos dele apenas o contorno das ações que interessam ser
executadas no momento em que o estímulo é recebido pelo corpo. Ou seja, nesse processo,
certas características da imagem serão ignoradas para fazer gerar a representação, por isso os
objetos não são representados integralmente como existem no mundo material, o que é
representado pode ser comparado com um “quadro”.
“Ora, se os seres vivos constituem no universo ‘centros de indeterminação’,
e se o grau dessa indeterminação é medido pelo número e pela elevação de suas
funções, concebemos que sua simples presença possa equivaler à supressão de todas
as partes dos objetos nas quais suas funções não estão interessadas.” (BERGSON,
1999, p. 34).

O pensador chega a comparar isso com o efeito de refração da luz. Pois, quando um
certo ângulo da luz torna impossível a refração, é formada uma imagem virtual, isso é
basicamente como a nossa representação é formada, são produzidas imagens virtuais que
refletem as possíveis ações do corpo na imagem, mas apenas as que interessam ao ser. Entre a
imagem “ser e ser conscientemente percebida”, não existe diferença de natureza, apenas no
sentido de que só percebemos aquilo que escolhemos perceber a partir do que nos é
apresentado pelos estímulos exteriores.

3- A explicação de Bergson do porquê tudo se passa como se a percepção consciente


nascesse dos movimentos interiores da substância cerebral se inicia nos itens estudados na
segunda questão deste trabalho, é importante destacar isso pois ele segue seu raciocínio com
base no que foi dito acima; sabendo disso, seguimos.
Prosseguindo seu estudo, para a resposta dessa questão, o autor agora relata como a
dificuldade nesse problema é o fato de terem tomado a representação como uma “visão
fotográfica” das coisas que se forma de alguma maneira inexplicável dentro de alguma parte
de nosso sistema nervoso. No entanto, a solução do pensador para isso é que, não se pode
negar que a fotografia já existe no interior das coisas, já foi capturada, o que basicamente
retoma o problema entre as coisas serem e serem conscientemente percebidas. A fotografia
do mundo material já existe, mas só é revelada a partir do momento que entra em contato
com as zonas de indeterminação, dessa forma, pode-se dizer “que a fotografia do todo é
translúcida: falta, atrás da chapa, uma tela escura sobre a qual se destacaria a imagem.
Nossas ‘zonas de indeterminação’ desempenhariam de certo modo o papel de tela.”
(BERGSON, 1999, p.36).
Continuando o pensamento, Bergson agora deixa claro como não é possível separar a
matéria da percepção. Na busca de exterminar a “magia” que envolvia a representação, ou
seja, o fato de que ideologias anteriores queriam atribuir a ela uma natureza diferente e
desconexa da matéria, ele imagina para onde a representação é lançada se não possui relação
com o mundo material. Sem a matéria, figuras em movimento seriam representadas sem
limites em uma consciência infinita, e se estão desconectadas do mundo material não seria
possível assimilá-las ao que faz parte de toda sua essência como imagens.
“Se você faz a matéria inextensa, como ela irá receber a extensão? Se você
a reduz ao movimento homogêneo, de onde surgirá a qualidade? Sobretudo, como
imaginar uma relação entre a coisa e a imagem, entre a matéria e o pensamento,
uma vez que cada um desses dois termos possui, por definição, o que falta ao
outro?” ( BERGSON, 1999, p.38).

A conclusão do filósofo é de que não existe necessidade em questionar como a


percepção nasce, a pergunta que deve ser feita é de como ela se limita. Levando em conta a
indeterminação motora do corpo, que é uma resultante da substância cinzenta do cérebro,
pode-se explicar porque a percepção parece se dar como se ocorresse dentro desses
movimentos internos cerebrais. Porém, não pode vir disso, o cérebro é uma imagem como as
outras. A percepção não pode ser separada da matéria, ela só é possível graças às imagens
que são relacionadas ao corpo: o cérebro e o sistema nervoso. O único ponto relevante nesse
estudo é o de como a percepção se limita à representar imagens virtuais, ou seja, imagens
reduzidas ao interesse da ação do corpo nelas.
De modo a exemplificar, para que se torne mais claro seu argumento aqui, o filósofo
propõe o experimento do ponto P, um ponto luminoso, que existe, emite vibrações de certo
grau e duração; e, ao mesmo tempo, é percebido pela consciência como um ponto de luz. O
objetivo é demonstrar que não existe uma diferença de natureza entre a luz e o que o ponto é
em si, ou seja, os movimentos que emite.
Com esse exemplo, Bergson consegue trazer à tona tudo o que havia sido estudado
nesse primeiro capítulo de seu livro. Primeiramente, retoma a dizer que não faz sentido nos
perguntarmos como a imagem virtual nasce, se não estivesse sendo percebida nem seria
possível tratar dela no experimento, o estudo que deve ser feito aqui é de como ela é
escolhida pela percepção. O ponto P emite estímulos, os mesmos são recebidos pelo sistema
nervoso que, agora, os transmite ao centro, e este abre espaço para eles chegarem aos
mecanismos motores que serão, ou não, utilizados, tudo se deverá à escolha, ao interesse do
cérebro, nossa “central telefônica”, portanto, é algo indeterminado. O espaço existente entre a
imagem e o corpo, a distância que os raios Pa, Pb e Pc percorrem para atingir nosso aparelho
responsável pela percepção é a zona de indeterminação. Os estímulos, ao atingirem o corpo e
serem transmitidos para o centro, são logo em seguida projetados para fora, no lugar de onde
foram recolhidos primeiramente. No entanto, isso não é uma imagem idealizada sem limites
de extensão, ela faz parte do mundo material, assim como os nervos que recebem seus
estímulos e o cérebro que determina o que os aparelhos motores farão com eles: é o próprio
ponto P.
“A verdade é que o ponto P, os raios que ele emite, a retina e os elementos
nervosos interessados formam um todo solidário, que o ponto P faz parte desse todo,
e que é exatamente em P, e não em outro lugar, que a imagem de P é formada e
percebida..”(BERGSON, 1999, p. 41).
Referências Bibliográficas:
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito. 2° ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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