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O Homem – Descartes, René - Tradução: César Augusto Battisti e Marisa Donatelli.

Este seminário tem como objetivo apresentar a análise da leitura das páginas 174
a 202 do Tratado do Homem de Descartes, nas quais o autor demonstra, a partir do
estudo fisiológico, as relações causais existentes no corpo humano e seus consequentes
afetos sobre a alma, bem como, algumas das possíveis ações da alma sobre o corpo, em
suma: as afecções e paixões provenientes da relação corpo – alma – corpo que se traduz
nos possíveis movimentos corporais (aqui incluindo a memória), na percepção do
mundo sensível, na criação fantasiosa e na intelecção das coisas extensas. Tentaremos
no decorrer desta apresentação trazer a luz do entendimento as principais estruturas do
texto cartesiano em análise, interpretando o seu encadeamento lógico e conceitual, de
forma que ao final possamos clarear em parte como a alma é simultaneamente paciente
e agente do corpo e vice versa. É necessário ressaltar que nosso foco principal é
entender como se processa a imaginação, principalmente no que tange as ações que
levam a produção da imagem no corpo, pois esse tema dialoga diretamente com nosso
objeto de estudo para dissertação de mestrado. A primeira parte deste seminário
abordará alguns questionamentos das consequências dessa fisiologia e também de forma
detalhada como se formam as figuras e as imagens no cérebro humano, e como elas
produzem as memórias. O movimento e os sonhos ficarão para o próximo seminário.
Não é de interesse deste seminário, discutir aquele que é o “calcanhar de Aquiles” do
pensamento cartesiano: o problema da causalidade entre substâncias distintas.

Nota: Todas as vezes que houver uma referência à letra (H), (A), (B) ou (C) consultar a
figura 27 ao final do trabalho.

Considerações e Questionamentos?

Neste magnifico texto, de caráter puramente fisiológico, Descartes expõe


claramente sua intenção de expurgar o pensamento escolástico da existência de uma
alma sensitiva e vegetativa. Através da demonstração de que o calor do corpo, a
respiração, a vigília, o sono, a recepção da luz, dos sons, dos odores, dos gostos, e de
outras tais qualidades nos órgãos sensoriais; a impressão dessas ideias no órgão do
senso comum e da imaginação, a retenção ou a impressão dessas ideias na memória; os
movimentos internos dos apetites (fome, sede e outros desejos) e as paixões (medo,
ódio, alegria e etc...); e, enfim, os movimentos corporais que acontecem por causa das
ações dos objetos que se apresentam aos sentidos, pelas paixões e pelas impressões que
se encontram na memória são decorrentes, no corpo, somente pelas disposições de
seus órgãos, não necessitando de nenhum outro princípio de movimento e de vida
(originários da alma) além do seu próprio sangue e seus vapores sutis que são
agitados pelo calor do coração, calor esse que não é de natureza diferente da de todos os
fogos que estão nos corpos inanimados, ou seja, de natureza puramente material (TH
pag. 202). Assim, demonstrando, inversamente ao postulado pelos escolásticos, que o
calor do corpo, a fome, a sede, o suor, o movimento, a imagem e a memória, entre
outros, se dão no corpo e não a alma; sendo que a alma, por estar unida a esse corpo,
toma percepção dessas afecções e paixões corporais através dos afetos e das ideias dos
objetos.

René Descartes apresenta como objetivo de seu estudo elucidar como e onde se
formam fisiologicamente no cérebro humano as impressões, isto é: as formas e as
imagens, que permitem a alma, enquanto estiver unida a este corpo, imaginar ou sentir
algum objeto, e ainda, como elas se conservam e como elas causam movimento do
corpo, tanto no estado de vigília como no sono (sonhos). E, finalmente, como a alma
tem a percepção destas imagens e figuras como ideias de objetos. Entenda-se como
figura: o movimento, o tamanho, à distância, os sons, os odores e outras qualidades
semelhantes, bem como aquelas que podem fazer com que se sinta dor, fome, sede,
alegria, tristeza e outras paixões. (TH, pag. 176).

Como ideia, entendamos todas as impressões recebidas pela glândula pineal


através dos órgãos dos sentidos (senso comum) quando na presença de um objeto e,
também por outras formas, entre essas, sem a presença de objetos, que nesse caso é a
imaginação que devemos atribui-las, e a que mais nos interessa; quando essa impressão
é operada ativamente pelo intelecto puro. (TH, pg.177). Nesse ponto (sem a presença de
objetos) precisamos tentar entender, pois a mim é confuso, essa determinada
diferenciação do termo imaginação, pois como sabemos para Descartes imaginar nada
mais do que a contemplação de uma figura (Descartes, 1996, p.22), e esta pode ser
causada diretamente ou não pela apresentação de um objeto aos órgãos sensoriais. Por
outro lado, o autor também usa o termo imaginação para descrever quando sentimos um
objeto sem a presença dele, fazendo que o termo tome um sentido mais amplo do que
contemplar uma imagem.

E o que é imaginar ou sentir perante a presença de um objeto? Respondo: Penso


que seja a percepção pela mente da soma de todas as ações que os órgãos sensoriais irão
imprimir (como veremos mais a frente na explicação detalha do funcionamento
fisiológico) sobre a glândula pineal e nos vapores sutis que nelas operam, entre essas
impressões está à imagem.

Agora, o que seria o imaginar sem a presença de um objeto? Respondo: Nesse


caso, o autor classifica que qualquer ação sobre essa glândula e seus vapores que
produza a percepção do objeto e de suas qualidades, sem de fato essa ação provir dos
órgãos dos sentidos, é uma imaginação. Exemplo: os objetos, as cores, os aromas, os
paladares e os sons, que na ordem: que vejo cheiro degusto e escuto dormindo enquanto
estou sonhando.

Então, penso que podemos entender o conceito de imaginação de uma forma


mais técnica, que é a percepção da imagem impressa na glândula pineal e, outra mais
abrangente que é a percepção de qualquer sentir impresso nessa mesma glândula,
inclusive a imagem, sem a presença de um objeto que as cause.

Supondo, como afirma Descartes, que a alma possa imprimir seu conteúdo
geométrico no órgão cerebral, reflito se essa impressão seria somente sobre os vapores
sutis que habitam o interior da glândula pineal ou se de fato seria impressa uma imagem
em sua superfície, assim como faz os órgãos dos sentidos?

Tendo como aceite que essa ação da alma se daria sobre a superfície da glândula,
imprimindo nela uma imagem, assim como o faz os órgãos sensoriais, necessariamente
teria que haver a saída dos vapores sutis pelos poros abertos por esta impressão e, essa
saída desses vapores obrigatoriamente afetaria outras partes da superfície interna do
cérebro, inclusive causando movimento da glândula. Portanto, será essas afecções no
corpo produziriam, também, tamanho, movimento, textura, cor e outras qualidades
sensíveis, que seriam percebidas como ideias pela alma? Se sim, isso seria um grande
problema para hipótese de uma intelecção pura dos conteúdos extensos, pois como
poderia o intelecto puro impedir que ocorressem essas afeções no corpo para além
daquelas da impressão da imagem na superfície da glândula pineal?

Temos a hipótese na nossa dissertação que o intelecto puro atua de forma livre e
ativa nessa glândula e que nessa operação é gerado um conteúdo totalmente novo para o
intelecto, mas confesso que agora lendo o Tratado do Homem, fico na dúvida da real
dimensão do alcance deste conteúdo novo, se nele conterá ou não elementos de ordem
sensível devido a possível extensão física dessa afecção para além da glândula pineal.

Ainda, seguindo esse raciocínio, ou seja, concordando que haja uma afeção
maior, pergunto: essa operação autônoma da alma sobre a glândula pineal e seus
vapores sutis, também ocasionaria na parte interna do cérebro um efeito memória, assim
como as ocasiona as impressões sensíveis? Se sim, seria possível durante o estado de
sono sonhar com conteúdos matemáticos inatos? Exemplo: sonhar com uma equação
algébrica, uma figura geométrica. Ou ainda ter algum devaneio com ideias extensas
inatas enquanto em estado de vigília (insights)? Essas são questões a serem resolvidas.

Uma das partes mais admirável da leitura deste trecho do livro é em relação à
formação da memória, pois para Descartes esta é fruto de uma ação puramente
mecânica, sendo inclusive a própria memória uma mera condição física. Ora, como
nossas lembranças são compostas de memórias, e supondo que grande parte de nossa
experiência cognitiva é fruto dessas experiências retidas, penso ser licito questionar o
alcance das consequências dessa posição cartesiana, principalmente no que tange a
perda total por parte da alma da percepção das lembranças que esta (alma) acessava
enquanto unida ao corpo, pois ao estar desunida do corpo ela perderia o acesso a essas
memórias. Isso, em minha opinião, derrubaria por si só a ideia de uma alma que retese a
personalidade adquirida durante a existência conjunta com o corpo, o que reafirmaria a
visão cartesiana de que a alma é meramente uma substancia pensante, diferentemente da
ideia da tradição que a via como um ente espiritual dotado por si mesmo de todas as
percepções sensíveis e vegetativas.

Um ponto que nos chama muito atenção na leitura do texto, ainda dentro da
questão da memória, é o fato de que daquilo que se pode ser imaginado em estado de
vigília e sono (tomando a imaginação num sentido mais amplo assim como Descartes) a
imagem com suas qualidades sensíveis, ou ainda aquilo que é produzido pelo sentido
denominado visão, é a mais fácil e a que tem o maior grau de perfeição (nitidez)
enquanto imaginada. Se fecharmos os olhos facilmente de forma quase que perfeita
podemos pintar um quadro mental com determinada paisagem com sua riqueza de
detalhes como movimento, profundidade, cores e outras qualidades sensíveis inerentes à
figura, de modo a parecer que realmente estamos vendo aquilo que imaginamos ver.
Agora, penso que a nós é muito difícil imaginar um som ao ponto de ouvi-lo, um gosto
ao ponto de degustarmos, um aroma ao ponto de sentirmos o cheiro. A partir dessas
considerações, nos perguntamos o motivo disso? Entendemos que é puramente por uma
questão fisiológica, pelo fato de que entre todos os órgãos sensoriais a estrutura ocular,
quando em sua plena funcionalidade, ser aquela que causa a mais potente afecção na
glândula pineal, ou seja, a impressão de uma imagem em sua superfície, com a
consequente repetição desta imagem pelo desdobramento físico na outras partes internas
do cérebro (B), enquanto os demais órgãos sensoriais são dependentes desta impressão
da imagem para serem geradas. Não tem como pensar (imaginar) um calor, um som, um
odor e um tato sem a presença de uma imagem que o justifiquem. Assim, pensamos ser
justo concluir que todo sentir ou imaginar passa obrigatoriamente pela impressão de
uma imagem na glândula pineal, sendo ela a imagem a origem de toda imaginação e
sentir, portanto necessariamente terá prioridade e primazia sobre as demais na
composição da memória.

Fisiologia da Produção das Figuras, do Movimento e da Memória.

O autor situa a glândula pineal (H) como sede principal da alma no corpo, e,
obviamente por esse motivo, o local no qual operam a imaginação e os sentidos. Nesse
sentido nossa atenção de estudo estará particularmente voltada à localização, a
composição, ao preenchimento e ao movimento desta pequena glândula, pois é nela que
se centralizam quase todas as operações que permitem a alma sentir e imaginar.

Nota: Sabemos que no art. 34 do Tratado das Paixões, entre outros, Descartes
afirma categoricamente que essa glândula é a sede principal da alma, ou seja, o
local onde as impressões do corpo e do mundo exterior podem ser percebidas
pela alma, e, também, um local onde a alma pode operar de forma inteiramente
ativa suas ideias inatas das coisas extensas com suas propriedades matemáticas e
geométricas.
Vapores Sutis

Antes de iniciarmos uma análise mais especifica da fisiologia mecanicista cartesiana


é necessário explicar o que em nossa opinião é o elemento central desse processo que é
o sangue na forma de vapor sutil, pois são esses vapores por meio de sua agitação,
composição e movimento dentro da glândula pineal e depois no seu percorrer pelos
nervos e músculos é que vão proporcionar tanto a alma perceber os estados e as
afecções corporais quanto ao corpo realizar as vontades da alma. Os vapores sutis por
ser a parte mais sutil da matéria permitem, via um processo puramente mecanicista,
receber as impressões dos objetos externos, da memória e dos demais sentimentos
corporais e transmiti-los a alma, assim também o inverso, receber as impressões da alma
e transmiti-las ao corpo.

No Tratado do Homem, Descarte, descreve com detalhe como se formam esses


vapores a partir de um processo de destilação que se inicia com a fervura do sangue
dentro do coração, o que causa séries de inflações e dilatações nesse órgão, impelindo
esse vapor sanguíneo para uma circularidade permanente no corpo, de forma a nutrir os
órgãos, auxiliarem na digestão, formar a saliva, o suor entre outras coisas, até serem
novamente resfriados no pulmão e retornarem em forma liquida novamente ao coração
e, iniciar novamente todo esse ciclo perpétuo (Essa é uma discrição bastante simplista
frente a um processo bem mais elaborado, complexo e sofisticado).

Como nossa intenção é descrever aos vapores sutis vou concentrar mais
detalhadamente nessa explicação. Descartes, afirma que as partes mais vivas, mais
fortes e sutis desses vapores sanguíneos vão dar nas concavidades internas do cérebro
através de artérias que interligam diretamente quase em linha reta essa parte do corpo ao
coração, pois entre todas as ramificações arteriais conectadas ao coração, essas são as
que mais favorecem, por serem as mais retas, a continuidade da agitação e do
movimento desses vapores. Em outras palavras, chega ao cérebro o vapor sanguíneo
com mais agitação e força de movimento do que os demais que seguem outros
caminhos pelo corpo. O poder da agitação e da força de movimento presente nestes
vapores permite que eles penetrem os ramos mais estreitos existentes ao final dessas
artérias, isso já nas concavidades internas do cérebro, promovendo uma primeira
retenção dos elementos materiais mais fracos e maiores, que servirão para nutrir e
conservar a substancia cerebral, as menores partículas e as mais agitadas com força de
movimento se aglomeram junto à glândula pineal, que está situada mais ou menos no
centro do cérebro, de fronte a entrada de suas concavidades. Nesse lugar, há minúsculas
passagens que dão acesso a parte interna desta glândula, por onde, devido à agitação e a
força de movimento impressa inicialmente pela fervura no coração, escoa as partes mais
vivas e sutis que compõe o sangue, ou seja, praticamente um vento ou uma chama muito
sutil e viva, algo quase imaterial, mas que não o é, pois esse vento ou vapor sutil
mantém o poder e a força de atuar, ao sair desta glândula, sobre os filetes que compõem
os nervos e músculos, imprimindo neles determinadas afeções que vão dar ao corpo os
movimentos.

A Impressão das Figuras e Imagens através dos órgãos sensoriais:

A produção da imagem na glândula pineal (H) se dá através da luz refletida nos


objetos que toca a parte externa convexa dos olhos que vai invertê-la de forma que esses
raios toquem o fundo côncavo dos olhos (nervos óticos) provocando uma espécie de
retração e contração nos filetes (suponho que sejam milhões) que compõem a estrutura
interna desse órgão sensorial, traçando assim uma imagem em cada olho (como um
acender e apagar de um pixel de um monitor de alta resolução).

Como esses filetes, que compõem o fundo do olho, são muitos sensíveis e se
conectam com a rede que se estende até a estrutura interna do cérebro (A), acaba por
replicar essas retrações e contrações até os poros da sua outra extremidade, parte essa
que fica em cada concavidade interna do cérebro, que, logicamente é côncava, onde
entre elas (concavidades) está suspensa de forma centralizada a glândula pineal, fazendo
com que esses poros se abram ou se fechem (traçando a figura na superfície interna do
cérebro) como se fossem tubos que continuam a irradiar a luz, estimulando, assim, de
forma equitativa (devido à inversão de refração) a abertura dos poros da própria
superfície da glândula pineal, traçando em sua superfície uma única imagem do objeto
(similar a uma tela de serigrafia), pela qual passa a verter por esses determinados e
específicos poros os vapores sutis.
Como a sede da alma é a glândula pineal, o movimento desses “vapores sutis” que
habitam seu interior (que ora são liberados ora bloqueados) pelos poros abertos e
fechados pela irradiação recebida dos filetes da superfície interna do cérebro faz com
que através dessas aberturas e fechamentos dos poros se imprima na superfície da
glândula a imagem que dão a alma à ideia, enquanto estiver unida ao corpo, das figuras
e das imagens quando ela sente ou imagina algum objeto.

Então, temos três imagens traçadas, uma nos olhos, outra na superfície das
cavidades internas do cérebro e a mais importante, na superfície da glândula pineal.
Digo isso, porque veremos mais adiante que as figuras impressas na superfície interna
do cérebro vai ter papel relevante na composição da memória.

A Impressão das Figuras e Imagens através da memória:

Em uma redução simplista podemos dizer que a memória é uma pré-disposição


física associativa de repetição dos movimentos gerados em determinada parte interna do
cérebro (B), anteriormente causados pela ação dos órgãos sensoriais e pelas ideias
impressas nos vapores sutis pela alma. Associativa devido ao fato das ações dos órgãos
sensoriais serem múltiplas, e quando na presença de um único estimulo sensorial, essa
pré-disposição ter o poder de desencadear outros não presentes naquela determina ação
em curso. A seguir vamos buscar a explicação desse processo.
Depois de receberem as impressões das ideias provenientes das ações sensoriais,
ou das ações do intelecto, os vapores sutis ao saírem da glândula pineal alargam os
filetes que compõem essa parte do cérebro (B), dobrando e dispondo de muitas maneiras
diferentes esses filetes, promovendo assim, diversas aberturas dos tubos por onde esses
vapores passam. Como vimos anteriormente, imprimindo também nessa parte interna do
cérebro (B) as mesmas figuras impressas na superfície da glândula pineal. Através da
repetição constante desse processo cria-se uma disposição nesses filetes de repetirem o
movimento de abertura de determinados poros somente por associação.

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