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Aula 9 - A fé e as faculdades humanas

segunda-feira, 16 de agosto de 2021 13:25

I - Sobre a distinção de espírito e alma:

São Paulo fala em espírito, alma e corpo, mas desde o catecismo de


Trento não se faz distinção entre alma e espírito, se diz que é a mesma
coisa. É fundamental redescobrir essa questão que nos santos padres
está mais clara. Eles não fazem essa confusão, especialmente os gregos.
Na tradição latina, Santo Agostinho não fala do espírito, fala no “ápice
na alma”. Ele faz a distinção, mas não usa outra palavra. E ele é do
século V, então, temos que reconhecer que na tradição latina tem alguns
problemas — às vezes, de terminologia e, às vezes, de cosmovisão —
que é preciso sanar.

II - Sobre teatro:

Existe uma perda gradual do sentido da forma e, portanto, de uma


distinção entre a obra e o artista. Acham que a obra deve dizer aquilo
que o artista pensa, mas aí, o teatro acabou. Está uma confusão muito
grande, estão discutindo problemas muito pequenos. Os temas que, em
geral, os grandes artistas nos colocam, estão infinitamente acima desses
problemas mais circunstanciais, pessoais e particulares, sejam raciais,
sejam de gênero.

III - A função da memória em manter questões essenciais no horizonte


de consciência:

Dialogar não é só uma disposição, porque o horizonte dos interlocutores


tem que ser semelhante, senão a pessoa está vendo determinadas
realidades que estão fora do horizonte da maioria das outras pessoas. O
que não está na sua memória, não existe para você. Se você esquece que
você é mortal, se isso saiu da sua memória, você se comporta como se a
morte não existisse. Uma das funções da meditação diária — e que pode
ser a mesma da arte — é você lembrar de uma coisa essencial que não
pode sair da sua memória. Se você pegar tratados de oração católicos, os
temas para meditação são os chamados Novíssimos: morte, inferno, céu,
amor, providência divina... coisas que a gente tem que lembrar o tempo
todo, até que fique de tal maneira impresso na sua memória que você
não esquece mais. De certa forma, um dos aspectos do progresso na vida
de oração é você imprimir determinadas verdades na sua memória de
tal forma que elas se tornam parte do seu ser. Os antigos comparavam a
memória com a cera em que você imprime um selo: você deve
aprofundar a impressão até chegar ao ponto de perceber que essa marca
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aprofundar a impressão até chegar ao ponto de perceber que essa marca
não sai, já faz parte da sua existência.

IV - Sobre os dois tipos de memória: psíquica e espiritual:

Eles também faziam uma distinção entre duas memórias que nós temos:
a memória psíquica e a memória espiritual. A memória espiritual é o que
Aristóteles chama de Intelecto Possível. Já o Intelecto Agente, é ativo.
Quando você capta — abstrai — uma ideia, quem faz esse papel é o
Intelecto Agente. Ele atualiza essa ideia no Intelecto Possível. Ou seja, o
Intelecto Possível tem, em potência, todas as ideias. De certa forma, ele é
uma participação na inteligência divina, mas em potência. E é isso que
eu estou chamando aqui de memória espiritual. Quando você entendeu
uma coisa e ela se imprimiu no seu intelecto — se tornou uma verdade
evidente para você —, essa seria uma memória espiritual. Quando você
capta uma idéia, na inteligência essa idéia não está desconectada de
todas as outras idéias que já estão atualizadas no Intelecto Possível. Ela
se integra no sistema de idéias, na matriz. Na inteligência você tem um
universo espiritual. Quando você capta uma idéia, ela se integra nesse
universo espiritual. E uma idéia que é atualizada no Intelecto Possível
sempre pode ser aprofundada, ela é como se fosse uma idéia
esquemática que você está preenchendo com novas impressões
intelectuais. De maneira que aquilo vai ficando mais complexo e mais
próximo da realidade concreta, que nunca é puramente abstrata,
puramente ideal. Você nunca capta a idéia de uma coisa em toda a sua
complexidade. Você pode criar analogias para te lembrar coisas, por
exemplo, da própria morte, que é uma realidade que seguidamente sai
do nosso horizonte de consciência. O fato de você, na meditação,
imprimir na sua memória psíquica imagens que te recordam da morte, é
uma maneira de você fazer a ponte com essa intelecção mais profunda
que você tem. Nós não ficamos no plano da inteligência pura. Os santos
relatam experiências de êxtase em que eles saem de corpo e psiquismo e
têm visões sem imagem. Mas nem eles ficam lá muito tempo. Eles
retornam ao dia a dia, mesmo guardando a lembrança desse momento.
Diz São Bernardo que, quando ele retorna à vida humana, isto se reveste
de imagem (já psíquica) e se imprime na memória psíquica. A música
litúrgica deveria funcionar assim. Você está fazendo outra coisa e,
quando percebe, tem uma melodia, algo, em você, está cantando.
Imagem não é só visual, é tudo aquilo que está na nossa memória
psíquica, tudo aquilo que passou pelos sentidos imprimiu-se na nossa
memória.

V - Sobre Tomás de Aquino e o governo do mundo corporal através


dos anjos e dos corpos celestes:

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Apesar de Santo Tomás não se adentrar muito nesse assunto, ele
subentendia algo que já era conhecido em astrologia, que é que o mundo
corporal, aqui na terra, era chamado de mundo sublunar (embaixo da
lua). Na cosmovisão medieval, além da lua há movimento local, mas as
coisas são mais estáveis. O mundo das estrelas, dos astros, das estrelas
fixas é visto como um mundo que não muda: elas estão encravadas e
têm sempre a mesma configuração. Sabemos, hoje, que essa
configuração muda ao longo de muitos séculos - muda muito pouco,
mas há mudança -, mas como se sabe, estes dados podem perturbar a
visão que é própria da percepção humana: numa vida humana, o céu
das estrelas fixas não se altera, o que se altera é o movimento dos astros:
planetas, sol e lua. E esse movimento, segundo essa visão, é só
movimento local, não há transformação, ou seja, Marte continua sempre
marte, ele não amadurece, não envelhece, não está submetido à geração,
à corrupção, que são fenômenos que se dão aqui na Terra, no mundo
sublunar.

No artigo 6 (De Veritate), Santo Tomás pergunta se os animais brutos e


seus atos estão submetidos à providência divina, e sim, estão, mas
através da mediação dos anjos e dos corpos celestes. As criaturas
corporais são governadas pela providência divina mediante a criatura
angélica.

E no artigo 10, se pergunta se os atos humanos são governados pela


divina providência mediante os corpos celestes, e diz:

Respondo dizendo que para chegarmos à verdade desta questão


importa saber primeiro o que é dito serem atos humanos. São ditos
propriamente atos humanos aqueles dos quais o próprio homem é
senhor. Ora, o homem é senhor dos seus atos pela vontade ou pelo
livre arbítrio. Esta questão versa, portanto, acerca dos atos da
vontade e do livre arbítrio. De fato, há alguns atos no homem que
não estão submetidos ao império da vontade, como os atos da
potência nutritiva e generativa. Estes atos estão submetidos às
virtudes dos corpos celestes do mesmo modo como os outros atos
corporais.

Quanto aos atos humanos, porém, houve muitos erros.

(A) Alguns, de fato, colocaram os atos humanos não pertencerem à


divina providência nem serem reduzidos a nenhuma causa que não
seja a divina providência. E esta parece ter sido a posição de Túlio,
como diz S. Agostinho no Cidade de Deus. Isto, porém, não pode
ser, pois a vontade humana é um movente movido, como se

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ser, pois a vontade humana é um movente movido, como se
demonstra no De Anima, sendo, portanto, necessário reduzir o seu
ato a algum primeiro princípio que seja movente não movido.

(B) Outros, por este motivo, reduziram todos os atos da vontade aos
corpos celestes, colocando ser a mesma coisa em nós o sentido e o
intelecto e, por conseguinte, serem corporais todas as virtudes da
alma, estando as mesmas, deste modo, submetidas às ações dos
corpos celestes. Esta posição, no entanto, foi destruída pelo Filósofo
no III De Anima, mostrando que o intelecto é uma virtude imaterial
e que a sua ação não é corporal mas, conforme encontra-se escrito
no XVI De Animalibus, "os princípios dos quais as ações são sem o
corpo, os próprios princípios são sem o corpo", de onde que não é
possível que as ações do intelecto e da vontade, consideradas em si
mesmas, sejam reduzidas a princípios materiais.

(C) Avicenna (diz) em sua Metafísica que assim como o homem é


composto de alma e corpo, assim também o são os corpos celestes, e
assim como as ações e os movimentos do corpo humano são
reduzidos aos corpos celestes, assim também as ações da alma são
reduzidas às almas celestes como aos seus princípios, de tal modo
que toda a vontade que há em nós é causada pela vontade da alma
celeste. Esta colocação pode ser conveniente com a opinião que ele
tinha sobre o fim do homem, que Avicenna dizia estar na união da
alma à alma ou a inteligência celeste. Como a perfeição da vontade é
o fim e o bem, que é o seu objeto assim como o visível é o objeto da
vista, é necessário que aquilo que age na vontade tenha também
razão de fim, porque não age segundo a causalidade eficiente senão
na medida em que imprime a sua forma no susceptível.

(D) Segundo, porém, a sentença da fé, o próprio Deus é, e de modo


imediato, o fim da vida humana. Somos, de fato, beatificados pela
fruição de sua visão, e por isso somente Ele pode imprimir na nossa
vontade.

É necessário (...) que a ordem dos móveis corresponda à ordem dos


moventes. Ora, na ordem ao fim, ao qual diz respeito a providência,
o que em nós se encontra primeiro é a vontade, à qual pertence por
primeiro a razão de bem e de fim, e que usa de todas as coisas que
estão em nós como instrumentos para a consecução do fim embora,
em relação a algo, a inteligência tenha precedência sobre a vontade.
Mais próximo à vontade está o intelecto, e mais remotas estão as
forças corporais.

Por isso o próprio Deus, que é simplesmente considerado o primeiro


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Por isso o próprio Deus, que é simplesmente considerado o primeiro
providente, e somente Ele, pode imprimir em nossa vontade. O
anjo, porém, que a Ele se segue na ordem das causas, imprime no
nosso intelecto na medida em que pelos anjos somos iluminados,
purgados e aperfeiçoados. Os corpos celestes, que são agentes
inferiores, somente podem imprimir nas forças sensórias e em
outras unidas aos órgãos. Na medida, porém, em que o movimento
de uma potência da alma redunda em outra, ocorre que a impressão
dos corpos celestes redunda no intelecto como que por acidente e,
posteriormente, na vontade. Semelhantemente, a impressão do anjo
redunda na vontade por acidente. Todavia, quanto a isto, diversa é a
disposição do intelecto e da vontade para com as potências
sensitivas. O intelecto, de fato, é movido naturalmente pela potência
sensitiva apreensiva, pelo modo pelo qual o objeto move a potência,
porque a fantasia está para o intelecto assim como a cor está para a
vista, conforme está dito no III De Anima.

Por isto, perturbada a potência sensitiva interior, necessariamente é


perturbado o intelecto, assim como vemos que, lesado o órgão da
fantasia, necessariamente impede-se a ação do intelecto. Segundo
este modo a ação ou impressão do corpo celeste pode redundar no
intelecto como que por via de necessidade; por acidente, todavia, na
medida em que esta ação, considerada em si mesma, é sobre os
corpos. E digo como que por via de necessidade, a não ser que haja
uma disposição contrária por parte do móvel, como o apetite
sensitivo, que não é naturalmente motivo da vontade, mas
inversamente, pois o apetite superior move o apetite inferior assim
como a esfera move a esfera, conforme é explicado no III De Anima.
Assim, embora o apetite inferior seja perturbado por alguma paixão
da ira ou da concupiscência, não é necessário que a vontade seja
perturbada; ao contrário, ela possui a potência de repelir tal
perturbação, conforme se diz no Gênesis: "Sob ti estará o teu apetite,
e tu o dominarás". Gen. 4, 7 Nenhuma necessidade, portanto, é
induzida por parte dos corpos celestes nos atos humanos (...) mas
apenas a inclinação, a qual também a vontade pode repelir pela
virtude adquirida ou infusa.

Santo Tomás está dizendo que, primeiramente, a vontade humana não é


um motor imóvel; motor imóvel é só Deus. O motor é algo que move e o
único motor que não é movido por nada é o próprio Deus. Todos os
outros moventes são movidos, e por sua vez a vontade humana é um
movente movido. A vontade é movida quando a inteligência apreende
certo bem, e se move em direção a ele. Motor, no sentido que Tomás
isso, não é algo enérgico que determino o ato ou alimento o ato, mas diz
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isso, não é algo enérgico que determino o ato ou alimento o ato, mas diz
mais respeito pela causa final, pois a causa final move todas as outras
causas. Aristóteles afirmava que tudo o que existe tem quatro causas
que concorrem para a existência de qualquer coisa no universo concreto:
causa eficiente; causa material; causa formal; e causa final. Aplicando
isso à poesia, a matéria são as palavras; a forma é o poema, o que
organiza certas palavras num todo; a causa eficiente é o poeta; a causa
final é a finalidade daquela mesma coisa,.

Portanto, pelo visto, dá a se concluir que a vontade tem algo de racional.


O bem que a vontade busca é um bem universal, mas o bem do
concupiscível é particular. E aqui reside a diferença entre desejo e
vontade. E esse desejo, diz Tomás de Aquino, é corporal, portanto,
poderia ser regido pelo movimento cósmico. Muitas vezes este desejo se
dá por conta de um objeto apreendido, de modo que se não tivesse
apreendido o objeto, não teria o desejado. Quando Tomás de Aquino diz
que é "necessário reduzir o seu ato a algum primeiro princípio que seja
movente não movido”, esse primeiro movente não movido é Deus, que é
o único que move e não é movido, porque ele é o próprio bem, não tem
nenhum bem fora dele. Ele já é plenamente ele mesmo, ele é o bem dos
bens e, em última instância, todos os movimentos cósmicos têm como
causa não só eficiente (que é a criação) mas como causa final o próprio
Deus. Tudo o que fazemos deve remontar, portanto, até esse Bem que
tudo move e não é movido.

Ainda nessa diferenciação entre desejo e vontade, a nossa inteligência


não é perfeita, e por isso elegemos males como se fossem bens, apenas
pelo seu aspecto de bem. Normalmente tal aspecto de bem é apenas
concupiscível e raramente é um bem de orgulho satânico do gênero "non
serviam". E por isso toda a vida ascética, toda a questão moral está entre
vontade, inteligência e paixões humanas, porque as paixões do
concupiscível não são necessariamente negativas ou pecaminosas, elas
em si mesmas são neutras, moralmente.

Percebendo portanto que a vontade a inteligência não estão no corpo,


isto é, são incorpóreas, conclui-se que o movimento dos corpos não
podem mover o intelecto ou a vontade, porque eles são imateriais e não
é possível que algo material move uma coisa imaterial. O único ser que
pode mover diretamente a vontade humana é o próprio Deus - nem os
anjos podem fazer de tal modo. Isto é, Deus move a vontade quanto a
causa eficiente, não quanto a causa final, do contrário, não haveria livre
arbítrio. Porém, os corpos celestes e os anjos podem mover os nossos
corpos. Ora, nós conhecemos através dos sentidos, e o que move o corpo
moveria a inteligência e, acidentalmente, moveria a vontade. Move
como influencia, não diretamente. A influência do movimento cósmico
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como influencia, não diretamente. A influência do movimento cósmico
sobre a vontade depende do quanto se está instalado no plano do
espírito. Quanto mais distante estiver do reino da inteligência e da
vontade, mais se é influenciado pelo movimento cósmico. Não obstante,
assim é a inspiração angélica, de certo modo, pois apenas o anjo nada
mais faz que criar em nós uma imagem através da qual compreendemos
algo com a luz da inteligência. A apreensão de um objeto corporal gera
no intelecto uma ideia, ora, o intelecto depende do mundo corpóreo para
entender, já a verdade deve imperar sobre o organismo psicofísico para
orientá-lo no mundo corpóreo e não ser dependente do mundo material.

Na medida em que o homem se volta mais para o mundo corpóreo, mais


é governado pelo movimento dos corpos, e na medida em que ele se
volta para Deus, mais é governado pelo próprio Deus, e escapa do
movimento dos corpos. Um homem animalizado e sensitivo em demasia
vive somente a partir dos movimentos do corpo, onde ele mesmo se
coloca sob o governo do reino dos corpos, por uma escolha da sua
própria vontade. À medida que ele se volta mais para o próprio Deus,
ele vai escapando, sendo imune nos seus atos propriamente humanos
dos movimentos corpóreos. Deus governa os animais como espécie e
não como indivíduos, portanto, se o homem se nivela a um nível
puramente animal, passa a ser governado como espécie e não como
indivíduo.

VI - Sobre a Fé

A fé é a primeira virtude justamente porque sem ela nada é possível


conhecer, nem ver e, disso procede o adágio: não se ama o que não se
conhece. De alguma maneira se vê algo que é invisível; vê com a
inteligência algo que a alma não pode ver. O núcleo da fé é a própria,
pedir mais fé, para que Deus aja no intelecto e na vontade, por extensão.
O ato de fé é, portanto, um ato de aberta para a ação divina no nosso
próprio centro; isto é, Deus age com sutiliza e silêncio. O ato de fé é
correto se aos poucos o individuo muda sem saber como. Deus está nos
pondo na existência, Ele se encontra no centro do nosso espírito. Deus,
como diz Santo Agostinho, "é mais eu do que eu mesmo".

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