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PSICOGÊNESE DAS DOENÇAS MENTAIS

Dr. Ajax Perez Salvador

Curso de:

Psicologia Junguiana

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PSICOGÊNESE DAS DOENÇAS MENTAIS
Apostila elaborada por Ajax Perez Salvador1

A “psicogênese significa que a causa essencial de uma neurose, ou a


condição em que ela irrompe é de natureza psíquica. ” (JUNG, 1999, §496); o
dogma materialista fundado na psiquiatria diz: “As doenças mentais são doenças
cerebrais” (JUNG, 1999, §467).
Pode-se retomar o campo desta problematização e perguntar o que estas divisões
de gêneses significam na psique? Desloca-se da “psicogênese” como questão para os
olhares, as perspectivas, estilos de consciência, fantasias dominantes que descrevem o
que se apresenta como “psicogênese ou neurogênese”. “Psicogênese” ou neurogênese
como efeito de um certo condicionamento psíquico que leva os sujeitos e a sociedade a
interpretar e vivê-los desta ou daquela maneira. Pode-se então discutir como o tema
aparece para diversos pontos de vista. Quais as metáforas básicas que conduzem cada
um dos olhares? Quais os padrões arquetípicos, estilos de consciência envolvidos na
polêmica entre psicogênese e neurogênese e que fantasia mítica está sendo encenada em
cada versão?
Na conferência de 1911 Jung exemplifica que, ainda que se admitisse uma
destruição de células (cerebrais), isso teria ocorrido secundariamente à vivência
empírica (choque emocional). Não é descartado que poderiam haver casos em que os
processos orgânicos fossem primários e os distúrbios psíquicos secundários (JUNG,
1999, §493). Em 1928 afirma que “as causas psíquicas das neuroses se apresentam hoje
de maneira inquestionável” (JUNG, 1999, §497); haveriam doenças com a demência
senil e a paralisia progressiva que seriam, indubitavelmente, sintomas da destruição
orgânica do cérebro. Porem em outras seria obscuro e questionável. Em 1958 segue
discutindo como “hipótese explicativa um agente nocivo específico, uma toxina liberada
pelo afeto excessivo (...)” (JUNG, 1999, §581); levanta a possibilidade no processo
destrutivo de que a “toxina específica” seja uma “(...) espécie de defesa biológica
distorcida. ” (JUNG, 1999, §583).
Jung refuta o olhar que considera o acontecer psíquico como epifenômeno de
situações funcionais mais profundas e rechaça pensar que “ a psique é uma secreção do
cérebro” (JUNG, 2013, §10). Ele exclui das reflexões a “questão de saber se o processo

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Utilizada para aula no curso de pós-graduação do IJEP – e-mail: apersal@uol.com.br

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psíquico de energia existe ao lado do processo físico ou está incluído nele. A meu ver
não sabemos absolutamente nada a respeito. ” (JUNG, 2013, §33). Entretanto em 1935
afirma também que o “(...) problema do paralelo psicofísico, ponto extremamente
controvertido, sem resposta, pois está fora do alcance do conhecimento humano, (...) as
duas coisas acontecem juntas, de maneira peculiar, e são, creio eu, dois aspectos
diferentes somente para nossa inteligência e não na realidade. ” (JUNG,1983, §136).
Chega a afirmar que “(...) na realidade absoluta não há uma tal coisa como corpo e
mente, mas corpo e mente ou alma são o mesmo, a mesma vida, sujeitos às mesmas
leis, e o que o corpo faz está acontecendo na mente. (JUNG, 1995, §52) negritos meus.
Jung termina o texto de 1958 afirmando que “a natureza não poderia existir sem
a sua substância, mas certamente também não existiria se não fosse refletida na psique.
” (JUNG, 1999, §584). Esta questão da substância recoloca as diferenças entre
perspectivas mecanicista e energética. O ponto de vista mecanicista “é meramente
causal, e compreende o fenômeno como sendo o efeito resultante de uma causa, no
sentido que as substâncias imutáveis alteram as relações de umas para com as outras
segundo leis fixas. ” (JUNG, Energia Psíquica, 2013, §2) negritos meus. O ponto de
vista energético é essencialmente finalista2 (sem prefixação de um fim a ser alcançado),
entende o fenómeno partindo do efeito para a causa; na “raiz das mutações ocorridas
nos fenômenos há uma energia que se mantém constante, produzindo, entropicamente,
um estado de equilíbrio geral no seio das mutações. ” (JUNG, Energia Psíquica, 2013,
§3). O equilíbrio geral no seio das mudanças e transformações constantes dos
fenômenos seria produzido por um efeito entrópico (de indeterminação ou de
dissolução) de tudo que parece determinado. Este processo teria uma direção
obedecendo, invariavelmente a diferença de potencial. “A ideia de energia não é de
uma substância. ” (JUNG, Energia Psíquica, 2013, §3) negritos meus. A energia é um
conceito abstraído das relações de movimento; a sua base são as relações e não as
substancias3. Refere que “a empatia conduz ao ponto de vista mecanicista, e a abstração

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Ou seja, teria um sentido como na causa final aristotélica – Causas da taça sacrificial: causa material a
prata; causa formal a forma de taça; causa eficiente o artífice que deu a matéria prata a forma de taça e
cuja finalidade é ser usada num ritual sacrificial. A causa final seria o sentido da taça e não uma
prefixação. O fim está presente desde o começo e por isso não é teleológico.
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“A Psicologia Analítica é que foi obrigada a levar em conta o ponto de vista energético, pois a colocação
causal-mecanicista da Psicanálise de Freud não é suficiente para fazer justiça à realidade dos valores
psicológicos. O valor requer, para sua explicação, um conceito quantitativo, pois um conceito
qualitativo como o da sexualidade, por ex., jamais poderá substituí-lo. Um conceito qualitativo, pelo
contrário, designa sempre uma relação de intensidade e jamais uma substância ou um objeto. Um
conceito qualitativo que não designe uma substância ou coisa ou um fato é uma exceção mais ou

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a um modo de ver energético. As duas orientações tendem a cometer o erro de
hipostasiar seus princípios. ” (JUNG, Energia Psíquica, 2013, §3). Para o ponto de vista
mecanicista a energia adere a substância, para o ponto de vista energético “a substância
nada mais é do que a expressão ou sinal de um sistema de energia. ” (JUNG, Energia
Psíquica, 2013, §41). Entretanto “esta antinomia (mecanicista e energética) só parece
insolúvel enquanto não soubermos ao modo de ver as coisas correspondem atitudes
psicológicas. ” (JUNG, Energia Psíquica, 2013, §41).
Estes trechos extraídos do texto Junguiano podem levar a problematizar que o
que sustenta o debate entre gênese psíquica e orgânica das doenças mentais seriam duas
atitudes psicológicas diferentes? A consciência poderia entrar em cisão e embate entre
perspectivas diferentes? De um lado a visão mecanicista e de outro a energética? Estas
duas visões poderiam ainda aparecerem mais polarizadas pela dominação unilateral de
uma das duas formas de pensar que Jung fala em “Símbolos da Transformação”
(JUNG,2008) como as formas de pensar: dirigido e fantasia?
O primeiro (pensar dirigido) trabalha com a comunicação, com elementos
linguísticos, é trabalhoso e cansativo; o segundo (sonhar ou fantasiar) trabalha
sem esforço, por assim dizer espontaneamente, com conteúdos encontrados
prontos e é dirigido por motivos inconscientes. (JUNG, 2008, p.15) negritos
meus

O primeiro (pensar dirigido) produz aquisições novas, adaptações, imita a


realidade e procura agir sobre ela. O último (pensamento fantasia) afasta-se da
realidade, liberta tendências subjetivas e é improdutivo com relação à
adaptação. (JUNG, 2008, p.16) negritos meus

No entanto, na nota de rodapé diz Jung que se é verdade que o fantasiar de início
é imediatamente “improdutivo” ou inadequado e por isso inútil, sob o ponto de vista da
aplicação prática, a longo prazo, justamente a fantasia despreocupada revela forças e
conteúdos criativos, exatamente como nos sonhos. Pode-se dizer como Samuels que o
pensamento fantasia é metafórico, simbólico, imaginativo (SAMUELS & col., 1988)
negritos meus.
A forma de pensar dirigida seria aquela em que imagens, imitando coisas na
mente, se sucedem em ordem causal rígida. Não seriam nada além de um processo de
assimilação psíquica.
Nosso pensamento dirigido ou lógico a rigor é um pensamento da realidade, (...)
imitamos sucessão de coisas objetivas, reais, de modo que as imagens em nossa

menos arbitrária, e a este devo acrescentar o conceito qualitativo e hipostasiado de energia. ”


(JUNG, 2013, §51) negritos meus

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mente se sucedem na mesma ordem causal rígida (...) denominamos este tipo de
pensamento com atenção dirigida. (...) o pensamento dirigido que,
biologicamente falando, nada mais é senão que um processo de assimilação
psíquica. (JUNG, 2008, p.10)

Pode-se entender que o que parece fato “real” e “objetivo” é o que foi
assimilado pela psique e se organizou num estilo linear de ordem causal; aquilo que foi
submetido às regras da linguagem e o que se encaixa nos conceitos linguísticos.
(...) se observarmos nosso pensamento bem de perto e acompanharmos uma
linha de pensamento intensivo, por exemplo a solução de um problema difícil,
percebemos que pensamos em palavras (...) a matéria com que pensamos é a
linguagem e o conceito linguístico. (...) única finalidade a comunicação.
Enquanto pensamos de modo dirigido, pensamos para outros e falamos para
outros. (JUNG, 2008, p. 10)

E o que acontece quando não se pensa de modo dirigido? Se “não mais


obrigamos nossos pensamentos a seguir determinada linha, (...)” (JUNG, 2008, p.17).
Pode-se falar de um “pensamento não dirigido ou apenas associativo” (JUNG, 2008,
p.17) como uma série de imagens em que uma leva a outra.
Aqui termina o pensamento em forma de linguagem, imagem segue imagem,
sensação a sensação, mais e mais ousa manifestar-se uma tendência que cria e
coloca as coisas não como elas são, mas como gostaríamos que fossem. (...) a
linguagem corrente chama este pensar de “sonhar” (...) (JUNG, 2008, p.15)

Colocar-se-ia de um lado a psicogênese alinhada com processos em analogia


com a vida psíquica em geral ligada com uma ideia de liberdade pela possibilidade de
transformação e mudanças dos sujeitos na história, cultura, sociedade etc. e de outro
lado os eventos sem possibilidade de transformação pois previamente determinados pela
natureza e seus correlatos como cérebro, biologia, células, neurotransmissores etc.
Pode-se desenhar mitos explicativos que colocariam assim de um lado a fantasia
da psicogênese onde a psique seria uma “substância” livre das determinações da
natureza, cultura, história, tradição (processos de socialização em geral) e de outro a
fantasia da neurogênese ou da gênese orgânica onde os sintomas seriam resultados de
estímulos patológicos acionados por processos celulares do córtex cerebral.
Um correlato possível pode ser traçado aproximando as fantasias explicativas da
separação psicogênese e neurogênese vinculando-a a divisão histórica entre uma visão
que valora a potência cognitiva da semelhança e da analogia e outra onde o valor está no
saber por unidade/identidade e diferenças.

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Se por um lado, um sujeito pode ser conduzido pelo pensamento dirigido,
dominado pela linguagem ou pelos conceitos linguísticos, visando o que é comum4 com
algum “outro” ou “outros”; por outro pode ser conduzido, como num sonho, por
associações organizadas em padrões complexos constituídos de forma inconsciente.
Para Jung as semelhanças e analogias podem ser vistas como um “(...) fator
significativo, instintivo que é a libido de parentesco. ” (JUNG, 1978, p.98). Haveria
sempre “o perigo da “afinidade” com projeções enganosas e seu impulso de assimilar
objeto (...) isto é familiarizá-lo, a fim de realizar a oculta situação incestuosa, a qual
parece tanto mais atrativa e fascinante quanto menos a compreende” (JUNG, 1978,
p.104). Os complexos, ao funcionar automaticamente, não precisariam de esforço maior
e podem parecer mais “espontâneos”; eles criam e colocam as coisas como gostariam
que fossem para eles.
Ter-se-ia colocado uma tensão entre um estilo que assimila, domina e organiza
de forma linear e linguística as experiências no mundo e outra que revela forças e
conteúdos que “via de regra nem podem ser reconhecidos de outra forma, a não ser
justamente através do pensamento passivo, associativo, fantástico. ” (JUNG, 2008, p.16,
nota 22). Ou seja, haveriam experiências que precisariam da unificação e outras que só
se pode ter acesso através do pensamento associativo ou fantasia. Seria preciso mais do
que um único estilo de consciência para que não se tivesse a dominação permanente de
um único estilo ou um complexo insuperável conduzido por um estilo apenas. As duas
formas de pensamento dirigido e pensamento fantasia são importantes para que uma não
domine unilateralmente a consciência.
Pode-se entender a oposição entre “psicogênese e neurogênese” ou
“psicogênese e organogênese” como uma negação determinada onde um termo se
define ou se determina através do outro; não apenas como o limite do outro, mas o outro
como momento interno de sua própria determinação5. Toda determinação seria no fundo
uma negação pois nunca estaria simplesmente em relação consigo mesmo. A superação
se daria não pela afirmação de um dos polos em oposição, nem pela tentativa de
defender ou atacar cada um dos polos, mas indo através destes. Acompanhando as

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Linguagem como comunicação o que é comum. Sustentado em reflexões como as de Nietzsche
(NIETZSCHE, 1978a §354) que faz pensar que o singularmente vivido é incomunicável. O que é
experienciado é transformado num som – palavra - nuca é exatamente o que é vivido. Por isso a
comunicação é algo da ordem do comum, do que é rebanho.
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“Os extremos nada são em si, segundo esses dois lados; mas ao contrário, esses lados em que deveria
subsistir sua essência diferente, são apenas momentos evanescentes – uma passagem imediata de cada
lado para o seu oposto. ” (HEGEL, Fenomenologia do Espírito, 2007, § 140).

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tentativas de realização dos mesmos que, ao se efetivarem na vida, fracassam e se
invertem. Chega-se ao ponto onde não se pode mais saber o que quer dizer quando se
fala de neurogênese e de psicogênese.
A noção de complexo afetivo usada por Jung ajuda na superação.
Um complexo afetivo é uma imagem de determinada situação psíquica “dotada
de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau
relativamente elevado de autonomia. ” (JUNG, 1984, §201) negritos meus. “Eles (os
complexos) são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento
próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. ” (JUNG, 1983,
p.67). Ao falar da posição relativamente autônoma dos demais complexos diante do
complexo do “Eu” Jung descreve:
O processo que leva à automatização é o seguinte: para exercermos determinada
atividade, concentramos toda nossa atenção nas ideias a ela relacionadas,
gravando na memória as fases do processo através dessa forte tonalidade
afetiva. O resultado da repetição contínua é a formação de uma passagem cada
vez mais "suave", onde a atividade se realiza praticamente sem a nossa ajuda,
ou seja, "automaticamente". (JUNG, 1999, p.80)

Complexos configuram-se através de associações, sequências que seguem, além


dos padrões de significado das palavras, as contingências externas. As associações são
determinadas pela unidade do vivente com todos os traços aglutinados em experiências
vividas pelo mesmo.
Jung diz que a unidade da consciência é uma mera ilusão (JUNG, 1983, p.67);
um sonho de desejo. Que gostamos de pensar que somos unificados, mas isso não
acontece nem nunca aconteceu. Em Psicologia da Transferência Jung descreve como “o
alquimista busca superar o paradoxo ou antinomia e fazer do duplo o um. ” (JUNG,
1978, p. 60). O tema segue com surgimento do “outro”: “a aparente unidade da
pessoa que declara com firmeza: “eu quero, eu penso etc., se racha e se dissolve
como consequência do choque com o inconsciente” (JUNG, 1978, p.60). Uma
pergunta fundamental é colocada: “O que é mais primordial do que o conhecimento
de que “isso sou eu? ” (JUNG, 1978) p.61. Como se o fundamento estivesse em chegar
ao “isso”; reconhecer algo do sujeito no que aparece como “isso” como apresentação de
algo tão indeterminado que dele só posso dizer que é “isso”. Assim o Eu aparece como
apenas um dos complexos e não o fundamento do que se é. A unidade que emerge
não é o Eu anterior em sua ficção, senão que um outro que é designado por si -
mesmo. Uma unidade que nunca perde o sentimento doloroso de sua natureza

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dual. Há nestas passagens um esforço para colocar em questão esta noção de unidade
que é tensa e nunca se unifica. Através do olhar metafórico tornar-se “Si-mesmo” pode
tornar-se devir outros, sem que o “Eu” se desfaça. Reconhecer que o que aparecia como
sendo “Eu” é apenas um dos complexos entre muitos. Um complexo configurado como
todos os outros pelo hábito; neste caso talvez o hábito de dizer “Eu”.
Jung chama de “situação da experiência” um certo condicionamento psíquico
que se interpõe ao imediatamente dado (JUNG, 1984, §195). Assimilação é uma
tendência no sujeito que o leva a interpretar de determinada maneira. Isto faz com que
tudo apareça na psique associado em algum complexo e todas as coisas só possam
aparecer em relação. Ou seja, são os complexos afetivos (imagens) que interpretam os
eventos dando a estes um significado e sentido. Por isso imagem não é o que se vê, mas
o que permite que algo possa ser visto e vivido como parecendo ser algo específico. Não
se veria a imagem de mãe, mas seria através da imagem de mãe que as experiências
empíricas particulares se organizam para que o encontro singular deste vivente
específico com outro possa ser vivido como o encontro entre uma mãe e um filho, por
exemplo. Como dito anteriormente, complexo afetivo é uma imagem de determinada
situação psíquica enquanto conjunto de traços afetivamente associados, girando em
torno de um tema coletivo, transpessoal (padrão arquetípico), que interpreta o
“imediatamente dado”- o que parece certeza sensível - faz com que este evento seja
visto e vivido como tendo determinado significado e sentido para este vivente.
Jung citando Condillac refere que: “Não há processos psíquicos isolados, como
não existem processos vitais isolados. ” (JUNG, 1984, §197). Assim a consciência pode
assumir o papel de “complexo assimilante” (JUNG, 1984, §197). Jung afasta-se da
dominação do pensamento unitário e coloca como referência fundamental a noção de
complexo: “o complexo é uma unidade psíquica” (JUNG, 1999, p.33) Não haveria
algo que pudesse ser unitário, isolado e fora da psique pois:
Todo acontecimento afetivo torna-se um complexo. Se o acontecimento não
estiver relacionado a um complexo já existente, possuindo assim um significado
momentâneo, ele submerge (...) até o momento em que uma impressão
semelhante a reproduza novamente. (JUNG, 1999, p.58)

Constelação seria “processo psíquico que consiste na aglutinação e na


atualização de determinados conteúdos. ” (JUNG, 1984, §198).
(...) "está constelado" indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e
de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A
constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria
vontade. (JUNG, 1984, §198.)

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Complexos constelados possuem uma energia psíquica própria, influenciam as
ações e provocam um determinado modo de reação. “Os complexos fazem parte da
constituição psíquica (...)” (JUNG, 1984, §200); estes efeitos aconteceriam nas
experiências das associações estudadas por Jung, mas como ele mesmo diz “acontece
também em qualquer conversa entre duas pessoas. ” (JUNG, 1984, §200).
Qualquer resposta desencadeada seria resultado da mobilização do conjunto dos
elementos constelados no complexo: emoções, ideias, pensamentos, sentimentos,
frequência cardíaca, tônus muscular, resposta simpática e parassimpática, temperatura
corporal etc. tudo é acionado no mesmo complexo. Assim, como foi dito anteriormente,
“(...) na realidade absoluta não há uma tal coisa como corpo e mente (...). ” (JUNG,
1995, §52) negritos meus.
Quando Jung fala do complexo do “Eu” diz que “(...) devido à sua ligação direta
com as sensações corporais é o mais estável e rico em associações. (...) perigo gera
medo: este é um afeto e por conseguinte é seguido de estados corporais, (...) tensões
musculares e excitação do sistema nervoso simpático. ” (JUNG, 1999, § 86).
Embora não pareça incoerente pensar complexos separando os aspectos descritos
como corporais ou biológicos dos psíquicos, é interessante acompanhar que psíquico é
o nome que acaba sendo dado aos elementos que aparecem como perturbação de um
modo de proceder empírico das ciências naturais6; ou seja psíquico é aquilo que aparece
perturbando a determinação da velocidade e da média das reações e de suas qualidades
– “(...) descobri os complexos de tonalidade afetiva que anteriormente eram registrados
sempre como falhas de reação.” (JUNG, 1984, §196) negritos meus.
Assim corpo e psique não seriam duas coisas, mas perspectivas diferentes
descrevendo o que aparece diante de um evento. O que é visto como substância, se
submete aos números, a equivalência, a medição necessária ao método empírico das
ciências naturais seria chamado de orgânico, corpo, biologia, natureza etc. O que
interfere, atrapalha, perturba, produz falhas no que era esperado é designado como
psique.
Jung, no entanto, transforma as “falhas” no elemento fundamental que orienta o
reconhecimento do que está agindo. E, mesmo não podendo ver, tocar ou medir isto que
produz este efeito é através deste efeito que é possível alguma aproximação do que

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“O psíquico aparece, por conseguinte, como uma perturbação de um provável modo de proceder exigido
pelos respectivos métodos.” (JUNG, 1984, §194)

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seriam os complexos inconscientes. Por isso o caminho é errante seguindo atalhos
ásperos e sinuosos que frequentemente se perdem.
Esta posição é muito coerente com as noções de sujeito e de realidade para Jung.
Sujeito refere-se não a uma substância com identidade ou uma instância
unificadora central que acompanha todas as experiências, mas o que surge como
perturbação e obstáculo:
Entendo por sujeito, convêm dizer desde já, todos aqueles estímulos,
sentimentos, pensamentos, e sensações vagos e obscuros que não é possível
demonstrar que promanem da continuidade da vivência consciente do objeto,
mas que pelo contrário, surgem como perturbação e obstáculo, (...). (JUNG,
1981a, §756) negritos meus

A realidade é tudo aquilo que produz efeito e faz parte do mundo vivo. “Não
conheço nada a respeito de uma supra-realidade. A realidade contém tudo o que
podemos saber, pois aquilo que age, que atua, é real. ” (JUNG, 1984, §742); da mesma
forma que “o pensamento (que) existiu e existe, mesmo que não se refira a uma
realidade palpável, e produz inclusive efeito. ” (JUNG, 1984, §744), também seria real.
Por isso fantasia é realidade! Uma vez que produza efeito é real. O que aparece como
verdade empírica teria a estrutura de uma ficção pois a realidade material estaria em
constante mudança, múltipla, paradoxal, cheia sentidos e mistérios variados, além de
infinitas possibilidades. Quando isto se torna insuportável para a consciência produz-se
uma unificação da realidade de forma a torná-la estável, domesticada e é isto que
apareceria a consciência como imediaticidade da certeza sensível.
Diz Jung que o médico que pensasse que sintomas (como dores, medos de
infecção etc.) são uma fantasia arbitrária do doente, não estaria percebendo a autonomia
notável que complexos possuem e que estes produzem tanto sofrimento, dor, sintomas
quanto qualquer outra forma de desencadeamento de reações (JUNG, 1984, §204). E
como tudo só aparece em complexo, “(...) mesmo se fossem comprovados achados
anatômicos ou sintomas orgânicos regulares, a ciência não poderia supor que o ponto
de vista psicológico pudesse ser abandonado. ” (JUNG, 1999, §319), uma vez que
estes achados são uma “situação da experiência” e é vivida interpretada e significada a
partir da configuração e constelação dos diversos complexos e da atitude dominante na
consciência.
O complexo seria um fator psíquico que pode superar as intenções da
consciência – “um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não-
liberdade” (JUNG, 1984, §201); “(...) os complexos podem "ter-nos". A existência

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dos complexos põe seriamente em dúvida o postulado ingênuo da unidade da
consciência que é identificada com a "psique", e o da supremacia da vontade. ” (JUNG,
1984, §201).
Estas ideias permitem superar a dominação da fantasia de que a consciência
é única, como unidade autônoma, independente, autodeterminada; que deveria se
guiar por padrões de espontaneidade e autenticidade expressiva. “As intenções da
vontade ficam dificultadas [pela constelação de complexos] quando não se tornam de
todo impossível. ” (JUNG, 1984, §201). Apoiado em estudos de Janet e Prince, Jung
fala da extrema dissociabilidade da consciência – “cada fragmento da personalidade
tinha uma componente caracterológica própria e sua memória separada. Cada um destes
fragmentos existe lado a lado, relativamente independentes uns dos outros (...)” (JUNG,
1984, §202). Cada complexo como uma “personalidade fragmentaria” teria um
elevado grau de autonomia, independência uns dos outros podendo revezarem-se.
Jung fala de múltiplos complexos, destaca entre eles o Complexo do Ego que
seria um complexo formado pela percepção geral do corpo, existência e pelos registros
da memória. Considera-o como complexo de fatos psíquicos. Porém refere que: “o ego
é um aglomerado de conteúdos altamente dotados de energia e, assim, quase não há
diferença ao falarmos de complexos e do complexo do ego. ” (JUNG, 1983, p.67). Ao
rever a unidade da pessoa Jung abre a possibilidade de releituras onde a posição do Eu e
da consciência como polo central do saudável é questionada com a afirmação de que a
unidade da consciência é uma mera ilusão; um sonho de desejo que gostamos de
pensar que somos unificados, mas isso não acontece nem nunca aconteceu.
Tudo isso se explica pelo fato de a chamada unidade da consciência ser mera
ilusão. É realmente um sonho de desejo. Gostamos de pensar que somos
unificados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu. Realmente não
somos senhores dentro de nossa própria casa. E agradável pensar no poder de
nossa vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H
descobrimos que podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalhados
por esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos autônomos de
associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida
independentemente de nossa intenção. (JUNG, 1983, p.67) negritos meus
(...)aquele que parece uno não é um senão que muitas personas (diferentes) que
aparecem nele. A possessão pelo inconsciente significa justamente um
desprendimento na variedade e na multiplicidade, uma disjunção “disiunctio”.
(JUNG, 1978, p.59).

Seria impossível a tarefa de unir todos os elementos incompatíveis. Pois o ego


pode apenas identificar-se com uma parte de cada vez.
(O doente) tenta ajuntar todos os elementos dispersos no vaso, que é destinado a
ser receptáculo de todo o ser, de todos os elementos incompatíveis. Se tentasse

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uni-los, em seu ego, seria uma tarefa impossível, pois o ego pode apenas
identificar-se com uma parte de cada vez. (JUNG, Fundamentos de Psicologia
Analítica., 1983, p.165)

Complexos, ao serem vividos como algo incompatível com as disposições ou


atitudes habituais dominantes na consciência, funcionariam como um corpo estranho,
animado de vida própria, que pode sofrer interferência das disposições na consciência
apenas até certo limite (JUNG, 1984, §203). “Os conteúdos de um inconsciente
neurótico são corpos estranhos, não assimilados, artificialmente cindidos, (...) (JUNG,
1995, §52).
(...) o propósito do tratamento analítico. É também exatamente o que a natureza
faz no corpo físico. Se você tem um corpo estranho em si, a natureza manda um
exército de células especiais para assimilá-lo; se elas não têm sucesso em
absorvê-lo, há então a supuração para fazer a expulsão. As leis são as mesmas
na mente inconsciente. (JUNG, 1995, §51).

“A consciência está invariavelmente convencida de que os complexos são


inconvenientes e, por isso, devem ser eliminados de um modo ou de outro. (...) as
pessoas têm repugnância em considerá-los como manifestações normais da vida. ”
(JUNG, 1984, §211). Os complexos poderiam interferir e realizar processos de
invasão na consciência; estes não seriam de forma alguma patológicos, a não ser no
sentido do “pathos”, quando patologia significava a ciência das paixões. Seriam
momentos em que a pessoa fica subitamente alterada, tomada por algo; como se
perdesse a cabeça. Historicamente isto era atribuído a um demônio, a um encosto ou a
um "espírito" que tomou o indivíduo. Emoções dominadoras podem ser indesejáveis
para o complexo do Ego, mas não seriam em si patológicas. Quando reprimidos por
uma atitude na consciência, os complexos apareceriam, claramente, nos sonhos de
forma personificada (JUNG, 1984, §203).
A inconsciência a respeito dos complexos lhes conferiria uma força ainda maior
de assimilação; podendo assimilar inclusive o complexo do “Eu”. Isto pode ser
chamado de “identificação com o complexo” e que foi descrito como “possessão”
(JUNG, 1984, §204). Para Jung a consciência (pode-se dizer, unilateralmente dominada
por uma forma de julgar que se orienta pelo pensamento dirigido - pautado pelos
critérios de unidade identidade e diferença e pelos ideais de autonomia,
autodeterminação e independência) tem a tendência a ocultar os complexos por causar
vergonha. Eles, entretanto, podem ser muito dolorosos, provocar sofrimento e não
deveriam ser menosprezados. O complexo do Eu receia os outros complexos como algo
que ameace controlar a vida tal qual está e considera-os como irreais ou mostrando-os

12
como se tratando de naturezas mórbidas (JUNG, 1984, §208). Como complexos nascem
sem a mínima participação da consciência, os complexos podem ser comparados as
infecções ou tumores malignos, mas “os complexos não são totalmente de natureza
mórbida, mas manifestações vitais próprias da psique (...)” (JUNG, 1984, §209). “Os
complexos fazem parte da constituição psíquica (...)” (JUNG, 1984, §200). “(...) os
complexos, com efeito, constituem as verdadeiras unidades vivas da psique
inconsciente, cuja existência e constituição só podemos deduzir através deles. ” (JUNG,
1984, §210).
Todo este percurso que pode ser reconhecido no texto Junguiano sustenta-se na
valorização e na importância das associações por semelhança.
Assim, as idéias e as questões que movem Jung podem se inscrever, se colocar
numa rede genealógica muito anterior a ele e que talvez o atravessasse com grande
força. Há uma alinhamento com o estilo de consciência que valora o elemento trágico
no pensamento fantasia e que encontrava parentesco no pensamento freudiano, tanto
elogiado no seu texto de 1906 “Exposição crítica das concepções teóricas sobre a
psicologia da demência praecox”.
A interpretação dos sonhos de Freud é fundamental no que concerne ao conceito
de expressão por semelhança de imagens, tão importante na psicologia (...)
(JUNG, 1999, p.49) negritos meus

A importância das associações por semelhanças aparece na relação com os


símbolos, mas também na problematização das figuras da identidade como em:
Simbólico são apenas associações subsidiárias obscuras de um pensamento que
vela bem mais do que revela. (...) Poderíamos definir o símbolo como a
percepção falsa de uma relação de identidade (...) atribui aparecimento de
associações simbólicas à falta de sensibilidade para a diferença. (JUNG,
1999, p.56) negritos meus

(...) a presença de ricas combinações: inúmeras combinações analógicas,


semelhanças de imagens, representações simbólicas de frases etc. Um exame
deve indicar (...) essas características do pensamento mitológico. (...) a
multiplicidade de sentidos das imagens isoladas do sonho é um sinal da
obscuridade e indefinição. (...)
A condição da atenção reduzida exprime-se numa diminuição da clareza das
idéias. Se as idéias não são claras, a diferença entre elas também não é clara.
(JUNG, 1999, p.54) negritos meus

Pode-se ver Jung sendo conduzido por um pensar que valoriza as analogias
desde os trabalhos com testes de associações.
(...) as leis de associação seguidas pelo fluxo do pensamento: são, fundamentalmente, as
de semelhança, coexistência, combinações verbomotoras e consonâncias (...)

13
A possibilidade de o complexo vir a se explicitar é inibida pela atividade
objetivante da consciência. O complexo apenas se fará notar de maneira
obscura como acontece nos automatismos melódicos que , em geral, trazem
os pensamentos do complexo de forma metafórica. (JUNG, 1999, p.47)
negritos meus

O pensar por complexos, metáforas ou constelações é algo que surge no texto


Junguiano muito precocemente e que pode ser alinhado com uma corrente que tenciona
a unidade objetivante da consciência. Nesta linhagem Hillman (HILLMAN, 2010);
sugere uma base poética da mente; considera a aproximação metafórica mais do que
uma questão semântica de uma figura de linguagem, um modo ontológico de ser.
Propõe reconhecer nossa existência concreta como metáfora “todas as realidades
como primariamente simbólicas ou metafóricas” (HILLMAN, 1983, p.41). Indica nada
menos do que uma episteme7 arquetípica. Então os arquétipos seriam semanticamente
metáforas, princípios de incerteza. As metáforas seriam semelhantes aos jarros ou
constelações que realizam a tarefa de coagular a psique ou de construir vasos.
Jung fala de múltiplos complexos, como foi visto, o Complexo do Ego seria um
complexo formado pela percepção geral do corpo, existência e pelos registros da
memória. Considera-o como complexo de fatos psíquicos. Porém refere que: “o ego é
um aglomerado de conteúdos altamente dotados de energia e, assim, quase não há
diferença ao falarmos de complexos e do complexo do ego. ” (JUNG, 1983, p.67).
O processo que leva à automatização é o seguinte: para exercermos determinada
atividade, concentramos toda nossa atenção nas ideias a ela relacionadas,
gravando na memória as fases do processo através dessa forte tonalidade
afetiva. O resultado da repetição contínua é a formação de uma passagem cada
vez mais "suave", onde a atividade se realiza praticamente sem a nossa ajuda,
ou seja, "automaticamente". (JUNG, 1999) P.80

Os complexos poderiam interferir e realizar processos de invasão na


consciência; emoções dominadoras podem ser vividas como indesejáveis para o
complexo do Ego, mas não devem ser consideradas necessariamente como patológicas,
a não ser no velho sentido de paixão. Há uma alteração súbita que leva ao sentimento de
estar perdido. O texto leva a refletir que se as invasões se tornam habituais conduzem
a Neurose.
O fenômeno pode ser observado em pacientes neuróticos. Em certos dias, em
certos intervalos, (...) eles se perdem, ficando sob influência estranha. O fato
não é em si patológico, pertence a fenomenologia humana mais comum, mas
estaremos certos de pensar em neurose se as crises se tornam habituais, (...)

7
A episteme não como uma criação humana, é sim o "lugar" onde o homem é instalado. Um local em que conhece e
age de acordo com as regras estruturais da episteme. Como que a condição e possibilidade do conhecimento de um
determinado momento.

14
(JUNG, Fundamentos de Psicologia Analítica., 1983, §43)

“A ideia de dissociação psíquica é a maneira mais segura com que consigo


definir uma neurose. ” (JUNG, 1983, p.156). A dissociação neurótica “(...) se
caracteriza por uma dissociação sistemática (...)” (JUNG, Psicogênese das doenças
mentais, 1999, §544). Porém na neurose os complexos permaneceriam com algum
campo de relação – “(...) uma neurose se caracteriza por uma autonomia relativa de
seus complexos. ” (JUNG, Psicogênese das doenças mentais, 1999, §506) negritos
meus; com “dissociações fluidas e mutáveis” (JUNG, Psicogênese das doenças mentais,
1999, §507). Pode envolver um “abaissement” – “Todo ‘abaissement’, sobretudo aquele
que conduz a uma neurose, significa em si mesmo o enfraquecimento do controle
superior. A neurose é uma dissociação relativa, um conflito entre o Eu e uma força
contraria relacionada aos conteúdos inconscientes. ” (JUNG, Psicogênese das doenças
mentais, 1999, §516). Cabe a questão do que significa “enfraquecimento do controle”
neste contexto. O controle é tão mais fraco quanto mais rígido, mais unilateralmente
determinado e de forma mais convencional (inconsciente). Na situação de crise o sujeito
pode viver como se estivesse lutando contra o sintoma invasor, mas quanto mais luta
mais reforçaria a cisão e o embate; mais intensamente o alienígena sintoma seria visto
como inimigo, constelaria todos os mecanismos de defesa e caracterizaria os sintomas
da crise.
A dissociação da personalidade se daria devido à existência de complexos
incompatíveis, que por estar em posição por demais contrária a parte consciente,
separam-se. Qualquer incompatibilidade poderia causar uma dissociação. Porém a cisão
seria efeito da revolta e combate do estilo predominante na consciência
(“personalidade consciente”) contra uma manifestação de formações diversas. Seria a
oposição e combate as reivindicações, ampliariam a cisão.
Quanto mais se alarga a brecha entre consciente e inconsciente, tanto mais
iminente a cisão da personalidade, que no indivíduo com tendência neurótica
leva à neurose, naquele com predisposição psicótica leva à esquizofrenia, (...).
(JUNG, 2008, p. 425) negritos meus.

As manifestações se dirigem não apenas aos pontos fracos do estilo


preponderante na consciência, mas às virtudes principais, a função diferenciada e
mesmo aos ideais.
Em geral a personalidade consciente se revolta contra a manifestação do
inconsciente e combate suas reivindicações que, como se percebe
nitidamente, não se dirige apenas aos pontos fracos do caráter masculino, mas

15
ameaça também a "virtude principal" (a "função diferenciada" e o ideal).
(JUNG, 2008, p.293) negritos meus

Jung problematiza as ideias que tentam propor para psicose (demência praecox)
dinamismos ou psicologias diferentes do restante quer seja neurose histérica quer seja
do chamado normal.
(...) sabemos bem pouco sobre a psicologia das pessoas normais e dos histéricos
para pressupormos, numa doença tão obscura como a dementia praecox,
mecanismos novos e desconhecidos das demais psicologias. (JUNG, 1999, p.
15/16)

A loucura não apareceria separada do psiquismo “normal”; ela adquire um


sentido; “é uma pessoa que sofre dos mesmos problemas humanos que nós (...)”.
Reconhece-se na doença uma reação inusitada a questões que se apresentam em
todos nós.
Quando, porém, penetramos nos segredos do doente, percebemos que a loucura
possui seu sistema próprio (a loucura revela seu sistema), e passamos a
reconhecer na doença mental apenas a reação inusitada a problemas emocionais
que pertencem a todos nós. (JUNG, 1999, p.149)

Em “Psicogênese das Doenças Mentais” há uma forte problematização


perguntando se os conteúdos que aparecem no “doente” com afetos violentos não
seriam incongruentes apenas para nós, que conhecemos insuficientemente sua
psique, mas também para o sentimento subjetivo do doente?
Embora Jung diga que a psicose aparece como a invasão de complexos, é com
a assimilação destes que há a proteção contra o isolamento e a psicose. Aponta para a
questão da cisão diante da porção incompreensível e irracional. Afirma a necessidade
de formas de expressão coletivas e por isso não basta, no auxílio profissional, a
orientação exclusivamente pessoal.
Ao mesmo tempo, a assimilação do inconsciente protege contra o perigoso
isolamento que sente todo aquele que se vê frente a frente com uma porção
incompreensível, irracional, de sua personalidade. Pois o isolamento leva ao
pânico, e com isto tão frequentemente começa a psicose (...) Quanto mais se
alarga a brecha entre consciente e inconsciente, tanto mais iminente a cisão da
personalidade e aliás sob muitos disfarces. (...) Em geral é necessário o auxílio
profissional para sustar uma tal cisão. (...) visando formar o seu consciente de
tal forma que pudesse compreender os conteúdos do inconsciente coletivo. (...)
As relações arquetípicas dos produtos do inconsciente só podem ser
compreendidas com o auxílio das "representations collectives" (LÉVY-
BRUHL), (...). De modo algum basta para isto uma psicologia de orientação
exclusivamente pessoal. (JUNG, 2008, p. 425/426) negritos meus

A questão da cisão estaria intimamente relacionada não apenas a luta, combate,


mas ao desagrado e paralisação da energia psíquica que estava fluindo seguindo um

16
determinado padrão complexo constelado. Haveriam aspectos desagradáveis na
paralisação da energia psíquica. Isto apareceria à consciência como indesejável,
desagradável ou mesmo catástrofe que esta tentaria evitar.
(...) a paralisia da energia progressiva de fato tem aspectos desagradáveis. Ela
aparece como coincidência indesejável ou mesmo como catástrofe, que
naturalmente se deseja evitar. (JUNG, 2008, p.293)

Como dito, Jung afirma que entende por sujeito todos os estímulos,
sentimentos, pensamentos, e sensações vagos e obscuros que perturbam e criam
obstáculos à continuidade da vivência consciente do objeto (JUNG, Tipos Psicológicos,
1981a, §756). Poderia ser pensado que o sujeito aparece como o que resiste a
continuidade do que na consciência objetificou-se com unidade pautada por princípios
de identidade e diferença? Sendo assim o sujeito apareceria como algo que interrompe a
circulação progressiva da energia que seria agradável para o complexo dominante?
Corrobora com isto a indicação de que as invasões e dissociações, características da
“doença neurótica” seriam um fator favorável, uma tentativa de auto-cura.
(...) é uma tentativa de auto-cura, (...). Não se pode mais entender a doença
como um ens per se, como uma coisa desenraizada, como há algum tempo atrás
se julgava que fosse. (JUNG, 1983, p.156)

Portanto o que favoreceria a psique na sua integralidade não é o que parece


agradável e estimula o fluxo de energia no complexo do Ego, mas o que interrompe ou
faz resistência a um determinado funcionamento dominante automatizado de forma
complexa. Os “sintomas” ou a loucura como outro padrão complexo que atrapalha
uma dominação. Por isso na loucura que se pode descobrir um sentido no sem-
sentido. A loucura revela novos sentidos, outras organizações complexas que estão em
cisão embate e sendo repelidas pela dominante.
Jung faz referência aos hábitos neste processo de automatização e
autonomização dos complexos. Assim “A forte tonalidade afetiva cria um caminho, o
que reafirma (...) cada complexo possui uma tendência para a autonomia” (JUNG, 1999,
p.80). Os hábitos adquiridos no processo de socialização produziriam marcas, traços
unificados que tenderiam a funcionar de forma autônoma e a conduzir os sujeitos em
determinadas ações.
Muitas vezes nos vemos forçados a determinadas ações por um afeto que, no
início, sofre grandes inibições e depois de várias repetições a reação se dá
prontamente a partir de um pequeno impulso, devido à diminuição da inibição.
(JUNG, 1999, p.80)

17
A fixação de maneira duradoura de complexos pode aparecer na constituição do
complexo do Eu que seria o mais sólido, forte e estável constituído pela expressão
psicológica da combinação firmemente associada entre todas as sensações corporais. A
narrativa Junguiana pode fazer pensar que o mesmo processo que constitui o complexo
do Eu está presente na constituição dos outros complexos sólidos, fortes, firmes e
estáveis que apareceriam na psicopatologia? Há uma problematização da questão
quando se discute as estereotipias:
Entendemos a estereotipia no sentido amplo de reprodução contínua e
persistente de uma certa atividade (verborragia, catalepsia, chavões,
perseverações, etc.). Esses fenômenos encontram-se entre os mais
característicos da dementia praecox. Por outro lado, a estereotipização, sob a
forma de automatização, constitui um dos fenômenos mais comuns no
desenvolvimento da psique normal (SPENCER). Todas as atividades e o
desenvolvimento geral de nossa personalidade dependem de automatizações.
(JUNG, 1999, p.80) negritos meus

É afirmado que na catatonia, um complexo se apoderou de quase todas as


esferas de associação permanecendo inacessível através de estímulos psicológicos e
isolado das demais influencias externas; açambarca a maior parte da atividade cerebral.8
Haveria a criação de um estado cerebral pelo domínio e enrijecimento de um
complexo o que seria equivalente a uma destruição do cérebro (JUNG, 1999, §193).
Aponta-se que a constituição firme e estável dos complexos como fundamental
na constituição da “psique normal” e ao mesmo tempo é o que aparece como o elemento
que levaria a destruição do cérebro e os sintomas da demência praecox.
Em muitos momentos o problema fundamental surge com relação direta com a
unilateralidade dominante na consciência e no complexo do Ego, embora exista
referência à relação entre “toxinas” que destruiriam o cérebro e os efeitos
psicológicos dos complexos.
Devemos postular, no caso da dementia praecox, uma manifestação específica
do afeto (toxina?) que aciona definitivamente a fixação do complexo,
comprometendo o conjunto das funções psíquicas. (JUNG, 1999, p.30) negritos
meus

(...) existe sempre a tentação de se atribuir um significado causal ao complexo,


apesar da observação já mencionada de que, ao lado de seus efeitos
psicológicos, o complexo produz uma quantidade indeterminada, um x
possivelmente de toxinas que auxiliam o trabalho de destruição. (JUNG,
1999, p.85) negritos meus

8
Posteriormente na conferência de 1939 refere que “a maioria dos catatônicos totalmente degenerados
desapareceu por completo apenas porque lhe foi dada uma ocupação. ” (JUNG, Psicogênese das doenças
mentais, 1999, §539)

18
De forma interessante Jung diz que, mesmo na histeria (neurose) há “em sua
essência mais profunda um complexo que jamais pode ser superado; de certo modo, a
psique parou e não consegue se libertar deste complexo” (JUNG, Psicogênese das
doenças mentais, 1999, §194) fala das manifestações como delírios e sonhos ocupando-
se de satisfazer o “desejo do complexo” (JUNG, Psicogênese das doenças mentais,
1999, §194). O desejo que toma o sujeito seria do complexo - uma personalidade
parcial que tem independência e elevado grau de automatização – “De fato, uma
neurose se caracteriza pela autonomia relativa de seus complexos” (JUNG, 1999, §506).
Na demência precoce (psicose) também se encontram “ um ou mais complexos
que se fixaram de maneira duradoura. ” (JUNG, 1999, §195). Afirma que “um afeto
forte se encontra no começo da doença” (JUNG, 1999, §195). Posteriormente (1939)
reflete, ao discutir um caso, se o paciente já não teria adoecido antes do evento
referido como de forte afeto; ele estaria “adoecido” enquanto parecia “normal” - “ (...)
ele já se encontrava doente quando era normal” (JUNG, 1999, §535). Segue indicando
que, a “doença” é que pode ter levado a viver a experiência intensa. Ou seja, o
complexo já estaria configurado em determinado padrão arquetípico, mesmo antes da
crise e poderia ter buscado encontrar no diverso das situações de experiências traços
que, tivessem semelhanças e por analogia constelado o complexo.
A “(...) a psicose consiste numa condição mental em que os elementos antes
inconscientes ocupam o lugar da realidade” (JUNG, 1999, §491). Ou seja, os padrões
coletivos arquetípicos que, através dos complexos, dominam as interpretações dos
eventos nas situações de experiências. Se há o domínio permanente de um complexo
insuperável (psicose) o sujeito estaria morto para o meio ambiente pois seu
interesse estaria exclusivamente no complexo. Isto não seria fundamentalmente
diferente do que aconteceria com os chamados neuróticos (histeria) ou “normais” a não
ser na intensidade e na insuperabilidade da dominação – “ as impressões patogênicas
não eram propriamente mórbidas e sim muito intensas” (JUNG, 1999, §491); “(...) os
conteúdos (inconscientes) não existem apenas no paciente e sim no inconsciente de toda
pessoa normal. ” (JUNG, 1999, §518). “ A existência de conteúdos estranhos não prova
nada, pois podem ser vistos em neuróticos, nos pintores modernos, nos poetas e também
na maioria das pessoas normais que valorizam, com especial atenção, os seus sonhos. ”
(JUNG, 1999, §520).
Na neurose as dissociações seriam “fluidas e mutáveis” (JUNG, 1999, §507), ou
“(...) a neurose é uma dissociação relativa, um conflito entre o eu e uma força contrária

19
relacionada a conteúdos inconscientes. ” (JUNG, 1999, §516). Os dois se “(...)
conhecem intimamente, mas não possuem nenhum argumento válido contra o outro”
(JUNG, 1999, §500). “ (...) o intenso conflito exprime um desejo igualmente intenso de
recompor a ligação rompida. Na verdade, não ocorre um trabalho de colaboração
(...)” (JUNG, 1999, §516) negritos meus. A crise se instalaria quando não houver um
campo de escuta e colaboração relacional entre os vários complexos (na consciência e
inconscientes) e um deles a clamar por autonomia e predomínio; poderia então, se
instalar uma configuração de cisão e embate insuperável. Poderia até substituir
completamente o padrão anteriormente dominante na consciência, mas esta alternância
de dominação sem a escuta a sério do outro lado - uma escuta não ao pé da letra ou
literalmente apenas - manteria a cisão, o embate e com isto a crise.
Jung refere que na psicose (esquizofrenia) as figuras cindidas (complexos)
possuiriam características banais, grotescas, caricaturais, que se intrometem e perturbam
o tempo inteiro; são desagradáveis e chocantes. (JUNG, 1999, §508). Entretanto a
psicose “nada tem a ver com a estranheza dos conteúdos inconscientes e sim com a
condição de a pessoa suportar um certo pânico ou resistir a tensão crônica. ” (JUNG,
1999, §520). Ou seja, o fundamental não é quão estranho é o conteúdo, mas a atitude
predominante da consciência. Se diante da cisão a atitude for de pânico, resistência e
embate, lutando contra novo que está emergindo este aparecerá à consciência como
sintoma.
“A psique humana, em sua estrutura fundamental, é tão pouco personalista
como o corpo, constituindo muito mais uma herança universal” (JUNG, 1999, §527).
Há sempre uma mistura de material pessoal e coletivo (como nos sonhos normais)
porém, na esquizofrenia, haveria “predominância do material coletivo”. (JUNG,
1999, §525) negritos meus. Assim, “(...) existem, na psicologia dos esquizofrênicos,
elementos que, visivelmente não se enquadram num sistema de referência pessoal”
(JUNG, 1999, §544). “O fato de a esquizofrenia desfazer os fundamentos da psique
explica o excesso de símbolos coletivos que constituem a estrutura fundamental da
personalidade. ” (JUNG, 1999, §527). Mas qual é a estrutura fundamental da
personalidade? Embora o texto “Da formação de personalidade” de 1932 aponte que
“deveras é algo de grande e misterioso o que designamos por ‘personalidade’. Tudo o
que se possa dizer sobre ela será sempre singularmente insatisfatório e inadequado (...)”
(JUNG, O Desenvolvimento da Personalidade, 2013a, §312) aparece nesta narrativa
que:

20
Personalidade é realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo
particular. (...) é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela
afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita
possível, a tudo que existe de universal, e tudo aliado a máxima liberdade
de decisão própria. (JUNG,2013a, §289) negritos meus.

Pode-se pensar na personalidade como a realização máxima do particular e


individual dentro da mais perfeita adaptação a tudo que é universal. Seria o máximo do
particular no máximo do universal. Pois “(...) a camada psíquica mais profunda, sobre
a qual se afirma a consciência individual, é de natureza universal (...)” (JUNG, O
Desenvolvimento da Personalidade, 2013a, §307). Neste sentido universal não estaria
em oposição ao particular pois os padrões universais, coletivos, transpessoais ou
arquetípicos só se realizariam e se manifestariam a partir de vivencias empíricas
particulares que, em associação singular, configuram complexos organizados por
grandes temas coletivos.
Assim faria sentido que a esquizofrenia desfizesse os fundamentos da psique
pelo “excesso de símbolos coletivos que constituem a estrutura fundamental da
personalidade. ” (JUNG, 1999, §527) pois ao ser dominado, predominantemente, por
padrões coletivos perder-se-ia a tensão necessária com o singular e particular. Padrões
inconscientes podem aparecer na forma de convenções - “ O mecanismo das
convenções conserva os homens inconscientes, ” (JUNG, 2013a, §305) pois então
poderiam fazer mudanças sem precisar tomar decisão consciente. Convenções seriam
“em si mesmas mecanismos sem alma” (JUNG, O Desenvolvimento da Personalidade,
2013a, §305).
É como se alguns padrões coletivos em complexos associativos que
habitualmente constituem a personalidade estivessem constelados em excesso
dominando a consciência e fossem dissolvendo o campo de relações de colaboração
nesta. Ao se instalar a cisão e o embate o padrão dominante aciona todos mecanismos
conscientes e inconscientes contra o inimigo que será vivido como sintoma ou o pathos.
Há uma questão colocada como difícil por Jung em 1939: o resultado desta
dominação seria efeito de “um enfraquecimento da consciência ou fortalecimento do
inconsciente. ” (JUNG, 1999, §529)? Em 1959 ele retoma o tema e afirma que “ os
fenômenos da esquizofrenia não são causados por diminuição geral da atenção ou
da consciência, mas dependem de algum fator perturbador” (JUNG, 1999, §545)
negritos meus. As ideias possivelmente pertencem “(...) ao campo emocional de um
complexo reconhecível, cuja existência em si mesmo não constitui um sinal

21
especificamente esquizofrênico. (...) complexo idêntico aos que podem ser observados
nos neuróticos e nos normais. ” (JUNG, 1999, §545).
Como entender que o complexo esquizofrênico “se caracteriza por uma
deterioração particular e por uma fragmentação das ideias onde o campo geral da
atenção se vê bem pouco perturbado. ” (JUNG, 1999, §546) negritos meus. Jung
esclarece que a ativação deste complexo “não prejudica nem a orientação geral nem as
demais funções” (JUNG, 1999, §546). “É como se o complexo se auto-aniquilasse ao
distorcer seus conteúdos e sua capacidade de transmissão, ou seja, sua possibilidade de
expressão por meio de um pensamento e fala ordenados. ” (JUNG, 1999, §546). O que
está sendo chamado de distorcido ou desordenado pode ser assim visto com um tipo de
ordem em que domina o pensamento dirigido que trabalha com a comunicação, com
elementos linguísticos, que imita a realidade e procura agir sobre ela? Porem cita Jung,
“o próprio Bleuler demonstrou a importante semelhança entre as associações
esquizofrênicas e os fenômenos de associação recorrentes nos sonhos (...)” (JUNG,
1999, §505). Pode-se aproximar este “desordenado” do pensamento fantasia ou sonhar
que “trabalha sem esforço, por assim dizer espontaneamente, com conteúdos
encontrados prontos e é dirigido por motivos inconscientes. (JUNG, 2008, p.15); “(...)
afasta-se da realidade, liberta tendências subjetivas e é improdutivo com relação à
adaptação. ”? (JUNG, 2008, p.16)
Entendendo-se que “ (...) as características do abaissement du niveau mental
(Janet), ou seja, da baixa tensão energética: descontinuidade lógica, caráter
fragmentário, formações de analogias, associações superficiais de natureza verbal,
sonora ou visual, contaminações, irracionalidade de expressão, confusão, etc. (JUNG,
1984, §152). O ‘abaissement’ que aparece na frase “ (...) a intensidade emocional do
complexo conduz, no sentido contrário do que se poderia esperar, a uma ‘abaissement’
de seus próprios fundamentos ou ao distúrbio da síntese de ideias. ” (JUNG, 1999,
§546) pode estar falando da dominação do pensamento dirigido literal que vive outra
forma de síntese como a poética, simbólica ou metafórica como “distúrbio”? Isto leva a
pensar que o sintoma na descrição da esquizofrenia aparece ligado a forma de
pensamento fantasia e que o padrão dominante seria o literalizante.
Se o sintoma é estranho, incompreensível e alienígena para o estilo dominante
no ego então o padrão dominante na esquizofrenia não seria a forma de pensamento
fantasia, mas ao contrário o que colocar-se exatamente em oposição e embate a este.
Pode-se pensar que é a dominação insuperável do pensamento dirigido (literal) que

22
entrando em cisão e embate com o pensamento fantasia (metafórico) vive as expressões
deste como ameaças grotescas, caricaturais, desagradáveis e chocantes. Seria o estilo de
consciência metafórico que se intromete e perturba o tempo inteiro ou a dominação do
estilo dirigido de pensamento na consciência que fica a maior parte do tempo buscando
todo e qualquer traço de fantasia para transformá-lo em ameaça literal? Fica se
defendendo o tempo todo das criações do pensamento fantasia. Seria a dominação do
estilo literal que torna o conteúdo caricatural, grotesco e ameaçador? Se o conteúdo
fosse visto e vivido de forma simbólica, metafórica e poética como no pensamento
fantasia haveria sintoma esquizofrênico?
O “complexo esquizofrênico” relido como dominação da forma de pensamento
literal gasta grande energia no embate contra a fantasia e com isto solapa a capacidade
de expressão e de comunicação levando a seu próprio fracasso ou auto-destruição.
Pode-se entender que na “doença”, em especial na psicose, a despotencialização
da personalidade consciente (padrão dominante na consciência) não seria uma simples
redução da força do complexo do ego, mas uma exacerbação da natureza defensiva do
mesmo?
(...) muitos pacientes dão impressão de possuir uma consciência moderna,
bastantes desenvolvida e, muitas vezes, especialmente concentrada, racional e
obstinada. Contudo este tipo de consciência pode rapidamente apresentar sinais
de uma natureza defensiva, o que significa um sintoma de fraqueza e não de
fortalecimento. (JUNG, 1999, §530)

Numa crise o complexo do Ego perderia a percepção geral do corpo, existência e


os registros da memória ou teria estes elementos re-significados a partir do contexto
com o padrão dominante em conflito com os demais? Haveria redução da vontade
tirânica e da certeza literal? Ou estes elementos ficam potencializados concentrando em
maior intensidade a atenção e a energia psíquica nos mecanismos de defesa?
Ao contrário a redução da centralidade do eu na personalidade e do domínio
vontade tirânica de um governo interior que apresenta traços de uma supra-humanidade
demoníaca seria parte do processo de individuação.
(...) as funções parciais foram em grande parte postas a serviço do Eu (vontade
do homem) levando a uma dissociação entre uma autoconsciência e um inimigo
invisível. Isto poderia fazer sucumbir a uma vontade tirânica de um governo
interior que apresenta traços de uma supra-humanidade demoníaca (JUNG,
1978, p. 57).

No texto sobre a psicologia da transferência Jung cita o texto alquímico em que


“o artífice é servidor da obra”. (JUNG, 1978, p.129). O homem puramente natural, em

23
sua ingenuidade espontânea amplia a tal ponto sua personalidade que o eu normal em
grande medida desaparece, (JUNG, 1978, p.130); “a integração do inconsciente só é
possível quando o Eu se suspende. ” (JUNG, 1978, p.160). Por isso a morte é, ao
mesmo tempo, concepção; “A nova personalidade não é um terceiro entre o
consciente e inconsciente, se não que é os dois juntos. (...) não deve ser qualificada de
eu mas de si - mesmo. ” (JUNG, 1978, p.131). Ou seja, processo que envolve de
individuação que não se confunde com inflação do ego9 nem com crise neurótica ou
psicótica, passa por uma mudança de atitude na consciência onde o complexo do ego
perde sua centralidade na personalidade. Hillman refere que a imaginação é
extraordinária; “não importa quão conhecida, é sempre capaz de surpreender, chocar,
horrorizar, ou explodir em estonteante beleza. ” (HILLMAN, Re-vendo a psicologia,
2010, p.211). A melhor maneira de perceber a exploração do campo imaginal é que o
Ego habitual se sente perdido, incapaz de identificar-se com as imagens. Elas devem ser
estrangeiras e familiares, misteriosas ainda que confiáveis. O ego adentraria este reino
como rastejador, depois como pupilo, finalmente como zelador, atuando pequenos
ajustes, mantendo os reparos necessários, cuidando do fogo e do calor. (HILLMAN, Re-
vendo a psicologia, 2010, p.111).
Há um paradoxo importante, pois, embora os complexos deem a interpretação e
conduzam, a realização da personalidade deveria estar aliada a vivência da “máxima
liberdade de decisão própria” (JUNG, O Desenvolvimento da Personalidade, 2013a,
§289). E liberdade na ação pois “ somente pela ação é que se torna manifesto quem
somos de verdade. ” (JUNG, O Desenvolvimento da Personalidade, 2013a, §290). O
“abaissement du niveau mental” investigado por Pierre Janet que é usado como
referência frequente na narrativa Junguiana “(...) nasce de uma típica ‘faiblesse de la
volonté’. Desde que a força de vontade seja entendida como principal força condutora e
diretora de nossa vida mental (...) o pensamento não é capaz de alcançar um
desencadeamento lógico, ou é interrompido por conteúdos estranhos que não foram
suficientemente inibidos. ” (JUNG, 1999, §505).
Questão da psicogênese ou organogênese permanece em 1939 para os chamados
sintomas primários da esquizofrenia pois, “não existe qualquer dúvida sobre a
determinação psicológica dos sintomas secundários. ” (JUNG, 1999, §512). A ativação

9
“O egoísta ("salbstisch") nada tem a ver com o conceito de Si-mesmo, tal como aqui o usamos. Por
outro lado, a realização do Si-mesmo parece ser o contrário do despojamento do Si-mesmo.” (JUNG, O
Eu e o Inconsciente, 2001, §267).

24
de complexos produziria efeitos e Jung considera que “(...) as alterações cerebrais (...)
na esquizofrenia como simples fenômenos secundários de degeneração, análogos ás
atrofias musculares das paralisias histéricas. ” (JUNG, 1999, §503).
O problema para defender a psicogênese do sintoma primário, que é considerado
raiz da desordem esquizofrênica, é o ‘abaissement’ extremo pois este poderia se dar por
vários motivos:
(...) fadiga, sono normal, êxtase, febre, anemia, forte afeto, choque, doenças
orgânicas no sistema nervoso central como também por psicologia das massas,
mentalidade primitiva, fanatismo religiosos e políticos, além de fatores
constitutivos e hereditários. (JUNG, 1999, §513)

Todo ‘abaissement’ significaria enfraquecimento do controle superior. Jung


afirma que “sem dúvida alguma os motivos psicológicos podem provocar ‘abaissement’
(...)” (JUNG, 1999, §517). E retoma a questão: “ a causa da esquizofrenia é ou não única
e absolutamente psicológica? ” (JUNG, 1999, §532). Segue afirmando “ é impossível
provar (...) se a esquizofrenia é, primariamente, uma doença orgânica ou psicológica. ”
(JUNG, 1999, §533). Entretanto sugere oferecer “ o máximo de psicologia possível, pois
vi muitos casos em que devido ao aumento do entendimento psicológico, o prognóstico
melhorou e os ataques foram menos graves. ” (JUNG, 1999, §539). Jung escreve em
1919 “ (...) os piores casos de catatonia e demência são, muitas vezes, produtos da
própria clínica, provocados pela influência psicológica do meio” (JUNG, Psicogênese
das doenças mentais, 1999, §473). Por isso refere que “ os pacientes mais graves e
mesmo os casos impossíveis. Trato como se não fossem orgânicos e sim psicogênicos. ”
(JUNG, 1999, §541).
Descreve em 1958 que a mescalina “torna perceptíveis variações associativas
que se encontram excluídas na percepção normal. (...) esta e as similares provocam um
‘abaissement’ que torna perceptíveis variações inconscientes da percepção. (...)
chamado de fascinação. A semelhança entre esse fenômeno e a esquizofrenia é
indiscutível. ” (JUNG, 1999, §569). Refere que:
O quadro psicológico e fisiológico, que se compões da soma do comportamento
da apercepção com os distúrbios do sistema simpático, do metabolismo, e da
circulação sanguínea, lembra, em muitos aspectos, um distúrbio tóxico, o que
me fez pensar há cinquenta anos na possibilidade de uma toxina metabólica
específica. (JUNG, 1999, §570).

Ainda assim afirma: “ (...) a causa psicogênica da doença é mais provável do que
a tóxica. ” (JUNG, 1999, §570). E sustenta a afirmação na experiência de ter visto
resultados verdadeiramente milagrosos de enfermeiros e leigos cheios de compreensão,

25
dedicação. (JUNG, 1999, §573). Sugere que devido a fascinação provocada pelos
conteúdos arquetípicos, “(...) o esclarecimento mais geral, ofereça uma ajuda mais
significativa do que a discussão sobre os complexos pessoais. ” (JUNG, 1999, §575).
Procurar desviar, temporariamente, o interesse das fontes pessoais de excitação,
oferecendo uma orientação mais geral e um horizonte mais amplo. “ (...) não vi um só
caso que não apresentasse um desenvolvimento lógico ou forre desprovido de nexo
causal. ” (JUNG, 1999, §577).
Os aspectos que parecem escapar do âmbito de uma explicação psicológica são
associados com um afeto intenso que apareceriam na esquizofrenia com intensidade e
frequência maiores (JUNG, 1999, §578). Nestes casos “suas expressões se fixam, sua
autonomia relativa torna-se absoluta e se apodera da consciência (...)” (JUNG, 1999,
§579). Considera que a força do complexo afetivo é mais decisivo e considera o
enfraquecimento da personalidade do Eu como fator secundário. (JUNG, 1999, §580).
O complexo permaneceria na forma arcaica e se manteria fixado. E retoma que “ na
esquizofrenia, talvez se deva pressupor como hipótese explicativa um agente nocivo
especifico, uma toxina liberada pelo afeto excessivo. ” (JUNG, 1999, §581). Faz
referência a uma pesquisa em que o estimulo do córtex occipital provocou uma visão
alucinatória de uma forma arquetípica – quadratura circuli – conhecido como mandala
(JUNG, 1999, §582); como esta forma teria papel orientador de direções e aparecem em
momentos de desorientação mental ele havia intuído sua associação com o córtex
occipital. Esta ideia poderia reforçar a hipótese de autodestruição do complexo
patogênico, através de uma toxina específica e “levaria a possibilidade de se entender o
processo destrutivo como uma espécie de defesa biológica distorcida. ” (JUNG, 1999,
§583).
Portanto a questão da dicotomia psicogênese versus neurogênese não se
sustentaria na questão da personalidade ou da unidade da consciência ou mesmo na
dominação do complexo do Ego. “A questão mais problemática é esse X hipotético,
essa quantidade indeterminada de toxina (?) metabólica”. (JUNG, 1999, p.85) que pode
sustentar a divisão entre as gêneses.
E se estas “toxinas metabólicas” forem as mesmas substâncias liberadas no
processo de formação dos traços que constituem tanto complexo do Eu como
outros? Se a utilização, as práticas e a valoração social, realizadas nos processos de
socialização e reconhecimento social na vida, desde o início, já realizassem sua
determinação ao custo de marcas de determinadas conexões, incluindo as descritas

26
como cerebrais. Poderia a ativação repetida destas conexões serem fortalecidas pelo uso
através da liberação de algumas substâncias e a forma de fortalecer produzir, ao mesmo
tempo, a destruição de outras alternativas, de outras ligações, que poderiam perturbá-la
ou competir com esta? Então, poder-se-ia pensar numa superação onde os modos de
socialização seriam ao mesmo tempo os modos de suporte do sofrimento vivido.
Isto pode levar a ideia de que haveria um tipo de sofrimento em todo processo
de socialização, de construção de identidades socialmente reconhecida, de constituição
do Eu, ao internalizar padrões de conduta que poderiam ser utilizados, normativamente,
sobre os sujeitos, a psique e a vida. Como as relações socialmente organizadas e
constituídas, ao seguirem valores, expectativas, exigências, seriam investida de várias
maneiras, sofrer-se-ia por não poder tomar distância das normas que obrigam a realizar
certos valores, certas expectativas, que, para um complexo, parece totalmente ligadas à
realização de uma vida bem-sucedida.
As normas poderiam estar internalizadas por elos de associação abstraídos dos
contextos empíricos. Jung fala de “unidade funcional” no texto sobre “o complexo de
tonalidade afetiva e seus efeitos gerais sobre a psique”; ali descreve, num exemplo, que
ao encontrar na rua um velho amigo: “(...) em meu cérebro, surge uma imagem, uma
unidade funcional (...)” (JUNG, 1999, §79). Estas unidades, construídas por abstração
de alguns elementos presentes em situação de experiência, transformaria eventos em
determinados acontecimentos assimilando-os em sistemas complexos organizados por
padrões coletivos, (transpessoais ou arquetípicos). Unidades que podem vir a ser
descritas tanto como traços arquivados em conexões neuronais, chamados de memória,
como em experiências históricas sedimentadas nos processos mais elementares, modos
de vida, valores sociais, condutas etc. que se atualizariam não apenas nos indivíduos,
mas nas produções culturais como nas artes (literatura, cinema etc.), ciência, religião e
mesmo a lógica ou a filosofia.
Assim as unidades funcionais, imagens, podem ser descritas como configurações
que associam traços de experiências valoradas por intensidades de afeto e os chamados
“traços” ou conexões neuronais, determinariam de antemão as possibilidades de reação
e organizam sistemas que fornecem o padrão e a transgressão (a regra anunciada e as
alternativas ao padrão) ligando estes a disposições de conduta independentes das
crenças que se tenha e do que está acontecendo no presente vivo.
(...) "está constelado" indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e
de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A

27
constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria
vontade. (JUNG, 1984, §198).

Se como diz Zenith é possível entender que os complexos têm uma camada
externa “casca” ligada a um “padrão peculiar de reação dependente de uma rede de
associações agrupadas em torno de uma emoção central que é adquirido
individualmente. ” (ZENITH, 2010, p.2). E um núcleo que repousa sobre um padrão
universal chamado arquétipo do inconsciente coletivo, que se apresentam como
fantasias ou imagens oníricas. Estas unidades funcionais podem se organizar a partir de
princípios de incerteza ou padrões mais profundos do funcionamento psíquico, as raízes
da alma que governam as perspectivas em cada um e no mundo; e então poder-se-ia
aproximá-las da noção daquilo que é chamado de padrão arquetípico (HILLMAN, Re-
vendo a psicologia, 2010, p.8-9).

Chega-se num ponto onde “doença mental” pode ser re-imaginada.

Assim em Jung aparece quando há o domínio permanente de um complexo


insuperável pois o sujeito estará morto para o meio ambiente pois seu interesse estaria
exclusivamente no complexo. Auxilia traçar semelhanças profundas entre esta forma de
pensar e as ideias de George Canguilhem no texto “O Normal e o Patológico”
(CANGUILHEM, 2000) quando afirma que doença acontece quando só se pode
admitir uma única norma, não se pode ultrapassá-la, infringir a norma habitual e
constituir normas novas - “o doente é doente por só poder admitir uma norma. O
doente não é anormal por ausência de norma, e sim por incapacidade de ser normativo.”
(CANGUILHEM, 2000, p.149). Ou “o que caracteriza a saúde é a possibilidade de
ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar
infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas. ”
(CANGUILHEM, 2000, p.160). Ou seja, se está doente quando se está totalmente
absorvido pelo meio; mas o meio não está do lado de fora. O meio seriam os padrões
que atravessam e constituem indivíduos, pessoas, famílias, sociedades, culturas etc. Ele
exerce seus efeitos nas ideias e valores que orientam, famílias, sociedade e não só
dirigem, mas constituem a identidade do Eu nas pessoas. E como diz Jung “A todo
indivíduo normal interessa libertar-se de um complexo obsessivo que impede o
desenvolvimento adequado da personalidade (a adaptação ao meio ambiente). ” (JUNG,
1999, §141)

28
Seria essencial ao padrão arquetípico “seu efeito emocional possessivo”
(HILLMAN, 2010, p.33). Pode-se entender que o complexo obsessivo, impediria o
desenvolvimento adequado ao se apresentar e funcionar de maneira fundamentalista
literalizante, impedindo toda distância em relação às múltiplas normas do meio
ambiente que seria essencial na adaptação. A norma (o deus) que conduz o complexo do
Eu ao funcionar como norma única tenderia fazer com que o sujeito perdesse a
plasticidade necessária ao fluxo constante da vida! Afinal “o doente é doente por só
poder admitir uma norma. O doente não é anormal por ausência de norma, e sim por
incapacidade de ser normativo. ” (CANGUILHEM, 2000, p.149).
Os complexos “patológicos” exprimiriam outras normas de vida possíveis, que
teriam organizado os eventos em constelações de forma diferente, a partir de diversos
estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos imaginativos de discurso. Padrões
arquetípicos vários legitimariam outras formas de viver, pensar, de sentir etc. O
patológico não seria a ausência de norma, mas uma norma diferente, mas repelida pela
instância que está, naquele momento, dominando a vida. Hillman segue nesta direção
dizendo que:
(...) é principalmente através dos ferimentos na vida humana que os deuses
entram (e não através de eventos pronunciadamente sagrados ou místicos),
porque a patologia é a maneira mais palpável de testemunhar os poderes que
estão além do controle do ego e mesmo da insuficiência da perspectiva egóica.
(HILLMAN, 1983, p.71).

A psicologia arquetípica, através de Hillman, fala de um estilo de consciência


heroico que procura determinar unificando ou literalizando (HILLMAN, 1975). A
literalização seria a resposta da dominação do olhar unificador no complexo do Ego
sobre o diverso, o múltiplo, as contradições no mundo, na tentativa de eliminar a tensão
entre o desconhecido, descontrolado, inquieto, pulsante e indeterminado e as
configurações determinadas. O que se apresenta como desconhecido, descontrolado é
vivido como “problemas” para este estilo que busca de paralisar o movimento constante
da vida. A psique teria um trabalho de criar patologias (Patologizar) (HILLMAN, 1975)
para dispor de bolsas ou vasos para tudo o que é outro (errado, anormal etc.) dentro da
literalidade estabelecida e permitir que o movimento não fosse bloqueado.
O Ego heroico diante do diverso, do múltiplo, da tensão busca unificar; constitui
“uma” representação diante do diverso da existência; diante de uma questão vê
problemas literais a serem resolvidos; realiza sua tarefa de coagular o múltiplo em
significados particulares que é chamado: fatos, dados, problemas, realidade.

29
Se este estilo se apropriar do controle e buscar a dominação única de sua
perspectiva sobre os movimentos e a multiplicidade da vida, se tornar-se o único deus
ao qual se deu altar, então ter-se-ia a doença!
E se for exatamente o complexo do Eu o que, ao não conseguir tomar distância
do estilo heroico de consciência, obsessivamente impede a vida em sua pulsação,
multiplicidade e indeterminação e destrói conexões diferentes no cérebro e no mundo.
Então o que Jung dizia como:
Se o complexo não se modifica de forma alguma, o que naturalmente só é
possível em grave detrimento do complexo do eu e de suas funções, então
devemos falar de uma dementia praecox. (JUNG, 1999, §141)

Isto pode fazer pensar que o complexo que não se modifica de forma alguma e
que leva a falar em demência praecox seria o próprio complexo do Eu sendo conduzido
em identificação com o estilo de consciência heroico, dominado unilateralmente pelo
pensamento dirigido e literalizante? Como dito anteriormente seria o estilo de
consciência metafórico que perturba ou a dominação do estilo dirigido de pensamento
na consciência que fica a maior parte do tempo buscando todo e qualquer traço de
fantasia para transformá-lo em ameaça literal? Não seria a dominação do estilo literal
que torna o conteúdo caricatural, grotesco e ameaçador? Se o conteúdo fosse visto e
vivido de forma simbólica, metafórica e poética como no pensamento fantasia haveria
sintoma esquizofrênico?
Jung faz referência às experiências com mescalina (JUNG, 1999, §569)
comparando com sintomas esquizofrênicos; também os estudos atuais observam que
substâncias que elevam os níveis de dopamina, como anfetaminas e cocaína, poderem
produzir sintomas quase indistintos da esquizofrenia. Esta informação deu sustentação a
hipótese (ou fantasia explicativa) da neuropsicofaramacologia, de que a dopamina seria
o neurotransmissor mais largamente considerado envolvido com a esquizofrenia (antiga
demência praecox). Soma-se a isto que todos os antipsicóticos são bloqueadores
dopaminérgicos. Os psicofármacos aceitos no tratamento dos transtornos
esquizofrênicos são, direta ou indiretamente, inibidores de dopamina como aponta
Assis, Villares e Bressan (2008).
Porém é também a dopamina que está relacionada com os sistemas de saliência e
de recompensa e prazer. O que faz com que certos sistemas tenham mais importância e
que, quanto mais usado, mais ele se fortalece e acaba por remover os outro mais fracos.
Dopamina é o neurotransmissor envolvido com a função de saliência e sistema
de recompensa e prazer em sistemas neuronais do sistema nervoso central. (...)

30
A saliência (dada pela dopamina) em certos sistemas está relacionada ao
aumento da importância que determinadas idéias apresentam para as pessoas.
(ASSIS, et al., 2008, p.158)

Se a psique produz vaso ela também mitologiza e produz diferentes narrativas


para os eventos. Refletindo sobre isto pode-se reimaginar tomando a descrição
neurofisiológica como outra narrativa10. Então, justamente o processo de constituição
do complexo do Eu, conduzido por princípios de unidade e identidade poderia se formar
incrementando a liberação de dopamina e produzindo saliência destes traços sobre
outros. Como a dopamina também se relaciona com o sistema de recompensa e prazer, a
repetição das associações salientes geraria sensação de prazer retroalimentando o
sistema. Isto incrementaria a durabilidade e estabilidade das repetições que seriam cada
vez mais prazerosas quanto mais se reproduzissem; em especial com o menor número
de interferências, obstáculos ou resistências. Pode-se entender que o resultado da
sociabilidade ao se realizar liberaria as “toxinas metabólicas” de que Jung falava. Então
estas não estariam em oposição ao funcionamento dos complexos na psique, mas seriam
a expressão da própria formação destes. “A educação tem por fim implantar complexos
duradouros na criança. (...) A tonalidade afetiva se mantêm devido a estímulos
constantemente atualizados. (JUNG, 1999, §90).
As associações com o corpo, o prazer na realização automatizada da vida
poderia tornar a vida insuperável e auxiliar o trabalho de destruição?
(...) complexo do eu : é a massa de representações do eu que, em nossa opinião,
vem acompanhada pelo tonalidade afetiva poderosa e sempre presente do
próprio corpo. (JUNG, 1999, §82)
O eu constitui a expressão psicológica de uma combinação firmemente
associada entre todas as sensações corporais. (...) complexo mais sólido e forte
(...) as ideias que se referem a nossa própria pessoa são sempre as mais estáveis
e interessantes. (JUNG, 1999, §83)

O complexo do Eu ao assumir a unificação (combinação estável de múltiplos em


um) de forma fundamentalista no domínio da vida que daria suporte ao que apareceria
como doença?
Seria o sujeito com todos aqueles estímulos, sentimentos, pensamentos e
sensações vagos e obscuros que, surgindo como perturbação e obstáculo à continuidade
da vivência consciente da unidade do objeto, que poderiam interromper a dominação
das unificações em complexos, em especial o mais forte e estável complexo, o do Eu?

10
Outra forma de descrição nem mais nem menos verdadeira como pode-se descrever água como líquido
incolor, inodoro e insipido ou como H2O.

31
Seria o afeto, como o elemento que pulsa em todas as nossas ações e omissões,
que tanto poderia fortalecer as associações assim como instabilizar os complexos
unificados possibilitando associações e conexões novas capazes de impedir a dominação
de um único estilo de consciência - de dar altar a um único deus?
Entende-se então a profundidade do que Jung e Hillman falam quando refere que
a alma ou psique teria uma particular relação com a morte (HILLMAN, 1975). A morte
como metáfora da dissolução destas relações de associações complexas que valoram a
partir das vivencias relacionadas ao funcionamento do Ego identificado com o padrão
heroico.
Jung falava da importância do conteúdo e da necessidade de aprofundar nos
processos associativos e pois não há como ficar com unidades isoladas. Afinal tudo
aparece na psique em relação ou em complexo. Hillman indicará que o olhar metafórico
dissolveria os atributos aglutinados pelo literalismo do ego heroico e quebraria a
vivência de unidade e de imediaticidade de qualquer coisa.
(...) a regressão infinita do psicologizando, seu processo interiorizante do visível
ao invisível (...) chega a um descanso ao encontrar a permanente ambiguidade
da metáfora, onde descansar e permanecer são ficções – “como se”. (...) como
todo conceito intelectual, repousa ou encontra solo permanente e base na
metáfora e pode apenas se estabelecer pelo consentimento da metáfora.
(HILLMAN, 1975, p.153)

Assim, o pensamento metafórico, simbólico, imaginativo seria uma forma de


pensar por constelações ou o que pode ser entendido como algo muito próximo de
pensar por metáforas (metáfora como uma forma de ver que se aproxima do que aparece
como constelação de atributos aglutinados e não como unidades totalizantes), seria uma
construção imaginativa que se aproxima do olhar poético e que afirma a potência
cognitiva da mímese.
Isto alinha-se a Hillman quando fala na via negativa e na natureza metafórica da
Alma:
O terapeuta não literaliza (...) ele se move ao longo da Via negativa tentando
desliteralizar todas as formulações” (...) (HILLMAN, 1983, p 76)

A natureza metafórica da alma tem uma necessidade suicida, uma afinidade


com o mundo das trevas (...) Aquele sentido de fraqueza, de inferioridade, de
mortificação, de masoquismo, e de fracasso é inerente ao método metafórico
em si, o qual anula a definição da consciência como controle sobre os
fenômenos. (HILLMAN, 1983, p.48)

32
Outros autores como Heráclito, Hegel, Nietzsche Adornoi podem inspirar
reflexões e fantasias sobre a “via negativa” - dissolução de “Unidade e Identidade” - ;
superando as oposições entre “Um e Múltiplo”, “Ser e Nada”,
Se a busca da superação não se dá em oposição, mas entregando-se aos dados.
Segue-se através da neurobiologia, acompanhada da psicofarmacologia, em seu
caminho e com todo seu avanço no sentido de localizar a determinação dos transtornos
em estruturas e sistemas de neurotransmissores no cérebro. Há um esforço para
construir explicação (fantasias explicativas), tentando eliminar a indeterminação,
localizando as determinações em mecanismos cerebrais e bioquímicos. Após a “década
do cérebro”; começou-se, então, a ver descrições de cérebros desejantes que, algumas
vezes pareciam ter tanta realidade e autonomia, que se assemelhavam a personagens
literais. Foi o próprio avanço das pesquisas e das tentativas de encontrar determinações
fixas no cérebro que produziu explicações que permitem propor sua superação. O
fracasso em suas expectativas pode permitir a transformação e a mudança.
Hoje, sistemas formados por grandes números de elementos que interagem entre
si (...) são classificados como sistemas complexos, entidades cujas propriedades
mais fundamentais tendem a “emergir” por meio de uma interação coletiva de
seus múltiplos elementos (...) o cérebro representa um modelo arquetípico de
um sistema complexo. (NICOLELIS 2011, p. 3)

Foi esta mesma ciência que, ao se realizar, chegou aos trabalhos que falam de
neuroplasticidade e permitem seguir nestas narrativas e imaginar outros horizontes onde
“O fenômeno da neuroplasticidade demonstra que a experiência deixa um traço na
rede neuronal modificando a eficácia da transferência de informações num nível sutil de
elementos do sistema. ” (ANSERMET, 2007, p.5)
Eric Kandel, Nobel de Fisiologia/Medicina em 2000 por suas descobertas sobre
a transdução de sinal no sistema nervoso, afirma que as “mudanças no
condicionamento plástico é propriedade inerente e fundamental de todo o sistema
nervoso” (KANDEL, 2006, p.95)11 e que a “plasticidade sináptica está na própria
natureza da química sináptica, em sua arquitetura molecular” (KANDEL, 2006, p.
101)12. “Força e duração da efetividade da conexão sináptica é regulada pela
experiência - o ambiente e aprendizado altera a efetividade do caminhos pré-existentes
e, portanto, lideram a expressão dos novos padrões de comportamento” (Kandel, 2006,

11
“(…) conditioned plastic change is an inherent and fundamental property of all central nervous
collectivity, whether simple or complex.” (KANDEL, 2006, p. 97
12
“(…) synaptic plasticity is built into the very nature of the chemical synapse, its molecular
architecture.” (KANDEL, 2006, p.101)

33
p.118)13. Na formação dos caminhos é fundamental o padrão de mimese e as
semelhanças. “Estímulos com padrões miméticos mudam a efetividade da
comunicação neuronal. Há receptores que agem como detectores de coincidências.
Repetição constante transforma memória explicita em implícita. ” (KANDEL, 2006, p.
81)
Mimetismo e empatia estão na base para teorias da mente embasados em
pesquisas de um grupo liderados por Giacomo Rizzolatti quem 1995 chega a descrição
dos “neurônios em espelho” onde a tividade neuronal no cérebro do macaco que
aparecia em resposta à visão de um movimento era idêntica àquela produzida quando
o macaco fazia a mesma ação. (CARTER, et al., 2009, p.11)
A neurobiologia diz ainda que a revisão atingiu as ideías sobre as percepções.
“Sensações são uma abstração, não uma replicação do mundo real.” (KANDEL, 2006,
p. 174)14
(…) A habilidade construída no cérebro busca significado para propriedades do
mundo; somente uma quantidade limitade de carcterísticas podem ser
detectadas pelos orgãos sensórios. (...) o sistema visual não simplesmente
arquiva uma cena passivamente como uma câmera faz. Diferente disto,
percepção é criativa; (...)(KANDEL, 2006, p. 171)15

(...) Cientistas confirmam as inferências da psicologia gestaltica que tinha a


crença de que nossas percepções precisas e diretas são uma ilusão – uma
ilusão perceptiva. (KANDEL, 2006, p.174)16 negritos meus

Se para Jung “situação da experiência” um certo condicionamento psíquico que


se se interpõe ao imediatamente dado (JUNG, 1984, §195). E Assimilação é uma
tendência no sujeito que o leva a interpretar de determinada maneira. Para a
neurociencia “o cérebro pode ser definido como o mais fenomenal simulador
produzido pela evolução no universo conhecido. (...) escultor paciente e preciso da
realidade (...)” (NICOLELIS, 2011, p. 55) negritos meus.
“(...) o cérebro “vê” antes de “enxergar”, para impor cada um de nós seu
próprio pontos de vista sobre o mundo que nos circunda. (...) são os encontros e
desencontros entre esses dois sinais espaçotemporais, um gerado dentro do

13
“(…) Strength—the long-term effectiveness of synaptic connections—is regulated by experience. This
view implies that the potential for many of an organism's behaviors is built into the brain and is to that
extent under genetic and developmental control; however, a creature's environment and learning alter the
effectiveness of the preexisting pathways, thereby leading to the expression of new patterns of behavior.”
(KANDEL, 2006, p.118)
14
“Sensation is an abstraction, not a replication, of the real world.” (KANDEL, 2006, p.174)
15
(…) the brain's built-in ability to derive meaning from the properties of the world, only limited features
of which can be detected by the peripheral sensory organs. (…) visual system does not simply record a
scene passively, as a camera does. Rather, perception is creative: (…)” (KANDEL, 2006) p. 171
16
(…) scientists confirmed the inferences of the Gestalt Psychologists by showing us that the belief that
our perceptions are precise and direct is an illusion—a perceptual illusion.

34
cérebro e o outro proveniente da transdução do estímulo do mundo exterior, que
definem o que percebemos como realidade. Isso implica que a (...) verdade
absoluta não existe, (...) essa colisão neurofisiológica sintetiza o princípio da
contextualização. (NICOLELIS, 2011, p. 416-417) negritos meus

Mesmo a memória que poderia ser vista como a força que ligaria as experiências
para que não ficassem fragmentadas; que seria “essencial não apenas para a
continuidade da identidade individual, mas também para a transmissão da cultura e
evolução da sociedades através dos séculos” (KANDEL, 2006, p.10) ao ser estudada
revela-se também como um processo criativo. O que a memória resgata é um
processo criativo. O que o cérebro arquiva é somente a memória de um traço central.
Quando recobrado este traço central de memória, ele sofre elaborações sobre si e é
reconstruído com subtrações, adições, elaborações e distorções. (KANDEL, 2006, p.
163) 17
Os mecanismos da memória são descritos como relacionais e complexos e não
como unidades isoladas; “(...) os mecanismos celulares de aprendizagem e memória
não residem nas propriedades especiais do neurônio em si, mas nas conexões que ele
recebe e faz com outras células no circuito neural a que pertence.” (KANDEL, 2006, p.
86) negritos meus
Pode-se entender que o processo de resgate da memória é um processo criativo
com interferências, reimaginação etc. Portanto é possível recordar apenas a memória
como ela se apresenta hoje; e depois de trabalhada por todo os processos de elaboração
e vivências que se passaram até a atualidade. Em outras palavras, só há memória do
presente. Assim, “através da imaginação os homens tem acesso aos deuses: através da
memória os deuses entram em nossas vidas.” (HILLMAN, 1984, p.161).
James Hillman já apontava a noção de inconsciente como não diferindo “do que
uma vez foi chamado por Santo Agostinho memória, memória Dei ou Thesaurus
inscrutabilis.” (HILLMAN, 1984, p. 154). Afirma que:
Os fenómenos assim chamados inconscientes que não se adequam à nossa
definição de consciência, e portanto se tornaram “patológicos” e “in”-
consciêntes, possam ser melhor concebidos como veredas tortuosas para a
memória, como caminhos que conduzem a zonas perdidas da alma, à sua
imaginação e sua história. (HILLMAN, 1984, p. 157 )

A memória como processo criativo pode aproximar do que foi descrito como
“arte da memória”; seria a “arte de ordenar o thesaurus inscrutabilis. (...) agrupava todo

17
“Recall of memory is a creative process. What the brain stores is thought to be only a core memory.
Upon recall, this core memory is then elaborated upon and reconstructed, with subtractions, additions,
elaborations, and distortions.” (KANDEL, 2006, p. 163)

35
conhecimento humano segundo categorias significativas onde conteúdo e sistemas
referen-se um ao outro. Os princípios da imaginação usados como universais por este
sistema eram pricipalmente os deuses, os heróis,(...) ” (HILLMAN, 1984, p.159). No
palácio da memória, de que falava Santo Agostinho, o homem fica maravilhado de
perceber que o que existe é o presente das coisas passadas, o presente das coisas futuras
e o presente das coisas presentes.
(...) nenhum estimulo sensorial é processado sem ser comparado com as
predisposições e expectativas internas do cérebro construídas arduamente ao
longo de incontáveis encontros com outros eventos similares e não tão
similares, estocados nas memórias que definem toda uma vida (NICOLELIS,
2011, p.54)

Se para Jung o complexo afetivo goza de autonomia com tendência a movimento


próprio e “constelação seria “processo psíquico que consiste na aglutinação e na
atualização de determinados conteúdos.” (JUNG,1984,§198). As fantasias
neurobiologicas reforçam a autonomia dos circuitos mesmo com perdas.
(...) os neurônios que formam circuitos neurais são altamente adaptáveis,
ou plásticos. Quando neurônios são lesados ou morrem, aqueles que
permanecem ativos num circuito são capazes de auto-reorganizar suas
propriedades fisiológicas, sua morfologia, e a conectividade. (...) o circuito
remanescente consegue, (...) suplantar a perda de alguns de seus elementos
celulares. (NICOLELIS, 2011, p. 46)

De acordo com Lashley (...) Os cérebros dos animais do experimento


demonstraram ser extremamente resistentes e resilientes, capazes de continuar
processando informações a despeito de extensas lesões. (NICOLELIS, 2011,
p. 40)

A multiplicidade da cosnciencia é reforçada em narrativas como: “Duas das


mais preciosas possessões do ser humano – seu senso de eu e sua imagem corporal –
não passam de criações fluidas e altamente plásticas, (...) estes atributos podem
mudar, ou ser modificados, em poucos segundos.” (NICOLELIS, 2011, p. 39)
A natureza unitária da consciência coloca um problema difícil, mas talvez não
incontornável. Esta natureza unitária pode quebrar. Em um paciente cirúrgico
cujo cérebro é cortado entre os dois hemisférios, existem duas mentes
conscientes, cada um com a sua própria percepção unificada. (KANDEL,
2006, p.215)

A noçao mesmo de liberdade já questionada em Jung na teoria dos complexos


pois “a liberdade do eu cessa onde começa a esfera dos complexos, (...)” (JUNG, 1984,
§216). As experimentos de Benjamim Libet citados por Kandel também indicam uma
problematização da liberdade de ação.

36
o potencial de prontidão está presente 1 segundo antes da pessoa levantar um
dedo (...) o potencial de prontidão aparece não depois, mas 200 milissegundos
antes da pessoa sentir a urgência de mover seu dedo! (...) Nos 200
milissegundos antes do dedo levantar, consciência determina se ele move ou
não. (...) nossa mente consciente talvez não tenha liberdade de ação, mas
tem certamente liberdade de não agir. (KANDEL, 2006, p. 220 – 221)
negritos meus.

Mesmo a centralidade da coordenação da consciência é problematizada pois


Damásio descreve que
No modesto nível (...) uma reunião espontânea de imagens que emergem
uma após a outra (...) de um lado a imagem de um objeto e de outro a imagem
do protoself mudado pelo objeto. Não são necessárias estrutura adicionais (...).
A coordenação é natural, (...) a execução é bem satisfatória sem maestro.(...)
Mas quando os conteúdos processados na mente são muito numerosos, é preciso
outros mecanismos para obter coordenação. Neste caso, várias regiões nos
córtices cerebrais e em nível superior tem um papel especial. (...) a partitura e
o maestro só se tornam realidade à medida que a vida acontece.
(DAMÁSIO, 2011, p.40) negritos meus.

As narrativas neurocientificas apresentam uma consciência que assimila tal qual


disse Jung:
(...) se o cérebro humano podia manter viva a representação de um membro não
existente, certamente também poderia incorporar todos os adornos
sobrepostos ao corpo de carne e osso. (...) é capaz de alterar a configuração
espacial dessa sensação a ponto de podermos assimilar todo tipo de ferramenta
como uma simples extensão de nosso eu. (NICOLELIS, 2011, p. 335/336/337)
negritos meus.

(...)todos os futuros desenvolvimentos tecnológicos engendrados pela mente


serão ativa e continuamente assimilados como parte de nosso senso de
Eu.(NICOLELIS, 2011, p.350) (...) nosso senso de eu não é limitado à última
camada do epitélio que reveste o corpo mortal. (...) nosso eu se estende para
nossas roupas, relógios, anéis, próteses, (...) e todas as outras adições
aplicadas à superfície ou interior do corpo. (NICOLELIS, 2011, p. 350- 351)
negritos meus.

Se para Jung o indivíduo nunca é perfeito sem relações com os demais pois “o
homem isolado carece de integridade, pois só a encontra por meio da alma, que por
sua vez não pode existir sem outro aspecto, o qual sempre se encontra no “tu”.” (JUNG,
1978, p.110); em outra narrativa o outro é assimilado como fundamento do amor.
(...) embora a evidência experimental para esta hipótese ainda seja pequena,
acredito que, (...) o cérebro também incorpora, como parte verdadeira de cada
um de nós, os corpos dos demais seres vivos que nos cercam na vida
cotidiano. (...) essa obra prima cerebral é também conhecida com o nome de
amor (NICOLELIS, 2011, p.354) negritos meus.

A questão ganha mais desdobramentos com estudos de neuroplasticidade que


afirmam haver uma massiva poda neuronal que remove mais da metade das sinapses até

37
a puberdade, no transcorrer habitual da vida. O crescimento sináptico, seguido por
poda, que acompanha o desenvolvimento, aumentaria a performance da rede de
associações da memória com recursos sinápticos limitados. “A melhor estratégia de
poda neuronal se mostra no apagamento ou destruição de sinapses de acordo com sua
eficácia, removendo as sinapses mais fracas primeiro”18 (CHECHIK, et al., 1999). Erik
Kandel relata idéias semalhantes: “Habituação de longo termo leva o neurônio sensorial
a retrair seus terminais ativos, resultando em quase que completo desligamento da
transmissão sináptica” (KANDEL, 2006, p. 126)19
O desuso das sinapses ocasionaria sua atrofia e perda de suas funções. Se Jung
apontava que o nascimento da psiquiatria se deu no seio do materialismo pernicioso e
que há muito tempo “ela vem privilegiando ao órgão, o instrumento, em detrimento da
função” (JUNG, 1999, §324), a propria neuropsiquiatria, ao realizar-se, chega a afirmar
que, literalmente, a função faria o órgão. “O número de conecções sinápticas não são
fixas. Elas mudam com o aprendizado.” (KANDEL, 2006, p.126)20
No ser humano, um momento de intensa perda neuronal ocorre por volta dos
nove aos treze meses de idade, quando se aprende a caminhar. (...) os neurônios
visuais e outros que captavam a realidade de uma altura inferior passam a ser
não só desnecessários, mas também interferir com nossa visão de bípedes. Pelo
falta de uso esses neurônios são rapidamente eliminados. (...) Este é o período
de maior morte neuronal de nossas vidas (...) a partir daí vamos perdendo
neurônios gradualmente, até o fim de nossos dias. (IZQUERDO, 2007, p. 49)

Os estudos da neurobiologia afirmam a importância fundamental do ambiente na


determinação da estrutura neuronal. Assim as memória de curta duração derivam de
mudanças funcionais resultados de realções com o ambiente; as de longo termo de
mudanças estruturais consequência das alterações nos circuitos neuronais (memória de
curto termo) terem se repetido em grande frequência e intensidade.
Força e duração da efetividade da conexão sináptica é regulada pela experiência
- o ambiente e aprendizado altera a efetividade dos caminhos pré-existentes e,
portanto lideram a expressão dos novos padrões de comportamento (KANDEL,
2006, p.118)

Mesmo os padrões de ajustamento da transcrição de genes em particular se dão


em resposta a sinais ambientais. “A função genética pode ser regulada para mais ou para
menos em resposta à necessidades ambientais através de moléculas sinalizadoras do

18
“The optimal pruning strategy was found to delete synapses according to their efficacy, removing the
weaker synapses first.”
19
“Long-term habituation causes the sensory neuron to retract its active terminal, leading to an almost
complete shutdown of synaptic transmission.” (KANDEL, 2006, p. 126)
20
“(…) the number of synapses in the brain is not fixed—it changes with learning! Moreover, long-term
memory persists for as long as the anatomical changes are maintained.” (KANDEL, 2006, p. 126)

38
exterior da célula assim como do interior desta.” (KANDEL, 2006, p.152)21. “(…) gens
são também servidores do ambiente. Eles são guiados pelos eventos do mundo
exterior.” (KANDEL, 2006, p.154) 22
É interessante resgatar que tanto para Jung como para Hillman “os deuses
tornaram-se doenças” (JUNG, 2003, §54) o que indica a importância de reimaginar a
psicopatologia olhando-a metaforica e poeticamente e também é um neurocientista que
afirma: “(...) se a mente humana não é computável, existe pouca esperança de que
físicos teóricos sejam capazes de produzir uma teoria reducionista radical. (...)
qualquer narrativa não poética da realidade não tem nenhuma chance de ser
completa. (NICOLELIS, 2011, p.458) negritos meus
No encontro anual da Associação Psiquiátrica Americana de 2007 o Dr. Fred H.
Cage, (GAGE, 2007), neurocientista nomeado como um dos 100 maiores inovadores do
século XXI, apresentou descobertas que invertem os paradigmas das funções cerebrais e
mostram um cérebro cheio de possibilidades e indeterminações, com uma plasticidade
altamente dependente das formas de pensar e viver. O cérebro que se apresentava como
a esperança de localizar a determinação, ao se realizar, mostra toda sua indeterminação
e devolve às formas de vida os conflitos e contradições.
Assim, já não se pode mais saber o que se quer dizer quando fala-se de
neurogênese e de psicogênese uma vez que a neurogênese realizou-se como
manifestação de marcas dos processos de socialização e constituição de sujeitos, marcas
da psique (a alma no mundo) e psicogênese realizou-se em marcas em relações
associativas nas narrativas sobre os circuitos e cadeias neuronais.
Agora sim poder-se-ia pensar numa superação, pois os dois termos da
contradição perderam seus sentidos. Já não se sabe mais do que se falar ao dizer cada
um deles. O esforço em discriminá-los pode falar mais de sujeitos que não podem tomar
distâncias das normas protagonizadas pelas linhas metafóricas básicas acima
apresentadas do que pela interesse real de ficar com a psique e com a vida no contexto
presente.
Referências
ADORNO, Teodoro W. Negative Dialectics. Trad. Newton Ramos de Oliveira. Frankfurt:
Suhrkamp, 1970.

21
“(…) gene function can be regulated up and down in response to environmental needs by signaling
molecules from outside the cell (such as different sugars) as well as from inside the cell (second
messenger signals such as cyclic AMP) was revolutionary to me.” (KANDEL, 2006, p.152)
22
“(…) genes also are servants of the environment. They are guided by events in the outside world.
(KANDEL, 2006) P.154

39
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40
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<http://zenithjr.blogspot.com.br/2010/10/teoria-junguiana-dos-complexos-
arryson.html>.

i
Heráclito ao dizer que: O combate (Pólemos) é o que é comum; onde a harmonia
visível esconde a tensão, não visível; esta tensão é a mais bela Harmonia! Afirma a não
existência de solução para a tensão. Não escutar a tensão constitutiva das coisas, levaria os
homens a viverem como se possuíssem um particular e tomarem por particular o que é comum.
(HERÁCLITO, 1973).
Para Nietzsche “toda palavra torna-se conceito quando tem de convir a um sem-número
de casos, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais.” (NIETZSCHE, 1978, p.48) E
chamamos de igual o desigual para podermos nos comunicar.
Adorno aponta que é através das operações de construção de unidade e identidade, onde
torna-se igual o desigual, que se instala um sistema de equivalências; tudo pode ser
transformado em unidade e visto como uma coisa (reificação) e adquire uma forma que permite
trocas (forma mercadoria). “Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por
fim, ao uno, passa a ser ilusão” (ADORNO, 1985, p.8) E ainda máxima apresentada por Adorno
no texto “Dialética Negativa”: “a unidade é a forma originária da ideologia” (ADORNO, 1970,
p.151). O princípio da unificação do diverso da intuição sensível, sob a forma de um objeto, que
é dado pelo próprio “Eu”, leva à coisificação do mundo. (ADORNO, 1985.) A aproximação
metafórica quebra a vivência de unidade ou de imediaticidade de qualquer coisa porque para o
olhar metafórico uma coisa nunca é “uma” coisa apenas; ela é sempre muitas coisas ao mesmo
tempo sem deixar de ser ela; a coisa surge como todos os seus atributos e todos eles sempre
estão em posição de relação com outros que também são múltiplos. Afinal toda operação de
relação é uma operação sintética; mesmo que tais relações sejam construídas através de
negações determinadas, como é o caso da dialética. Há uma forma de síntese no olhar
metafórico, mas nunca é possível representá-la numa forma única; seriam “sínteses não
violentas” como fala Adorno (ADORNO, 1970). Assim, uma coisa pode ser não só várias
coisas, mas ser coisa opostas, contraditórias ao mesmo tempo, sem deixar de ser. Se a palavra é
o assassinato da coisa, a metáfora seria a traição da palavra!
Para Hegel toda determinação é um processo relacional. Só se determinaria algo em
relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo; quando é posto em uma situação, em um
contexto próprio a existência. Determina-se um objeto através do acesso as suas qualidades, mas
como toda qualidade é uma determinação relacional, a identidade do ser consigo mesmo é
sempre em trabalho de contraste relacional tentando excluir uns dos outros. Fora das estruturas
de relação só pode haver indeterminação. O Ser aparece como o excesso que indica como toda
estruturação de objeto vai ser sempre assombrada pela indeterminação. Ser e Nada são

41
abstrações. O devir seria o primeiro pensamento concreto. O devir introduziria a oposição no
interior do Ser. Nada no interior do Ser é o devir (HEGEL, 1995). Pode-se pensar então em
determinação para além da ideia da determinação atributiva de predicados limitadores e em
objeto para além da ideia do objeto como polo fixo da identidade.
Diferente do que poderia parecer não se dissolvem as oposições simples defendendo ou
atacando qualquer das posições contrarias; supera-se as contradições reconhecendo-as em
negação determinada e mostrando que a realização de uma é a passagem na outra e vice-versa,
até o ponto em que não se sabe mais o que quer dizer qualquer um dos polos. Este processo não
se dá pela observação ou pela distância, mas rompe-se a “casca dura” da imediaticidade dos
fatos aprofundando na particularidade configurada como fatos, dados, problemas, realidade,
colocando-as em contexto, devolvendo à vida. “A metáfora, como método do logos da alma,
basicamente resulta na entrega ao que é dado, (...)” (HILLMAN, 1983, p.48).
Neste processo, não só esta separação é questionada, como a aproximação metafórica e
o pensar por constelação serve para a realização de um estilo de consciência que supere estas
dicotomias. É o que Hillman chamou de Ego Imaginal que veria “realidade das fantasias através
da ilusão dos problemas” (HILLMAN, 2010, p.268) Pode-se pensar então que esta divisão se
coloca como uma fantasia defensiva em relação ao medo da mistura, da indiscriminação, mas o
medo de outra forma de ego e de razão que não seja tão unitária e orientada pelos princípios de
identidades, igualdade, diferenças; medo de superar um eu capturado pela instrumentalização.
O eu integralmente capturado pela civilização se reduz a um elemento dessa inumanidade, à qual
a civilização desde o início procurou escapar. Para a civilização, a vida no estado natural puro, a
vida animal e vegetativa, constituía o perigo absoluto. Um após o outro, os comportamentos
mimético, mítico e metafísico foram considerados como eras superadas, de tal sorte que a ideia
de recair neles estava associada ao pavor de que o eu revertesse à mera natureza, da qual havia se
alienado com esforço indizível e que por isso mesmo infundia nele indizível terror. (ADORNO,
1985, p. 17)

42

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