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Artigo
Psique e ética em C. G. Jung: o lugar do irracional na constituição do etos
Antonio Gregory Rocha Carvalho*
José Célio Freire
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Psicologia. Fortaleza, CE, Brasil
Resumo: O artigo põe em questão uma afirmação de Jung de que a ética se resumiria na relação entre homem e
Deus. Tomando-a como problema, busca uma articulação entre os conceitos junguianos para uma resposta do que
se entende por ética nessa perspectiva. Esboçamos um percurso que passa pelos problemas dos opostos morais,
pelo confronto com a sombra e, por fim, abordamos a questão que inicia a pesquisa. Ao final, argumentamos
que tal relação aduzida por Jung é, em termos psicológicos, a relação entre o eu e o si-mesmo. A ética seria nesse
sistema uma resposta a uma outra voz suprarracional, “a voz de Deus”, que, para além da pura estética da imagem,
conjuga consciente e inconsciente; demanda a totalidade da personalidade.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e20180133
Antonio Gregory Rocha Carvalho& José Célio Freire
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Dessas leituras emergiram algumas questões que a que sistema psíquico o objeto da indagação se refere”
justificaram esse trabalho. Como entender estas últimas (Jung, 1935/1988, § 1). Essa tese não resvala, no entanto,
ideias trazidas por Jung de que a “ética se resume à relação num relativismo absoluto. Na medida em que a própria
entre homem e Deus”? Estaria ele fazendo proselitismo? individualidade não é singularidade, isto é, absoluta
Decerto que não. Então, como se articulam essas individualidade, é possível ainda falar de um ser genérico e
afirmações ao conjunto maior de sua obra? Como podemos assim fazer afirmações científicas. “Consequentemente, estas
pensar sua concepção de ética com relação à alteridade? afirmações podem referir-se unicamente às partes do sistema
Para nos aproximarmos de uma solução a essas psíquico conformes, isto é, às que podem ser comparadas, e,
perguntas, traçamos um percurso metodológico que irá portanto, apanhadas estatisticamente, e não ao individual,
passar pelos conceitos junguianos aventados até aqui: em ao único dentro do sistema” (Jung, 1935/1988, § 1). É então
primeiro lugar, a questão do bem e do mal e o seu lugar que chegamos a outro paradoxo, que necessariamente requer
nesta psicologia. Em segundo, abordaremos o arquétipo uma segunda antinomia fundamental:
da sombra, que se acha intimamente ligado aos opostos
citados. Avançaremos, por fim, ao problema da relação O individual não importa perante o genérico, e o
entre o homem e Deus (ou a imago Dei), quando tentaremos genérico não importa perante o individual. Como
elucidar as afirmações de Jung anteriormente citadas. é sabido, não existe um elefante genérico; apenas
elefantes individuais. Mas, se o genérico não
Uma teoria antinômica da psique existisse, e houvesse uma constante multiplicidade
de elefantes, um elefante único e individual seria
Uma etapa imprescindível para chegarmos ao extremamente inverossímil. (Jung, 1935/1988, § 1,
problema dos opostos morais em Jung é entender sua grifos do autor)
concepção de psiquismo, pois esta noção é o que parece
sustentar seu argumento sobre os polos morais bem e Essas considerações de Jung (1935/1988) nos
mal – e sobre qualquer outro par de opostos psíquicos informam claramente que, desde cedo, ele solucionou
–, bem como sobre a atitude do indivíduo diante deles. de forma bastante elegante a questão da profusão de
Num artigo de 1935, Jung (1935/1988) discute teorias e métodos de tratamento psicológico que surgiam
uma questão epistemológica que ainda hoje acompanha a com o tempo3. Apesar da notável semelhança com nossa
psicologia. Ele compara a situação da psicoterapia da época atual forma de lidar com os diferentes pressupostos
àquela da física moderna, então em desenvolvimento, com teórico-metodológicos – identificamos psicologias e
suas teorias contraditórias sobre um mesmo fenômeno – a não mais uma psicologia (Figueiredo & Santi, 2010) –,
exemplo da luz, sobre a qual acabou-se aceitando, não Jung vai além da simples aceitação dessas diferenças, mas
sem grande resistência, uma teoria de sua natureza dual: identifica aí, talvez, a forma mais correta de lidar com o
ondulatória e corpuscular –, e assume que não há razão fenômeno, isto é, caracterizando-o de forma antinômica.
para se entender o fenômeno psíquico diferentemente. Temos assim um método próprio à psicologia analítica,
A verdade é que a psicologia está numa situação que conduz a clínica junguiana, o qual ele irá denominar
muito mais crítica do que a física, a qual ainda pode nesse momento de método dialético:
dispor de medidas materiais, não tão dependentes do
sujeito, e objetos consideravelmente mais estáveis do que Tenho que optar necessariamente por um método
os das psicologias. Entretanto, no nível de uma física de dialético, que consiste em confrontar as averiguações
partículas, é provável que a comparação de Jung ainda mútuas. Mas isto só se torna possível se eu deixar ao
seja válida. Mas, muito além de simplesmente considerar outro a oportunidade de apresentar seu material o
a psique uma realidade complexa, para Jung ela só pode mais completamente possível, sem limitá-lo pelos
ser descrita satisfatoriamente por meio de paradoxos, meus pressupostos. (Jung, 1935/1988, § 2)
ou melhor, de antinomias. Para ele, uma das antinomias
fundamentais da psicologia: O “pressuposto” junguiano é, portanto, o de
que, enquanto psicoterapeuta, eu não posso escolher
É a proposição: A psique depende do corpo, e o entre uma ou outra visão de mundo, entre um ou outro
corpo depende da psique. Para ambas as afirmações preceito moral, pois assim fecho as possibilidades de
desta antinomia existem provas óbvias, de tal desenvolvimento, imponho previamente um dado valor à
maneira que um juízo objetivo não poderá decidir-se vida daquela individualidade, e assim reatualizo o que é
pela preponderância da tese sobre a antítese. (Jung, próprio da neurose, isto é, a limitação das possibilidades
1935/1988, § 1, grifos do autor) de vida, o insulamento da pessoa e o engessamento das
significações.
Para Jung, isso destaca outra característica sobre o
estado atual de nossa ciência, qual seja, a de que podemos 3 Não podemos deixar de notar, entretanto, que Jung não passou ileso à
(quase) irresistível pretensão de criar, se não uma teoria, no mínimo,
tecer afirmações válidas apenas relativamente. “É que uma linguagem geral para as ciências psicológicas, como o descreve
a afirmação só é válida na medida em que for indicado Shamdasani (2011).
Abstract: The article calls into question Jung’s assertion that ethics would be summed up in the relationship between man and
God. Taking it as a problem, it seeks an articulation between the Jungian concepts for an answer of what is meant by ethics in this
perspective. We outline a course that goes through the problems of moral opposites, the confrontation with the shadow, and finally,
we approach the question that starts the research. In the end, we argue that such a relationship referred to by Jung is, in psychological
terms, the relationship between the ego and the Self. Ethics would be in this system a response to that other supra-rational voice, “the
voice of God,” which, beyond the pure aesthetics of the image, combines conscious and unconscious; demands the entire personality.
Résumé: L’article remet en question l’affirmation de Jung selon laquelle l’éthique serait résumée dans la relation entre l’homme
et Dieu. Prenant cela comme un problème, il cherche une articulation entre les concepts jungiens pour une réponse de ce que
l’on entend par éthique dans cette perspective. Nous décrivons un parcours qui passe par les problèmes d’opposés moraux,
la confrontation avec l’ombre, et enfin, nous abordons la question qui lance la recherche. En fin de compte, nous affirmons
qu’une relation telle que Jung est, en termes psychologiques, la relation entre le soi et le soi. L’éthique serait dans ce système
une réponse à une autre voix supra-rationnelle, “la voix de Dieu”, qui, au-delà de la pure esthétique de l’image, se combine
consciemment et inconsciemment; demande toute la personnalité.
Resumen: El artículo pone en cuestión una afirmación de Jung de que la ética se resumiría en la relación entre hombre y Dios.
Tomándola como problema, busca una articulación entre los conceptos junguianos para una respuesta de lo que se entiende por
ética en esa perspectiva. Esbozamos un recorrido que pasa por los problemas de los opuestos morales, por el enfrentamiento con la
sombra y, por fin, abordamos la cuestión que inicia la investigación. Al final, argumentamos que tal relación planteada por Jung es, en
términos psicológicos, la relación entre el yo y el sí mismo. La ética sería en ese sistema una respuesta a otra voz, suprarracional, “la voz
de Dios”, que más allá de la pura estética de la imagen, conjuga consciente e inconsciente; demanda la totalidad de la personalidad.
REFERÊNCIAS
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