Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução: Este trabalho irá abordar o tema da relação entre o passado e o presente
no segundo e terceiro capítulos da obra Matéria e memória do filósofo francês Henri
Bergson. Para isso, iremos nos aprofundar nos temas do reconhecimento atento, a diferença
entre passado e presente, os argumentos de Bergson para a existência do inconsciente e a
relação das duas memórias pela figura do cone.
Reconhecimento atento
Já no terceiro capítulo de sua obra, Bergson, agora, vai se aprofundar ainda mais na
memória e no espírito, com o objetivo de explicar como as imagens sobrevivem. Para isso,
será preciso que o pensador estude como o tempo decorre e, como isso é sentido pelo nosso
corpo.
Ora, definimos sempre três formas em que podemos dividir o tempo: passado,
presente e futuro. O primeiro, já decorreu e não volta mais, enquanto que o último é um
mistério que não se descobre até que cheguemos até ele. Já o presente, seria o momento em
que estamos inseridos, porém, devido a essa característica essencial do tempo de decorrer,
seria impossível descrever um presente “ideal” que separaria o passado do futuro
perfeitamente.
Não, o presente real, aquele que vivemos e experienciamos, é mais complexo do que
uma “ideia”. O momento presente, que é “agarrado” pela percepção, necessita de uma
duração e, por isso, pode-se dizer que ele se estende pelo passado e, ao mesmo tempo, pelo
futuro.
“ Sobre meu passado em primeiro lugar, pois ‘o momento em que falo já
está distante de mim’; sobre meu futuro a seguir, pois é sobre o futuro que esse
momento está inclinado, é para o futuro que eu tendo, e se eu pudesse fixar esse
indivisível presente, esse elemento infinitesimal da curva do tempo, é a direção do
futuro que ele mostraria.”(Bergson, 1999, p.161).
A partir disso, o autor descreve as duas percepções em que o momento presente se
apoia, seriam estas o “passado imediato” e o “futuro imediato”. Isso quer dizer que o presente
está fundado em uma sensação e uma ação (ou movimento). O passado imediato é uma
sensação pois, quando percebemos algo, a percepção se prolonga em sensações em nosso
corpo. “Não há percepção que não se prolongue em movimento.”(Bergson, 1999, p.105). E o
futuro imediato, que é algo que ainda não se definiu, ou seja, está por vir, seria uma ação ou
movimento que ainda virá a acontecer. Esse presente, formado pelas sensações do passado
imediato e ações do futuro imediato, é um só. Portanto, é correto afirmar que a essência do
presente é exatamente a relação das sensações com os movimentos, ou seja, o presente é
“sensório-motor”. Isso é, basicamente, afirmar que “[...] meu presente consiste na
consciência que tenho de meu corpo.”(Bergson, 1999, p. 162).
É assim que Bergson define o presente. Nosso corpo a todo momento sente e
movimenta-se no mundo material, enquanto este também influi sobre ele. O presente é um
corte no devir, sendo sempre único e efêmero com sensações e movimentos específicos.
“Se a matéria, enquanto extensão no espaço, deve ser definida, em nossa
opinião, como um presente que não cessa de recomeçar, nosso presente,
inversamente, é a própria materialidade de nossa existência, ou seja, um conjunto
de sensações e de movimentos, nada mais.”(Bergson, 1999, p. 162).
Para Bergson, o presente é interessante em nossas vidas, afinal estamos sempre
inseridos nele, é nele que a vida acontece, conforme foi definido acima. Enquanto o passado,
é “[...] essencialmente impotente.”(Bergson, 1999, p. 160). No entanto, é verdade que,
conforme afirma o autor, o passado sobrevive no presente quando uma “lembrança pura” é
resgatada pela consciência por se mostrar útil à percepção atual, mas nesse ponto ela
abandona seu título de lembrança pura e se torna apenas uma “lembrança-imagem”. Dessa
forma, o passado rapidamente se mistura com o presente na forma de sensações nascentes
provocadas pela lembrança pura.
“Ora, é nesse sentido que essas lembranças, que Bergson denomina
lembranças-imagem, participam ao mesmo tempo da lembrança pura e da
percepção. São um misto, e por isso possibilitam uma continuidade entre passado e
presente, [...]”(Silene, 2017, p. 79).
Segundo o autor, uma lembrança pura não está localizada em nenhuma parte do corpo e
possui profundas diferenças com a lembrança atualizada em imagem que se relaciona com a
percepção presente.
“A imagem é um estado presente, e só pode participar do passado através
da lembrança da qual ela saiu. A lembrança, ao contrário, impotente enquanto
permanece inútil, não se mistura com a sensação e não se vincula ao presente,
sendo portanto inextensiva.”(Bergson, 1999, p. 164).
Nesse ponto de sua obra, Bergson adentra os argumentos sobre a existência de estados
psicológicos inconscientes, questão que colabora para o entendimento de como a lembrança
pura, mesmo sem estar localizada em nenhuma parte do corpo, existe e é de suma
importância. Ora, a dificuldade em se admitir a existência de tais estados se deu pois a
consciência, que é o estado psicológico presente responsável pelas ações e pela tomada de
decisões, é tomado como essencial. De forma que conceber algo diferente disso, algo que
escapa o presente e acontece, por essência, sem o nosso conhecimento parece absurdo e
inexistente. No entanto, o filósofo nos mostra que não devemos assumir a inexistência de
algo apenas porque somos incapazes de percebê-lo. Da mesma forma que uma cidade não
deixa de existir, com suas pessoas, prédios, lojas, carros, etc; mesmo a uma distância que
escapa minha percepção, o inconsciente existe, embora seja incapaz de ser percebido.
“Em outras palavras, no domínio psicológico, consciência não seria
sinônimo de existência mas apenas de ação real ou de eficácia imediata, e,
achando-se assim limitada a extensão desse termo, haveria menos dificuldade em
se representar um estado psicológico inconsciente, isto é, em suma,
impotente.”(Bergson, 1999, p. 165)
O trabalho da consciência é iluminar o que é necessário para a ação útil percebida no
momento, para assim decidir o que será feito pelo corpo, tudo aquilo que ela ignora seria o
inconsciente.
Para além deste exemplo, pode-se considerar como nossa percepção está sempre
limitada a uma determinada distância em que recebemos os estímulos do mundo das imagens.
Não é possível perceber o que está fora desse alcance perceptivo, mas mesmo assim sabemos
que as imagens não acabam e podemos supor o que está por vir baseado nelas. Isso forma
uma espécie de círculo em que a nossa percepção está envolta, e esse círculo está cercado de
várias outras camadas de círculos de imagens que, embora não percebidas, estão presentes e,
existe, em nós, uma certa noção de que estão ali.“É portanto da essência de nossa percepção
atual, enquanto extensa, ser sempre apenas um conteúdo em relação a uma experiência mais
vasta,[...]”(Bergson, 1999, p. 169). O mesmo pode ser pensado para o inconsciente.
Além disso, o mundo material, como visto no primeiro capítulo da obra, funciona por
regras intrínsecas aos objetos. Assim, é fácil compreender a ideia de que todos estão
relacionados por uma cadeia e, essa cadeia é percebida pelo corpo, que a percorre por um elo,
e que, por sua vez, também é estruturado por uma cadeia de lembranças que determinam seu
caráter. Ou seja, é sobre isso que a Figura 3 (p. 167) trata, uma cadeia de objetos
relacionados entre si AB (mundo material), que é percorrida por um elo l (percepção
presente) e esse elo suporta todas as lembranças C (experiência subjetiva do corpo no
mundo).
“Sob essa forma condensada, nossa vida psicológica anterior existe
inclusive mais, para nós, do que o mundo externo, do qual nunca percebemos mais
do que uma parte muito pequena, enquanto ao contrário utilizamos a totalidade de
nossa experiência vivida.”(Bergson, 1999, p. 171).
Nossas experiências passadas parecem desaparecer conforme o tempo passa, no entanto,
Bergson nos deixa claro como elas apenas parecem fazer isso, já que nossa consciência tende
a rejeitar tudo aquilo que não seja útil para a percepção atual, embora a totalidade de nossa
experiência esteja contida no inconsciente.
Portanto, onde as lembranças se localizam?1 A partir do momento que o passado
deixa de ser útil à percepção presente ele parece desaparecer, mas o que realmente existe a
não ser o momento presente? O corte no devir percebido pelo corpo constantemente se
renova e, a todo momento, repete-se a percepção pela consciência, que ilumina aquilo que
seria útil das lembranças e, assim seguimos, mas “[...] toda percepção é já memória. Nós só
percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do
passado a roer o futuro.”(Bergson, 1999, p. 176). Então, a consciência ilumina o passado
imediato, que está sendo útil ao futuro indeterminado se desenvolvendo, nesse processo, é
capaz, também, de atingir partes mais obscuras das lembranças que se provam úteis à
percepção atual, todo o resto permanece na escuridão.
“Nossa repugnância em admitir a sobrevivência integral do passado deve-
se portanto à própria orientação de nossa vida psicológica, verdadeiro desenrolar
de estados em que nos interessa olhar o que se desenrola, e não o que está
inteiramente desenrolado.”(Bergson, 1999, p. 176).
Referências Bibliográficas:
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2°
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MARQUES, Silene Torres. Memória e criação em Bergson: Sobre o fenômeno da atenção e
os planos de consciência. Artigos/Articles, 2017.