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Universidade Federal de São Carlos

Gabriel Randi Donadelli


RA: 771596
História da Filosofia Contemporânea I

A relação entre o Presente e o Passado em Matéria e memória de Henri


Bergson.

Introdução: Este trabalho irá abordar o tema da relação entre o passado e o presente
no segundo e terceiro capítulos da obra Matéria e memória do filósofo francês Henri
Bergson. Para isso, iremos nos aprofundar nos temas do reconhecimento atento, a diferença
entre passado e presente, os argumentos de Bergson para a existência do inconsciente e a
relação das duas memórias pela figura do cone.

No primeiro capítulo de Matéria e memória, Bergson explica a percepção em sua


forma “pura” que, embora não exista realmente, facilita a compreensão. No entanto, ao final
desse capítulo o pensador abandonou essa teoria, já que, como será introduzido e estudado
nos capítulos seguintes, não existe percepção que não esteja encoberta de lembranças.
Portanto, depois da apresentação inicial sobre o mundo das imagens e o papel do corpo,
agora, seguimos para que a memória tome seu lugar na filosofia do pensador francês.
Nosso corpo, ou ainda, nosso centro de ação, para Bergson, é o responsável por
receber estímulos do mundo material. Tais estímulos são convertidos em movimentos ao
passarem pelo sistema nervoso e, se não gerarem uma ação reflexa, chegarão até o cérebro
para que este defina, a sua vontade, qual ação será gerada pelos mecanismos motores do
corpo. Dessa forma, o filósofo deixa claro que a única forma que o passado possui de
sobreviver em nosso corpo, no presente, é por meio dos dispositivos motores, e somente por
meio destes.
“[...] a percepção de um objeto provoca em nós movimentos pelos quais a
ele nos adaptamos; a repetição desses movimentos cria mecanismos que se tornam
hábito e determinam as atitudes que, se ajustando ‘automaticamente’ à nossa
percepção das coisas, proporcionam a reação apropriada: o ‘equilíbrio com o
meio’ se dá desse modo e, assim também o passado fica registrado através dos
hábitos motores.” (Silene, 2017, p. 73).

Reconhecimento atento

“Ora, o ato concreto pelo qual reavemos o passado no presente é o


reconhecimento.”(Bergson, 1999, p. 99). Segundo o autor, existem dois tipos de
reconhecimento: o reconhecimento por distração e o atento. Ambos possuem sua base nos
mecanismos motores de nosso corpo. O primeiro se dá de forma automática, pelo hábito, ou
seja, reconhecemos o que está à nossa volta sem refletir sobre, apenas por estarmos
habituados aos estímulos. Já o reconhecimento atento exige um maior esforço.
Diferentemente do reconhecimento por distração, que prolonga a percepção para
buscar um efeito útil nos mecanismos motores do corpo, o atento renuncia o movimento e
retorna ao objeto a fim de torná-lo mais claro para a percepção. Isso se dá através de duas
fases da atenção descritas por Bergson. Primeiramente, é causado um efeito negativo na
percepção: são recusados os movimentos que se mostram úteis perante ao que está sendo
percebido, ou seja, a consciência inibe a atividade motora que se mostrou útil para a situação
presente e, em seguida, agora com um efeito que pode ser considerado positivo, torna a
reconhecer o objeto, desta vez, com o intuito de sublinhar melhor suas características.
Aqui, a memória entra em jogo para dar suporte ao trabalho de atenção do corpo.
Após a recusa dos movimentos úteis, a memória irá auxiliar a percepção buscando
lembranças parecidas ou análogas ao presente, a fim de projetá-las na percepção, para que o
reconhecimento seja completo e possa sublinhar todos os contornos necessários da percepção
atual. Dessa forma, é possível absorver com mais detalhes tudo que foi o alvo da atenção do
corpo. E mesmo que as lembranças buscadas pela memória não sejam suficientes para cobrir
todo o necessário, ela continua a relembrar até que a percepção esteja inteiramente
esclarecida, em um trabalho que pode se estender de forma indefinida.
“Mas toda percepção atenta supõe de fato, no sentido etimológico da palavra, uma
reflexão, ou seja, a projeção exterior de uma imagem ativamente criada, idêntica ou
semelhante ao objeto, e que vem moldar-se em seus contornos.”(Bergson, 1999, p.116).
Dessa forma, o autor descreve o reconhecimento atento como um circuito elétrico, onde a
memória recolhe imagens-lembranças que se assemelham ao objeto para poder detalhar seus
contornos, além de que, por um esforço intelectual maior, é capaz de buscar ainda mais fundo
lembranças que se encaixam na percepção presente, construindo assim, outros circuitos que
se encaixam, todos relacionados com o objeto percebido. “Nossa percepção distinta é
verdadeiramente comparável a um círculo fechado, onde a imagem-percepção dirigida ao
espírito e a imagem-lembrança lançada no espaço correriam uma atrás da outra.”(Bergson,
1999. p. 117).
O filósofo ainda relata sobre a profundidade crescente, que consiste na atenção
gerando mais sistemas percebidos em que o objeto pode se relacionar. Ou seja, pode-se
atingir não só camadas mais profundas da memória pelo esforço da atenção, mas também
camadas mais profundas da realidade em que as reflexões dos sistemas de lembranças
atingidos pela memória se insinuam.
“É a totalidade da memória, conforme veremos, que entra em cada
um desses circuitos, já que a memória está sempre presente; mas essa memória,
que sua elasticidade permite dilatar indefinidamente, reflete sobre o objeto um
número crescente de coisas sugeridas - ora os detalhes do próprio objeto, ora
detalhes concomitantes capazes de ajudar a esclarecê-lo.”(Bergson, 1999, p. 119).

Passado, presente e a existência do inconsciente

Já no terceiro capítulo de sua obra, Bergson, agora, vai se aprofundar ainda mais na
memória e no espírito, com o objetivo de explicar como as imagens sobrevivem. Para isso,
será preciso que o pensador estude como o tempo decorre e, como isso é sentido pelo nosso
corpo.
Ora, definimos sempre três formas em que podemos dividir o tempo: passado,
presente e futuro. O primeiro, já decorreu e não volta mais, enquanto que o último é um
mistério que não se descobre até que cheguemos até ele. Já o presente, seria o momento em
que estamos inseridos, porém, devido a essa característica essencial do tempo de decorrer,
seria impossível descrever um presente “ideal” que separaria o passado do futuro
perfeitamente.
Não, o presente real, aquele que vivemos e experienciamos, é mais complexo do que
uma “ideia”. O momento presente, que é “agarrado” pela percepção, necessita de uma
duração e, por isso, pode-se dizer que ele se estende pelo passado e, ao mesmo tempo, pelo
futuro.
“ Sobre meu passado em primeiro lugar, pois ‘o momento em que falo já
está distante de mim’; sobre meu futuro a seguir, pois é sobre o futuro que esse
momento está inclinado, é para o futuro que eu tendo, e se eu pudesse fixar esse
indivisível presente, esse elemento infinitesimal da curva do tempo, é a direção do
futuro que ele mostraria.”(Bergson, 1999, p.161).
A partir disso, o autor descreve as duas percepções em que o momento presente se
apoia, seriam estas o “passado imediato” e o “futuro imediato”. Isso quer dizer que o presente
está fundado em uma sensação e uma ação (ou movimento). O passado imediato é uma
sensação pois, quando percebemos algo, a percepção se prolonga em sensações em nosso
corpo. “Não há percepção que não se prolongue em movimento.”(Bergson, 1999, p.105). E o
futuro imediato, que é algo que ainda não se definiu, ou seja, está por vir, seria uma ação ou
movimento que ainda virá a acontecer. Esse presente, formado pelas sensações do passado
imediato e ações do futuro imediato, é um só. Portanto, é correto afirmar que a essência do
presente é exatamente a relação das sensações com os movimentos, ou seja, o presente é
“sensório-motor”. Isso é, basicamente, afirmar que “[...] meu presente consiste na
consciência que tenho de meu corpo.”(Bergson, 1999, p. 162).
É assim que Bergson define o presente. Nosso corpo a todo momento sente e
movimenta-se no mundo material, enquanto este também influi sobre ele. O presente é um
corte no devir, sendo sempre único e efêmero com sensações e movimentos específicos.
“Se a matéria, enquanto extensão no espaço, deve ser definida, em nossa
opinião, como um presente que não cessa de recomeçar, nosso presente,
inversamente, é a própria materialidade de nossa existência, ou seja, um conjunto
de sensações e de movimentos, nada mais.”(Bergson, 1999, p. 162).
Para Bergson, o presente é interessante em nossas vidas, afinal estamos sempre
inseridos nele, é nele que a vida acontece, conforme foi definido acima. Enquanto o passado,
é “[...] essencialmente impotente.”(Bergson, 1999, p. 160). No entanto, é verdade que,
conforme afirma o autor, o passado sobrevive no presente quando uma “lembrança pura” é
resgatada pela consciência por se mostrar útil à percepção atual, mas nesse ponto ela
abandona seu título de lembrança pura e se torna apenas uma “lembrança-imagem”. Dessa
forma, o passado rapidamente se mistura com o presente na forma de sensações nascentes
provocadas pela lembrança pura.
“Ora, é nesse sentido que essas lembranças, que Bergson denomina
lembranças-imagem, participam ao mesmo tempo da lembrança pura e da
percepção. São um misto, e por isso possibilitam uma continuidade entre passado e
presente, [...]”(Silene, 2017, p. 79).
Segundo o autor, uma lembrança pura não está localizada em nenhuma parte do corpo e
possui profundas diferenças com a lembrança atualizada em imagem que se relaciona com a
percepção presente.
“A imagem é um estado presente, e só pode participar do passado através
da lembrança da qual ela saiu. A lembrança, ao contrário, impotente enquanto
permanece inútil, não se mistura com a sensação e não se vincula ao presente,
sendo portanto inextensiva.”(Bergson, 1999, p. 164).
Nesse ponto de sua obra, Bergson adentra os argumentos sobre a existência de estados
psicológicos inconscientes, questão que colabora para o entendimento de como a lembrança
pura, mesmo sem estar localizada em nenhuma parte do corpo, existe e é de suma
importância. Ora, a dificuldade em se admitir a existência de tais estados se deu pois a
consciência, que é o estado psicológico presente responsável pelas ações e pela tomada de
decisões, é tomado como essencial. De forma que conceber algo diferente disso, algo que
escapa o presente e acontece, por essência, sem o nosso conhecimento parece absurdo e
inexistente. No entanto, o filósofo nos mostra que não devemos assumir a inexistência de
algo apenas porque somos incapazes de percebê-lo. Da mesma forma que uma cidade não
deixa de existir, com suas pessoas, prédios, lojas, carros, etc; mesmo a uma distância que
escapa minha percepção, o inconsciente existe, embora seja incapaz de ser percebido.
“Em outras palavras, no domínio psicológico, consciência não seria
sinônimo de existência mas apenas de ação real ou de eficácia imediata, e,
achando-se assim limitada a extensão desse termo, haveria menos dificuldade em
se representar um estado psicológico inconsciente, isto é, em suma,
impotente.”(Bergson, 1999, p. 165)
O trabalho da consciência é iluminar o que é necessário para a ação útil percebida no
momento, para assim decidir o que será feito pelo corpo, tudo aquilo que ela ignora seria o
inconsciente.
Para além deste exemplo, pode-se considerar como nossa percepção está sempre
limitada a uma determinada distância em que recebemos os estímulos do mundo das imagens.
Não é possível perceber o que está fora desse alcance perceptivo, mas mesmo assim sabemos
que as imagens não acabam e podemos supor o que está por vir baseado nelas. Isso forma
uma espécie de círculo em que a nossa percepção está envolta, e esse círculo está cercado de
várias outras camadas de círculos de imagens que, embora não percebidas, estão presentes e,
existe, em nós, uma certa noção de que estão ali.“É portanto da essência de nossa percepção
atual, enquanto extensa, ser sempre apenas um conteúdo em relação a uma experiência mais
vasta,[...]”(Bergson, 1999, p. 169). O mesmo pode ser pensado para o inconsciente.
Além disso, o mundo material, como visto no primeiro capítulo da obra, funciona por
regras intrínsecas aos objetos. Assim, é fácil compreender a ideia de que todos estão
relacionados por uma cadeia e, essa cadeia é percebida pelo corpo, que a percorre por um elo,
e que, por sua vez, também é estruturado por uma cadeia de lembranças que determinam seu
caráter. Ou seja, é sobre isso que a Figura 3 (p. 167) trata, uma cadeia de objetos
relacionados entre si AB (mundo material), que é percorrida por um elo l (percepção
presente) e esse elo suporta todas as lembranças C (experiência subjetiva do corpo no
mundo).
“Sob essa forma condensada, nossa vida psicológica anterior existe
inclusive mais, para nós, do que o mundo externo, do qual nunca percebemos mais
do que uma parte muito pequena, enquanto ao contrário utilizamos a totalidade de
nossa experiência vivida.”(Bergson, 1999, p. 171).
Nossas experiências passadas parecem desaparecer conforme o tempo passa, no entanto,
Bergson nos deixa claro como elas apenas parecem fazer isso, já que nossa consciência tende
a rejeitar tudo aquilo que não seja útil para a percepção atual, embora a totalidade de nossa
experiência esteja contida no inconsciente.
Portanto, onde as lembranças se localizam?1 A partir do momento que o passado
deixa de ser útil à percepção presente ele parece desaparecer, mas o que realmente existe a
não ser o momento presente? O corte no devir percebido pelo corpo constantemente se
renova e, a todo momento, repete-se a percepção pela consciência, que ilumina aquilo que
seria útil das lembranças e, assim seguimos, mas “[...] toda percepção é já memória. Nós só
percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do
passado a roer o futuro.”(Bergson, 1999, p. 176). Então, a consciência ilumina o passado
imediato, que está sendo útil ao futuro indeterminado se desenvolvendo, nesse processo, é
capaz, também, de atingir partes mais obscuras das lembranças que se provam úteis à
percepção atual, todo o resto permanece na escuridão.
“Nossa repugnância em admitir a sobrevivência integral do passado deve-
se portanto à própria orientação de nossa vida psicológica, verdadeiro desenrolar
de estados em que nos interessa olhar o que se desenrola, e não o que está
inteiramente desenrolado.”(Bergson, 1999, p. 176).

A figura do cone e as duas memórias

Na verdade, Bergson define os dois tipos de memórias existentes já no segundo


capítulo de seu livro, porém elas serão melhor entendidas aqui, ao relacioná-las com a figura
do cone. Segundo ele, o passado se preserva de duas formas: através de dispositivos motores
construídos pelo corpo com o passar do tempo; e na forma de lembranças independentes.
A primeira se dá pelo hábito, através da repetição de movimentos que acabam se
tornando usuais ao corpo. Este, monta dispositivos motores que não refletem imagens do
passado e sim, movimentos no presente. Já a memória espontânea, ou como já foi abordado, a
memória pura, ou até verdadeira, salva todas as imagens de nossa experiência na ordem que
acontecem e com uma marca de duração específica, além de estender-se juntamente com a
consciência. O que será apresentado de novo, agora, em relação a essas memórias é a forma
como elas trabalham em conjunto.
Aqui, o corpo toma o papel principal novamente. Nosso centro de ação pode ser visto
como o lugar de passagem para as memórias, assim como para os movimentos, é ele que
suporta tudo isso, ele está localizado ao mesmo tempo no presente da matéria e do tempo.
Dessa forma, Bergson traz o exemplo de um cone SAB de base AB com seu vértice S
tocando um plano P. Esse exemplo pode ser observado como a Figura 3 comentada
anteriormente, porém com uma maior profundidade, tanto dimensional quanto teórica, uma
maneira eficaz de exemplificar o funcionamento dessas duas memórias e como elas se
relacionam.
“O único serviço regular e certo que a segunda pode prestar à primeira é mostrar-
lhe as imagens daquilo que precedeu ou seguiu situações análogas à situação

1 O filósofo explicita que a hipótese de um local no cérebro responsável por acumular


lembranças é impossível, já que o cérebro pertence ao mundo material e seria inviável ele se
conservar em meio ao vir-a-ser a que todas as imagens estão submetidas, algo que já havia
sido bem esclarecido em seu primeiro capítulo.
presente, a fim de esclarecer sua escolha: nisto consiste a associação de
idéias.”(Bergson, 1999, p. 97)
O cone inteiro SAB representa as lembranças de uma vida inteira, a base AB se funda
em um passado imóvel, enquanto o plano P seria o mundo material em que o corpo S
percorre à vontade, enquanto que o cone, propriamente dito, seria a totalidade das lembranças
adquiridas, as quais estariam “flutuando” acima do mundo das imagens, o corpo S se
encontra, também, no mundo material mesmo sendo uma parte fundamental do cone, é ele
que serve como o condutor do conteúdo do cone para o mundo das imagens.
Portanto, da mesma forma que o corpo fornece o meio para que as lembranças se
projetem em sensações úteis para a percepção, a memória fornece para o corpo as lembranças
puras que ajudam nas reações possíveis. Então, é uma relação mútua de apoio que pode ser
observada entre as memórias. “Em outras palavras, é do presente que parte o apelo ao qual
a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a
lembrança retira o calor que lhe confere vida.”(Bergson, 1999, p. 179).

Referências Bibliográficas:

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2°
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MARQUES, Silene Torres. Memória e criação em Bergson: Sobre o fenômeno da atenção e
os planos de consciência. Artigos/Articles, 2017.

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