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DICIONÁRIO DA PERFORMANCE

E DO TEATRO CONTEMPORÂNEO
.p ,
DICIONARIO DA
ERFORMANCE
EDO

TEATRO
CONTEMPORÂNEO

PATRICE PAVIS

Supervisão editorial: J. Guinsburg


Tradução: J. Guinsburg
Mareio Honorio de Godoy [verbete s das letras B, O e V]
Adriano C.A. e Sou sa [verbetes da letra C]
Preparação de texto: Mareio Honorio de Godoy
Revisão: Adriano C.A. e Sousa
Produção textual: Luiz Henrique Soares e Elen Durando
Capa: Sergio Kon ~\I/~
Produção: Ricardo W Neves · ~ ~ PERSPECTIVA
Sergio Kon
Lia N. Marques
~I\\~
Título do original
Dictionnaire de la performance'et du théâtre contemporain, by Patrice PAVIS © ARMAND COLIN,
Paris, 2014, first edition.
ARMAND COLIN is a trademark of DUNOD Editeur - 11, rue Paul Bert - 92240 MALAKOFF.

NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA

crr-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros , RT

P3 6 Sd
Pavis, Patrice, 1947- Com a presente tradução deste Dicionário da constrói com sua reconhecida erudição, vale
Dicionario da p erformance e do teatro contem p or âneo I Patri ce
Pavis ; tradução Jacó Gu ínsburg, Mareio Hon ório de Godoy, Adri an o C. Performance e do Teatro Contemporâneo, de ressaltar a discussão crítica nos planos filosó-
A. e Sou sa. 1. ed . - São Paulo: Perspectiva, 2017. Patrice Pavis, a editora Perspectiva dá pros- fico, antropológico, estético, social e político a
344 p. ; 26 em .
seguimento ao seu projeto de publicações da que submete suas entradas. Sua postura, que
Tra dução de: Dictionnaire de la performance et du théât re bibliografia especializada nas artes cênicas. não é do deslumbramento e da entrega mera-
contemporain
Trata-se, pois, de trazer ao nosso leitor obras mente entusiástica à inovação nem da recusa
ISB N 978852 7311144
relevantes para o conhecimento e o debate da ou apego a cânones estéticos preestabelecidos,
Teatro '- Dicionários. 2. Teatro (Literatura) - Dicionários,
L
Jacó. 11. God óy, Mareio Honório de. UI. Sousa, Adri an o C. A. e. [V
criação e da história, das teorias e das práticas procura detectar analiticamente seus valo-
na arte teatral, à luz de seus principais proble- res sem, estabelecê-los de forma autoritária
79 2 .03 mas e tendências. No entanto, neste livro em e como concepções e essências conceituais
CDU: 792
particular, o que se tem em vista não é a sele- inamovíveis. Poder-se -ia até dizer que se tem
02/10/2017 aqui, neste volume, um autêntico balanço de
ção e a análise de urna conceituação firmada
nos modelos e na produção que se tomaram todo esse universo contraditório, contrastante
clássicos através dos séculos, e que já foram e, por vezes, caótico, dos procedimentos, das
objeto do Dicionário de Teatro, do mesrno vivências e das conquistas da arte dramatúr-
autor. O foco fundamental aqui volta -se para gica e cênica na contemporaneidade, o que
as realizações mais recentes da cena em quais- inclui os seus mais extremos desdobramentos.
quer de seus palcos, a partir, notadamente, da Para tanto, apoia-se no seu próprio cabedal
segunda metade do século xx, quando a mani- e numa ampla bibliografia dos mais perti-
festação teatral deixa de ser textocêntrica na nentes e audaciosos críticos e criadores da
acepção tradicional, para se libertar em nome atualidade.
da teatralidade, da criatividade e da expres- A tarefa de traduzi-lo, por isso mesmo,
Direitos reservados em língua portuguesa à sividade em todos os espaços possíveis e em não foi das mais simples, Pois, além das
E D IT O RA PERSPECTIVA LTDA.
incorporações das mais inusitadas, ou seja, as dificuldades 11aturais que se apresentam
que se tornaram conhecidas corno as do pós- na transposição de um leito linguístico para
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
-moderno e do pós-dramático, sob a égide da outro e da linguagem ainda pouco forma-
01401-000 São Paulo SP Brasil
Telefax: (n) 3885-8388 performance artevivência. lizada no trato dessas novas modalidades,
www.editoraperspectiva.com,br Nesse quadro, afora os consistentes ensina- sornados a urna exposição comunicativa que
2 0 17 mentos que o autor desse conjunto de verbetes vai ao coloquial e é empregada por Patrice
Pavis com os vastos recursos do fran- o nosso idioma com adaptações, algumas
cês' tornou-se necessário levar em conta vezes toscas, de termos anglo-afrancesados,
e acompanhá-lo nos numerosos neologis- Fizemo-lo com a esperança de que o leitor
mos e anglicismos, que certamente poriam nos perdoará esse atrevimento, caso os textos
em pé os cabelos não só de Racine como até deste dicionário lhe tragam o proveito que
de Artaud... Isso significou, é claro, forçar gostaríamos de lhe proporcionar.

T. GUINSBURG

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

A publicação desta edição brasileira de meu nos anos 198o ~ Diferentemente desses .paí-
Dicionário da Perforrnance e do Teatro Con- ses onde reina forte -pragmatismo econômico
te mpor ãne o m e causa particular prazer. e cultural, os estudos teatrais, no Brasil.feliz-
Pri meiro porque ela foi preparada com o mente não foram re calcados em «proveito"
má ximo cuidado pela prestigiosa editora dos performances studies. Não se trata de um
Perspectiva; depois, porque ela aparece ou outro, 111as um com o outro. Essa sábia
onde O meu primeiro Dicionário (de teatro) decisão brasileira, que r tenha sido voluntária
veio anteriormente à luz; enfim e sobretudo ou não, favorecida ou tolerada pela institui-
po rque meu livro.está assim acessível aos lei- ção universitária, ,é para mim de importância
tores brasileiros e lus ófonos, a um público, capital, everdadeiramenteuma sorte, pois ela
portanto, que se interessa de perto pela teo- vai no sentido demeu trabalho há uma vin -
ria do teatro, das artes e da cultura. Eu pude tena de anos , clljO~:~(lço se encontrará aqui.
verificá-lo repetidas vezes quando de minhas Não negligenciando-o teatro e a encenação
via gens ao Brasil por ocasião de seminários como arte, abrindo ao mesmotempo os estu-
ministrados nas universidades desse país. dos de nossa disciplina, Set11 exclusividade
O debate teórlco permanece vivo, exi - nem' exclusão, a outras práticas espetacu-
gente e atual em terras brasileiras. Talvez - é lares e culturais, as famosas performances
UlTI 3 hipótese pessoal - porque esse grande culturais, nós estendemos nosso domínio ao
paí s se situa no cruzamento das culturas, das número infinito da s práticas sociais e artís-
artes, das tradições e das práticas. O conhe- ticas . A mise en scéne perJ.11anece uma arte
cim ento das performances culturais de todos e um sistema est éticoque podemos' anali-
os tipos não é coisa nova. O trabalho dos sar corno sistemaautônomo, mas no qual e
antropólogos, dos sociólogos brasileiros ou sobre o qual podemos depositar uma série de
dos pesquisadores que atuaram aí preparou olhares metódicos e intuitivos. Esse sistema
os performances studies nos Estados Unidos e , permanece analisável, apesar da diversidade
no mundo angl ófono,enquanto esses estudos de dispositivos e da complexidade das expe -
podeiram ter-se identificado e desenvolvido riências dos artistas como espectadores.
no Brasil ou na América Latina muito antes Eis por que tenho esperança de que este
de seu irresistível surto norte-americano livro encontre em vosso país um público
abe rto às mud an ças sociais e ao mesmo explicação e compreensão sob o pretexto
tempo desejoso, por isso ou apesar disso, não de que elas são prejudiciais à experiên -
sei, de continuar o aprofundamento teórico cia estética individual da obra. Pois não
na tradição da dramaturgia e da encena- basta declarar como "experiência estética"
ção. Explico na introdução geral o que me a recepção subjetiva do espectador; ainda
guiou nesse trabalho, em particular depois é preciso descrever e julgar essa experiên-
do meu Dicionário de Teatro, cuja primeira cia' avaliar se ela ren de realm ente ju stiça à
edição remonta a 1980, e sua concepção a
1976, ·quando, deixando a outra América,
complexid ade da obra.
Não se pode mais atualmente fazer eco-
,
a do extremo norte, o Canadá, e me ins- nomia de uma reflexão teórica sobre esse FA I
talando em Paris, constatei que somente a fenômeno da globalização, n ão som ente
teoria semiológica e estrutural podia ajudar eco nômica , naturalmente, 111as t am bérn
teóricos e práticos a colocar as bases de um cultural e dramatúrgica, o qu e exige novos
pensamento sistemático e analítico. Qua- instrumentos de análise. Seme lhante análise
renta anos mais tarde, é antes o excesso de do impacto da globali zação so bre as obras
teor ias, de disciplinas, de abordagens, de teatrais não' se limita mais à teoria liter ária
atitu des, de formas híbridas em constante ou teatral. Ela recor re às ciências soc iais,
Desde os anos de 1990, a natureza do teatro Dicionário da Perjormance e do Teatro Con -
evolução que impressiona o espectador e o econômicas, t anto qu an to à filosofia e à
e a concepção que temos dele mudaram con- temporâneo. Minha única esperança é que
amante de arte. O que desconcerta esses últi- antropologia. Face a tal desafio, cunlpre tam-
sideravelmente. A tal ponto que não estamos este livro não chegue nem tarde demais nem
1110S não é tanto a profusão e a sofisticação bém encorajar a verdadeira pesquisa artística
mais muito seguros de qual nome lhe dar, cedo demais. Tarde demais, porque o tea-
das novas disciplinas e abordagens quanto a que traz à luz no ssos m étodos de análise.
onde encontrá-lo e quais questões lhe pro- tr'~ 'c{tu-~i' i de t~l modo volátil que ele terá
dificuldade de seriar o importante e o aces- Dada a riqueza e a diversidade das expe-
desaparecido antes que se tome conheci -
por. Trata-se do teatro na tradição ocidental
sório, a mudança frequente de perspectiva, riências espetaculares cotidianas do público
grega: o drama e seu texto, a en cen ação e rnento dele; cedo demais, porque não se
o familiar e o estranho. brasileiro, ten h o confiança de qu e me u lei-
suas realizações, a arte da perforrnance; poderia ainda englobar com o olhar e com
Ao mesmo tempo, o teatro, que hoje viaja tor há de querer de fato m e se gu ir nes sas
ou então, uma performance cultural entre o pensamerito suas infinitas metamorfo-
um bocado, tem dificuldade para se habituar nova s reflexões sobre a diversid ade das per-
muitas outras, uma mídia tornada em uma ses, e seria precis o projetar-se no próximo
às constantes mudanças de perspectiva, às formances e das obr as teatrais. Gostaria de
sé culo, supon do-s e que a necessidade se
intermidialidade. uma arte híbrida ou, ainda,
diferentes tradições nacionais em jogo e convid á-lo a con str uir e a desconstruir
um evento no espaço público? faça então se ntir. Co m o não posso espe-
às simplificações induzidas pela globaliza- tos estéticos e críticos com as ferramen tas
Essa crise de identidade do teatro e do srar tanto tempo, eu lHe decidi a propor este
ção. Os anos 1980-1990 nos entregaram às aqui propostas . Sua experiênc ia é certamente
esp etác u los intimida o esp ectador d essa ensa io, não SelTI urna advertência. Ningu ém
ve zes produtos globalizados, espetáculos individual, m as também coletiva, pois ela
arte em veste de Arl equim. Se os expertos se espantará, de fato, com a vontade de apli -
intercam biáveis, simplificados, estandardi- engaja todos os m embros de um p úblico e
car pala vras e conceitos sobre um objeto
e os crít icos , os doutores da faculdade não
zado s, reduzidos a imagens espetaculares, de uma sociedade. É C0111 essa esperança que
con segu em mais pôr-se de acordo sobre o tã o evanescente que parece escapar a todo
evit an do o uso da língua julgada inapta à saúdo meus qu erid os leitores brasileiros, tão
tern a de sua investigação e o objeto de seudiscurso racional, a toda definição explica-
co m u n ica ção intercultural, não faz endo distantes, m as tão pr óxim os naquilo que nos
de sejo, como poderia o am ador encontrar- tiva. No entanto, essa jocosa confusão é uma
mais referência às culturas locais. A teoria une, no coração mesmo de nosso teatro con-
oportunidade para avaliar as metamorfoses
-se aí, corn o ousaria ele transpor a porta dos
de ve se resguardar de fazer a mesma coi sa, temporân eo em vias de se fazer e já em vias
teatro s, tanto mais quanto muitas vezes já estéticas da arte cênica e para oferecer algu-
de simplificar as problem áticas, de rejeitar de mudar.
não há mais porta nem edifício teatral, nem mas reflexões acerca das novas produções
artísticas.
sequer uma instituição que invoque sua filia-
ção a essa palavra arcaica? Eu não pret endo, entretanto, desenhar
exatam ente os contorn os de todas essas
noções teóricas, COTI10 seria o caso n os ter-
OB JET O mos bem definidos da dramaturgia clássica.
Essa mutação do "teatro" (term o provi- Quis apresentar sim plesm ente a situação
sório . .. ) é precisamente o objeto deste geral das artes da cena e de alguns OPNI

o
prefácio

(Objetos Performativos Nã o Id en t ifica - o objeto de pesquisas mais antropológicas norte-americana ou australiana, dos perfor- lúdicos. Apesar da complexidade e da glo-
dos). Parti de um levantamento de termos do que estéticas. E, com efeito, se se com- mance studies, e inversamente. Esses dois balidade dos fenômenos, creio ainda ser
críticos e teóricos frequentemente utiliza- preende a performatividade como aquilo que modos, com efeito, têm a tendência de se possível uma explicação teórica, em uma
dos desde os anos de 1960, e mais ainda anima uma maneira de fazer, de se inscrever ignorar, tanto em suas produções artísticas disciplina do pensamento.
de sde a virada do milênio. É, com efeito - é no espaço social, de "aplicar" o teatro a fins quanto em sua visada teórica para abordar Ouve-se com frequência dizer que a arte e
absolutamente necessário escolher referências educativos ou políticos (corno faz o applied as obras. Ao mesmo tenlpo, o processo de o teatro teriam renunciado à teoria, que eles
históricas - após a queda do Muro de Berlim theater, o teatro aplicado), vê-se, então, que globalização aproxima os espetáculos, os a considerariam como inútil e pedante, que
(199 0 ) e a das torres gêmeas de Nova York a paisagem «teatral" mudou, de fato, muito espectadores e as maneiras de falar da encena- não se poderia doravante explicar o mundo,
(2001) que se observa uma mutação eco- desde os anos de 1990. ção ou da performance. As linguagens críticas e menos ainda mudá-lo. O pós-moderno e
n ôrnica, tanto quanto filosófica e estética, Ainda que se desaprove essa evolução e se misturam, os conceitos tornam-se ambí- o pós-dramático se fizeram os campôes
da atividade tea tral. Desde os anos de 1980, que a gente se julgue incapaz de dar conta guos, os métodos sincrétícos.Daí por que dessa atitude. Os visitantes dos museus e
o te atro conheceu ao m en os t rês muta- dela, por causa da pletora d e experiências m eu desejo seria também o de sair da pers- dos teatros, os professores, os estu dantes e
ções consideráveis: o ápi ce e o declínio da perforrnativas, não se poderia ignorar sua pectiva eurocentrista e olhar, doravante, como os críticos são tentados pelo niilismo e estão
encenação crítica e política do s clássicos; o riqueza e seu impacto sobre o teatro esté- nossos vizinhos tão próximos da China, do prontos a rejeitar toda reflexão teórica, todo
aparecimento de um teatro de imagens que tico e ficcional do velho continente. O teatro Japão e da Coreia, mas também da África e da método de análise ou de aprendizagem. No
reagrupa as práticas cênicas as mais diver- desde sempre foi um espelho aumentativo América Latina, participam desse New Deal entanto, se examinamos o trabalho de jovens
sas e visa a uma autonomia esté tica; o su rto da evolução de sociedades e de artes, ofere- da arte dos espetáculos e de sua teorização. pesquisadores em sociologia, em antropo-
e o declínio, U lTI tão rápid o qua n to o outro, cendo seus serviços à sociologia do s atores Meu trabalho consistiu paradoxalmente logia, em economia ou em estética, ficamos
do teatro inte rcultural. Par al elamente a sociais, à psicanálise, à serniologia, susci- em referenciar noções particularmente impressionados pela novidade e pela quali-
essa evolução do teat ro ainda cons id er ado tando nos usuários performances de todo turvas ou contraditórias da prática e da lin- dade de suas investigações, e nos dizemos
como objeto es tético e ficcioria l, a ins- gênero. A recente confrontação en tre a mise guageITIteatral, em substituí-las no contexto que seria necessário agora aplicar e adaptar
titucionalização, no mundo pragmático en scêne e a performance, entre o estético e a de seus diversos empregos, em retraçar suas seus resultados aos estudos do teatro e da
anglo-americano, dos performances studies antropologia, entre a arte e a sociedade, deu interferências e suas trocas. Em relação ao performance em nossa cultura "perforrna-
e dos cultural studies torno u -se o fenô m eno nascimento a obras e pensamentos dos quais meu Dicionário de Teatro (1980, 1987, 1996), tiva" Seus estudos estarão, não cabe dúvidas,
marcante dessa ár ea cu ltura l e lin guística. não se tinha antes ideia. O presente di cio- os termos e as noções deste novo traba- na fonte de uma mudança real na sociedade]
Em es cala internaci o n al, o cres cimen to nário já seria feliz se chegasse a fazer sentir lho não têm nada de clássico; eles são, em no gerenciamento cultural e nas artes. Ma s
extraordinário das cu ltu ral pe rfo rm an- esses fortes movimentos se desse todos os sentidos da palavra, discutíveis: nossa reflexãosobre o teatro contemporâneo
ces é o fenômeno marcan te desse co m eço sua contribuição para a reconstrução teatral arbitrários em sua utilização necessaria- e a política cultural não é ainda muito bene-
de milênio, ainda que a Europa continen- e a refundação das teorias estéticas e políti- mente aproxinlativa, filas também próprios ficiada por todos essestrabalhos,
tal, e singularmente a França, não ten h am cas de nosso tempo. à discussão. Importa-me; sobretudo, pre- Caberá ao público efetuar a triagem n a
tornado realmente co ns ciên cia dis so . É a senternente, fornecer ao leitor, por meio superprodução-artisnearde se orientar nesse
respeito dessa virada p erforrnativa, de suas dessas d efinições, algumas pistas a partir caos terminológico e epistemol ógico. Como
con sequ ên cias sobre as produções cên icas,
o OBJETO DA INVEST I GAÇ Ã O o leitor, o espectador e o visitante dos luga res
de ent radas que se prestem a semelhan-
E DA BUSCA de arte não ficariam confusos e como deve-
que o presente trabalho des ejaria testem u - tes discussões. Espero, segundo a célebre
nhar. Sem, no entan t o, d eixar de lado as Se é relativamente fácil observar o quanto, distinç ão de Spinoza, explicar mais \1. natu- riam reagir? Com calm a, e, se possível, com
obras estéticas e ar tísticas da tradição con - entre 1980 e 2010, o mundo m u d ou radi- reza da s coisas" do que definir «o sentido humor. Tomando as imprecisões, as contra-
tinental que continu am sendo um objeto calmente' resta interpretar o impacto de da s palavras". Desejo confrontar as ideias, dições da terminologia como um convite
essencial desta investigação. todas essas mudanças sobre a arte e as teo- as intuições, as expectativas, os pontos de para efetuar sua própria arrumação da casa ,
rias. Nessa tentativa de explicação, assiste-se vista d o espectador. Não se encontrará, e antes de tudo seu próprio percurso atra-
a uma luta de influência entre urna filosofia pois, aqui, definições estritamente norma- vés des se labirinto. É nisso que o presente
UM NOVO OBJETO ?
continental, em que se inspiram as teorias tiva s (salvo para alguns termos técnicos), trabalho desejaria au xiliá-lo: não a sair do
Na perspectiva anglo- am er ican a, o teatro do pós-dramático ou da de sconstrução, e nem teorias ou métodos considerados a labirinto (m e preserve o céu de ter esse p en-
teria se convertido em um a perjo rm a nce urna filosofia pragmática da p erformance e priori superiores aos outros, nem de con- samentol) , mas a utilizar a ordem alfabética
cultural, em uma atividade pe rfo rm a tiva. da performatividade. Meu des ejo seria o de cepção de teatro esculpida em mármore e labiríntica tomo um meio de saltar de UIn
criam-se aí ainda, p or certo, obras artísticas, abrir a perspectiva francesa (e co n tinental) antigo. Tam bém gostaria de evitar o rela- problema a outro, de passar de um enclausu -
mas faces inteiras da vida social torn aram -se a outras tradições, essencialmente britânica, tivismo' o ceticismo e o cinismo mesmo ramento ao seguinte, de ir de iluminação em

13
12
prefácio

uma rede de termos mais específicos, curso dos longos anos de peregrinação e de pre-
iluminação. Alegrias íntimas da pedagogia obras de nossa época, as obras na acepção
mas reinseridas em um contexto geral. paro deste livro. Estudantes, colegas, amigos,
autorizada: eis o que um dicionário deveria ampla: não somente os textos, as encenações,
em numerosos países, notadamente na França,
nos proporcionar, mesmo se continuar sendo mas tamb ém os espetáculos e as performan- • Um índice sistemático, como em meu
no Reino Unido, na Alemanha, nas Américas
um pouco um manual. Um automanual que ces de todas as espécies. Dicionário de Teatro, não me pareceu
e na Coreia. Fui sempre muito bem acolhido
guarda uma parte de artesanato, de educação possível nem oportuno, pois, na criação
e judiciosamente aconselhado. Demasiado
sentimental e conceitual, um manual que nos contemporânea, as categorias, as discipli-
CONVENÇÕES TIPOGRÁFICAS numerosos para que eu possa nomear aqui
conduza para os outros sem manipulação, nas, os gêneros e os pontos de vista estão
todas essas pessoas, eu me volto para aquelas
que nos revele a imbricaç âo de problemas e • Um círculo cheio( /li) conduzirá o leitor inextricavelmente embaralhados.
que me ajudaram a reler o manuscrito final,
a comunidade de soluções. para outras entradas, para uma outra
a reler minhas ideias e minhas entradas, sem
problemática e para outras dificuldades, ITE MISSA EST renegar demasiado meus princípios de juven-
provavelmente.. . IDE, A MISSA É DITA
ESCOLHA DE TERMOS tude: Elena Pavis, Marie-Christine Pavís, Mok
Um círculo vazado (o) o guiará (bastante Iung- Won, Danielle Merahi, Dina Mancheva.
Os termos que selecionei (cerca de duzen- Seria preciso que eu pudesse agradecer a todas
raramente) para os artigos mais "clássi- A todas, expresso minha profunda gratidão.
tos, setecentos contando os sinônimos) as pessoas que amavelmente me ajudaram no
cos" de meu Dicionário de Teatro.
constituem ocorrências do di scurso crítico Para maior conforto de leitura, as notas e
contemporâneo, mas sua es colha, ampla as referências foram reagrupadas no fim
ou reduzida, foi efetuada em fun ção de sua das entradas. Daí se deduzirá facilmente a
entrada nos debates atuais do teatr o sob as bibliografia principal com todos os deta-
formas as mais divers as. Esses termos são lhes necessários: conselhos de leitura, mais
os da crítica profissional tanto quanto os da que bibliografia exaustiva, conselhos de
linguagem corrente d os praticantes ou dos consulta também, mais que pontos de vista
espectadores. Em vez de retornar, menos impostos autoritariamente. Em algumas
algumas raras .exceções, termos da drama- raras ocasiões, eu nle permiti remeter a tra-
turgia clássica e moderna já levantados em balhos pessoais mais detalhados',
meu Dicionário de Teatro, preferi me concen-
• Algun s outros títulos são acrescentados
trar em noções mais ligad as à prod ução do
às vezes no fim do artigo às indicações
teatro contemporâneo, às vezes d e maneira
bibliogr áficas contidas nas n ota s. Muitas
metafórica ou COIn elernento s d a gíria tea-
referênc ias provêm de ob ras em inglês das
tral. O discurso crítico e teórico procura
quais traduzi citaçõe s. Essa predomin ân-
suas palavras: ele em presta tanto das artes
cia da pesquisa em lín gua inglesa reflete o
quanto da filosofia con temporânea - o filó-
surto prodigioso dos performanc e studies
sofo-artista tornou- se urn a figura popular,
e dos estudos teatrais no mundo inteiro.
nos temas corno na escri tura. O vocab ulá-
~ Algu m as entradas m ais longas e por-
rio abebera-se generosam ente nas mídias,
menorizadas, con cebid as sob a forma
na antropologia, na estética e na filosofia da
de dossiê, colocadas no p o n to nevrál-
arte. Mas esse voc abulário da an áli se crí-
gico da situação atual, re metem a toda
tica dos espetáculos ou d as perform an ces
culturais não está estabilizado. Minha pri- Le Thé ãtre au croisem ent des cultu res , Pa ris: Corti, 1990
bras.: O Teatro no Cruza me nto de Culturas, São
meira tarefa foi , p o rtanto, a de construir auto: Perspectiva, 2,01 ').} ; \fers un e th éorie de la pratique
ou de reconstituir um a linguagem crítica a th éãtrale: images la sc êne, Villeuneuve d'Ascq:
Presses Universitai res du Scpten trion , 2 0 0 0 ; La Mis e en
partir do conhecimento das obras. Por falta s ce~e contem'p0rain e: Origines , tenda nces, pe rspectives,

de tempo e de espaço, não m e foi evidente- Paris: A. Colin, (trad. bra s.: A Encenação Cont em-
porânea: Perspectiva s, São Paulo:
mente possível fazer a história dessas for m as, Persp ec tiva, Le Th éãtre cont emp orain: Analys e
de tex tes, de Sa rraute a \ finav er, Paris: A. Colin, 2011;
nem de seguir sua gên ese. As ferramentas I'Analyse des spectacies: Th éãtre, mi m e, dan se, danse-thé ã-
aqui selecionadas nã o t êm sentid o a não ser tre, cinema , Paris : A. Colin, 2 0 12 (t rad . bras.: A Análise
dos Espetáculos: Mimica. Dança , Dança-Teatro,
que permitam melhor apreender e avaliar as Cinem a, 2 . ed., São Persp ectiva , 2015 ).

15
LI
ENT

R C
Afeto Caminhada, Marcha
Agen ciamento Carícia
Antropologia Teatral Ciborgue
Aparecimento e Desaparecimento Cinestesia
Apropriação Coletivo artístico
Arte Acrobática No Esp aço Comunidade-
Arte Bruta (Art Brut) Conferência-Espetáculo
A ssemblagem Cons ciên cia
Assento Contato Improvisação
Ativismo Con temporâneo
At m osfera Con versa Pós- Espetáculo
Aura Coreografia (e Encenaç ão)
Aut enticidade Co rp o e Corporeidade
Autobiografia Corpo Falante
Autoficção Crioulização
Autor Cultural Performance
Autorreflexibilidade Curad or de Exposição
Autoteatro CutUp

B
Bizarro
Body Ar t

17
tabe la de en tradas

p
o F K
Fala Kairós Paisagem
Descentramento
Desconstrução Festival e Festivalização Participação
L Patético/Pático
Desfiguração Figura
Filosofia e Novo Teatro Legendagem Pele, Carne, Osso
Desvio
Liminaridade Percurso
Diferança Diferença Fin1
Dispositivo Flash Mob Live Art Performance
Performance Fílmica
Disseminação Flor M Performance Studies
Divertimento Fronteira
IvIa Performatividade
E G Mag ia (Nova) Performativo (Teatro)
Mainstream Poesia e Teatro
Efeito de Teatro Genética
Globalização Materialidade Política e Teatro
Efeito Produzido
Glocalização Mediação Popular
Efeitos Especiais
Midialidade e Intermidialidade pós-Colonial
Écfrase (Ekphrasis) Gosto
Minorias (Teatro das) Pós- Dramático
Empatia
H Modernização Pós -Moderno (Teatro)
Encarnação
Escritor de Palco Ha bitus Movimento Postura
Escritura Dramática Háptico Multicultural Practiceas Research (Prática Como Pesquisa)
Escritura em Voz Alta Hibri dez Multimídia Prega, Dobra
Escritura Performativ a Histór ia de Vida Musicalização Pr esentação/Representação
Escritura Sono ra Processo
N
Espaçamento Programação
Identidade Narractor Proposta Artística -'
Esp ectador
Ime rsão (Teatr o de ) Neodramátíco Propriocepção
Espetáculo de Técn icas Mistas
Inde term ina ção Nova Dramaturgia Proximidade (Teatro de)
Espetáculo Entre um Ator e um Espectador
Instalação Novos lugares Proximização
Espetáculo Vivo
Inst ante Pregnante
Estética o
Inte nsificação
Ética Obra de arte
Interartístico
Étnico (Teatr o) Olfato
Interatívidade
Exceção C:uItural Orientalismo
Intercultural (Teatro)
Excentricidade
In terpela ção
Excesso
Intersubjetividade
Exibição de Mon stros
Intertextualidade
Exotismo
Intervenção
Experiênci a Estética
Intimidade

19
18
R T
Reciclagem Tatilidade
Reconstituição Teatro Aplicado
Registro Teatro Cosmopolita
Remidiação Teatro Criado em um Lugar Específico
Retórica Teatro-Dança
Retransmissão ao Vivo de um Espetáculo Teatro das Minorias
Rir e Sorrir Teatro de Empresa
Risco Teatro do Mundo
5 Teatr o do Murro
Teatro do Real
Satori
Teatro Multilíngue
Semiologia (Segundo a Sern íología)
Teatro Para Turistas
Sensação
Teatro Sincrético
Sessão
Técnicas do Corpo
Social Drama (Drama Social) Texto
Sociodrama
Textura
Soft Power Traço o afeto é a manifestação da puls io -
S0111 n o teatr o
Tradição nal e libidinal do indivíduo. A histeria encon-
Superfície tra sua origem em um traumatismo qu e nã o
Trajetória Fr.: affect; Ingl.: affeet; AI.:Affekt.
Transgressão pôde ser eliminado em urna descarga dos
Transmissão Do lat im affec tus, estado d 'a lma. Palavra afetos e que ficou bloqueado (eingeklemmt)
p roven iente do verbo adiicere, pôr- se no indivíduo. O afeto concerne ao corpo
V
a fazer. O afeto (ou a pa íxão-) é uma Iibidinal, enquanto a emoção está ligada ao
Vanguarda modificação da vida afetiva so b o efe it o corp o biológico.
Verbo-Corpo de uma ação exe rcida so b re o suje ito. Remontando à tradição filosófica, damo-
Visceral A afetividade é a so ma da s reações -nos os meios de utilizar essa noção de afeto
Visual Studies psíquicas desse indiví duo e m confronto pa ra o estudo da criação art ística, espe cial-
Visual Theatre (Teatro Visual) co m o mundo. O afe to é 110 su bstant ivo m ente teatral, por exemplo p ara o estudo
Vocalidade co mu m e e rud ito dos se nti me ntos, das do corpo do ator e do esp ectador. Spinoza:
pai xões, da s emoções, dos d esejos - de "Entendo por afecções aquela s
Z
t ud o aq uilo que nos afet a aqrad áve l ou quais a pot ência de agir desse corpo aumenta
Zapping ou diminui, é favorecida ou coagid a, e, ao
desagradavel mente. [. . .] Um afet o é o ec o
e m nós daquilo que o corpo faz ou sofre'". mesmo tempo, as ideias dessas Se
podemos sera causa adequada de alguma des-
1. ORIGEM FILOSÓFICA E PSICANALÍTICA sas afecções, a entendo então por uma ação; as
DA NOÇÃO DE AFETO demais [entendo] como paixã o">.
Segundo Spinoza, há afetos passivos (tri s-
o afeto tem uma rica história na tradição teza, medo , humildade) e afetos ativos (força
filosófica, sobretudo desde De scartes e Spi- d'alma, generosidade). Os três afet os fun -
noza até Deleuze. Freud retornou o termo damentais são o desejo, a alegr ia, a tr isteza.
(em alemão, Affekt) na sua teoria psicana- Na reflexão filosófica desde
lítica, para designar "todo estado afetivo, Freud e mais recentemente desde De le uze,
penoso ou agradável, vago ou qualificado, o afeto tornou-se uma aposta teórica cru -
que se apresenta so b a forma de uma des- cial para a reflexão sobre o teatro con tem-
carga m aciça ou como tonalidade geral' ". porâneo.
Rfeto
Rfeto

2. OS AFETOS NO PROCESSO DA CRIAÇÃO conjunto de elementos percebidos e afeta- 3. OS AFETOS NA TEORIA E NA PRÁTICA DO da palavra e da retórica da persuasão. Pois
ARTÍSTICA, SEGUNDO DELEUZE dos pelo artista: ao mesmo tempo sentidos TEATRO CONTEMPORÂNEO o afeto não é uma atitude ou uma emoção
por ele e atribuídos a todos os colaboradores codificável e consciente, é uma relação entre
Em toda sua obra, luas sobretudo en1 Mille no espaço-tempo da representação. CUlTI- Analisar o jogo e o corpo do ator: conhecemos o corpo e o mundo que o afeta, entre o cons-
plateaux (Mil Platôs) e em Ouest-ce que la pre sentir nessa encenação o agenciamento- a dificuldade que há para analisar o jogo do ciente e o inconsciente, o visível e o invisível,
philosophie? (O Que É a Filosofia?),Deleuze coletivo dos afetos, sua coerência e sua orga- ator. É preciso ocupar-se dos procedimentos o manifesto e o latente.
apela para Spinoza, cuja filosofia ele prolonga nização' a lógica voluntária ou involuntária técnicos do jogo ou concentrar-se nos afetos Estabelecer a intensidade e ofluxo dos afe-
enl sua própria reflexão sobre a trindade filo- das surpresas, das emoções, dos choques. de seu corpo? Considerados na sua conti- tos: o afeto não é Ce não é mais considerado
sófica do conceito, do percepto e do afeto, O artista é um mostrador, um apresentador, nuidade, o corpo, o rosto e o resto da pessoa como) um efeito isolado, uma emoção codi-
três noções que ele confronta "para fazer o mas também um montador de afetos: "é de estão submetidos a modificações impercep- ficada e repertoriada pela retórica ou por um
movimento": cCO estilo em filosofia é traba- toda arte que seria preciso dizer: o artista tíveis, tudo como "na vida" A arte do ator quadro de equivalências entre estados cor-
lhado no sentido desses três palas, o conceito é mostrador de afetos, inventor de afetos, consiste em modular, trabalhar, estilizar, este- porais e emoções, sentimentos ou paixões.
ou novas maneiras de pensar, o percepto ou criador de afetos, em relação com os percep- tizar a aparência corporal, de modo a dar ao Atualmente, em um teatro pós-psicológico,
novas maneiras de ver e de entender, o afeto tos ou com as visões que ele nos dá" (p. 17 6 ). espectador a possibilidade de receber essas a tarefa do ator e do encenador não é a de
ou novas maneiras de sentir":'. PenSelTIOS no Misantropo de Moliere: lendo variações como afetos não controlados pelo fabricar afetos que seriam decodificados
Dar-se -ia o mesmo para (Co estilo nas ou ouvindo o texto, o receptor pode ima- ator e por sua personagenl. O espectador') automática e fielmente pelo espectador-,
artes". As dimensões do percepto e do afeto ginar em que estado de espírito e de corpo percebe as hesitações, as iscas de possíveis O afeto é uma continuidade, seja ela
estão intimamente ligadas: "O ser da sensa- Moliere podia encontrar-se ao escrever, ao ações, o agenciamento- de minissequências, psicológica ou formal na obra de arte. Sem
ção, o bloco do percepto e do afeto, apare- interpretar esse papel, quais afetos eram Evitar a segmentação mecânica da repre- dúvida, o afeto nos cai em cima, no sentido
cerá como a unidade ou a reversibilidade do os seus. Ele marca também quais afetos sentação ou do corpo do ator: cena e corpo atual da expressão alemã de agir im Affekt,
sensciente e do sentido, seu íntimo entrela- Moliêre empresta a sua personagenl: cólera, não são mais concebidos como uma decupa- sob o domínio de alguma coisa de incontro-
çamento, à maneira de mãos que se estrei- sofrimento, ciúme, loucura etc. Enfim ele se gelTI de unidades determinadas e fixas. COIn lado, de uma pulsão ou de urna impulsão,
tam,": Essa dualidade se reconstitui com a pergunta quais percepções vividas Moliere efeito, os afetos não são unidades limitadas até mesmo de um crime passional. Mas o
visão fenomenológica. O material (do pin- (e na sua sequência o encenador, o ator etc.) no tempo e no espaço. O afeto, como nota "afeto é tomado na continuidade do COIU-
tor, do escritor ou de todo artista) passa enforma nos perceptos que daí nos chegam. Brian lVIassumi (o tradutor e comentador de portamento e, a fortiori, na continuidade
pela sensação; as percepções vividas passanl Com efeito, como Deleuze nos lembra, "o Deleuze), tornar-se ativo, em paralelo ao
"é formal da obra, por mais estilhaçada que
pelo percepto, as afecções experimentadas artista cria blocos de perceptos e de afetos, espírito e ao corpo'". Diferentemente do con- ela seja. O afeto, sobretudo na obra de arte
passam pelo afeto. Os perc eptos e os afe- mas a única lei da criação, é que o composto ceito ou do percepto, que podemos situar e contemporânea nãomimética e psicológica,
tos tornam-se na obra de art e "seres autô- deve manter-se em pé por si só" (p. 164). No visualizar, o afeto "não está contido nos COf- está oculto, ele se ocultou no inconsciente.
nomos e suficientes que não de vem mais caso da mise en scêne, o único método para pos individuais, pois ele está sempre nos pro- O ator não é obrigado a sentir esses afetos;
nada àqueles que os experimentam ou que que a representação cênica se mantenha em cessos de devir alguma outra coisa", Por certo, ele não é mais obrigado a errar na estepe
os experimentaram" (p. 168). Quando rece- pé totalmente por si só, é que o enc enador e, o afeto parece enganchado no corpo do ator russa de Stanislávski ou na "Hollywood"
bemos a obra acabada, somos confrontados em seguida, o ator e o espectador produzarn como aquilo que não cessa de exprimi-lo e de devidamente recortada pelo Actors Stu-
por blocos autônomos, que têm sua própria um bloco em que os perceptos e os afetos traí -lo, mas na realidade não se pode apreen- dio. Ele está em condições de controlar ou
lógica. Nós não temos ac esso diretamente estejam intimamente mesclados e insepa- dê-lo "em si", ele depende da outra pessoa, de expor suas emoções; ele não tem mais de
às emoções, às intenções do ar tista, pois a ráveis, sendo ainda assim legíveis segundo ele constitui uma reação a uma ação e, a esse escolher entre a identificação e a distância.
obra, diz ainda Deleuze, é U 111 composto um conceito: não necessariamente um sis- título, volátil: "O afeto escapa ao confinamento Uma não avança sem a outra, não é questão
de perceptos e afetos que "se mantém em tema fechado e autônomo, mas um agencia- de corpos particulares, operando sobretudo de u ma ou outra, mas antes de uma e outra,
pé por si só" (p. 164), é um "monumento': mente- que faça ao mesmo tempo sentido, na interface do corpo e do mundo." Assim, urna na outra. O afeto, e singularmente o
"um bloco de sensações presentes que não prazer e efeito. Mas COU10 essa tri n d ad e do estamos muito longe das paixões repertoría- afeto nas artes, é uma progressão gradual,
devem senão a si mesmas sua própria con- conceíto-percepto-afeto nos ajuda a com- das no s manuais de retórica ou da arte do ator, UlTIa intensidade variável. Ele é colhido em
servação" (p. 168). preender melhor a maneira como se orga- como era corrente fazê-lo nos séculos XVII e uma empatia- afetiva, não em uma identi-
Efetuar a transposição' dessas ide ias filo- niza e se percebe o teatro contemporâneo i XVIII europeus. A própria ideia de codificar ficação em ocional com uma personagen1,
sóficas ao plano da mise en scéne, significaria as pai xões para em seguida esperar do ora- mas em um affective encounter Cencontro
ver uma encenação corno um monumento dor ou do ator que as combine com virtuosi- afetivo), lá onde os afetos vão e vêm no tea-
mais ou menos estável e consistente, um dade, essa ideia não sobreviveu a urn teatro tro infinito das paixões.

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Rgenciamento
Antropologia Teatral

NOTRS
Deleuze dá uma descrição precisa do a ponto de terem mudado não somente por surpreendente desoladora que pudesse
Paris: PUF, 2013. agenciamento: '~ unidade real mínima, não o curso do teatro, mas a concepção que ter sido considerada, não tinha nada de inex-
2 Ver Affect, em Jean Laplanche; Jean-Bertrand Pontalis é a palavra, nem a ideia ou o conceito, nem fazíamos dele. Além de alguns grupos plicável. Essa crise conjuntava-se à crise do
Vocabulaire de la psychanalyse, Paris: PUF , 1967, p. 12.' o significante) mas o agenciamento. É sem- que o invocam explicitamente, quais sujeito, à «morte do autor" (Foucault, Barthes,
3 Spinoza, Parte Terceira: Da Natureza e da Origem das
Afecções, Obras Completas IV: Ética e Compê ndio de
pre um agenciamento que produz os enun- traços a antropologia teatral deixou, qual Lacan), nos anos 1960: entre Les Mots et les
~ramática da Língua Hebraica, São Paulo: Perspec- ciados. Os enunciados não têm como causa influência o teatro exerce ainda sobre choses (A Palavra e as Coisas) de Foucault) os
tIva, 2014, definição UI, p. um assunto que atuará como terna de enun- a criação contemporânea, que herança Écrits (Escritos) de Lacan, et vérité
1990 - 20 0 3,
p .224·
cU1.v' • .l V 1.J..l .l l.l ll. ,
ciação' a menos que não se reportem a temas reivindicar para o teatro de hoje? (Crítica e Verdade) de Barthes, todos publica-
5 Gilles Deleuze, Félix Guattari, Qu est ce qu e la philo - como assuntos de enunciado. O enunciado dos em 1966, e os artigos muito reveladores,
sophiei, Paris: Minuit, 1991-2005 , p . 179. é o produto de um agenciamento sempre 1. QUAL GROTOWSKI? impressos em 1973, como "Du Texte à Ioeu-
6 Brian Massumi, Parable for th e Virtual, London: coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de
Duke University Press, 2002, p . 3 2 . Citado por Dee
vre" (Do Texto à Obra) de Barthes e "La Dent,
Reynolds, p. 128, ver infra, nota 7. nós, populações, multiplicidades) territórios, Nosso conhccirnento de Grotowski é la paume" (O Dente, a Palma) em DesDispo-
7 Dee Kinesthetic the eventos." lar e Hoje são raras as pessoas Dispositivos Pulsionais),
Body: Emotion to Affect, em Dee Reynolds; Se retomarmos as principais noções dessa
Matthew Reason (eds.), Kinesthetic Empathy in Crea-
que seguiram toda a sua carreira desde os de Lyotard, ano que foi também, de um ponto
tive and Cultural Practices, Brístol : Intellect, 201 2 , teoria do agenciamento, perceberemos que anos 1950 e 1960; numerosos são, no entanto, de vista mundial e, portanto, não desprezível,
p.128. elas se aplicam diretamente à encenação aqueles que continuam a se referir ao Mestre o do .primeiro choque petrolífero.
B Ibidem, p. 131.
como agenciamento principalmente espacial. através do ensinamento de seus discípulos; No caso particular de Grotowski, a crise
Não há muito sentido em dissecar a repre- bem mais numerosos ainda, e potencial- era no fundo previsível, preparada pela trans-
sentação em signos, em unidades recorren- mente infinitos, são aqueles que podem ter ferência de todos os poderes do encenador
tes' como procedia a primeira semiologia; em acesso a algumas gravações parciais das pri- para o ator) pois se julgava que este último
compensação, devemos interrogar-nos acerca.L ... meiras encenações anteriores a 1969, consul- era levado a "sacrificar-se" sob e.p.~.~~ o ol~~~: , ,_.
Rgencia men t o da maneira pela qual todos esses materiais tar seus escritos e suas conferências em vias reconhecedor do espectador. Esse questio-
instáveis são agenciados, em função do olhar de publicação. Paradoxalmente, o primeiro namento do sujeito central, que domina
Fr.: ag encement; Ingl.: dtsposition; AI.. Disposition .
crítico do Uma teórica mais obra é também e controla a fonte e a da
modifica a face dos significantes do espetá- o m elhor conhecido, o único de que cada obra, esse destronamento da mise en scêne,
Devemos a Gilles Del eu ze e a Félix Guatt ari a
culo: como o dispositivo, o agenciamento UHl p od e formar sua própria ideia, embora não fazia mais que anunciar muitas outras
noção de agenciamento) qu e eles comparam
organiza signifi cantes e significados. Quanto ret rospectiva. É essa também a razão pela reviravoltas: a criação coletiva na França
à de dispositivo", utilizada por Mi ch el Fou -
mais imersos estamos na mat éria do agencia- qual os amadores da encenação e os histo- nos anos 1970 ) o devised theatre britânico, a
cault. "Minhas diferenças': indica Del euze,
mento tanto mais distância dela tomamos e ria dores a preferem em geral aos períodos união entre a dança e o teatro no Tanzihea -
"são muito secundárias:
testamos teóricas. ulteriores: Parateatro Teatro ter alemão,
cault) chamava de e que Félix
eu chamávamos de agenciamento, nã o t êm Fontes (1976-1982), Drama Objetivo (1983- Crise da dramaturgia: a dramaturgia-.. do
NOTAS
as mesmas coordenadas) po rqu e ele consti- 1986 ), Arte corno Veículo (1986-1999)? Para ator foi a solução inventada por Eugenio
Gilles Deleu ze, Pourparlers, Paris: Minuit, 19 9 0 - 2 0 ° 3,
tuía sequências históricas or iginais , ao pa sso p.206. avaliar corretamente a herança de Grotowski, Barba para capitalizar o treino intensivo e
que nós dávamos mais 1,...,., ~.,. r.. Y"t·;.; ...., ,-.~ ..... 2 Gilles Deleuze; Claire Parnet, Dialogue, Paris: Minuit, seria preciso levar em conta a integralidade cada vez mais criativo e personalizado de
p. 65.
nentes m ovi- seu centrar a reflexão sobre o atrizes. O encenador desaparece virtual
mentos de territoríalização." d essa obra na produção teatral até
, ..............,.,.." .,-.rr. mente durante a longa fase de pesquisa de
O dispositivo insiste n a combin at ór ia, a o presente. materiais) de improvisações e de enfonnação
mecânica interna da ob ra) enquanto o agen- (mise en forme) pela atriz. Ele só intervém
cíarnento está ligado a um espa ço de con - no fim do curso, para provocar) desbloquear
junto, a uma geografia . O agenciam ento 2 . A CR ISE DA ssts): EN SCENE (ENCENAÇÃO) ou desestabilizar o que já estava muito soli-
antht opolcqt- dificado arredondado.
revela uma estrutura, co m bin atóri a
anthto p oloqy; AI.: tneaterarnbroootcxne. A crise do encenador (metteur en scénei: assim Ao misturar, triando os materiais propos-
coletiva; ele é quase sin ôn imo de enunciação)
como esta situação (d e palavras ou ações) chamado há quase dois séculos) monarca tos, ele os inscreve em um dispositivo espacial
A importância e o impacto de Jerzy absoluto e «autor" do espetáculo desde uma segundo uma duração ritmada pela música,
cuja soma e consideração são ind ispens áveis Grotowski (1933-1999) no teatro do último
para compreender os en unciados. boa centena de anos, não data da última luz e estrutura da fábula. Nisso) Barba nada
terço do século xx são consideráveis, mais faz senão emprestar de seu mentor e do
ninhada de 1968! A retirada de Grotowski,

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Antropologia Teatral
Antropologia Teatral

dramaturgo Ludwik Flas zen (do qual nunca como no tempo de Grotowski e de Barba dos estilo nos é mais ou lnenos acessível: se Barba o intercultural tornou-se, nas décadas de
é um escritor que fala, Grotowski é um ora- 1970 a 1990, um vasto campo de pesquisas
se dirá o suficiente quanto à sua importância anos 1970, o ator não tem mais nem o tempo,
dor que a gente transcreve quase a despeito para o jogo do ator e a mise en scéne. Em Gro-
na formação do pensamento grotowskiano) nem o gosto, nem mesmo a necessidade de
dele, um orador ou um oráculo inspirado towski, ele se manifestou muito cedo como
o princípio de composiç ão de adaptações e um treinamento físico prolongado. Não há,
qu e custa ser relido. Barba tem confiança na "sincretismo intercultural" (segundo a feliz
de encenações dos anos 1960. Essa dramatur- nem jamais houve, um Método Grotowski
literatura para construir o real, ele possui a expressão de Serge Ouaknine, na nota de seu
gia, seja ela textual, cênica ou visual, ia, com ou um Método Barba, imit ável, nem sequer
arte da imagem e da fórmula; Grotowski, por falecimento'). E não se deu de modo dife-
efeito, de encontro à linearidade do relato, da transportável. Rejeitando, desde logo, não só
sua vez, tem o pesadelo da palavra imprecisa, rente em Brook, na sua pesquisa também
cronologia da fábula; ela inspirará a escritura o uso das mídias no palco, mas recusando-
ele desconfia da literatura e, mais ainda, do s dos universais culturais, de um human Iink,
dramática fragmentár ia e desconstruída dos -se a reconhecer seu impacto sobre o corpo
um "liame humano" Nos decênios de 1980 e
anos 1970 e 1980. e o imaginário de todos, a formação do ator literatos.
Certas noções filosóficas são de pronto 199 0 , os do "todo cultural", a tendência tanto
Crise da escritura dramática: poucos autores cortou de entrada, no seu p ropósito, o acesso
recusadas. Assim, a essência, que está na or i- da teoria como da prática foi a de multiplicar
dramáticos, n esses an os 1970 e 1990, ousaram, a um novo paradigma cu ltural. N o entanto, a
genl da reflexão essencialista sobre o ator e os exemplos da atiYtª"-~decultural, a de anali-
entretanto, abandonar suas prerrogativas para familiarização dos atores com todas as espé-
a comunhão teatral, parecerá a muitos, hoj e sar todas as possíveis cultural perjormances-,
se tornar "atores-dramaturgos-autores': Esse cies de técnicas lúdicas e corporais extraeu-
em dia, corno uma noção suspeita. É, n o Na versão política dessa extensão infinita das
método reaparecerá re gularm ente, desde os ropeias havia bem preparado os corpos para
entanto, isso que Grotowski considera corno p rátic as culturais, o multiculturalismo não
anos 1990 no devis ed th eater (t eatro conce- uma grande flexibilidade, para uma abertura
o coração e a aposta de todo ser human o: se preo cupou mais do que com a coexistên-
bido em conjunto, cole tiv amen te) em que a às novas técnicas corporais, a uma nova cor-
"A essência me interessa porque ela nada te m cia pret ensa mente pacífica das diferentes
escritura não prec ed e o projeto cênico, mas poralidade. Os estágios d e ato res ocidentais
de sociológica. Ela é aquilo que não re cebe- c0 111u n id ad es, com suas práticas mais reli-
se elab ora com ele em uma coopera ção de entre Mestres orientais in augurados pelo pró-
m o s do s outros, é aquilo que não ve m d o giosas e étnicas do que culturais e artísticas.
todos os artistas (cen ógrafos, ato res, C0111pO- prio G rotowski, tornaram -se fre quentes, às
exterior, que não é ap reendido. Porexemplo, A re flex ão e a prática inter ou multicultural
sitor, escr itor etc.). Po der-se- ia cita r Simon ve zes banais e adaptad o s pelos lVIestres aos
-aconsci ên cia (nosentido-de the·-conscience, jam ai s deixo~-p·o is, de se ãtàstar da visão
McBurney, Robert Lep age , Ar iane Mnouch - desejos presumid os de seus vis ita ntes oci-
a 'consciência morar) é algo que pertence à sincrética, universalista e essencialista que
kine e algun s ou tros. dentais. A globalização baralha as cartas, a tal
essência e que é inteiramente diferen te do era a d e Grot ow ski desde seus primórdios.
C rise da na rratologia: não se pode não ponto de às vezes se esq u ecer COil1 que obje-
có d igo moral, p ertencente, po r .sua-vez, à A globalização, a estandardização das práti-
relatar (domesmo modo q ue n ão se p ode tivo se joga e pa ra que mundo se dá forma aos
sociedade. " Essa distinção entre co ns ciên- cas culturais deram origem a pesquisas sobre
não comun icar): tal é a grande de sc obe rta co rpos e aos espíritos.
cia m oral individual e código moralcole- culturas antigas e sua essência mais difícil,
da nova nar ratologia e d a antropologia do
tivo só é aceit áv el em uma visão r elig iosa m as ta mb ém tanto mais importante. A er u -
relato, q ue se de senvolveram n os anos 198 0
ou metafísica que pressupõe uma concepç ão dição de Grotowsk i, a escolha de notáveis
e 1990, na sequên cia d a narratologia clássica 3. MUDANÇA DE É POCA,
essencialist a do ser humano. Pode-se co m- co laborado res o aju daram e nos ajudaram a
qu e descrevia as estruturas n arrativas. Essa MUDANÇ A DE PERSPECT I VA
p ree n der que ess e essencialismo co nv en h a lutar co n tra um p en samento globalizante e
hipótese de bom senso es tá em co n tradição
simplificad or.
com a concepçã o das ações , tais corno as con - o vo cab ulár io simples d os textos grot owski a- ao Grotowsk i do "ato r santo" ou de "A Arte
A~ tentação do "pós", isto é, a te ntação de
cebia Grotowski n a última fas e de sua pes- nos compreende palavras que dificil mente são co rno Veículo", lá on de o ator não se busca
senão a partir de si próprio, sem o olhar de n ão m ais car acterizar tudo senão como pe r-
quisa, a de "A Arte C01110 Veí culo". Seja o qu e admitidas em nosso mundo pós- moderno e
um espect ad or. M as p ode-se também pen- tencente ao "p ós", pós-moderno- ou pós-dra -
for que ele pense a resp ei to, o ator, ou melhor perforrnante: essência, a utenticida d e, ori-
sar co m Brook, por exemplo, que o teatro só rn ático-, p or exemplo, é sintomática de nossa
o doer, o "actante" conta sernpre uma hist ó- gem. sacrifício, p ur eza sã o vocáb ulos que
oc or re e ex iste no "momento em que o ato r e ép oca, fatigad a ou hesitante quanto a pro-
fia que o esp ectad or, ou, mais exatamente, a hoje podem nos parecer ain d a m ais religio-
o público estão ligados". Notar-se-á que certa por n ovas teorias ou categorias. Ela vai de
testemunha, reconstitu i e conta para si pró- sos ou metafísicos, idealist as ou de susados do
co nv ergê n cia "essencialista" (talvez em rea- enc ontro à exigência de Grotowski dessa "via
pria, se quiser m an ter o contato COIn a per- que há quarenta anos. N ão h á necessidad e de
ção a um relativismo multicultural, com os cr iativa (q ue) consiste em descobrir em si
formance e o interesse por ela. D oe rs como um Derrida para de sconst r uí -Ios: esses ter-
perigo s que este implica) se desenha ig ua l- mesmo um a corporeidade antiga à qual se
testemunhas efetuam, pois, sua própria mon- mos se aplicam a um teatro aparentad o ao
m ente no campo da teoria literária e teatral, está ligado por uma forte relação ancestral.
tagem a partir dos ele mentos d o relato. ritual. Nossa época os ab o rda COll1 suspeita,
a qual inter ro ga um tanto abstratamen te a [.. .] As descob ertas estão atrás de nós e é
Crise da [arm ação do ator: tal é certamente pois eles decorrem d e uma concepção essen-
teatralidade, a intermidialidade, a p er fo r- preci so fa zer uma viagem para trás a fim
desde os anos 1980 a crise mais visível e a mais cialista e universalista da n atureza humana.
rna tividade, a corporalidade, a inte rcu ltu- de chegar a elas" 4. Essa busca das origens, "a
profunda. Deixando de beneficiar-se de uma A leitura estilística que efetuam os de Gro-
remin iscência, como se a pessoa se lembrasse
formação permanen te mais ap ro fu n d ad a, towski e Barba é, ela mesma, his tórica, seu ralid ade etc.

27
Rntropologia Teatral
Rntropologia Teatral

do performer do ritual primevo" (p. 56), está antropológica, podem desconcertar. "O tea - alguns (muito mal-intencionados e mediocre- suas ideias e de sua marcha da qual ele livra
nos antípodas da tendência atual em tro ainda por momentos, uma arte ou já mente informados) a ver nele um chantre do de bom grado, ele próprio, a historiografia.
-modernízar ou pós-dramatizar aquilo que não é mais do que uma cerimônia cultural r: relativismo cultural e um defensor de uma Mas a natureza, a lógica e as razões desse
o ator ou o encenador conhece ou já encon- pergunta-se, não sem angústia, Iean-Fran- antropologia cultural "orientalista" A mesma encadeamento não são sistematicamente
tr ou e que ele cita ou varia à vontade. çois Peyret". desventura sobreveio a Barba, cuja noção (e analisadas. Gostaríamos que os performance
A mudança de paradigma do «objeto tea- Responder a essa questão, acompanhando a terminologia, pouco feliz, é verdade) de studies aplicassem à antropologia teatral de
tro" contemporâneo contribui izuatmente a evolução Grotowski desde sua fase clás- antropologia teatral fazia crer que se tratava Grotowski de Barba o mesmo olhar distan-
para nos afastar da pesquisa grotowskiana sica de encenador até a de teacher ofperfor- de justapor diversas tradições espetaculares, ciado e crítico que elas dedicam a um ritual
daquilo que constitui a essência do teatro, merr, não será mais do que confirmar uma para confrontá-las em um theatrum mundi pré-colombiano ou a uma cerimônia de casa-
daquilo que faz com que ele seja distinta- coisa b em conhecida e amiúde deplorada: que acolhesse todos os tipos de espetáculo. mento na Guiné papuásica.
mente teatro, daquilo que o separa da pe r- sua passagem da estética à antropologia, do Ora, sabe-se muito bem que, para Barba, Em se tratando de uma antropologia
form an ce ou do espetáculo. Enl Grotowski, ficcional ao autêntico. O importante, para a antropologia teatral é o estudo do com- sociopolítica, e até militante, poderia ela for-
esse que o .....,...:>I~"-" .....\.\.....~,JJ. não recair vã sobre o "aban- portamento cênico sobre o necer uma alternativa, ou ao menos um com-
ator sem dúvida é o teatro, mais especifica- dono" d e Gr otowski é, sem dúvida, exami- qual diferentes gêneros, estilos de jogo, tra- plemento crítico, às abordagens filosóficas,
mente aquilo que denominávamos nos an os nar agora as relações e os prolongamentos dições são universalmente fundamentados etnográficas e "perforrnativas'' existentes?
196 0 "a rep res entação teatral': que Grotowski da an t ro pologia grotowskiana n os diver sos segundo uma série de princípios da utili- As formas recentes de performance como as
chamava de "teatro corno presentação" IVIas, ramos e conc epções da antropologia contem- zação do corpos. Assim, Barba, mais do que "etno-tecno" de um Guillenno Górnez-Pena,
com o surto do intercultural e a chegada dos porânea. O surgimento do paradigma da per- Grotowski e de modo mai s adota nos fazem esperar isso. Conciliando a visão
studies nos anos 1970 e formance mais recentemente, o do uma posição comparatista e se em busca militante do agit-prop, o rigor da observação
de acordo co m a n oç ão, muito popular nos feminisrno e da linguíst ica, dos atos de lin- de um pré -expressivo comum. etnológica, a forma lúdica e autorreflexiva de
ano s 19 6 0 , de esp etáculo ou de teatro total, a guagern, da performat ividade, mudam radi- A antropologia cultural - a proveniente curtos esquetes críticos, esse tipo de antro-
perfor nl an ce, no sentido inglês de ação espe- calmente o dado. dos antropólogos e não dos artistas da cena - pologia nos reconduz à sociedade em que
tacu lar, assume o lugar. Ela própri a será rapi- interessou -se, embora pouco, p elas diversas vivemos, nos premune da seriedade incan-
damente posta em questão e em rninoria rrrvss c: cênicas e
T ......,' " 1 do mundo descente dos ancestrais) a
nova perspectiva das e 4· P ROL ONGA MENT O S .E I M PA SSES inteiro, ao menos, em todo caso , de maneira atores e espectadores de hoje.
dos cultural.studies, que relativizam a noção DA ANTROPOLO G IA GROTO W SKIA NA co rnparatista. Me smo Victor Turner não A essas diferentes antropologias, seria
de teat ro d e arte ou de encenação. raciocina no fund o sen ão sobre o modelo preciso adicionar ·~-ctnocenologiao de Jean-
D e cer t a maneira, Grotowski seg ue, e até CU111pre de pro nto distinguir a antropologia ideal de d rama, o d rama soc ial (social dra- -Marie Pradier, qu e se desfaz da marca dos
precede, essa evolução. Ele acaba por trab a- no senti d o eu ropeu de antrop ologia filo- mar), tomando de empréstim o suas catego- performance studies e se inspira na etnomu-
som en te sobre os rituais ou, a de . . . "'T . ·"'· ,..,. ..,' ''' rias do teatro ocidental, sobretudo grego, e sicologia.
same nte, sobre os cantos escolhidos ao modo h um an a univer sal, e a antrop ologia no sen- singularmente o trágico grego. Será talvez necessário, diante dessa riqueza
artaud iano, por sua qualidade vibratór ia. tido norte -americ an o de an tropolog ia cul- Os performanc e studies: recapturam a pas- de abordagens antropológic as, h istoricizar
Enq uan to as p erformance studies nã o cessam tural, que descreve e an alisa as diferenças sos largos o tempo perdido e as ocasiões frus- a antropologia teatral de Grotowski, ressi-
.de estender seu domínio de estudos, a antropo- cu lt urais e étnicas. Grotowski situa -se reso- tradas, mas eles estã o, por definição, a cavalo, tuá -lo no seu contexto histórico? Recolocá-
logia microscópica de Grotowski se int eressa lut am ente primeira antronotoma, entre e ou sej a, os -lo em cada e tapa de seu
mnrutamente pequeno pela essência tudo n o seu de pesquisadores são amiúde "amadores" em percurso no contexto intelectual e político
coisas: corporeidade antiga e ancestral, ritual, 1969 , m as já nas suas reflexões sobre a essên - ao menos um de sses dois domínios. No da época? A ruptura estética, tanto quanto
cor e vibração da voz. "As qualidades vibra- cia d o en con tro entre o ator e o espectador entanto, desse ponto de vista, que se tornou política e ética, de 196 8 (entre 1966-1973),
tórias desses cantos': estima Grotowski, "com de te at ro. dominante no Inundo anglo-am erican o, e constitui, por certo, o pivô da obra, mas a lei
as impulsões corporais que as carregam são - Desde o início de sua car reira de ence- logo no europeu, é qu e a obra de Grotowski marcial e o gelo de toda criação na Polônia
objetivam en te uma de nnauaaem n ada r, em deverá agora escrutinada nos seus míni- de 1981, tanto o socialismo fran-
Para quem permanece apegado ao teatro indiana e iog a, apelou para alguns elernen- mos pormenores e de svio s. Talvez não se cesa e o elogio do to do cult ur al, fornece-
e à mise en scêne considerados como objeto tos formais de culturas teatrais n ão européias, ram o quadro da evolução das concepções
tenha abordado sufici entemente sua obra na
estético, esse alargamento constante para um reinjetando-as no jogo do ator, como princípio e das possibilidades concretas de trabalho.
perspectiva dos cultural studies e da critical
objeto cultural e esse desaparecimento do de com p osição ao invés de fazer citações. Esse O fim do Teat ro das Font es marca também
theory, mas unicamente corno um comen-
objeto estético em proveito da interroga ção uso sin crético e não ortodoxo p ôde con duzir o início dos ISTA por Barba,
tário, ou melhor, um comentário crítico, de
28
29
Rntrop ologia Teatral Rpa recimento e Desapareci m ent o

cujas sessões de trabalho são principal- De qualquer maneira, não é artificial e Ierzy Grotowski, Titres et travau x, College de France, chama esse space of appearance de «espaço
1

mente mais uma continuação do que uma 1995, p. 19· Citado por Marc Fumaroli, "Gr otowski
insustentável separar teatro da (re)presen - ou le passe ur de frontiêres' , Alternatives théâtrales, de aparecimento': "para descrever seu pró-
manifestação paralela à do Mestre e amigo tação e da arte como veículo, não é artificial n. 70-71, p. 18. prio ideal de uma ágora sociopolítica dina-
polonês. As teorias também fazem política: também opor a recepção pe lo espectador e 6 Programa do seu espetáculo Traitédes passions, 1995. micamente interativa" 104).
essemesmo momento axial de 1981 assiste a produção pelo ator. Recepção e produção Le Performer, op. cit., p. 53. A fenomenologia, essa filosofia do apa -
à passagem de uma semiótica da cultura Ver a definição de Barba e Nicola Savarese: "No
não estão dialeticamente imbricadas? Nesse começo, concebia -se a antropologia corno o estudo recer' "descreve aquil o que apare c e" 2 . Ela se
(russa, corno a de Lotman, ou leste-europeia texto quase testamentário, Grotowski acaba do d os seres humanos, não ap enas torna uma teoria c ômoda para observar os
e de inspiração marxista) para a irresistível por se propor a questão, por duvidar e hesi - no sociocultural, mas tam bém no nível fisio - fenômenos do aparecirnento no teatro. Ela
lógico. Assim, a antropologia teatral é o estudo do
ascensão dos performance studies norte-a- tar: «É possível': pergunta-se ele, «trabalhar comportamento sociocultural e fisiológico em um observa a emergência "dos sentidos", ou da
rnericanos. Outro marco será o ano de 1989: na mesma estrutura perforrnativa corn os contexto de representação:' (A I JU "t 11l11 fl 1'1 J nr I n aarro na É de se evitar
no plano mundial, o fim do comunismo e o Antropology, London: Ro utledege, 1991, p. A Arte
do is registros: com a arte como presenta- Secreta do Ator: Um Dicionário de Antropologia Tea-
reduzir esse aparecer a uma scmiologia do
sur to d oravante sem entrave do neolibera- ção (para fazer um espetáculo público) e , ao tral, trad. br as. Patrícia Fur tad o de Mendonça, São esp etáculo, lá onde se vai perguntar unica-
lismo e da globalização. mesmo tempo, com a arte como veículo?" Paulo : É Realizações, 2012 , p. 14.) mente o que, tanto para os artistas como
Retorno às origens? A versão final - (f-\. arte 9 Thomas Richards, Travailler ave c Grotowski SUl' les
(P·197-198) . actions physiques, Arles: Actes Sud, 1995, p. 185. (Tra -
para os espectadores, constitui signo e faz
com o origem" - é também a mais completa e Não se pode entender aqui a crença do balhar Com Grotowski Sobr e as A ções Físicas, trad. senti do na representação, A fenomenologia,
acabada formulação de seu pensamento. E tal- teacher of performer: se o aluno pensa no bras. Patrícia Furtado de Mendonça, São Paulo : Pers - em compensação, se interessa pela maneira
pectiva, 2014, p. 139.)
vez também aquilo que p oderia - ou teria exerc ício como uma maneira de fazer tea- como o receptor percebe a obra: quais figu-
podido - criar um retorno às p osições pri- tro' não se arrisca ele, inquieta -se Grotowski, ras' quais formas ele aí distingue, como a
me iras sobre a mise en scêne, o teatro corn o a procurar o espetacular e a afastar-se, assim , figura emerge do desfigurado, a forma do
espetácu lo (performance), com o presentação. de sua bu sca, se bem que «o sentido de tudo informe. Essa aparição da forma, Alain
Grotowski -rep ete aí mais uma vez a oposi- isso corre o risco de tornar-se Prll11"l TA í · ... í1' A Badíou a concebe C0 1TI9 ,..t;!nl a transnzura-
ção entre o teatro como encenação do início (p. 198)? Essa honestidade honra o sábi o ç ã o , Uln reconhecimento: "En1 arte, aquilo
de sua carreira e a arte corno veículo na sua de Ponte dera. Ele duvida: estou «tentado a que não tem nenh um valor formal, trans-
Fr.: opoantio n et dispatition; In91.: appeara nce and
últim a etapa . Ele opõe «aarte corno presenta- eu o admito', confessa ele (p. nauraao de po r um deslocamento
°
, a sab er, teatro feito para ser p ercebido Talvez ele deseje voltar atrás no que disse
di sapp earan ce; AI.: Erscheinen und Verschwinden.
imprevis ível da fronteira entre aquilo que se
por um espectador, e «a arte corno ve ícul o?", sobre a construção de um espetáculo e, po r- o f ran cês disti ngue appariti on reconhece como sendo forma, mesmo que
que só tem sentido para os os tanto, raciocinar de novo, vinte anos (apareci ment o ) e apparence (aparência), de-formado, e aquilo no informado."
doers ou actu an ts, actantes. "Fazer a monta - enquanto encenador. Essa tentaçã o da dial é- enq uant o o in g lês ut iliza apena so t erm o Esse fenôm en o de aparecimen to n ada tem,
gem na percep ção é a tar efa do encen ador, tica (mais ainda do que o retorno que ele sabe appearance para as duas noções d isti nt as. portanto, de urna leit ura de signos:
e um dos mais importantes elementos de impossível) é a de deixar por um ins- Essa di ssim etria permite ao ing lês muit os é antes um lan ce de de "dramaturgia':
seu ofício [.. .]. Ao contrário, qua ndo falo da tante a arte como veículo para p ens ar em um j ogos (e-confusões) que a te o ria recente por assim di zer. O espetáculo ofer ecido ao
arte corno veículo, refiro-me à montagem cuja veículo perforrnativo como arte, em ou tra s explo ra até se fartar. Em com pe nsação, público passa po r esse momento
sede não reside na percepção do espectador, palavras, em urna mise en scéne com o ele o f ranc ês, que não pode j ogar t ão de aparição e, no mai s vezes, encarnado
porém na dos actantes" (p. 187) . a concebia nos anos 1960. O sábio de Pon- f acilmente co m as pala vra s, co nseg ue pelo ator. Assim , para o cenó grafo e encena-
Essa n ítid a posição é discutível, tedera reunir-se-ia ao revoltado de acia rar melhor os d omínios d e ap lic ação dor Daniel é um de
menos de um ponto de vista teó ri co. Não se Gostar íam os de pensá -lo. d esses co n cei to s cruciais para o estu do aparecimento. Espaços que podem ser vazios,
pode, de fato, afirmar o cont rári o? O encena- do t eatro. que podem se preencher. Mais do que repre-
dor deve prod u zir um espetáculo que torna NOTAS sentar cois as, fazer modo que
seu sen t id o tão somente se o espectad or Le Performer [1987], Workcenter of lerzy Grotowski, A arte do teatro, e mais ainda a arte da per- elas apareçanl , e de temp os em tempos isso
compreend e como esse encenador proce- brochura em inglês, italiano e francês do Workce n -
ter, 1988, p. 54 . forrnance ou da magia, consiste em fazer acontece."
deu, nã o suas intenções exatas, mas a sis- Croyden, Conversations av ec Pet er Brook, aparecer e todas as espécies de Na realidade , p ro cesso de apareci-
tern a de sua encenação, de sua composiçã o Seuil, 2007, p. 42. coisas: pessoas humanas, objetos, materiais mento nã o se produz apenas "de tem pos em
cêni ca. E, ao invés disso, observar o do er, o 3 Na notícia estampada a respeito de seu falecime nto , etc. Mal aparece e já desaparece! Todos esses tempos", ele é con stitu tivo do ato de olhar.
"Grotowsk i pour m érnoire" Disponível em : <h ttpl l
ator em exercício, obriga a ler seu trabalho dicnet.swarthmore.edu/litteraturel modernelou ak - vaivéns se produzem em um lugar e em um Os artistas o ternatizam de bom grado: é o
individu al como montagem necessariamente nin ei grotowskí.htm1>. tempo dados, daí seu caráter estratégico. caso do cen óg rafo [anneteau ou , em 2013, da
or ien tad a para um fim. 4 Le Performer, op. cit., p. 56.
Mnouchkine, nos lembra David W illiams, coreógrafa Iefta van Dinth er e do Cullberg

o
31
Rpropriação
Rrte Rcrobática no Espaço

BalIet, em Plateau Effect, quando os nove NOTRS


notadamente no que concerne a fotos ou a do exotismo, do colonialismo, da simplifi-
dançarinos apareciam e desapareciam em David Williarns, the Event: Notes
todos os tipos de cortina de cena, baseando Appearance, Passage Hope, em Judie Christie, quadros modificados por um computador, cação vulgar e estereotipada dos valores da
sua coreografia nesse duplo movimento.
Richard Gouph; Daniel Watt (eds.) A Performan ce coloca um problema legal. A jurisprudência outra cultura. É verdade que as culturas-
Cosmology, London: Routledge , 2 0 0 6 , p. 10 4 .
Essa oscilação entre a aparição e a desa- 2 Ernrnanuel Lévinas) autoriza a apropriação sob a condição de que -fontes enfraquecidas e empobrecidas estão
Paris;
parição corresponde a uma outra maneira Radio France, 1982) ) p. 79. (Livre Poche, o artista faça um fair use (uso justo) da obra e à mercê das culturas-alvos ricas econsumido-
de significar. Na prática, isso se traduz pelas 3 Alain Badiou) Second manifeste pour la philosophie, a retrabalhe de modo a convertê-la em uma ras. Seria, contudo, exagerado e injusto fazer
Paris: Fayard) 2009; Flamrnarion, 2010, p. 79. obra que pertença doravante ao artista e que de toda recepção um roubo, uma colonização
obras que recusam implicitamente as expli- jd1111el.eatl).ctuCJtes tneatraies, n. 49, 2010) p. ôr.
cações' que não repousam mais na alterna- "transcenda' a obra original. A questão toda imperialista, uma mercantilização desaver-
Roland Barthes, Le Plaisir du texte [1973], em Oeu -
tiva do verdadeiro ou do falso, da aparência vres completes) Paris: Senil, 1. 2 , 1994 , p. 149 8 - 1499. é saber apreciar esse trabalho, ficando enten- gonhada. Por isso é problemático estabelecer
e da realidade, do significante do signifi- dido no fundo que uma obra não é jamais uma oposição nítida entre a adaptação, "uma
cada. O prazer do texto, dizia Barthes, reside absolutamente original, intocável, autêntica e relação com o texto-fonte ou um original que
na produtividade da leitura, no entre os dois, única. Com o computador, tudo é facilmente o determina", e a apropriação, "uma viagem
na "intermitência, corno bem disse a psica-
nálise, que é erótica: a da pele qu e cin tila
entre duas peças (a calça e a malha), entre
I Apropriação
retocável. Os juízes devem avaliar se a obra
mudou suficientemente de matéria, de mídia,
de sentido.
O situacionismo, nos anos 1950 e 1960,
decisiva que se afasta da fonte determinada
para ir em direção a UlTI produto cultural ou
um dommio completamente novo'", As leis da
apropriação e do desvio- são muito mais fle-
duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a Fr.: appr opria tion ; Ing l.: app ropri at ion; AI.:

manga); é este sentilnento mesmo que sed uz,


An eignung. utilizou o termo apropriação em um sen- xíveis, porém muito mais vagas, e até invisí-
ou ainda: a encenação de um aparecin1ento- tido muito mais político e polêmico: como veis. Rirá melhor qu enl ler por último,
A ação de toma r ao seu pró pr io uso um desvio, uma deriva. A apropriação vai
-desap arecim ento"5. Esse erotism o do cor po ,
um objeto ou um lugar, o u e ntão d e se então pari passu COll1 a expropriação do NOTR
esse prazer do texto e da oscil ação disp ens a
apropriar dele. Essa dupla definição geral outro, com a luta de classes, com a adap- 1 Iulie Sanders, Adaptation and Approptiation, Lon -
urna colocação em demasiad o estáti ca don: Routledge, 2006 , p.
convém muito bem às ar tes plástica s e tação às novas condições políticas ou em
e obras "pré-mastigadas': sem trabalho sobre
ao teatro, na medida em q ue os a rt istas ruptura com a doxa. Aplicada ao teatro e à
as formas tanto na sua produ ção como na ... ... __._-_.._ --_.__ ..... , _. . :.
retomam muitas vezes por sua co nta,
,.'

sua recepção. A alternância do apa recimento performance, a é tanto a


transformando-a mais ou menos, u m a critura dos textos quanto a interpretação de
e do desaparecimento, elevada ao título d e
obra que se torna sua . um mesmo texto pelo conjunto dos artistas
princípio estético, recoloca a velha distinção
metafís íca entre a verdade e as aparen cias, implicados na e na presentacao
As artes plásticas, visuais, pra ticam esta apro- pública do espetáculo. A apropriação con-
ou mesmo a oposição de Kan t entre Schein
priação, juntando-lhe ou sub traindo-lhe ele - cerne, sobretudo, mas não exclusivamente, às
(aparência) e Erscheinung (fen ôm eno), p or - Fr.: ar t acrobat iqu e dans!'space ; Ingl.: Aeria ! art;
mentos da ob ra a obra de obras clássicas, relidas e reinterpretadas pelos
tanto entre a ilusão e a realidade ernpiri ca AI.:Akrobatik.
(foto, pintura, escultura) torna-se um rnare- encenadores que nã o têm um respeito literal
da experiência pelos sentidos. Tanto em um
riaI no qual o artista se abebera e qu e ele e sobranceiro pela literalidade das peças ou
caso como em outro, a aparência/ aparição transforma segundo seus Quando a dança, a performance e a
A da
°
pergunta a si mesma sempre que o teatro apropriação veio a ser, desde os anos 198 0 , um dos temas. E, de fato, toda mise en scêne se acrobacia se combinam com as artes do
revela além das aparências e dos aparecimen - apropria de alguma coisa do texto dramático, circo, resultam daí espetáculos "aéreos':
gênero à parte. Essa prática se inspira em urna ela desloca e cria à sua maneira o sentido,
tos, como ele é útil para melhor a concebidos sobre fios, cordas, mastros,
. . .......'-',-, amiúde muito conhecid a no que ela parodia sempre um pouco o objeto de
nossa realidade social e política do momento. trapézios, com os quais os artistas
diz repeito ao desviar de seu sentido or iginal, partida. Ela intervém na escolha dos mate- executam figuras complexas e perigosas.
ao fazer paródia- (assi m COIUO nos desvios- riais utilizados. Assim, o ator se apropria de
Marti n Seel. Aesthetik des Erscheinens.
da publicidade), insistir sobre UDl aspecto todas as espécies de gestuais, ele deforma e Já em 1974, Tr ish a Brown, com Walking on
Frankfurt: Suhrkamp, 2 000; Oie IV!ocht
notável ou cômico (car icatura, por exemplo). recria corpos imaginários. Toda encenação the Wall (Andando Sobre a Parede), equipava
des Erscheinens. Frankfurt: Suhrkarnp.
A fotografia pratica, de sde seus a
2 0 0 7. se apropria dos materiais, das técnicas e dos seus dançarinos como para fazê-
fotomontagem. A p intura, desde Manet ou sentidos possíveis do espetáculo para criar -los evoluir so bre um muro. Em sua dança
Richard Goug h; Ad rian I<ear (eds.). On Picasso, Rauschenberg ou Warhol, presta- a sua própria obra. Na teoria da tradução escalada ( Creu x poplité, 1987) , os dançarinos
Appearance, Perforrnance Research, -se muito bem a esse tipo de que
e do intercultural, a noção de apropriação arreados, do grupo Roc In . I·.inch eu, escalam
.
V. 13, n. 4, de z. 2008 .
consiste em "retrabalhar" uma fotografia, um torna-se sinônima de roubo e de exploração uma falésia seguindo uma coreografia ml~u­
quadro, uma publicidade. Esse procedimen to, de culturas estrangeiras, assumindo a forma ciosamente elaborada. Em Blanche Neige
32
33
Rrte Bruta [Rrt BrutJ Rssento

(Branca de Neve, 2009) de Angelin Prelojcaj, teatro concerne a uma escritura não domi- sistematicamente: "aquilo que começa como uso córico de um grupo em movimento per-
os sete anões movem mãos e pés para ficar nada, uma textualidade não polida, uma tex- uma série de fragmentos é arrumado no espe- pétuo: sua coreografia e suas mutações estão à
agarrados a um plano vertical. Kris Verdonk, tura áspera, uma materíalidade- assumida. táculo: a dramaturgia é um ato de assem- procura de uma comunidade e de uma assem-
em I, 11, III, IV, suspende seus dançarinos O bruto não é seguramente nem o brutal, blagern'", Essa assemblagem corresponde bleia que se assemelham ainda muito às figu-
como marionetes pelos fios e os faz rodo- nem o brutalisrno, nem o teatro do murro-, ao processo de escritura do espetáculo no ras ilegíveis da pós-modernidade.
piar e agitar-se por meio de um programa de A cenografia utiliza de bom grado objetos método do devised theatre [... [. O texto se Pois, é para a assembleia teatral que tanto
computador. En1 Autres pistes (Outras Pistas, achados, materiais brutos. Em Petit Pierre, ensambla pedaço por pedaço em função da os artistas como os desejariam
200 9), a coreógrafa Kitsou Dubois convida
peça de Suzanne Lebeau, encenada por Maud lógica do material e dos acasos da criação. Às nos convidar e nos incitar. Outras pesquisas,
seus artistas circassianos a um número de Hufnagel (2011), a cena reproduzia o emba- vezes a escritura é concebida como assembla- outras noções, con10 as de dispositivo- ou de
trapézio e de mastro chinês. Cada vez com ralhamento de objetos improvisados (brico- gem de superfícies textuais, esses Textjlãchen, agenciamentos, nos ajudam a pensar a organi-
mais frequência o teatro gosta de misturar lés) pelo protagonista, numa arte nai] feita do qual fala o autor austríaco Elfriede Ielinek zação das obras no espaço (é o caso do disposi-
momentos de teatro literário a números de de materiais recuperados e cuja assernbla- a propósito de suas próprias peças. tivo segundo Foucault) e no tempo (é o caso do
arte acrobática: é o caso do Fausto revisto geme constituía uma escultura móvel de uma Pode-se fazer corresponder todas essas agenciamento como «componentesgeográficos,
pela companhia islandesa Vesturport (2010, grande precisão e poesia. formas de assernblagem, no sentido das artes territorialidades e movimento de desterritoriali-
Londres, Young Vic), que alterna o jogo em É muito mais difícil fazer do corpo humano plásticas, a métodos de criação para a escri- zação'", em Deleuze e Guattari), mas somente a
Ull1a cena frontal com evoluções aéreas eU1 urna-matéria bruta: somente a dança japo- tura dramática ou a encenação. A assembla- assemblagem nos permite imaginar uma obra
uma rede em cima da plateia. nesa Butô chegou a isso, nos seus primór- gem declina-se conforme os mais diversos tanto para montar corno para desmontar, tanto
Em todos esses exemplos, o corpo humano dios, com Hijikata, antes de se reestetizar paradigmas, assim notadamente: para fazer como para desfazer.
se desprende por um instante da gravidade muito rapidamente a partir dos anos 1980, Ao ready-made de Marcel Duchamp corres-
para evoluir nos ares. Ao virtuosismo, ao com Sankai Iuku ou Maro Akaji e seu grupo pondem textos ou encenações que retomam NOTRS
risco, à performance técnica, os artistas Dairakudakan. pedaços do real, dos objetos achados (cêni- Mike Pearson: Michael Shanks, Theatre/.Archeology ,
acrescentam uma arte aé rea, um balé de infi- London: Routledge, 2001, p. 55.
cos ou verbais), misturando-os a construções
nita graça que não tem nenhum equivalente Deleuze refere-se às "diferen ças muito secundárias"
NOTAS imaginárias muito estruturadas. opunham, ele e Guattari, a Foucault: "O ele
eln terra firme. Iean Dubuffet, LArt brut pr éféré aux arts culturels, chamava dispositrvo, e o que Félix
À maneira da arte bruta de um Jean Dubuf-
Paris: Galerie R. Drouin, 1949; catálogo de exposição. tari] e eu agenciamento, não pos -
2 Peter Brook, L'Espacevide, Paris: Seuil, 1977.
fet, autores como Michel Vinaver ou coreó- suem as mesmas coordenadas, porque ele constituía
grafos como Jean Lauwers ou Alain Platel sequências ao passo que nós dávamos mais
importância componentes geográficas, às territo-
comprimem, em sua obra, pedaços não tra-

I
rialidades e aos movimentos de desterritorialização"
balhados e não refletidos, mas também não Pourparlers, Paris: Minuit, 1990-2013, p. 206.
Arte Bruta

I• Esse termo de Jean Dubuffet remete a I Rssemblagem


reprimidos, pedaços cujãcompréssão cria uma
nova matéria verbal ou cênica que espanta o
espectador por sua concentração e sua forma
uma arte produzida por pessoas fora das
normas e das estéticas oficiais . É, para ser
I Fr.: assem bloge. depurada, proveniente da forma impura.
Às imagens fulgurantes da pintura ou da
breve, a arte dos loucos, das crianças, dos Esse termo das artes plásticas se aplica à poesia surrealista seguem a cena ou a escritura
marginais, dos naifs (primitivos), a arte
daqueles que, "indenes de cultura': não
têm nada a ver com a alta cultura. É "uma
colaqem- e à reunião de objetos achados
ou tomados de empréstimo ao meio
que nos conduzem de uma surpresa a outra,
de UIna imagem congelada à seguinte, sendo
I Fr. Ingl. : AI.: Grundloge.

ambiente, objetos que, por um fenômeno então a assemblagern uma cadeia metafórica No teatro, nas artes do espetáculo e,
operação artística pura, bruta, reinventada de desvio- estético, tomam outro sentido. a fortiori, nas cultural performances,
ininterrupta, um fio de pérolas mais que uma
na totalidade de suas fases por seu o espectador' não permanece mais
matéria comprimida e recriada.
autor, a partir somente de seus próprios A assemblagem revela-se um conceito e uma sentado em seu lugar. Poder-se-ia,
À montagem, a qual advém sempre segundo
Impulsos," ferramenta prática para descrever como portanto, espantar-se com um estudo
uma lógica subjacente que faz sentido, opõe-
a dramaturgia moderna e contemporânea -se a assemblagem que brilha por sua falta científico sobre o assento do teatro, em
() equivalente ao teatro ser ia UU1 estilo bruto, junta às vezes materiais (arquivos, grava- que se observa um público frontalmente
de organização e sua arte de incorporar os
rough, como diz Peter Brook-: um teatro que ções de documentos audiovisuais) a fim de instalado diante de uma representação
elementos mais díspares.
guarda a espontaneidade de um a improvisa- constituir passo a passo uma performance a cênica. Cumpre imediatamente precisar
Ao coro antigo, unido e compacto, sucedeu,
ção ou de um psicodrama. O caráter bruto do partir de elementos reunidos mais ou menos que o assento deve ser tomado no sentido
na cena dos clássicos como dos modernos, um
34
35
Rtmosfera

I
Rtivismo

2 Les Intellectuels et le pouvoir, Le Nouvel Observa-


amplo e metafórico: como o público está A arte e a performance ativistanão possuem
teur, 30 dez . 1993 .
Ativismo formas espetaculares estabelecidas: recorrem a 3 Sobre a questão do ativismo em arte, ver a revista
instalado em esperas, posições físicas,
mas também mentais que preparam, e até Fr.: activisme; Ingl.: activism; AI.:Aktivismus. todos os meios eficazes para captar a atenção, Cassandr e.

determinam, sua recepção da obra. Uma sobretudo os das mídias. As velhas técnicas
observação dos costumes "espectadoriais" o ativismo político (ou sindicalista, do teatro de rua, os coros falados, cantados
é então instrutiva, sobretudo se se toma o
cuidado de ultrapassar a funesta oposição
entre uma posição sentada considerada
ecológico etc.) é um método de ação
e intervenção- pública que se situa no
exterior das instituições políticas (partidos,
ou dançados, as ações espetaculares sobre
monumentos (assim como Act up), ajlash
molr, o teatro invisível à la Boal, os desfiles em
I Atmosfera
Fr.: atmosphéte, lngl.: atmosphere; AI.: Atmosphore.
como passiva e um movimento de corpos sindicatos, grupos de pressão) e que utiliza memória dos desaparecidos (Mães da Plaza de
em passeio no espaço, descrito como todas as espécies de demonstrações Mayo em Buenos Aires): essas ações existem
públicas, incluindo aí o espetáculo, para em todas as variantes imagináveis. A proxi- o emprego deste termo não é tão
necessariamente ativo .
midade com o teatro documentário é mani- recente quanto afirma m seus atuais
formar opinião, dar a conhecer uma cau sa
Daí po r que um estu do empírico, como o de festa, principalmente quando os documentos teóricos'. Remonta ao teatro de atmosfera
de modo original e eficaz, exigir soluções
são citados em cena ou quando os peritos são (nastroyenié) de que falavam Stanislávski e
Marie-Madeleine Mervant-Roux, acerca da de parte dos responsáveis oficiais.
convocados em cena para trazer seu testemu- Meierhold a propósito de Anton Tchékhov.
distância física do espec tador em relação à Seu surgimento e desenvolvimento
nho autêntico, ou para juntar-se aos perfor- Essa noção foi frequentemente utilizada
cena e sua incidência sobre su a recep ção e explicam-se pela decepção
compreensão, é muito esclarecedor. Assim, mers, ou tornar-se eles próprios performers por Michael Tchékhov para descrever um
experimentada por seus militantes ante a
o estudo das zonas de int eraçõe s, dos luga- em determinados mo mentos (assim como os ambiente dominado pela psicologia das
atuação lerda e burocratizada de partidos
res diferenciados desde aqueles do s quais o espetáculos Rimini Protokoll no s anos 2000). personagens e caracterizado por uma
ou de sindicatos. O ativismo não é uma
espe ctador assis te ao espe tá culo: 1. A zon a Certos pe rfo rmers prOCUralTI colaborar unidade de tom bastante indefinível.
ação política, ele não propõe um novo
próxima, a menos de nove m etros do pal co: gênero de teatro político, mas, sim, outra com artistas, ativistas , intelectuais do mundo
É em outras bases que a teoria (semiológica
o espectador distingue os detalhes da m ím ica maneira de fazer política, de intervir no inteiro. Sua arte é concebida para atuar direta-
e fenomenológica) ou a estética da recepç ão
dos atores, mas percebe maI o espaço em seu espaço público. Aos militantes políticos . m ente sobre a sociedade com ou sem a ajuda
aí encontraram cadavez mais recursos desde
conjunto; ele vê maIos outros espectadores, se juntam, pois, os animadores, os de ativistas e pelas causas das mais diversas.
os anos 2000. Essa categoria da atmosfera
mas está no campo da visão imediata do s artistas e os intelectuais precarizados, os Convém de fato distinguir, ao menos em um
concerne menos à produção dos espetáculos
atores; sua própria visão é impressionante, trabalhadores socioculturais. primeiro momento, ent re esse objeto ape-
do que ao seu modo de recepção pelo espec-
mas incompleta; 2. A zona média, en tre oito sar de tudo estético que é o teatro militante,
tador. Pois só o espectador está em condi-
e treze metros: o espectador vê a cena em Tanto o teatro quanto as formas moder- docu lnentário, em contato permanente com o
ções de definir esse eu -não-sei-que de uma
seu conjunto; sua exp eriência é confortável, ni zadas do agit-prop encontram seu lugar real, e as inte rven ções dos ativistas no espaço
ambi ência, me smo se é de fato a encenação
"a mais agradável, ma s sem dúv ida a me nos no sistema local das redes, notadamente - social, interven ções que poderão constituir
qu e tem em primeiro lugar por tarefa pro-
potente"; 3. A zona m arginal: o espectador, desde os inícios do novo milêni o - as redes em seguida, event ualme nte, o objeto de um
além de treze metros, distingue malas ros- acessíveis pela internet. Esse movimento de espetáculo, conq uanto esse não seja de modo du zir essa atm osfera .
tos, concentra-se, portanto, n os movimentos riposta, de contra-ataque ao poder, encon- algum o fim primeiro da operação. .
de conjunto e fia-se mais na voz e no texto ; tra percussão em filósofos como Baudrillard, As inv enções estéti cas e dramatúrgi-
1. QUA I S TEORIAS PA RA Q UAL ATMOSF ERA
corre o risco de desligar-se depressa, tem de Foucault ou Deleuze: de maneira pessimi sta cas dos ativistas são uma fonte de inspira-
fazer um esforço para seguir o espetáculo, ou cética para Baudrillard, que desconfia do ção para u m teatro engajado ou para uma
A dificuldade é a de formular a teoria desse
torna-se um "contemplado r ouvin te?'. slogando direito à diferença, "da forma publi- pe rfornl ance politizada, convocados a se
conceito vago e, pa ra começar, entrar em
Cada espectador tem suas preferências citária da diferença, da promoção da dife- des envolverem em to das as direções possí-
acordo sobre a sua natureza, seu sentido e
para ver e ouvir um espetáculo, do mes mo rença como efeito especial e como gadget"; veis. As int erv enções cidadãs lutam sempre
modo que antigamente o alun o sabia se lhe de maneira ativa e positiva para pen sadores contra as disfunçõ es, elas defendem causas o meio de identificá-lo.
A psicologia e as elnoções vinculadas a uma
convinha ficar sentado na primeira fila ou como Deleuze e Foucault, pois "em face dessa que os arti stas retorn arão e tratarão a seguir
situação ten sa, e até trágica, hoje não consti-
no fundo da classe, próximo do aquecedor... política global do poder se efetuam ripostas à sua maneira'.
tuem mais a principal propriedade da atmos -
locais, contrafogos (no sentido de Bourdieu),
fera. Pois seri a voltar ao teatro psicológico
NOTA defesas ativas", e se trata, pois, "de instaurar
Segundo Marie-Madeleine IvIervant-Ro ux (éd.), L:As-
NOTRS ou siln bolista do fim do século XIX, a uma
afiliações laterais, todo um sistema de redes, Jean Baud rilla rd , La Gauche divin e, Paris: Grasset,
sise du théâtre: Pour un e étude du spectaieur, Paris: estéti ca qu e alim enta o mistério.
CNRS, 1998.
de bases populares">. 1985, p. 133·

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Rtmosfera
Rura

A modalidade e a iluminação emocional: teoria do espetáculo em seu conjunto, corno interações entre suas percepções e a cons- captação direta em vídeo, filme, vídeomonta-
a do locutor e de sua atitude para com seus a da mise en scêne ou da dramaturgia ou da tituição do objeto estético.
enunciados, seu modo de enunciação, por- análise do espetáculo. Sem uma visão global a perda da aura não era em si catastrófica,
tanto, não concernem senão aos enunciados da encenação, sem uma análise concreta da NOTAS ela devia mesmo permitir a revolução cultu-
verbais. Com efeito, essa enunciação verbal, encenação, ações físicas ou simbólicas que [ens Roselt, Phãnomenologie des Thea ters, München:
ral da reprodutibilidade'. No uso das mídias,
Fínk, 2008, p. 107; Gernot B ôhrne, Atmosph ãre:
ancorada nas entonações, e o sistema paralin- sustentam a mise en scêne ou, dito de outro a mise en scêne teatral não desapareceu, ela
Essays zur neuen Asthetik, Frankfur t: Suhrkarnp, 1995;
guístico influem na mensagem transmitida modo, sem conhecimento daquilo que no Sabine Schouten, Atmosphãre, ern Eri ka Fisch er- conservou o seu encanto autêntico, mas
e lhe conferem seu sentido e sua ilumina- espaço-tempo constitui a representação e Lichte; Doris Kolesch et al. (org s.), lvIetzler Lexikon
Theatertheorie, Stuttgart: Metzler, 20 05, p. 13; Erika também integrou no seu funcionamento
ção, contribuindo assim para lhe impor uma sua organização formal, a determinação da Fischer -Lichte, Asthetik des Perfo rm ativen, Fran kfurt: e na sua representação cênica a possibili-
modalidade (modality), um estado de espí - atmosfera corre o risco de permanecer sub- Suhrkamp, 2004, p.
dade de de todas as
rito e um humor (mood) particulares. Uti- jetiva e vazia. Pois, uma atmosfera é "um Rachel Pensharn, To Watch Essays on Gerire
'and Corporeality, Bruxelles/New York: Pe te r Lang, cies. O conjunto permanece, entretanto, um
lizando a linguísticà sistem ática e funcional êxtase de coisas'", ela não passeia inteira- 2009, p.1l4. Fensham 's e refere à ob ra d e NLA .K. acontecimento produzido de forma direta, de
de Michael Halíday, RacheI Fensham propõe mente sozinha no ar, ela se desprende de Halliday, An Introduction to Fun ctional Grammar,
.m aneira única para o público de uma noite e,
London/Baltimore: Arnold, 1994.
analisar a atitude dos locutores (atores no todo um conjunto estruturado e descrití- portanto, quaisquer que 'sejam os elementos
E. Fischer-Lichte, op. cit. , p;"20 l.
desempenho de 'personagens) para elucidar vel. Cabe aos nossos espectadores procurar reproduzidos mec ânica ou 'eletron icam ente
G. B õhme, op. cit., 168.
su~s motivações: "o humor (mood) codifica marcas tangíveis no conjunto da encenação, no interior da representaçã() .elamant ém sua
os papéis de um 10cutot'en1.face do ouvinte sem negligenciar as ferramentas mais obje- '(Caúra de conjunto" ,
e eles incluem as proposições(propositions), 'a tivas da análise; as da mise en scêne e as da Cl;íti~adâ 'aura. de ,aura se faz,
troca.de informações como nas declarações e dramaturgia.
nos questíonamentos, e as ofertas(proposals) , Essa análise será tanto mais pertinente
as trocas de bens e de serviços que resultam quanto mais relacionada à recepção do espec-
de ofertas e de ordens (Halliday) H2. Essa aná- tador: não apenas intelectualmente, mas
lise linguística aplica-se, entretanto, apenas a também através de sua. empatia- sinestésica:
I Aura
Estetermo dê Walter Benjamin' (1931)
todavia, Qpj.~to de polêmicas. Contesta-se-
-lh e a faculdade essencialista d e definir' a
performance como autêntica e, portanto,
"superior" às m últiplas mídias. É assim que
se refere à autenticidade radiante da .Auslander -censura Phelan: por limitar a per-
uma crjtica das trocas verbais sem prejulgar sua percepção do movimento dos atores, sua formance àquilo que não e, por
obra de arte, considerada na época
a situação dramática e cênica em que ocor- consciência de sensações e de percepções conseguinte, irregistrável. Ele próprio não
anterior à de sua reprodução (e de sua
rem essas trocas linguísticas. que ele é convidado a gerar. A empatia..psi- reprodutibilidade) mecânica (fotografia, hesita em afirmar que , "h istoricam ente, o live
O e~li'Jlço_é amiúde considerado como o cológica não é menos importante para pene- cinema e, hoje, novas mídias) ..A obra é nar éàlidade um efeito da mediatização, e
reservatório da atmosfera. Mesmo convindo, trar os segredos da atmosfera-quer ela trate 11~c;:~oinyerso',':2;i,I3aud.rillardfazdo sim ulacro
de arte vale pelo lidas Hierund Jetzt
co m o é Ocaso de Fischer-Lichte a propósito da percepção de sensações, do impacto dos a únicarealidade na.aus ênci a.de.todo origi -
desOr".igitlélls"(p. 12), "0 aqui e agora do .
de B ôhrne (1995)~ que "as atmosferas são por afetos, dó reconhecimento dos efeitos per- ;,n al qu e Op reéed êTia-g-qu @, ser ia privilegiado
oriqlnal'; sua existência única em 'um lugar
certo desprovidas de lugar, mas, no entanto, tencentes a diferentes culturas. 'Além disso,
particularsua maneira única e oriqinal .de emrelação-aele. ." . , .
esparram ad as espacíalrnente'>,o espaço não é sentir e analisar a atmosfera obriga a repen-
aparecer.A aura-daobracorresponde a ,Lo n ge .:d~' ~; 'Iiê'gar'~à-p-re p011 der ância das
o único nem mesmo o principal receptáculo sar sem cessar suas próprias expectativas e mídi~s,pode.r-·s e-ia . t am b érn igualmente
seu valor autêntico, cultuai: "0 valor único
da atmosfera, O som, a música, a tonalidade seus pressupostos culturais. As categorias
daobrade arte 'aut êntica'fundarnenta-se retornar daíà posição original e ao origi-'
são igualmente importantes e não têm, por da boa ou da má atmosfera e a leitura das
nesse ritual que foi 'seu valorde uso nal de Benjamin: as .mídias n ão , anulam a
definição, limites na sua propagação. nuances culturais não poderiam contentar- .original e prirneiro'". ·opra,(Cau r ática", elascontribuem apenas para
Urna impress ão global, afirma a justo título .-se com um modelo universalista da atmos-
reavaliar asnovas condições d a cultura. No
Fisch er -Lich te (p. 201) . Tal 'é, com efeito, fera; elas nos encorajam muito mais a partir A representação teatral, que se define pela tocante à de teatro, ela opera uma
uma marca da atmosfera: nãose pode divi - de um conhecimento de nossas identidades presentação em live (vida) de ações huma- mediação entre a obra aurática e a m ídia, isto
d i-la em propriedades e significantes, do de todo gênero para depois melhor apreciar nas, possui ipsofacto uma aura, ligada à pre- é, entreo valor cultual d a aura e o valor de
mesmo modo que não se poderia dividir a o modo como essas identidades culturais, sença dos atores e ao caráter hão repetitivo exposição (Ausstellungswert). Ela concilia, ou
neblina para enfiá-la em diferentes caixas. étnicas, sexuais, econômicas nos influen - do acontecimento cênico. É, pois, tentador opõe, o princípio de autenticidade aurática e
Cumpre, porém, passar à etapa seguinte, ciam em nossa decifração das atmosferas. aplicar-lhe a noção de Benjamin, tanto mais o princípio de reprodução e de repetição. Ela
e perguntar-se qual o elo ou qual é a rela- Não se conseguirá apreender o eu -não-sei- quanto o público sabe muito bem que não faz de tudo a fim de parecer única e "virgem"
ção que a atmosfera tece com noções, elas -qu e atmosférico sem uma reflexão sobre se pode reproduzir mecanicamente o teatro a cada representação, mas é também e, ao
também globais, mas melhor ancoradas na a percepção dos espectadores- e sobre as sem destruí-Io e sem passar a outra coisa: mesmo tempo, repetida de modo idêntico e
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Rutenticidade
Autenticidade

aceita em seu seio mídias que guardam suas 6 .P. Auslander, op. cit., p. 5I.
2. A AUTENTICIDADE DO ARTISTA sejam os gêneros, quer se trate de teatro ou
propriedades e repetitivas. 7 A. Cauquelin, Aura, em M. Marzano ( éd.), op. cit.,
p.86-88. E DO ATOR de perfomance, é rejeitada como idealista e
Metamorfose da aura. A questão não é,
8 YvesMichaud, I:Art à létat gazeux: Essai sur te triom - impossível, como aquilo que estraga o prazer
pois) de aceitar ou recusar a perda da aura ph e de l'esthétique, Paris: Stock, 2003 . A essa busca do eu autêntico, o ator se entrega crítico dos espectadores, aquilo que impede
no uso das mídias) mas de compreender as
cotidianamente, com êxitos variados. Na con - sua denegação-: esse ator/personagem lá)sou
metamorfoses dessa aura. Como faz notar
cepção psicológica do jogo naturalista do ator, eu e não sou eu.
Anne Cauquelin, "a aura escorregou do con -
este último, considera-se, vai reencontrar as
teúdo artístico da obra mantida à distância
emoções autênticas de sua personagem. Essa
e sacralizada, para uma aura que acompa-
nha toda manifestação de arte que assume
Autenticidade estética romântica da originalidade) do gênio 3. A AUTENTICIDAD E DA OUTRA CULTURA
individual, da «construção da personagem"
o ar de um evento'". A única coisa que conta, Fr.: authenticíté; Ingl.: au thenticity; (Stanislávski) é ainda aquela da 'p rod u ção "Como representar o antigo?': perguntou-se
assinala Cauquelín, é doravante a maneira A/.: Authen tizitat. teatral e cin em atogr áfica de massa, en co- UIndia Roland Barthes' . Em uma cena de UIn
como a arte contemporânea vai se expor, o
rajada por uma mitologia do ofício do ator teatro, o que mostrar de uma época e de uma
"valor de exposição" dessas artes da repro- Encontra-se o termo autenticidade em atenção ao grande público. Ela não tem cultura tão distantes como as dos gregos?
dução, capazes de multiplicar os lugares de em numerosos tipos de discursos e de mais curso no teatro experimental e na refle- Como representar a outra cultura sem falsi -
exposição e os objetos idênticos expostos. domínios contemporâneos: na filosofia, xão teórica de hoj e. Apenas a performance ficá-la, dando -lhe uma representação autên -
Aplicado à encenação, constata-se também de onde provém a noção; na etnologia, tica? Essa questão obseda a consciência dos
(performance art) e suas ações únicas não
esse deslizamento da aura: raras são as repre - quando esta se interroga sobre a repetíveis poderão invocar para si uma ação antropólogos e, por ricochete, a dos atores e
sentações que , como outrora os espetáculos autenticidade de uma cultura ou de urna autêntica. Mas essa autenticidade concerne encenadores confrontados com urna cultura
de Artaud, Grotowski ou Brook, desejariam prática; na vida artística e, de maneira à pessoa do perforrner, e não à da persona- que não é a deles e que lhes parece estran-
ser obras ún icas, não repetíveis. Raros são os muito particular'o".naperformance do gem ou do ator empenhando-se em querer geira e longínqua. Maspode-se ao menos
espetáculos que reatam com sua dimensão ator e nas numerosas experiências nos persuadir de queele é aquilo que ele se estar seguro de que a representação tea-
cultual, ou ,simplesrnente performativa. Em "perforrnativas" contem porâ neas..Esse representa e interpreta no jogo da atuação. tral é de fato autêntica? Não é ela, por defi-
lugar dessas obras únicas e nimbadas de urna uso pletórico e amiúde indiferenciado Mas quem ainda acredita nisso? A constru- nição, uma recriaç ãoe, supondo que se tem
forte aura,encontramos agora eventos respei - nos convida a submeter esta noção ção autêntica de si ou de sua personageIn é acesso ao objeto real, quem julgará se sua
táv eis que valem por sua reprodutibilidade essencial a uma reflexão crítica. reivindicada como um dos objetivos do con- representação é ju sta e autêntica? A auten-
até mais, do que por seu conteúdo,
sumo cultural e do gozo artístico. A auten- ticidade' não será ela uma ilusão, uma cons -
eventos que se definem não em si, mas em 1. A AUTENTICIDADE DO SUJEITO
ticidade de uma obra se mede também pelo trução por um sujeito em busca da verdade?
relação com o "evento perceptivo" do espec - EM FILOSOFIA
grau de investimento do criador na sua obra) Como mostra Chris Balme, "toda tentativa
tador, segundo uma subjetividade sem Iimi -
no investimento de seu desejo na sua criação. de congelar as formas culturais no interior
tes.A mise en scéne não produz mais então A principal preocupação do sujeito tendo em
Atualmente a posição do ator de tradição de uma matriz de autenticidade acaba mui
obras autôn om as e analisáveis, mas impres- vista a autenticidade, sobretudo depois do
mim ética e psicológica está em crise. Ele se rapidamente em uma folclorização de tex-
sões, ideias de obras, obras «em estado gaso - existencialismo, não é tanto conhecer-se a si
cOInpraz eIn mostrar sua fatura, sua cons- tos culturais" 4 •
SO" 8 (Michaud) , somente perceptíveis em sua próprio quanto ser em si mesmo, ter o direito trução, seus truques, em desconstruir por Censurar um encenador por não dar
intensidade e em sua energia, em seu halo à diferença e estar em condição de dirigir
assim dizer sua autenticidade. Em vez de uma representação autêntica de uma cul-
visível exclusivamente aos iniciados. a sua própria vida como ele a entende. Se, fingir certa autenticidade, ele traz à luz sua tura estrangeira, é sem pre mover-lhe um
NOTRS
como diz Sartre', "o inferno são os outros': o teatralidade, sua estilização, sua intensidade. mau processo, é acusá-lo de não ser aquilo
1 Desde 1931 em Klein e Ges chichte der Photographíe, eu no entanto não é o paraíso. Uma ética da A crítica) o colocar em dúvida a autentici- que ele não é: urn historiador e um antropó-
Da s Kunstwerk im Z eitalter seiner techn ischen Repto - autenticidade) desde Heidegger, Camus, Sar-
du zierbark eit [1936 ], Frankfurt: Suhrkamp, 1963, p. 55. dade, vai a par COIn a afirmação do caráter logo. É tamb ém supor que ele não poderia
tre ou L évinas, convida o indivíduo a man- artificial da mise en scêne. No fundo) o ator pretender a autenticidade no que é dado de
2 Walter Benjamin , Oeuvres, Paris: Gallirnard, 2000,
t. 3, p. 280 . ter-se reto malgrado as provações, a não cair que se faz passar por verdadeiro e autêntico uma cultura, porquanto ele não pertence a
3 Anne Cauquelin, Aura, em Mich ela Mar zano ( éd.), ou recair na alienação e na inautenticidade», é de má -fé, pois ele não é) na realidade, senão essa cultura. Tal é a censura eln que incorre
D iction naire du corps, Pari s: PUF, 20 0 7. Esse indivíduo deve, então, entregar-se a urna
4 Philip Auslander, Liven ess: Performance in a M edia- urna construção artificial, que não engana o com tanta frequência o teatro intercultural.
tize d Culture, London: Routledge, 1999. "encenação do eu': a uma estratégia pela pes- espectador, mesmo quando este último apre- Os artistas "estrangeiros" são censurados por
5 Peggy Phelan, Unmarked: The Politics ofPerform ance, quisa desse eu e à salvaguarda de sua iden- cia as qualidades de dissimulação do ator e falta de autenticidade, são acusados de exo-
Lo ndon: Routledge, 1993. tidade.
do teatro. A autenticidade) quaisquer que tismo, de orientalismo, de eurocentrismo e
LJO
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Autobiografia
Autenticidade

estéticos que a cena utiliza à sua vontade, próprio sua história de vida-, na pri~eira ou
até de neocolonialismo. Esquece-se, assirn fazer coincidir a arte e a vida, de celebrar o
segundo as necessidades, sem querer impô- na terceira pessoa. Foi o que fez DanIel So~­
fazendo, que a noção de autenticidade, de exclusivo momento presente e a pura pre-
-los corno uma marca e urna prova de ver- lier, em Derriére chez moi (2002) ou em Apres
autor, de propriedade literária ou artística, sença do perforrner, de privilegiar a presença Tamour: suas lembranças e suas confissões
de fidelidade na tradução, de diferença entre em relação ao v':': : ":'">... . .
dade ou honestidade.
são concretizadas no conjunto da encenação.
tradução e adaptação são noções ocidentais, -Quarenta anos após essas experiências, o
A autobiografia não é mais, então, some.n~e
importadas do Ocidente e amiúde recusadas teatro tornou-se cético e, às vezes, cínico; NOTRS
En1 Entre Quatro Paredes. a escritura de si próprio, é também a exibi-
em países como o Japão, a Coreia ou a China. ele não crê mais nessas demonstrações 2 No sentido de Heidegger (verfallen), ver P.Pavis, On
ção de si meSll10. . , . ,
espontâneas de presença autêntica; seu jogo , Falling , Performance research, v. 18, n. 4, 2013·
Quando aquilo que é dito de SIpropno e
representa com toda boa vontade efeitos con- Roland Barthes, Essais critiques, Paris: Seuil, 1964;
idem , Oeuvres completes, t. I, 1993, p. 1218-1223· simultaneamente encarnado ou mostrado
4. CRÍTICA DA AUT ENTICIDADE trastados de autenticidade e artificialidade, 4 Chris Balme . Decolonizing the Stage:TheatricalSyn- por um ator (um performer), fala-se de aut~­
quer seja na representação do eu, na apa- cretism and Post-Colonial Drama, Oxford: Claren- performance.1'Jess'ec::fSO;bator pode VIr
Portanto, seja para o filósofo, o artista, o ator rência/aparição do ator.nosefeitos cenográ.. don;1999 ;P·274:
5 Ioél Pornmerat; Joelle Gayot, Troubles, Ar1es:Actes ~ ser um performer. Este último pretende
ou o antropólogo, a autenticidade está sub- ficos. O teatro se diverte em misturar, em
Sud, 2009, p. 94· que ele é tão somente ele próprio, que ele
metida a uma crítica radical. Ela jamais pode alternar momentos autênticos, "realistas': e 6 No sentido de Hans 'Ulrich Gumbrecht, Production não representa uma personagem, mas fala
ser atingida; não se pode dizer que algo é momentos falsos, distanciados. Não é raro 01Presence: v\lhat Meaning Cannot Convey, Stanford:
Stanford Universíty Press, 2004·
diretamente de sua própria vida: ele troca a
«autêntico" (ou sincero) senl incidir imedia- que, em um mesmo espetáculo/performance,
representação pela presentação· de si pró-
tamente em m á-fé, A encenação conternpo - se alternem efeitos miméticos de autentici-
prio. Para o espectador, é um prazer suple-
r ânea não se engana nisso, ela que reivindica dade e efeitos de inautenticidade. O ator (um
n1entar ver lllTIapeSSoa de verdade diante
antes a inautenticidade do jogo do ator e pouco o contador de histórias tradicional)
de si, e não o ator imitando uma persona-
da representação. Daí o autor e en cen ad or diz alternadamente: eu desemp enho um
Rutobi ografia gern. É tamb ém umprazer observa.r àquilo
Ioél Pommerat afirmar: "Não é o SG.f autên - papel, eu sou eu mesmo. Nas performances
que o perforrner dá passagem de S1" sem se
tico que nós procuran1os / eu diria n1eSITIO, de Rimini Protokoll, encontramos urna rnis-
Fr.: autobiographi e; Ingl.: Quto bio9 rophy; AI.: dar conta, ao .m en c s no início. Mas, desde
ao contrário, que o sentido desse trabalho tura de atores e de "experts": testemunhas
Autob iogrophie. que o perforrner repete sua entrega~ ele se
é o de aceitar que se mostre a inautentici- chamadas para falar em seu próprio nome.
torna ator: ele se determina na medida em
._.....dade e a impureza /Aceitarque~ s e.Q€sv@le Ao cabo de um momento, até os expertos A escritura de um autor sobre e por ele que seu autor (mesmo que seja ele pr?prio)
aquilo,que não é autêntico em si. / Mostrar tornam-se UUl pouco atores. Recentes ten- mesmo, a escritura de si, não vai por si lhe diz e lhe aconselha fazer. Em particular,
aquilo-que é falso." tativas de escritura jogam corn essa ambi- ao teatro. Associa-se de preferência a ele deve saber contar histórias, ir ao essen-
Mais do que a autenticidade ou a inau- guidade do testemunho autobiográfico e da autobiografia ao romance, à história de cial, reter apenas o que interessará ao espec-
tenticidade' dever-se-ia falar do efeito de pura invenção. Em Mi Vida Después, Lola vida-, em que um eu narrador conta o tador; dito de outro modo, ele deve saber
autenticidade (corno Barthes falava do efeito Arias relata uma ruptura amorosa sem que que um eu anterior realrnente sentiu, interpretar b em sua personagem. No teatro
do real): um procedimento estilístico ou art ís- se possa diz er qual é a parte da autobiografia viveu, pensou, ocultou etc. Naquilo que (na cena), o ato de contar está ligado à enun-
tico que utiliza alguns pormenores julgados ou da ficção. O grupo franc ês LAvantage du Philippe Lejeune denominou corno ciação cênica (à encenação e à arte do ator).
autênticos e suficientes para causar ilusão. doute (assim corno em Tout ce qui naus reste pacto autobiográfico, autor, narrador Ele não vai ao fundo de modo diferente no
de la r évolutionccest Simon) mescla textos
e personagem coincidem em urna relato autobiográfico >pois há sempre uma
escritos pelos atores a partir de sua exp eri ên - mesma pessoa. No teatro, seja em uma diferenca entre o eu que viveu qualquer coisa
cia pessoal e uma construção dramatúrgica
(sua ex~eriência de vida) e o eu que conta
5.EXPERIÊNCIAS TEATRAIS
peça dialogada, um monólogo ou uma
DA AUTENTICIDADE que não deixa nada ao acaso. N o espetáculo performance na qual o performer· fala essa experiência passada. Ora, esse eu narra--
SODA, encontrarnos igualmente urna paródia
- diretamente de si próprio, a autobiografia dor inventa inevitavehnente qualquer coisa
Se, nos anos 1960-197°, a arte performática de folhetim televisual, em que tudo é falso
é mediatizada por uma série de ao rernemorá-la . Tanto em um caso como
renunciava à representação teatral ern pro- e fabricado, mas enl que os diálogos vazios enunciadores: o jogo, a cena, o arranjo das em outro, teatro ou romance, nós já estamos
veito da presentação cênica d os perforrners, permitem reconhecer UIna observação minu- diversas fontes de palavras e de situações. na ficção, na autoficção·.
era em uma última tentativa, rapidamente ciosa da vida cotidiana atual (texto de N. Ker-
votada ao malogro, de testemunhar a auten- zenbaum, D. Baronet, L Iude). É, no entanto, urna opção concebível para
ticidade do teatro e do ser humano. A ideia Deixamos, assim, definitivamente, o solo um autor contar sua vida dramatizando-a
era a de apresentar um perforrner que não metafísico do verdadeiro e do falso. Os efeitos com vários protagonistas ou organizando ele
representa e continua sendo ele mesmo, de de autenticidade tornaram-se procedi mentos
43
42
Rutoficção
Rutoficção

I Rutoficção de representar uma personagem, com a pos-


sibilidade de desempenhar as outras perso-
representar, de produzir uma ilusão, de se
prender em uma ficção, a censura do roman-
Outras experiências que implicam a vida
ou a sobrevivência do performer não têm
Fr.: autofiction; lngl.: autotiction, AI.: Auto tiktior;
nagens, como faria um contador de histórias
cista autoficcional, permite-lhe "inventar sua senlpre a radicalidade da body art-, Assim,
(é o caso de Philippe Caubere em suas evoca-
1. DA AUTOBIOGRAFIA À AUTOFICÇÃO própria escritura dessa nova percepção de si quando elas visam transformar o especta-
ções de sua juventude no Théâtre du Soleil).
que é a nossa". Assim, toda autobiografia e dor em participante em ações a respeito das
o termo "autoficção" foi criado por Serge toda autoperfonnance não são outra coisa . quais não se está mais certo se elas ainda são
Doubrovski na quarta capa de seu primeiro senão uma autoficção. Nos dois casos, a iden- ações simuladas pelos atores ou verdadeiras
2. DA AUTOFICÇÃO À AUTOPERFORMANCE
romance, Pils (1977). Quinze anos mais tarde, tidade do eu é posta em causa: ela não é nem situações sociais não fictícias, Por exemplo,
ele teve um grande acolhimento'córnobras estável, nem indiscutível, nem claramente no teatro de imersão- > eJ? que os ~§..B~_çtªdo~
Vale a pena comparar a tarefa do romancista
de inspiração autobiográfica de autores como legível, ela está em perpétua construção. Tra - res são mergulhados em um meio qu~ conse-
autobiográfico à do performer que interpreta
Carnille Laurent, Philippe Foresr, Chloé ta -se, portanto, de proceder à desconstrução gue fazê-los viver uma '~xpe,riência real e não
'a sua própria vida para os espectadores. Em
Delaume, Catberine Cusset, Hervé Guibert, do sujeito, de colocar em dúvida sua pleni- fabricada por uma encenação no palco. Ou
seu relato, o autobiógrafo parte de elementos
Marie Darrieussecq no domínio do romance tude (Lacan), de questionar sua origem (Der- então na One-to-One performance
de sua vida real, mas está muito distante deles
francês, assim como Roland Barthes (Roland rida), de decretar a morte do autor (Barthes). culo entre um autor ~" ~m espectador), para a
e deve retrabalhá -Ios, transformá -los em um
Barthes par Roland Barthes, 1975) no da teo- Mais recentemente, a pós-narratologia pro- qual o espectador recebido individualmente
relato de ficção, plasmá -los em relato, .inven -
ria. No domínio anglófono, faz-se remontar pôs a noção de experienciality'. Isso quer dizer ' não sabe bem se.estánoteatro e;, portanto,
tar razões e circunstâncias. Na autoperfor-
a autoficç ão à 7he Autobiography ofAlice B. que nem o sujeito, nem o ator nem o especta- na mentira e ~o.pec~élb, :ou .entãonareali-
mance, o performer, al ém do fato de ser/estar
To/elas, deGertrude Stein (1933), ou à Up, de dor podem compreender o que é vivido, sig- dade, séria ; d~ sua 'v id a de súbito posta
no instante presente da cena, atua selnpre ao
Ronald Sukenick (1968) . nificado' recebido na obra autoficcional sem em questão. O teatro-pós-dram ático- gosta
lado, na sequência e no lugar de sua perso-
A posição da autoficção, por contraste com fazer referência à sua experiência concreta. de misturar, em um.espetáculo, pedaços de
nagern: ele é uma persona, a máscara de um
a autobíografia-, é clara: o autor fala aí defatos realidade, testemunhos 'autên ticos, gravados
outro, imaginário e.estranho, ainda que seja
pessoaísreaís, não inventados, mas inteira- ou ao vivo, e' histÓ i~i~s inventadas, Com seus
apenas para fabricar essa pessoa que ele foi
mente 'recornpostos, com outra cl~0Í161ügja, 3. DA AU TO PERFORMANCE À LIVE ART- expertos do cotidiano, ()grupo Rimini Proto-
e que o espectador exige a fim de fazer uma
de episódios acrescidos, assumindoa res -
ideia dele. O jogo cênico e a encenação como
E À BODY A RT- ..JçºlLpôs_,ª-testenlLlnh~r-. .~specialistas de sab c--
ponS{;1~Midade por necessidades da .n ar ra çâo res ou de técnicas complexas que falam em
c. <#~;"~ • " ," organização espaço-o temporal de uma açã o
e d a H~yao . .A autobiografia pura e Julgada
I •

Se o destino da autoperformance é tornar-se se,u próprio a


deslocam e mudam os elementos reais, tor-
impossive], po is ela tem necessidade da ficção
nando-os não apenas ficcionais (inventados autoficção e, por conseguinte, abandonar a nós em um escrit?r,i~: . .peritos ou eln UHl
para existir -O eu pertencente .ao passado, "po r: pretens ão de dizer e mostrar a verdade, nem document ário té18v:isFv6;.~.'fodavt,a; percebe-se
ou, ao menos, modificados e inveri ficáveis) ,
assim dizel.:'; ·isto é. exprimindo-seole próprio por isso o performer renuncia efetuar ações depressa que se.w.s:,disd~lr:~()?s~o .,imp·efavel­
mas tambérncênicos; lúdicos; artísticos,'um a
e se exp on do para osoutros, só pode fazê- físicas reais, não simuladas, portanto, que mente encenados.rêgidos por-uma-drama-
vez que artificiais e belos. O perforrner contí -
-lo inventando um relato}caindo na ficção.
nua sendo, ,ou melhor, volta então aser se~n-'­ demonstrem a presençaautêntica do corpo túrgiáneodá~§:icâ:Jn\l~ip :;preci~á: , . i:" ,
O pacto at.ltobiográfico .en tre (~ autore o leI- vivo e presente do perforrneT em cen a-::-Par a " Esses espetáciilosdócurnentais autébiogr á-
pre um pouco ator, autor e narradorEle volt a
tor é rompido incessantemente pelo retorno tanto, a body art- 'ou a liveart: aparecem ficas ar riscaçlos p-elqs protagonistas mesclam
a sê-lo enquanto se esforça para__ baralhar as
da ficção e danarracâo, corno ações realmente realizadas ("perfor- . alegremente cois'às':'reais autênt~case' ,Ii1omen­
pistas cênicas, a fim de fazer crer que ele não
.A autoficção teatral é mais rara, mas não madas") diante de um público que, ele tam- tos de pura ficção. Nem uma coisa nem outra,
representa nenhum outro senão ele próprio.
inédita. Ela utilizaria .os meios da dramatiza- bérn, não pode mais refugiar-se na ilusão verdade ou mentira.unas-urnana outra..e
Na autoficção, o romancista trafica na
ção, da transposição e da reprise de aconteci e na ficção. Ferir-se em público, arriscar -a" ·Tecipro çaÍnehte'. > Essa estratégia não corre.$ '~ ·
autobiografia, dado que ninguénl cr ê m~is
mentos autobiogr áficosdo autor, elementos vida, deforrnar.ocorpo, repetir ao infinito a pende apenas a Ymf rb.t1t~qe de·de.~es.tabili­
em sua autenticidade. Na autoperfonnance, o
reconstituídos tais quais n~s ações cênicas:
ator transforma os elementos verídicos,eles mesma ação durativa, são de fato uma ação . zar prespettad91;·;'~1~:' corresponde 3,0 estado
isto não seria impossível, poréu: muito cus-
os põem em cena e põe em cena seu eu , a fim autobiográfica, para nãocd izer autobiioatirva, atual da 'teori~;, essa-teoria.evitaopor a priori
toso em termos de tempo e de paciência
de ser convincente para o público e produ- que prova um envolvimento real do perfor- e por éssêncí~ Otestemunho realverídico
para o público. Em compensação, na maior
zir ilusão. ASSÜll, o ator faz sempre autofic- mel'. A questão é saber se a pessoa se situa ea .ficção falsa e ,en gan os a; A ficç~o, con-
parte das autoperformances, um perforrner, ainda em um espaço artístico ou teatral, caso cebida ao mesrrio tempo como narração e
.ção, visto que ele não pode permanecer por
ou sej a, um ator que desempenha seu pró- ela não se junte a não importa qual ação per- 'corn o hipótese sobre o real, é uma maneira
muito tempo como performer que não repre-
prio papel, se presenta ele próprio em lugar formativa que se define pelo fazer e não pela de contestar as identidades fixas e essencia-
senta nada. Sua faculdade de se mostrar, de
imitação do fazer. listas, as posições nítidas e contraditórias.

45
Rutor
Rutorreflexividade

Nossas identidad es são, na realidade, cons-


tituídas por microrrelatos, histórias que con-
tamos a nós próprios (5torytelling, história
de vida·).
verdade que certas produções esmagam o
autor dramático sob uma superprodução
de linguagens cênicas e de efeitos especiais
que disso restou diante da onipotência dos
encenadores, simbólica e institucionalmente.
Os autores sentiram-se, a justo título, muito
I Rutorreflexividade
Fr.: auto réflexivité; Ingl.: autoreflexibility; AI.:
que ocultam a fonte literária e o sentido de maltratados e relegados a um peso inútil Autoreflexivitd t.
A autoperformance não conheceu o sucesso uma obra . As noções de obra, de peça ou pelos artistas da cena ou outros escrit~re~
da autoficção romanesca, mas ela acompanha de intenção tornaram-se todas igualmente Quando um texto, dramático ou outro
do palco. Um movimento de protesto veio a
seus desenvolvimentos, partilha as dificulda- suspeitas. qualquer, quando uma encenação ou uma
luz, na França e na Europa, desde o fim dos
des. Graças à cena e ao corpo dos performers, arte performática fazem referência a si
anos 1980. No seu Compte rendu d'Avignon',
ela coloca as mesmas questões que a ficção, Certos críticos, COIllO Michael Billington na próprios, eles são autorreflexivos (dizemos
Michel Vinaver soou o toque de reunir dos
mas resolve os problemas com uma radicalí - Inglaterra, queixam-se dos encenadores con - também autorreferenciais). Essa referência
autores ao efetuar um balanço da edição tea-
dade, uma nitidez e um humor com os quais vertidos em autores, no sentido do cinema concerne tanto à ficção da obra (fala-se
traI na França. A partir dessa intervenção
o~. autobiógrafos não podem senão sonhar. em que~ ao contrário do teatro, o autor do então de metaficção), à sua construção (e
magistral de Vinaver, o lugar e sobretudo o
filme (o realizador, o diretor) se tornou nos estatuto dos autores dram áticos começaram desconstrução·), à sua temática (alusão,
NOTRS
anos de 1950, e depois COIn a Nouvelle Vague, a mudar lentamente. Criaram-se associações teatro no teatro).
Serge Doubrovski , Le Dernier moi, em Claude
Burgelin; Isabelle Grell; Rager -Yves Rache (éds. ), a figura central do filme. O autor, segundo de autores (os Écrivains Associés du Théâ-
Au tofiction(s): Colóquio de Cerisy, Lyon: Presses Un i- essas críticas, seria o m etteur en sc êne, o dire-
ver sita ires de Lyon, 2010, p. 393. tre), festivais foram consagrados aos auto-
tor, que decide tudo sem se preocupar com res (Mülheimer Theatertage, na Alemanha, Em uma arte como o teatro, que utiliza tanto
2 Monoka Fludernik, Towa rds a "Natural" Na rrato -
London: Routledge, 1996: "A evocação qu as e a intenção do autor do texto e qu e imp õe ao Mousson dét é na França), lugares de ensaio materiais e linguagens importados de todas
exp er iên cia da 'vida real: qu e recorre a conjunto do espetáculo sua marca de fábrica. foram institucionalizados (Théâtre Ouvert, as artes e detodas 'as culturas, não é de espan-
qu adros act anciaís, está ligada estreitamente à evo -
caç ão da consciência ou de um pap el de narrador A França permaneceu longo tempo presa ao na .França, Royal Court, na Inglaterra). tar que a mise en sc éne faça alusã.o a si pró~
e ela se fun d am en ta sobre cog nitiv o d a veredicto da morte do autor de Bar- Recentemente, a teoria reexaminou o caso pria, que indique como deve fu_nclo~a.r, e ~te "
thes-em 1968, e de Eoucault, en1 1969) , oque do autor, seu estatuto no funcionamento do se preste e incite àdesconstruç ão- cr ítica. As
.sejustificava do ponto de vista de uma teoria texto e no da encenação foi reconsiderado, o vezes) a estética de um encenador escolhe
do suje;ito,a qual reequilibrava os p od eres da que só poderia ter sido feito COH1 a evolução essa reflexao cOllloesp elho, essa metatea-
estrutura e da escritu ra às custas de um autor é o caso
tanto da sociedade ""\."J:L:I:.~..': ::' ~.~ "~l~:'.:'":~..""'..~-.""'..._.." .""=""."'""",~_
na origemde tudo. Em Barthes, o autor "está A nova narratologia contribuiu igualmente de Daniel Mesguich e seus célebres espelhos
Rutor COTn sua obra na mesma relação de antec edên - para essa reabilitação do autor, ao demon~­ ou imagens em espelho de todas as espécies.
cia que um pai mantém com seu filho. Muit o ao trar que o leitor não pode ler um texto difí- A encenação dos clássicos, seu gosto pelos
Fr.: auteur; Ing l.: autho r; AI.: Au tor .
contrário, o scripteur (autor do scr~pt) modern o cil sem apelar a um mínimo de experiência anacronismos, seu piscar dolhos para a atua-
o autor dramátko-, O autor do espetáculo, na sce ao mesmo tempo que seu texto ". "Urna pessoal e sem apresentar uma hipótese sobre lidade con'stltuem ·exemplosengraçados de
a teoria dos autores: tantas expressões
vez afastado o autor, a pretensão de decifrar urna certa in tencionalidade da obra e do autorreflexividade, c~oln a condição, todavia,
um texto torna-se cOlnpletan1ente inútil. D ar autor'. O calvário institucional e teórico do de que tais contribuam p.ara
contraditórias que provam que o debate
um autor a UIn texto, é impor a ess e texto um autor está em vias de chegar ao fim. Resta esclarecer uma perspectiva sobre "a arquite-
sobre o pape! de auctor no teatro está
corte suspensivo, é provê-lo de um significado tura e a composição da obra. Un1 cenário
longe de ser encerrado. Em outras línguas uma questão que o azucrina: como ser repre-
último, é fechar a escritura" naquilo que os norte-americanos denorni-
e contextos, sua avaliação (mais que seu sentado, e por onde C0111eçãr se se faz ques-
Toda a pesquisa das ciências humanas e da tão de ser representado? nam de style "presentacional" (por oposição
sentido) irá doelogio (como é o caso na
teoria literária e teatral estruturalista de sen - a "representacional") deforma e abstrai a rea -
Inglaterra) à reprovação (corno na França). NOTRS
volveu-se com esse afastamenrn do au tor. lidade, o que faz "refletir" o espectador e a
. No país de Corneille ou de Beaumarchais, 1 'Rolan d Barthes, La Mort de l'auteur [1968), Oeuvres
Urna grave suspeita continua a p esar sobre o completes, t. 2 , Pari s: Seuil, 1994, p. 493 . obra à qual se refere a encenação. Segundo
que fizeram tanto pelo reconhecimento
au tor c01110 controlad or do textodramãncn, O subtítul o aí é: DesMille maux dont soufírc Tédition Lehmann, o teatro p ós-dram ático- é cons-
dos autores, o autor dramático é visto, thiâtrale et des dix-sept rem êdespour Zen souiager,
mas também, mais recentemente, quanto ao tantemente autorreflexivo, o que
desde a institucionalização da miseen scéne Arle s: Actes Sud , 1987.
espetáculo, sobre o encenador consid erad o fazer alusão a todas as tradições do passado,
no começo do século xx, com suspeita, pois 3 Ver, p or exem plo: Fo tis Iannidis, Author, em D avid
como o autor da mise en scéne. Herrnan: Manfred [ahn, Marie-Laure Ryan tradições das quais faz grande consunl.o .e
se considera que a encenação, o espetáculo
Essa posição teórica da morte d o autor Routl edge Encyclopedia of Narratí ve Theor~. 2. .
que ama citar. Assim, pois, a autorref1exl~l ­
e a perforn1ance tornaram o autor se London : Routled ge, 2008, p. 33. Ver tambe m aqUI
não deixou de pesar igualmente sobr e a as entradas associadas a essa noção. dade, em particular a variante da metaficçao,
não supérfluo, ao menos descartável. E é
coorte de autores dramáticos, ou daquilo nada tem de novo: no stasimon do coro, e na
lI6
lI7
Rutoteatro

parábase, não se dirigia Aristófanes direta- David Edgar, é este amiúde o caso na Ale-
mente ao público através do ator? A ressur- manha, o que tornaria então o teatro "des-
gência da metateatralidade e da metaficção concertante, obscuro, condescendente e
na estética pós-moderna e pós-dramática- arrogante". Poder-se-ia apresentar muitos
tem, entretanto, um caráter estrutural e não outros exemplos ...
anedótico ou cômico, COIno nos gregos ou Às vezes, é o próprio público que é arro-
mais tarde em Shakespeare. gante, quando pensa tudo saber ou quando
Para a fenomenologia, o "corpo vivo do é composto essencialmente de "espectadores
ator é capaz de devolver o olhar do espec- profissionais?', que julgam o trabalho enl fun-
tador': o que se interpretará como UUl caso
de autorreflexividade do olhar do especta-
dor. Apesar dos signos sólidos e objetivos
da representação e da constituição semiótica
ção das regras do metiê em estreita campa-
ração com aquilo que eles mesmos fariam,
muito melhor, pensam eles! Quanto ao "ver"
dadeiro" público, nem profissional nem com-
B
do espetáculo, o corpo remete a si mesmo, é parsa, ele se sentirá excluído da produção. Tal
um signo que devolve o olhar antes de sig- é a hipótese de Marie-Madeleine Mervant-
nificar o mundo. Isso deveria nos encorajar -Roux: "o movimento de retirada muda dos
a estarmos atentos ao fenômeno da autor- espectadores poderia ser muito bem uma rea -
artistas como Heiner Müller, Robert Wilson,
reflexividade. ção a essa imagem que os afeta, um discreto Bizarro
Peter Zadek ou Pina Bausch pertencem à esté-
distanciamento, uma medida profilática pela
tica do pós-dramático, na medida em que
qual o público exprimiria sua recusa de ser
confundido com o.'público' (André Steiger):
"Mas, ainda uma vez mais, diga-me, qual e da perturbação: a beleza das imagens deve
'a rnassa inconstante e não situada de gente
bizarria .. .': pergunta, ao entrar, Filinto ao ser, "declara Wilson, na época dos ensaios de
do teatro: praticantes, críticos, espectad.ores
Misantropo (v. 3). Trata-se de dizer que Hamletmaschine (deMüller), aquilo que deve
profissionais">.
esse efeito não era quase do gosto dos 'perturbar' suas imagens" (p. 264.). Bizarria,
Encontra-se uma variante do autoteatro
ern UIl1 teatro autorreflexivo e autista, um clássicos, tanto em seu comportamento perturbação, choque perceptivo, tais são as
etle Prince: Un Systênl ,e fati- teatro que, fazendo referência apenas a si quanto em sua estética. Pois o bizarro vai grandes figuras que descrevem rnelhor certas
gué Robert Abirached' s'e-:~~fere ao mesmo e a seus procedimentos, evita repro- contra a norma e produz um mal-estar encenações contemporâneas. Elas não neces-
autoteatro como a um teatro SelTI pretensão duzir o mundo exterior e tomar partido a inexplicáveL sitam, por isso, recorrer aos efeitos especiais
artística ou política, UIn teatro para amado- seu respeito. Nesse "teatro pelo teatro", como faz o cinema: basta-lhes exibir alguns
res, para eles próprios ou para UDl público não resta mais então, nos advertiu Philli- o bizarro nunca foi admitido como uma efeitos bizarros.
de amigos e de parentes. A consequência é ppe Ivernel, senão "Dionísio cedendo lugar noção praticável. A ele preferiu-se o excên-
uma tendência muitas vezes observada pelos a um Narciso apaixonado por seu reflexo: trico ou o grotesco e, mais tarde, o unheimlich, NOTAS
Poetik der Stõrung, Postdramatisches Theat er, Frank-
críticos, a de um público autossatisfeito, con- uma flor:' 5 de Freud: o estranho e o inquietante. E, no furt: Suhrkamp, 1999, p. 265·
.quistado desde o início, cúmplice, e que se entanto, Baudelaire notara muito bem que o 2 Charles Baudelaire, Curiosité s esthétiques, Paris:
considera quase corno proprietário desse NOTAS belo tem necessidade de Ul11 pouco do bizarro. Michel Lévy Fr éres. 1868.
Arle s: Actes Sud, 2005. Eis o que aproxima o bizarro daquilo que
gênero de espetáculo. É representar para si
Co ntem porary Theatre Review, v. 14(4), 2004, P: 46.
mesmo, é estar entre si, procurar apel1,!s a Lehmann chama de uma poética da pertur-
Jean Iourdheuil, Th éãtre/Public, n. 55, mars 1984,
sensação imediata, o prazer pessoal. P·3 8 -39· baçào'. Para o autor de Flores do Mal, "o beio
No Inundo do teatro profissional também 4 M .1\JI.lvIervant-Roux, em Thomas Hunkeler; Ariane é sempre bizarro. Não quero dizer que ele seja
acontece que o espetáculo seja feito mais para Lüthi: Corinne Fournier Kiss (éds.), Place au public:
Le s Sp ectateurs du thé ãtre contemporain, Geneve:
voluntária, friamente bizarro, pois nesse caso Body Rrt
os próprios produtores do que para os espec- M étis, 2008, p. 59. seria um monstro que saiu dos trilhos da vida.
tadores-, Segundo o autor dramático inglês 5 A ctu alit és: La Cr éation au TEP , D. 30, 1994. Digo que o belo cont ém sempre um pouco de A idade de ouro da body art (arte corporal-)
bizarria, de bizarria ingênua, não desejada, remonta aos anos 1960 e 1970. Passado o
inconsciente, e que é essa bizarria que o faz efeito de surpresa e de choque, essa arte
ser particularmente o Belo'". Para Lehmann, radical, de um gênero novo, alcançou

48
Body Art
Body Rrt

rapidamente seus limites e, por vezes, de peças transplantadas, compradas a preço A atual obsessão das ciências humanas pelas barroca. A antiga body art militante parece
enfastiou um público demasiadamente de ouro nos tráficos mafiosos, identidades e sua encarnação- (embodirnent) ter cedido lugar a momentos puramente
agudo, habituado ao aprimoramento de Se o corpo e seus órgãos têm doravante na pessoa humana reconduz a body art às físicos, quase histéricos, no decorrer de um
outros efeitos. Todavia, nesse começo um preço, se o corpo não é mais um santuá- questões da representação, ao passo que essa espetáculo: como, por exemplo, nos momen-
de milênio, o irnpacto da body art sobre rio, porém uma zona de livre troca, a própria arte procurava precisamente negar a mimese tos de ímprovísaçõcs coletivas em Alain
os outros gêneros, como o Butô, a arte arte corporal ver-se-á diminuída, para não para aceder ao corpo diretamente presente e Platel (Tous des Indiens, Wolj) ou em Ian
da performance ou a encenação pós- dizer intimidada, vencida em seu próprio ter- apresentado. Esse retorno da representação é Lauwers (La Maison des cerfs). Sem dúvida,
dramática", ainda é muito sensível. reno. "Desde o momento em que o homem tratado COIn frequência pela arte da perfor- a arte corporal é a fonte desse tipo de ence-
se separa dos mitos em nome do realismo, mance e pela fotografia . Fotógrafos-perfor- nação, mas sua lnetamorfose a afasta de suas
1. MUTAÇÕES DA ARTE, DO CORPO ele não passa de pelanca': observou Romain mers COIrIO Cindy Sherrnan, Gilbert e George origens radicais, para melhor regenerá-la.
E DA SOCIEDADE Gary etii .La Nuit sera calme (p. 176). utilizam a fotografia posada, a mudança-de A body art é bem atrasada eU1 relação ao
Essa "pelanca" não é somente a carne para aparência para desorientar o observador Acionisrno viencnse, à sua radicalidade ao
Se a body art é menos visível corno gênero e o cânone literário e cênico, ela se oferece aos quanto à sua identidade e ao seu corpo de mesmo tempo psíquica e política. A radica-
prática autônoma, é talvez por causa de UID olhares. Mas a obscenidade em cena não é referência. O corpo individual é recolocado lidade decapante de vienenses como Mühl,
efeito de hábito: o que é possível fazer com o mais o que era: certamente, as fronteiras do em um conjunto, postoern cena e não mais Brus ou Nitsch prolonga-se no cinema de
corpo, e fazê-lo suportar, que já não tenha sido rnostrável e do explícito recuaram, porém o ameaçado em sua integridade. A,s grandes Michael Haneke (Bennys Video, Caché) ou
tentado? O que há de novo que a cirurgia esté- live (ao vivo) da performance não resiste às cenas de Jeff Wall capturam o observador na literatura de Elfr íede Jelinek, No tra-
tica ou protética já não tenha experimentado? possibilidades privadas e virtuais da internet. em um dispositivo- que lhe parece próxÍ1YI0 balho desses dois artistas, o corpo não é
A arte de (mal) tratar o corpo está longe da radi- A transgressão se efetua, assim, em outros do seu cotidiano. mais entregue em UITla reprodução direta
calidade de uma ürlan (e suas operações faciais níveis além daquele de uma performance live. A body art se estetizou à medida que per- e catártica, mas por.meiode UID discurso
sucessivas, 1990-1993) ou de um Stellarc (e suas p.\. body art se privatiza nas ativid ades pes~ dia ação política (SchlingensiejJ, por
"suspensões do corpo" por diversos ganchos). soais.queengajam o próprio corpo: tatuagens, si própria. Assim. :o ButôdeSankai [ukuse exemplo). A cada vez, a representação poli-
Todas asfunçôes corporais visíveis, salvo equí- piercings, escarificação, inserção ,de objetos distanciou bastante do Ankoku Btltô , o Butô' ""-~~tica, dramatúrgica e espetacular fornece a
voco, parecem ter sido testadas no palco ... diversos e variados, rnas também práticas das trevas, sombrio e inquietante, do seu exposição direta performativa do corpo inú-
Não'é, todavia, por causa dos 'seus exces- sadornasoquistas ... fundador Hijikata, Quanto aos corpos de Ie til. O corpo é posto fora de jogo, corno o é
sos- qu~essa arte corporal conhece uma pro-o ._"Aq uilo que a body art faz incidir sobre suis sang{Eu Sou Sangue) de [an Fabre.cles pela medicina, pelainformática, pelos efei-
funda I11ytação, -mas em virtude das mudanças si mesma ou sobreo ôutro:-"ã-il~ansgressão· também se entregaram não em sua simples . tos especiais do morphing ern vídeo ou em
nas questões colocadas à sociedade e ao lugar mudou de objeto e de valor, O público aceíta" crueza e nudez, rnas no estetizante foto. Isso ainda é arte corporal? Arte-talvez,
reservado àcorporeidade-. Nossa relação COIn cada vez mais ver o -outro sofrer, mutilar- de urna representação pictural medieval ou mas corporal?
o corpo muda do mesmo modo que a rela - -se e arriscar a' própria vida. Experiências
ção do corpo com a máquina evoluiu. De in í- de torturas simuladas mostrararnqueo
cio, a arte corporal não é condenada, quando, público raramente intervém para detê-las.
nos anos 1960, ela apareceu corno uma reação Para a body art, segundo ürlan ou Stellarc, o
violenta à ,alienação elo corpo na sociedade espectador, cada vez mais isolado, exagera o
,-- industrial capitalista:' seu eüd ürecimento à dor do outro, pensa ou
i\.. questão feminista da propriedade do que «se trata de um truque': ou que é melhor
seu próprio corpo ou da exploração do corpo deixar passar, recusar toda compaixão, e dar
feminino parece menos debatida, em todo uma boa lição ao artista. Gómez- Pena e mui-
caso na Europa e no mundo ocidental. Não tos outros performers fizeram essa experiên-
porque ela foi resolvida, mas porque o debate cia com o risco de suas vidas.
se deslocou do d ornínio da diferença sexual.
para o plano ético e médico da integridade
corporal. Ela se junta, efetivamente, à discus- . 2 . NOVAS FORMAS DE BODY ART
são sobre a integridade da pessoa, a doação
de órgãos, a identidade física do ser humano Nova concepção social e libidinal do corpo,
quando seu corpo é cada vez mais composto nova arte e nova maneira de representá-la.

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Carrunhada, Marcha progressão para UJn objetivo mais ou menos
fixado são outras 'tantas cha ves para..cÇ>m.-
Fr.: marche; logl.: walkinq; AI.: Wandern. preender como nós apreendemosurna pai-
sagemou nos "desprendemosdela, . como
A r:narçha não é mais somenteurna nóspercoFremQ.s ' G:~a paisagem-na medida
atividade natural do ser humano, ela em que a percorremos. E é
se tornou uma arte, não a marcha com devemos abordar a per for ma nceconternpo-;
o passo dos militares e todas as suas rânea Cenos deixar abordarpor-elahcomo
varia ntes, porém a arte de passear qualquer coisa que, diante de nós, toma
...Iivremente na natureza enas cidades. forrna e à qual damos forma no momento
Qteatro e os performance studies· em que avançamos em seu contato. Nós nos
tenta ramdesde cedo se apropriar desse instalamosna obra e nos deixamos arrastar
retorno à marcha e teorizá-lo. A arte e, às vezes tamb ém, rios transtornar por ela.
da ca rninhada é atualmente objeto de O desej o de abandonar os teatros) suas
reflex ões, de publicações, de festivais salas obscuras e silenciosas, e a vontade de
e de co lóq u io s; E será que a caminhada reencontrar o real não são novos: desde o
antecipava a démarche teatral? início do século xx, o teatro, reatando com
suas origens ocidentais gregas, reencontra
1. o TE ATRO E1VI l\1ARCHA o mundo exterior. É tamb ém o que a site-
-specificperformance (teatro criado ern um
A cami nhada é um novo objeto de pesquisa, lugar específico·) experimenta, ao instalar
é um meio de observar corno o caminhante, o teatro em um. dado lugar. Mas a cami-
o jlâ neur, o passeador - solitário ou solidá- nhada nos leva ainda mais longe: ela nos
rio realizam a experiência sensível de seu obriga a criar, nós mesmos, UlTI ambiente,
ambiente, como eles descobrem o potencial ao acaso de nossos deslocamentos e sem
estético e político da ação de caminhar com ideia preconcebida. O espectador, corno o
o outro ou em direção ao outro. teórico, abandona todo ponto final, todo
A descrição do périplo do caminhante, a hábito de observar e questionar a partir de
observação da realidade exterior e interior, a um ponto fixo.
Caminhada. Marcha Caminhada, Marcha

Numerosas caminhadas sonoras (sonic de uma atividade performativa destinada a estar consciente de um espaço onde se ins- jlãneur um passante que gosta de vaguear
walkí são criadas a partir de uma gravação transformar tanto os caminhantes quanto as crevem os outros, é saber intuitivamente pelas galerias comerciais, as passagens,
qu e cada caminhante escuta em seu ritmo pessoas encontradas. Muitas vezes a viagem onde se situam seus parceiros, próximos e sem objetivo preciso, SelTI desejo de com-
no decorrer de seu percurso. Porém muitas é a ocasião de escrever um diário, um ensaio afastados, assim como o ator na cena tradi- pra, somente para consumir à distância.
outras fórmulas são imagináveis nessa ecolo- ou um texto de ficção, mas a "obra" está alhu - cional não perde jamais a noção de seu lugar • A teoria da deriva de Guy Debord e dos
gia da caminhada: experiência site-specific res: na forma que assumem a m obilidade e no grupo e na encenação. Cada qual sabe situacionistas é mais sistemática: percor-
em larga escala na natureza, reconstitui- o encontro, na estratégia inventada e nos então como e em que ritmo avança, cada qual re-se a cidade não só de bar em bar) mas
çõe s de rituais dançados, todas as formas resultados, nas interações entre as pes soas , é consciente da posição do outro, daquilo que principalmente derivando de um bairro
de arte relacional. En1 todas essas experiên- na relação que elas criaram para sempre. Aí o motiva, de onde o outro quer chegar. A pai- para outro, escolhendo U111 sistema de des-
cias, "andar eln conjunto foi um ritual, um reside a performance, em todos os sentidos sagem para o caminhante, assim como para locamento arbitrário, mas coerente, que
instrumento e urn reforço da sociedade civil do termo, Aí se inventa uma nova rnaneira de o espetáculo e para o espectador, está para não é aquele que a cidade parece querer
qu e pode se o por à violência, ao m ed o e à se fazer teatro passeando. .Aí há de fato p er- ser criada, por U111a espécie de prática dos impor e que, portanto, questiona a per-
repress ão" >. fonnance porque o caminhante participa, ele significantes flutuantes, uma montagem de cepção cotidiana. O teatro se apaixona por
mesmo, e faz participar um p equeno público imagens, uma percepção sincrética de signos. esse processo de deriva e se interessa cada
na marcha. Ele o "faz caminhar': mas não O pesquisador, ou o leitor, realiza a experiên- vez mais pela cidade corno "lugar encon-
A M ARC H A A SE G UIR para enganá-lo, simplesmente para desorien- cia de que a leitura não é apenas uma expe.. trado" para se explorar, corno cenário a
tá -lo um pouco, para percorrer urn pedaço ri ência letrada, mas também e antes de tudo elaborar. G-raças a essa psicogeografia"
Q ue m caminha e por quê? É um homem ou de caminho C0111 ele. uma experiência vivida. delirante da cidade, Debord espera des -
uma mulh er? Só ou acompanhado(a)? Para Como se coloca para um comum Resta saber que tipos de marcha e de pas- mascarar a Sociedade do '-'''''__ 61-·''''''"lr·' /

on de eles vão ? Segu n do Deirdre Heddon e as questões usuais: qual é seu obj eto? Con10 seios se nos oferecem. E, sobretudo, quais
Cath y Turner, a caminhada tem senlpre algo descrever a marcha, onde ela começa e onde • A desterritorializaç ão é a etapa V~~:;l..U_ l.L""'-,
relações com o outro tais maneiras de cami-
de "in dividu alista, h eroico, épico e transgres- ela acaba? O que fazer dos pa ssageiros que nos proposta por Deleuze e Guattari em Anti-
nhar permitem estabelecer. Não há grau zero
sor" >, qualquer que seja o sexo. Os homens, acompanham por U111 momento, como encon - -Édipo (1972) e em Vers une litt ératur e
da caminhada: jamais se caminha para nada,
entretanto , gostam de mostrar-se heroicos e trá-los quando eles se separaram de nó s? salvo talvez quando, bebê, se dá os primei-
rnineure (Para uma Literatura Menor,
ma ior parte das 1975). Segundo eles, o deseja corno fluxo
p-VlnPl"!Pl"1 _
Como dar conta de su as reaçõ es? Quand o ros passos... O caminhante tem sempre
cias e esc ritos sobre a caminhada foi, em estamos no fi.TI1 do caminho? da libido é territorializado pelas es trutu -
urna ideia atrás da cabeça, chega até a pla-
grande o apanágio dos homens. Ao ras da família, da escola, da religião e do
nej ar sua viagem. Assim, para tornar apenas
que poder -se-ia, ap arentemente, acrescentar Estado. Esse d esejo deve ser encoraj ad o a
alguns exemplos depois que a gente se inter-
qu e ern n ossos d ias são sobretud o as mulhe- 3. ATENÇAo À CAIVIINHA D A "correr" em todas as direções, sem limite
roga sobre a filosofia da caminhada:
res que andam e escrevem sobre a sua própria de território, a "n-:áquina desejante" não
• O passeio ao acaso dos surrealistas: cami- conhece então mais limites e libera assim
experiência, em particular no domínio dos Como vemos, a m ar ch a é mais cornp li-
t ur r trv r-rn rt-n.r o studies , onde as mulheres são
nhar pela cidade sem um objetivofaz sair, as energias criativas. A destcrritoriali za-
cada do que nos p ar ece: tanto para o cami-
con sider a-se, a démarche incon sciente ção pode ser a de urna língua falada ou
n itidamente As duas pesqui- nhante quanto para o crítico que segue nas
que determina nossas escolhas, selnpre es crita por urna minoria: assim o ale-
sad oras britânicas D eirdre Heddon e Cathy suas pegadas. O caminhante que reflete ou
com a esperança de um encontro impre- mão falado em Praga por alguns judeus
Tur ne r demonst ram, aliás, que as mulheres escreve acerca de seus passos é sem elh ante
visto, de um obj eto achado, de uma sen- como Franz Kafka é o que permite um
não hesitam mais, n os dias de hoje, em assu- ao espectador de agora. Integrado, imerso no
rnir riscos às ve zes h eroicos e, portanto, em evento, não tendo mui tas veze s de cidido para sação de maravilhoso. uso menor e único da língua e da cultura
transgredir os interditos masculinos, Seja o onde exatamente os seus passos o conduzi- ~ A flânerie: com esse termo - urna "peram- alemã. O caminhante isolado e sem desti -
que for, o importan te é constatar que cada rão' o espectador não está mais sen1pre em bulação" - Baudelaire foi o primeiro a nação final é semelhante a um artista sem
exp eriência rep ou sa sobre um projeto muito condições de tomar dis tância, corn o fazia o insistir sobre o lugar do indivíduo no e território: ele deve, ele tamb ém, restringir
sofisticado. O feito não é mais físico, porém espectador de teatro em um esp aço fron tal; fora do mundo: "Estar fora de sua casa seu domínio, inventar seu percurso) rea-
rela cional: trata -se de se isolar un1 momento nada mais está enquadrado, o sentido está e, no entanto, sentir-se em. toda parte lizar uma peregrinação a U111 não
para melhor ir, em ao encontro dos aberto, a via está livre . enl casa; ver o mundo, estar no mundo sem finalidade geográfica ou teológica.
outros, d e conectar as pessoas entre si, de E, no entanto, a arte da caminhada é uma e permanecer oculto ao mundo. " Walter O pedestre renunciou à sua auto(biogra -
seguir e leva r a bom termo um programa. propedêutica para a arte do teatro. Ela aí pre - Benjamin, em seus estudos sobre o poeta fia) demasiado mecânica, ele avança a pé,
Nesse sentido, poder-se-á legitimamente falar para tanto quanto deslancha. Andar é sempre francês, e em Das Passagenwerle, faz do em uma "pedi-biografia" muito mais terra

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Carícia Ciborgue

a terra. Ele é um caminhante infatigável, Urna carícia é um pouco o que o ator e a 2. A IRRESISTÍVEL ASCENSÃO DO a máquina, um espectador pode ainda dife-
um dançarino, um imigrante clandestino, cena dão inteiramente ao espectador: eles CIBORGUE renciá-los?
que passou as fronteiras a pé, um margi- procuram se aproximar, e até mesmo "abra- O teatro cibernético não privilegia o
nal saído de uma nação e de uma litera- çá-lo" na íntegra, mas eles não podem guiá- o ciborgue é um híbrido encarregado de humano em detrimento da máquina, ele
tura menor. "Corno se tornar o nômade e -lo, eles se contentam em tocá-lo de modo ultrapassar os dualismos herdados da filo- coloca os dois em contato, os faz interagir.
o imigrado e o cigano de sua própria lín- furtivo. O espectador sente-se, portanto, aca - sofia, notadamente cartesiana: o corpo e Segundo um dos pioneiros desse diálogo das
gua? Kafka diz: roubar a criança no berço, riciado, mas também fragilizado, aberto ao o espírito, mas também o eu e o outro, o máquinas entre si e conosco, o encenador
dançar sobre a corda bamba. " Por que não outro, entregue à sua mercê. Caso se recuse homem e a mulher, a natureza e a cultura, o (em rede?) Iean-François Peyret, o diálogo
tentar dançar voando? Isso poderia andar ao acontecimento cênico ou se retraia, mais humano e o inumano. Ele deve sua popula- vai muito além do "diálogo inter-humano':
bem e dar certo! ou menos inconscientemente, a carícia para, ridade, há meio século, à sua faculdade de ele "aumenta" o comediante: "Aumentar o
volta o mal-estar, a agressão, e ITleSn10 a tor- sintetizar noções e elementos julgados anti- comediante, equipá-lo com aparelhos é, arti-
NOTAS tura. Nesse momento, o esp ect ad or geral- téticos. O apagamento do corpo ern proveito ficializando -o, ir, no sentido de Beckett, ao
Por exemplo: Reb ecca Solnit, vVan derlust : A His tory
ofWalking, London: Verso, 2 0 0 2 ; Roberta Mock (ed.), mente se aproxima de si próprio e se presta da m áquina, de que testemunha diariamente limite da dissociação entre o corpo e a voz,
H1alking, Writ ing and Performance, Bris tol: In tellect, à carícia vinda da cena. Deixando baixar suas a medicina, sua vontade de ultrapassar a bio- ao limite desse processo de descarnação da
2009; Antoine de Baecque, La Traversée des Alpes:
defesas, seus preconceitos, ao jogar o jogo, logia através da construção humana, da pes-' palavra."
Essai d'histoire ma rchée, Paris: Ga Ilim ar d, 2014·
Cf. Rebecca Soln it, op . cito ele se expõe e aceita que alguma coisa lhe quis a de um ser metade humano, metade
Deirdre Heddson: Turner, Walking Wo man: escape, ele preserva o contato com o espetá- máquina, que possa jogar sobre os dois tabu-
Shífting th e Tales an d Scales o f Mobílity, Con - culo. Bem além da identificação psicológica, leiros, tudo isso torna o ciborgue fascinante, 3. A FASCINAÇÃO PÓS-MODERNA
tempo ral)' 1heatre Rev iew, v. 2 2, n . 2 ,20 12, p. 224··
espectador e ator praticam uma espécie de e ao mesmo tempo perturbador. POR CIBORGUES
Charles Baudelair e, La Pein tre de la vie moderne
[1863], Écrits esthétiques, Pari s: U-GE~-1 9 8 6 . coniact improvisation- permanente. Orteatro é desde sempre atraído pelas
Das Passagen-iJ\1erk, Frankfurt: Suhrkarnp, 1982 . (Trad. 'm áqu in as combinadas /aos corpos vivos As experiências r~~1111ente cibernéticas, aque-
fran ., Paris, capitule du xxêmesiécie:Le Livre desp as-
dos atores. As marionetes imitam o movi- las que fazem a máquina dialogarcornos
sages, Pa ri s: Cerf, 1989 ; trad . br as.:
1940), Belo Horizonte/SãoPa ulo : Editor a mento humano, mas o espectador pérma-" .humanos, ainda sãóráras ernáislúdicas do
Imp rensa .O ficial do Es ta do - SP, 20 06 .) nece consciente "de queelassão fabricadas e que científicas. Quáse sempre, o computa-
Will Sel f, Psychogeography, Londres: Bloomsbury, Ciborgue manipuladas pelo s er humano. Do mesmo - dor é utilizado como um simples estimulante
20 0 7.
T ítu lo de G. Debo rd . modo, os robôs permanecem sob o controle para acionar uma parte do corpo contra a
Ingi..: cYQQrg
'-'H.L'-'" .lJ '-~'- UL.,- .
Félix Gua tta ri [1975], Pour une litt éra- dos humanos, muito embora eles os amea- vontade do ator. Assim, Antúnez Roca pro-
ture m i neure, Pa ris: M inu it, 199 6, p. 34· ce111 em algum Il10111ento (R. UR., de Karel duz uma deformação nos traços de seu rosto" -
1. CI BO RGU E S AFORTUNADOS
Capek, 1923). As máscaras falantes de Denis através de impulsos enviados pelos espec-
o ciborgue (do inglês cyberne tic organism, M arleau, que sirnulam pessoas (LesAveugles, tadores e controlados por um computador,
nome criado em iç ôo) é um ser híbrido entre de 1Vlaeterlinck), não podem negar sua ori- Kris Verdonk prende seus performers a fios,
Carícia o humano e a m áquina, Esse ser misto não é gem artificial. A dança contemporânea adora para melhor manipulá-los com um computa-
uma simples extensão (U111a prótese) do corpo incorporar robôs dançantes (assim Bianca Li, dor e tomar conta dos movimentos do ator,
Fr.: cosesse; 1[191.: corei s; AI.: Liebkosung. humano, nem uma m áquina fabricada pelo ern Robot, 2013), faz dançar sete pequenos ao qual é pedido para não resistir. Stellarc
--hoil1em , mas urna int erfac e, uma interação robôs humanoides em um balé mecânico. "transplanta" uma terceira-mão ou um braço
Símbolo e manifestação do amor, a carícia permanente entre dois sistemas prestes a se Ocorre de modo diferente com as tentati- virtual, próteses eletrônicas que escapam ao
resvala no outro, sern procurar ret ê-lo, fundir em uma única e nova entidade. Mas se vas do teatro cibernético (Cyborg Theatrei, o sujeito e obedecem apenas a um progranla
prend ê-lo ou protegê-lo. Põe-a nu tanto o ao ciborgue há a pron1essa de um belo futuro, qual tenta ligar o ser humano a UDl compu- informático, o que leva o teatro-ciberneti-
acariciador quanto o acariciado. Segundo ele ainda tem muita lenha para queimar até tador, que lhe dá ordens. O "ator" não é mais cista a declarar a obsolescência do corpo
Ernmanuel Lévinas, "a carícia é um rnodo estabelecer essa nova unidade, ganhar sua que um agente descarnado, virtualizado, um humano e a anunciar sua futura substitui-
de ser do sujeito ; em que o sujeito em autonomia e dar seus voos. No-entanto, esta robô em um espaço virtual. Ao testar a rela- ção pela máquina.
contato COITI outro vai além desse contato é, segundo Donna Harraway, a situação do ser ção entre o vivo e o artificial (o que o teatro Apesar dessas experiências espantosas,
I...] A carícia não sabe o que ela procura. humano: «no fim do século xx, nossa época, faz por natureza), busca-se determinar se as dignas de um Frankenstein informatizado,
Esse "não saber': seu desordenado uma época mítica, nós SOri10S todos quimeras, máquinas pensam COIllO os humanos e se está-se ainda longe, na realidade corno no
fundamental , é-lhe o essencial" (Le Temps híbridos de máquina e organismo; em suma, os atores pensam como as máquinas. Tal é teatro, de um ciborgue localizado na inter-
et i'autre, p, 82). nós somos ciborgues'". o teste de Turing: ao interrogar o homem e face entre a máquina e um programa, longe

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Cinestesia Cinestesia

tarnbém de um teatro cibernético que seria NOTAS de primeiro plano para a compreensão e a cínestésica, física, direta, do evento. A análise
1 A Cyborg Manifesto, 1991, p. 150. Cf. D. Haraway, percepção do movimento humano. do espetáculo precisa, portanto, imperativa-
emancipado de ordens dadas ao corpo por
Des singes, des cyborgs et des femmes: La Réinven-
seus "pilotos': Se o ator é muito "aumentado", tion de la nature, Paris/ Arles: [acqueline Chambon/ Paralelamente, grandes pedagogos do mente, distinguir os dois modos de recepção:
o sujeito, o piloto, no entanto, ainda perma- Actes Sud, 2009. corpo como Alexander, Feldenkrais, Polanyi, o semiológico e o cinestésico, mas também
nece nos comandos, o que paradoxalmente 2 Patch, n. 11, março de 2011. Decroux ou Lecoq colocam o movimento e o consciente e o subliminar. Graças à per-
3 Philippe Breton, Cyborg, em Michela Marzano (éd.),
reforça a divisão entre o corpo e o espírito. op. cit., p. 274.
sua prática em ateliês no centro de suas preo- cepção subliminar (ou subcepção), reagimos
Ao menos, percebe-se de agora em diante o cupações. Para eles, trata-se muitas vezes de fisicamente aos estímulos.
descentramento- do sujeito, do ser humano reconstruir um corpo que se tornou enfermo O mapa e a cartografia (mapping) ajudam
e da obra: o ator não tem mais que cons- pela civilização e pelo trabalho alienante. -o dançarino (ou o ator) a assimilar-sua parti-
truir um duplo psicológico de si próprio. Mathias Alexander (1869-1955) propõe, ele tura ao trabalhar suas sensações cinestésicas
Ele é encorajado a se construir a partir do Cinestesia também, uma reeducação do corpo, testando como um n1apa a partir do qual ele poderá,
exterior como o encenador de si mesmo, a e corrigindo as atitudes posturais e muscula- a seguir, desenvolver a partitura completa de
Fr.: kinesthésie; Ingl.: kinesthesia; AI.: Kinesthetik.
aceitar um "des-controle" de sua subjetivi- res dos sujeitos, ensinando-lhes a se adaptar seu papel e a imagem de seu corpo vista do
dade e de sua corporalidade. O ciborgue per- A cinestesia- é a percepção e a sensação
de maneira cinestésica a seu ambiente. exterior. Há, pois, "formação na consciên-
manece um gadget que reata com o mito do interna do rnovimento e das partes do Mosche Feldenkrais (1904-1984) reeduca, cia de uma espécie de mapa de circuitos de
Golern, do autômato, do aprendiz de feiti- corpo, independentemente do discurso.
ele também, o sentido cinestésico por um energia que faz corresponder a imagem do
ceiro' tanto quanto com criaturas que amea- Ela diz respeito à sensação do movimento, treinamento que visa restaurar os esquemas "corp o visto do exterior com as sensações
çaln a espéc ie humana, Por isso, o ciborgue é motores do indivíduo a partir de rnovimen- cinestésicas"',
do espaço, da tensão do corpo do outro;
geralmente tratado pela derris ão (G. Góme- da enerqia doatore do espetáculo. tos simples e visualizados. Compreende-se, assim, como a cines -
z-Pefia, IvI. Antúnez Roca): ele se revela, por- Michael Polanyi, no seu livro The Tacit tesia é o modelo reduzido do movimento
tanto, o duplo dosuj eito , a imagem inversa Corno Shepherd e Wallis mostram tão bem Dimension Licôv), transpõe uma -et ap a completo e desdobrado no espaço-tempo:
do outro, a zona limiar e nebulosa entre o (Drama/Theotre/Perjormance. 2004), a noção- ' ~ ilnp ó~'t'~~te : "ao elucidar a maneira pela ((A construção do mapa do corpo movimento
eu e o out ro, a figura paródica de nós me s- decinestesia já é conhecida no fim do século qual nossos processos corporaisparticipam. é acompanhada de uma-abstração -e redu-
mosvdiss o que nos coloca "face a um par- ' XIX , mas sobretudo a propósito do debate de nossas percepções, iremos aclarar as raí- ~ã o dosmovimentos efetivos e de sensações
ceiro queé.ao mesmo tempo (nós mesmos filosófico sobre a relação do corpo e do espí- ·ies'~cOrporais-aetodos os pensamentos". Essa motoras"
e um outrõ '" ; Com o desenvolvimento d e rito, ou melhor, do treinamento e da educa- ideia se tornará uma das.principais teses do Para a dança e para os espetáculos con-
programas.deinformática, os espectadores 'çãocorporal do dançarino-e do ator (Jaques cognitivismo. ternporâneos não verbais, a análise cines-
controlam o conteúdo do espetáculo ou da Dalcroze, 19-19). Só mais recentemente, com tésica torna-se gradativamente uma parte
instalaç ão em tempo real: corno a sistema- as reflexões de Polanyi (1967) e de Becker- central da análise do espetáculo. Se, como
turgia de Antúnez Roca, que termina sem- man (1970), e posteriormente de Susan Fos- 2. APLICAÇÃO AO TEATRO afirmam Shepherd 'e Wallis, "a resposta
pre criando um universo ao mesmo tempo ter (2011) e Matthew Reason (2ü12) que a cinestésica ocorre antes da resposta sernió-
iconoclasta e terno. cinestesia é encarada como resposta ao movi- Beckerman é, um dos primeiros a estabe- tica" (p. 210), convém privilegiar a análise
mento e corno empatia- cinestésica. lecer a ligação dessas 'teor tascin csr ésicas dos movimentos e das sensações que eles .-
Donna Haraw ay. Oes sinqes. des
com o teatro e com a análise da representa- produzem. Quer dizer, a importância da
cybotqs et des femmes: La Rétnvention
ção. Retornando os trabalhos de Polanyi, o abordagem. da fenomenologia, que possui,
.delo na ture. Paris/Arles: J.gcq ue line
1. RETORNO Às ORIGENS ' teórico norte-americano indica que a"per~ entre -outras, "por objeto oapareeimento
Cham b o n/ Act es Sud, 2009.
cepção cinestésica do espetáculo funciona para si do sujeito">, Uma primeira'evocação
Cath erine Hayles. tv/yMother Wosa A esse fenômeno de cinestesia; um crítico de " sempre, mesmo quando não se pode seguir de um espetáculo se empenhará em avaliar
Cornputer: Dígita /Subjects andUterary dança dos anos 1930como.Iohn Martin (1933, · ---·-um a história ou quando não se vê para onde e reconstituir a qualidade dos gestos e do
Texts.·Chícago: University of Ch icag o 1936}já faz-referência: ele fala de inner mimi- ' a ação nos conduz. A percepção -de corpos movimento-: as categorias de Laban reve -"
Press, 2005 . cry (imitação interior). Antes dele, um teó- no espaço, a impressão de duração e de Iam -se muito úteis. Movimentos contínuos
Thierry Hoquet. Cyborg phi/osophie: rico do movimento como Iacques Dalcroze ritmo contribuem para a resposta cinesté - ou sincopados? "Naturais" ou artificiais?
Penser contre lesduo/ismes. Paris: Seui l, (1919) observa corno "os ritmistas entram sica, para a participação emocional e para o Efeitos de nudez desta ou daquela parte do
2011. em comunhão íntima com o espetáculo ao evento cênico. Deve-se, pois, distinguir uma corpo; ocultar ou pôr em evidência a sexuali-
qual assistem" (p. 141). Mais de um século leitura semiológica e intelectual da fábula, dade etc. Distinguem-se todas as espécies de
depois, a cinestesia já desempenha um papel da lógica narrativa e de uma participação ' movimentos: do corpo visível, mas também

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Comunidade
Coletivo Artístico

da voz. Salmodia, retórica da frase, de seu


ritmo, acentos e melodia da frase são outros
de confrontações tecida por um certo
número de artesãos tendo em vista
I Comunidade receptores de acontecimentos cerncos.
A comunidade de criadores não tem nada
inventar cada vez um artista coletivo Fr.: communauté; Ingl.: community; AI.: de homogênea, ela é até mesmo totalmente
tantos micromovimentos que constroem o
Gemeinschaft. pulverizada) releva estatutos muito diversos,
sentido e produzem uma sensação imediata slnqular'". Estes artistas e aqueles artesãos
(pouco importa sua designação), aos quais não afirma nenhuma solidariedade entre
no espectador.
seria preciso acrescentar os técnicos, os 1. A COMUNIDADE EM SOCIOLOGIA categorias profissionais, indo de proletários
Todas essas pesquisas sobre a cineste-
empregados, o pessoal administrativo «intermitentes" às vedetes do espetáculo.
sia esboçam) atualmente, a questão de sua
etc, contribuem todos para a produção Uma comunidade se define pelo que seus Os públicos são igualmente diversificados e
comunicação COIU o outro, através de uma
do espetáculo, sem que se possa de modo membros têm em comum, pela identidade heterogêneos: não há um grupo "generalista' ,
empatia- gestual do observador com o obser-
algum mensurar exatamente o impacto e valores que eles partilham. R. Williarns e que se interessaria pelo conjunto de produ-
vado: a empatia- cinestésica. Muitos traba-
de cada um nem fazer a distinção entre as George Yúdice adescrevem como "um con- ções bastante variadas, mas, melhor ainda,
lhos recentes são consagrados à empatia-
diferentes funções. junto existente de relações, implicando uma grupos de espectadores- especializados que
cinestésica: desde que Iohn Martin cha-
conexão - como o parentesco, a herança cul- se apaixonam por um gênero e acompa-
mou de inner mimicry (imitação interior)
Distinção ainda mais delicada na medida em tural, os valores e seus objetivos partilha- nham sua evolução. É apenas em socieda-
o tacit knowledge (conhecimento implícito)
que não se trata mais do coletivo brechtiano, dos - sentida como mais <orgânica' e <natural: des tradicionais, principalmente na Ásia ou
de Polanyí, o movement contagion (contá-
socialista, ideológico, no qual cada um con- e, portanto, mais fortes e mais profundos do na .América latina, que sobrevivem comuni-
gio do movimento) de Susan Foster e o rejeu
tribuiria para o bem comum e para a cons- que uma associação de indivíduos, como o dades étnicas com fortes tradições musicais,
(rejogo) de Iacques Lecoq. A noção de en1pa-
trução de um conjunto coerente, 111as sim mercado ou o Estado?'. Quer seja real ou folclóricas ou espetaculares. A tendência na
tia- cinestésica concerne não apenas à nossa
de um coletivo estilhaçado, descompassado, «imaginada" (Benedict Anderson'), a comu- Europa ou nos Estados Unidos é muito mais
percepção do movimento do ator ou do dan -
intervindo em momentos e segundo estatutos nidade só existe graças à vontade e à imagi- de um nivelamento pós-moderno que não
çarino' mas à nossa compreensão do papel
diferentes: a montagem musical, a cenografia, nação de um grupo humano, ela sempre tem exige mais uma comunidade homogênea,
do espaço cênico no pôr em cena (míse en
a improvisação parcial do ator e a escritura alguma coisa de uma ficção, possui a fragili- mas procede com ações pontuais.
scéne) e no pôr no lugar tmis e en place, bloc-
do autor intervêrn em fases bem divergen- dade) mas também a força de atração. Ela se Para reagir a essa uniformização) espe.:.
king) de corpos no palco em cen a.
tes. No entanto) a única coisa importante é estabelece nos quadros mais variados: fami - cialização e comercialização do teatro, o
NOTRS o coletivo da enunciação cênica tal como se li ar, religioso, econômico, urbano ou cam- community theatre (teatro comunidade) se
George Lakoff; Mark [ohnson , Philosophy in the Flesh:
TheEmbõdied Mind and Its Cha llenge ta W este rn manifesta na representação concreta) a per- ponês etc. Se a noção de comunidade está esforça em reunir um grupo não profissio-
Thought , t:Jew Yo rk: Basic Books, 1999, p. 15· formance desde o momento em que tudo é hoje em dia em crise, é porque descamba nal (nos Estados Unidos) ou pertencente a
2 José Gil, La Dans e, naissance d'u n mouvem ent de pen- dirigido a um outro) nomeado espectador. rapidamente em direção ao comunitarismo, uma comunidade local (na Grã-Bretanha)
sée ou lecomplexe de Cun ningham , Paris: Armand
.A arte da encenação é precisamente saber quando comunidades culturais, ou religio- para tratar de um assunto relacionado con1
Colin, 1989, p. 77.
Phil ippe Corrnier, Ch air, en11YJ. Marzano ( éd.), op. distinguir e combinar as vozes desse "artista sas) ou étnicas se fecham sobre si próprias, o grupo) ao fazer apelo ao conjunto da comu-
cit., p. 179. coletivo singular". Para compreender esse em uma espécie de neotribalismo, impondo nidade de uma vila, de uma cidade ou de
coletivo artístico, conv ém, portanto) exarni- a seus mernbros ou, por proselitismo) aos um bairro) o trabalho preparatório podendo
nar as novas condições e métodos de traba- outros, leis contrárias aos princípios éticos ou durar dois anos. Ao ampliar a equipe derea-
lho: as repetições, a assemblagem- e a gestão sociais da comunidade democrática e liberal lização tanto quanto o público, o community
theatre visa sensibilizar as pessoas comuns

,I.:.
global de componentes do espetáculo. Daí a da sociedade dominante.
I Coletivo Artístico extrema dificuldade do estudo genético- da para questões da sociedade e para o lugar
produção de um espetáculo, mesmo quando da arte navida cotidiana. Às vezes, como no
Fr.: coIlectif artistiou e; Ing 1.: anisttc colleetive; AI.:
o observador tenha participado de todas as 2. A CONIUNIDADE TEATRAL caso da community play (peça comunidade)
künstlerischesKollektiv.
etapas da criação. Para reduzir a massa do do grupo Colwa y Theatre Trust, de Ann [eli-
Na criação teatral conternporânea, há coletivo, muitos jovens criadores se voltam Não saberíamos aplicar mecanicamente a coe, solicita-se a um autor conhecido e a um
a tendência a ver somente o ator, isso para a performance e inventam formas mais noção de comunidade ao teatro, mas essa encenador pr ofissional para criar um espe -
quando não vemos só o encenador sem leves, mais originais, mais manus eáveis. noção se encontra a justo título no centro táculo com numerosos amadores recruta-
o ator. No entanto, em toda produção da discussão teórica. Ela nos ajuda a pensar dos na comunidade local. O benefício não
ou performance artística, não é preciso NOTA o estado e o porvir do teatro. é apenas artístico, mas social e psicológico:
1 En zo Connann em Luc Boltanski et al., LAssem blée
levar em conta um "coletivo artístico': Não há comunidade teatral no sentido "As peças de comunidade geram sempre
théâtrale (Travaux de Iassociation Sans cible 1), Paris:
"esta trama de interdependências e LAmandier, 2002, p. 118. de um grupo definido de produtores e de uma nova energia e contribuem com sangue

61
60
Comunidade Comunidade

novo. Numerosos participantes fazem men- comunidade. O termo assembleia se aplica que não o choca. Ele perceberá a divisão do constituir uma assembleia que não seja nem
ção a uma tomada de consciência social e a mais a uma cerimônia, um ritual, do que a público, o propósito da encenação de divi- uma grande missa consensual, nem urna jus-
uma gentileza claramente aumentada." Um uma obra estética. A inclusão do teatro oci- dir ou de unir, ele será, portanto, sensível ao taposição de disparidades (uma multidão ato-
importante trabalho de sensibilização e de dental na nebulosa das culturalperformances debate implícito. Então, a assembleia política rnizada) [... ]?" (p. 118)
conscientização política é efetuado no seio (performances culturais) explica a serventia se transformará em comunidade humana, Pode-se ter essa crença na comunidade
de comunidades indígenas; assim é na Amé- da noção de assembl éia, a qual se distingue tão contrastante e contraditória seja ela. teatral? Tal seria - costumam dizer-nos bas-
rica Latina (México, Peru, por exemplo). daquelas de público ou de sociedade, noções Apesar de tudo, o público tem cada vez tante hoje em dia e de modo razoávelem todos
Na França, fala-se bastante de teatro de muito vagas, e daquela de "comunidade", que mais tendência a funcionar emrede. A rede, os lugares - a sorte da cornunidade teatral:
proximidade-, o que não é a mesma coisa afirma desde o início uma totalidade subs- antigamente a rede da aldeia, do clã ou da ela imaginaria o desfile para a destruição'da
que um teatro de comunidade. Proximida- tancial e una. fam ília.atualmente a rede das relações públi- comunidade sociaL Ao fim programado do
de· quer dizer, portanto, Ulll teatro acessí- No fundo, tudo depende da função que cas dos teatros ou as redes sociais. eletrôni- Estado-nação, ela oporiaa força de grupos
vel, aberto a todos os públicos, UIll ateliê ou os artistas e os políticos atribuem à cornu- cas corno Facebook, Twitter, Xing ou Viadeo, supranacionais fundados em grupamentos
uma escola de jogo de atuação mais que um nidade. Ranciere se mostra cético perante a reúne virtualmente conjuntos de espectado- inéditos de artes e de públicos. À fragmenta -
teatro «no duro': Trata-se de ir ao encontro assim chamada comunidade teatral: «o tea- res antes de dispersá-los, para em seguida ção da vida social e dos saberes, ela respon-
do público, de lhe fazer vir para mais do que . tro é uma assembléia, onde a gente do povo reagrupá -los na realidade concreta das salas. deria com urna comunidade de espírito, uma
uma visita rápida ou uma aventura de uma toma consciência de sua situação e.discute concentração do público voltada para sohr-
tarde. seus interesses, diz Brecht depois de Pisca- ções globais. À especialização, à guetização
Assim, o teatro e a produção comum de toro Ele é, afirma Artaud, o ritual de purifi-. 4. RENOVAÇÃO DA REFLEXÃO SOBRE A de públicos, ao autoteatro-, ela oporia uma
espetáculos ancorados na comunidade .de cação onde uma coletividade é colocada em COMUNIDADE comunidade provisória, mas unideaberta
forma alguma significam, muito ao contrá- posse de suas energias próprias?". Torna-se . em.direç ão a todas as artes, a uma perspec-
rio, uma deriva em direção do comunitarismo, cada vez mais difícil definir o que as pes- De modo paradoxal -énomomento em que tiva humanista é à pesquisá de novas pistas.
perigo real de sociedades laicas e democráticas, soas em assembleia têm em comum, Essa a comunidade .estáemcrise.em que não é Contra a tendência comunitarista de socie-
como o sublinha Amselle: (A. fragmentaç ão -de disseminação de perspectivas .corresponde · ~-se não. qm tecido esfarrapado, transmitido e dades ocidentais esmigalhadas, demagógi-
grupos sociais sob a forma de comunidades éa a uma disseminação de ternas abordados e .' ao mesmo tempo destruído pelas redes de casrpolítica, mas superficialmente corretas,
manifestação mais visível senão do enfraque- de maneiras de tratardeles. todos os tipos, que a reflexão filosófica pende elas proporiam ' uma-encenação crítica, irô-
cimento.do Estado, ao menos da transforma- No entanto, a assembl éia, desdequeesteja para a assem bleia e a comunidade teatral: nica, satírica que solda o público contra "o
ção de Úbl .Estado-nação..d otado de classes reunida pelas preocupações estéticas, éticas «Hoje, o teatro é o lugar onde se continua a infame" (Voltaire) e a estupidez. Mas é tão
sociais em'um Estado comunitário?"O teatro, ou políticas comuns, tende a fazer um corpo, colocara questão: como produzir comuni- simples assim?
esse lugar nostálgico do vínculo social, tem a formar uma massa sólida, constata Régy: dade, esta comunidade que é sempre uma . H ávcorn toda evidência, uma crise da
talvez conservado a virtude de não se deixar "Em uma sala, cada um é condicionado pelo ficção?"8 A gente do teatro, especialistas em noção de comunidade: «de início, os luga-
facilmente arregimentar pelas exigências reli- conjunto dos outros. " Outro milagre: a repre·- ficção, quer sejam autor, ator ou encenador res de comunidade estão em crise ea noção
giosas ou culturais de comunidades isoladas sentação pública leva cada um a se interro- -têm precisamente a missão, ou, em todo caso, de comunidade está, neste momento, com-
e extremistas. gar sobre si próprio e sobre os outros. Dizia a faculdade de reconstituir o tecido comum. pletamentedilacerada, desde o macrossis..
Sartre: «Um público é desde o início uma Estão conscientes de trabalhar para estabele- tema de nacionalidades, do internacional,
reunião. Isto é, cada espectador se pergunta cer esse laço teatral, para não produzir sim- da mundialização, todas as palavras estão aí
3. COMUNIDADE, ASSEMBLEIA, REDE ao mesmo tempo o que ele pensa da peça.e o plesmente um belo objeto estranho, mas para dizer que, no fundo, nós não sabemos
que o vizinho pensa sobre ela:'7Nesse espaço para antecipar o efeito que ele produzirána em que a humanidade, por exemplo, é uma
A questão é saber se o teatro no Ocidente público, cada espectador sente, portanto, a comunidade de espectadores. O autor dra- comunidade" (p. 128).
ainda é capaz de reunir uma comunidade, opinião da sala, avalia-lhe as reações, con- mático Enzo Cormann se coloca antes de Para voltar ao teatro da comunidade, obser-
ou ainda se ele não é mais que unia assem- tribui assim para um reagrupamento.iaté tudo a questão de-escrever, .não para pro- ve-se que ele conhece as mesmasdúvidas..a .=-
bleia sem identidade forte, uma assembleia mesmo a uma assembleia e depois, a uma duzir Ulll consenso estéril, nem para deso- comunidade é "desocupada">,inoperante: tudo,
no sentido grego e político: uma massa de comunidade de ernoções e de pensamentos. rientar seus futuros espectadores com pistas para o filósofo como para o artista de teatro,
indivíduos reunidos em um mesmo lugar Assim, o espectador toma consciência das falsas: (Talvez a questão seja desde o início está a reconstruir, estaria apenas para partilhar
por um motivo comum. O público é sem- diferenças de apreciação ou de opinião polí- a de constituir a assembleia (em torno de o que eles veem no mundo ou no teatro, a par-
pre uma assembleia de pessoas reunidas tica, ele se sentirá, portanto, pouco à vontade um objeto), do que a de produzir um objeto tilha do sensível de que fala Ranciere, Não se
por x razões, mas não necessariamente uma se seus vizinhos ficarem escandalizados pelo (suscetível de provocar a assembleia). Como trata mais de possuir as coisas juntas, mas ao

62 63
Conferência-Espetáculo
Conferência-Espetáculo

menos de reuni-las, de construir os laços, de participa da pedagogia tanto quanto Urna corrente importante dos estudos tea- transforma em um verdadeiro espetáculo,
partilhar uma coisa em um momento, Mas se da arte. A pedagogia contemporânea, trais, a practice as research: (a prática como as explicações são substituídas pordemons-
esse público é ele próprio .redistribuído, espa- voluntariamente experimental, esforça-se pesquisa), repousa sobre princípios e méto- trações de jogo. O prazer do jogo substitui
lhadoentre a sala e as mídias audiovisuais, a para tornar atraente uma exposição dos similares: criação prática e reflexão teó - a sisudez do estudo. Por sua vez, os artis-
comunidade não é mais aquela, tradicional, da histórica ou teórica demasiado árida, rica estão ligadas>tanto na fase de preparação tas (os verdadeiros) estão amparados por
assembleia teatral". Um movimento de refle- dando-lhe exemplos concretos que o de uma performance como na transmissão, à essa nova forma e atuam o papel de urn
xão, notadamente no Reino Unido, permite conferencista ilustra e, por que não, banca> dos resultados obtidos> de um ponto conferencista que passa suave e irresisti -
esperar urna renovação do teatro de comuni- dramatiza. O teatro é cada vez mais de vista empírico e teórico. O espetáculo rea- velmente aos efeitos cômicos, e terminam.
dade, o que significa também uma renovação frequentemente solicitado a se explicar lizado>assim comoa defesa de tese, mistura criando uma peça. Charles Massera (We Are
de experiências teatrais. sobre suas intenções, a dar o modo alegremente prática e pesquisa. Eles expõem la France; Bienvenue dans Tespece numamev.
de usar de sua recepção, em suma, a os resultados parodiando-os, esforçando-se Ios Houben (L'Art du rire) jÉric Didry e
NOTRS
fornecer um serviço pós-venda a clientes ao me smo tempo em tranquilizar a banca Nicolas Bouchaud (La Loi du marcheuri
George Yúdice , Cornrnunity, em Tony Bennett et al.
(eds.), New Keywords: A Revi sed Vocabulary ofCul- cada vez mais exigentes. sobre a cientificidade do projeto, se possí- começam por uma conferência bastante
ture.and Society, Malden: Blackwell, 2005, p. 5 I. vel, fazendo-a rir. séria. De um ponto de vista dramatúrgico
Bcnedict Anderson, Imagined Communities: Reflec - A conferência-espetáculo tornou-se um e estético, a conferência-performance revela
tions on The Origin and Spread of Nationalism, Lon-
don: Verso, 1933. gênero reconhecido, particularmente popu- uma grande sofisticação teórica e uma vir -
A. [ellicoe, The Community Play, em Colin Cham- lar, que reúne sufrágios de praticantes corno 2. A ARTE C O M O CONFERÊNCIA tuosidade artística. Por certo, ela retoma
bers (ed.), The Continuum Companion to Twentieth de teóricos, de espectadores como de artistas. a oposição clássica entre mostrar e
Century Theatre, l.on d on : Continuum, 2002, p. 17l.
A tentação é grande entre os artistas de imitar e narrar, dram ático Mas as
[ean-Loup Ams elle , Vers un multiculturalisme [ran -
çais: LEmpire de la coutume, Paris: Flammarion, transformar em espetáculo o que foi anun - idas e vindas entre os dois princípios são
1996, p.1 7 2 . 1. A PEDAGOGIA DA ARTE ciado como conferência. Pode tratar-se de constantes e ambíguas: elas estão no cen -
Iacque s Ranci ére, Le Spectateur émancipé, Paris: La
um -ator, mimo ou -cantor .qu ejl~lstre seus . tIo desse trabalho, do mesmo modo que se
Fabrique, 2008 , p. 12.
Claude Régy.em Luc Boltanski et al., I:Assemblée Desde sempre, o ensino toma cuidados para propósitos com exemplos concretos. É, tornou . central a confrontação entre .teoria
thé ãtrale, p. no . . transmitir de maneira agradável, eficaz e. aliás ) o princípio da master class, que dá . .e.p rá tica, O conferencista é um perforrner
Jean -Paul Sartre, LAuteur, l'oeuvre et le public 11959 ], estética. A conferência é.considerada urna carta branca a um artista para explicar. j . virtuoso, encarregado de semear o .tumulto:
Un Th~:â tre de situations, Paris: Gallimard, 1973, p. 94 ·
performance em todos os sentidos do termo: demonstrar sua arte, fazendo .trabalhar estu - tarefa tão pedagógica quanto artística.
Mari êi JoséMondzain etn Lue Boltanski et al., I.:As-
semblée.théâtrale , p. 129. uma dificuldade em passar ideias comple- dantes e novatoaAconferência-espetáculo ~. , NàQ . s e . c.o nfun dirá a conferência-·espe -
Jc.<l.ll - .l..A~"'. J.'1':Ul ... ·y, LaCommunauté désoeuvré e, Paris: xas, uma ação que age sobre o ouvinte soli- transmite alguns princípios de arte teatral táculo da leitura perforrnada com o autor-
Bourgois, citando-lhe a atenção, um ato dramático (as atrizes de Eugenio Barba em seusolo), -p oet a lendo publicamente seus próprios
10 É isso que destaca Chris Balme em "Distributed Aes -
thetics": "Em um mundo onde a esten ca esta cusnersa inventado pelo sujeito. O ensino e, particu- d o mimo (Iacques Lecoq em Tout bouge; textos. Os pioneiros da arte da performance
ou di stribuída, é difícil ter êxito em localizar o Iarrnente, a conferência pública, efetua uma Yves Marc en1 Faut-il croire les mimes sur nos anos 1960 misturavam certos discursos e
tro,": em [erzy Limon; Agnieszka Zukowska (eds.),
pesquisa artística. Ele se serve d.e meios da par61e?).lVlais recentemente, os professores, arte, explicação e demonstração, m as a ideia-
Theatrical Blends: Ar! in the Theatre, Theatre in the
Arts, Gdansk: Slowo/Obraz Tery to ria/ Th eat r u m ret órica para tocar o ouvinte, persuadi-lo e cujo ofício é de falar e de .con du zir discur- · -' .de confrontar conferência e teatro é muito
G edanense Foundation, 2010, p. 146 : até mesmo guiá-lo em direção a uma ação sos públicos, pouco a pouco criaram um mais recente. Ela vem também dos artis -
determinada. As hipóteses ou os resultados novo gênero, dividido entre pedagogia e tas plásticos pesquisadores e dos coreógra-
da pesquisa se beneficiam.« para maior cla- -. artereles propõem animar seus discursos fos (Iéróme Bel). Percebe-se aí sempre uma
reza e para serem melhor retidos ao serem através d e meios audiovisuais (projeções, crítica da instituição artística e escolar, uma
I Conferência-Espetáculo dramatizados, encarnados por persona-
gens, .colocados em di álogos.quase socráti-
Powerpoint presentaiion, acesso à internet vontade de pão ser somente um artista, 111as
apartirde.seucomputador). Os mais auda- um ativista, um militante político, um espec-

I Fr.: conférence-spectacle; Ing l.: tectute-pettonnonce;


Ai.: vortraq oisPertormance.

A ideia é fazer de uma conferência


cos. Diz-se, em nova pedagogia, que só se
ensina bem o que ainda não se sabe muito
bem, que o melhor mestre é o mestre igno-
rante (Iacques Ranciere). O conferencista que
ciososeos nostálgicos da arte teatralizam tador engajado.
sua performance verbal e transformam seu
discurso em ações cômicas. A conferência-
-esp etáculo anuncia e introduz os ritos da
5ybylle Peters. Oer vortraq 015
Performance. 2 01 1.
um espetáculo e de um espetáculo sabe jogar com a incerteza ou com a surpresa apresentação verbal, para rapidamente des-
uma conferência. Essa recente criação está seguro de tornar seu tema apaixonante viar-se em direção a uma história inventada,
híbrida de conferência-espetáculo e seu auditório cativo. a ações inesperadas. A falsa conferência se

64 65
Consciência Contemporâneo

à Arte Como Veículo) em T. Richards, Trabalhar Com Contemporâneo


Consciência Grotowski Sobre as Ações Físicas) São Paulo: Perspec-
algumas características frequentes (fragmen-
tiva) 2014 ) p. 141.) tação' citação, collage, documento, participa-
Fr.: conscience; Ingl.: conscience;AI.:Bewusstsein. 2 George Lakoff; Mark Johnson, Philosophy in the Fr.: conternporain; Ingl.: contemporary; AI.: ção), mas isso seria desde já tomar partido
Flesh:The Embodied Mind and Its Challenge to iAfes- Zeitgenossisch. sobre a única contemporaneidade experi-
A consciência, a intuição, é, no sentido de tern Thought, New York: Basic Books, 1999) p. i i .
mental, deixando de lado a massa de pro-
awareness (ficar ciente), o fato de estar 3 Ber na rd Beck erman (1970), Dynamics of Drama:
A palavra "contemporâneo': associada a duções geralmente pouco inovadoras. Valeria
Theorv and Method of An alysis, New York: Dram a
intimamente consciente de alguma coisa, Book; Specialists, 1979) p. 150. teatro, escritura ou encenação, é quase mais, portanto, se apoiar em uma concepção
por exemplo, no sentido de consciência sempre empregada em um sentido temporal, não normativa ou elitista, da obra
cinestésica (kinesthesic awareness), de ter banal: é aquilo que se faz atualmente .contem p or ân ea.
a clara consciência de seu corpo (explicit ou há bem pouco tempo, e mesmo, Toda a dificuldade é de adotar com rela-
body awareness). Como o faz Grotowski, mais simplesmente, o que é inovador ou ção ao teatro uma atitude verdadeiramente
. distingue-se a awarenessda con sciência Contato Improvisação experimental '. Definição bastante vaga, há contemporânea, no sentido moderno, seja
psicológica: "Awareness no sentido da de se convir. E na época da globalização·, para os textos que encenamos oulemos, seja
consciência que não está ligada à linguagem Ing l.: contact improvisation. todas as sociedades, todos os grupos não .para os espetáculos qu e criamos ou analisa-
(à máquina para pensar), e sim à Presen ça". seriam conternporâneos?
Inventado no início dos anos 1970 pelo
mos. O contemporâneo é se111pre o que se
Segundo Lakoff e Johnson, «aconsci ência ( COrI- dançarino e coreógrafo Steve Paxton, recusa do passado, o que se quer, portanto,
Quando se fala de arte ou de teatro contem-
sciousness) vai muito além da simpl es consciên- o Contato Imprqvisação dá a dois ultrapassar, o que se deixa de lado para pas-
porâneo, é geralIn ent e para di zer qu e se trata
cia (aw.areness) de alguma coisa) para al ém da dançarinos improvisadores a instrução de sar a outra coisa, ainda desconhecida. É tam-
de seus últimos desdobramentos e é também
simples experiência de qualidades (os senti- manter, custe o que custar, um ponto de bém a capacidade de renovar o presente) de
para opô-lo à arte "moderna', a qual se refere
dos qualitativos, por exernplo, da dor ou da contato entre duas partes de seus corpos retornar à noção de modernidade, porque,
às vanguardas do iníc io do século xx. É tam-
cor), para além da cons ciência qu e vocês est ão aomesmotempo que se improvisa. Em segundo a definição de Meschonnic reto-
bém um meio de o deb ate de períodos
conscientes de alguma coisa, e para al ém das _urna espécie del/diálogo ponderado em mada por Claude R égy, "a modernidade é a
e escolas corno a op osição entre m oderno e
diferentes tornadas de experiência imediata for- que, pela essência própria do tocar [.. .], obra que está incessantemente presente para
p ós-moderno ou en t-r e teatro dramático e
necidas pe los diferentes centros do cérebro" . urna interação sobrevém, que conduz presentes novos";
pós-dramático".
Para o.ator, a consciência de estar em con - duas pessoas a improvisar juntas como O teatro é a própria cen a do contemporâ-
O contempor âne o est á co lo cad o entre
tato co mss eu corpo, ou de estar consci en te em uma conversaç ão?'. neo' visto que "o presente não é outro senão a
passado e futuro: pode-se vê -lo C01110 o que
do espaço e dos outros no espaço, são form as parte de não vivido em todo o vivido">Sobre
acaba de o e, portanto,
de consciência corporal pessoal e interp es- Esse princípio inspirou numerosos core ógra- a cena, aquilo que desempenhamos, aquilo
constitui um p res en te espin hoso. Pode-se
soaI. Segundo o budismo, a noção de Naishi n fos, mas também performers, que partem do que percebemos, é ao mesmo tempo aquilo
também imagin á-lo corn o o que não vai
envia a um estado de consciência desenvol - contato, físico ou simbólico, entre os intér- que procuramos mostrar ou descobrir, e
tardar a ser u lt rapassado, SelTI que se saiba
vido e integrado, o que Zeami nomeia com o pretes, para organizar sua narrativa segundo aquilo que nos escapa, aquilo que não che -
quando n em p or qu ê. .A m aior parte do
envolvim ento incondicional, concentraçã o situ açõe s geradas por encontros sociais ou garemos a experienciar.
tempo, o teatro contempo râneo se re fere a
do espírito, resolução do ator. pess oais inesp erados. Em P.A.D., performance
uma forma, U111a estéti ca, urna prática que NOTAS
Quanto a nós, espectadores, «estamos cons-- de Fabrice Mazliah e Ioannis Mandafounis, os
provém de u rna ru p tur a: de uma virada, de Ver o n úmero 184 d e Th éâtre Public, dirigid o por
cientes de uma representação através d e dois performers exploram a lógica dos corpos Clyde Chabot , "Th éâtr e con tem po ra in: Écriture tex-
UIYl período, de Ul11a ex periência, que não
diversos níveis de concentração e de relaxa- frente a frente, contatos previstos e fortuitos) tuell e, écriture sc éniq ue" (2007).
foram ainda ultrap assad os ou recolocados Claude Rég y em Luc Boltansk i et al., L'Assemblée
mento no interior de nossos corpos'>. Graças entrechoques de corpos lançados um contra
em causa. Mas aq uele -que desejasse defi - thé ãtrale, p. 137-
ao corpo e ao mo vimento, estamos conscien - o outro à maneira de bolas de bilhar.
nir urna arte, uma estética con tem p orâ n ea, 3 Giorgio Agamben, Ou est-ce que le contemp orain i,
tes de nós mesmos e, através da experiência De modo geral, o Contato Improvisação Paris: Payot & Rívages, 2008 ) p. 36 .
esbarraria rap idamente n a impossibilidade
artística, temos uma consciência sensorial é característico de numerosas experiências
de estabelecer uma list a de critérios.
ainda mais intensa do que na realidade. de jogo, fundadas sobre o acaso e a lógica
Na prática crí tica cor rente, no te atro con-
de interações entre todas as componentes da
temporâneo, é o que passa por
NOTAS representação.
Ierzy Grotowski, De la cornpagnie th éâtra le à l'ar t moderno, até m esmo h iperrnoderno, o que
comme véhicule, 1933) em Thomas Richards, Travailler apresenta formas e obras inovadoras ou expe -
avec Grotowski sur les actions physiqu es, Arles : Actes NOTR
Mo uve men t, n. 2) 1998) p. 31.
rimentais. De certo, p oderia enumerar-lhes
Sud, 1995) p. 189. (Trad . bras.: Da Companhia Teatra l

66 67
Conversa Pós-Espetáculo Corpo e Corporeidade

A ideia não é de modo algum reinterpretar, coreografia. Há muito tempo (desde o iní- espetáculo e não diz nada mais sobre a sua
Conversa Pós-Espetáculo
imitar em uma pantomima o que se viu, mas cio do século XIX) que a palavra "coreogra- textura e funcionamento, o que evita osa
Fr.: conversation d'aprês-spectacie; Ing l.: post- de restituir o espírito e a en ergia do esp etá- fia" deixou de significar "sistem a de escritura priori e as confusões.
performanceconvetsation; AI.: Gespt ôcn nach der culo através de um esboço coreográfico. Dese- e de anotação do movimento': E faz mais de
Vorste//ung. nhar uma figura- geral, desenhar no ar e, se uma centena de anos que a encenação deixou
possível, utilizando todo o co rpo, reencon- de designar, corno no século XX, a ilustração
Irnediatamente após um espetáculo tra r alguns pontos de referência da subpar- cênica do texto. Nos dois casos respectivos,
Corpo e
assistidocom outras pessoas, o que há titura, que trazia o espetáculo: eis o que nos não se trata de modo algum de anotar a grafia
Fr.: corpset corpor éité; Ing l.: body and corporalitv;
de mais natura!, até mesmo iminente, dá um rastro da experiência. Isso é também do movimento ou a passageln do texto à cena , AI.: K6rper und Kórper/ichkeit.
do que desejar se reunir para falar sobre a memória que nos resta, a tornada de cons- mas de apreender C0r110 a obra, coreográfica
ele? Seria possível, com efeito, temer ciência p elos espectadores de que o espetáculo ou teatral, foi concebida, corno é construída, A maneira segund o a qu al o corpo- é
que a verbalização est ragu e o p razer da evolui e se tr ansfor ma em n ós, n os perseg ue composta a partir d e diferentes materiais, gra- co nceb ido e utilizado, suas caract erfstlcas
experiência e que, portanto, valeria mais enquanto nós pensamos seguir-lhe os rastros. ças à cooperação de intérpretes sob a férula e e propriedades específicas. O t erm o
a pena se calar. Apesar disso, na maioria segundo a perspectiva de um artista respon- corp or eidade (ou aquele equivalente,
das vezes, os espectad ores- iniciam !'JOTR sável' perspectiva a qu al pode, de resto, mudar corporal idade) parece calcad o sob re os de
Ma tthe w ReaSOIl, Asking th e Aud ience: Aud ience
conversas de fo rma voluntári a e, ao fal ar, durante o espetáculo ou recorrer largamente lit eralid ad e o u de teatral idade. Ele não se
Rese arch and the Exp eri en ce of Th eatr e, About Per-
os pa rticipantes d ão sentido [ormance, n. io, 2010 (Audien cin g: Th e Work of th e ao julgamento estético do esp ectad or. refere de modo alqum necessariamente a
à sua experiência. Spec tato r in Live Performance). Ver também , d o
mesm o aut or, 'Hze YOU l1g Audience: /-i"l" t l / r W 'll'1 O"-R YJIí1 uma origem o u a urna essência, metafísica
Enh anci ng Childrens Experien ce afTI-zeatre, ou teológica, do corpo humano. O corpo
É p reciso relativi zar essa le i da partilha da on-Trent : Tren tham , 2 0 10 . 2 . IN T ER ESS E DA
_ _.. A
-'-' .l. U .I. .I. J. . ..... I.( ....... /
do ator perroé:l~.:~S~ UrQJDistério: lugar
exper iên cia com urna reflexão sobre a diver - _ público pu jardim secreto?
sidade de cultura s e de leis i m plícitas da quil o gên eros e ~,~·4!ve.rs.i.dade
que se pode dize r eID pa rt icular e em público. geralmentcimpos- melhor, numero -,
Cada um-tem ainda a intuição..ª.~~que a con- sível definir o gênero do esp etáculo' produ- sas de e de falar dele. Em
.versa n ão-p oderia ressuscitar o espetácu lo zido e identificar-lhe o respo nsável artístico: todas as artes, no conjunto das ciências huma-
efêmeroerdeque ela transforma a expe ri ên- f- r.: ctioteqtaphie (et mise en scene; Ing l.:
encenador ou coreó grafo? Co m o qualificar o nas, o uma aposta de saber e de poder.
cia sensor ial em urna ve rb alizaç ão que , se ..choregraphy (and rniseen scenet. AI.: Cboteqtapbie espetáculo e determinar a n atureza daquilo A fenomenologia nos ajuda a compreender
geralmente esclarece um asp ectodo espe- (u n d Inszen ierung). queseanalisar O ' saber-'ae como se encal~nam no corp o humano iden-
t áculo, a rrisca também obs curecê-lo, e até qual ponto d e vista se coloca para propor e espirituais,
m esmo matá-l o, A dan ça e o te atro, 9 core cqrafia e a ao objeto analisado ques tões pertinentes . concretas e abs tratas. A p erformance, a arte
Tod a a teatrologia- é urna m an eira de des- encenação têm por certo tra dições e Do ponto de vista por exern- corporal (body ~I:rt3) e a encenação dos últimos
tacar ess e de safio da explica çãoe da verb a- est ratégias dife ren tes, mas desde o último plo, dever-se- á atentar pa ra a qualidade e a vinte anos colo ca o corp o n o centro de urna
Jização sob re a ob r a de arte. Para além do qua rtel do século XX, com a apar i ção intensidade de gesto s, pr ocurar-se-á a ligação reflexão antrop oló gica renovada pelos per-o
verbal e da ex pli cação «científic a", p ode -s e da dança-teatro, te ndem se não a se entre o movimento obj etivo e o gesto afetivo. studies: do corpo
legitimarnente buscar d ar -s e co n ta d o esp e- aproximar, ao menos a convergi r. D o ponto de vista teatral, in te rrogar-se-á a humano em situações e per form ances cultu-
tác ulo por o ut r o s meios alé m da palav r a, fábula, a ficção, as pe rso na gen s, o aspecto rais as mais diversas. Deriva daí uma nova
notadamente para sen sib ili zar crian çasou t C O N V E RGÊNCIA mimético da represent ação. O m esmo objeto maneira de teorizar, de o corpo,
esp ect a d ores novat os. É a o que M atthew tomará, portanto, co nto rnos diferentes. .de distinguir as artes corporais segundo as
Reason chegou: ele pe diu a seu s filh os pa ra Tr ata-se da noção de criação, de com posição , exigências da prática e da an álise da perfor-
des en h ar suas lembranças d e um espet ácul o, d e regular figura s ou elementos d o espetá- mance contemporânea.
antes d e lh es interro gar so bre seus desenh os', culo' que explica essa convergência. C ore o- 3. A PERFORIVíANCE , CAT EGOR IA UNIVERSAL?
O ut ras exp erimentações são p ossíveis, para grafia e encenação - e isso não é certamente
todas as esp écies de público. Seria pe dido para UD1 acaso - tornam se u sentido moderno de Atualmente, encenação e coreografia se encon- 1. QUE CORPO?
se refazer, em alguns segundo s, através' do criação por UIn artista por volta d a ln esma tram em geral sob a égide da performance»,
gesto e da dança, o qu e se p ercebeu de urna ép oc a, perto do fim do século XIX para a en ce- O termo inglês, muito mais neutro, é útil, o ser humano, aponta Roland Barthes', pos -
cen a ou da representaçã o em seu conjunto. n ação, perto do início do século xx para a porque não prejulga o gênero ou o tipo de sui vários corpos, dos quais se ocupam, cada

68
69
Corpo e Corporeidade Corpo e Corporeidade

um a seu modo, numerosos especialistas. No horizonte social ou cênico, em não diluir a disciplinas, o corpo é substituído e julgado performance de pendurar o corpo, de Stel-
teatro, localizamos esses corpos ainda mais deficiência na ficção e na ilusão. na cultura e interculturalidade ambientes. larc, ou à operação de cirurgia estética do
porque parecem concentrados e exibidos O corpodo perfonner: pretende não se ofe- As diferentes identidades do corpo (sexual, rosto, de Orlan. A decifração de m ímicas
para o nosso olhar único. recer como espetáculo e não representar nada social, política, étnica, nacional, cornunitá- faciais ou de gestos paraverbais segundo
O corpo fisiológico: inclui o corpo bioló- além dele mesmo, Mas, além das categorias ria, profissional etc.) fornecem os princi- a ciência da comunicação verbal não teria
gico e o corpo anatômico. O espectador não logo acima, o performer deve suportar nosso pais parâmetros de sua análise. O teatro é mais quase nenhum sentido para perfor-
tem acesso ao segundo senão através da apre- olhar: nós o transformamos em um ator, até um laboratório excepcional para observar as mances tão distanciadas da psicologia e da
sentação que aí se faz. Excetuado o mimo Inesmo eln . uma personagem, ainda que seja interações de identidades, sua neutralização, troca verbal.
corporal de um Decroux ou de seus discí- uIna personagem interpretando um performer. seu apagamento ou sua aparição (como em Ao contrário, o sistema de olhares, corno
pulos (como Claire Heggen, Yves Marc), o Guillermo Gómez-Pena ou Anne Bogart). metáfora da intersubjetividade, nos ajuda
teatro não focaliza as leis da anatomia e do Quanto à performatividade·, ela se tornou a melhor acompanhar as interações huma-
movimento. 2 . MOVIMENTO E lv1 DIREÇÃO À o quadro teórico para. seguir a maneira nas. O ro sto humano, esse "ros to do outro
O corpo etnológico: os antropólogos e os FENOMENOLOGIA segundo a qual o ator performa, isto é, joga, homem" (Lévinas), essa encarnação· do
etnólogos descrevem as raças, as técnicas do encarna e desdobra os diferentes papéis de encontro com o outro, não tem nenhuma
corpo· (Mauss) esp ecíficas para as diferentes Ao encarnar simultânea ou alternadamente uma pessoa na sociedade e afortiori em uma necessidade de uma análise científica em
culturas, me smo se as diferenças tendem a se essas identidades corporais m últiplas, o ser representação artística. kinemas!
esfumar com a glob alização e o impacto das humano, e a [ortiori o ator, constroem seu O estudo do corpo nas práticas teatrais
mídias-sobre os comportamentos, corpo, ou mais precisamente, são construídos e perfonnativas se distanciou de uma aná-
O corpo religioso: a influência de práticas e por ele. Ora «o corp o': nos diz a fenomeno- lise serniológíca do gestual- ou de um deci- 5. CORPO REPRESENTADO, CORPO
de interditos religio sos se faz sentir nos ritos logia, é "saber incorporado e exprimido para framento sociológico de um gestuss de tipo REA,L, CORPO DES EIGDRADO:
e cerimônias. si e para outrem">, Trata-se para o analista de brechtiano. Esqueceram um pouco a histori- AS RAZÕES DO CORPO
O corpo sexuado: o sexo/gênero (o gen- compreender como todas essas identidades e cidade do corpo humano-ao passo que Bau -
der) é marcado por diferenças culturalmente marcas-foram incorporadas (ernbodied) pelo delaire j á nos advertia: "cada época tem seu A «inteligência do corpo", riosdiz o filósofo
codificadas. Tanto unissex quanto bastante atQIL~:1ªº_ªpenas no espaço de seu corpo,mas portoseuolhar e seu sorrir". A antiga análise André Simha, é, aomesmo tempo, "a com -
diferenciado, o corpo sexuadoatua .eom no tempo de sua experiência. Paraafenome- era fundadana recuperação de signos perti- preensão intuitiva de seu próprio corpo" e a
todas as ambiguidades. Oscila entre o irnplí- nologia de Merleau- Ponty, "a fusão da alma e nentes e índices sociocorporais.Uma vez que (Cintegração pelo próprio corpo de esquemas
,-, cito .er óticoe o explícito pornogr áfico', do corpo no ato, a sublimação da experiência o corpo não se reduz aum conjunto estru- 'ae ação e dê movimentos que contribuem
O corpo estético: uma vez que é apresen- biológica em existência pe ssoal, do mundo turado de signos, luas que ele se afirme, ao para o êxito da . Essa inteligência vale
tado, até mesmo representado, por um ator. natural em mundo cultural, é tornada ao contrário, comOJ1IP produtor de intensidade tanto para o espectador quanto para o ator,
auxili ado por todos os colaboradores que con- mesmo tempo possível e precária pela estru- e de energia sem unidades identificáveis, a cujo corpo integra vários sistemas de signos
tribuem com a criação de sua aparência, o tura temporal de nossa experiência''v análise se concentra sobre os procedimen- e de identidades. Esse corpo se apresenta às
corpo em cena responde a critérios estéticos. Essa experiência fenomenol ógica implica tos de intensificação· e de estilização, sobre vezes: 1. Como o corpo real de um perfor-
A maneira segundo a qual ele está vestido, ilu- tanto o ator COlno o espectador na sensação os afetos- e seu impacto sobre o espectador. mer, que não desempenha nenhum papel;
minado, mostrado-escondido, acompanhado de seu próprio corpo (consci ência- corporal 2. Como o corpo representado de um ator,

de sons e de música etc., revela intervenções ou awareness), na percepção do movimento o qual imita urna personageln; 3. Ou ainda,
culturais, elas próprias retrabalhadas segundo no espaço (kinestesia), na tactilidade h ápti - 4- UM NOVO C( D E C U P E " DO CORPO? por fim, com o um corpo desfigurado, que
escolhas estéticas. Sobre uma cena, o corpo cala da visão. não é maisaquele de urna 'pessoa, todavia
está sempre "em efígie': como unia reprodu- Essas mudanças metodológicas t êm reper- não é mais que um material, urna coisa entre-
ção do corpo em imagem. cussões sobre a maneira segundo a qual nós gue a todas as experiências (assim é o corpo
O corpo deficiente: mais ainda sobre unia 3. A ANTROPOLOGIA PERFORMATIVA encaramos, analisamos, em suma, "decupa- do dançarino de But ó). Nos dois primeiros
cena do que na realidade, a mutilação pode mos" o corpo humano. casos, a inteligência do corpo é o reconheci-
chocar o espectador, obrigá-lo a rever suas Desde uns vinte anos precisa -se e se afina Mas de que ponto de vista decupar? Pri- mento da razão e de «razões do corpo" (suas
ideias sobre a normalidade, o são e o patoló- uma antropologia do ator. Esta beneficiou- vilegiando quais aspectos, quais partes, que motivações): (Co reconhecimento de razões
gico. Certos artistas, como Pippo Delbono, -se com uma expansão sem precedentes dos unidades dele? A análise do gesto, sua de cu - do corpo (o conj unto de suas necessidades,
Romeo Castelluci, o Teatro do Cristal, insis - gender e dos cultural studies, assim como da pagem em unidades mínimas como nos anos desejos, paixões) não tem sentido senão para
tem em não excluir os deficientes de nosso teoria da perforrnatividade-. Graças a essas 1960, não daria grande resultado aplicada à se inscrever em um projeto ético" (p. 208). No

70 71
Corpo e Corporeidade Crioulização

corporal não consiste apenas e111 ganhar


terceiro caso, o corpo desfigurado não pode Corpo Falante Patrick Chamoiseau, Jean Bernabé), cujo
mais se constituir em tema, seja porque a des- quilos ou em mudar de penteado, mas em ensaio publicado em 1989, Élagede la créo-
figuração- seria mortal, seja porque o outro (o incorporar valores, marcas sociais, identi- Fr.: corpspar/ant; Ingl.: speakinq body; AI.: lité (Elogio da Crioulidade), coloca essa
espectador, neste caso) não chega (ou ainda dades' para encontrar o habitus: que lhes sprechenderK6rper. noção em relação à de negritude de Aimé
não?) a se situar em uma perspectiva pós- representa melhor. Césaire e Léopold Senghor. Essa referência
-humana, num universo em que o corpo, A noção de incorporação (para: embo- Esta noção não deve ser confundida com à negritude é criticada pela nova geração,
mesmo permanecendo matéria, contribuiria dimeni, no sentido de encarnação) está no aquela de corpo eloquente, ou corpo cuja a qual reprova à antiga de se situar ainda
certamente para construir um objeto estético. centro do debate do ator e do mundo exte - retórica é claramente legível. em um binarismo essencialista herdado
O projeto ético vale para o homem comum, rior (ai incluso sua personagem, se ele tiver do colonialismo, do qual não está isenta a
mas se aplicaria ao corpo na arte? É sempre uma). Hoje, estamos longe da concepção Pierre Voltz denomina corpofalante aquilo negritude.
possível mostrar corpos desfigurados, pura- mistíficadora do ator presumido a encarnar que transporta a voz, o que está "atrás da Para a nova geração de escritores anti-
mente materiais, ferindo nosso senso ético uma personagelll. A questão é de sab er se O 'voz falada' Cexpressão passiva, designando lhanos, à qual se junta Edouard Glissant, a
de integridade da pessoa humana. É, apesar ator incorpora seu texto e sua personagem o produto), épreciso remontar à realidade crioulização é um processo de identidades
disso, coisa habitual na fotografia de reporta- (posição clássica, mas ingênua), ou ainda se o ativa do corpo falante?', O corpo falante, quer em evolução perpétua. Ela se-opõe à glo-
gem de guerra, nas artes plásticas e na body ator incorpora para seu texto, e em qual sen - a voz seja cantada ou falada, tem consciência balização, que homogeneíza, ernpobrece as
artr.P. tradição humanista, mimética e moral tido (posição paradoxal). Este últirno tipo de de seus "suportes físicos e mentais" (p, 77). línguas e as culturas. Segundo Glissant, a
do tea tro é, portanto, muito reticente a essa ator não se sente obrigado a escolher entre Ver: Verbo-corpo-. poesia, o romance e o teatro se crioulizam
desumanizaç ão, a menos justamente que esta jogar a situação ou ainda jogar o texto. Na desde que a escritura ou a representação tea-
seja nnla constr ução ficcional e que ela con- tradição declamat ória, não psicológica, do NOTR
tral emprestem de diferentes culturas - nota- -
Th éãtre/Public, n. 142-143, jui. 1998, p. 74.
tribua, através de unl efeito de choque, para jogo, o ator, corno nos lembra divertidamente damente da cultura indígena - por muito
nos abrir os olhos sobre nosso mundo aber- Pran çois Regnault, "se sente obrigado a dizer tempo amordaçadas pelo colonizador. A lin -
tamente desumanizado. o texto, a dizer o sentido, e o jogo vem em guagem e a cultura saern daí enriquecidas,
seguida, de modo natural, e ·em proporção tomadas em um "todo-mundo"
melhor, Porque a incorporação do texto pelo [rioulizaçáo que se extrai do "caos mundo" À identidade
6. os L IlVlITE S DO CORPO DO ATOR ator não é mais este eu nãosei qual moedor concebida como raiz profunda, concep -
de tripas: vocês colocarn UID porco e sai pre- Fr.: créo/isation; Ingl.: creo/ization; AI.: l<reo/isierung. ção que vai do classicismo à modernidade,
o ator contempor âneo testa nossos limites sunto defumado, corno na fábrica de Chi- Glissant opõe uma identidade rizornática e
(o qu e nó s podemos suportar ao olhar) e os cago; é sobretudo o ator que se incorpora ao Crioulização é em sua origem um termo nômade (Deleuze). À mundialização como.
deles. 1)0 mesmo modo, o corpo humano poema - porque até nova ordem, o teatro é da linguística. Há um processo de uniformização por baixo, ele opõe a mun-
é em parte substituível, o ator, ele próprio, exatamente poesia, não é?"7 crioulização quando duas ou mais línguas dialidade, que respeita a diversidade de cul-
parece di spor de vários corpos, como se o em contato se misturam, contribuindo turas. No teatro, a diversidade é aquela do
NüTR5
corpo utilizado no momento não fosse mais Roland Barthes, Encore le corps [1978], Critique, 1982.
com numerosas mudanças lexicais, repertório, mas também aquela das práticas
que UlTI pneu sobressalente, o essencial per- Rebec ca Schneid er, 'lhe Explicit Body in Performance, fonológicas, sintáticas e finalmente cênicas e performativas. .l \ rnassificação da
manecendo o motor, isto é, o cérebro, ao London: Routledge, 1997- semânticas para a língua de partida, cultura induz sempre a uma estandardiza-
menos aquele do encenador. Sabe -se que o An dré Sin1ha,· Le Co rps , ultime rai sou, em Michel a qual torna-se pouco a pouco uma ção de formas e de tipos de jogo.
Blay ( éd .), Gra nd dictionnaire de philosophie, Paris:
ator de cinema não se vê mais tanto como o Larousse, 20 0 3, p. 207. língua nova. Por extensão, o conceito de Constata-se, na mesma ocasião, que
responsável de seu corpo e de sua imagem, 1Vlaurice Me rlea u-Po n ty, Ph énom énologiede la per- crioulização, na teoria da cultura, designa essas pesquisas interculturais de procedi-
visto que a c âmera e o computador podem cep tio n , Paris: PU F, 1945, p. 100. a transformação que afeta diferentes mentos de crioulização estão nas antípodas
C. Baudela ire, Le Peint re de la vie moderne, Écrits
fazer o que eles quiserem e até substituí- esth étiques, Par is: UGE, 1986 , p. 372.
culturas em contato. A literatura, o da estandardização do teatro globalizado, o
-los completamente. O ator pós-psicológico, A. Simha, op . cit., p. 204. teatro e as artes recorrem à crioulização, que confirma a ideia de Glissant segundo a
pó s- humano, não tem mais que trabalhar F Regnault, Rob ert Rimbaud: Portrait de l'act eur em geralmente com uma intenção paródica e qual a crioulização é urna luta contra a glo-
suas emoç ões mobilizando-as e produzin- poete, Th éâtre Revu e Programme, n. 3, Centre Dra- subversiva em direção à cultura do atual balização do mundo e das linguagens por-
matique de Reims, 1979 , p. 157-158.
do -as. Atualmente, ele está encarregado de ou do antigo colonizador. tanto, que uma identidade não poderia ser
investir seu corpo, sua imagem, suas iden- ao mesmo tempo crioulizada e globalizada.
tidades (sexual, racial etc.) em função da A noção de crioulidade vem de um estudo
demanda da cena ou do cinema. Seu projeto de escritores antilhanos (Raphaél Confiant,

72 73
Cultural Performance Cut uo

indistintamente o mesmo método de análise. consideravelmente desde os anos 1990. como mestras: tornam-se às vezes um fim
Cultural Performance
A dificuldade é de mensurar sua carga social A partir desse momento, é muito mais em si. O teatro conhece uma semelhante des -
Fr.: perforrnance culturelle; AI.: kulturelle examinando-lhe como esses acontecimen- importante o processo, a preparação e compartimentação dos gêneros, dos estilos,
Aufführung. tos culturais e espetaculares são encarnados a reflexão preliminar do que o produto das práticas artísticas, que lhe compõem.
no corpo, nos afetos e nos "sentimentos" de final, o acabamento, a análise descritiva. Os grandes museus propõem aos turistas ou
o termo foi forjado por Milton Sinqer', performers. Shepherd e Wallis! indicam, de O principal é, portanto, a experiência aos novatos um percurso acelerado, eles se
que fala de "instância de organização cultural" modo pertinente, a ligação da culturalperfor- estética do espectador, muito mais do que incitam em um consumo imediato,
a propósito de cerim ônias,casarnentos, mance com a noção de structure offeeling de a consistência e a legibilidade da obra. cada e normatizado das obras, eles dirigem os
danças, rituais etc. A cultural performance Raymond Williams. Este último estabelece passos, os pensamentos e a consciência dos
tornou -se uma noção chave dos Performance uma relação entre, de um lado, a estrutura A tarefa do curador do encena- visitantes. Os teatros comerciais, as grandes
Studies·, visto que ela engloba todos os tipos de de nossa experiência e de nossas emoções e, dor. O curador não se limita à organização fábricas de clássicos, não procedem de modo
espetáculos, mas também de representações, de outro, os objetos culturais, definidos "não m at erial da exposição: ele envolve artistas, diferente: o espe ctador é convidado a um per-
de atividades humanas ligadas, de unidades corno proposições ou técnicas", mas corno .L"',,".'-~"'''''.L~''-'"'''-'' cenógrafos como faria um ence- curso indicado por setas, ao mesmo tempo
tendo "um espaço temporal exatamente "sentimentos encarnados, que lhes são asso - nador de teatro ou de espetáculos. Essa con- simplista e imposto. Enquadramentos e desen-
delimitado, um começo e um fim ; um ciados">. Nesse sentido, a estrutura do senti- vergência de fun çõe s dá o que pensar, tanto quadramentos foram efetuados em seu lugar,
programa organizado de atividade, um mento "é acessível aos outros não por urna na da evolução da museologia antecipadamente. No museu como no teatro,
conjunto de perforrners, um p úblico, um discussão formal ou por uma técnica profis- quanto naquela da encenação desde a virada o consumidor não tem mais quase tempo de
lugar e uma ocasião de espetáculo". sional, em si mesma, mas por uma experi ên- do mil ênio, As diferenças en tre os dois ofí - opor a essa corrida desenfreada a menor refle-
cia di reta - uma forma e uma significação, cios são evidentes. É preferível, portanto, xão, nern de aplicar a menor teoria explicativa
Richard Bauman dá urn a definição com pleta, um sentimento e um ritmo -'- na obra de arte , insistir em su as convergências recentes. qu e torne tempo e seja len ta: as teorias estão aí,
na tradição de Sing er, retomada por Turner e na peça em seu conjunto" Cp. 10). O curador reúne obras, mas, sobr etud o, por certo, inumeráveis, V'JjJl..l..lUl.,lL.'(l,UU0,

por Schechner: "Em tern10S antropológicos, ele as enquadra, faz com que entrem em um cadas às crianças': mas a reflexão de conjunto
NOTRS
chama -se geralmente cultural performance os Milton Singer, Traditional India: Struture and Change, certo quadro, espacial, luas igu almente inte- não encontra mais seu ~ugar, nem seu ritmo.
acontecimentosprevistos, limitados, progra- Philadelphia: The Am eric an FolkJ.ore Society, 1959. lectual. Ao pendurar as obras de artes
2 Idem , When a Great Nation Modernizes:an Anthropo-
mados, participat órios nos quais os símbolose ticas, escolhe o que deseja pôr em destaque,
logical Ap proach to lndian Civilization , Lond on: PaU
os valor es de uma sociedade - corno o ritual, o Mall, 1972 : Citado Simon Mick WaI.· sugere um modo de interpretação. O encena-
festival.õespet áculo, teatro, o concerto são tit"l,l- r\rt"l,rc:>tic:> ti c:> maneira semelhante. Ele rea-

encarnados e en cenados diante de UTI1 p úbli-


2004, p. 130. Ver, dos mes mos autores, a aprcsent acao
liza uma montagem de elementos, de cenas,
Cutup
dessa n o ção e dos Perfo rm ance Studies, p. 116 -133.
CO" 3. Pod er íamos acrescentar urna longa lista 3 Richard Bauman, Perform ance,em David Herman et ai. de gestos etc.: tantos momentos e quadros
de outros cultural desfiles, fes- (eds.), RoutledgeEncyclopedia cf NarrativeTheory, p. 420. em que o sentido "coagula': em que cen as,
4 S. Sheph erd: M. Wallis, op. cit., p. 130 -133.
tas, com bates, iniciações, rito s fun erários, casa- enganchadas umas às outras, alcan çam toda. Técnica de escritura inventada por Brion Gysin
mentos etc.
S Ray rno n d Williams, Drama f rom Ibsen to
Brecht
sua significação. O curador corno o encenador
(1952-1968), Harrnondsworth: Pelican, 1973, p. la. e William Burroughs, escritores norte-ameri-
O teatro e as art es do espetáculo são, por- antecipa a maneira segundo a qual o visitante canos dos anos 1960, que consistia em decupar
tanto, apenas uma parte bastante reduzida das do museu ou do teatro inclui ou exclui aspec- um texto em fragmentos, antes de recompô-lo
culturalperformances.Elas se distinguem pela to s da obra. A exposição fabrica sentido em em um novo texto, acrescentando-lhe eventual -
visada estética que lhes é comum: foram inven- função do futuro público. A encenação fabrica mente alguns fragmentos e citações de ,textos
tadas para suscitar no espectador-observador Curador de Exposição relações entre os elementos da cena , entre os de diversos autores. (desvio-)
um sentimento de beleza ou de feiura, de har - atores, coloca em andamento uma dramatur- Essa maneira de recornpor os textos é
commíssaíre dexpositic n; Ingl.: curotot;
monia ou de desequilíbrio, de cômicoou de AI.: Kurator.
gia, uma estratégia dos materiais e dos signos. utilizada às ve zes para fazer um assemblage
trágico etc. Ao contr ário, um ritual, uma ceri- Desde os anos 1980, as exposições se apra-' dramatúrgico ou uma montagem cênica
m ônia não t êm corno ser estéticas (a visar o A função de comissário de exposições zern em justapor artistas ou obras bem diver- (zapping·). Assim procede Olivier Cadiot
belo), mas a ser eficazes, isto é, a completar, per- (curador), emprestada das artes plásticas e sas, sugerindo, aos visitantes, afinid ad es que em Un Mage en été (Um Mago no Verão,
formar, uma ação que não é ficcional, rnas real. da museologia, é cada vez mais utilizada e eles se veem coagidos a aceitar, caso que iram 2010): ele mixa várias línguas e reúne diver-
A questão é saber segundo quais m éto- adaptada para designar o papel mutável, dar coerência à coexistência espa ço-tempo- sos materiais segundo um ritmo que adquire,
dos analisar todas essas cultural perfor- processual, organizador, comentador ral que lhes é imposta. A intertextualidade, a assim, mais importância que uma eventual
mances. Parece fora de questão aplicar-lhes do encenador cuja função mudou relação interartística, o hibridismo- reinam compreensão da peça.

7~
75
Descentramento componentes cênicos, quanto ensaia com
eles diversas opções, diferentes tomadas de
Er.:décemremetít; ínql: decentering; J~ I.: Dezentnetunq. posições que a cena se encarrega de testar.
Achando-se.assim "des-autor-izada" (despro-
1. DESCENTRAMENTO DO TEXTO
" .. ,, ~, .., ..,,-,. _ " -., vida de autor, de autoridade e, portanto, de
OlJ DAENGENAÇÃO
altitude), o texto e, depois, na etapa seguinte,
a encenação, .se veern descentrados. f\ mis e
Na filosofia de Derrida, o centro é uma metá- en scéne, suposta e originalmente centrada
fora para a origem fixa, o ponto de partida na figura de um artista que coordena todos
do texto: tantas noções que se trata de criti- os signos, édescentrada quando não-é mais
car,êle"desconstruir; para-sugerir~q ueo texto construída em função de uma significação
nãotem origem fixa e que seria melhor con- estável e identificável, quando perdeu toda
cebê-lo como uma rede sem origem nem hegemonia e toda autoridade filosófica, polí-
fin al, sem profundidade nem .sentido oculto. tica e artística.
""'A plicad o ao texto dramático, isso significa
que o texto não poderia ser interpretado
e representado como se o sentido original 2. DESCENTRAMENTO DO ATOR
do autor tivesse sido des coberto, ma s antes
como uma rede de significações cuja respon- Enquanto na dramaturgia e no jogo da
sabilidade incumbe ao espectador. Durante atuação clássicos ou naturalist~s o ator dev~
muito tempo concebeu-se o tex to literário acirna de tudo esforçar-se para recentrar-se,
ou dram ático como centrado, tendendo em para encontrar uma união harmoniosa entre
sua escritura assim como em sua leitura para o corpo e o espírito, na performance contem-
uma significação central. O aparecimento da porânea' pós-moderna ou pós-dramática-,
mise en scêne coincidiu com a bu sca de um o ator, ao contrário, não procura mais essa
centro que o encenador tinha por miss ão união, aliás impossível; ele prefere dissociar
referenciar e depois figurar. a palavra e o jogo de atuação, como que para
Mas a encenação descentra tão fácil e melhor demonstrar a autonomia de cada
"naturalmente" o texto dramático ou os um e sua identidade distinta. Encenadores
Oesconstrução
oesconstrução

como Anne Bogart, C. Marthaler, Elizabeth Um, do Lagos, da metafísica (ocidental) na cena são produzidos e recebidos pelos cria - 3. AS TAREFAS DA DESCONSTRUÇÃO
LeCompte e seus atores do Wooster Group, própria língua em que ela se enuncia, com dores do espetáculo e pelos espectadores?
autores-teóricos como David Mamet (True a ajuda do próprio material que é deslo- A desconstrução se interessa por aquilo que
and False [Verdadeiro e Falso], 1997) insis- cado, que é mexido para fins de reconstru- as leituras e as interpretações de um texto ou
tem no desengate da palavra ou do gesto 'com ções mutantes."' 2. O OBJETO DA DESCONSTRUÇÃO TEATRAL de Ulua mise en scêne deixaram até agora de
respeito à ação verbal que deve, considera-se, O termo desconstrução é, com frequ ên- lado, marginalizado ou ignorado. Ela pesquisa
surgir da personagem. Trata -se bem mais do cia, empregado pelos cr íticos de teatro de O que se pode desconstruir no teatro? Em tudo o que pode contradizer os métodos uni-
que de UIU simples efeito de estranhamento maneira su perficial e negativa para fusti- suma, muitas coisas!Por exemplo: osdiferentes ficadores da leitura, corno o estruturalismo ou
ou de alienação. gar os supostos excessos ela mise en scêne. estilos de jogo de atuação, as mídias, os com- a semiologia. Ela espreita a falha que abrirá
A noção, no entanto, é bem útil, pois o ator ponentes da representação: a desconstrução se o sistema fechado ou a leitura coerente, mas
ou o encenador questionam necessariamente aproxima do distanciamento o , brechtiano ou empobrecedora. Ela privilegia as margens,
3. DESCE NTRA l'vl ENTO DO E SP ECTADORe a "verdade', a origem e a construção do texto não, o qual opõe e relativiza os elementos do as notas, os arrependimentos ou os erros do
ou do espetáculo. espetáculo. Reencontra-se aí a vontade de não dramaturgo, do encenador ou do ator. Ela
Pouco a pouco, o espectador- da performance A desconstrução não é urn estilo, um fazer convergir os signos em um sistema ou desconfia dos discursos explícitos do autor,
contemporânea distancia-se de sua antiga movimento literário ou teatral, pós-moderno em uma síntese, de não reduzir o espetáculo a do encenador ou do ator, preferindo a eles o
obsessão pela harmonia, pela perspectiva cen- ou outro qualquer, I11as é unla técnica filo- urn ponto de vista sistemático e centraL Mui - suplemento de sentido que a leitura ou a rnise
tral, pela estrutura coerente, pelo centro está- sófica aplicável à criação e à an álise teatrais, tas vezes a mise en scênepropõe a desconstru- en scêne não deixarão de trazer.
vel. Ele aceita deixar -se levar por uma estética as dos text os assim como as das encenações. ção recíproca dos diferentes estilos de jogo de Os ensaios, depois a encenação, constituem
do desregramento, das n1argens, da lirninari- atuação ou de mídias, tal qual urna re-media- uma permanente construção/desconstrução
dade-. Sua perspectiva se inverte, à imagem da ção· às avessas (Mídias). do texto, do jogo do desempenho e do pro -
do antropólogo que adota por um momento a 1. CRISE DA REPR ES E N TAÇ.Ã. O A dramaturgia, eespecialmente apersonagem: jeto. Eles são o campo de prova do sentido,
perspectiva do outro. Seu olh ar descent rado, E " DE STINE RRÂNC IA" na criação pós-moderna ou pós-dramática, o de sua construção desconstrução, ,.. ,.. . . ,""~··"' ,...'"" L.,. ....
e mesmo invertido, conduziu por vezes cer- ator indica como a construção ou a persona - instáveis por natureza, que obrigam a nunca
tos teóricos a fazer do espectador- o princi- Desconstruir é em p rime iro lugar quebrar gen1 são constituídas de traços combináveis e . interpretada. A encenação
pal autor do. esp et áculo: inversão mais do que a "clausura da r epre sent a ção" (Derrida), é desmontáveis (como é o caso no Hamlct "des- obriga a "ré-autor- izar" mas também a "des-
descentramento ou desvio- , abrir o texto dr amático e a encenação para montado" pelo Wooster Group). _ -autor-izar" o texto dramático ou o conjunto
uma estrutura que n ão os Iimite.irnas que O sentido, a origem, o centro, a l eitura do espetáculo. Ela é por aí uma permanente
revele, ao contrár io, sua construção. É nota- final do texto ou da encenação: trata-se -a esconstrução aplicada. Por isso, ela propõe
damente identificar a fragmentação, as escapar de uma interpretação última, IÍ111i- muitas leituras. Não há mais então leituras
dissonâncias, o d esc eritramento- da repre- tada, correta, inconteste, ancorada em um justas ou falsas, mas leituras fortes ou fracas,
Dasconstruçáo significado indiscutível. A desconstrução mais ou menos atuais'e produtivas.
sentação. Trata -se de d iscernir corn o o texto
ou o espetáculo são ao m esmo tempo urna remete os artistas assim como os espec- Graças à desconstrução, a teoria se revela
Fr.: déconstruction; lnql: deconstruction;
AI.: Dekonstruktion. construção co erente e um conjunto dis - tadores a possibilidades disseminad~~ no útil, e até indispensável, para inventar uma
perso de signos não hierarquizados, pois, conjunto do texto ou da cena, pois toda prática do texto ou da cena, prática que nos
Termo filosófico de [acques Derrida (1930 - como reconhece Derrida, a desconstrução interpretação é uma "desinterpretação" faz descobrir, em troca, novas teorias e assim
2004). O sentido de um texto é aberto, con- foi inventada no "m ome nto em que o estru- (Paul de Man). A desconstrução não se chegar a aspectos ainda não identificados
traditório, sempre relativo, jamais estável turalismo era dominante; p ensou-se a des - opõe frontalmente à modernidade (como desse texto ou dessa encenação.
e definitivo. É preciso, portanto, procurar construção COIUO UOl gesto estruturalista e faz a pós-modernidade com a qual é con -
as ambiguidades, as contradições, sem se antiestruturalista ao mesmo ternpo'". Divi- fundida com demasiada frequência). Assim
preocupar unicamente C0111 as intenções do dido entre ordem e de sordem, estrutura e como a modernidade, a desconstruç ão gosta 4. CRÍTICA DA DESCONSTRUÇÃO ABSTRATA
autor, o que conduz a sentídos "suplernen- evento, a desconstrução é presa de uma des- mesmo de criticalselj-reflection, uma autor-
tares". A desconstrução é urn processo que tinerr ãncia, pois ela é "aq u ilo que chega", reflexividade crítica. Poder-se-ia legitimamente censurar à des -
consiste em desfazer o sistema hegern ônico "aquilo que não se sabe se chegará à desti- A oposição ocidental entre texto e espetá- construção aplicada ao teatro o fato de ela
do texto, por meio de leituras múltiplas e nação etc. " O que resulta daí para o teatro, culo, espírito e corpo: essa oposição é posta abstrair a encenação ou a interpretação tex-
de interpretações mutantes. "D escon st ru ir se as noções derridianas são utilizadas para em causa como simples produto de uma tra - tual do verdadeiro contexto do empreendi-
é de alguma maneira resistir à tirania do interpretar a maneira como o texto ou a dição metafísica. mento teatral. Mas após a fase de relativa

78 79
Desfiguração Desvio

despolitização dos anos 1970 e 1980, durante NOTAS escolhe uma determinada leitura de preferência o desvio na arte contemporânea recorre
1 Iacques Derrida; Elisabeth Roudinesco, De q'LLOi
os quais a desconstrução se desenvolveu, demain... Dialogue,Paris: Fayard/Galilée, 2001, p. 12. a uma outra, propõe a interpretação que não se a numerosas técnicas e se exerce nos mais
Derrida parece trazer-lhe, nos anos 1990, 2 Iacques Derrida, Points de suspe nsion: eni reti ens, esperava, que não se configurava, ou não ainda. variados dom ínios, A performance e o teatro
certo corretivo (por exemplo, em Spectres de Paris: Galilée, 1992, p. 2 25 . Modificando as figuras retóricas e cênicas, ele se inspiram neles com frequência. A título
Max, 1993; Force de [oi: Le Fondem ent mysti- 3 J. Derrida; E. Roudinesco, op. cit., p. 12. muda a face do mundo. de exemplos, os seguintes domínios e pro-
que de Tautorité, 1994; Voyous, 2003). Outras cedimentos influem notadamente no teatro:
disciplinas (New Historicism), outros domí- A caricatura: o jogo paródico, exagerado
nios (os performance studies), assim corno do ator, as te ses extremas e os di spositivos
cômicos da encenação.
gêneros de novo politizados como o teatro
document ário (verbatún), as ações cidadãs
(Schlingensief) ou as intervenções meio reais
Desfiguração
Fr.: áétiquratton; Ing l.: disngurotion;
I Desvio
Fr.: détournement; Inql.: diverting;
A fotomontagem :as supressões, compres-
sões, interações entre imagens do texto ou da
meio teatrais dos exp er tos do cotid ian o d o AI.: Entste!!ung. representação, especialmente em su a verten te
,1\1.: Umwand!ung.
Rimini Protokoll. Em todas essas tentativas, pós-dramática- e p ós-moderna,
ou na maior parte das experiências contem- Esse termo deve ser tomado no sentido O sampling musical e o cui -up-: a misce-
o desvio foi inventado pelo surrealismo,
porâneas' o método desconstrucionista con- de uma des-figuração, de uma supressão lânea, a superposição de textos sern distin-
reutilizado pelos situacionistas, adotado
serva sua força de intervenção, a ponto de da figura- humana. No sentido clássico, ção de origem, de hierarquia, muitas vezes
desafiar as experiências pós-modernas e pós- desfigurar um corpo é tirar-lhe sua forma
pela arte da segunda metade do
século xx. É uma maneira de subverter a
°
também sem refl ex ão sobre resultado e o
-dramáticas, delas se distanciando expressa-o humana, é o caso do corpo ferido de efeito no espectador.
norma; o sentido, a função de uma obra.
mente. Recusando a converter-se em um estilo Hipólito nos célebres versos da Fedra A recup eração:' objetos achados e reclcla-
Desviar é fazer um desvio, é não atacar
do jogo de atua ção , insistindo em permane- de Racine: "Com essa palavra; esse herói dos, espaços achados itrouv és), arte bruta
de frente, é utilizar a força do adversário
cer UIn m étodo teórico e uma pr ática crítica, expirado / Não deixou em meus braços forn ecem aos espetáculos todas as esp écie s
contra ele próprio, é reavaliar em seu
a d esconstrução se distingue dos espetáculos senão um corpo desfigurado': Essa de materiais que os distanciam do teatro
proveito uma situação desfavorável, é
pós- modernos, Insistindo nas ferramentas e desfiquraç áo do herói clássico não pode literário. No sen ti d o figurado, a recupera-
mudar a face do mundo, subverter a
na reflexãofilosófica, ela evita as fraquezas ser mostrada de forma direta, ela deve ção é tamb ém a ideia de que toda vanguarda,
obra ou a sociedade com a esperança de
teóricas dop ós-dram ático -. obrigatoriamente fazer -se objeto de um toda exp eriênc ia inédita é rapidamente inte-
influenciá-Ias, e até de transformá -Ias.
relato.Ésomente na dramaturgia grada, banalizada, normalizada p ela estética
e na miseen scéne do século xx que o mainstrearrr, Mesmo a transgressão- é logo
Patriee Pavis. La Miseen sc éne o desvio situacionista visa escapar de urna
rosto ou o corpo poderão ser expostos ultrapassada e recuperada para outros fins .
conteroporaine: Origines, tendonces. cruamente à vista. ideologia, de uma obra acabada, "vendida" O teat ro do absurdo, que desviava a lógica e
perspective, Paris: Arrn and Colin, 2 007, aos sentidos e às normas. VIU bom desvio desafiava a dramaturgia clássica, foi r ápida-
p. 158-'179. (t rad. bras.: A Encenação Por extensão e por metáfora.falar -se-á de des- coloca em questão a sociedade do espetáculo, mente recuperado por uma estética da de r -
Contemporânea: Origens, Tendências, figuração do texto e da cena, modernos ou p ós- acarreta uma deriva do sentido, um transvio risão.
Perspectivas. São Paulo: Perspecti va, -modernos, quando estes perdem seu caráter para alhures. A intermidialidade: as infinitas rela-
2013, p. 203-230 .) figurativo, representativo, mim ético, quando se O desvio na arte consiste em dar à obra ções entre as mídias tomadas em diversos
Richard Forernan. Unbaí ancinq Acts: despedem de seu sentido figurado, oculto, sim- U111a nova significação, contrária amiúde m omen tos, su a rápida evolução e transfor -
Foundotions for a Theater. New Yo rk: bólico. Desfigurar um texto ou u ma represen- à norma habitual ou aos hábitos culturais. maç ão em novas rnídias (remidiaç ão-) cor-
Pantheon , 19 9 2. tação é lê-los segundo out ras figuras de estilo, Ducharnp desvia a Gioconda apondo-Ihe respondem à mesma hibridez- interartística
f\t1ichael van den Heuvel. Pertotrninq é passar da linguagem figurativa à linguagem um bigode. De maneira mais fina, insidiosa e intercultural.
OramolOrornatizing Peitonnance: concreta, reen contrar essa "linguagem con- e política, Brecht desvia as tragédias de Sha - A publicidade penetra a arte contempo-
Alternative Theoterand theOromatic creta da cena" de que falava Artaud. Desfigurar kespeare, adaptando-as às suas necessidades: rânea (design, foto, evento cultural): o teatro
Text. Ann Arbor: Uni ve rsity of implica ultrapassar ou n egar a forma figurada, ele retoma a fábula das peças, guarda o sis- pena para desviar seus efeitos, pois não dis-
M ichingan Press,1991 . simbólica do texto ou da cena, para tomá -los terna de personagens, mas propõe uma lei- põe elo mesmo orçamento e da mesma expe-
Elino r Fuchs. Deat h of theChoracter. at face value: em seu valor nominal e no sen- tura particular - por exemplo, a de Hamlet, riência empresarial, Somente a paródia e a
Bloom ing ton: Ind iana University Press, tido próprio. O ator (como o leitor-especta- que consiste em uma análise da ação que "o desconstrução da ideologia publicitária con-
199 6. dor) desfigura sempre o texto que interpreta: teatro pode operar tendo absolutamente em segueln encontrar uma riposta que não seja
ele lhe retira seu sentido primeiro e tradicional, conta interesses que são de sua época". pelo mesmo golpe uma autodestruição da arte.

80 81
Dispositivo
Diferança - Diferença

Hoje, o desvio, a recuperação, a subversão Dispositivo sentidas." Assim, o dispositivo tal ·corno o agenciamento· teórico e prático, conceitual
ou a transgressão tornaram -se a regra, e até concebia então a gente do teatro, era uma e empírico, chega-se à mise en scêne em seu
a norma: um efeito estilístico de estranheza, Fr.: dispositif; Ingl.: opporotus; AI.: Disposition. coisa concreta oriunda da ideia dramática. sentido clássico (o de Appia ou de Coupeau)
um signo de reconhecimento, uma maneira O dispositivo psíquico, tal como imaginado e, a [ortiori, à encenação contemporânea:
de dizer "desconfiem!", de chocar ou de pro- Se nos autorizarmos a tomar de por Freud, não se afasta verdadeiramente da descentrada, "dessubj etivada" assistemática.
vocar sem verdadeiramente fazer evoluir as empréstimo o sentido, e até a imagem, do metáfora teatral, visto que esta lhe serve para COIU isso chega-se então às teorizações dos
dispositivo como indicador da maneira designar o aparelho psíquico como uma cena filósofos do fim do século xx, a começar por
coisas, e ainda menos mudá-la s.
pela qual o teatro nos controla mais do na qual evoluem as instâncias do consciente, Foucault, que parece ser um dos primeiros
NOTA
que nós o controlamos, se evocarmos inconsciente e pré-consciente. A teoria do a invocá-las, como mostra rnuito bem Gior-
Bertolt Brecht. Petit Organon pour le théâtre, § 68, uma breve história dessa noção desde os cinema esforçou-se, por seu turno, partir ela gio Agamben> «o que eu tento referenciar",
Écrits sur le th éãtre, Pari s: Gallirn ard, 2000, p. 380.
inícios de um pensamento global sobre a também do dispositivo psíquico, do apare- nos diz Foucault, «é um conjunto resoluta-
miseen scéne no fim de' século XIX até as lho de base (Baudry) como de uma organiza- mente heterogêneo que comporta discursos,
experiências declaradas pós-modernas- ção material do espectador, imóvel, colocado instituições, planejamentos arquiteturais,
e/ou pós-dramáticas· no último terço do diante de uma tela eIn uma sala escura, na decisões regulamentares, leis, medidas admi-
século precedente e até a movimento de posição de um sujeito onisciente que percebe nistrativas, enunciados científicos, propo-
Diferança - Diferença revolta desde os anos 2000, dar-nas-emas e compreende tudo, que se identifica com a sições filosóficas, morais, filantrópicas: em
talvez a oportunidade de entender como imagem, sem estar consciente do aparelho suma, do dito tanto quanto do não dito..."6
Fr.: dittétance; Ingl.: deferro/; /\ 1.: Dilferenz.
essa noção vazia se encarna, se enche fílmi co, tornando -se assim, ele próprio, UD1 Prolongando a intuição de Foucault, Agam -
e depois se esvazia de novo, à imaqem efeito da enunciação fílmica-. ben converte o dispositivo em um mecanismo
Termo criado por Jacques Derrida. O fato
de -diferir, de remeter para mais tarde
do que se passa com o sujeito e sua Muitos filó sofos esforçaram-se para mostrar de controle a .respeito do qual lhe é fácil mos-
o estabelecimento do sentido de urn
dessubjetivação. como a arte retoma e aumenta esse dispositivo trar o quanto ele aprisiona os indivíduos, não
texto, até que pareça que não se pode psíquico. Assim, para Lyotard, os dispositivos só em prisões, mas em todas as espécies de
atingir um sentido original ou definitivo e,
o dispositivo é em lu gar UITl dis- pulsionais produzem afetos, não de signos e de instituições e de objetos, desde a escola, a lei,
portanto, queo texto é indecidível'.
positivo cênico.. No com eço do século xx, significações, porém de intensidades· que quei- a filosofia, atéo cigarro, os computadores, os
quando a encenaç ão s e torna um sistem a rnam as etapas, emprestam circuitos e.mque a telefones portáteis: «Eu chamo de dispositivo
Assim procede o autor drarnático, ciente de global, um encenado!" corno Adol- estrutura e o signo não reinam In ais, porém a tudo o que tem de uma maneira ou de outra a
que seu texto.n ão está acabado nem é acabá- phe Appia descrevia o COlTIO uma disposição e a disponibilidade de fazer circu - capacidade de capturar, orientar, determinar,
vel e de que ele n ão adquirirá sentid o (pro- "disp osição ger al da cena" O dispositivo é lar uma energia, seja ela cromática, gestual ou interceptar, modelar, controlar e assegurar os
visório) senão na leitura ou na encen ação. uma m áquina pois vocal, e sempre pulsional. gestos, as condutas,' as opiniões e os discur-
Essa rnise en sc êne é ela mesma apenas uma "diante de um dispositivo qu e Ú1Z corp o com A obra de arte torna-se uma instalação sos do s seres vivos. v'Trata-se então, para se
leitura provis ória e incompleta, subm etid a o drama, que n ão é um cen ário ane d ótico, qu e vale por seus componentes e sua organi- defender desse domínio total do dispositivo
também a urna diferença, a urna destiner- mas um instrumento de trabalho, nossa aten - zação esp acial mais do que por sua essência, sobre os indivíduos, de dessacralizar, de pro-
rância, "a possibilidade para um gesto de ção fica presa" (p. 65) . O termo di spositivo sua substân cia ou sua coerência. Segundo fanar os dispositivos e, portanto, de proceder
não chegar à destinação, [. .. ] a condição do pennaneceu o termo técnico para descre- Daphné Le Sergent, a obra veio a ser insta- à "restituição ao uso comum daquilo que foi
movimento do desejo que de out ro modo ver ao meSlTIO temp o a forma da cena e a lação tornando-se ela mesma um disposi- apreendido e separado neles" (p. 50).
morreria de antern ão'" . maneira corno ela org an iza o espa ço segundo tivo' o qual mistura o material e o conceitual: Aplicado à prática contemporânea do tea-
suas necessidades. Par a os pioneiros da mis e "É, mais questão de um simples objeto real i- tro, tanto em sua fabricação como em sua
NOTRS en scêne como Appia ouCopeau , o disposi- zado por um artista do que um agenciamento recepção, isso redunda em formar dispositi-
Patrice Pavis, La Déconstru ction de la mise en scene tivo depende da p eça rep resentad a. No pro- de fragmentos do real em que se atam e desa- vos para imediatamente dessacralizá-los: con-
po stmodern e, La Mise en scêne contemporaine: Ori-
genes, tendan ces, perspectives, Paris: Armand Colin, grama das Fourberies de Scapin, de Moliere, tam o indivíduo, o político, o econ ômico e cretamen te, no teatro) em reunir materiais,
2010, P. 164 -183. (Tra d. bra s.: A Desconst rução da [acques Copeau in d ica de fato toda a dife- o social, tudo junto:'; "Instalar se faz in situ, hipóteses de leitura, a fim de produzir uma
Encenaç ão Pós-Moderna, A Encenação Contempo-
rânea: Origens, Tendências, Perspectivas, São Paulo :
rença entre a cenografia e o dispositivo: "Nós ern um espaço físico com as características obra por combinatória e hibridez dos elemen-
Perspectiva, 2013 , p. 203- 23 0 . ) nos esforçamos, in siste ele, em não criar então exaltadas. Dispor é deixar outrem reu- tos , antes de desconstruí-laestabelecendo os
2 Iacques Derrida, SUl' Parole: Instantan ésphilosophi- nenhum dispositivo de cen a, se não for sob nir junto o material e o imaterial." momentos em que ela se sacraliza, em que
ques, Paris : Éditions de l'Aube, 1999, p. 53·
a pressão do próprio drama, po r obediência Se se prossegue nesse processo de abs - ela se simplifica e se deixa consumir dema-
a necessidades dramáticas profundamente tração, de assemblagem· no sentido de um siado facilrn ente.

82 83
Disseminação Divertimento

No caso da escritura dramática contem- Disseminação e que são em parte da alçada da atenção e o divertimento é também, e cada vez mais, a
porânea, o dispositivo é também aquilo que da percepção de cada espectador, O impor- indústria do entretenimento ientertainment
dá sentido ao texto-material, que não é mais Fr.:dissémination; Ing l.: dissemination; tante não é aquilo que este vê, mas como ele industry), a fabricação d~massa de:Pro~u.-
concebido somente corno uma quantidade AI.: Dissemination. o vê e que lógica ele crê reconhecer na dis- tos divertidos, simples, padronizaêlos," q~ue-
desprezível de que se pode dispor.à vontade, seminação. proporcionam um sentimento .de-prazer:a_o~_~_
mas como uma textualidade que vai retornar Termo de Jacques Derrida (La No sentido clássico de dispelsão cId obra publIco, quaIsquer qu~ sejam '!.~. Qun adas da
ou tomar U111 sentido tão logo e~a seja posta Dissémination, 1972). A impossibilidade de arte em diferentes contextos de recepção, população e os p~íse~:: .g~.~ricaçãO~·ináis
em tensão com um dispositivo considerado de localizar e de reificar o sentido no a disseminação desemboca em U111 processo visível no cin ema aQ·q~~·tl~ci~rô,: ba seia,- se
C01110 mais do que umaencenação. Segundo texto ou na obra de arte, e isto, apesar de de constante reinte rpretação. A perspectiva da nUlna o~"ganiz~çao'c~~qUeJ~ªeiXá .
o autor dramático [osephDanan, õ disposi- nossa necessidade de coerência, nossa disseminação de uma mídia em outras mídias nada ao acaso, -Ad-pdúsi~Íii~a~ JªtçºlIlQ
- --:;-- ..,------ -
tivo da encenaç ão tornou.caduca a distin- ' b usca de um centro ou de uma origem. . : (intermidialidade-) leva a interrogar-se sobre denunciada pela. BscôJ:at.dé Er.arll<Illr~€sde--="==="
ção entre a peça e () material, 'p ois o escritor Asignificaç50dotextonãoresid~~.~~~~~-~-~~~~~~c~~ ~~~~_o~es~c= ~ .os.. anos . í930;.oü-teoi~i.z~d~ ;p~eJ~:{p-ªf!§t1"iª_Q:Lt ...
e o "criador cênico" (e, portanto, simples- uma relação fixa entre significante e - tadores e a sociedade na acepção ampla. atividades 'criativas ~u(;l~tXchis!r!~~q? sǺl1~
mente; o encenador demiurgo) não estarão significado. Há 'um jogo constante dos ~~~}!1~~1hn~~te, são

' ·-~·~-·~15~e:[~~~~:i::
mais separ ados radi calm ente: "Talvez isso signos entre significação e desconstrução-
acabe por esfumar, e até tornar caduca,' a da significação.
distinção entre peça' deteatro.etexto-mate- Divertimento
Aplicado ao teatro, o conceito derridiano de
rial, encoútrando-se-este lÚtÚn'a:desde então
inscritoem um dispositivo, 'q m a polifonia
disseminação estaria ligado à possibilidade
Fr.: divertissement; Ingl.: entettalnment: ;:f:Z:sç:~~~I~~:~1f~~~~~:~
cênica que o dramatiza, inventando novas de dispersar o sentido do texto dram~á,~tii'Qc'~01,.o:1u€, ,. ............•... .. . I / \ I.:(J,nterh( lltung > .. não propõem nenhtPnh· . lP:rma~ªeil\ª?iª(lº
da cena em um ca rn p o aberto de .J~Jl.lU.II.'-'.l.J.U.Jl~
~7--'---"forn1as de dramaticidade de aue o texto não nova ou .demaSÍéldo.~êJrii~rh~Fi5~' Tuclo() que
seria m ais .oúnico detentor. "
A . .
ou de estruturas, espe cialm ente desierarqui- o divertimento, a distração, o prazer-é perturba a identifica,ç~'<5 ~fc>~àp~rs<?nageln
corno o espectador, é um
zand ó os materiais empregados. A significa- o que se considera que o teatro, a arte é evitado. Os efeItos sã().,p~evisiYei~~· ~;grace-'
ção não reside .n o centro do texto, ela está performáticae o cinerna.fnãis amda do jos acessíveis, os códigos simples e conheci- -~-~_.~----
subjetivan do-se e dessubje-
r i va ru rr r-.."';!'-'v;"prn cessar, Os dispositivos não
disseminada aolongo da perforrnance-, em que as artes plásticas, proporcionarn dos. A construção:·árâhf~tlça ol(espetacular
sua desconstrução, quais-
si m esmos, eles estão
• C'l"r'lt· · [ 1: , 0\
ao espectador-o É por isso que esse é transparente. Issó.;B:~8 ,~*.çlqi., .todavia, algu-
presos e donão quer que ~.':'} ~~.~f . ..J'~ ...~.'::'Á ~:L ~:"': '=''!'> ..... . espectador- está pronto a pagar a fim mas'grandçs 2afa2t~l"~~tiç~fla ;ll1odefnidade
de leitura,
~;~~::~~ ~c~~~~~~,i~~~f~~faat~~ti~~
~sentido; vfp:,~~(:~"".í n orn\l-Pt"n ;.':I'Vp l queé ao mesmo de ser "divertido': portanto afastadopor
Todo t ext o projetad o no espaço -tempo- algum tempo de suas preocupações, .
tempo o ~ ponto de fuga
da-representaç ão é di sseminado. Qualquer
de toda p. 50), e gos - 'distraído" portanto afastado de um -crITen:te reconnec~ifi ~~ifiâtr~Íl8teatro ou
tar íamos ,-· d e toda estética e
representação é também di sseminada, pois objetivo mais distante ou mais sério. Rire, a d esconstrução, :' s~· '~,~·~U~: mecailisnl0s se
!';}T.,r.._,\,· ~, ,·'~'~ Z:r - ~ ::;', ·. -.J:{~-~·~':,"': ~ '. " . .': ' ~ _- .
ela se ab re a UJ11a in fin id ade deleiturasv'as .. sorrir, distrair-se ou sonhapels ~o que/ encarnam J~tft:P~tS6n~geú-s ';ou em situaçõe s
detocla
dos autores coletivo s da encen açãotanto, o espectador procura, Às:ub.s:is~éhci-a
que as.justifiquem. ~_" ~:=::'~ ~:.:< : ;"'~;':'.:. ,:,~
. .._._
' NOTAS
quanto as dos espectadores..Nos doiscasos, cotidiana, ao sustento da máquina O. divertimento__ fiã'o '~ütiHzl somente os
Th éâtre popu iaire, 11,. p. 39· a interpretação não se faz mais comparando corporal e 'social, corresponderia "gêneros existente~ ~as- ~ttes tradicionais; ele . .
Iacques C oupeau, Mise en sc éne des Fourberies de significantes e significados, espaço e tempo, é veículo para t~da'tãs;~sp~ti~sa~.J;nídias, a
2
necessariamente um divertimento
Scap in , Paris: Seuil, 19 50 , p. 151.
deslocamento e ret ardamen to, forma e ~on ­
I Cd.I1 -IAJU1~ Baudry, Paris : Albatro s,
"gratuito': mas indispensável aos seres televisáo;.a 'i nteri1~ig~~-~gr~ ô:g7linei; p~..telefo-
teúdo, mas avaliando o des vio entre eles, a humanos, alguma coisa 9.ue "se ,,ºjrjjS1~~_ nes c~lula.res. A.n'õç~~ç{~e~c'üJ~!;i~~ "d~ 'diSú"a'-
Daphn é Le Sergen t, Q uestion de dispos itive, A rea, maneira pela qual um remete ao outro e o " a seus sentidos, e aleqrernente"; como cão ~e adapta a4e~s·~~:~~y6{~i;ert~~. e iI,ivénta · ~ó
n. 14, p. 32 . regenera.
GiorgioAgamb en, Ou'estce qu'un. disposi tive i, Paris:
diz.Brecht.que justapõe muito bem assimnóvas formas·~e'.à~~~rümentÓ~~A publi-
Certas performancesou produções (T. Untemalt (subsistência) e Unterhaltung 2 ciâade~udiovisual 'p1Jae serdivertida se.se
Payot, 20 0 7.
lvIichel FoucauIt, DUset éerits: J.9s4-1988.,v. n I~ Paris: Kantor, C. NIarthaler, F.Tat;lguy) E. LeCon1pte) (divertirnento). ~Aas as conturbações aprend~ a olhá -Ja n~titralizª-nC;iÔeignqr ando
G all im,ard, 1994, p. 299, citado po r G. Agambert, op . rejeitam a linearidade dos encadean1entós e '
cit. , p. 8-9 .
culturais de nossa época obrigam a a mensagen1 cOIA~~_çialpara ~oncentrar-:sç ..nos·
dispersan1 n1otivos errlateriais (significantes ' reconfigurar a relação do divertimento disposh~vos narr'âEvos 'e'Visuais}':-': ' ... .- >:: ~
Agaínben ; op. cit., p. 3l.
Joseph Danan , Ent re th6;hf,"p ,;> ,r-f)p'dnY!' lnnrp'·,/ e significados) conforme princípios drama- e das artes de vanguarda- (ver: Os cultural·s1:tI;dies contribuÍÍ"arri 'pa.ra rea -
tío n d u tex te, Paris: túrgicos que não aparecerão senão mais tarde mainstream-). bilitar produções ou gêneros populares por

81..1 85
Divertimento

muito tempo negligenciados pela pesquisa grosseira, vulgar, venal, servil, em uma pala-
e relegados ao consumo de massa. Esses vra natural, encerra a afirmação da superio-
estudos reavaliam a função social e estética ridade daqueles que sabem satisfazer-se C01n
da arte de distração massiva, demonstram
sua complexidade e retraçam sua constru- gratuitos, Corno quer que
ção ideológica e antropológica. A distin- seja, o divertimento pernlanece COl110 urna
ção entre arte popular, divertida, vulgar, e a das razões de ser das artes da cena, uma qua-
arte culta, refinada, distinta é de novo colo- lidade e um prazer dos quais nenhum artista
cada em questão por esses cultural studies poderia fazer economia.
e pela mudança da concepção da cultura,
_l1}eno s ligada à cultura cultivado, a alta cu]- Jim Davis. Tbea tte and En tertoinrnent.
. tura, e mais ancorada na noção antropoló- Lo ndo n: Palq rave. 2013.
da cultura, que tende a integrar toda
atividade 'humana criadora no caInpo cul-
NOTRS
tural. Ao mesmo tempo essa distinção entre Bertolt Brecht, Petit le Écriis?
popular e elitista permanece forte, qual uma Paris: U<:l.1l1IJ.l <:11'U., 75).
2 Ib id em (§ 77).
fronteira de gosto e de clas se qu e separa os
3 Pierre Bo urd ieu, A rt : Écon om ie des biens cu lturels,
dois calnpos culturais. COUlü observa Pierre Encvctotreaie thérnaiia ue: Série Culture , Paris: Enci- Écfrase (Ekphrasis) expressões diferentes por essên-
Bourdieu, "a negação da fruição inferior, VUll V C;l ,;:'C41 Jl,:), 2004, p. 4 11.
cia". Esta é também -<;1 tendência a insistir
Palavra grega para .descrição. E/c sob re o fato de que--e-narratíva e a.imagem
proveniente de; phrasis: dizer, falar. têm necessidade um do 'outro quanto
portanto.urna ex__ plicação, uma __ ._ as"cultu ras~,neGessitarncé d() s,~dois?,~2.-;- Na·int"er­
ex-pre~~~o, un-I~es-~rj çã()deurn __ secção do 'v isual e do 'verb al, muitas mídias
fenôrn"et1-ov"fs-~al. " --" ----,,-- -- _. ---- , cenendem da écfrase. Esta última faz falar
a imagem , reputada, no .entanto, C01110 ine-
Est a noção da retórica ,clássica se aplicava fável; elaa transforma em um discurso, com
à de uma visual por palavras que se pode notar e quetranquílí -
meio de palavras. Denominava -se ekphra- ZalTI o observador convertido em leitor 'ou
sis toda descrição de um acontecimento, de ouvinte.
urn a batalha, funerais etc. Tr atava-se d e Historicamente, é apenas na segunda metade
descrever de maneira de talh ada, de ex por à elo século XV III europeu) com Diderot e Les-
vista Ur11a situação-visual, dar a ver um objeto que não 'Se apresenta mais
(o escudo de Aquiles na Iliada, por exem- como produto da imitação mimética do real ,
plo). Mais tarde- essa noção foi Iimitada à IDas começa a raciocinar em termos de signos
descrição de uma obra de arte, e até a urn o Laocoonte, de Lessing,
metadiscurso e a UIn exercício pedagógico de O esp ectador-de teatro ou de dança. gosta ,
redação. É nesse sentido que Heiner Müller ele tamb ém, de sertranquilizado com res- :
propõe, em Hil(cll~(n52rsblescl1n;ibun:fT peito ao sentido das imagens e sua verbali-
ção de U111 Quadro), urna longa descrição de zaç ão. Ele se compraz COIU aquilo que a cena
uma pint~~a, cri~ndó u~~lato a partir de lhe pinta e, às vezes mais ainda, com aquilo
um quadro, para os leitores ou especta dores. que ela lhe descreve. Ele sente de fato tam-
A teoria da imagem e os visual studies bém que a pintura e o discurso não podem
apelam para a écfrase, pois esta é sempre jamais coincidir. Mas saberá que daí provém
uma. "representação verbal da representação justamente o seu prazer e que seu desejo de
visual?', A tendência da pesquisa atual é de sa-voir C'sa-ber") e de ça voír, ("ver isso") é,
criticar "a ideia de que o relato e a irnagem sem cessar, excitado e depois repelido?
86

l
Écfrase [EkphrasisJ Efeito de Teatro

Nos estudos da análise dos espetáculos e indeterrninação-, de ambiguidade, de ine- (Eds.). Rautledge Encyclapedio oi Narrotive assim seria necessário estender-se sobre
das conversas após o espetáculo, a ekphrasis, fável resistem ao deciframento. Elas são, Theory. London: Routledge, 2005. essa pretensa especificidade teatral. Ora,
em sua longa tradição e enl sua prática da entretanto, necessárias à leitura e ao prazer Christo p her Balme. Apor ias of esta não é, ou não mais, evidente por si.
descrição de uma obra de arte plástica, visual, do texto. De outro lado, o encarregado da Ekp hra sis: lhe Perfo rm ance Arc hi ve Espetáculovívo? Em tive (ao vivo)? Caráter
poderá servir de instrumento para a análi se écfrase não se confronta simplesmente com (Arch ivin g th e Performance) . In: Jud ie dramático, tenso, das ações? Como quer
de todos os elementos visuais da represen- 1.1111a estátua de sal ou um cartaz publicitário, Christi e: Richard Gough ; Dani el VVatts que seja, o efeito de teatro lembra ao
tação. Corno nota Christopher Balme, «todo mas com corpos humanos em movimento, (Eds.). A L.Jo r-r.,...,. YrYlrl y, r ,-, ( n c r y, r"r\ r" , · espectador- que ele é um espectador, que
pesquisador de espetáculo que ~e ocupa em vida, em devir. Descrever não é apenas Testimo ny from the Future, Evidence of ele está assistindo a ações fictíciàST€ttle
de descrever e de analisara repres entação falar por meio de um papel, é também dese- tlie Past. London: Routledge, 2006. estão lhe representando algum~ coisa.
realiza por definição U111 a éc f r as e: ele tenta nhar em cima dele, é adaptar; re criar, pro- fvlario Klarer.
expressar as dos corpos e longar uma enterrada para sempre. bei Não se deveria con fundir de urn uso
dos arranj os esp aciais em uma linguagem É também encontrar a força cinestésica do Tübinqen : f\jí erne yer, 2001 . bastante impreciso dos term os n o
escultu ral que, por definição, desli za para a corpo do ator. É menos re- viver (à maneira crítico) o efeito de tea tro, qu e é um dispo -
Matthe w Reason. Writ ing t he
metáfora">. .1\. descrição ecfr ástica retorna a do ator stanislavskiano) do que re-mover, sitivo participante da feitura do teatro, e o
Em bod ied Ekphra sti c
seu sentido e à sua evocar re-encontrar U1l1 impulso ele ···\..o.L"-' l l ,V ' l; C d L l cu. que é urn terrno pejorativo na
Criat ive VVritin g as Audien ce Researc h.
U1n objeto, 111aS também fazer partilhar da UUl gestus- ou uma trajetória- in con sciente linguagem Corrent e. O efeit o teat ral é tido
Critico! Staçes, n. 6, 2012 . Dispon ível enl:
experiência emocional o leitor ou esp ecta- do movimento, Enfim e, sobretudo, cUDlpre como negativo, indo contr a a realidade ou
< http: / / w w \lv.crit ical-stag es.o rg/ > .
dor- que jamais teve contato COUl esse objeto aceitar que o espetáculo se transforma inces - a verdade, COIrIO coisa de
ou essa não poderia Mourning
.LA. santemente sob o efeito da lembrança, que exagerado, de ou, no melhor dos
- Public IVlernoi ies.Lo nd o n/New York:
evidentemente ser obj etiva, quaisquer qu e todo comentário nos situa em uma int ertex- casos, alguma cois ~a~~~!}~~ial ou art ística.
Routl edq e, 1997.
sejam seus esforço s. l\. exp eri ência indivi- ',tual1aáde e eITIUma interrnidialidade- infini- Muitas estéticas d e van guarda no iní cio
dual não transmiss ível, ap esar de tas. Não sedeveficarna ilusão se do século realismo
NOTRS
toda empatia- do espectador. I
acabar por reconstituir o impu so ou a erno - J. Hefferrn an , M u seum of v\!ords: m e Poetics of lismo, invocam ern seu favor a teatralidade,
Resta'§.'êntl~etanto, [ormalizar a escritu ra ~ãooriginalAécfrasenão éarrtióde ~~~~~~~~~~~~~~E~kpfflfu~m Hmnu w ~ery,~ ~~J TMU ~ at é à reteatralizaç ão do teatro, eacolhern
e~frásticcz)I~!os . críticos, dos esp ectadores e dos urna paráfrase, uma cortina de fumaça, COIn, chell, Picture Essays on Verbal and Visual o efeito COlTIO' um dispositivo eficaz e bem -
teóricos.jeorno eles-evocam, de em Representation, p.
2 M. Visua lNarr at ivity, em David Herman et al.
-vindo, como uma técnica de di st ancia-
impress õasfugazes e lem br an ças frágeis , então, que relâmpagos! (eds.), Routledge Encyclopedia of Narrative Theory , mente-um rec.urso ao prazer dojogo teatral.
além das obras plástica s,'visuais, bem tangí- p .63 2 . O efeito de teatro se de fin e por sua visi-
veis? Matthew Reason, n o artigo "Writing the Jacques Dérr ida . Lo Verité e0 peintu re. bilidade por sua 'súbita emergên ci a: ele é
1-<.~... h.,-,.r1 'I .c.rl J:.<·'Vr..O'·'D1... r--o:«
t.. lrr.h,· " "T,.r anel Cria -
tie: Go ug h, Dan iel Watt s sempre. notado receptor C01110,unl des -
tive Writing.as,Audience Research" C0111eçOU Murray Kriege r. Ekphíósis: The '!/usion [orman ce Cosm oloçy: Testimony [rom Fu ture, taque. Esse efei to de teatro é sem pre sus-
ot Natural Signo Balt imore: The Johns Evidence of the Past, London: Rou tled ge, p. 12 5.
a testar esse t.ipo de escritura ern grupos de cetível de avançar mascarado, de não da r
4 Cf. Phelan, Mou rnino Sex: Perfor mi no PubÚc
espectadores solicitados a se entregarem a Ho pk ins University Press, 19 92. nenhum sinal visív el, COIno que para ser
ulnfree flow a urna escritura à qual é James Hefferm an. Museurn otwads. The ainda mais eficaz. Ass im, os efeitos de ten-
dado livre curso, recorrendo à expressão po é- Pcetics af Ekphrosis frorn HornertoAstibet». são dr~ª niªtica> ~ de .sllsp~ens e~ ou de sur presa
tica, para fazer parte de suas lembran ças e de Chicago: Chicago Un iversity Press, "993. são procedimen tos- lite rários e narrativos
suas impressões. Essa escritura reativa, essa vY.J Tho mas Mitchell. que servem à quer ela
escritura performativa- tperjormative l1!rí- Theotv: Issoys on Verbo! ond Visual dram ática àu cênica. Como procedimento
tingt) é urna primeira e decisiva abordagem Representation. Ch icago: Chicaqo dramátic o, cêni co ou performativo, o efeito
a fim de preservar um traço emocional, e Un ive rsíty Press, 1994. Fr: eitet.de tn éàue, lnql: tbeatricat effect; de teatro situa -se em urna paleta muito
atécinestésico, da do eS1Jc<:tado'r. 1\1.: / neateretteki. entre efeitos teatrais visíveis afixa-
Pode-,se ilnaginar a dificuldade de teorizar dos ou lúdicos e efeitos-in\TTslveis, n1asca-
Iconotexts:Essays on Ekphro sisand o que é um efeito de teatro? É tudo
a criati vidade da escritura, seja est~ última rados, estrutu r ais.
Intermediary. Nevv Yo rk: Gruy ter, 19 9 6 . aquilo que na representação teatral
li terária ou poética, e lnais ainda de esta-
Mi eke Sal. Visual Narrativit y. In: David faz efeito, aquilo que notado como
belecer a dessa escritura C01n
Herm an; f\tlanfred Jahn; M arie-Laure Ryan procedimento típico do teatro. Ainda
respeito ao espetáculo evocado. Zonas de

88
Efeito Produz ido
Efeito Produzido

a partir de sua vertente receptora. Esse equi- fazia Guy Debord com La Société du specta- a encenação e a dramaturgia parecem suge-
Efeito Produzido líbrio, no entanto) não é tão fácil de manter. ele (A Sociedade do Espetáculo )4; trata-se de rir . Nem mesmo que aquilo seja desejável.
Assim, as obras não revelam sua dimensão uma reflexão filosófica similar à que chega As obras cênicas contemporâneas são tão
Fr.: effet produit; Ingl.: effect produced; AI.: Wirkung.
política diretamente em seus efeitos, porém Iacques Ranciere em Le Spectateur éman- diversas e abertas que produzem em nós as
na maneira como o receptor se situa em rela - cipé (O Espectador Emancipado): "o que me interpretações as mais erráticas e os efeitos
ção a tais efeitos e os analisa: "A dimensão interessa, pois, e~ primeiro lugar, eo que os mais divergentes. Nossas reações pareCelTI
1. ORIGEM E TRANSFORl\1AÇÃO DA No ç Ao política das obras não podeser relacionada responde àquilo que eu chamei de 'partilha quase o efeito do acaso. Dever-se-ia então
aos seus efeitos, mas dependem da relação do sensível: não são 'as artes: 'a história das persistir emfazer a teoria de-um ser tão cam-
A noção de efeito produzido, expressão que com a obra, do lugar que assume, na obra ou artes' e o modo como as artes devem' fazer biante quanto o espectador?
traduz o alemão Wirkung (o efeito, a ação com respeito a ela, o leitor, o espectador, o , política, boa ou má, mas são esses modelos
sobre), foi pouco utilizada at é os trabalhos telespectador etc. É a maneira como o recep- que atravessam as artes particulares: mode-
da estética da recepção da Escola de Cons- tor pode inscrever-se na obra que, na medida los do fazer, de ver, .d o olhar, do compreen- 3. A REAVALIAÇÃO DO PAPEL DO
.ern que .ela institui uma relação com outrem, der, do' agir ..." 5 .---'--_ , .. ,_~< ~_.
_ _ <_ _< . .. _
ESPECTADOR
tance (Iauss', Iser") nos anos 1970. Na tradição
francesa, esse efeito produzido foi estudado é propriamente política." No que se reconhece, pois) o efeito produ-
exclusivamente sob o nome de efeito literá- zido sobre o espe ctador? Esse efeito passa por No transcurso dos quinze primeiros anos
rio, como poder de agir sobre o leitor: não urna organizaç ão sistemática de materiais, desse mil ênio, muitas publicações tentaram
como efeito estético ou sociológico, mas como 2 . o EFEITO PRODUZIDO SOBRE O . p or urna encenação que antecipa as reações identificar a figura espectral do espectador-,
influência sobre a vida pessoal do leitor. ESPECTADOR do espectador: embora não se possaesta- 'Talvez seja tempo de reavaliar seu papel,
Segundo a escola da estética da L . L ,'.'LJL.n. v .
belece r de antemão corno o espectador rea- não em termos gerais ou filosóficos, mas de
o teatro teria sido sobretudo estudado ern Avaliar o efeito produzido pelo espetáculo girá exatamente, tem-se ainda assim uma maneira diferenciada e historicizada, 'Talvez
sua face e sua fase produtiva, levando em sobre o espectador .n ão é evidente por si. pequena ideia dissó. Poriss_Q; parece e:x;~­ o espectador, que do direito democrá-
conta sua dramaturgia textual, m as negligen - Categorias tão imprecisas corno as ,dç pra- gerado afirmar) UlTI visto ,
criação. é determinada pelo artista e não pela . s e.u· p a.R~l--afa<star~')·e-;--con10odaâemoc:fácia,
ciando tanto a representação , considerada zer e divertimento outão. técnicas, corno as
como quanto o . de catarseolven1patia e c i n e s t é s i c a nãocontri- ,. recepção" e que "l~var em consideração con- ~'da ideia de poder coletivo, para evocar ape-
~ ;i ,..,. ~ ~',", de receb er a mi se en sc êne.
........ ...·• buern necessariamente para um aclaramento eretamente o público só ocorre, portanto) ao nas o da liberdade individual'? O papel do
essa teoria da re cepção'? Afirma da recepção. Será preciso, aliás, começar a fim dos ensaios'", espectador muda em cada época em função
ter-se- iap errnaneci do ; . esp ecificar em que consiste a recepção .de Para julgar tal fato coloquemo-nos no daquilo que se esper~ dele, quando a socie -
V ;:' <~~JlC::~~V.;) até o drama burguês d o urna obra de arte ou de um evento. O efeito ponto de Vista do espectador: esteúltimo dade está em mutação,' quando o teatro se
século XVII1? em uma é, muitas vezes, imprevisível e varia de um precisa de alguns pontos de referência para renova e quando teorias explicativas correm
tação (I)àfstellungséislheti,~), ou, no melhor público a outro e, mesmo, de UlTI espectador- construir uma hip ótese e adiantar uma inter- atrás dele : Isso se traduz em uma diferencia-
dos casos, em urna estética do efeito (Hri ~ a outro. O criador não mede exatamente O pretação p ossí vel. Interpretação não quer ·' ~-ção ' senlpre rnaior das formas, dos gêneros-

kungsiisthetik). Hoje, cumpriria, po rta nt o, efeito que sua ,ob ra produzirá sobre umou _, dizer necessariamente compreens ão, mas e das experiências': ElTI cada caso, e a todo
colocar-se resolutamente no ponto de vist a mais públicos em diferentes contextos etc. de um modo simples possibilidade de orga- momento, o espectador descobre novos
da recepção efundar uma estética da recep- A extrema variedade das obras nos obriga nizar as percepções. A organizaç ão geral direitos) mas tamb ém novos deveres, cada
ção (Rezeptionséisthetik). Mas ser á tão sim- quase a tomar exemplos caso a caso ou, a das percepções, signos, ações cênicas não é vez mais ilegíveis. Eis alguns exemplos de
ples e é possível limitar-se a levan tar os rigor, gênero a gênero, o que desencoraja outra coisa sen ão a dramaturgia, Pois, com tais espetáculos, entre uma infinidade:
efeito s produzidos ~ en1 p erguntar-se qual toda tentativa de teorização e de generali- efeito, o qu e é isso além de-um efeito? O que Os espetáculosnão verbais (dança) m ímica,
sujeito os analisa? zação. As obras de artes devem, com efeito, é isso senão um efeito produzido no espec- teatro sem palavras, performance cujo texto é
Parece realmente que o efeito produzido serem consideradas no conjunto das práti- tador? Isso não é somente a ~eação indivi- tratado como pUl~a matéria sonora) são cada
(íAfirkung) seja ao mesmo tempo urna ques - cas espetaculares e das cultural performan- dual e subj etiva em.termos de impressões, Vezmais numerosos. O espectador não pode
':tão de produção (quais efeit os pre veern os ces. Diante da dificuldade de des crever essas emoções) afetos .e empatia cinestésica. Isso mais servir-se da língua para reconstituir um
artistas?) e un1a questão de recep ção (quais obras de modo coerente e pormenorizado, e é também a in.terp~~tação das ações, a his- mundo familiar ou uma história linear fun-
consequências esses efeitos terão sobre a lei- grande a tentação de metaforizar as noções tória que elas contam, o sentido ou os senti- dada na linguagem. As pesquisas recentes
tura dos textos ou a análise dos espetáculos?). de espetáculo e de espectador, de fazer disso dos que delas podemos discernir. Todavia, o acerca da empatia cinestésica o ajudarão a
Convém, pois, abordar a obra ao mesmo urnametáfora neobarroca e teológica da con- fato de não se poder interpretar não implica sentir como ele "absorve" a linguagem ges-
tempo a partir de sua vertente produtora e dição humana. É um pouco daquilo que já que se interprete sempre segundo aquilo que tual, o movimento, os ritmos, Essa escola do

90 91
Efe ito Produzido Efeitos Especiais

movimento e do olhar contribui p ara educar Tais espetáculos extre m am en te variado s só o objeto do teatro se desvanece e aquele que (aifective labor), "um trabalho destinado a
outro tipo de espectador. podem produzir, é evidente, re ações muito veio para assistir ao espetáculo faz esp etá- produzir uma experiência emocional?", um
L e parcours. aquilo que se d en omina d iversas en tre os esp ectadores, dada a diver- cul o de si mesmo. Ele p erd eu toda identidade "trabalho que produz ou manipula afetos? "
muito bem em inglês de prom enade perjor- sidade de sua s expectativas e d e su asatitu- forte e marcante: sexual, nacional, lingu ís- O trabalho e o afeto, a educação e o prazer:
rnance, mas também a de sc ob erta de U111a d es. N o entanto, con stata -se U ITI processo tica, cultu ra l, profissio nal e fam ilial, O glo - sorno s reconduzidos à poética clássica de um
cidade seguindo as instruções p or mei o de d e homogen eização devid o à mundializa- balizado engole tudo, p assa por toda a parte, Horácio, mas dessa vez é o espectador que é
um fone de ouvido e d an do ao esp ectador -ç ão. EIn uma sociedad e globalizada,·eln urn a n ão cons egu e se co ncentrar e, p ortanto, se en carregad o da boa gestão dos afetos".
"urn a lufada de ar fresco': N em seln pr e, aliás, ab ertura infinita para todos os tip os de cu ltu- di spersa. A globa lização lh e dá a ilusão d e
estar.conecta do a di-versas redes, às d e suas NOTAS
pois o espectador é obrigado a ren egociar sua ral performances. o espectado r torna-se U111
Hans Robert [aus s, Paul' un e de la r écep-
nova trajetóri a fora das estr uturas cên icas ou consu m ido r, um bricoleu r, u m biscateiro ...identidade s, e às re des so ciais, com as quais tion , Paris: Gallimard, 1978 .
narrativas qu e ele julgava dominar. Falta -lh e oportu n ista, mai sdo qu e um confidente e se id entifica. Sem que se dê conta, seu hori- vvougang is er, i.A cte ae tecture: Théorie de l'effet esth é-
o ar, a bem di zer, se o p er curso leva a urna um alter ego do s artistas. Por consegui nte, zon te de expectativa, seu gosto, seus de slum- tique, Pierre .Mard aga, 1985; Idem, I:A.ppel
du texte: L'lnd étermination com rne condition d'eiJet
imers ão -, conforrne esse gênero novo cria pode-se tr atá -lo por tod os os n omes, atri- bramentos e seus de sgostos fora m moldados esthétique de la prose litt éraire (1970], Paris: All ia, 2012 .
pa ra eleuma ambi ência e U111 universo n os buir-lhe os papéis os m ais het er óclitos,a pre-:- . por essas redes. Antes , no século xx, a queixa 3 Christin e Servaís, Relation oeuvr e/spectateur: Quels
quais ele é convidado a m er gulhar. Fazend o texto de aument ar sua s co mpet ênc ias e seus era sob re o caráterefêmero d o espetác ulo mo deles p our une r éception act íver , Coló-
quio de Liege, Le Besanç on :
isso, percorrend o a realidade ou im ergin- pode res" }.,.S int er a ções ent re as m il facetas do que n ão sobrevivia ao olhar dominantedo Les Solita ires in tern pestifs , 2013, p.
do-se n ela , o espec tador é corno qu e lib e- espectador e a paleta in finita do s espetáculos espectador.atualmente, é m ais o esp ecta dor Par is: Bo u ch e t-Chastel, 196 7-
rado por um tempo da pulsão escópica, que conte mpor âneos são inumer áveis e iniprevi- que é efêmero e inapreens ível, ao pa sso que Les Scene s d e Iemanc ipatíon: .4' u .. . . . . . ,.,,...u.u,x'_'-'
Ranciere (28 mars
o forç a. a tudo ve r, o u da do síveis. Dever-se- á, entretanto, descon fiar das os objetos espetaculares podem ser b aixa-
j uin 2013,'p· 9·
In un d o exterior, sug erindo -lhe qu e d ever ia derivas do espectador. Será preciso evitar, en1 dos à sujeito percip ien te é láb il, G -Soph ie Proust, La Direc tion d'acteurs dan s la mise
tudo compre en~ er. p artic ular, medicar o espectador, fazer de le ° objeto hábil. th é âtra le conte mpo raine, Vic la G ar d iole :
Lbntreternps, 20 06 , P..103.
C om o teatro rua , 0 ,
\"'0 1"i\"" I..· \. L '."-J. \. J' .l um co rpo condutor para··lul1 b ar ôm etr o da .
7 Ma rcel Ga uchet, La Condition historique, Paris: Gal-
nu aseu 'circuitofo ra da s sendas batidas d o . em p atia- cin est ésica, um corpo m ensur ável, .
teatro "ençerrado'lren gaíolad o", congelado agitado e recarregado C01n o urna pilhaelé- 5. o ESP ECTADO R FUGA 8 Pat r ice Pa v ís, Il/vnaiyse des spectacles, Paris: Armand
natradi çãode um jogo t eatral ou de urna lite-: tri ca. I-Iaverá de se velar para não o red uzir Co llin , 2 0 12, p. 388 -393. (Trad. bras.: A do
Espetáculo, São Pa ulo: Perspe ctiva,
.ratura. A ~.ua . ~evela- se uln laboratório pa ra à co ndição de consumidor, de umclien te a. o espect ador contemporâneo tem 2t;. esco-
,JC: ~~UIllU\.) ·V~ ILC:1 JlllV d e Luc Boltans k i e Ev e C h iape llo ,
-0 espectad or, m as não se poderia estabele- satisfazer) de um cartã o de cr édito a debitar. .-' 7:~·.:-:::." :-..::;.-: -:;; :::-. •"7·· ';". ~-·~:: '":~:r --' ~ d e fu ga: 11111a fuga sob a capita iisme , Paris: Gallimard, 201l.
cer uma tipolog ía do s espe ctadores e-de-seu p rot eção da comunidade, em que ele p ensa 10 An ton io Muli itu de: lVar and
com p or tam en to corno se faria estudancoo encontrar-se em urna assembl éia-que se torna New York: Pengu in,

m od o d e an d ar d os p ed estres. 4. REDEFINIR o T EAT R O comunitária pela graça da represe ntação; ou


Um objeto m isto, não identificável:' assim OUO ESPECTAD OR ? urna das redes, para onde
se apresentam com fre quê n cia U~ esueracu- seus gostos e suas esco lh as o conduzem obri-
los contempor âneos, Eles- fazem coexist ir, D iante d a explosão das experiências tea tra is gatoriarnen te, estabelecen do acomunicação
no mesmo evento, atores ao vivo, gravações e perforrnativas, dian te d as metam orfoses e asseguran do a comercialização do esp et á-
audiovisuais, uma trilh a sonor a, computadores do espectador, ser á necessário redefini r o culo pr opo sto, pelos cons umi-
com acesso à in ternete objetos emurna ins - teatro ou espectador, ou os do is? Será pre- d ores-espectadores. Nos dois t ipo s de fuga, o
talação. O esp ectador oscila entre isolame nt o cisoater-se à definição secular e>un iversal espectador se sen te protegi do pe la comuni- Fr.: eitets spéciaux; IngL: specialettects;
e comunidade-: UlTI isolamento rapidamente do teatro: um enc ontro entre um ator e um dade ou pela rede; ele n ão se julga mais obri- AI.: Sperialettek te.
preenchido p or uma descarga, um acom uni - espectad or em tempo real é em UI11 espaço gado a compreender tud o, IDas é en corajad o
dade amiúde po voada de solidões . comum ? Inúme ra s exp eriê ncias n ão res- a produzir a sua próp ria experiên cia emo- Esse termo prov ém do teatro, embora o cinema
Com todas essas m ídias na, em torn o, fora pondem m ais, h oje em dia, a esses critérios . cio na l. Essa discreta injunção o reconduz ao s tenha se apropriado dele e haja d esenvolvido
da cena, o espectador nem se n1pre está em Mediat izaçõ es em cascata (inter ruidial ida- afetos, in clusive aos afetos de catarse, pie- mu ito esse tipo de efeito. O teatro sempre
contato liv e C0111 o esp etácul o. Ocorre qu e de s-) entre os produtores assin1 con10 en tre d ade e ter ror. Ele se reúne à coorte do s ar ti s- soube fab ri car efeit os técnicos: sonoplastia,
ele hão v ê os atores ou que não há aí atores os consu111idores acab an1 en1 u nla ince r teza tas e dos outros esp ectadores, m as des sa vez, n1udan ças de luz e de cenografia etc. C:ertos
para ele ver, porque estão oc ultos à vista ou sobre a origeln das ações e das tarefas, em nessa nova era de um capitalism o da «crítica encenadores go starrl de recorrer aos efeitos
são substituídos p or objetos ou n·~·':) "( Tr)rr\D C' llln a confu sã o en tre o artista e o visit an te. artista"9, ele é responsável pelo trabalho afetivo produzidos de maneira artesanal, reton1ando

92
93
Empatia Encarnação

velhas técnicas (Strehler, Mnouchkine, Brook). do que como uma relação entre um sujeito 2 Dee Reynolds, Kinesthestic Empathy and the Dances «Não se é simplesmente UIn corpo, mas, em
Body: From Emotion to Affect, em Dee Reynolds;
Produzidos e assistidos por computador, os e um objeto. Na estética contemporânea das Matthew Reason (eds.), Kinesthetic Empathy in Crea- um sentido-chave, a gente faz seu corpo. "
efeitos não oferecem mais nenhuma difi- artes plásticas ou dos espetáculos, os artistas tive and Cultural Practices, Bristol: Intellect, 2012, Aplicado ao teatro, poder-se-ia transpor
trabalham muito amiúde com materiais bru- p.13 2 .
culdade, perdem por vezes seu encanto assim a teoria feminista: o corpo do ator, do
antiquado distanciando-se da magia- que tos e formas abstratas, com figuras não psi- dançarino, do performer é o resultado de
surpreende crianças e adultos. Mais do que cológicas. A identificação com personagens uma fabricação, de urna disposição de con-
um conhecimento técnico dos efeitos, a com- não é mais requerida. Ela é substituída por venções e técnicas do corpo para torná-lo
preensão dos efeitos especiais e dos passes de urna dialética entre UIna estética da identifi- eficaz e expressivo, integrá -lo no conjunto
mágica necessita de uma compreensão de suas cação psicológica e do formalismo abstrato. Encarnação do grupo e depois na representação inteira.
fun ções e poderes na dramaturgia do espetá- Volta -se assim aos inícios da reflexão filo - Trata-se de colocar a peça, o texto, o discurso
culo. Esses efeitos participam, portanto, de
pleno di reito, da estética da encenação, eles
não permanecem simplesmente decorações
sófica sobre a empatia, a de Wilhelm Wor-
ringer, que opõe empatia e abstração, con10
a sensação estética oposta à forma abstrata',
I
,
f,
fi
Fr.: inc.arnation; Ingl.: Embodim en t; AI.:
Verk6rperung (lnkarnation).
no corpo pensante dos atores, e não em posi-
ção de superioridade e de precedência. Tudo
se encarna assim nos corpos em represen-
acessórias, divertidas ou impressionantes. Na análise de urna rnise en scêne, presta-se o .francês não consegue expressar o termo tação' mesmo o poder e o capital, segundo
atenção às referências aos elementos huma- inglês ernbodiment, pois a tradução por incar- Bourdieu. O performer, notadamente o dan-
nos, a um referente que se reconhece. Por ém, nation enl português, «encarnação" é por
çarino, acumulou, "capitalizou': técnicas de
ao mesmo tempo, distinguem -se linhas de demais carregada religiosamente, enquanto atuação, fez escolhas físicas, moldou certa
força, estruturas, figuras geon1étricas COIn incorporation é tanto teológico e ligeiramente gestualidade-, formou e deformou a corpo-
Ernuatla as quais o teatro contempor âneo trabalha, arcaico corno reservado à psicanálise, quando reidade- que ele recebeu e recriou ao mesmo
segundo uma esp écie de radiografia esque- não ao. serviço militar. .. O termo de Freud tem.po. Não é necessárioiraosextremos da
Fr: ernpa tnie , Ing l.: empo tby; AI.: Einfühlung.
mática e abstrata da obra. É a tais estruturas, (Einverleibung) paraincorporationremetea
body artr, de agarrar, de eletrificar o próprio
Esse termo da psicologia também é utilizado aparentemente frias e vazias, que o especta- «um modo de relação com o objeto que tende
corpo corno Stellarc, nem de operá-lo perio-
na teoria do teatro, no sentido de identífi- dor aprendeu pouco a pouco a identificar-se. a fazê -lo penetrar em si; permanecer em si dicamente para fazê -lo mudar de identidade,
-'-mesTil-6~- ã(fmeii-os fantasmaticamente?', Sem
' caçãoo. faculdade 'de identificar-se COIn Assim, a empatia não se dirige unicamente como Orlan se empenha. Basta utilizá-lo,
outrem, pôr ern seu lugar para sentir o à psicologia dos atores e dos espectadores. Ela dúvida, a teologia e a psicanálise nos ajudam treiná-lo, testar nele as t écnicãscorporais
que ele de tornar parte em seu sofri- diz respeito à estrutura das obras de arte. Ela a imaginar esse processo de personificação, para que toda uma cultura se encarne nele.
menta. identifica -se por empatia COIn se aplica também ao movimento, podendo de penetração no corpo, mas elas não con- Nem corpo encarnado segundo umessen-
uma persqnageln, mas também COIn urna cada qual identificar um movimento e imagi - vêm à problemática do ator, àquilo que se cialismo biológico, nem corpo que nega toda
situação dramática e uma encenação em pro - nar corno vivê-lo, segui-lo e reconstituí-lo: é o poderia chamar de sua mise en corps , sua 'm at erialidade- e toda ancoragen1 biológica
cesso de feitu ra. O espectador-, por seu turno, fen ômeno da empatia- cinestésica-. D ee Rey- "incorporação" "Mediação do corpo" seria
em proveito de um construtivismo social:
identifica-se .m ais ou menos à personagem nolds fala da ernpatia afetiva, quando o afeto urna possível tradução de embodiment, indi - assim se apresenta tllna concepção dialética
encarnada ou significada pelo ator e, além dele, se liga à ernpatia cinest ésica: "Ligar a enlpa- cando bem.que tudo o que faz o ser humano do embodiment.
ao universo artístico e ao que este refere. Con10 tia cinestésica mais ao afeto do que à emo- se realiza no e pelo corpo, o qual funda assim
para a identificação com uma pessoa, iden- ção, significa que ela pode ser considerada sua relação com o mundo. É preciso, antes NOTRS

tificamo-nos com qualquer um, mas sempre corno uma intensidade encarnada que tem de tudo, evitar a maneira ingênua de dizer Roland Chernama; Bernard Vandermersch, Diction-
que o ator se encarna em um papel: maneira nairede ia psychanalyse, Paris: Larousse, 1998, p. 191.
en quanto um indivíduo específico: a identi- U1l1 impacto sobre o espectador de maneira
2 Judith ButlerPerforrnatíve Act s and Gender Con -
dad e (social, sexual, cultural etc.) desempenha cinestésica. " A empatia é urna noção chave da mística de sugerir que ele muda de corpo stitution : An Essay in Ph en om en ology and Fem in ist
um papel determinante no reconhecimento do estética contemporânea. Vinculada ao afeto, para entrar naquele corpo, fictício, de sua 'Iheory, em Sue -Ellen (ed.) , Perjorming Femi -
personagem. nisms: Pemi nist Criti cai and Theatre, Balti -
outro. Deve-se, portanto, perguntar-se sempre à percepção e à reconstituição do movimento mo re: The Iohns Hopkins Press,1990 ,
a partir de quais perspectivas, conscientes e pelos espectadores individualmente, ela abre O processo do embodiment é mais pro- p.272 .
inconscientes, o espectador se identifica e se novas perspectivas para a criação e a recep- saico e mais útil à compreensão do fenô-
prende ao ator e ao espetáculo. ção de obras. meno teatral. É a lnaneira pela qual o corpo
Na perspectiva mais recente de uma teo- humano adquire um 'savoir -faire prático, se
ria emocional e cognitiva da empatia e dos NOTRS concretiza a partir de determinismos sociais,
afetos", tende-se atualmente a considerar a vv. Worringer [1908], Abstraction et Einfühlung: COl1 - ultrapassa sua dimensão puramente material
tribution à la psychologie du style, Paris: Klin cksie sk,
identificação mais corno UITI encontro afetivo ematerializa possibilidades, potencialidades.
1993·

9~
95
Escritor de Palco Escritura Oramática

Escritura Dramática dramática é sempre relê-la na época em que instrumentaliza amiúde o teatro como tera-
Palco
ela se desdobra. pia coletiva ou como literatura ilustrada. Mas
Fr.: ectivoin de plateau, Ingl.:staqe-wtiter, Fr.: écriture dtainatiq ue; Ingl.: dtarnatic writing; Metaforicamente, a suposição é que os a mise en scêne não é nem uma expressão
;\ 1.. Bühnenschriftsteller. AI.: DrornotischeSchrift. encenadores têm certo estilo que passa pela corporal desenfreada nem um alambique
expressão cênica: a escritura cênica, termo para destilar a essência dos textos.
Encontra-se essa expressão desde o É um dos numerosos terrnos empregados forjado por Roger Planchon, que insiste na Com frequência rejeitados pelos "escri-
começo do século XXI.Tomada ao pé da atualmente, com todos os mal-entendidos ideia de que a mise en scêne escreve com a tores de palco", por medo de serem taxados
letra, ela não tem muito sentido, pois ligados a UDJ.l:L~.o inexato ou metafórico de cena em sua totalidade e que ela constitui de texto-centristas e de passarem por lite-
emprega termos contraditórios, fazendo conceitos de escritura e de dramático. uma linguagem autônoma. A escritura do ratos, os autores dramáticos encontram-se
'crer que se trata ainda de escritura criada palco servida por escritores de palco· retoma, na defensiva', Fizeram-lhes crer, nota Pom-
para estar apta para a cena, para ser 1. JOGOS DE PALAVRAS no fundo, a mesma ideia: tudo parte da cena, merat, "que eles não eram capazes de pôr-
"cênica': Ma5, na realidade, esse termo. se corno espaço substitutivo da folha branca. em cena [... ] Fantasiou-se tal modo a res-
refere urna prática recente que desejaria Escritura dramática' (dranlatic writing) pro- Continua-se, assim, aliás, no quadro tradi- peito dó escritor, do autor, do grande artista,
que o escritor de palco fosse um "criador cura dizer duas coisas: 1. A escritura remete ciona1 de um teatro ligado a um espaço limi- do gênio, sacralizou-se de tal modo o poeta
c ênico" que substitui o encenado!' e é um a qualquer coisa escrita, seja qual for a língua tado e criado pelo hom.em. escritor, o texto, que se.inibiu.muita gente">.
"escritor ao máximo possível próximo do ou o suporte, e utiliza urna língua natural, Outra terminologia, retomada por Clyde É fato que pouquíssimos artistas possuem,
palco'", integrado em um dispositivo". por mais retrabalhada que seja; 2. A dram á- Chabot, opõe a escritura textual (pleonasmo) como Ioêl Pommerat ou Simon Mcburney,
tica indica a forma do texto; esta forma está à escritura cênica (oximoro) segundo a a arte de produzir.uma encenação e de ela-
o escritor {coisa totalmente diversa ligada ao drama, à ação tornada em sua teu - mesma clivagem", Escritor/escrevente: esta borar simultaneamente um texto que será,
d e u mescritor d r amá tico para a cena: tra- são, a uma ação representada por actantes outra célebre distinção de Barthes aplica-se em seguida, r:ão apenas legível porque publi -
ta-se de UIYl artista que trabalha a partir do (forças atuantes), geralmeute personagens. ao teatro. O escritor não escreve para cum- .ad o, mas, sobretudo, de um grande cui-
a partir de um texto que se quer Escritura teatral, caso se queira ver aí uma prir uma tarefa, para fornecer um material dado literário, e seu
'. '4 "~~ A" '''~ e at e , Lll'TI não verbal já noção diferente; éa.escritura.que insiste no direta e-transitivamente adaptável. O escritor enigma. contra o
que se que r "realizar': Artistas uso da cena, da representação; da encena- , produz um texto, uma literatura dramática, ,fin1 da leitura -de textos e fadiga das ence-
.l., Robert "Vilson,
..I.'\,} ? ;'U ,l'-"-J , "-.J q,.'} l. '-J. .LJ.;l '- '-. ção, sem que as três palavras sejam sinôni- que possui um valor em si. Essa literatura . nações que fagocitarn inteiramente os textos
ou [oél Pommerat corres- 111 8.S. A ambiguidade vern desse teatral: é este dramática nã-o tem necessariamente de ser seln evidência de ganho, observa-se desde a
categoria. Essa denominação o teatro clássico (então o termo é sinônimo traduzida e prolongada em uma encenação. virada -do século uma vontade de voltar ao
D l~' l por Bruno Tackels em sua série
.... 'r .::>('r·"'l. rVJ de "dramático")? Ou então refere-se a cena, · ~m· col11p ensação, o escrevente já tem uma sentido do texto, em vez de contentar-se com
de nas Éd itions des Solitaires a representação? ideia das razões que o impelem a escrever, os efeitos do sentido. Danielle Sallenave, qu e
In ternpes tifs, consagradas aR. Castellucci, P. .A. escritura, entre a língua e o estilo: tal .é seu trabalho é utilitarista. O escrevente de foi conselheira literária de Antoin e Vitez,
Del bono, R. Garcia, F. Tan guy, A. Vassíliev e a concepção de Barthes em Le Degrézéro de teatro considera sua produção textual como remonta aos anos 1970, quando Vite z mon -
...Ã_,_ v . .... ..., ~k .... .Mn ou ch kine (o que ne steúltim o
.. lécriture (O Grau Zero da Escritura, 1953). um simples canevás, Ul11. cenário transitório tou, em 1975, Catherine, segundo Les Cloches
É urna maneira de se exprimir, um conjunto e transitivo a serviço do encenador. de Bâle de Aragon: "Brilhante, espetacular,
l\ . da escritura de palco não difere de dispositivos estilísticos e dramatúrgicos que ousada, a encenação de Catherine mostra
fundamentalm ente daqu ela que os britânicos concernem à .maioria dos textos dram áticos. como se poderia chegar a entregar não mais
ern especial denominam em nossos dias devi - Mas a escritura é também "a relação entre 2. A ESCRITURA DRAIvlÁTICA HOJE EIvI. DIA o sentido d9 texto-mas-apenas osefeitos dos
th eater, um teatro fabricado por muitos) a criação e a sociedade, ela é a linguagem sentidos descontinuados - ficando a cargo
nítida entre ator, encenador,
r11 C' r 1 y \ r ' \ f > literária transformada pela destinação social, Situação paradoxal: todo mundo docen- do espectador 'montá-los, por sua vez, de
""'.I- ·e-• . :~v, cenógrafo et c., unl teatro nã o
LL.I- ..... <.A. .... ela é a forma apreendida em sua intenção tes, instâncias e expertos culturais - se inte- modo al éatório [... ]. Nós mesmos nos torna-
tanto de cria cã o coletiva- (corno nos an os humana e ligada assim às grandes crises da ressa pela escritura dramática, reivindica o mos mais céticos ante os 'direitos' da encena-
196 0 e 1970) quanto de colaboração interar- hist ória". l\.. escritura drarnática absurda, por direito à edição de textos. Ao mesmo tempo, ção: nós compreendemos que eles acabariam
tísti ca qu e recusa as especializações derna- exemplo, recorre a alguns temas e a algumas ninguém mais lê teatro contemporâneo, os por nos dispensar de todo o 'dever' para com
retóricas recorrentes. .A escritura pós - alunos não podem escapar dos clássicos, o texto,"> Se podemos, por certo, fazer mui-
-dram ática- observa certo número de prin- mas dispensam muito bem ler seus con- tas coisas eruditas e lúdicas com os textos,
NOTR
cípios que negalTIa representação mim ética ternporâneos. A escola primária e secundá- cumpre ainda estar consciente das conse-
ou o uso de p ersonagens. Ler a escritura ria tem muita dificuldade para se situar: ela quências desses atos.

96 97
Escritura Dramática Escritura Performativa

3. IMPACTO DOS ESPETÁCULOS E DAS ern urna interrnidialidade-, mas as rnídias sensibilité (encenação da sensibilidade) são pelos acentos complacentes, mas pelo
MÍDIAS NA ESCRITURA DRAMÁTICA numéricas, presentes e por vir, aceleram os palavras-valise sem alça". Esse embaraço ter- grão da voz (grain de la voix), que é um
modos de criação e, portanto, de recepção. minológico trai a confusão de UIna teoria misto erótico de timbre e de linguagem,e
o alargamento do teatro, no sentido grego ocidental que não consegue se libertar do pode, portanto, ser, por sua vez, tal como
e ocidental, ao conjunto infinito de práticas dualismo do texto e da cena, da escritura e a dicção, a matéria de urna arte: a arte de
espetaculares e performativas transforma a 4. QUAIS TENDÊNCIAS? da ação, do verbo e da encarnação". Somente conduzir o próprio corpo (daí a importância
identidade literária ou simplesmente textual uma reflexão sobre a de auto- nos teatros do Extremo Oriente):",
de todas essas práticas culturais. As palavras "-'A produção textual é demasiado massiva e res -encenadoresque identificasse asetapas e
de um ritual, de uma conversação, de um variada, demasiado diferente de um país a as interações do t rabalho teria alguma chance ". .Esta escritura em voz alta é, pois, a maneira
desempenho de papel não têm a mesma fun -: outro, apesardaestandardizaç ão da.globa- de nos fazer avançar, tirando-se de uma dico- como o corpo é exposto pelo ator, pela
ção que de uma de Koltes lização cultural, para que se possa . . . . ,L" ;;.,.............
J.'J' ....... tomia desde sempre arcaica. modulação de sua voz, por tudo aquilo que
ou de Sarah Kane. Deve-se analisá-las em nela diferentes correntes. Quando muito, é sensível fisicamente no seu jogo de atua-
fun ção da ação realizada, e não de seu valor . observa-se, visto de muito longe, algumas NOTAS ção. Atarefa do ator não é, portanto, a de
estético ou de seu estatuto ficcional. grandes tendências. O efeito das mídias e do de lécr itu re [19 53], Oeu - desempenhar um papel segundo os códigos
1993, 1, p.
O impacto das e não é desprezível na sofisticação da Théâtre/Public, n. 184, jan. 2 0 0?- (Th éâtre contempo- do verossímil, mas é o dar a sentir aquilo
digital sobrenossos vieses é hem con h e- maneira de contar) de dispensar a linearidade rain: écrituretex tuelle, écr itu re scé nique .) que escapa à semântica do texto e às situa-
cido, a rnu tação que eles acarretam sobre os do relato, de ser capaz de seguir e de emba- Tal é a nítida impressã o que se tira das entrevistas dos ções psicológicas, aquilo que o corpo trai.
EAT, os Écr ivai n s Associ és du Th éâtre, em TAuteu r
textos em ge ral é menos conhecida. Ela ralhar diversos fios narrativos. Paradoxal- Lavan - No vocabulário de Barthes, trata-se de escri-
objeto de centros de pesquisa como o C en - mente, o retorno da 'Storytelling e do teatro th éâtre, 2010. des quatre vents.)tura no sentido de. estilo, de aporte pessoal e
tre :Nati on al d es É~-l~Úure-s dCés -Spectacles em de na rração se explica talvez pela digitali - " , 4·· [o êl-Pommerat, Versl'autre langur:: , Théâtre/Public, físico, de corporeidade.mais do que de per-
Villeneuve-lês-Avignon: entender "os d es - zação de nossos' vieses e por nossa arte d e·-· s ~'a~~11:n. forrnatívidade-, a qual concerne àaçãorea-
Iocamentosou.mutaç ôes que se op erarrl ern contar O T"\n.~· . •r ••- ' • .
force HJnnOs>.O·lO : ,···· ·, ·, "'· ,·····J.·.....·""....•.......
!\. , .... não à erótica do corpo.
UlTIa época. de transição en tre a cultura do ' mático- explora, ele tamb ém, 'simplesmente 6 FrancBauchard, Bulleti n du CN ES, 2011, P. 3. A escritura em voz alta é a razãopelaqual
impresso e.os ambientes digitais" A hipótese essa faculdade e,essa sofisticação da na rração) Pornmer at, apropósito de Au monde. se.vai escutar.o ator ou o can tor. O ouvinte-
é que "o digital é'u lna aposta central p ,ara essa virtuosidade da construção formal qu e Manteve-seemfrancêsas'combinaçõesverbais reali- -esp ectador fornece o par simétrico dessa
zadas p elo autor nas palavras-valise. (N. da T.)
oteatro. vriamedida en1 que '-''V' ,.... u .J '- ...."" ""J. não se sente mais a fazer liame 9 Patrice Pavis, Dela fid élit éou la vie d ifficíle ducouple escritura: a leitura corporal corpos de can-
transformar; nossas tecnologias intelectuais. com a realidade política e psicológica. Todas texte/répresenta tion , La Mise en sc êne conternporaine. tores-atores, O prazer auferido dos ritmos,
Ele toca na escritura, na mem ória e m esm o, -essas experiências convergem para a vo n tad e Paris:Arrn an d Colin, 2 01O,p. 299-311 (Irad. br as.: Da das "fricções" de seus corpos sobre o dele,
Fidelidade: Ou Cami nho da Du pl a Texto/
parece, em nOSSOs modos de pensamento'". anunciada, não sem esforço, dé co n fr on tar Representação, Contemporâne a, São O que Barthes descreve como "o corpo anô-
A de suporte da le~tura, do livro escritura textual e escritura cên ica ou, dito de Paulo-Perspectiva, 383 -4 00). nimo do ator na minha orelha: essa gránula,
telas ele todos os gêneros.fern repercussões modo sim ples, para urna nova'concepçã o do essa crepitação, essa carícia, essa esfrega, esse
na maneira como nós escrevemos, lemos, texto e da escritura: "Eu considero': nos diz corte: esse gozo" Cp. 1529).
111as tambémouvimos e percebemos os tex- Põrnmerat, "o trabalho da encenaçãocomo
NOTR
tos no quadro de sua representação...Os ence- umtempoda escritura por inteiro. Eu não
Escritura em Voz RIta Roland Barthes, L e Plaisir d u text e [1973], Oeuvres
nadores sabem muito hem disso e, em vez 111e sinto' autor-cncenador, mas autor sem comp letes) Paris:Senil, 19 94, t. 2, p. 1528. (Trad . br as.:
de virar as páginas do livrocomo cenas ou mais. "Qtl a"nd o faço os atores trabalharem, O Praz er do Texto, São Paulo: Perspectiva, p. 77.)
Fr.: éaitu te â haute voix; lngi.: writing aloud;
quadros sucessivos, deixam seus espectado- continuo a escrever minha peça'". AI.: LauteSchrift.
res ceabri~)aIl~lªs': multiplicando ao infinito, Sob todas as formas possíveis, a escritura
ou quase, as possibilidades da dramaturgia, não cessa de fazer um retorno. A palavra per- Roland ~arthes! a quem devemos es ta
da p~rcepção e da recepção. Essas modifi ., deu, pois, seu sen ti d o literal e tradicional, expressão e esta definição do prazer
Escritura Performativa
ca ções, que são muito mais adaptações téc- ela não se resolve, no criar UI11 textual, propõe nomear assim a.parte .
Fr.: écriturep erformp tive; Ingl.: performative writing ;
nicas, impõem que tanto os artistas corno novo con ceito que desse conta da pl astici- corporal da voz, não sua expressividade AI.: performativesSchreiben.
os teóricos revejam seus modos de produ- dade da escritura cênica: a de mise en scêne psicológica, mas sua dimensão corporal e
ção e de análise dos textos e dos espetáculos. parece já impróprio para a prática atual; mise pulsional. A escritura em voz alta Toda escritura é performativa, na medida
i\ escritura, quer ela seja dramática, cênica en per! (encenação da performance), perfor- "é conduzida, não pelas inflexões em que ela se realiza e çhega à existência
ou performativa, se inscreve desde sempre mise (encenação de performance) e mise en dramáticas, pelas entonações malignas, no próprio ato de sua invenção e de sua

98
99
r
Escritura Performativa
I Espaçamento

enunciação. Isso é evidente por si para artistas que se sentem autorizados a produzir representação, o que exige, de novo, passar Escritura Sonora
a escritura dramática ou para a escritura discursos, a realizar obras muito conceituais, a pelo discurso e por uma série de mediações
cênica, as quais propõem certo número refletir sobre sua criação, a ponto de interrom- entre a obra e o público que a recebe. Fr.: écrituresonore; Ingl.:sonic writing;
de enunciados que são outras tantas pê-la se as circunstâncias não estiverem reuni- As rnediaçôes são, entretanto, tão numero- " AI.: sonoresSchreiben.
sugestões para a encenação. Mas o que das. [éróme Bel, por exemplo, se vê como um sas e tão complexas que elas cavam necessaria-
acontece com a crítica dramática, a artista conceitual: "Eu não faço nenhuma dife- mente um desvio entre o espetáculo e o crítico, Termo de Daniel Deshays' e da teoria contem-
conversação ouo comentário sobre um rença entre as obras artísticas e os discursos. e depois entre o crítico e o leitor. Ora, trata- porânea da dramaturgia" do som": a corupo-o
espetáculo? São eles, podem ser eles São a mesma coisa para mim." Muitas vezes, -se também de reconstituir essas mediações, sição sonora de um espetáculo. De acordo
também perfonnativos? hoje em dia, a obra artística é menos uma obra- as quais são igualmente históricas, culturais, com as pesquisas recentes sobre drarnatur-
_. _..-coisa, material e sensual, do que uma obra pro- ideológicas e socioecon ômicas. Com paciência gia do som (Kendrick e RoesnerOvadija),
Tal é em todo caso a tese da escritura perfor- cessual, conceitual e discursiva. e determinação, conseguir-se-á trazê-las àluz o som no teatro não é um simples acompa-
m ativa que alguns críti cos e teóricos propôem Reencontrar o elemento desencadeador. o e dar a compreender, em seguida, corno elas nhamento sonorizado do texto, é um a ação,
como método de análise e de interpretação traço da escritura, o afeto e o envolvimento do são retrabalhadas no crisol estético, corno um uma performance que envolve todo o espe-
de um espetáculo no sentido amplo (perfor- corpo no jogo da atuação: tal parece .ser a tarefa modelo reduzido, mas sobretudo experimental táculo". Para Ovadija, «adramaturgia do som,
mance estética ou cultural p erfonnance). Sua da escritura perforrnativa. Esta última é sem- do mundo. Enfim, trata -se de estabelecer como desde suas fontes na vanguarda até as práti-
maneira de escrever dependeria do objeto do pre, nota Carl Lavery, um pós-escrito: "um elas infiltram e colorem a percepção cinesté- cas atuais, se desdobra segundo duas iinhas
qual ela dá conta; ela tentaria restituir no tra- arquivo vivo que ajuda o analista a se reinves- sica. Pois a empatia cinestésica não está apar- inseparáveis e imbricadas - o poder gestual
balho da escritura «a força afetiva do evento tir com o afeto perdido de um corpo ausen- tada do mundo, ao contrário, ela o banha. Ela da voz do intérprete e as qualidades estru-
espetacul ar"\ a descarga de afetos e a reação te"', A ideia é, portanto, a "de utilizar o texto é, portanto, mais ou menos consciente para o turais do som cênico">
direta do cr ítico. J\.. escritura crítica, e até teó - corno um método de pós-escrito para revi- espectador e para o utilizado r do movimento:
rica, seria também urna performance abalada sitar, corporalmente, um evento espetacular ela foi adquirida por repetição efreino; traz Õ NOTRS
pelo objeto de que ela dá conta, objeto que que desapareceu" (p. 38). Reencontrar o corpo traço de práticas cultur':lis ~~ . ~oc:iais diferen= 1 ~~~l~~~~~~~k~~:~e:~i~Zs pour un e écriture du
desapareceu .e não pode ser mais reconsti- ausente não é, todavia, algo que avança por tes, que lhe dao um'-co~J ~~t; â~ -id~~Úd~d~~ s~'·
• 2 Lynne Kendrick; DavidRoesner (eds.), Theatre Noise:
tuído, salvo.talvez, justamente, pela escritura. si só. Com efeito, é preciso então reconstituir que podemos, por certo, retrabalhar e rnodi- TheSoundofi Perjormancé, Newcastleiipon Tyne :
O crítico seria um porta-voz do aconteci- a situação na qual houve UlTI breve instante ficar, em determinados limites de tempo, de Cambridge Scho1ars Publíshing, 2011.
mentoscênico, um bar ômetro ou um sismó- captado e encarnado pelos atores e pela cena b Ih d Id d 3 M1aden Ovadija. Dramaturcv ot Sound
-Garde and-Bostdramatic ~ ..~~v. Á ' ÁV"" ,~"
1

tra . a o e e rea i a e social. Captando essa... 'V) .... '''' ...

grafo dª,.energia produzida pelo espetáculo, inteira. Tarefa delicada, mas não impossível, se corporalidade e essa sociabilidade dos atores Quens University Press, 2013, p. 207.
um pipeline para a energia libidinal da pro·- são dados os meios de passa r por uma elnpa- e do espetáculo, o crítico perforrnativo deverá
dução cênica. O ato da escritura performa- -tia cinestésica, noção sobre a qual trabalham atentar a todos esses parâmetros, analisá -los
tiva deve r é-atuar no jogo do desempenho atualmente numerosos pesquisadores". para em seguida reuni-los em uma nota de
(rejouer) aquilo que n ão poderia ser dado A empatia- cinestésica permite ao espec- síntese para o uso de seus futuros leitores. Por
corno uma constatação ou urna descrição tador compreender, viver, imaginar e tenni- certo, ele pode também acalentar a ambição Espaçamento
neutra. Em termos de linguística dos per- nar um movimento. Poderá esta faculdade de aproximar seu leitor da experiência pessoal
formativos, dir-se - á qu e é um performativo ser transmitida aos leitores que não terão passada, de acompanhá-lo nessa transferên- Fr.: espocement; lngl.:spocing;
(que produz urna ação por sua simples enun- assistido ao espetáculo, aos espectadores cia da experiência ao instante presente, mas 1\1.: Abstandsbildung.
ciação) e não U111 constativo (que se limita a que, conquanto presentes, terão esquecido com a condição, todavia, de conhecer ou de
descrever um estado de coisas). o pormenor dessa experiência física? A coisa imaginar esse futuro leitor para o qual ele se Esse termo parece emprestado de Mallarmé
A crítica "perforrnativa" assume sua posição não é fácil e poderia ser que se esteja depo- esforça enl escrever o mais exatamente possí- ('<Uln espaçamento da leitura", em Un coup
artística, sua estratégia de autor, seu estilo pró- sitando demasiadas esperanças nesta noção, vel a experiência física. de dés - Um Lance de Dados}. Derrida o cita
prio. Certos críticos consideram seu trabalho ou poção, neste milagre. Pois esta empatia em epígrafe em A Escritura e a Diferença
NOTRS
corno dotado da mesma criatividade que uma não é nem universal e nem sempre cons- Peggy Phelan, Unmarked: ThePoliticsof Performance. (1967). Esta noção permite compreender
obra de arte, ou que a obra por eles comentada. ciente, e sua transmissão não garante abso- London: Routledge, 1993) p. 12 . com o a encenação se inscreve no espaço e
Performance Research,v. 13, n. I, mar. 2008 , p. 46. notempo ao instaurar os quadros espaço-
Ocorre tamb ém, embora muito raramente, lutamente que se restitua o objeto tal qual.
3 Carl Lavery, Is There a Text in This Performance",
que artistaselevam a crítica ou a teoria ao Além disso, a corporalidade não é senão um Performance Research,v. 14, n. 1, mar. 2009) p. 39.
temporais. Derrida evoca (mas não definiu)
grau de obra de arte e, portanto, a conside- aspecto da experiência teatral. Resta avaliar 4 Ver)supra) em Empatia", o livro de Reason and Rey- a diferença- .com o «o espaçamento pelo qual
ram como igual a esta. Trata-se, é verdade, de a significação estética, política e moral da nolds, 2012 . os elementos se relacionam uns aos outros?'.

100
101
Espectador Espectador

Esta diferença, não a diferença como modi- NOTRS As respostas a essas questões sobre o espec- diante dos acontecimentos representados.
Iacques Derrida, La Diss ém inatio n, Paris: Seu il, 197 2 ,
ficação, mas como momento de espera e de tador não são evidentes por si: não apenas Sob o patrocínio de Artaud, ele se projeta,
P·3 8 .
retardamento, "não é uma distinção, uma 2 Jacques Derrida; Elisabeth Roudi nesco, D e quoi porque recorrem a mecanismos e exigem ao contrário, no acontecimento único, não
essência ou uma oposição, mas um movi - demain. .. Dialogue, Paris: Fayard/Galil ée, 200 1, p. 43. conhecimentos por demais variados para repetível, esperando assim escapar à "clau-
mento de espaçamento, um 'devir-espaço' serem dominados por uma única pessoa, mas sura da representação">(Derrida a propó-
do tempo, um 'devir-ternpo' do espaço, uma sobretudo porque estas questões se coloca.m sito de Artaud), no event de Cunninghan
referência à alteridade, a uma heterozeneí - diferentemente em e em todo novo e nas actionsde Cage. O esoectacor eSD()Ca
dade que não é de início oposicional'". contexto cultural e sociaL Em vez de um ponto sua futura carreira brilhante de "partici-
Espectador _ .. .,.__..._ . .__.,_.__.S1le_Y]lsta, _lUllY(~IS;ll,. lslot1al, _e. t:stáLY.:eJl, _deYf~::sf~.df~ _.__ pante"
i\.. escritura dramática é espacial. 'N ão só
naquilo que ela coloca no espaço cênico ou preferência instalar uma visão histórica, rela- - - - - - - - - - - - - - - -
Fr.: spectateur; lnql.: speaator; AI.: Zuschouer. ~ _ Anos 1970: O espectador é cada vez mais
dramático para existir, mas porque o jogo tiva, circunstanciada, levando em conta tanto
bombardeado por performances pós-mo-
do ator assim como a mise en sc êne dese- a variação do objeto observado como o olhar
1. DESFORRA DO ESP EC TA D O R dernas· e pós-dramáticassspara as quais
nham formas espaciais graças à dicção el múltiplo e lábil dos esp ectadores.
lhe falta ferramentas d e análise. Ele está
ou ao desenrolar temporal. Nesse sentido, Durante muito tempo esquecido pelos artis - Quaisquer referenciais históricos, válidos,
- - - desarmado diante de semelhantes espe-
encenar é desdobrar materiais, notadamente tas de vanguarda, reduzido a uma quantidade eles também, somente em unl contexto cul-
táculos da desconstrução e, ao mesmo
sonoros e te xtuais, no espaço, sej a ele o con - negligenciável ou a um mal necessário para tural e geográfico, no caso o contexto fran-
tempo, as encenações "brechtianas" e
ou o ponto de partida para ação a o espectador havia . . . . . cês e, às vezes, europeu do pós-guerra, nos
v
'J .. II-'UL·.... "" ......... "dramaturgicamente corretas" dos clás-
irradiada pelos dos atores das um da reflexão e artística perceber a relatividade que sicos levadas ao seu de +"", rr..n
1""'\"" ...

coisas. O espaçamento é um na geral. Desde o começo dos anos 2000 , se pensava ser uma evidência: o esoectaoor
eo aborrecem-no cada vez
~ cênica , O ator coloca espaços, do
.. •. ,', . • • .. ,. . , ....._'- .• • I' ••
tem sua desforra: não se fala mais senã o del e Há de se ver aí igualmente uma confirmação
mais. A semiologia, método de leitura-
"jogo" entre as ações. As imagens também nos colóquios, nos talk shows e nas publica- de que é necessário propor ao mesmo tempo
então dominante, mostra seus limites
tornam posição: elas tomam p artido einves- ções. Ele se tornou às vezes U1n álibi para não quadros históricos precisos, fazer a história .: . das ob di cc,
ante a elnergencla as o ras ítas pos-
tem no @spaço. do espectador (ou da maneira d e olhar) e _ . "~.
se encarar mais em demasia a antiga questão . 1 . d
I .' _ . .

'.~- -dramáticas . 1 elacão teatral, metafora


.i l.
_ . ,

Cert os ence:nadores procedem (avan - do público e de su a decomposição em inu- propor uma teona aue eve em consi eração · - ,
• J. , • do encontro do ator e do espectador, con-
çam ) p qf;quadros, estabelecendo referenciais m eráveis grupos distintos. Ora , e~s a op osição essas mudanças his t óricas, notadamente as id d '. ,/\ . d . d
i ' 1 SI era a a essencia o teatro ) segun o
espaçotêmporais. Esses quadros são senlpre entre urna concepção sociológica, emp írica, d a pratlca teatra . . ' mal ao
- - -- .' Grotowski ou Brook, aplica-se
sequênciascronológicas, mas patterns, figu - do público e urna abordagem psi canalítica el pós-dramático. A ho r a de pôr em causa
ras assinaláveis e repetíveis. Quando Robert ou do sujeito teórica, 2. SOBREVOO HISTÓRICO DOS ESTUD O S
o COl110 decodificador e dra-
monta As Fábulas de La Híl1r1'/711r1 0
em entre o real, o vielver, SOBRE o ESPECTADOR
maturgo soou.
reencontramos, de uma fábula p ara vedor, esp ectador sujeito
mentos que respeitam espaçamentos, da enunciação, esta oposição é justamente o ~ Anos 1950: o teatro, em especial o teatro .. Anos 1980: O passa r ápida-
mentos visuais e gestuais, o que assegura uma popular, esforça-se por aproximar seus . mente, quase sem transição, d e um tra-
qu e a pe squisa deveria hoje procurar sup er ar' .
unidade rítmica e estilística. Outros encena- espectadores, criar U111a comunhão na cul- balho de decifração se m iológico a uma
O espectador é urna falsa bo a no ção , pois
dores "colocam" de preferência imagens que tura de grandes textos postos à disposição deriva, e até a unla imersão· em uma
nã o h á nada mais difícil de analisar do que
p ar ecem deter o tempo, ao menos por um de todos. O espectado r esque ce suas difi- cultura perform ativa às vezes desconhe-
uma p essoa d iante d e uma obra d e arte :
ins tan te, esc avando então formas espaciais culdades socioecon órnicas do momento, o cida. Ele evolu i em .uma fase "culturalista"
corno saber o que ela p ensa e sente? COlDO
ligadas à temporalidade e às artes plásticas teatro representa o interesse geral e a prá- em que tudo é qualificado de cultural e
abordá-la sem atemorizá-la? O que se quer
estáticas. tica da cena é "generalista": ela se dirige tudo pode tornar-se um objeto espeta-
sa be r dela? Quais identidades rea grup a? Há
O espaço não é mais concebido somente a todos evitando fragmentar o teatro em cular. Esses an os assi st em à renovação
interesse em sua pertinência sociocultu ral ?
C01110 Wl1 continente, mas grupos isolados e espec íatizados. de métodos de pe.l)qLLis~l~e-lú~zejotÍ<')nsiis-
Cab e o lhe pode
corno uma aberta e m óvel, • .Anos 1960: os tornam-se thetik (Iauss,
tr ar e função de éticaiSe o
olhar do observador. A encenação vos, até reatívos--seja na arte da 'ponse
procura é desvendar seus segredos, quais
contemporânea é assim levada a seguir um mance, .do happening e dos espetáculos são duas"teor ias da aplicáveis ao
eles e para que fim? Todo ajuste implica uma
percurso, a ligar-se e a indexar-se nos des - ligados a manifestações públicas ou polí- teatro. Os estudos emp íricos - do público
série de questões cognitivas: corno se com-
locamentos do público. ticas. Sob a influência de Brecht, o espec-" sobre os espetáculos abundam, aprofun-
preende um espetáculo, como ele é recebido
tador é convidado a recuar eln sua posição dando ainda um pouco mais o fosso que
física, emocional e intelectualmente?

102 103
Espectador
rI Espectador

o separa do estudo do espectador C01no leitor ativo e um telespectador passivo não Nem os textos nem as encenações podem relato (seja ele textual, visual ou de outro tipo).
analista-intérprete da encenação. tem mais muito sentido. prever e, portanto, inscrever suas futu- Graças à apreensão de um quadro (fi"iiin.e)-;o ·- ---- ·--- -
• Anos 1990: Em uma época cada vez mais Esse breve sobrevoo do espectador oci- ras interpretações. Adivinha-se às vezes as leitor instala uma situação, apreende as ações
antiteórica e apolíticacapós. a virada do dental desses últimos sessenta anos basta "intenções da obra', sua estruturaesua estra- interior de uma situação já viviaa~ O argl.:.: . l- ~
fi111 do comunismo, o espectador sente-se para nos persuadir disso: o espectador não tégia, mas nunca se está seguro de levantá-las
desorientado pelos experimentos muitas poderia ser estudado sem um conhecimento com justeza e, menos ainda, de que a chave previsível a partir da lógica que .nósconhe..--..--
vezes formais da performance pós-mo- histórico e sociológico das expectativas de proposta será a melhor e a única possível. cemos de antemão.
derna e pós-dramática. Esses espetácu- cada época, nem sem um estudo estético das Não há nada de previsível, nem e.epré-le~' consiste em colmatar os buracos dorelato.os
los ambiciosos e sofisticadosrecorrem à produções teatrais e artísticas. Para fazer isso, gível" em um texto a ede que
sua experiência pessoal, , ~s suas sensa- quaisquer considerações sobre a diferença uma representação a ser necessidade para acabar a.leitura e lhe
ções-, às suas intuições é quase nada ao entre leitura de U111 texto e recepção deum . , o ·texto, assim como a dar uma coerência suficiente. A conclusão
seu conhecirnento das ciências humanas espetáculo permitem COlnparar duas práticas comporta pontos de indeterminação·, bran- o relato,
para uma reconstituição e urna exegese ao mesmo tempo próximas cognitivamente cos, buracos e vazios, agulhagens em que a para que tudo que precede
dos espetáculos. e diferentes emocionalmente. interpretação pode bifurcar e as conexões torne sentido. O espaçamento· ispacing)
entre os fragmentos estabelecer-se. Esses (termode Mal1armé, retomado por Derrida)
~ Anos 2000: o espectador tema impressão
"engates" se fazem tanto entre os -elementos cons -
de ser solicitado; e até cortejado, nos espe-
do texto, entre os signos ou entre.partes do espaçotemporais, que são outros
táculos interativos, em imersão ou em mul- 3. HERIvlENÊUTICA DO TEXTO
E DO ESPETÁCULO texto e da representação. . tantos quadros para as ações. Para paliar as
timídias, mas ele renuncia cada vez mais
A leitura, assim corno a mise en scêne exi - insuficiências da análise clássica do relato e
controlar o sentido e a qualidade do que
A..s diferenças de recepção entre a leitura genl do receptor 'u m a criatividade há inter- dánarratologia aplicada. a.lll1.'la fábula pouco
se lhe apresenta. Os filósofos que "dele
e o espetáculo são bem conhecidas, Por Pretªç..ª o.TaI iriterprétaçã.oll.adà · fertl~ pois, . }~~í'\T~~ ?~ él: ~11'!1a ellcenação pouco figurável,
se lhe propõe uma "partilha do
isso, tornou-se inabitual constatar as simi- deautornáticó.iela.comporta ·riscos--aee r rO..J-2-a '(en àri-atologia .na tural" dispõe de conceitos
uma "estética relacional'", uma
laridades. Para o estudo do leitor, a obra mas é também Ulna fontedealegriãsede que dão todos ao receptorum poder aumen -
COlTI1,1n.:I .d3LCle corno ficção necessárias, uma
de Nathalie Piégay-Gross" nos fornece um descobertas. ·--ràdo. A experiência 'pessoal (experientiality)
ou
exnetrencia comunitária llIna busca do
excelente guia. O'leitor, assim como o à contribuir para reconstituir uma
e não mais do "espaço público" ou
A compreensão da fábula, quer se trate çam por cornpreender corno o texto ,ou o _situação e UID.a cena demasiado enigmática.
Marie-Madeleine Mervant- Roux?
de um texto ou de um espetáculo, obedece a espetáculo ou os dois foram concebidos; Graças à naturalização, elementos contradi-
deriva neorritualista. A .isso,
leis cognitivas similares. A atenção do leitor segundo qual intenção da obra (adístinguir ': t óriossão recuperados, uma certa função lhes
corno Marie-José Mondzain ou
da intenção do autor). Não é sUficiel~!e'âÉS'5?"Claaa." Quanto à narrativizaç ão, ela converte
.L ,LI.\J 0 \ J . n.J ';)

difere -da do espectador: o leitorfaz pausas,


d'Allonnes respondem
progride no livro com seu' próprio ritmo; vendar o segredo .d o texto ou da encenação, e~~relato, imprime urna forma narrativa a um.
por promoçãonuançada da cornu- .
o espectador depende .d as pausas prepara- cumpre-lhes reconstituir,·ao "discurso do qual não se sabe "aonde quer che-
nidadeou da ,assembléia teatral, lugares
das na encenação. Ele não é senhor de seu hipoteticamente, . Operação que o teatro cornpleta graças
ond~ supostamente o espectador encon-
ritmo de recepção. Trata-se de ler, isto é, de a estratégia na 'pesquisa dos encarnação das personagens.
tra refúgio: "A assembleia teatral não é nern
decifrar-a encenação e sua lógica, que lhe cornbinatória, a opção escolhida. Essas operações se aplicam
da ordem da assem bIeia fusional, nem da
O texto nunca diz tudo: afofáóssil êncios indiferentemente à leitura e à recepção de
ordem de urna espera que seria atomi- cunlpre descobrir. No caso em que ele inter-
zada porque encarada apartir da reunião preta umtexto, o espectador deve tomar o"
e as ambiguidades do texto)ó Upl espetáculo, sempor certo prejulgar dife-
cuidado de examinar como o encenador e belece cotrespo!ldências renças radicais entre o visual e à "textual.
moment ânea de indivíduos separados."?
. '
os atores leram esse texto e o inseriram em discurso: "O 'p ap el do leitorcorisisté-uor- v-Elas reduzem a problemática do espectador
Para o estudo do espectador, parece indis- urna representação. Não se tem, portanto, tanto, em estabelecer tal ': n o clo rn ín io cla interpretação, o que os estu-
pensável ultrapassar a oposição de origem acesso ao texto em si, tal como nós o lería- ção, em combinar tais ou . não podem levar em consi-
........ "~""""'J".J"". entre espectador burguês passivo mos na bf.ochura (quer ela tenha sido ou
..I.LU. texto'-.e em deixar O espectador é um herrneneuta
do teatro "dramático" e espectador crítico e não publicada, quer nós a conhecêssemos O espectador efetua referencia sem dúvida luga-
ativo do teatro épico, ultrapassar tanto a opo- ou não), 'm as a uma leitura particular, con- rável entre sem estar
sição entre um espectador frontal, sentado, cretizadâ na encenação. O espectador 'd eve .representação; segurode que sejam os bons ou de que os
passivo e um espectador participante móvel, estabelecer a diferença entre os dois tipos A .narratologia cognitiva investiga essas outros espectadores não tenham encontrado
ativo. Do mesmo modo, a oposição entre um de leitura. operações mentais que intervêm em todo outros. Ele se guia por aquilo que lhe parece

lOLJ lOS
Espectador Espectador

constituir a estratégia da encenação, ou seja, ou outra. A escolha de UlTI método não é semiológica), ele se submete a uma expe- c. A Comunidade
sua estrutura e sua intencionalidade. Enfim, definitiva, depende do momento histórico riência, a um impressionismo crítico, a uma Esta atenção prestada à testemunha tanto
e sobretudo, a mise en scêne organiza e cons- em que a pessoa se coloca, beln como do atmosfera: "Comunicar, elevar, edificar, nos estudos sobre o espectador corno nas
titui o olhar de seus futuros espectadores: tipo de obra que ela se propõe a ~nalisar. equilibrar, dar a compreender, perturbar: ciências hurnanas, da antropologia à história,
sua visão é, para dizê -lo com Maaike Blee- COnVéITI, portanto, examinar a constituição esses componentes clássicos da experiên- revela uma profunda necessidade de reen-
ker ", encenação. Os espectadores adquirem desse objeto que o espectador recebe - sem cia estética não t êm aqui muita importân- contrar (ou de imaginar, o mais das vezes) a
incessanternente novas identidades. ao mesmo tempo esquecer evidentemente cia.?" O que vale para a arte contemporânea dimensão coletiva e comunitária do espec-
que esse objeto é em parte, em parte somente, vale igualmente para a encenação. tador. Por que então? Precisamente porque
o resultado do olhar gui.ado e posto em cena Por uma espécie de "presentisrno" (uma o público foi reduzido a átomos isolados, a
4. A ENCENAÇÃO DA VISÃO do espectador. Para compreender o espec- fixação só no presente corn exclusão do pas- grupos de especialistas que não se comuni-
tador, é preciso começar por compreender sado ou do futuro), o espectador efetua a cam mais entre si. Ora) após os anos 1960,
a. Guiar a Visão e a Recepção experiência dê se nsaç ões e de impressões
qual coisa ele apre ende: a própria obra, suas após o Living Theatre, Grotowski ou Barba,
O esp ectad or atual é uma figura polimorfa. estruturas e as expectativas que ela suscita. imediatas: impossível mais tarde recordar- as pessoas do teatro aspiram a reconstruir
Seja ele espectador de teatro, telespectador, -se do espetáculo, guardá-lo na memória, se uma comunidade, um bem comum, «uma
internauta, utilizador dos videogames, ele não como uma coisa agradável, ao menos gestão imediata, para o corpo do ator, .de um
muda constantemente de perspectiva; seu 5. AS NOVAS IDENTIDADES DO E SP E CTA D O R como uma sensação forte porém efêmera, espaço real partilhado com um público, por-
olhar difere de um momento ao outro e à tanto uma república, uma coisa p ública?".
me rcê das m ídias que o solicitam. a. .Mu dan ça de Quadros b. O Espectador e Seus Duplos
A assembleiaou a comunidade teatral tor -
Esse deslocamento não é, todavi a, de Construir seu olhar 'é , para o espectador, O espectador desempenha U111 papel tão efê- na-se muitas vezes a aposta da atividade tea -
ordem técnica ·ou fisiológica, é simbólico, avalia r de onde ele percebe o esp etáculo e, roera quanto os espetáculos que lhe apraz tral. Certos autores, como Enzo Connann,
ligado à maneira como a en cen ação atrai, p ortanto, deque ponto de vista. CC)Jn tOq.05 esquecer uns após outros? E quando se torna vão a ponto de enxergar aí o objetivo de
desviaernanipula o olhar do espectador. ess es espetáculos que misturam realidade umparceiro da criação teatral, ele ainda é ele seu trabalho: "a questão é mais ade consti-
o pape] ea tarefa do espectador consistem e fic ção. icom todas essas pessoas que não mesmo? A lista das identidades do Homo tuir a assembleia (em torno de um objeto),
ern reconhecera rniseen scene como sistema representarn 'um papel mas se apresentam spectator" é quase infinita: "Observador par- do que a de 'pro d u~ir um objeto (suscetí-
estét ico, f~le oló gico e estratég.ico, ao mesmo corrio elas mesmas, falandodiretamente ao ticipante") à maneira dos etnólogos; «investi- vel de provocar a assembléia)" (p. 118). Que
tempo p ajaseguir o seu percurso que O ence - público a pa~tiÇ~&;'~~;-p-~óp~iá~;'p~ii-ê;'~ ~~, o gador", «perito" para o Rimini Protokoll ou agente se valha de Bennedict Anderson e
nador p ropôee para decidir acerca do p er- espectador não é-mais confrontado por urna o She She Pop, "visitante': ou melhor ainda, de sua "comunidade imaginada" e de Jean -
curso queq espectador deseja aí efetuar. "i )erson agenl fictícia e por uma fábula. Ele [iâneur, passeante, em referência a Baude- -Luc Nancy e de sua "comunidade ociosa":",
Segundo Maaike Bleeker, o teatro é "urna busca a boa distância entre as testemunhas laire e a Benjamin. A cad eia de metáforas a comunidade não é, segundo Marie-José
prá tic a da encenação da visão" (p. 16). Certo, reais e os momentos deteatro. Ele é obri- é toda ela igualmente longa: "esp ect ad or" Mondzain, quanto ao-público na cena do tea-
essa encenação da visão é UlU terna frequente gado a questionar a diferença entre o autên - antes em Boal; "precipitado de uma reação tro, uma comunidade de visão, pois) segundo
desses espetáculos desconstruídos ou pós- tico e o fictício, a repensar suas categorias química', ~m Herbert Blau": "amador da arte a fórmula de J.-T.Desanti, «nós, não vê nada','.
-d rarnáticos que se baseiam na tornada talhadas entre documento e invenção. Ele se sutil do rendez-vous)", em Ethis l6; "especta- M.- J. Mondzain retoma e completa essa fór -
de con sc iên cia do olhardo espectador na vê embarcado, a despeito ele si mesmo, em tor", em Sibony", "viajante ern travessia", mula: «O nós não vê nada, mas é o entre nós
fab r icaç ão e n a recepção da encenação. No UIl!' espetáculo e em um evento em que real para Wajdi Mouawad: esp ectatriz emanci- que vê:' 21 Resta definir e constituir este entre
.entanto, trata-se aí, na realidade, da regra e ficção se alternam: debate, manifestação, pada' "partindo para a descoberta de novas nós. É a isso que se esforça a assembl éia ima-
geral, pois o espectador participa da elabo - pas seio pela cidade etc. Ele não permanece) regiões artísticas': segundo Florence March", ginária de críticos e de espectadores. Ocorre
ração do sentido de maneira ativa. Ele cons - portanto, em face da representação, pronto Mas nenhum termo é atualmente tão popu- que a comunidade se recusa a reun ir-se, que
trói a significação da obra e ele a constrói por a analisar a partir do interior os signos; ele lar quanto o de "testem un ha" Não a testemu- o espectador, pós-moderno ou p ós-dramá-
mei o de seu próprio olhar. está no espetáculo, às vezes ele é o espetá- nha de um acidente da estr ada, que explica as tico, se dispersa, se dissemina, corno diria
culo. Ele passa incessantemente de um qua- causas e as circunstâncias do acidente, corno Derrida, Disseminação-que não é sem risco
b. R eencontrar a Interpretação
dro a outro, transpõe limiares, habitua-se a deveria fazê -lo, segundo Brecht, o especta- para o teatro, pois, nos adverte Revault d'Al-
O estudo do espectador não deveria jamais não mais buscar uma nova nlensagenl pro- dor crítico do teatro épico; mas o etnógrafo lones, «esses pensamentos da disseminação
seccion ar-se da referência à obra e, portanto, vocadora que o interpelaria e o obrigaria a que observa como ele faria urna performance foram pensamentos ruinosos para a ques-
da an álise dessa obra, quer essa análise seja analisar a situação dramática. O espectador cultural, quando confrontado a uma cultura tão do sentido da comunidade; passou-se
semiológica, fenomenológica, hermenêutica não faz mais uma análise (dramatúrgica e e' a um meio estrangeiros.
de uma posição globalizante, unificadora, a

106 107
Espectador Espetáculo de Técnicas Mistas

seu simétrico inverso, dito de outro modo, o fato de ser público, e de modo nenhum um p. 9: "O estudo do público na teoria do cinema sem- 24 Florence March, Relations th éãtrales, Vic-la-Gardiole:
espaço. Não é, todavia, um acaso, nem, aliás, pre implicou negociações complicadas dos <sujeitos' e LEntretemps, 2010, p. 45.
a um pensamento da dispersão, do espa-
dos 'vedores" a despeito das afirmações de que os dois 25 Marie-Madeleine Mervant-Roux, Figurations du spec-
lhamento' que nos impede, ele também, de uma coisa má, que a teoria do espectador uti- são termos incompat íveis. Meu objetivo neste livro tateur: Une Réflexion par l'image SUl' le th éãtreet SUl'
apreender e de situar os problemas. E é essa lize urna metáfora espacial, pois isso expõe é avaliar essas negociações complicadas enquanto sa théorie, Paris: LHarmattan, 2006, p.
horizonte dos espectadores de teatro:'
a razão pela qual, hoje em dia, ternos tanta à vista os espaços possíveis onde se situam 26 Anne Gonon, In vivo:LesFiguresdu spectateur desarts
2 [acques Derrida, Le Théâtre de la cruauté et la clô- de la rue, Montpellier: L'Entretemps, 20 11, p. 169.
dificuldade de pensar a questão do comum. o espectador e o objeto espetacular, ambos ture de la représentation, L'Écriture et la différence,
Estamos encerrados em uma questão rui- disseminados sem limites. Paris: Seuil, 1967, p. 341-368. (Trad. bras.: O Teatro
da Crueldade e o Fechamento da Representação,
nosa: a do 'nós fusional' ou da 'dispersão e da A Escritura e a Diferença, São Paulo: Perspectiva,
disseminação" Cp. 87-88). A buscadafusão e. O Espectador, Objeto Inencontrável 20 09, p. 339-3 65.)
dos espectadores eU1 uma comunidade tem da ~epresentação 3 Stanley Fish, Is 1here a This
qualquer coisa de irresistível no contexto Se os espectadores estão nos dias de hoje dis- rity oflnterpretive Communities , Cambridge:
University Pr ess, 1980 .
Espetáculo
contemporâneo, mas ela está também sub- seminados no espaço e no tempo, de um lado 4 David Bleish, Readings and Feelings: An Introduction
de Técnicas Mistas
metida a uma estrita crítica política. Ranciere o encontro direto entre os atores e os especta- to Subjective Criticism, Urbana: NCTE, 1991.
desconfia dela, tanto ern Artaud quanto em dores não tem mais lugar, ao menos segundo Iane P. Tornkins, Reader Response Criticism: F~om 'Fr.: spectacle aux technioues mixtes; Ing l.: mixed-
Formalisrn to Post-Structuralism, Baltimore: The meansperformance.
Brecht. O teatro brechtiano é, segundo ele, as regras de outrora e, de outro, o espectador Iohns Hopkins University Press, 1980.
"urna assembleia ern que a gente do povo é convidado a olhar e a interpretar espetá-° 6 Iacques Ranciére, Le Partage du sensible, Paris: La
torna consciência de sua situação e discute culo muito tempo depois da representação, Fabrique, 2000.
a misturá-lo eventualmente a outras expe- 7 Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle, Dijon:
'seus interesses): enquanto em Artaud, otea- L,es Pre sses du Réel, 1998.
tro é "o ritual purificador em que é dada a riências e discursos, a se adaptar às frontei- B Marie-Iosé Mondzain emLu cB oltanski et al.,LAs- '
urna coletividade a posse de suas energias ras movediças do espetáculo e da meditação, semblée th éãtrale, p. 129.
Como bem nota Florence Marsh, "o especta-
dor em ação faz, portanto, voar em estilhaços
10
d. O Espectador no Espaço Público o quadro convencional da representação">'.
O de teatro foi durante muito Se no espectador a concepção disso per- 11 Nathalie Piégay-Gros, Le Lecteur, Paris: Flamma-
tempo definido por sua posição no espaço: maneceu, conforme Balme, Mervant-Roux rion, 20 0 2.
12 Maaike Bleeker, Visuality in the Theater: The Locus
em face-da cena, preso numa relação tea- ou March, na definição clássica do teatro of Looking, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2008.
tral copresença no espaço e no como encontro, é este 13 Yves Michaud, EArt à ' ·01',..,1' FT'n '?'''''''V'
tempo de, espectadores e de atores. C abe, último] porque o "monstro teórico do 'espec- phede Testh étique, Paris: 2003, P: 171.
pois, espantar-se, observa Chris Balme, que tador' (do espectador em.si)" provém "do 14 Marie-Iosé Mondzain, Homo spectator, Paris : Bayard,
2007·
"a pesquisa atual sobre o teatro sonho elaborado por alguns em torno do tea-
15 Herbert Blau, lhe /sudience, Baltimore: Th e Iohns
tico, mesmo entre seu s fundadores e seus tro popular, no quadro de uma identificação Hopkíns Press,
advogados, continua a operar corn uma con - geral do teatro com o espaço político clássi- ren -
dez-vous, Communication et langage, n. 154, dez. 2007.
cepção de espectadores e de públicos em UUla CO"2 5. Que o teatro se adapte às mudanças da
17 Daniel Sibony, Spectateur, Spectrateur, La Position
relação de face a face C 0 111 os atores?" . Com ação política! O espectador em marcha, no du spectateur aujourd'hui dans la société et dans le
efeito, os espetáculos "pós') não confrontam sentido próprio, o do teatro de rua, exposto, th éâtre, Du Thé ãtre, n. 5, mar, 1995, 45 -52.
mais necessariamente no mesmo continuum envolvido corporalmente, tumultuado, "no 18 Florence Marsh, Relations th éãtrales, Montpellier:
I'Entreternps, 2011. As designações acima são cita-
espaçotemporal esses dois grupos, os quais, coração da partitura":", é também o espec- das por F. March em sua obra,p. 20:-25.
às vezes, estão situados a uma grande distân- tador que sabe ir no born sentido, no sen- 19 L:Assemblée théãtrale, p.
cia UIYl do outro e presos em temporalidades tido da marcha, notadamente da marcha da 20 [ean-Luc Nancy, La Communaut éd ésoeuvrée [1986],
diferentes. Alguns perguntarã-o: "Isso ainda história. Mas o caminho é longo, semeado Paris: Bourgeois, 2000.
21 L:Assemblée théãtrale, p. 85.
teatro?" Boa pergunta. de emboscadas e o espectador, que partiu
22 Iacques Ranciere, Le Spectateur émancip é, Paris: La
A tradução do termo de Haberrnas, Offent- na busca perpétua de si mesmo, nunca está Fabrique, 2008, p. 12.
lichkeit, por espacepublic em francês, "espaço , certo de chegar à meta. 23 Christopher Balme, Distributed Aesthetics: Per-
público" em vernáculo, ou por public sphere formance, Media and the Sphere, em Ierzy
Limon; Agnieska Zukowska TheatricalBlends,
em inglês, presta-se a confusão, porque a NOTAS Gdansk/Slowo: Obraz Terytoria/Tneatrum Geda-
Esta ideia nos é sugerida por Iudith Mayne em
expressão alemã designa a opinião pública, nense Foundation, 2010, p. 147.
Cinema and Spectatorship, London: Routledge, 1993,

108 109
Espetáculo Entre um Rtor e um Espectador Estética

da imagem de síntese e de todas as espécies questões mais ou menos pessoais, a isolar-se também o que assegura sua sobrevivência É às vezes difícil ter uma prova visual dos
de projeções. do resto do grupo de artistas e do público, a e que relança o interesse de um público de corpos. Amiúde, o rosto permanece masca-
Essa forma é comum às experiências de fim de estabelecer urna comunicação indi- consumidores que viu tudo, experimentou rado e o ator desaparece por inteiro em um
Robert Wilson, Meredith Monk, Richard vidual. O espectador-cliente sente-se ao tudo e logo também comprou tudo. bastidor ou atrás de uma divisória na cena
Schechner, Iohn Cage, Michael Kirby, Lau - mesmo tempo vulnerável e lisonj eado pelo (em Castorf ou Pollesch).
rie Anderson e muitos outros naqueles anos fato de que se interessem pessoalrnente por Que o teatro se diverte jogando com nossa
1960 e 1970. Ela se prolonga até o século XXI ele: ele julgava gozar da imunidade do con - percepcao contraditória da vida e da pre-
com o teatro pós-dramático- na Europa. sumidor de arte, mas eis que o atacam nos sença, eis o que não deveria mais nos espan-
O emprego das mídias, as mais diversifica- fundamentos de sua interioridade! ESPEtácuLO-Vj\tO~--'-_.. . . . . . .c-----..---~ta.]:.-M.a-$-t:alve-b-n.()$-i-nq-u-ieta-F~.- - -
das e inventivas, decuplicou mais a sua força, O que dele? Nada no fundo.que
ainda que distanciando rnuitas vezes as per- ele não tivess e vontade de dizer ou de fazer. Fr.: spectac!e vivam; Ingl.: liveperformance; AI.:
formances dos objetos e dos materiais con- _A. única convenção, ami úde explicitamente dorstellendeKunst.
cretos da antiga vanguarda. formulada no contrato espetacular, o único
Esse termo revela quão na defensiva
interdito, é o conta to físico, o toque, a pas- Estética
NOTA está o teatro em face das m ídias. Ele dá
1 Richard Kostelanetz, On Inn ovativePertorrnanceis) : sagenl ao ato , a sexualidade pública. Toda
a entender, de forma um pouco ligeira, esthétique; Ingl.: aestnetics: AI.: Aesthetik.
Three decade s of R ecollection promiscuidade banida, sern o que haveria
Jefferson : McFarlan d, 1994 ) p. 230. que se pode distinguir, com clareza, entre
mudança de gênero e de categoria. Mas o diá-
o teatro com atores presentes diante de Grande é a dificuldade de dar a menor
logo, iniciado o rnais das vezes pelo ator/atriz,
nós e os espetáculos que utilizam quase definição da estética teatral-, pois a
é balizado, reduzid o a algumas confissões ou
exclusivamente as mídias. Ainda se assiste: própria noção de teatro é considerada
provocaçõ es fáceise aceitáveis, que fazem
por certo, -a espetáculos com atores corno ocidental e é contestada pelos
sorrir, rir, em vez de o passeante,
Espetáculo Entre cujos corpos e.vozes são percebidos se~ _ Periormance Studies·, os quais aparecem
ou de amedrontar o cliente do showbiz.
um Rtor e um Espectador qualquer mediação, mas isso se tornou corno um território imenso, sem fim,
A experiência que o esp-ectador' veio pro -
mais a exceção do que a regra. que de outras tantas
Fr.: un acteut et un spectoteur; curar nesse teatro de imers ão-
testar os limites da arte e do real, para colo- estéticas específicas e locais. Se, por
Ingl.: Ore -to-Crie Performance; Ai.: Einze!ner
A noção de "vivo" éamb ígua ou, ao menos, outro lado, cessam-os de definir o teatro
Schau5,8felér-EinzdnerZu 5chouer Aufführung . car em di scussão a fron teir a' do público e
polissêmica: ela significa muitas vezes, pura como presençâ-'físicâe-/ive
do privado, para definir os limites da inti-
e simplesmente, aquilo que não recorre .às de~_r:D ator perante um espectador·,
o teatro parece a p roxima r-se sempre mais . midade, para torn ar cons ciên cia dos códi-
mídias, Mas o sentido de Iive: é diferente: o mas como a ação de relacionar uma
do espectador/ entrar em sua intimidade/ gos sociais e psicol ógicos que controlam a
live não os corpos vivos, em carne midia com outras .mídias e outros
provocando-o, dirigindo-se a ele pessoal vida social. Risco" ético, psíquico, mas tam-
e osso, porém ás corpos mostrados no ins -
c ~ tipos de receptor, então as teorias e as
e individualmente. Quando não há mais bém político, visto qu e o one-to-one interroga
tante em que são percebidos pelo público -:- estéticas explodem em sua qualidade
do que um único espectador e um só sobre aquilo que somos capazes de erigir em
um corpo filmado em vídeo e transmitido assim como em sua q.uantidade
performer para lhe falare para se ocupar regime sacia], político no sentido amplo.
im ed iatamente (ao vivo) sobre uma tela é, (interrnidlalldade-). Esta situação
dele/ isso ainda é teatro, ou será que Utilizando as técnicas do speed-dating
portanto, live, mesmo quando sua presença explosiva pode ser uma oportunidade
voltamos à realidade, que abandonamos a (mas sem os riscos da relação amorosa ou do
é midiatizada. para a estética contemporânea.
cena, a ficção/ a representação? casam ento) , o one-to-one obriga o espectador
O corpo em cena é, por certo, visível, m as
a expor-se p or um cur to instante, a assumir
A one-to-one performance (performance de (habitualmente) não tangíveL A encenação
riscos "razoáveis': a retirar de sua vinda ao
um para um) , joga com.a ambiguidade dessa joga com a incerteza sobre o seu estatuto real:
teatro (daquilo qu e Karl Valentin chamava
relação e da transgressão" que ela implica. No o ator está de fato lá ou é somente sua ima- 1. o OBJETO DA ESTÉTICA
"a obrigação de assistir ao espetáculo") um,a
interior de uma representação ou de uma geln hiper-real (cf. Les Aveugles [Os
experiência divertida, valorizadora e
performance aberta a um público não sele- encenação de Denis Marleau), Ora o ator se Na tureza e delimitação do 'objeto: a princi-
desestabilizadora: outros tantos valores que a .-.
cionado, essa experiência é geralmente pro- mostra en vrai (de verdade) , ora ele apre - pal disputa é a de saber se as diversas cul -
arte contemporânea promove e dos quais ela
gramada para breves tête-à-tête de dois a oito senta só a sua imagem (é o caso dos mesmos tural performances podem dispensar, como
faz às vezes o seu cabedal de comércio, sob
minutos emmédia, no curso dos quais o per- dançarinos, reais e filmados, dos coreógrafos elas afirmam amiúde, serviços da estética,
o pretexto da renovação das práticas artísti-
fonner se autoriza a posar de espectador de Hervieux e Montalvo). ou então se o seu objeto cultuaI ou cultural
cas. Por isso, as derivas do teatro são talvez

110 111
Estética Ética

possui uma dimensão estética ao lado de seu 4. A semiologia das obras não é elimi- contraditórios acerca da arte contemporânea. como bem mostra Christian Ruby, em uma
valor performativo. As diferenças são grandes nada, mas reposta em seu justo lugar ao lado A única clivagem que permite uma localiza- conclusão niilista e anti-humanística do
entre, por exemplo, um desfile de moda em da sociologia ou da estética da recepção de ção em sobrevoo é a de uma teoria analítica, espectador: "um espectador de arte con -
que o lugar, o andar dos modelos, a música origem alemã e com eixo na recepção his- acumulativa, muito "pós', da sensibilidade temporânea seria, pois, um espectador que,
e a valorização das roupas dependem da evi- tórica dos textos. (do gosto·) por oposição a uma teoria geral solicitado pela e na obra contemporânea,
dência do julgamento estético, e uma missa 5. Desesperando de encontrar para a arte da arte, na tradição clássica. Com efeito, essa aprende a tomar suas distâncias consigo
em uma igreja protestante holandesa, em que plástica contemporânea ou o teatro dito pós- teoria geral encontra-se reduzida à impotência mesmo, mete-se a compreender uma obra
o espetacular é menos visíveL No interior de -drarnático- critérios estéticos objetivos e, por- devido à pulverização das formas e à multipli- C0111 outros, à margem do que dizem dela as
uma mesma performance é quase sempre pos- tanto, de produzir com eles UIn juízo estético, cação anárquica das teorias parciais ou das filo- <autoridades: sabe que não existe valor esté-
sível dividir o objeto em zonas ou em em particular determinar se a obra é de arte sofias ecléticas chamadas à cabeceira do teatro. tico em si nem prazer estético definitivo, e se
sódios nos quais a estética desempenha um ou de mistificação, filósofos analíticos corno Algumas questões permanecem em suspenso. empenha em um esforço constante de com-
papel maior ou menor, Sem falar de uma con- Dante ou Goodman prOpÕe111 UITia estética Sua formulação nos ajuda, na falta de resposta preensão de sua própria relação COll1 as artes,
cepção ampliada da representação teatral, pro- que não procura mais definir a arte, clara, na tentativa de sair do labirinto: de seus afetos e de seu prazer dos objetos
longada, por exemplo, em diversas mídias porém estabelecer corno o vedor e o contexto Qual teoria implícita posso eu utilizar, na de seu prazer), multiplicando as interferên-
audiovisuais além daquilo que é diretamente decidem que há arte. É o que, observa Iime- minha pesquisa sobre a produção ou sobre cias com os outros espectadores">.
perceptível pelo espectador instalado ern um nez, nos conduz aiima de arte em que a recepção, quer eu seja um pesquisador ou Se pensar a relação do espectador com
lugar outrora chamado teatro ou cena. "a interpretação do público é válida unica- um espectador COITIUrll? Estou eu a ponto de a estética contemporânea tornou-se muito
A [ragmentação do estético: desde os anos mente se ela consegue coincidir ao máximo construir ou desconstruir meu objeto? Quais delicado, bem se vê também que esse espec-
1990, várias disciplinas, que invocam com com a interpretação que o próprio artista faz são os limites disso? Uma coreografia iso - tador não poderia escapar daí se quisesse se
toda a ra zão seu vínculo com a estética, par- de sua obra' v. É verdade que uma parte majo- ladaiA obra de conjunto de umcore ógrafo? reencontrar ele próprio, sem perder de vista
tilham entre si a tarefa antes reservada à esté- ritária da crítica dramática jornalística se con- Uma tradição coreográfica nacional ou um os outros, se desej asse partilhar C0111 eles U111
,.,- -,- -' . ,- ,-_;.;: __ ~ __}de Baumgãrterí a Kànt e Hegel: tenta muitas vezes em entrevistar o encenador movimento histórico? Quais afetos· a obra trecho de caminho e um naco de sensível-.
1. A fi]osofia empreende uma reflexão sobre suas intenções para tentar interpretar e produz em mim? São os n1esm o s 'qiie-ãque-
sobre a arte e a' performance, examinando o depois recomendar o espetáculo aos leitores les sentidos pelos dançarinos e pelo coreó NOTRS
Marc [iminez, Quest-ce que Iesthétiquei, Paris: Ga I-
que os filósofos.contemporâneos trazem para ou aos ouvintes. As notas de intenção, com grafo? Como se transmitem eles? limard, 1997, p. 411.
a produção ea recepção das obras. freq üência, são infelizmente comunicadas no Responder a tais questões é ainda possí- 2 Ver a conferência organizada por Meewon Lee na
2. A sociologia da arte, de Bourdieu a Hei- prograrnaque o obrigado vel para a análise estética de obras clássicas 'ni\ren>itvoLl'\.rts, em Seul, OUt.

nich, estende seu império sobre as produções a consultar justo antes do inicio da representa- e rnodernas, mas é muito problemática para (Para Onde Iremos Depois da Pós-Vangu arda?)
culturais e espetaculares. A sociologia de Bour- ção. A semelhante método atribui-se o nome as obras pós-modernas ou pós-dramáticas 3 Christian Tart contempora in,
dieu se a descrever todas as instâncias heroico, rnas antite órico, de "pós-moderno" uma abordagem imediata
"A1'tT1 r'í11r'l1'Y\ Bruxelles: 60-6l.
que precederam a escritura de um texto ou ou de "pós-dramático" Fala-se também, não do espectador e pretendem oferecer-lhe com 4 Para retomar o título do livro de Iacqu es Ran cier e,
Le du sensible: Esth étiquee t politique, Paris:
à elaboração de uma encenação, Ela se dá o senl humor, de "pós- va nguªrda''. ~;pªia desig- isso o meio de uma prova direta, mais física La 2000.
encargo de definir seu campo, esse que deter- nar um movimento que não existe ou não e ligada ao evento. Essa experiência pessoal
mina o estilo, a atitude, o modo de percepção sai do lugar, o que diz muito sobre suas reles visa confrontá-lo com uma transgressão c, um
dos artistas implicados na produção da obra e ambições teóricas. excesso, um escândalo, um tratamento de
dos espectadores encarregados de recepcioná-
-la. Ela se esforça ern descrever a posição dos
atores sociais, sua disposição no campo artís-
tico, sua avaliação dos valores, dos gostos-, dos
2. QUESTÕES EM SUSPENSO
choque. A estética pós-dramática não está,
portanto, rnais em condições de conduzir,
graças à mediação- dos artistas, filósofos ou
professores, a uma tomada de consciência
I Ética
Fr.:éthique; Ing 1.: eth ics; I~ I. : Ethfk.
resultados e sua tornada de posição. A fragmentação da estética nada faz, em suma, humanística da obra e de sua função socioe- li
3. A psicoiogia da arte reata com as pes- senão reproduzir de toda atual teoria global ducativa. Ela visa muito mais UIn tratamento Desde o fi In dos anos 1980, isto é, desde os
quisas sobre a percepção, a identificação da arte, tanto a do teatro corno a dos perfor- de choque para desestabilizar o espectador-, inícios da crise da teoria, a questão ética
ou a ernpatia-. Ela estende seu domínio ao mance studies. 'Esses últimos desconfiam da mergulhá-lo em um universo onde será pre- voltou ao primeiro plano da cena após
corpo do ator ou do dançarino com o qual o teoria, mas bem que gostariam, ao mesmo ciso reaprender a escutar, a ver e a sentir seus ter deixado de desaparecer reflexão da
espectador entra ern uma relação de empa- tempo, de recorrer a ela para introduzir riscos e perigos. Uma desestabilização com- sobre a literatura e as artes. Esse come-
tia cinestésica. um pouco de ordem em todos os discursos pleta que não desemboca necessariamente, back se explica por um retorno do sujeito,

112 113
Ética
Ética

do autor, da concepção humanística da "agradar e instruir"; ela se arrisca mais, como São os textos reputados como os mais No teatro, diferentemente da literatura e das
literatura e da arte. Um retorno bastante outrora Schiller, em exigir que o teatro seja difíceis, e até ilegíveis, corno aqueles, por artes, a desconstrução foi pouco experimen-
bem-vindo do qual seria errado pensar uma «instituição moral': A exigência de urna exemplo, de Beckett, que exigem do leitor tada, exceto nos anos 1970 por encenadores
que ele assinala o fim da teoria e a educação para a arte não é mais reclamada um envolvimento mais firme, a compara- radicais como Antoine Vitez, Richard Fore-
restauração do humanismo à antiga: ele senão pelos defensores da educação popular ção comsua experiência e sua intuição pes- man ou Peter Zadek. Por quê? Talvez justamente
revela, ao contrário, a necessidade de uma e da animação cultural e artística. A estética soais, às vezes a contrario, amiúde exigindo devido a certo ceticismo frente à sua radica-
teorização mais global, e até olobalizada. assim como toda a encena- LL.L~.J'V,",""()"~() de leituras contrárias a seus hábi- lidade e porque os encenadores não queriam
que engloba a exigência formal da teoria ção pós-dramática-, desconfia muito do teatro tos, provocando suas íntimas e seu negligenciar a dimensão ética e política das
e da experiência concreta do receptor. engajado ou político, ambas não pensalu que senso moral". peças e dos espetáculos. Pois as releituras dos
a leitor, o espectador- e o observador possanl agir, em todo caso, direta e duradou- A desconstruçãor, a de Derrida, mas tam- clássicos, na França ou na Alemanha, por
participam doravante ativamente da ramente sobrea 'realid ade sociopolítica e, no bém tudo o que é posto em evidência de um '" desconstrutivas que tivessem sido, não des-
constituição da obra . Convém, portanto, entanto , as questões éticas não desapareceram lugar de in de ter m in a ção- ou de uma fase de prezavam uma releitura ideológica c uma con-
interrogar o efeito ético de tais receptores da reflexão acerca do teatro: desde os anos indecidibilidade em um texto, conheceu frontação direta com as implicações morais
sobre a obra, e reciprocamente, 199 0 , os anos da crise depois do pós-crise da também urna mudança de atitude em rela- da fábula. Jamais houve um corte radical com
teoria, diferentes disciplinas dos estudos tea- ção à ética da leitura. Após uma fase inicial a metáfora do semblante ou com a ética do
1. D E FINIÇÕ ES E C A M P O D E APLIC AÇ ÃO trais se interessaram cada vez mais por ela. de indecidibilidade e de diferença- de tex - outro, segundo Lévinas.
Eis exemplos dessas disciplinas e de tos, a desconstrução de Derrida, por volta Esse semblante do outro, do qual fala Lévi-
Moral e ética: não rnuito fácil \.,.j..l('\...lJ_.l\::.'U-J.J.
lhes corresnondem: do fim dos anos 1980, ser mais respon- nas, é o que me faztomar cons-
a ética da moraL André sável ciência de que eu sou outro,
entretanto, no s ajuda nis so, ao opor "a moral lity, Ver-Antlvortung, diz Lehmann-), além fato que fundamenta universalmente toda
e a éticacorno o absoluto (ou pretendido 2. o LUGAR DA ÉT I CA El\1 ALGUMA S' daquilo que passou por indecidível. Derrida ética . Ao mesmo tempo, o semblante, o corpo
corno tal) e o relativo, corno o universal (ou DI SCIPLINAS DOS ESTUDOS TEAT RAIS voltou-se en tão para as questões de culpa-.' e a linguagemacolhemtamb ém as diferentes
p retendido como tal) e o particula r [. . .] Por bilidade, de lei e de justiça, para um pensa- identidades do sujeito . Evitar-se -á-pois-opor
moral, eu entendo o d iscurso n orrnativo e A narratologia, ou o estudo dos relatos: seja mento étic o, pr eocupado com o possível e como irreconciliáveis a ética do semblante,
imperativo que resulta da opo sição do Bem ela aplicada ao romance ou ao teatro, obs erva com o responsável. Como bem demonstra segundo Lévinas, e as identidades sociais e
e do 1\1dh considerados como valores ab so - corno os textos (ou as imagens) constroem e Geoffrey Galt Harpham", Derrida "sistema- psíquicas dos indivíduos. N-ãosepoderia cen -
lutos ou t ranscen dentes. EJa é feita de man- reconstituem efeitos dos sentidos, apelando tizou o engajamento ético da desconstrução surar Lévinas por basear sua ética numa troca
damentos e de interditos: é o conju n to de às emoções, aos afetos· dos leitores, à sua em um ensaio de 1988, Afterword: Toward abstrata de olhares, ainda que todo semblante
nossos deveres. [. .] entendo por um do mundo, à
/'",n/'L"""''''·;';''r,. maneira de an Ethic of Discussion (Posfácio:Para uma seja concreto, inscrito na história e na iden-
discurso normativo, não (ou sistern a de «Essa Ética que desenhou um tidade ou étnica. essa ética
sem outros imperativos senão os hipotéti- crítica não se contenta eln tratar os pontos pro cesso normativo de leitura desconstrutiva identidades, encontramo-nos ante uma alter -
cos) que resulta da oposição do bom e do de vista morais ternatizados explicitamente na qual um nível ou um momento de comen- nativa: um face a face filosófico à la Lévinas ou
mau, con sid erad os como valores imanentes em uma obra; ela pretende retraçar o ethos t ár io desdobrado, estabelecendo o consenso então um processo político >que arrisca des-
e relativos. [... J Em duas palavra s: a moral implicado na cornposição inteira." O ethos, mínimo sobre os sentidos, devia ser seguido figurar, des-carar (dévisager) os indivíduos,
comanda, a ética recom en da" . noção tomada de Aristó teles, é a maneira de por um segundo nível ou momento produ- multiplicando as identidades. Essaalternativa,
A éti ca na prática d o teatro : a éti ca é o se exprimir e de se comportar de uma pes - tivo, o da interpretaç ão'". Tão logo se procure entretanto, pode revelar-se uma contradição
tema quase obrigatório de todo texto drarná- soa ou de uma personagenl, sua persona- um consenso mínimo acerca de um texto, produtiva. Pois se há de fato uma exigência
tico ou de toda obra te atr al. 1\I1a5 não é esta lidade' seu caráter, seu ponto de vista, seu entra-se em uma relação ética e política: é absoluta de ética pelo encontro do outro, este
temática ligada aos conflitos morais das pe r- modo de ser, como no caso de uma pessoa isso que parece ter -se produzido C0111 a saída encontro é sempre político, isto é, relativo
sonagens que deve interessar mas, real. A leitura e a interpretação provêm do de formal e a entrada e particular a um grupo, a uma cultura, a
sim, a dimensão to da teatral "encontro entre o ethos do narrador e o em pensamento alteridade tal como uma
e sua recepção pelos espectadores. do leitor ou do ouvinte" de sua "coduc ção" Lévinas senlpre a encarnou com sua metá- O teatro parece ter interiorizado esse encon-
Como a prática conternporânea da cena segundo o termo de Booth'. De acordo COIU fora do semblante humano e da responsabi- tro. Instintivamente, o espectador procura o
e das performances de todo gênero trata os essa hipótese, há sempre uma negociação lida de, pois "eu sou responsável por outrem rosto e o olhar do ator na massa cênica, em
valores éticos? Ela quase n ão invoca mais o entre a ética representada em uma ficção e sem esperar a recíproca, ainda que deva me busca de identificação, de diálogo, de troca.
seu vínculo com a célebre fórmul a clássica do a ética dos receptores. custar a vida">. Ele procura o outro e aspira reconhecer-se

11Lf 115
Étnico (Teatro) Exceção Cultural

no outro. Muitas vezes, ele não encontra 4 Ver o exemplo do texto Lessness de Beckett, em Patrice novos imigrantes. Em toda essa época, "oteatro varrida por uma indústria criativa, notada-
Pavis, Degrés, n. 149-150, primavera 2012, p. a1-a21.
nenhum rosto para lhe responder; cada vez étnico, em que o corpo vivo do ator mostra a mente norte-americana, mas que visa ape-
5 Postdramatisches Theater, Fran k fu r t: Verlag der
mais, como na realidade, o humano está Autoren, 1999, p. 251. identidade racial que é principalmente definida nas o grande público (mainstream·). Trata-se
ausente da cena, substituído por urna ima- 6 Geoffrey Galt Harpham, Ethics, em Frank Lentrichia; como diferença física, foi o laboratório mais também atualmente de lutar contra os gigan-
1homasMcLaughlin (eds.), Criticai Terms for Lit e-
gem fabricada pelas mídias, transmitida rápido e vivo para experimentar o multicultu- tes da internet, como o Google, a Amazon
rary Study, Chicago: The Uni versity of Chicago Pres s,
pela câmera a um espaço virtual intocável. 1995·
ralismo, esta hipótese e este ideal da América", e o YouTube, que difundem todas as espé -
O semblante se esconde, a relação com a 7 Limited Inc., Evanston: Northwestern University A etnologia tornou-se, desde os anos 1960, cies de conteúdos culturais sem contrapar-
realidade se vela, ninguém parece respon- Press , 1988, p. 391. uma disciplina capital dos estudos culturais tida financeira. Em 2013, novas negociações
8 G.G. Harphan, Ethi cs, Fr ank Lentrichia; Thomas
der por nada. Tal era a situ ação nest e fim do Mcl.aughlin (eds.) , op . cit., p. 39l.
e dos estudos teatrais. O pesquisador e, enl entre a Europa e os Estados Unidos arnea -
milênio de suas proclamacôes 9 Emmanue1 L évinas, Dialogue avec UIYl grau menor, o espectador comportam- çam terminar em uma liberalização das tro -
pós-modernas, pós -humanísticas e pós -dra- Philippe Nemo , Paris: Faya rd, P·94-95· -se em face do espetáculo como um etnólogo cas audiovisuais e culturais. Há, de resto, um
máticas. No entanto, ainda aí a exigência confrontado com seu objeto: UITl objeto nã o conflito entre o parlamento europeu) favo-
ética faz uma reversão. Ela toma emprestado mais exótico-, porém estético e antropológico, rável em sua maioria a uma exceção (uma
da desconstrução a crítica da representação no qual o obs ervador deve imergir a fim de diversidade) cultural, ainda que a comissão
e, da teoria das ide ntidades, a possibilidade Étnico (Teatro) compreender as normas, as regras e os efei- preconize "deixar o mercado se estruturar
de analisar as facetas do sob todas tos da obra. Pois, nos sem entravá -lo" A posição atual (2013) da
as costuras. A autop er for rnance e o teatro Fr.: ethnique (théâtre); Ingl.: ethnic theatre; Philippe .D escola, "n ão é tanto definida por- França é que, para garantir a diversidade cul-
pós-colonial" se referem a uma realidade 11\1.: ethnisches Theatet. um objeto particular quanto por um modo tural, a exceção deveria estender-se ao digital
flutuante, luas, não ob stante, pr óxima da de conhecimento singular: a imersão de longa e aos «novos serviços audiovisuais':
do funcionamento do indivíd uo e da socie - A expressão "teatro étnico': rara em francês, duração em uma comunidade de práticas, de A mundialização digital, a globalização-
dade. é utilizada em ingl ês no contexto rnulticultu- um observador exterior?'. econ ômica e cultural têm, de fato,um impacto
ral- norte-americano e britânico para peças direto sobre a cultu ra e os espetáculos ao
ou performances de minorias culturais que NOTRS
vivo . O espetáculo ao vivo é cada vez mais
Choi Sung-Hee, Bond OI' Bond age? Multicultural ísm ís)
3. RESPONSABILIDADE DO ESPECTADOR possuem suas próprias tradições de jogo tea- in the Asian American Drama, The English Langua ge dependente, por su-a preparação, seu fun -
tral ou para queln autores ou encenadores, anti Lite rature Association of Korea, 52, n. 1, 20 0 6. cionamento assim corno sua estética, das
o espectador é, 'eln última análise, responsá- na .m aioria das vezes pertencente eles pró- 2 Ph ilip pe D escola, LEthn ologie ou vre à tou s les p os-
sibles, Le Mo nde , quarta-feira, 26 jun. 2013, p. 8.
mídias, da internet, da produção cinemato-
vel por na atividade teatral. prios a tais minorias, criaram obras novas. gráfica e televisual, Esta proteção excepcio-
Tudo, na prática contemporânea , é feito para Exemplos: o teatro ameríndio em Québec, o nal não impede, evidentemente, a fabricação'
que ele se sinta implicado na representação: teatro ídiche em No va York, o asian arneri- "in d ustr ial" do Mctheater ou do Megamu -
ele é tomado corno testemunha, ele é "imerso" càn drama nos Estados Unidos. sical, m anufaturados em uma grande capi -
em uma situação em que se sen te forçado a A etnicidade é o que define um povo ou tal (Londres. Nova York) e depois vendidos
uma comunidade por sua nacionalidade, .sua
Exceção Cultural
tornar partido e em que ele se tornaparte-inte- em franquia a teatros de outras metrópoles.
ressada da ação: imersão.e participaç ão torna- língua, sua seus costumes, sua histó - Os espetáculos são recriados de modo idên-
exception culturelle; lngl.: cultural exception;
ram-se o seu cotidiano. Por conseguinte -sua ria.porsua pertinência.a um quadro cultu- A!.: kultureileAusaabme... ti co com a mesma infraestrutura, a mesma
responsabilidade ética está implicada: deve ele ral. É isso que a distingue da raça) ela própria sonorização, a mesma configuração cenográ-
deixar que os atores se entreguem a ações vio - definida por características físicas. Na prá- A exceção cultural (ou como se diz mais recen - fica e a mesma mise en scêne (jogo de atuação,
lentas, e até autodestrutivas? Deve deixar -se tica, a identidade étnica é amiúde confun - tem ente: a diversidade cultural) consiste em ritmo). A ajuda à criação teatral não pode
levar responder às questões dida com aidentidade racial. excluir os serviços da cultura e do audio - concorrer com essas grandes m áquinas e pre-
que o assaltam? Deve ele aceitar o risco- que As sociedades multiculturais encorajam visu al das negociaçõescomerciais entre os servar a menor criatividade artística e diver -
o teatro lhe faz correr? por suas subvenções experiências étnicas que Estados Unidos e a Europa, e não _~ conver- sidade cultural.
tornam a dar a esses grupos, mais ou menos ter enl mercadorias como as outras, subrne- Como já observava Derrida no início dos
NOTRS ativos politicamente, Ull1a certa visibilidade e tid as ao mercado. Desde os acordos do GATT anos 1990, há uma débil Inargem de mano-
André Comt e-Spon ville, Di cti onn aire phi losophique,
Paris: P U F, 2013, p. 366 -367.
identidade. Ironia da história: justamente nos em 1993, os serviços culturais e audiovi suais bra entre, de uma parte, um protecionismo,
2 Liesbeth Korthals Altes, Eth ical Turn, em David Her- anos 1930 nos Estados Unidos, o teatro étnico foram excluídos das negociações comerciais. estranho no domínio das artes e que pode
man et. al (ed s.), Rout ledge Encyclopcdie of Narrative era uma ferramenta pedagógica, um labora- Para a cultura europeia ou francesa esta conduzir à promoção de obras nacionais e,
Th eorie, p. 143.
tório, por contribuir para a integração dos proteção é indispensável a fim de não ser de outra, uma inundação do "mercado de
3 Ibidem.

116 117
Excesso
Excentricidade

produtos homogeneizantes, medíocres". distâncias críticas ou irônicas para conl 1. o EXCESSO DRAMATÚRGICO desejo de profusão, o excesso, e atéo lixo'",
É forçoso, então, sustentar a «produção de aquilo que ele é suposto representar) . O excesso não é sempre a desordem, é mui-
Em dramaturgia clássica, o excesso é a des -
obras capazes de resistir à concorrência e de A teoria da empatia cinestésica, tal como
o tas vezes até o contrário.
medida que afeta o herói quando
sobreviver a ela" Porém, acrescenta Derrida, exposta por Dee Reynolds, confirma essa sepa-
ele age estabanadamente, sem atentar para
«isto passa por uma transformaç ão geral da ração entre o sujeito e o objeto, em um lugar,
as advertências dos deuses ou dos simples
sociedade civil, do Estado e, por exemplo, uma zona de indeterminaç ão (zone Dfindeter- 3. "EXC ED E R O CONCEITO"
mortais thybris-), Na comédia, a personagem
pelo cruzamento dos dois, por uma trans- minacy), onde se estabelece a sensação, onde
sucumbe logo que afligida A literatura como o teatro) tem tal-
formação geral da sociedade civil? '. o afeto está sempre em devir entre o sujeito__..
por uma falta dominante: é o caso do Avaro vez a faculdade, testada por poetas- filósofos
e o Inundo objetivo exterior. Identificando-se
ou do Misantropo. como Artaud ou Derrida, de forçar a filoso-
NOTR com um movimento, o indivíduo torna a jogar
Bern ard Stiegl er, Échographies de la A ' escritura contemporânea brilha, elã fia para àl ém de seus limites, e até fora de-"
Paris: Galil ée-Ina, 1996, p.
re-presenta) nele esse movimento e
também, muitas vezes, por seus excessos: seus parâmetros, de "exceder o conceito".
essa intensidade, o que é a condição para que
acúmulo de invectivas em Thomas Ber - Ela se mostra então "capaz, quando trans-
ele o perceba e o compreenda, de modo a ser
nhardt, longura e complexidade das frases gride o que era admitido como seus limi-
afetado por elecomo por um movimento vindo
em Koltés, neologismos em série eru Valere tes, de substituir a reflexão estritamente
dele mesmo. como o teatro, é,
Novarine.vicl ência repetida de situações em filosófica e, ao mesmo tempo, de pertur-
pois, a faculdade ou a arte de se deslocar pela
Excentricidade EdwardBond ouSarah Kane . A cada vez, o bá -la suficientemente para determiná-la a
imaginação,de sair de si próprio e, portanto, no
mesmo princípio é esticado até o limite; repe- aum entar a aposta"; O excesso, a "parte mal-
Fr.: excentticité; Ingl.: eccentricity; sentido próprio de conhecer,o "ex-rase" (ex-ta-
ou exagero torna-se a norma. Renun- dita" é urna em pura
AI.: Exzentrizitéit. sis ou ação de estar fora de si).
ciando à ação, à fábula ou à caracterização d a perda, que se manifesta na sexualidade libe-
personagem; essa escritura busca sua iden ti- rada, no sacrifício, na festa, na representação
É o fato de estar afastado do centro, de estar dade nos excessos, longe das regras dramá- teatral excessiva, no exagero de toda van -
em de descentrarnento-. No teatro, ticas clássicas hr:.'t"l....,'''~-\1'''',.,'"' C' extremista e de todo jogo de atuação
essa situação é frequente, e até constitutiva que atinja um,..paroxismo. Que se denorni-
da relação teatral, Nela, o te atro .nada faz nem "parte m aldita", "despesa improdutiva"
senão repro duzir a situação do ser humano 2. o EXC ESSO NO JOGO D E ATUAÇÃO ou «gloriosa" (Bataille) como as festas, as
frente a seucorpo e ao universo. É assim, 2 HelmuthPlessner, Anthropolozie idesSchauspielers cerimônias e os espetáculos, o potlatch, o
fios lembra Massumi relendo Spinoza, que [1953], Suhrkamp, Quando o ator e o encenador recorrem a urna
1980.
exagero barroco ou sublime, o "corpo dila-
o afeto· produz uma troca entre o corpo e o
apresentação forçada, os dispositivos são siste-
A rt : D eleuz e and the tado" (Barba) ou o corpo extático, o "corpo
mundo, pois o afeto é "um estado de suspen- Colurnbia University matizados, repetidos; o estilo do jogo de atua- obsceno, o '< lixo"
Dee Kines - é artificial, não realista ,
são passional em qu e (o corp o) existe mais th etic Empathy the From Emo-
(Pommerat) tais corpos excedem a represen-
"barroco";as gags são retomadas e prolongadas
fora de si m esmo, m ais na ação abstrata da tio n to Affect, em De e Revnolds, Matth ew Reason taçã o teatral. Eles alcançam uma dimensão
(e ds.) , op. cit., p_128. (Castorf), o ritmo é desacelerado (Marthaler)
coisa tocada e no contexto abstrato desta I . •
qu e a filosofi a conceitual por si não pode-
ação, do que no interior de si mesmo?'.
e até imobilizado (Régy), as marcas estilísticas
("n1arcasde fábrica") são sublinhadas e reite-
ria senl a da l'Y'Y'\'"lrr',...'.. ".......,'",
Essa posi ção excêntrica do ser humano ou da loucura que surge da cena. O excesso)
radas (Kriegenburg, Mesguish) .
é igual e exemplarmente à do ator. Em sua portanto, não é mais uma simples figura de
Essa exacerbação da forma é uma marca
Anthropologie des Schauspielers (Antropolo - Excesso estilo, por érn um dispositivo eurístico para
de poeticidade, uma insistência sobre a face
gia do Ator), Plessner mostra que assinalar e configurar o real na cena.
palpável dos signos, como teria dito Roman
esse ser humano e, em primeiro lugar, o ator, Fr.: excés, Ingl.: excess; AI.: Exzess.
[akobson. Ela não exclui seu contrário: a NOTAS
está sempre à distância de si mesmo , o que se 1 " Ioél Pommerat; [oêlle Gayot, lo êlPomm erat, troubles,
o excesso é uma mola frequente estilização, a épura. Este já era o caso em Arle s: Actes Sud, 20 09, p. 27.
exprim e bem na diferença que a língua alemã
da escritura dramática, do jogo de Grotowski, e é assim que hoje em dia Barba 2 Dictionnaire des Littératures, Paris: Larou sse, 1986 ,
estabelece entre o que o corpo é (Leib) e o p.12-4 6 .
atuação e da encenação. É também organiza suas encenações. Em um autor
que o corpo tera (!(orper) O ator, quaisquer
2

Rebecca Schneider, The Explicit Body in Perfom an ce,
um conceito filosófico útil para d"ecifrar encenador como Ioel Pommerat, o artista 3
que sejam as teorias, situa-se sempre entre Londo n: Routledge, 1997-
a estética contemporânea, se sente atraído pela "épura, a economia
interioridade crê ou faz crer que ele é
especialmente a teatral.
máxima da forma" e por "um outro aspecto
a personagem) e exterioridade (ele toma
nitidamente mais barroco, inscrito em urn

118 119
Exotismo
Exibição de Monstros

Exotismo por sua atração superficial, sem se preocupar sensível às marcas e às variações do exotismo.
Exibição de Monstros
com sua semântica cultural de origem. Esses Ainda aí, nota-se uma nítida diferença entre
FI'.: exhibition demonsters; Ing l.: freakshow; Fr.: exotisme; Ingl.: exotisrn; AI.: Exotizismus. textos não querem dizer muito mais do que o orientalismo do começo do século xx e as
AI.: freakshow. sua alteridade; não são mais textos no sen- encenações dos anos 1920 a 1960. Se a mise
1. ORIGENS DO EXOTISl\10 tido semiótico, porém somente signos, sig- en scêne quer ser exótica, ela deveria então,
No século XIX, o freak show (exibição de nificantes flutuantes da alteridade." nos diz Barthes, estar eln condição de "trans -
monstros) era um espetáculo de circo, É exótico aquilo que parece estrangeiro a O teatro do século xx, quando se interessa formar fisicamente o espectador, de incomo-
de feira, de museu, onde eram exibidas um observador, aquilo que se lhe afigura por outras culturas a fim de representá-las dá -lo, de fasciná-lo, de <encantá-lo' e de não
pessoas de verdade e do qual se esperava estranho, afastado de seu próprio universo na cena ou na sua dramaturgia escrita (o que rejeitar infalivelmente o projeto dramatúrgico
um efeito cômico sobre o público: anão, e, apesar de tudo, familiar. Essa atitude con- é em suma muito raro), tem consciência do ao grau de acessório pitoresco". E, enfim, o
gigante, deficiente mental, mulher traditória foi selnpre notada pelos observa- perigo desse exotismo orientalista; ele des- período pós-moderno- não visa mais repro-
barbada etc. Em Freaks (La tvionstrueuse dores do exotismo. Assim, para Marc Augé, confia dos estereótipos, considerando justa- duzir fielmente as culturas e as épocas. Na fase
parade, na versão francesa), um filme "o exotismo provinha no século XV I II ou mente que é de seu dever combatê-los. Até de descolonização dos anos 1960, a represen-
muito emocionante rodado em 1932, no século XIX de UU1 duplo sentimento na o teatro dito intercultural- dos anos 1970 e tação da outra cultura torna-se muito mais
mas proibido até 1962, o cineasta Tod consciência ocidental: o sentimento de estra - 1980, contrariamente a um preconceito tenaz, prudente, mais «politicamente correta'; como
Browning mostrou um anão enamorado nheza' de afastamento e, paralelamente, o de desconfia das representações exóticas. Com o se dirá mais tarde. O exotismo é denunciado
de uma trapezista no meio de urn circo cer ta familiaridade?'. Por exemplo, nas Cartas pós-moderno e por causa da globalização, o como a fachada amável do colonialismo, como
onde evoluíam ireaks e não ireaks . Persas, os persas de Montesquieu fazem parte exótico perde todo va lor etnológico, ele só é uma técnica de representação ou, segundo a
de seu espanto, ao descrever os costumes dos bom para vender, para comercializar as cul- fórmula de Barthes, "U111 negro.torna-se deco-
A atitu d e em rel ação ao s deficientes e à franceses do século XV II I nas pequenas cenas turas e as economias globa lizad as. rativo': Sob o domínioda global izaç ãoeco-
doença mudou , evidentemente, muito desd e co tid ian as, que supostamente deviam mos- n ôrnica, desde os anos 1.970 e, mais ainda,
o sécu lo x x . Ce rtos diretores como Rorneo t rar a ingenuidade dos estrangeiros, m as de 1980, o exo tismo torna-se um a técnica de
Castellucci, Pippo Delbono ou Jéróm e Bel revelavam também a acuidade de um olhar 3· ..l.'\,.I.;,~v~ ..... ..l.~'y..n.'J DO EX OT ISM O
trabalharam com doentes ou p essoas gra- muito "persa" sobre a civilização franc esa . adaptados aos -diferentes mercados locais (glo~·
vernentedeficientes, mas isso nunca COIn o Som os senlpre o exótico de um outro. A fun ção do exotismo varia no curso dos por exemplo, essa
in tuito d e zombar deles, muito ao contrário. séculos. Constata-se uma espécie de reava- evolução na m aneira corno a cenografia, no
A fascinação por corpos fora das no rmas Iiaç ãodo exotismo, ao menos nas artes e na decurso desses anos, passa de uma figuração
pe rdura. Pode também tratar-se de fazer subir 2 . IvIETAMORFOSES DO EXOTISMO literatura. Já Victor Segalen, no seu livro pós- idealizada com alusões às classes sociais e às
à cen a n ã-oatores, que sejam "expertos do coti- tumo Essai sur lexotisme (1913), via no exo- culturas do mundo, a uma maior abstração
diano" (esses especialistas aos quai s recorrem o exotismo, este "elogio do desconhecimen - tismo urna escola de sen sibilização do outro, pós-moderna. Inclusive a escritura dramá-
os espetáculo s p olíticos de Rirn ini Pro tokoll to" 2 , não tem.boa reputação. Associam -lh e em e até de autenticidade. Era, talvez, UIn pouco tica pós-absurda e p ós-beckettiana conhece
ou de She She Pop e que testemunham em um idealismo do bom selvagem otimista, mas é certo que, ·no século XIX, "os a mesma evolução urna dramaturgia
seu próprio nome), ou amadores qu e ladeiam sse au, Bougainvilliers, Bernardin de Saint- outros não são mais tã o dife rentes: mais exa- supranacional, não mim ética , não situada,
os profissionais. O público, sempre ávido de -Pierre, no século XVIII), um orientalismo- tamente, a alteridade permanece, porém universal nos seus pós-moder-
autenticidade-, espreita o que os distingue logo sucedido, no século XI X, pelo colon ia- os prestí.~ios do exotismo se esvaneceram'". nos e p ós-dramáticos-.
dos "outros", o que os torna pessoas "reais" lismo e pelo imperialismo. Como unl cen ário Quem pode, pois, orgulhar-se ainda de ser
e não portadores de p ersonagens de ficção . de pacotilha, o exotismo se expôs na pintura exótico, para quem e por quanto tempo? Nada
Porém, todo não profissional, todo amador, (Gauguin) ou ern urna literatura de viagem mais nos parece hoje em dia exterior e, por- 4. OS NOVOS HÁBI TOS D O EX OTISM O
todo est reante posto em cena, não se conver te (Loti); no teatro, ele se infiltra na cenogra- tanto, exótico. Somente os catálogos das agên- TEATRAL
então em urna esp écie de [reak. um monstro fia de corativa, no jogo de atuação inspirado cias de viagem persiste m em tirar partido dó
desconhecido que deve de início "m om lstrar" por tradições orientais (o teatro balinês em desejo dos turistas por outros lugares, mas A generalização, e até a banalização, do exo-
que ele é um ator como os outros? Artau d ) e no teatro intercultural. O exo- eles dete rminam finalmente suas escolhas na tismo afeta particularmente o mundo dos
tismo só se interessa por outras culturas na internet em função do s . das disponibi- espetáculos. Hibridacão, sincretismo, mes-
medida em que elas são capazes de "enrique- lidades e da insolação do momento... tiçagem de culturas tornam-se a norma, pois
cer" a visão ocidental: "O exotismo envolve o O teatro é sempre uma exp eriên cia encar- o pós-modernisrno encoraja a mistura das
uso de textos culturais indígenas puramente nada da alteridade e, a esse título, ele é muito linguagens, das artes e das raças sem culpa.

120 121
Experiência Estética Experiência Estética

Sob a cobertura do diálogo entre as culturas, ou paródica no contexto, no território do constantemente bombardeado e submergido outra identidade a não ser através do olhar de
da amizade entre os povos, da coexistência público ocidental em que são obrigadas a por suas percepções concretas; de outro, ele pessoas diferentes munidas de suas exclusi-
pacífica multicultural, a mixagern neutraliza produzir-se, parodiando e desmontando a organiza todas essas percepções graças às vas hipóteses'. Nós somos expostos ao mesmo
um exotismo outrora dirigido contra uma construção da obra e, finalmente, adaptan- formas a priori da intuição, como o espaço tempo a uma experiência exterior que nos
única cultura minoritária, não reconhecida do-as a um público internacional ao gosto e o tempo, depois graças ao sistema ainda vem de todos esses objetos em cena, e a urna
e sem poder. Por um neocolonialismo e um predeterminado pelas regras da cultura oci - abstrato e esquemático da encenação, que experiência interior que retrabalha essas per-
neoexotisrno voluntários, os antigos países dentaL A questão é de saber se essa reversão vai, porém, se precisando incessantemente cepções, as adiciona a outras, as interpreta etc.
"exóticos" se proclamam de novo conlO tais, irônica das formas neoexóticas tem a menor à medida que se compreende o princípio de Essa dicotomia do externo e do interno
a fim de favorecer o turismo ou o cornér- chance de exprimir-se, depois de impor-se sua organização. recorta urna distinção que o alemão, com a
cio. Eles não possuenl outros meios senão no contexto globalizado do público in terna- A experiência estética consiste na trans- diferença só da palavra experiência em fran-
o de vender-se, ao assumir o exotismo e o cional' conservando ao mesmo tempo uma missão do sentido, na percepção das for- cês ou em inglês (ou eln português), faz entre
primitivismo do qu al o Ocidente os havia, parte de sua identidade e puguacidade. Esse mas, na exibição e na instalação das palavras. Erfahrung, exp eriência do real, do conheci-
de maneira bizarra, enfarpelado nos sécu - conflito do exotismo e da identidade está no Fabricar urn espetáculo ou, em seguida, rece- mento, do andamento das coisas, e Erlebnis,
los XVIII, XIX e xx. Eles deviam, com efeito, coração da -troca intercultural e é vital para a b ê-lo, é seInpre deixar-se submergir pelas experiência vivida, íntima, pessoal, vivência.
fornecer ao público europeu ou norte-ame- invenção de novas formas teatrais. sensações que se organizam em percepções, A Erfahrung é a experiência técnica, acu -
ricano o tipo de coreografia, de artes plás - que se estruturam em significantes e, depois, mulada; ela se concretiza em parâmetros
ticas ou de esp etáculos que o mercado da NOTR.5 terminam por formar UITl sistema mais ou observáveis, verificáveis, tendo sua fonte no
M arc Aug é, Pour une an throp ologie des mondes con-
arte internacional e o circuito de tourn ées e, menos coerente. mundo exterior. Ela nos proporciona um
temporains, Paris: Aubier-Flarnmarion, 1994, p. 25.
consequenternente, o reconhecimento, espe - Tzvetan Tedorov, N ous et les autres, Paris: Seuil, 1978, O efeito produzido: a experiência estética espaço exterior, um objeto de saber.ique
ravam deles. P·19· do espectador é sempre urna experiência poderemos logo traduzir em palavras, ana-
Contra esse dikt at da global ízação-, o tea- Christopher B. Balme;Decolonizi11gthe Stage: Thea- concreta -No que ela difere de urna experi ên- lisar com 'conceitos lógicos, referir ao mundo.
trical Sy ncretism and Post-Colonial Dram a, Qxford :
tro, todavia, não é reduzido de id éias, mesmo Claren don, 1999, p. 5· cia da realidade cotidiana? O espectadorsabe Aqui ,--ª: fundará em sólidas.
se a luta é, desigual. A ironia, o humor, a der - lvla rc Au gé, op . cit., p. 26. que issogue ele percebe foi fabricado para ' l\ Erlebni52 ao contrár-io.vé-vivid a pelo
risão são as únicas armas re stantes, embota- Roland Barthes, C om m ent r enrésenter 'ele, que isso é uma produção artística orga- sujeito como-uma experiência Intima.xlifi-
das amiúde pela moral da correção política. Essais crit iques [19 64], Oeu vrescompl étes, t. 1,
Senil, p. 1219. Barthes fala aqui d a encenaç ão por nizada que não pede outra coisa senão nos cilmente comunic ável, que o sujeito gostaria
Apenas a.stand up comedy, os humoristas, os Iean -Louis Barrault d e Oréstia, em 1955. aparecer em sua estrutura, em sua estratégia, de guardar para si SelTI que deva falar dela
espetáculos que manejam a aparente inge- em sua' astúcia; em sua arte de se mostrar e ou se explicar, ',
nuidade ea provoc-ação (como Rimini Pro - de desaparecer ao mesmo tempoEssa est~",-:-_-,-----~A experiência individual: é precisamente
tokoll; She She Pop; Miramas; Fran chement, tica produz sobre nós um efeito· (Wirkung), o'" essa experiência individual e indizível, não
tu) ainda são capazes de devolver a boa cons - qual atinge nossa consciência e nosso incons- partilhável, qu e o espectadorpós-dramáti-
ciência ocidental, de zombar dos estereótipos Experiência Estética ciente, que nos agrada enos desagrada, nos co- ou pós -narrativo deseja viver-sem desejo
que os espectadores manejamtodos nos mais emociona a ponto de nos aliviar de nossas de se aperfeiçoar ou de aprender qualquer
diversos graus, na sua sociedade multicul- Fr.: expérience esthétique; Ing l.: aesthetic experience; penas e de nossos conflitos ou, ao centrá - coisa ou, ainda menos, de transmitir UIna
tural, diaspórica ou compartimentada. Eles AI.: éisthetischeErfhorung. rio, que nos deixa indiferentes. Para estu- mensagem. Essa fórmula corresponde bem
excelem em converter o exotismo, o racismo dar tais efeitos, sempre soubemos procurar a um teatro de irners ào-, derecolhimento
e o sexismo ern uma paródia que faz pouco as ferramentas para mensurá -los e interpre- em si próprio, de urna arte em estado gasoso:
dos tabus do bem pensar; eles.jogam na sua A experiência estética é apenas umdos tipos tar as «medidas": catarse e descarga ernocio- A experiência estética individual torna-se o
atuação com os estereótipos do momento: o de experiência e de percepção. Em que con- nal, ou melhor, distância crítica para julgar objetivo em si, sem que seja útil analisar a
bof (desdenhoso) francês, o turista jap onês, siste a experiência estética para um esp ec- racionalmente. Mais recentemente, nos anos obra. A «experiência individual do especta-
° novo -rico chinês, o investid or do Catar. tador- de teatro? Poder-se-ia aplicar-lhe a 1970 e 1980, a Rezeptions ãsthetik (estética da dor": esta expressão traduz a transferência da
Mas as culturas neocolonizadas e as "neoe- distinção de Kant entre percepção empírica recepção) alemã soube afinar todos os seus produção, do sentido, da encenação para a
xóticas" podem contra-atacar graças a urna e conhecimento transcendental. Mas é pre - instrumentos e analisar de modo sistemá- exclusiva recepção, a subjetividade individual,
política de reterritorialização (caminhada, ciso escolher entre os dois; não constituem tico as diversas e possíveis recepções de uma a performance. Daí urna certa desconfiança
marcha-) , Trata-se então de tirar a cultura, eles as duas faces ou os dois pilares da expe - mesma obra em momentos históricos dife- do público ou ' da crítica em relação à teoria
o estilo, a norma estética de seu ambiente riência do espectador? De um lado, o espec - rentes, a fim de elucidar se a obra possui um considerada como falsificadora e inútil. O elo-
costumeiro, situando-as de maneira irônica tador da obra teatral e artística em geral é cerne irrepreensível ou então se ela não tem gio da experiência estética é um meio de dizer

122
123
Experiência Estética

que não se pode mais analisar objetivamente, de risco· ou do perigo. A utilização de pes-
que vale mais depositar confiança nas sensa - soas deficientes ern um espetáculo modifica,
ções experimentadas pelo receptor. Os artis- por exemplo, nossa experiência cinestésica,
tas também se tornaram por vezes céticos ou nos obriga a repensar, redirecionar nosso
cínicos. O trabalho do encenador consiste às esquema perceptivo. O recurso ao risco faz
vezes em vender um evento «pronto para o parte da experiência: risco físico, psicológico,
uso': como se vendia antes UlTI cruzeiro pelo moral, risco de o utilizador não compreen-
rio Meuse ou, nos dias de hoje, uma excur- der, de ser posto a nu, de se ridicularizar e,
são para a Disneylândia. No supermercado muitas vezes, também, de se enojar. Confron-
da cultura, no novo me rcado do capitalismo,
a experiência do consumo é mais importante
qu e o p roduto consumido>. Compra-se uma
exp eriên cia de vida. Em liquidação, amiúde,
e com um cartão de fidelid ade.
tado com a viol ência, a feiura ou a incom-
preensão, o corpo do espectador sofre muito,
pois o esp etáculo, longe d e diverti -Io ou de
curá-lo, sublinha seu desconforto, sua muti-
lação, sua falta de apaziguamento catártico
F
Existe no Reino Unido e nos Estados Uni - (Teatro do Murro·).
dos u.m gênero novo chamado exp erien-
tial theater (teatro de experiência pessoal). NOTAS
Hans-Robert [auss [1972] , Pour une esth étique de Tex-
É uma forma adaptada à dramatização de peri énce esth étique, Paris: Ga llimard, 1993. Fala Festival e Festivalização
uma problemática pess oal, de uma busca de Para retomar o títul o d o livr o de Yves M ich a u d :
sensações fortes ou íntimas, sob a forma de L'Art à Tétat gazeaux: Essai sur le triomp he de Iesth é- Fr.:parole,Ingl.: speech; AI.: Sprechen. Fr.: festival et festivolizotion; Ingl.: tesuvolizotion;
tique, Paris: Sto ck, 2 0 0 3 . Micha ud d efend e a tese d e AI.: Festivalisietunq .
ações em. lugares públicos, unla forma cen - qu e a obra de arte contemp o r ân ea se redu z amiúde
trada em ações estranhas que interpelam o a uma experi ência subj etiva, a U111a arte em estad o O teatro da fala (parole): expressão que se
espectador quase sem a mediação da arte e gasoso. emprega em contraposição à de um. tea - A multiplicação dos festivais na maioria
Lu c Bolanski; Eve
da ficção . Trata-se sempre de colocar o corpo du capitalisme, Paris: 201 1. Ver, ig ual-
tro de conversação, de diálogo, segundo as dos paí ses é outro sintoma da globalização.
do espectador à prova: percursos em luga - mente, Patrick He tzel, Planeie canso: Marketing cxpé- leis da dramaturgia clássica ou neoclássica. Mais do que de unia festivalização, dever-
res improváveis, possibilidade de dormir, de rientiel et nouv eau x uni vers de consommation, Pari s: O teatro da fala é o teatro da voz, não da voz -se-ia falar d e uma "fest ivalidad e" aguda!
Édition d'Or ganisation, 2002 .
fantasiar em paz, de proporcionar a sensação C01110 portadora do sentido ou da psicolo- En1 quinze anos, o número de festivais na
gia de uma personagem, mas da voz em sua Europa foi multiplicado por trinta. Uma
dimensão rítmica, somática, visceral-, em sua cidade corno Berlim conta COIn mais de qua-
vocalidade-. Em um teatro da fala , o essen- trocentos por ano ! Pod eríamos rejubilar-nos
cial reside na maneira de dar a entender de com esse aumento da oferta cultural e teatral,
outro modo a linguagem: de fazer perceber, se ela não se fizesse quase sempre às custas
física e poeticamente, a materialidade-, o sig- da programação regular dos teatros. O fes-
nificante e não o significado. tival, com efeito, não é somente estival, ele
A fala é o acontecimento da Iinguagem, se estende por todas as estações do ano. Não
seu processo-, sua enunciação, sua performa- se trata mais, corno nos anos 1950, de iniciar
tividade-. É o que se pode fazer com a fala, um público em gêneros novos, mas de intro-
não C0111 as palavras (mots) (as falas, paroles) duzir uma política do evento, um após outro.
para acompanhar as trocas verbais, porém Viu, pegou e partiu!
com uma "escritura em voz alta', como diz A participação em festivais torna-se para
Barthes: o endereçamento direto da fala ao certos grupos um modo de funcionamento.
público (e não a troca verbal de palavras )1. Algumas companhias jovens endividam-se
pesadamente no festival off de Avignon, sem
NOTA garantia de que seu trabalho será comprado
Michel Liard, Parole écrite: Parole sc énique, Nantes:
loca Seri a, 2006 , p. 43.
por programadores preocupados unicamente
com a rentabilidade. O trabalho preparatório

124
Festival e Festivalização

dos artistas é efetuado em função do festi-


val, que muitas vezes encomendou o show:
programática de uma cadeia de televisão.
A festivalização como "crise de crescimento"?
r! Figura época apresenta uma atitude característica,
Figura

uma atitude que é o produto de certa imagem


escolha de peças ou de espetáculos para um Contrariamente às aparências, a pletora da Fr.: figure; Ingl.: figure; AI.: Figuro' dominante do homem no mundo":', Assim,
futuro público, amiúde ao mesmo tempo oferta festivaleira é enganosa, pois são com pois, a figura e a atitude reúnem as noções
noviço e internacional; redução da parte frequência as mesmas produções, ou suas Além da fiqura- (do latim figura: forma,
de gestus- (Brecht) e de habitus (Bourdieu).
linguística e textual; legendas simplificadas; variantes, que circulam de um festival, de configuração, efígie, maneira de ser) no
uso do mensagem ten - um país, de um teatro a outro. O Estado e as sentido das figuras de estilo da retórica-,
dência ao teatro de rua, ao teatro "gestual" coletividades territoriais ficam tentados a se a noção de figura conhece na est ética, na
1. FIGURA COREOGRÁFICA OU GINÁSTICA
etc. O festival torna-se uma vitrine, um sho- abster de uma programação anual de quali- filosofia, nas ciências humanas e nas artes
Vi/ case em que os profissionais da filmagem dade e coerente a longo prazo, em favor de visuais um largo destino. A figura é, tanto
Na cena, a primeira figura assinalável é a
assim como os amad.ores das tournées vão eventos e de golpes midiáticos que não esca- na origem impressa na cera quanto no
dos movimentos dos atores e dos objetos.
fazer suas compras. É o que, aliás, explica a pam aos eleitores, ruas não nutrem qua se os traçado geométrico, no desenho'de uma
Corno foi concebida eexecutada por dife-
atitude urn pouco blasé, entediada, dos con- cidadãos. coreografia, na atores na
rentes artistas, ela forma um conjunto ao
sumidores desses showcases para profissio- .Festivalízaçâo da cultura, e rnesmo da cena (a marcação ou o blocking),
mesmo tempo móvel e estável, desde que o
nais. Quanto aos espe ctadores dos festivais, vida, como se essa forte dose de teatro a imagem onírica na sua dimensão
espectador tenha apreendido seu desenho (e
eles devem efetuar incessantes escolhas a fim durante alguns raros dias deve sse a seguir plástica. A figura é aquilo que se ressalta também o desígnio): «no sentido ginástico
de encontrar seus espetáculosem meio a um bastar ao público por longos meses. "Festi - da representação, aquilo que secolàca e
ou coreográfico; em suma, no sentido grego:
grande número. Amiúde se trata na realidade valite": uma indigestão entre duas penúrias se recorta no primeiro piano contra um
não é o de uma forma
de um festival em que U111 só crônicas, unla comunidade ilusória de plano de fundo. É também o aspecto
bem mais viva, o do corpo apreendido
grande esp etáculo à noit e, sendo as horas do dias, em 'lugar de uma comunidade que se exterior, o contorno das coisas
em e contemplado em repouso: o
dia reservadas ao olf ou às produções locais: molda toda ao longo do ano. O público não percebemos.
corpo dos atletas, dos oradores, das estátuas:
pelo menos o público poderá então respirar se engana nisso, ele que zapeia alegrem ente aquilo que é possível imobilizar do corpo
um de uma produção a outra, acentuando ainda Em filosofia, a figura éum "esquemaou.ima- tens0 "5. Dança, teatro as
um pouco m.aisseu paraa \...l.Áu' LÁL'L"r .Ll-'-',
nem
nezt íaenci àveis: a programação obe- em todos os sentidos do termo. Dito de outro modo, é ao mesmo tempo uma em relevo das ações e dos movimentos sobre
dece vezes a efeitos de moda, a uma Essa precarização do público é tamb ém a imagem geral e um conceito sensível..." 1. A um plano de fundo mais ou menos constante.
universalização , um a simplificação, urna dos artistas, dos técnicos e do s organizado- noção de figura permite pensar o fun cion a-
globalização de ternas e d e est éticas passe- res. .A gestão do festival recorre aum pessoal rnento ao mesmo tempo discursivo visual
-p arto u t, aliás rapidamente ultra- intermitente, flexível e A. \el'--,~ÁLVO...lC ..L'rU.V
do teatro. "Tudo no teatro éfigura 2. FIGURA NO SENTIDO
o tema do ano a do emprego se à cultura: festiva- sentido concreta FENOMENOLÓGICO
seu gosto; ele pa ssa a borracha nas asperezas lização COIno sintoma da globalizaçã o cul- rico - , tudo aí se faz signo." A prática contem-
culturais de m asiado.específicas e "estranhas", tural? Corno signo da "gloca l izaçã o', corno porânea da arte performática, da' encenaç ão Assim percebidas segundo seu aspecto e con-
pouco compreens íveis e inesperadas; tende organização de festivais loc ais, corn o único e das artes visuais faz um uso roassívod a..... _~g_~-go exterior, sua silhueta, as figuras são às
a responder ao gosto do público por valores objetivo de parecer global? O festival está noção de figura . " vezes analisadas nos termos da fenomeno -
seguros, com UlTI . exoti smo e urna cor local longe de ser sempre a festa ! A no sentido de início As de Robert Wilson são
que não chocarão ninguém, O festival não uma atitude, uma silhueta percebida: à dis- famosas pela inscrição em silhuetas de can-
tem mais nada de urna festa desenfreada, de Anne -Mar ie Aut issier. L'Europe des tância, figurino ou efígie. É também um habi- tores e atores sobre o fundo de um ciclorama
um ritual im u t ável, ele se degradou em um fes tivais: deZaqreb à Édirnbourg, points tus-, o qu e Bourdieu denomina "uID..modo ~llb111et~g()~~ todas as variações possíveis de
evento efêmero e superficial. de vuecroisés.Toulou se: Édit io ns de de comportamento aprendido?', A figura une luz e de cor. .A. lentidão, e até a imobilidade,
A festivalização da cultura é um fenômeno l'Att rib ut, 2 0 0 8 . a atitude, no sentido concreto e no abstrato, dos movimentos intensifica a impressão de
mais inquietante do que festivo. vale de a de posição. s'e revela sombra chinesa e de (é o caso de
(eds.). resuvausma!
para a velha Europa, todavia cada vez mais útil para o ator e o encenador.quandodevern Katia Kabanova, Praga, 2010). De um modo
Theatrical Event, Politic ond Cu/ture.
também para ou tros continentes: segundo encontrar aatitude ~ a figura (a silhueta) da mais geral, a tarefa do ator ou do performer
Amsterdam/New York: Rodo pi, 2007.
Jean [ourdheuil, a Europa, outrora um lugar personagem, sua: maneira gestual ediscur- é saber posicionar-se, à frente ou em recuo,
de cultura, tornou-se um local de festivais, siva de se exprimir e de aparecer, pois "cada e ajudar o espectador a focalizar um aspecto
e a programação assemelha-se a uma grade época histórica e cada classe social em cada pertinente.
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127
Figura Figura

3. A FIGURA EM DELEUZE não é vista, mas não é mais visível:' (p. 278) e da linguagem pictórica das cenas a fim de figuras abstratas, personae (máscaras), ske-
A vetorização, a ação de relacionar opera- remontar às ideias abstratas inconscientes. mata no sentido grego de gestos, atitudes e
Em Francis Bacon: Lógica da Sensação, Gil - ções comparáveis ao sonho põe em evidên- Desde que a representação teatral ou a habitus, mas também de textuais'?"
les Deleuze situa sua concepção da figura na eia o trabalho do sonho, do figural, da mise performance trabalhem a cena e as ações que se repetem e organizam a dramaturgia
«leido diagrama segundo Bacon: parte-se de en scéne produzida assim como percebida, corno materiais "para figurar': o trabalho da em seu conjunto. Essas figuras são definidas
uma forma figurativa, U111 diagrama intervém das condensações e deslocamentos, dos pro- cena, à imagem do trabalho do sonho, é uma e construídas pelo exterior, como silhuetas,
para a baralhar, e daí deve sair uma forma cessos primários e do do desejo. Tal "tornada em consideração da representativi- desenhos de ou de formas teatra-
de uma natureza totalmente diferente, deno- é a situação corrente do espectador-analista dade" Essa fórmula complicada traduz lite- lizadas a serem preenchidas. O pintor Fer-
minada Figura'". A figura é sempre mediatriz confrontado com os materiais cuja lógica ralrnente a expressão freudiana Rücksicht auf nand Léger" encarava a pessoa humana não
entre figuração concreta e abstração. inconsciente não é de entrada acessível. Dursteilbarkeit (ao pé da letra: atenção, con- como uma mimese das emoções, mas como
Em toda figuração, há sempre urna des- possibilidade de representar) uma forma plástica, pois "se deve conside-
figuração-, "toda apresentação gráfica que Trata -se p ara o espectador-analista de terem rar a figura humana, não por seu valor sen-
4. FIGURA E FIGURAL, FIG URAÇÃO tenda a tornar a figura dessernelhante das conta "visualmente" aquilo que, em face dele timental, mas por seu valor plástico?".
E DESFIGURAÇÃO, FIGURATIVO aparências que ela deve supostamente 'pro- e diante dele, se constitui em uma represen-
duzir' nesse sístema'". tação' aquilo que faz sentido para ele. NOTAS

Todos esses termos não devem ser con - O teatro visual, notadamente o teatro da Sylviane Agacinski, Le Passeur du temps: Mod ernit é
Representação visual de uma forma, a figu-
et nostalgie, Paris: Seuil , 2000 , p. 107-
ração é o que aparece na cena, por oposição fundidos COTIl o de figurativo. O figurativo é arte performática, utiliza muito esse dis- 2 Michel Corvin, 1héâtralité, Dictionnaire
ao discurso. Para Jean-François Lyotard (em tanto o simbólico, a interpretação alegórica positivo de figurabilidade para mostrar, dique du th éâtre à travers le monde, Paris:
2008, p. 1339.
Discours, figure), o opõe-se figura ou simbólica, como, ao contrário, aquilo que SelTI nomeá -los, os processos conscientes e
3 "A learned mode of behaviour', segundo Shepherd
e a [ortiori ao discurso. () figural descons- representa um objeto: fala -se então de arte inconscientes. e Wallis: "A silhueta do ator éem prim eiro lug ar e
tr óiodiscurso e.a figura, caso se reconheça figurativa, aquela que representa e figura seu antes de tudo o que Mauss e Bourdieu teriam den o-
nela demasiado facilmente a forma, O objeto, por a uma arte abstrata, que minado corno habitus, um modo de comportamento
adquirido:' Simon Shepherd: Drama/
ral causa surpresa, é um .apa recim ento que fornece uma imagem não realista dern1undo. 6. FIGURAS E TRAJETOS TheatrelPerformanc e, London/New York: Routledge,
não assume un)a significação precisa, mas Essa categoria do figurativo/não figurativo é DO INCONSCIENTE 2004, P.193.

indica a urgência do desejo. Na cena teatral raramente aplicada ao teatro. No entanto, ela Ibidem.
Roland Barthes, Fragments d'un discours amoureux
ou tudo o que é da ordem do será útil ao teatro, por expressar a Vl-''''''-'-,,",'''''''-' Todo esse conceitual oriundo da [1978], Oeuvres completes, Paris: Seuil, t. 3,
textual e da imagem facilmente "traduzível" entre presentacional/representacional-, O tea- psicanálise é diretamente utilizável pela P·4 61.
é percebido em contraste com o figural, com tro figurativo imita pessoa e ações, enquanto encenação, a qual deve ao mesmo tempo 6 Pjiblicado em 1981. Reedição, Paris: Seuil, 2002 ,
p.14 6.
o que não é redu tível à lin guagem. o teatro abstrato se preocupa unicamente fabricar essas figuras e dá-las a "ler" ou,
7 Bernard Morizot;
cusunzue três de a com as formas, sem inquietar-se corn os con- mais exatamente, a interpretar ou como Roger Pouivet et
figura- imagem, afigura-forma, afigura-rna - teúdos. Esse último caso é o de UIn teatro um rébus ou (para um ocidental) como de philosophie Iart, Paris: Annand Colin, 20 0 7,
p.200.
triz (p. 277). simbolista, formalista" e, no último terço do um ideograma. É a tese de Vitez a propó -
8 Cf. Michael Kerby, A Formalist Theatre, Philadelphia:
A figura-imagem é visível, tais como um século xx, pós-dram ático-. sito daquilo que o inconsciente dos atores University of Pennsylvania Press, 1987.
movimento e UIna forma perceptíveis, uma desenha sobre a cena: "Visto que a cena é o 9 Antoine Vitez, Écritssur lethé ãire, Paris: POL , t. 4, p. 67-
ação que se faz ver e reconhecer. Ela "se faz lugar onde se leenllitcralmente os trajetos 10 Cf. Michel Vinaver, Écritu re s dra matiques, A rles:
ver na cena onírica ou quase onírica" (ibi- Actes Sud, 199 7.
5. A FIGURABILIDADE das paixões que opõem os papéis, a nota-
11 Ver também
dem). A cena parece ou logocêntrica. ção desenhada tem quase necessariamente on
A figura-jorma é "aquela que sustenta o A figurabilidade (tradução do termo freu - figura de ideograma,"? and His Generatton,
visível sem ser vista, sua nervura" (ibidem). sity Pr ess, 2001.
diano Darstellbarkeit; cujo sentido literal é a
o espectador deve fazer o esforço de desco- possibilidade de representar ou de ser repre-
12 "Le Nouveau réalisrne en art', conferência de 1946 .
Ver também: Ponctions de la peinture, Paris: Galli -
brir liames entre elementos, de vetorizar sentado), é um termo expresso hoje em dia 7. FIGURA VEZ DE PERSONAGEM mard,1997.
é, religar e orientar) os signos percebidos enl igualrnente por "presentabilidade" no sen-
direção de outros signos impercept íveis ou tido da faculdade de tornar presente por o mesmo processo de abstração se observa
inconscientes. uma imagem um objeto ausente. À maneira no tratamento das personagens na dramatur-
Quanto à ela remete ao de Freud na Interpretação dos Sonhos, o ana- contemporânea, de Beckett a Koltes. Em
invisível e ao inconsciente, "Ela não somente lista cênico se esforça por partir das irnagens vez dos caracteres psicológicos, encontramos

128
129
Filosofia e Novo Teatro Filosofia e Novo Teatro

I Filosofia e Novo Teatro


do ponto de vista dos criadores assim como
dos espectadores. Além das grandes questões
ou do espectador. A Rezeptionstheorie (teoria
da recepção) alemã de um Jauss ou de um
Iser sistematiza o horizonte de expectativa do
havia tornado necessárias. Essa experiên-
cia engaja, pois, o espectador) inclusive no
plano ético, visto que ele deve responder
Fr.: philosophieet noveau théâtre; Ingl.:philosophy sobre a origem e a essência do teatro, após
anelnew theater; AI.: Philosophieuncfneues Theater. as grandes revoluções das ciências humanas público e estabelece a sequência de concre- pelo impacto da obra sobre a coletividade.
dos anos 1950 a 1970, a filosofia parece ter-se tizações de uma mesma obra por uma série A teoria ou a filosofia não nos dizem, toda-
Cada nova encenação, cada texto fragmentado em uma longa série de teorias de momentos históricos ou de encenações. via, como formalizar e sistematizar esse ato
dramático recém-escrito, cada experiência amiúde contraditórias e fechadas em si Ines- A fenomenologia, inspirada por Husserl ou receptivo. Muitas vezes a experiência da per-
teatral original nos obriga a repensar o mas. A cada época, a cada momento histó- por Merleau-Ponty, aplicada ao teatro por cepção é desarmada quando ela deve pôr em
mundo, a reconstruí-lo com a imaginação. rico corresponde uma filosofia dominante, Bert States (Great Reckonings in Little Rooms, palavras o que o sujeito sente em afetos- e em
Para construir esse objeto minúsculo ou a qual se explícita em diversas teorias, e até 1987) ou Stan Garner (Bodied Spaces, 1994), sensações. É então tentador reduzir o texto
derrisório, esse mundo em miniatura metodologias. nos mostra a maneira como o espectador ou a encenação a alguma coisa de inefável,
ou em migalhas, devemos reduzi -lo ao O marxismo forneceu n os anos 1950 e recebe e tr ata o objeto esté tico. de imperceptível e até de pó s-dramático-:
nosso e, portanto, refletir (sobre) esse 1960 uma armadura para a análise drama- maneira de empurrar para mais tarde sua
mundo. A filosofia não está longe. Ela túrgica das peças e dos espetáculos, análise definição ou sua apreensão filosófica.
está, aliás, desde sempre interessada de inspirada no brechtismo. 2. o DESLOCAMENTO DAS GRANDES
perto no teatro, mesmo se, com Platão, era A escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Q U ESTÕES
para banir os poetas da cidade ou, com Habermas) prolonga os estudos marxistas. 3. INVERSÃO DA PERSPECTIVA
Aristóteles, para desconfiar do jogo da A recepção americana da Critical Theory Essas teorias continuam a evoluir e, portanto,
representação. incita a criticar a ideologia das obras, a exa - a influenciar em graus diversos a maneira de A questão é saber se existe hoje uma filoso-
minar seu potencial ernancipador, criticando pensar o teatro. Elas são, en tretanto, muitas fia, ou mesmo simplesmente uma teoria, que
Há muito tempo que a filosofia não se per- ao mesmo tempo seln trégua seus pressu- vezes "ultrapassadas", ou "diagon alizad as" perrnita dar conta do advento do teatro pós-
gunta mais se o teatro é literatura ou arte postos e a situação na qual ela é empregada. (survolées, leituras apressadas), por duas ten- -dramático e da ampliação do teatro ociden-
autônoma, se ele pode representar o mundo, Infelizmente, as pessoas de teatro recorrem. dências ,ª tLlais da teorização: a perform at ivi- talparábüttas[órrnas.Cumpd'rlànÜs pôr
corrigir os costumes, ou então, ainda, se o muito pouco a isso, a despeito do interesse de dade- e a experiência est ética-. em busca de .uma filosofia que nos ofereça
ator ou o dramaturgo é necessariamente, mostrar quanto as-falsas percepções do leitor A teoria linguística dos performativos, novos modelos de inteligibilidade do objeto
como afirmava Nietzsche, capaz de «assisti r como do espectador estão ligadas a seu apri- aplicada à literatura e às ciências humanas, "( cultural) performance': Além de uma filo -
ele mesmoà sua própria metamorfose e agir sionamento tanto cognitivo COl110 ideológico. insiste na ação produzida por toda enun- sofia cartesiana do sujeito, ou hegeliana da
por consequência corno se tivesse entrado O estruturalismo, nos anos 1960, depois a ciação. Quer se tratem da identidade sexual dialética histórica, o modelo cognitívista de
efetivamente em outro corpo, em outra per- serniologia por volta de 1970-1980, aplicam- (o papel sexual corno at o performativo), Lakoff e Iohnson, em Philosophy in th e Flesh:
sonagem" (Nascimento da Tragédia, §8). Nós -se muito à mise en sc êne considerada corno gestual pa ra o ator (a gest ualidade subme- The Embodied Mind and Its Challenge to Wes-
estamos hoje em dia 111Uito distantes da sus - sistema fechado e coerente. tida às m esmas técnicas corporais e estéti- tern Thought (Filosofia Incarnada: A Mente
peita dos pensadores gregos, dos Padres da Por oposição, e quase simultaneamente, a cas) ou social (as conv enç ões qu e regulam a Incorporada e Seus Desafios no Pensamento
Igreja e dos cenófobos. Longe, portanto, das desconstrução de um Derrida, o p ós-estrutu- comunicação), os perforrnativos estruturam Ocidental), tenta ultrapassar o dualismo do
grandes questões da filosofia. Mas a necessi- ralismo e a Teoria Crítica que daí decorrem, a vida social referenciando as ações efetua- corpo e do espírito; ele (o modelo) propõe
dade de filosofia permanece! Por quê? notadamente nos Estados Unidos, tornam-se das em todos os níveis do comportam en to um modo de pensamento que não opõe mais
uma boa ferramenta para descrever a per- humano. Daí o cism a, ap ós urn a trintena de o sensível e o inteligível, o perceptoe o con-
formance e as práticas cênicas que às vezes anos, en tre theatre studies (estudos teatrais) ceito, a materialidade- concreta e a com-
1. A NECESSIDADE DE FILOSOFIA assumem o nome de teatro pós-dram ático- e performance studies-. preensão abstrata. A encenação, e com ela
(Lehrn an n , Postdramatisches Ih eat er). A experiência est ética- do espectad or é todo objeto espetacular ou performativo não
.É porque a filosofia nos ajuda a compreender A sociocrítica, a psicocrítica, na seq uência tida como o objetivo último da obra de arte, o identificado, instaura, precisamente, uma
melhor a prática contemporânea do teatro e dos trabalhos de Goldmann e Mauron, for- que deslo ca pa ra o recept or a maior parte das mediaç ão entre a abstração da filosofia e o
da perfonnance? Além de uma reflexão nor- necem preciosos modelos de análise muito teorias. É verdade qu e muitas obras recen- concreto da obra plástica ou gestual.
mativa sobre a maneira pela qual o teatro é depressa abandonados. tes nas artes plásti cas ou cênicas exigem do Pouco importa o respeito que se dedique
tido COIUO [a arte] de imitar as ações humanas A hermenêutica de um Gadamer ou de espectador" uma atividade e lUTIa inventivi- à filosofia e a tudo o que aclara a criação tea-
üU de corrigir os costumes, constata-se a uti- um Ricoeur permite suavizar as análises dade, para não dizer uma paciência, que a tral, é preciso, nos dias de hoje, perguntar
lidade da filosofia no uso cotidiano do teatro, levando em conta as expectativas do leitor obra clássica, COl11 suas regras estritas, não se, inversamente, a prática teatral não nos

130 131
Filosofia e Novo Teatro Fim

ajuda a fazer também uma nova experiência vezes sem que o saibam e por pura intui- Entre filosofia e teatro, a disputa eterna, no "Disposição fixa do ritmo no fim do verso"; a
da filosofia, se o trabalho da escritura dramá- ção' descobrir, graças à forma teatral, uma entanto, nada fez senão começar. cláusula termina a obra, conferindo-lhe uma
tica ou da cena não desemboca em alguma verdade ou uma hipótese filosófica. Assim, forma estabelecida e uma grande força sig-
inesperada "iluminação" filosófica. a digital performance lança um desafio às nificante. Na poesia ou na música, a cláusula
Sabemos que os filósofos, ao menos depois noções de presença, de identidade e de pes- designa "uma maneira de fechar um enca-
das Luzes, foram, com frequência, ao mesmo soa. Pouco importa o que relate, ela não deixa deamento sonoro; isto é, uma disposição de
tempo literatos ou dramaturgos, praticando de tornar o público atento a essas noções, for- sons (musicais e articulados) que faz passar
Fr.: tin; Ing l.:ending;AI.: Ende.
os dois gêneros com igual felicidade (basta çando-o a reavaliar suas certezas. Ou então de um dinamismo apelativo a uma continua-
pensar em Diderot, Voltaire ou Schiller).l\1as a escritura dramática dita coral: ela desvia o ção, a uma posição conclusiva que causa uma
Tudo tem um fim? Sim, e sobretudo no
a separação de corpo permanecia obrigató- princípio da troca dialógica, produz igual- impressão de estabilidade e de acabamento"
teatro. Desse fim nós nos lembramos
ria, pois foi somente COIn os ensaístas como mente um efeito inesperado, pulverizando (Souriau, p. 405) .
sempre, e muito melhor do que dos
Blanchot ou Derrida que literatura e filoso - a noção de sujeito Gu d e locutor, abrindo o Se a poesia dramática, em especial aclá s-
detalhes da história. Na cena, ficam
fia se interpenetrararn, As pessoas do tea - texto a ecos inumeráveis, não apenas subtex- sica, cuida sobremaneira de suas cláusulas,
particularmente em nossa memória os
tro foram mais tímidas, com discursos que tuais e psicológicos (como em Tchékhov), o teatro dramático, desde que se tornou rea-
últimos segundos de jogo teatral, antes
passavaln dem.asiado afastados ou mutua- porém polifônicos e indecidíveis. Assim, fica lista, não tenta atrair a atenção para tais jogos
de a cortina cair ou antes que o palco
mente exclusivos. A escritura dramática colocada a questão da mobilidade do sentido, formais, preferindo dar a ilusão de uma imi-
escureça. Enós temos sempre a esperança
de filósofo s corno Sartre ou Camus conti- de seu espaçamento·, na acepção de Derrida. tação prosaica da realidade. Nenhuma for -
de que se compreendermos o fim, tudo
nua por demais escrava da mensagem a ser Em todos esses exemplos, reencontramos malização permite, portanto, marcar uma
o que precede se iluminará como por
transmitida para que se possa fala r de uma esse procedimento da desconstrução-, con- cláusula. Devemos então falar, de maneira
milagre. É ilusão, por certo, mas que
p esquisa de conteúdos filosóficos a partir forme o filósofo francês: só a prática textual banal, do fim ou do desenlace, os quais não
nos encoraja a estudar o fim das peças,
de experiências dramáticas. Em cOln pen- ou cênica 'está em condições de proporcio- são sempre claramente marcáveis ou isolá-
com o risco de generalizações abusivas,
sação, com autores corno Beckett ou Nova - nar uma imagem-desse procedimento filosó- veis. Pois, onde começa o fim, onde se situa o
principalmente para uma pós-drarnaturqia
rina, Handke ou Ielinek, a pesquisa literária fico, tão frequente e também difícil de definir pontode finalização, isto é, o começo do fim?
que desafia todas as regras narrativas.
e d ramática resulta em uma reflexão sobre quanto um Koan chinês. O ponto -de finali zação indica uma
o sentido ou o absurdo, em uma remiss ão Poder-se-á, com isso, chegar a ponto A noção de fim permanece, entretanto.rnuíto mudança que pode ser anunciadora (efeito
ao debate de um princípio filosófico. Um de afirmar que o teatro de pesquisa pro - fiou, o que explica que ela tenha sidomui- de anúncio), final (concluindo a ação) ou
autor C01110 Koltes, que passa erradamente voca sempre a filosofia, que.ele .a faz avan- tas vezes substituída por instrumentos mais suspensiva (concluindo sem concluir). Esse
por pintor da vida dos marginais, testa, em çar? Seria isso, de sua parte, uma pr eten são técnicos como cláusula, desenlace, conclusão, ponto de finalização não deve ser confundido
uma peça como Dansla solitude des champs demasiado grande? Seria nesse caso ne ces- extremidade, cume, epílogo, termos que não com as seguintes quatro distinções:
de coton (Na Solidão dos Carnpos de Algo - sária a hipótese do aparecimento, a p artir são de modo algum intercambiáveis. Se con- O ponto de não retorno: o momento em
dã o), o principio h egeliano da dialética, da da modernidade, de um discurso híbrido, tinuamos a elnpregar a palavra "fim', é que que o conflito, notadamente trágico, não
contradição eda identidade de consciências . feito de literatura, de teatro, de teo ria crítica não há outra para designar o conjunto dos poderia voltar atrás e leva necessariamente
Ele leva a desconstrução a ponto de parodi ar e de ensaio filosófico. Se a encenação não problemas de composição e de encenação. à catástrofe.
a disputatio filosófica ou teológica, empre- é somente uma regulagern do sentido, mas O ponto culminante: o clímax, quando a
gando argumentos tão vazios quanto flarne- UHl "desreg ramento dos sentid os': ela é então atenção está em seu CÚITIulo e a ação situa-
jantes no uso da teoria. Corno dizer melhor um sistema provisório, flutuante, apreendido 1. o IMPRECISO FIM -se em seu apogeu, justo antes da catástrofe.
a reificação, a mercantilizaç ão das relaçõe s instantaneamente por um coletivo de artistas A catástase: a parada da ação, em "u m
humanas? e por um coletivo de espectadores. Tent ando o termo mais técnico para designar o fim de estado de tensão em que a ação se encon-
A performance, a [ortiori, no sentido de várias «soluções': ela revela alguns princípios um texto literário é o de cláusula)mas ele se tra provisoriamente imobilizada" (Souriau,
performance art dos anos 1950 e 1960, havia desua construção e, portanto, chaves filosó- aplica apenas ao teatro em verso, o de Racine, p. 318). A catástase coincide com "a expec-
assumido a tarefa de contradizer e de pro - ficas que, em troca, hão de ajudar a abri-las. por exemplo, um teatro cuja forma rítmica tativa angustiada, o bloqueio recíproco de
vocar as certezas estéticas e filosóficas (a Assim, pois, a filosofia não é apenas nece s- ou métrica dos alexandrinos é particular- forças e o falso desenlace" (p. 318). Por exem-
representação, a identificação, a mirnese sária aos espectadores para integrar esses mente trabalhada. A. cláusula é, com efeito, plo, as últimas palavras do cliente ao dealer
especialmente). Mesmo sem a radicalidade saberes heterogêneos, mas ela tem necessi- "um fim de período particularmente cui- ("Então, qual arma?"), bem no fim da peça de
de seus antecessores, muitos encenadores dade' para mover-se, da criação ficcional, da dado, de um ponto de vista métrico, rítmico Koltes, Dans la solitude des champs de coton
contemporâneos se dão como objetivo, às prova da encenação e da criação artística. ou sintático, ou dos três ao mesmo tempo". (Na Solidão dos Campos de Algodão).

132
133
Flash Mob
Fim

o fechamento: no sentido deste "fecha- das peças. Em particular, o exame .das .for- contemporâneo, visto que este último solicita de participantes - dançarinos, cantores,
mento da representação" do qual fala Der- mas se interessaria pelos seguintes pontos: a empatia cinestésica do espectador. atores, performers, animadores, ativistas -
rida a propósito de Artaud'. Não se trata da retomada de um enunciado; do Quando o teatro pretende dar um apanhado intervêm a um dado sinal (por celular
parte final do texto, mas da ideia com que enigma, lugar e identidade do epílogo; ritua- documental do mundo, quando ele recorre a ou internet) para dançar, cantar em
se fecha necessariamente o sistema tão logo lização da conclusão; apoteose; fins radicais; expertos mais do que a atores a desempenhar lugar público, antes de desaparecer.
se analisa seu funcionamento. ressonâncias; falsas conclusões; preparo e personagens, o espetáculo jamais estará ver- Os passantes, testemunhas e espectadores
manipulação da conclusão' dadeiramente term-inado, ele é apenas inter- involuntários são convidados para este
rompido pelas necessidades da enquete a espetáculo inédito, enquanto a cidade ou
2. o FIM NO TEATRO: UM SISTEIvIA prosseguir. E não se poderá dizer COIn certeza os grandes magazines mantêm seu ritmo.
ESPECíFICO? 3. O FIM NO quando ele de fato começou, visto que a cena
TEATRO CONTEMPORÂNEO presente não é senão um pálido reflexo da Além das motivações comerciais, a flash mob
Como aplicar ao teatro as leis da narratologiai enquete preliminar, que se dá às vezes muitos revela a vontade e o prazer de inscrever a
A 'qu estão aí é saber se há para o teatro um A extrema diversidade das experiências tea- anos depois dos fatos relatados. O espetáculo arte 110 tecido social urbano, por efeito da
meio específico de finalizar. O texto dramá- trais e performativas contemporâneas arruína transborda os dois lados (passado e futuro) surpresa, como .por um happening-, a fim
tico e a representação são analisáveis como toda esperança de uma poética ou de UIna dra- para a esfera pública, à qual ele remete sem de fazer com que transeuntes e artistas, na
todo relato, conforme as seguintes fases obri- m aturgia do fim nesse tipo de obra. A razão trégua. Por conseguinte, o espetáculo não maioria das vezes amadores, participem, e
gatórias: 1. Resumo-anúncio: 2 . Ori entação; 3. disso é simples: essas experiências não pas- tem fim. de levarum toque de arte e UDl momento de
Complicação; 4. 5. Fecho. O sarn pelo texto sua dra- poesia ao cotidiano morno de nossas cida-
da peça engloba as duas últ im as fases 4· e S, °
maturgia: elas apelam a todo aparelho da NOTRS
Michele Aqui en, Dictionnaire de poéiique, Pari s: Le
des. Podê se tratar também de uma simples
É senlpre possível analisar o texto e o esp etá- cen a e -do corpo. Daí a importância d e uma reunião, uma freeze party: um a reunião con-
Livre d e Poch e, 1993, p. 83.
culo observando a fronteira concreta da obra, reflexão sobre o movirnento, ainda que seja Etienne Sou riau, Vocabulaire desth étique, Paris : PU F,
gelada em que os participantes se imobili-
do livro ou da cena. Os limites de UJ11a repre- apenas para verificar no que uma teoria do 1990, p. zam, executam urna ritual mínima,
sentação,ao menos n a tradição ocid ental, são rn ovirn en to difere e completa a da drarna- Iacques De rrida, Le Th éât re de la cr uauté et la clô- tornam-se uma comunidade- efêmera no
ture de la rep résent at ion [1996], L'Écriture et la dif-
a cortina, a escuridão do pal co, as luzes da sala turgia das peças. espaço público porum instante reconquis-
[éren ce, Paris: Seuil , 1967, p. 341'368. (Trad. bras.:
que se acendem, os aplausos. Todo movimênto passa, segundo Guittet O Teatro da Crueldade e o Fechamento da tado. (Caminhada, Marcha·)
v,.r; e a Diferença, São Paulo:
"'vÁ,...... , ...... .I...LJ. ' .' / Hil4/ '"
mob não é UIn fenômeno social
Que traços específicos assinalam o fim e Bara", por cinco pontos: o ponto de elã, o 2009, p. 339S.)
do teatro? i.Este fim é ou conclusivo, isto é, ponto de decisão, o ponto críti co , o ponto; ._- simples e novo fa cilitado pelas comunica-
Verso de enc erramento e de ofertório de um poema.
dotado de um desenlace; ou 2. Arbitrário e, de finalização e o ponto de amortecimento. (N.da I· ) ções de massa: ela se torna uma obra única,
portanto, motivado por alguma Todo relato se constrói sobre esse esquenla bem dando lugar
avis, Renex íonsnrrunatres sur la fin du th éâ-
sória, Ele assume as mais diversa s formas, às do movimento, o qual se bas eia, por sua ao humor, muitas vezes bOlTI menino, a
tre , eID Carole Egger (éd.), Rideau ou laji n du th éà-
vezes muito marcadas, t omo a extrem ida de vez, na estrutura universal do relato. Sabe- tre, Carnieres/ Morlanwelz: Lan srn an , 2005. O livro um ato aleatóri o d e gentileza (randam act
fornece n um erosas aná lises . of kindnessi. Sem elhante ação gratuita, tão
ou o cume; 3. A ex trem idade é, n a po es ia , a mos muito bern(basta interrogar o estado
parte final de um verso que resume e termina nossas ..) que o movimento inabitual na vida social cotidian a, torna-se
sob forma vigorosae divertida o desenvolvi- necessita de amortecirnento, mas esquece- a ocasião de uma tornada de consciência, de
mento do poema: 4. O cume é outro exern- mos muitas vezes que o fim de urna peça uma teatralização e estetização da vida por
plo de fórmula lapidar, COIll0 na epigrama também tem;' por sua vez, 'n ecessid ad e de urna cornunidade efêmera, "desocupada"
ou no traço mordaz, uma fórmula que o tea - amortecer o choque: o choque a tão logo reunida.
tro pratica sob a forma do golpe teatral ou Uln espectador solitário, após a retirada dos As motivaçõesda "mob-ilização" são diver-
da fórmula brilhante ('~ la fin de Ienvoi, je protagonistas e antes da volta à realidade. Flash Mob sas: o que parecia UIn ato de protesto, por
touche No fim do envio; eu toco': adverte Amortecimento que é, igualmente, o de uma certo mudo e ambíguo, torna-se depressa
Cyrano de Bergerac): O cum e é a arma mais dívida, no sentido da extinção gradual de flash: relâmpago mob: rnultrdáo : em português, uma maneira de dar a conhecer um lugar
fina que existe, uma l âmina acerada, o traço um crédito, de uma soma devida. O amor- não há denominação co rresp o n d ente; designa turístico, de atrair a atenção das mídias pre-
invisível de um dito espirituoso que, no tecimento permite encerrar o relato antes u m gênero co nt ern p o ràneo de ação espetac ular. sentes desde o início, de promover uma
entanto, acerta no alvo. que ele ricocheteie e reencontre o equil í- marca ou de encorajar um modo fun (diver-
Na dramaturgia clássica, é relativarnente brio. Essa estrutura física do movimento e Um aqlomerado relâmpago de pessoas, tido) de consumir sem dor. O espaço urbano
fácil estudar a organização formal do fecho de seu amortecimento é frequente no teatro uma mobilização relâmpago: um grupo comercial, que era outrora a galeria mercantil

13LJ 135
Fronteira
Flor

dos flâneurs de Walter Benjamin, recon- A flor é uma das mais belas imagens para uma tipologia deles. Convém antes redefinir passar e fazer com que outros passem as fron-
quista a atenção globalizada de artistas, a exprimir o inefável do ator, a intensidade e constantemente as práticas, mixá -las: nós esta- teiras' seja relativizando-as, seja apagando-
vida torna-se um festival· permanente, os o prazer de seu encontro com o público, o mos em um "museu vivo interativo" (Gómez- -as. Cabe-lhe a tarefa de ligar os indivíduos
consumidores são reinvestidos no espaço momento insólito de fusão entre espetáculo -Pena). Ora, o artista, e sobretudo o artista de no interior de uma comunidade dilacerada
so cial lúdico. A flash mob é, às vezes, uma e espectador. teatro, não deve ter medo de olhar por cima da ou derrotada e tamb ém, às vezes, de efetuar
manifestação política que reata com as cerca, de se aventurar pelo território de outros a junção entre comunidades que se ignoram
técnicas do teatro de rua ou da interven- NOTRS artistas ou de irmãos humanos. por ou com base em um mal-enten-
1 ZeaITIi,La Tradition secrêtedu n õ, Paris: Gallimard/ As fronteiras no sentido etnológico ou dido. Esse facilitador de liminaridade- tem
cão- urbana. Ela é também, muitas vezes, o Unesco, 1960, p_ 104·
ensejo para que uma grande marca ou Ulna intercultural desaparecem a olhos vistos, ao simplesmente por hábito ligar coisas ami úde
2 [ean-François Lyotard, Des dispositifs pulsio nnels,
região, e até um a nação, efetue a publicidade Paris: UG E, 1973, p. 98. menos se procuramos aí alguma autenticidade separadas.
de uma marca ou de uma cultura espetacu- 3 Peter Brook, Conversation s avec Peter Brook, Paris: e pureza. A população está acostumada a essa O fronteiriço, o fronterizo do qual fala
Seuil, 2007, p. 45. hibridez-, mesmo se os puristas da identidade Gómez-Pena, responde new world arder
lar, publicidade ao mesmo tempo global e
local (glocalização·). cultural não aceitam a ideia da mestiçagem. (uma nova ordem mundial) por um ne111
A globalização· econômica compreendeu bem worldborder (uma nova fronteira rnundial):
o fato abolindo as fronteiras e as outras bar- sua arte é uma border art, no limite das cul -
reiras alfandegárias, a fim de que o capital cir- turas, dos sistemas políticos, das línguas,
Fronteira .cule livremente. Nada mais então, nenhuma das artes, a tarefa do perforrner é a de «ultra-
ttonti éte; - bordel';
lei nacional ou internacional, nenhuma pro- passar, interconectar, refazer e rede-
teção social, poupa essa população exangue finir os limites da cultura?', Não se trata de
Fr.: fleur; Ingl.: ttovver, A.I.: Blume. A noção e o tema da fronteira pelas veias abertas tanto quanto as fronteiras nada menos do qu~ franquear e apagar as
desempenham, na teoria conternporânea que outrora poderiam protegê-la. fronteiras entre artee política, prática e teo -
Termo de Zearni (-1363-1443), autor da cultura, um papel cada vezmais As identidades, sejam elas psicológicas, ria, artista e espectador. O papel do trâns -
teórico japonês do Nô. A fiar é "o acentuado. A imagern da fronteira, sociais, raciais, sexuais, profissionais ou fuga, do trickster (o espírito maligno), do
sentirnento do insólito tal como o geográfica, social, estética, etnológica etc., nacionais, são franqueadas sem empecilho, herói do bobo rei e do intelec-
experimenta o espectador". Ela é efêmera, nos ajuda a visualizar e a pensar o limite e em um sentido como nq outro. Visto que os tual ativista parece ser o mais seguro meio
lig aeja à idade do ator, em "um momento a separação como mecanismos constantes indivíduos .são doravante construídos como de fazer pouco àe fronteiras e de não se dei-
antes dos trinta anos'Tp, 79) . É igualmente da atividade teatral e cultural. um conglomerado de identidades, eles evo- xar encerrar em um territ ório ou em uma
a imagem ideai do espetáculo descrito na luem modificando simplesmente as fronteiras identidade que fique colada à pele a ponto
sua beleza transitória, rnisteriosa. A fronteira entre a obra o mundo não cessa e desconstruindo as oposições. A fron- de estufá-la. Seu é o de "desbloquear"
de rnudar. A mise en scéne transborda a reali- teira ou a consciência dos limites ajuda-os a em todos os sentidos. do termo, e de situar-
Essa no ção, assaz inapreensivel, é, no entanto, dade social: ela não para de integrar e de citar tornar consciência .de .si mesmos, sabendo ao -se sempre na fronteira das coisa s.
retorna da pelo pensamento contempor âneo pedaços de realidade, confunde-se amiúde mesmo tempo que as fronteiras não perma-
do teatro, tão logo este procura se emancipar com um discurso militante, ativista, político. necem nunca fechadas de ul1!a vez por todas. NOTR

O encenador, mas-tamb ém o animador Guillermo G ómez- Pena, The New \VaridBorder: Pro-
de uma teoria sem iótica dos signos da repre- A representação está em contato com o mundo Poems the End of the Cen-
em Lyotard: "Sob o nome de por meio de todas as de mídias que no sentido e de Francisco: 1996 , p.
flor, bus ca-se a intensificação" energética do ela faz intervir quando bem lhe parece.
dispositivo teatral." O ator ou a representação As fronteiras no interior da obra sãoflu-
não são mais então analisados COlno sistemas tuantes, até fugazes: fronteiras entreas arte s
de signos, porérn como "afetos de intensi- que as constituem e que são elas próprias já
dade muito alta" Cp. 99). A flor torna-se uma muito misturadas, entre os episódios ou os
metáfora cômoda para osmomentos em que fragmentos que a compõem, entre as unida-
"a magia do teatro se instala", "em que aquilo des moventes e inapreensíveis que escapam
que faz o ato r e aquilo que faz o público atin- à análise puramente semiológica.
j arn UD) ponto em que a vida circula - como As fronteiras dos gêneros literários e per-
ato de criação - quando, do nada, alguma formativos estão baralhadas: não há mais
coisa é criada" Cp. nenhum sentido em procurar reconstituir

136 137
G
Genética de sua própria maneira de proceder'. Mas
uma outra inquietação azucrina o leitor ou
Fr.: q énétique, Ingl.: qenetics; /\ 1.: o deve-se, pode-se saber como
a obra foi concebida e quais eram as inten-
A genética aplicada aos estudos teatrais ções do autor ou do encenador. E enfim: essas
é uma noção bastante recente: é Q supostas intenções foram seguidas de efeitos?
estudo dos processos de criação de um O termo científico, "genética': ou o bíblico,
texto dramático ou de um espetáculo "gênese" ("criação") surpreende: imagina-se
(raramente de uma cultural performance). uma ciência de genes ou um laboratório para
Ela encontra sua origem no estudo manipulações genéticas; ou, então, volta-se a
dos manuscritos literários. de sua estar em plena exegese dos textos sagrados.
gênese como projeto ou ideia até sua Talvez não se esteja no fundo tão disso,
publicação. À publicação de um texto em um caso como no outro.
corresponderia a apresentação pública (a Mais simplesmente, a-genética sé interessa
estreia) da obra cênica ao fim dos ensaios. pelo processo de fabricação do texto ou do
espetáculo, pelo estudo de tudo o que pre -
cede o texto publicado ou a mise en scêne
1. A GÊNESE DO SENTIDO:
apresentada ao público. Essa nova disciplina
UMA NOVA DISCIPLINA?
se inscreve ainda voluntariamente em uma
Um Iivro-síntese, Gen éses th éàtrales, coloca longa tradição ocidental e logocêntrica, dado
de início a boa pergunta: corno reconstruir o que examina a interação entre a escritura e o
processo da gênese de urna obra? Teóricos e jogo teatral, e frequentemente também a pas-
às vezes também encenadores respondem a sagem da escritura à representação. Assim,
essa interrogação, descrevendo sua prática. Almuth Grésillon concebe a genética numa
Mesmo os artistas dão-se então o tempo de interação entre escritura dramática e jogo do
consultar suas notas, de mobilizar suas lem- ator, uma interação - especifica ela "cuja
branças, de abrir seus arquivos, seus "auto-ar- fonte se pode encontrar no dispositivo gené-
quivos" (Chloé Déchéry), se se trata de uma rico do teatro: 1. Um certo espaço distinto -
tentativa de explicação direta, "à viva voz': materialmente ou por simples convenção
Genética Genética

tácita - do espaço social ordinário; 2. Um são documentos que não se deveria no melhor dos casos, formulam- sua atitude: não mais procurar uma lógica
ator portador de texto que não é um sim- genciar. Quanto à "dinâmica do texto em -se conjecturas sobre os processos criadores do processo guiado para um fim definido
pIes contador, 111as se inscreve ele mesmo devir', como estabelecê-la e para o que ela de cada um sem que jamais se esteja certo de de antemão, mas descrever de maneira for-
no espaço ficcional, 3. Urna ação dramati- tende? O texto não está sempre "em devir", sua validade. Como para o objeto e a visada, mal, neutra e fria, as etapas de trabalho,
zada, quer se exprima ou não em um diá - já que é preciso lê-lo e relê-lo, e porque ele é preciso contentar-se em imaginar a dinâ- manter o diário dessas descobertas fortui-
logo representado; UIn espectador- que se assume incessantemente novas significações? mica das escolhas: por que se apagou tal ou tas . Robert Wilson é o mestre incontestado
distingue do simples passante e aceita pacto Essa dinâmica não é absoluta, ela não é fun- tal elemento e se valorizou tal outro? O que desse método que remonta do abstrato ao
ficcional'". Essa concepção globalmente oci- ção apenas de rasuras e de aperfeiçoamentos, se procurava? Ao que isso nos levou? COIno concreto: "Eu me solto" - revela Wilson -
dental do teatro nos dá uma boa definição por ém da encenação que dará ao texto seu é que a própria representação se construiu, "sobre as coisas um pouco abstratas, sem me
e uma base sadia para encarar os diferentes término provisório. e segundo qual encadeamento? O encenador preocupar demais com as questões de con-
objetos da enquete genética e os métodos de No caso de um objeto espetacular, como "coloca': clarifica, fixa os tournants, as "voltas" teúdo ou de significação, mas de preferência
análise que lhe correspondern, talvez tam- O que, nos ensaios, corresnonde da cênica; o espectador (o ~'-ju.'V '.""-'l'-' '''''.''J ~ ' ' ' ~ como uma composição visual, quase uma
bém para precisar se esses métodos se apli - aos rascunhos dos textos? Atores lançados ao fará a mesma coisa, mas na ordem inversa. abstração, depois começo a recobri-la e a
cam igualmente às encenações e aos outros espaço com fragmentos de texto falado engan- 3. Se a visada da literatura.se define como preenchê-la de significação. Mas só depois!'>
tipos de performances espetaculares ou cu l- chado neles; atores sistematicamente solicita- "um fazer, como atividade, como movi-
turais. do s a "rever sua c ópia', a saber, propor outros mento, a fortiori a mise en scêne está sempre
movimentos, outros ritmos, outras interpreta- no movimento, na ação (na corporalidade e 3. INTERESSE E DIFICULDADES
ções situações e ações cênicas. Atores que na visada então ati- DA GENÉTICA A PESQUISA
2 . GENÉTICA TEXTUAL E GE NÉTICA apreendem o espaço, desenharn urna figura vidade que consiste em inventar uma prática E PARA A CRIAÇÃO
TEATRAL/ CULT URAL modificando-a sistemática e globalmente. cênica que leva o espectador para uma expe-
Atores cujo trabalho preparatório é um pri- riência que ele não havia ant ecipado. O fazer, A distinção entre genética de textos e gené-
Como seu nome indica, a genética textual, m eiro esboço, UIn croqui em três dimensões. o movimento, ambos indicam lá onde a ence - tica de espetáculos é justificada e, certa-
tal corno Grésillon e seus colaboradores a Cada etapa de ensaios ou de irnprovisações nação quer qual sub texto ela elabora mente, necessária. Os estudos e as análises
'-l~Ll.JL'-
...... ~ das diferentes versões escri-
.... .l ...., ' .. ..L .. . ....... contribui para aísolução, ela adotada e como o espectador decifra isso em de espetáculos lucrarão com a análise perspi-
tas de um texto dramático, de um cenário quando o encenador decide guardá-la provi- daexperi ência concreta ao meSl110 tempo caz dos processos de criação, sob a condição
(canev ássroteiro) ou de todo material que soriamente. Em retrospecto, não será quase de sua própria vida e do espetáculo ao qual de bem definir os objetivos e as possibilida-
utiliza a linguagem escrita. Grésillon distin- po ssível, nem aliás útil, distinguir os diferentes assiste. A visada junta a intenção, mas ela não desdo método -genético.
gue o obj eto, o método e a visada desse tipo esboços, na esp eran ça de retraçar sua gênese. é ainda consciente de si mesma, ela dirige seu A começar pela ruinosa distinção tradi-
de "São os rnanuscritos lite - As rasuras, os erros e as tornou- olhar para o final, para meta, Ela cional entre o textual e.o cênico (o visual):
rários, na medida em que carregam o traço -se irnpossível reconstituí-Ios, reconstruir seu é ainda uma pre-shape (Peter Brook), uma o texto será estável, a.cena, efêmera; o texto
de uma dinâmica, o do texto em devir. Seu rasto, seu traço". E ainda que se pudesse, o qu e prefiguração, que toma pouco a pouco, no será analisável graças à filologia , a cena será
m étodo: pôr a nu o corpo eo curso da escri - se faria com esses traços, se não se C0111preen- decorrer dos ensaios, UD1a forma mais nítida, renitente a análises precisas. A oposição
tura' acompanhado de uma série de hipóte- der talvez corno eles conduziram à represen- um shape. -Ainda aí, a genética do esp etá- ainda permanece tributária do lugar-comum
ses sobre as operações escriturais. A visada: tação para o público? culo não está em condições de reconstituir segundo o qual os termos escritos resistem,
a literatura como um fazer, como atividade, 2. m étodo, Grésillon n ão nenhuma esse processo partir documentos enquanto e evolam -se.
como movimento:' (p. 8) É necessário reto - indicação sobre este "pôr a nu do corpo e do veis. Os traços da prefiguraç ão se apagam à Na realidade, todo texto é rnovente, como
111ar essas três noções e examinar como curso da escritura': Pode-se imaginar que a medida que torna forma a figura considerada. a areia movediça: desde que a gente o leia,
poderemos adaptá-las a urna genética de gen ética toca aqui na questão da corporali- A noção de visada, por útil que ela seja a desde que caminhe em cima, ele nos absorve.
espetáculos ou de performances culturais. dade e da perforrnatividade- do texto dra- fim de pensar o sentido (a direção) de uma A ação cênica é, por certo, efêmera, mas não
O textual deixa-se, por certo, mático, mas sua teoria está de estar criação, revela-se às vezes contraproducente mais do que o texto, tanto mais quanto dis-
apreender C0111 facilidade, mas as formas acabada. entre os artistas não . não obse- pomos atualmente de todas as espécies de
que ele toma de empréstimo ultrapassam o Ao que este pôr a nu da escritura dramá- dados pela finalidade de seu trabalho, pelos técnicas para registrá-la e depois para "disse-
exclusivo texto dramático legível ou falado: tica poderia de fato corresponder para uma efeitos esperados, no fundo n ão preocupa- cá-la" A genética não é isenta da cen sura por
as indicações cênicas, mas também as notas genética do espetáculo? Não se sabe muito dos com uma ideia de partida que eles têm de privilegiar o escrito e por reduzir o evento
de intenção, os dossiês preparatórios, os bern C01110 trabalham o encenador, os ato - realizar a fim de chegar a seus fins . A gené- cênico a uma descrição1iterária .e.escrita
documentos de pedido de etc. res, os e os técnicos. Emitem-se, tica deve então modificar seus métodos e do visual e do auditivo. Mas não reside aí o

1LJO 141
Genética Globalização

único perigo que a ameaça: a genética, ciosa que se dá a esse processo·: se se trata da fase uma obra do passado. O papel da genética NOTRS
Cf. A. Grésillon; M.M. Mervant-Roux; D. Budor
da objetividade, concebe os textos e as ima- preparatória, dos métodos de trabalho, todas não é tanto o de reconstituir esse passado (éds.), Genêses théâtrales, Paris: CNRS, 2010.
gens materialmente, como traços materiais, as coisas às quais o espectador "comum" ou quanto o de restituir suas potencialidades, 2 Almuth Grésillon, La Mise en ceuvte: Itinérairegén é-
restos a juntar, documentos a arquivar, e não, o crítico não têm acesso, então o processo de refletir em que a reinterpretação e a revi- tique, Paris: CNRS, 2008, p. 6.
simbolicamente, como um trabalho simbó- será largamente incognoscível, pois estará talização fazem, em suma, parte da obra que Robert Wilson, Programa de The Old Woman, 2013·
Iosette Féral, Pour une étude génétique de la mise en
lico sobre o sentido, como hipóteses sobre justamente limitado ao "período de ensaios". se lê ou que se encena.
scene, ThéãtrelPublic, n. 144, novo 1998, 55·
o funcionamento, enfim, como prolegôrne- Ern se o processo é também A historicidadenos incita a ressituar sem- Michel Vinaver, LHe, Théãire en Europe, n. 18, 1988.
nos a uma interpretação (análise drama- e sobretudo o sistema da encenação, tal que pre a obra em seu contexto, a fim de com- [ean -Maríe Thomasseau, Le Théâtre au plus prês: Pour
túrgica ou uma análise de espetáculo), em o espectador esteja em vias de reconstruí- preender como ela está em perpétua gênese. André Veinstein, Saint-Denis: PU\~ 2005.
suma, como qualquer outra coisa que não -lo com o fito de integrar do melhor modo Fenômeno que Michel Vinaver chamou de
seja a genética. Porém, se a gente tomar o os signos, os materiais, as informações que "a operação catalítica" efetuada sobre os
texto e a cena corno sistemas que mudam ele reúne, então consciência do processo é clássicos: "FIá repertório univer-
sem cessar de sentido, dever-se-ia então apli- útil, e até indispensável. Torna-se necessário sal, os clássicos, através do qual o encen a-
car-lhes teorias coerentes e explícitas, teorias avaliar a impressão, o traço do processo, da dor pode exprimir-se intimamente, realizar Globalização
ao mesmo tempo inumeráveis e pouco solici- estrutura geral até a análise do espetáculo. obra pessoal e atual, mediante uma opera-
Fr.: g/oba/isation; Ing l.: g/oba/ization;
tadas nas pesquisas atuais. Grésillon está, ao As escolhas da encenação, as regularidades ção catalítica que consiste em provocar a
AI.: G/oba/isierung.
que parece, consciente desse déficit da teoria 'estr u tu rais, a textura, a composição visual reação de elementos do presente por meio
no domínio da daí seu progranla abstrata da mise en formam um de substâncias ou a do
Poder-se-ia chamar de teatro globalizado
justo, embora UIn pouco utópico, quando faz tema evolutivo que se pode assimilar a esse passado por meio de uma injeção da maté- todo teatro da era da qlobalizaçâo', seja
votos em favor de urna "comunidade cien - processo de que fala Féral. ria de hoj e em dia."
ele o resultado ou a fonte de resistência
tífica na qual se abrirão - mas sem renegar Assim, a encenação e a genética nos auxi- a esse movimento mundial. Mas todo
nenhuma das aquisições metodológicas ante - liam a reler o texto clássico antigo, pois deve-
teatro não é, então, mais ou menos
riores, porém situando-as e trabalhando-as 4. CRÍTICAS E PROPOSTAS mos imaginar a série de transformações, de
globalizado? Em que ele se distingue do
de outro modo - novos canteiros de colabo- até a nossa teatro "normal"? Ecomo diferenciá-lo de
ração" (p. 23) . UIn dos méritos da genética é suscitar, para época e conduziu.a.novas.maneiras de reen -. ._
seu irmão inimigo, o teatro intercultural,
não dizer ressuscitar, um debate metodoló- cená-lo, reinterpretá-lo e.redescobri -Io,
surgido e teorizado nos-anos 1970?Cada
gico, passavelmente adormecido, ainda que Uma terceira teoria, a da fenomenologia, · - --vez mais/desde o começo dos anos 1990
Da Genética à Análise
seja apenas demonstrando a sua necessidade, poderia igualmente vir em socorro da gené-
dos Espetáculos e do fim do comunismo na Europa, a
se ela quer se manter e seus frutos, tica. com efeito, na sua fase pr.e-
produção teatral vem sendo fortemente
Uma das consequências positivas do desen- de recorrer a diversas teorias ou metodolo- paratória, é um processo de aparecimento-
influenciada pela tendência mundial para
volvimento da genética e da análise dos pro - gias. Três entre muitas outras: a hermenêu- do sentido e ele significações possíveis, q1Je
a globalização (mondialisation em francês,
cessos de criação é, portanto, o de revisar as tica, a história, a fenomenologia. evoluem no curso da história.
mas o termo inglês parece mais justo). Eis
teorias existentes, em particular a da análise A hermenêutica nos obriga a religar os A genéticaé urna disciplinado futuro, sob
o que nos incita a refletir sobreo impacto,
dos espetáculos. Uma das censuras endere- fen ômenos de reescritura, de retomada, a condição de não se contentar em olhar para
econômico tanto quanto estético, da
à análise dos é a de con- de de urna obra clássica. trás, mas de abraçar toda a teoria contem-
globalização no mundo do teatro e dos
tentar COIn o resultado final, de não integrar A teoria da recepção nos ajuda a conlparar porânea, segundo o projeto utópico de Gré-
espetáculos.
na análise uma dimensão genética ern que as interpretações de uma n1eS111a obra clás- sillon, Féral ou Thomasseau", O teatro e a
apareceriam os processos de preparação do sica em diferentes momentos da história. Às performance contemporâneos encarregam-
espetáculo. Para Iosette Péral, por exemplo, vezes, graças aos documentos, a gente está -se de lembrar-lhe que a teatrologia não se 1. A GLOBALIZAÇÃO
"Não se pode analisar uma obra teatral sem em condições de COlnparar os estilos de ence- limita ao estudo dos textos dramáticos, dos
levar em conta o processo no qual ela está nação e as interpretações. Se se considera que rascunhos e dos manuscritos, e que ela deve
a. Breve Histórico
integrada. Esse processo compreende, por a série das encenações constituem outras tan- desenvolver uma metodologia de análise de O teatro globalizado (se nos permitem esse
certo, a representação, mas também e sobre- tas versões, rascunhos, etapas para a última ensaios que ultrapasse a descrição minuciosa, neologismo) não é em si um gênero novo,
tudo a obra em curso de produção, isto é, as versão-interpretação, a genética torna-se mas positivista. Se o pós-dramático- é uma trata-se antes de um tipo de produção dra-
fases anteriores à sua apresentação pública": um estudo do devir da obra, um processo fuga para frente, a genética não deve vir a ser mática e espetacular que carrega os traços
Tudo depende, evidentemente, do sentido de reescritura da obra, uma revitalização de uma para trás. das novas condições econômicas e culturais

1112 143
Globalização Globalização

da globalização, particularmente desde a sociedade midiatizada. A globalização, o ideológicos do consumo nos permite obser- b. Duas Paralelas Que se Encontram?
virada do milênio. todo-mundo (Edouard Glissant), a cultura- var o quanto muitas vezes uma palavra de Para melhor observar como as duas gran-
A globalização está ligada à formação -mundo: (Lipovetski), a one-world-culturesão ordem política, como a do direito à diferença, des tendências, intercultural e globalizada,
de uma sociedade mundial em função da construções muito mais amplas e audacio- se transforma de palavra de ordem progres- essas duas linhas paralelas, acabam por se
dimensão global dos fenômenos econô - sas: nós estamos "em um período de política sista, num espaço político, em puro e simples encontrar, devemos desde logo descrevê-las
micos, mas também culturais, políticos e cultural em escala do globo": slogan consumista", de maneira contrastada:
sociais. de consenso constatar a globali- De outro lado, entretanto, os fluxos cultu- A visãointercultural também pretende estar
zação da economia mundial, porém a hipó- rais produzem efeitos variados e contraditó- caucionada pela noção de autenticidade- da
tese de urna globalização cultural está aberta rios. Com Michel Wieviorka, observar-se-á 2. TEATRO INTERCULTURAL, cultura, quer se trate da "cultura dos laços" de
à discussão, em especial quanto a suas cau- na mundialização ao mesmo tempo uma TEATRO GLOBALIZADO Brook ou, inversamente, da "colisão de cultu-
sase a s eus efeitos sobre a criação e a evo- homogeneização da cultura e uma fragmen- ras" de Bharucha". Ela coloca como princí-
lução da s c ult u ras e das artes. De maneira tação. A mundializaç ão é, portanto, alterna- a. Assentamento Histórico da Oposição
pio que se deve sen1pre reconstituir a cultura
geral, define-se a globalização, com Roland damente definida como "a homogeneização A principal dificuldade, para bem compreen- naquilo que ela tem de único. Ao contrário, a
Robertson, como "a compressão do mundo cultural, sob hegemonia americana" e como der a novidade do teatro globalizado, é a de S!IG1lJallZlaala, por exemplo, a da "cultura
e a intensificação da consciência de que o "a fragmentação cultural. Daí as lógicas de distingui-lo do teatro intercultural, ao que ele da escolha" de um Schechner, denuncia toda
mundo forma um todo'" . Essa mundialização retração comunit ária, de fechamento iden- está muitas vezes e malfadadamente assimi- pesquisa de autenticidade ou de origem. Ela
das trocas comerciais remonta ao século XVI, titário, de volta das nações e das culturas - lado. Convém assinalar suas diferenças caso considera que não existe cultura pura, mas
às intercontinentais e à TA1t"rY"I,'l r ' l A para dentro de si m esmas'", Dando sentido apreender o que a cul- apenas uma mistura híbrida de elementos cul-
progressiva das nações-estados. Ela se inten- às coisas, Wieviorka indica que 'Chá certa- tural trouxe de novo ede irreversível, nesta turais. À suposta universalidade dos valores
sifica consid eravelmente no últim o quartel mente uma extensão da cultura americana, virada do milênio. éticos e intelectuais do crente intercultural, o
do século X IX COll1 o desenvolvimento das mas nem por isso há monop ólio. Há frag- O intercultural COlno encontro produ- globalizado responde com a flexibilidade, COl11
internacionais e do colonialismo. mentação (basta ver a força de crescimento tivo de duas civilizações nas letras e nas a livre-troca e a maleabilidade do mercado,
A fase segu in te, a da "decolagem', dos anos dos nacionalismos no mundo inteiro), mas artes existe na Europa desde os séculos XVIII Enquanto o pen~~mento do teatro inter-
1870 a 1920, coincid e, em literatura e nas tambérn circulação de identidades culturais, e XIX. Mas só depois do firn do século XIX cultural, o d é Artaud, por exemplo, podia
artes, o movimento da modernidade e, mundialização 'por baixo'" 307). e até os anos 1930, é que o teatro se exerci- ainda a de ~~""L:l.rro
..... o .. " ...

para o europeu, com a afirmação do tou verdadeiramente nas trocas intercultu- um teatro europeu que havia perdido suas
sistema da mise en sc êne, a globalização se c. Qual Política? rais, notadamente através do estilo do jogo ra ízes?'; a obra globalizada . abandonatoda
distingue por uma internacionalização das A dificuldade é dar UI11a exp licação da glo -.. de atuação e da encenação (Artaud). O inter- pretensão de UIn retorno às suas origens e
dos conflitos entre os Estados, balização que n ão seja, desde logo, exclu- cultural se inscreve então na modernidade toda ideia de uma redenção pela arte, para se
pela fo rmulação d os direitos do homem e sivamente negativa .{ Q U positiva), masque p ós-baudelairiana, faz experimentos com os concentrar na eficácia transcultural do pro-
pela integração da s tr oca s comerciais mun- descreva suas possibilidades. Não se poderia sortilégios da encenação, tudo precisamente duto, um produto de marca, se possível, que
·d iais. Segundo Robertson, desde os anos negar a dimensão política da globalização, "inventado" e sistematizado. Quer ele queira o público é convidado a consumir pelo exclu-
1960 e, maneira ac elerada, desde o iní- que repousa, em parte, sobre fato - não, o intercultural tem uma parte ligada sivo prazer. A obra globalizada torna-se um
cio do novo milênio, a globalização penetra res econônücos.O mais visível desses .fato- ao exotismo-, e até ao colonialismo. Censu- produto estandardizado, uma marca regis -
em todos os dom íni os da vida socioecon ó- res econ ômicos é a passagem de economias ram-lhe com frequência seu eurocentrismo, trada. Ela substitui a obra original e única por
-rnica e cultural>. nacionais (em estad os- n açõ es) a uma eco - inclusive na teorização que ele propõe para seu estilo e pela assinatura do artista, quer se
nomia global. ElTI termos políticos, isso se dar conta das experiências de Peter Brook trate do autor ou do encenador.
b. RLt1nO a urna Cultura Unificada? traduz pela passagen1 da soberania nacio- ou ele Ariane Mnouchkine nos anos 1970 e O eu do artista interculturalopõe-se ainda
No dom ínio da cultura, a tese principal é que nal a um "imp ério'? Esse imp ério, controlado 1980. Acusam-no, não sem demagogia, de se a um outro eu - o dos outros artistas ou dos
a glob alização das trocas de toda ordem leva pela finança e pela economia mundializada, apropriar de culturas indefesas. espectadores", mas os sujeitos globalizados,
a uma cultura unificada, na qual as diferenças é mais econômico do que político (ou, se se O teatro globalizado varre esse tipo de crí - sejam eles artistas ou espectadores, se tor-
culturais penarn para m anter-se ou mant êm- prefere, sua força econ ômica se traduz ime - tica, visto que bem afastado desta culture of naram seres de múltiplas e variáveis identi-
-se apenas graças a urn a ideologia ao mesmo diatamente em decisões políticas que lhe são links de Brook, ele se define, logo de início, e dades: é preciso redefini-los e redesenhá-los
ternpo e consumista. favoráveis). Resulta daí uma mudança pro- sem complexo, corno "um produto transcul- incessantemente em função de seus diversos
A aldeia global d e McLuhan não era funda de concepções do político e um recuo tural para públicos internacíonaís'"; pertencimentos (cultural, étnico, sociológico,
ainda senão uma aldeia interconectada da da política. Uma análise dos mecanismos político, profissional, sexual etc.).

144 145
Globalização
Globalização

Entre o interculturalismo e o transcultu- globalizado. Este último se apresenta o mais aos cenários a urna interpretacão dificuldade para se transformar em uma
ralismo a diferença é crucial. O intercultu- das vezes como uma coprodução entre vários "mediana" e facilmente decifráveL Ela busca, prática globalizada, reprodutível e aplicável
ral insiste na troca entre as culturas, sobre o parceiros internacionais, quer seja por oca - em compensação, a melhor maneira de con- no mundo inteiro, salvo se precisamente for
espaço que as separa e as distingue. O trans- sião de um ou de vários festivais, ou ainda de tal' uma história, com um jogo simples de reduzida a uma produção, a um funciona-
cultural refere-se àquilo que as culturas pos- um espetáculo suscetível de rodar em tournée atuação, luminoso, porém jamais redutível mento puramente técnico, eficaz, reprodu-
suem em comum, a seus "laços" (Brook). pelos diferentes parceiros em outras estru- a uma fórmula repetível pelas mídias. tíve1. A globalização constitui sempre um
O global-cultural remete à não turas que o convidem. Encenação modernista intercultural versus desafio para o espectador. Ela obriga a dis -
hierarquizada de elementos culturais, à Um outro exemplo de produção global produção pós-moderna globalizada: melhor tinguir o que é realizado por cuidado estético
hibridez de um gênero ou de uma prática.à seria o de um musical, até de um megamusi- seria reservar o termo rnise en sc êne a uma ou arranjado por necessidade econômica.
simplificação e à homogeneização de carac- cal: concebido em um-lugar, geralmente uma representação teatral localizada no tempo A encenação deve levar em conta o fato de
terísticas culturais. grande capital, ele gira a seguir pelomundo e no espaço, preparada especialmente para que o público viu as mesmas séries televi-
O intercultural estava à m oder- inteiro ou, então, é vendido a teatros sob a uma local. Tal era) em todo caso, o sivas' as mesmas referências midiá-
nidade por volta dos séculos XIX e XX: ele condição de ser reconstituído de maneira sen tido e a função da encenação na época do ticas etc.
funcionava ainda segundo as categorias da exata à versão de origem, notadamente pelo modernismo, no fim do século XIX europeu:
modernidade, com base naoposição entre o . que é da cenografia ou da encenação", um sistema 'fechado, local, destinado a um c.As Formas da Globalizaçãono Teatro
enraizamento e o desenraizarnento, o fami- Deixando de lado esse fenômeno de pro- público em plena renovação, reenquadrando Uma nova ordem? Resta evocar quais for -
liar eo estranho, o pr óximo e o distante", dução mundializada etornada rentável como o conjunto do espetáculo em função de urna mas a produção globalizada assume no teatro
A cultura circula livremente não interna- sttuacae-smzuíar. A do momento em ser que aglobalização
no interior da pos-modernidade-, Às vezes, cional, pretende-se sobretudo observar os que o intercultural sej unta ao modernismo seja tão aperfei-çoada e tão discreta que não
', rtH~S1110 )' ela não h esita ern remontar auma efeitos da'globalização ern todos os níveis da C01110 uma de suas variantes, e até como sua seja quase notada. Ou que as respostas dos
pré-modernidade ainda estranha às identi- atividade teatral. Dois exemplos, entre tan - apoteose, a encenação é obrigada a se adap - artistas, dos filósofos e dos políticos sejam
dades clássicas e modernas. tos outros: a escritura dram ática e a mise en tar em função da cultura-fonte e da cul- pouco visíveis, ou pouco espetaculares e até
Essa p ré-nl0dernidade assume o nome de scêne contemporâneas. tura-alvo, ela se esforçaem fazer com que que elas tardem ou renunciem
intraculiural quando artista ou o teórico bus- ' essas duas culturas se cornuníquem.Bntão a fazê-lo. Após a do Muro de Berlim
cam no.jpterior de sua própri a cultura elemen- b. Produção e Recepção da En,Eenação começam os aborrecimentos, pois nenhuma (fim de 1989), a nova realidade não demo-
tos hoje.em dia apagados, mas recuperáveis ao ,Globalizada dessas duasculturas admite que uma outra rou, em todos os contextos, ex-comunistas
termo de pesquisas práticas ou teóricas. possacornpreendê-la '( apreen dê-Ia e englo- ou capitalistas de longa data, a se traduzir por
As culturas não se op õem como entida- '0 teatro globalizado muda igualmente seus bá-la), enenhuma, muitornenos, confessa um teatro privado do suporte das subvenções
des elas situam na nebulosa do métodos de trabalho para o preparo da que se interesse muito pela harmoniza- \A,'v ........ ,~ ...,v , entregue daí por diante às leis do
I-'

cultural, que é apenas perceptível corno frag - ção cênica. O encenador é doravante rnenos ção global das culturas e pela compreensão mercado e liberto do' dever de acabar com
mentação e com o sup erposição de elementos solicitado corno artista em constante pes- intercultural entre os povos ... Os aborreci- as alienações de todas as espécies.
'. culturais. ...,A.. cultura.global sedefine preci- quisa do que como administrador....encar-. mentos redobram ou, ao contrário, se dis- Neoliberalismo epós-modernismo: segundo
samente por sua heterogeneidade, e até por regado da produção ou organizador de um ' siparn, tão logo o teatro globalizado impõe filósofos marxistas como Tony N egri e
sua hibridez. dispositivo. A redução do tempo de preparo suas normasde legibilidade média e univer - Michael Hardt, -o pós-mod érnísmo seriao
do espetáculo, da função do dra- adaptáveis a outros con- equivalente do neoliberalismo e do capita-
maturgo' tudo isso contribui para recondu- textos e organizao espetáculo (não se ousa lismoglõbalizadb14 . O q uê'àcontece com o
-, ' 3. GLOBALIZAç:Ji.:O NÀ PRODUÇÃO" ' zir a mise en scêne àquilo que ela era .a ntes ' mais dizer: a encenação) de maneira síste- teatro globalizado? A fim de ser transmitido
E NA RECEPÇÃO de sua promoção ao fim do século XIX: 'um a mática, mecânica e maleável. A obra globa- de modo claro e ao maior número, esse tea-
a. O Objeto da Globalização simples regulação técnica. lizada parece exprimir-se de maneira muito tro estandardizado propõe textos de acesso
O que convém à produção estandardi- geral eIn uma de esperanto estético simples, facilmente dramatizáveis, amiúde
Corno observar os fenômenos de globaliza- zada de uma comédia musical, não convirá e filosófico, adaptável a todos os contextos. clássicos, cuja encenação se limita a confir-
ção no dom ínio do teatro? Alguns exemplos a um teatro de texto ou de pesquisa que A ação de pôr-em-cen a do teatro é sem- mar urna leitura habitual e não perturbadora,
irão precisar esse apresamento da produção trabalhe na nuance e nas alusões culturais. pre um pôr-em-Jogo local: ela está ligada adaptada a todos os públicos. Na maior parte
teatral pela globalização. Com efeito, a encenação é obrigada a inven- a circunstâncias particulares, não obedece do tempo, a estratégia do marketing consiste
As coproduções internacionais consti- tar uma solução local, compreensível nesse a princípios gerais, sej am eles universais em não impor uma leitura demasiado nova,
tuem o elo quente do teatro exclusivo contexto. Ela renunciará facilmente ou supranacionais. Ela tem, muita dando ao mesmo tempo a ilusão de que a

lLJ6
1117
Globalização Gloca lização

renovação da representação já é uma prova encenação master exportada, deve reapro- concreto, estamos presos em um evento real, 10 Cf. Rustom Bharucha, Theatre and the World: Per-
[ormance and Politics of Culture, London: Routle-
de sua modernidade. As alusões culturais priar-se de um espaço, de um jogo de ator, cercado de atores. Mas nos servimos desse
dege,1993.
são aconselhadas apenas se forem facilmente de nuances e de conotações das palavras lugar como um tramp olim para ir rumo a 11 B. Singleton, op. cit., p. 182.
traduzíveis ou se fornecerem um inofensivo assim como d os gestos. A despeito dessa um alhures, rumo a um mundo imaginário 12 Cf. Erika Fischer- Lichte, The Dramatic Touch of Di]-
toque de exotismo, ou ainda se cada especta- incompatibilidade, certos produtores tenta- e longínquo. Isso sernpre foi assim . A única [erence: Theatre, Own and F,oreign,Tºbingen: Narr,
1990.
dor acreditar encontrar aí uma parte de suas ram tr anspor musicals ou peças de sucesso cnrerenca é que, graças mídias como a inter-
13
referências. Daí, p or vezes, a de para outros contextos e culturais. net, atualmente, a todo momento
uma torre de Babel. . . Como mostra Mark Ravenhill com o exem- transmitir esse aqui e agora pal~a o mundo
2009, p. 39-49.
O teatro, desde que pretenda sair do cir- plo do produtor Cameron Mackintosh, o tea- inteiro. Um dia ou outro e tudo se sabe: todos
14 "O pós -modernismo é sem dúvida a lógica pela qual
cuito puramente comercial e privado, não tro que "outrora selnpre havia possuído um os nossos pequenos segredos. Deveríamos.nos opera o capital global. O marketing_possui ta lvez a
pode dispensar as subvenções. Somente o elemento de 'artesanato: viu-se reinventado rejubilar com essa entrada em contato com o mais clara relação com as teorias pós-modernistas e
poder-se -ia mesmo dizer que as estratégias do mar-
Estado, ao menos nos países democr áticos, corno uma empresa industrial à la Ford , Isso mundo inteiro? No caso do teatro, essa trans- keting capitalista há muito têm sido modernistas,
assegura aos artistas certa independência que permitia a seus produtos serem globalmente missão global vai formar urna nova comuni- avant]a lettre" (~. Negri; 1'11. Hardt, opcít., P I5 I).
« ,

o set or privado não garante. Por certo, esse recriados e franqueados pelo modelo de um dade? Ganharemos com a troca: uma pequena 15 Frédéric Martel, Mainstream, Par is: Flammarion/
Champs actuel, 2012. Ver igualmente: Laura Odello
Estado, pouco importa qual, não pode acei - McTheatre"1 6. "O novo modelo de Mackin- comunidade espacial dealguns espectadores (ed .), Blockbuster: Philosophie et cinéma, Paris: Les
tar ser violentamente criticado, e até desmon - tosh se desembaraçou do star systern e criou de uma noite em torno de urna garrafa e de Prairies ordinaires, 2013.
tado' mas, ao mesmo tempo, as ,~r. L:>C'
C'll ll'"\"{TI:::>n espetáculos coreografados com uma estrita uma pequena cena contra uma comunidade 16 Mark Punding,
concede não co n stituem tampou co um exatidão, uma forte eletrôn ica .virtual, mnmta .m asmtan zrve í~
mecanismo de compensação contra os efei- e utilizou um espetáculo cênico assistido por
tos do liberalismo e da globalização na sua computadores':" Assim fixados em sua coreo- NOTRS 17 Ibidem.
Prefere-se em geral esse termo ingl ês ao francês, de 18 Esses exemplos são fornecidos em Mark__Ravcnhill,
vertente mercantil. grafia, sua sonorização, sua direção de luz e mundialização, que insiste na geografia mais do que op. cit.
M isturas ern todos os gêneros e ern todos sua cenografia, musicals como Les Miséra- em sua estrutu ra de conju nto; o que nos parece jus-
os sentidos: eisa impressão que ressalta dos bles,Cats, Phantorn of the Opera podiam ser tamente ser o essencial da visão global.
Citado por .M an fred Steger, Glohalization: A Very
espetáculos globalizados. Noentanto, isso exportados e franqueados em sua mise en Short Introdu ction , Oxío rd/ New York: Oxford Uni-
não significa necessariamente que as cultu- scéne "original': Peças de sucesso corno An versity Press, 2009 , p. 13. Ver igualmente, do mesmo,
ras, asartes,..os.teatros, as literaturas das dife- Inspector Calls, encenação de Stephen Dal- Robert Robertson, Soci al Theory, Cultural Relativ-
and the Problem of Globality, em Glocalizaçã o
rentes culturas se uniformizem. Constata-se, dry, ou uma adaptação de um romance corno Culture, Globalization and vvona -ovstern:
ao contrário, em literatura e no teatro, urna War Horse de Michael Morpurgo podem ser Contemporarv Conditions For th e Representation Fr.: g/ocalisation; [nql.: clocolization;
resistência a esse de 11nlT["'1< '1,,' 1"1''l rrír. repro uuzidas e entregues prontas para o AI.:G/oko/isierung.
devido à globalização. As '~ v '.... nalClonalS
l. ...... .... vv em outros teatros do Inundo inteiro". A Roland Robertson , Globalization: Social Theory and
continuam a pesar sobre cada elas simples, até simplista, conquanto forrnida- Global Culture, London: Sage, 1992, p. 59. 1. O APARECIlVl-ENTO DO GLOCAL
não convergem paraun111u7.ÍnstreanT", urna velmente lucrativa, é a de transpor tudo, Gilles Lipovetsky, La Culture-m onde: Repense à un e
soci été desorient ée, Pari s: O. [acob, 2008; e L'Occí-
world literature ou um world theatre como não só a infraestrutura cenográfica, musi- dent mondialis é: Controve rse sur la culture plan éta-
Muitas das mudanças do teatro contempo-
faz a world musico cal e sonora, mas tambémo jogo do ator, ire, Paris: Grasse t, 2010. rân.~o explicam-se, em boa parte, pelo peso
O modelo da produção cinematogr áfica seus deslocamentos e seus movimentos, suas R. Rob err son, op . cit ., p. 5. da globalização- sobre nossa vida, pela «com-
norte-americana não é reprodut ível tal e qu al Michel W ieviorka, Eden tates culturelles, d érnocra- pressão e pela intensificaç ão da consciência
ernoções e seus efeitos. Nós estamos dora-
tie et mondial isati on , em Catherine Halpern; Jean -
pelo teatro. Por uma simples razão: não há no ,v ante em um sistema estético perfeitamente Claude Ruano -Borbalan ( éds.), Identité(s) Tindividu do mundo como um todo'", No entanto, a
teatro o equivalente de uma cultura mains- adaptado às leis do mercado teatral global le gmupe la soci été, Auxerr e: Sciences Humaines, at ividade teatral não se reduz a essa horno -
2009, p. 307.
tream, de um block-buster exportável para segundo os mesmos procedimentos e COIn geneização global nem se resolve ne la . Uma
Cf.
toda a parte com mesmas o curerencas locais mínimas. grande de seu temp o de sua energia
mesmo sucesso", O de reprooucao Grana aegout cuuurei Paris: é mesrno desp en d id a para contrab alan çar
mecânica do cin em a não é transferível tal d. Pensamento'Final Global 2008, p, 171. esse efeito de estandardização da vida social
9 Para retomar a fórmula do encenador Oh Tai-sok,
qual para um modelo teatral: as ações cênicas Há no trabalho do teatro, para o artista como e artística. Não obstante, nessa vonta de d e
citado por Brian Singleton, Intercultural Shake-
são em live, ao vivo, o sistema de enunciação para o espectador, um vaivém constante entre speare Prorn IntracuItural Sources: Two Korean voltar a condições locais, não são sempre os
é totalmente diferente. Toda nova encenação o próximo e o longínquo, o local e o global. No Performances, em Iung-soorn Shim (ed.), Glocali - artistas que desempenham um papel deci-
zing Shakespeare in Korea and Beyond, Seoul: Don-
teatral segundo um filme ou segundo uma teatro, nós nos situamos sempre em um lugar gin, 2009, p. 183. sivo' mas sim os especialistas do marketing.

1~8
149
Glocalização Glocalização

Desde os anos 1980, esses últimos cOlllpreen- lugar, de uma língua e de um grupo humano. do que a arte que se contentaria em trabalhar devorar no interior de seu próprio ministé-
deram que o valor de um produto aumenta se A ação dramática, no entanto, guardava certa 'em involução' e não em 'evoluç ão">, O teatro rio, o ministro da cultura se tornava o órgão
o adaptam às condições locais do mercado. abstração, ela queria ser universal para a tra- se sente tradicionalmente marcado por um maior da derrocada do político". Esse colapso
Daí resultou o neologismo japonês - ou é gédia. Havia certo equilíbrio entre o particu- regime de autenticidade, no sentido da obra do político no próprio seio de UInministério
preciso dizer: globalmente japonês? de glo- lar e o universal. Na Europa, não é senão na de arte anterior à "época de sua reproduti- da cultura, que se pode constatar em toda a
cauzacao. mistura de global e local. "Nume- metade do século XVIII que o teatro começou bilidade mec ânica" Valendo-se parte do Inundo, nos governos
rosos críticosafirmam que a não a ancorar-seno meio burguês, a de encenador e, portanto, de um de de algum modo confirmado
pode ser compreendida como UIn simples ressar-se pelo mundo econômico, a tornar- criador autônomo e esse teatro de derrocada da cultura no seio da globaliza-
processo de hornogeneização em que tudo -se mais global. Com o desenvolvimento das ou antiglobalização vai na contracorrente da ção, a qual existe justamente sobre as ruínas
se torna a mesma coisa (queira isso dizer "trocas comerciais mundiais, a abertura para o ideologia pós-moderna, que prega de pre- dos estados nacionais e políticos. Pois, nesse
europeizado, americanizado ou japonizado). mundo se fez progressivamente, mas foi pre - ferência o desaparecimento do sujeito cria- nível global, não há mais instância política
Deve-se, antes, ver a globalização como u m ciso esperar, n a Eu ropa, o último decênio do dor, a liberdade de escolha do "espectador", que po ssa regular o liberalismo total.
processo d e negociação, de hibridação ou século XIX para que os encenadores come- a midiatização do evento cênico. Resulta daí A globalização 'não é simplesmente urna
de glocalízaç ão,"> Semelhante fenôm en o se çassern a interessar-se e a integrar técnicas de um divórcio entre uma arte teatral autêntica, indústria cultural (mesmo se rebatizada
aplica ao teatro? representação e de tradições não europeias, "aur ática" (Benjamin), centrada na encena- como «indústria criativa") que controla o
para que se lançassem timidamente às expe-: ção, e uma produção teatral .pós-moderna financiamento da cultura segundo o prin-
riências interculturais. será preciso esperar ou pós-dramática, perjormativa, que o cípio exclusivo da ela é tam-
2. o terço do pa ra que o mídias e da que não bém, na estética, uma
torne consciência do Inundo globalizado uti- se interessa mais pela arte da mise en scéne, arte m édia, segundo Bourdieu,
Esse fen ômeno de glocalização vale igual- lize de bom ou mau grado algumas técnicas mas pelo dispositivo-, notadamente midiá - um gosto pequeno-burguês. Com efeito, a
mente para o teatro: mais do que UIn corre- de comunicação global. tico. É preciso evitar, entretanto, ver o tea - economia neoliberal que conduz ao teatro
tivo à globalização, é uma tendência no va. À escala da economia, da administração tro como um baluarte contra a globalização globalizado não jura senão pelas leis do mer-
Um espetáculo concebido, m ais do que e da governança mundial, m as tam bé m do e contra a cultura de massa. O teatro tam - cado e ela se confiaa:o --gosto-pequeno-bur-
preparado, nos Estúdios Disney poderá ser teatro universal, a glocalização é concebida bém está, eIn gra us diversos, tornado pelo guês de uma ar te m édia que apraz ao maior
adaptad~:;:e produzido em diferentes países: como uma solução milagre da últim a opor- processo da globalização. Quanto mais o número, LIma arte "popular" qU.e,como prê-
Estados.Unidos, Europa, China, [apão-. Fica tunidade. E, no fundo - poder- se -ia dizer _. teatro se acha voltado para a rentabilidade mio, se encarrega de rebaixar a arte elitista,
assim fabricada uma cultura mainstream: por que não? Pois pouco importa o local, e a comercialização, mais estará subme- a do teatro de arte de outrora ou a do teatral
global. Cada .p a ís recebe, todavia, uma ve r- o global, o glocal, desde que se escape ao tido às regras da produtividade: produzir o do presente.
\.-..l'o .J.,/'-'i .LI .J.J.\.. .J.LI..(:U

adaptada. bocal, isto é, ao fechamento, ao sufocamento espetáculo do.modo economicamente Essa média seria, por exemplo na
gtocaíizacao teatral con siste , quanto por falta de oxigênio. COlUO escapar para um número máximo de espec- França, o teatro de e na Cor éia,
ao essencial, em levar em conta demandas mundo sufocante do bocal? Por que não ten - tadores comprando ingresso pelo preço mais o musicalÉ po r certo uma escolha política
locais do público: de que. tipo de história o tar o teatro? alto possível. . a de decidir o qu esüstentarcom prioridade:
público tem necessidade n esse momento Para o Estado ou para os sponsors, os um setor de elite em dificuldade ou então a
de sua História? O que ele compreende de patrocinadores, torna -se menos caro sub- massa dos espetáculos comerciais. A desre-
sua situação? Qual detalhe vestim entári o ou 3. QUAIS SOLUÇÕES ? vencionar urna arte globalizada e susten- gulação e o fim das subvenções para o setor
musical, qual sotaque, qual alusão local lhe tada pela indústria cultural, do que sustentar eIn dificuldade são conformes à ideologia
ajudarão melhor a situar a ação? Após a abs- A globalização valida a cisão entre, de uma pessoalmente alguns indivíduos envolvi- liberal que desejaria que o mercado decidisse
tração e a estilização de urna escritura ou de parte, UIn teatro de massa, comercial, orien- dos nas encenações confidenciais, artistas os valores, inclusive os artísticos. Assim, o
uma encenação pós-moderna" ou pós-dra- tado para o lucro, submetido às exigên cias empregados corno temporários do teatro globalizado desempenha muitas vezes
um retorno a urna mais econômicas, e, de outra parte, UIn teatro culo. A crise dos do espetacuto o papel de coveiro do teatro de pesquisa e do
ancorada em um dado real conhecido pelo de que não sobreviver sem na foi, segundo Marie-José Mond- sistema de indenização dos artistas. Para ele,
público lhe ajudaria certamente a se reencon - suporte público ou privado e que é subme- zain, "o sintoma decisivo para que o mundo basta invocar as leis inelutáveis da economia,
trar em tudo aquilo que lhe contam e que o tido ao que Nathalie Heinich denomina de das artes e dos criadores tomasse consciên- e deixar que se instale uma cultura e uma
ultrapassa um pouco. "regime de singularidade". Esse regime de cia do fato de que a derrocada do político arte média que agradem a todos e tenham o
O teatro durante muito longo tempo foi singularidade é "a ideia de que a vanguarda podia, de início, declarar a morte da cultura. ar democrático. O turismo cultural explode,
local: seu jogo deu-se no interior de um ou a arte inovadora é forçosamente melhor E~ inversamente, que se a cultura se deixasse em todos os países desenvolvidos, criando

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151
Gosto Gosto

museus de tudo e não importa o que. O tea- antes mesmo da época das Luzes, pela A despeito da variedade dos gostos, e tal - uma obra. É preciso reavaliá-la incessante-
tro não escapa a essa museificação da cul- a estética entrou no calnpo do julgamento, vez por causa dela, a época é do consenso: mente, verificar os mecanisrnos de legitima-
tura, a qual pretende que todos os tipos de para subtraí-Io ao mesmo tempo a toda tudo é feito para evitar o conflito e, entre os ção e não fossilizar os critérios de avaliação.
espetáculos sejam apresentados -que sejam conceitualização'". Com freqü ência se fez o artistas da cena comercial, é grande a tenta- Mesmo se os critérios de gosto nos aju-
conservados, retomados, sendo completados reparo de que o gosto, o olfato e, em menor ção de procurar somente propiciar prazer ao dam a nos referenciar pelo lado da recepção
por obras novas. medida, o tato estão a serviço de uma subjeti- público de consumidores. e em função de critérios e de perspectivas
vidade não mensurável do múltiplas, vê -se muito bem que uma sim-
NOTRS Há, portanto, um sentido em falar-de-gosto - .. ples sociologia do gosto está longe de expli -
Roland Robertson, cit ado po r Manfred Steger, Glo- no teatro, na acepção metafórica de uma dis-
baliza tion: A Very Shor t Introduction , Oxford/N ew
2. A AVALIAÇÃO DO GOSTO car tudo. É preciso também saber proferir
York : Oxford University Pre ss, 2009 , p. 13 . posição estética e cultural, de unl julgamento um juízo mais objetivo sobre as qualidades
Lawrence Globalízation, em Tony Bennett estético dos espectadores .c do .impacto des - A sociologia do gosto.n ãocessa de refinar intrínsecas da obra. Como proceder a essa
et al. A Reviscd Vocabulary of sas sobre a recencac
\ •.Il41' ~UIc;. 'J Vt.-H:-~ }' , .lVJ.o.i\,.'~.l.l. Blackwell,
(>1,1'1'1.4 p. 149 .
seus métodos de análise de seus em que critérios a basear?
Prédéric Martel, Mainstream: Enqu ête su r la guerre do espetáculo? objetos de investigação. Os critérios dos juí-
global de la culture et des médias, Paris: Flammarion/ zos de gosto permanecem, todavia, muito
Cha mps actuel, 2012, p. 66 -70 .
L U MA SOCIOLOGIA DO GOSTO? diversos e gerais. Eles revelam, ao menos, a 3. A AVALIAÇÃO ESTÉTICA DA OBRA
Cf. Na thalie He inich, La Sing ularité à tout prix, Area
Revu es, n. 14, m ar, 2 0 0 7. (Art. Artistes. Etat.) permanência de algumas grandes questões:
Ma ri e-José Mondzain, Malaise dan s le A sociologia do gosto parte do princípio de Cada espectador-, mesmo o mais refinado, Os critérios que permitem julgar as qualida-
v .lv.lIU .l~, revues,
1'U 1:-14. mar. que tanto a conlO a estética" crê -se autorizado a avaliar a obra de arte em da obra estão de serem universais
cisam ter uma ideia sobre os gostos dos uti - virtude de critérios que ele julga indiscutí- e indiscutíveis. Entretanto, concorda-se em
lizadores. Com efeito, não basta descrever veis' mas que ele pena eln enunciar e reluta geral sobre as qualidades de autenticidade-,
a obra, suas est ruturas, seu valor intrínseco emmodificar, de invenção formal e de novidade:
para obter uma análise relativamente objetiva Quem se sente habilitado a julgar? Tanto A autenticidade é antes de tudo a de unla
da obra e a[ortiori da estética dos as "pessoas estranhas ao estabelecimento", artista ou artis -
contempladores, Observam-se corno os jornalistas ou o grande público, tas quando da concepção e da criação da
Fr.: goDt;lng l.: toste; AI.: Geschmack. grandes tendências: quanto os especialistas pertencentes à ins- obra, ocasiãoda qual esta última traz ainda
No caso do teatroe dos espetáculos, os tituiç ão, ao teatro.rao mundo da arte. Nesse , o traço sensível- O'Ieitor ou o espectador não
o sentido do qosto, na acepção própria, quais necessitam-de Uln juízo estético,um . .. ' - -~ . último caso, o parecer dos entendidos são podem notar o que uma figura- , uma expres-
não intervém na prática do teatro: conhecimento das 'expectativas, dos gostos, mais julgamentos incisivos ou ucasses do que são, uma situação, uma maneira de ver, uma
nenhum espetáculo não para degustar, uma do gosto parece a argumentos comedidos, Quando não "estrutura sentimento'? custaram ao autor:
para consumir, para deqlutir, salvo para despeito da extrema diversidade do s públicos gamentos sobre o valor bancário das obras. não necessariamente corno confissão auto -
considerar a cozinha como urna arte das e da diversificação dos modos de julgamento. Esse tipo de julgamento trai uma incerteza biográfica, m as corno lembran ça penosa ou
papilas gustativas que tem por finalidade Uma "cartografia" do ge sto p rop orcionaria dos ponto s de vista críticos sobre o teatro. alegre. O rec ept or dessa "mensagem" sente
nutrir os clientes de alimentos dados uma representação ú til dos modos de recep- Nem os amadores nem os expertos, supon- muito bem se a coisa foi vivenciada ou ape-
em espetáculo .. . Deixa-se de lado o ção e das motivações. do -se que eles se falem, não entrariam em nas fabricada. A performance contemporâ-
caso de numerosas culturas em que os de um nivelamento expecta- acordo sobre uma visão comum, e isso ape- nea joga muito com essas interrogações sobre
espectadores- assistem a um espetáculo tivas, dos valores, a cultura p erforrnativa do sar de todos os discursos sobre a cornuni- a autenticidade, a en ergia e as identidades,
consumindo comida e bebidas. público permanece eclética, acumulativa, da de da gente de teatro. Os critérios do bom sem parar de pô -las em questão.
A experiência sensível difere então muito caleidoscópica. O encenador ou o autor, que e do mau gosto variam consideravelmente A invenção formal reside no equilíbrio de
da dos espetácuios ocidentais que se visam amiúde a um tipo de público homog ê- segundo a perspectiva de uma vanguarda formas, na boa gestão de materiais, no res-
limitam aos sentidos da vista e da audição. neo, global ou globallzad.O, trecuentemente pós-dramática- ou a do teatro de boulevard. aos arquitetônicos, na reali-
ficam surpreendidos. A [ortiori, se nos colocarmos na óptica dos zação do projeto considerado, na utilização
Se o gosto intervém, é no sentido figurado A moda éefêmera, ela concerne a todos os Cultural Performances-, em que a dimensão da linguagem como um material retrabalhado
de avaliação, dê julgamento estético, de bom tipos de produção, especialmente artísticos. Sua estética não é central, os critérios do gosto e não como um instrumento automático. Ouvir
ou mau gosto e, às vezes, de desgosto. E, no avaliação, sua lista de premiados não cessa de serão ainda mais heterogêneos. Ninguém, Dans lasolitude deschampsde cotton (Na Soli-
entanto, como observa mui pertinentemente variar -em função dos consumidores, mas tam- em todo caso, pode arrogar-sê o direito de dão dos Campos de Algodão) de Koltes, é,
Marie-José Mondzain, "o gosto foi a palavra, bém das instituições e de seu financiamento, decidir uma vez por todas sobre o valor de por exemplo, estar consciente dos efeitos de

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153
Gosto

paralelismo e de retórica escondidos sob uma encenação, será então julgada em sua eficácia
linguagem ao mesmo tempo contemporânea e sua novidade. Perguntar-nos-emos sempre
e muito retrabalhada formalmente. Essa pes- se o pós do modernismo ou do dramático
quisa formal produz em grande parte o pra- conduz verdadeiramente a uma invenção ou
zer da escuta e constitui a mensagem sobre a apenas a um efeito de moda e a uma inofen-
nossa época baseada na troca e no comércio. siva provocação.
A novidade e a originalidade são particu-
larmente valorizadas nos dias de hoje. A ino- NOTAS
vação real, e não os efeitos de estardalhaço; Coletivo-de autores de Sans Cible, Produire la créa-

H
será apreciada. E isso em todos os níveis: tion, Colleville: Noys, 2007, p. 54.
2 "Structure of feelíng" conforme o termo de Raymond
língua, dramaturgia, escolha de materiais Wílliams.
e apresentação cênica. .A.. combinatória d e
todos esses elementos, que constituem pre-
cisamente o teatro, seja a dramaturgia ou a

Ha b itus e sobre o seu corpo, índices de sua situação


física e moral no Inundo.
O habitus substitui e alarga o gestus«. O ges-
tus brechtiano propunha uma leitura socioe -
O habitus designa em medicina a aparên- conômica-políticadas personagens, mas esta
cia do corpo e o que ela revela de sua saúde:,, -',"-ú1-ttma se tornou depressa demasiado sociolo-
O sociólogo Pierre Bourdieu retornou essa gizante, caricatural dás relações deexploração.
noção para o corpo ern sua dimen- O habitus permanece na óptica sociológica,
são social: atitude, postura, gestual, mímica, porém dá melhor conta .dos dados antropoló-
voz, mas também vestimentas ehigiene cor- --gicos na perspectiva dos performancestudies·,
poral, aspecto "civilizado" (Norbert Elias). assim como de uma abordagem da intensi -
Sezundo Bourdieu, os incorporam dade do movimento. Ele faz o liame entre o
estruturas sociais, valores, contradições, nor- corpo e a ideologia, aidentidade-. O habitus
mas e, por conseguinte -toda uma ideologia reagrupa as inclinações físicas e psíquicas,
e uma pertinência sociais. O habitus que daí encarnadas nos corpos, ele é o "produto da
resulta é uma maneira amiúde inconsciente incorporação das regularidades". As coreo-
de agir, utilizar o corpo (técnicas do corpo·), grafias de Pina Bausch são um.exemplo de
maneira em grande parte determinada pela concordância entre o gestus político da fábula
realidade social. Se o pensamento, segundo e o habitus intensificado, sexualizado e encar-
Lakoff e Johnson possui de fato uma base nado do movimento. Da mesrna maneira, as
1
j

física, a diferença e a distinção social se ins- peças dançadas de [an Lauwers (La Cham-
crevem elas também no corpo. O ator 1110S- bre de Isabelle) ou de Alain Platel (Tous des
tra UI11 corpo construído, sociologicamente Indiens,Wolj) prolongamo momento socio-
codificado, cuja inscrição corporal (a incor- político-em um movimento intenso do corpo
poração ouembodiment) é apreendida no social encarnado'.
espaço social.
Na cena contemporânea, a noção de habi- NOTAS
tu.. s é indispensável desde que se 'trate de Cf. George Lakoff; Mark Iohnson, Philosophy in the
Flesh: The Embodied Mind and its Challenge to vVes-
explicar a forma pela qual o ator integra, no tern Thought, New York: Basic Books, 19 99 .

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Hántlco Hibridez

2 Pierre Bourdieu, Raisons pratiques: Sur la th éorie de puramente visual, ela é também tátil: a obser- 2 Paul The the Em outros contextos, a hibridez sobre-
Taction, Paris: Seuil , 1994, p. 172. Hurnan New
vação dos corpos e dos objetos sobre a cena Press, 1950, p. 87. tudo artística. Cada arte pode ser concebida
3 Patrice Pavis, Vers un e théorie de la pratiqu e th éà-
trale: voix et images de la scéne, Villeneuve-d'Ascq : conduz a uma percepção sensível ao movi- Cf. Le Visible et l'invisible, Paris: Gallimard, 1964. como autônoma e específica: autônoma,
Presses Un iversitair es du Septentrion , 2000, p. 77-93. mento, à matéria e à textura de tudo que Francis Bacon: Logique de la sensation , Par is: Seuil , segundo Adorno, se ela resiste à pressão das
2002, p. 146 -147-
lhes é apresentado. Eles sentem -de maneira mídias e dos determinismos sociais; especí -
5 Sobre o efeito háptico no cinema, ver: Laura Marks,
intensa esse contato COIn a realidade dos The Skin Film: Intercultural Cinema, fica, segundo certos críticos de arte, corno
objetos e dos corpos: "nós não sentimos a diment Sens es, Durham: University Cjreellbé~rQ:. para quem "o domínio próprio
Press, 2000. e único de cada arte coincide com tudo o
tal ponto nosso corpo quando ele está em
Háptico repouso; mas nós obtemos uma percepção que a natureza de seu meio possui de ún ico":
mais clara dele quando ele se mexe e quando Mas, para os defensores da hibridez artística,
Fr.: haptique; Ingl.: baptic; AI.: haptisch. novas sensações são obtidas no contato com o pós-modernismo, graças a um hábil mar-
a realidade, isto com os " 2 Como o de Ine sela gêneros e de materiais,
Hibridez
Do grego haptein, tocar. pintor segundo Merleau-Ponty' ou o escultor desemboca nU!11a hibridez ou numa mesti-
segundo Dcleuze-, no teatro, o olho e a mão Fr.: hybridité; Ingl.: hybridity; AI.: Hybtiduút. çagem de artes ou de técnicas. Dominique
1. o SENTIDO HÁPT I CO agem de comum acordo, tanto na produção Bacqué assinala toda a diferença da hibridez
assim como na recepção. A oposição entre No sentido da biologia, a hibridez é U111a mis- pós-moderna e da montagem modernista,
Utilizar o sentido háptico é efetuar a expe- o óptico e o háptico marca o contraste entre tura de raças, de espécies, no reino animal ou como a de UIn Eisenstein ou de um Vértov
riência de no espaço tocando-os. Per- o teatro de visível e vivenciado à Poder-se-á lamentar, Amselle, no cinema ou de Brecht no teatro: "Lá
cebe -se com as mãos e, portanto, com todo o distância, e uma representação física, tangí- "nossa incapacidade de pensar os fenômenos onde a montagem dos anos vinte era solidá-
corpo. A sens ação háptica é a do tocar. Qual vel e baseada em um engajamento físico do culturais de outra maneira senão do modo ria com a noção de vanguarda, a mestiçagem
um cego tateando no espaço, com suas mãos, gestual e da corporalidade: biológico?', A metáfora biológica, com efeito, contemporânea é pós-moderna. Quer dizer
seus pés e todo o seu ser, nós podemos tocar não nos é muito útil; é verdade que ela não que ela intervém após o desgaste dos esque-
o o que faz o ator, seu encenador e ambiciona ir além daideia de uma fusão de mas modernistas, quer dizer também que ela
seus preparam uma cena 3. DUPLA PERCEPÇÃO influências na (crioulizaç ão-) e não acredita mais nápossibilidade de pro -
e quandoprocuram seus referenciais e suas nas formas. Os espetáculos pós-modernos" duzir unla imagem nova, original, n1as que
marcas. E sse contato físico não difere f UH - 1vluitas vezes os espetáculos recorrem a esses são ami úde qualificados de produções híbri- milite, pela citação e reciclagem das imagens,
damentalmente do contato do escultor com dois regimes de percepção. Em Voyageurs das; no entanto, não se trata, no sentido pró- em favor -da reapropriação dos estilos. "
a argila que ele modela. Gilles Deleuze, em immobiles (1995 -2010), espetáculo de Phi- prio, de uma mestiçagem de raças, por ém As coreografias de Hervieux e Montalvo
Francis Bacon: de la sensation lippe e Underwood, nerceoeu- de uma mistura de elementos culturais até caracterizam-se por tais híbridas:
eis Bacon: Lógica da Sensação, 1981), deu à -se muito bem esta dualidade óptica/háptica de sua justaposição (rnulticultural-). EIl1 que diferenças de rnorfologias dos dançarinos,
palavra "h ap tic" suas cartas de nobreza. Ins - qu e a escolha do som (m úsica, ruídos, voz) consiste essa h ibridez? Desde os anos 1990, das cores da pele, dos estilos coreográficos.
pirando-se no filósofo Riegal, ele opõ e o h áp- ancora e confirma. Nos momentos h ápticos, na continuidade da era do tod o cultural dos Essas diferenças, entretanto, se apagam .em
tico ao óptico; segundo o filósofo austríaco, a o espectador parece subir ao palco para se anos 1980, a hibridez e a mestiçagem tor- uma coreografia que as integras.
arte evolui do háptico, da sensação vinda da confrontar tangivelmente com os corpos, naram-se quase a norma, o ministério da
com materiais e COIn vozes diretas, ele par- Cultura francês só direito à dife- NOTRS
para o óptico, para o olho que tende a
Iean -Loup Amselle, Vers un multiculturalisme[ran -
abstrair a realidade. Deleuze opõe tátil ao ° ticipa hapticamente das ações e dos ruídos rença. Nos países como os Estados Unidos, o çais: L'Empire de la coutum e, Pari s: Flammarion,
óptico, os quais produzem, como uma espé- do papel amassado. Em outros momentos artista ou o performer é muitas vezes, como 2001 , p. X.

cie de síntese ou de oximoro e de contradi- em que intervêm a música "planante" de Tor- Guillermo Gómez-Pena, U111 cidadão que 2 Guillermo Gómez-Pena, 'lhe New .World Borde i, Lon-
don : Routledge, 1992, p. 12.
ção dialética, o h áptico '. gue e Houpin, o mesmo espectador parece participa de duas ou mais culturas, capaz
3 Clement Modernist Painting, Peinture:
alçar voo, decolar da situação concreta, sub- de se defender contra cultura dominante, Cahiers théoriques, 1974.
meter-se a urn efeito de afastamento óptico assumindo sua posição exterior. Essa versão 4 Dominique Bacqué, Photographie plasticienne:I:Ex-
que abre a via aos fantasmas e às imagens do da hibridez é "transracial, plurilinguística e trême contemporain, Paris: Du Rega rd, 2004, p. 233.
2. Ht\. PTICO, TÁTIL, ÓP TICO
5 DVD dos espetáculos e com en tários em offde Dorni-
inconsciente". Entre terra e céu. multicontextuaL A partir da posição do des- nique Hervieux,
Mesmo se não se considera que os espec- vantajoso, o híbrido expropria elementos de
NOTAS todos os lados para criar sistemas mais aber-
tadores-, na tradição ocidental, toquem os
Gilles Deleuze, Francis Bacon: Logique de la
sua relação na cena é tion, Paris: De différence, 1994, p. tos e mais fluidos">,

156 157
História de Vida História de Vida

História de Vida do teatro parece ter experimentado todas Em La Mastication des morts (A Mastigação em uma cultura estrangeira popular. Mas isso
elas. Seria necessário que se pudesse recap- dos Mortos), Patrick Kermann faz falarem não bastaria: é preciso ainda que o narrador
Fr.: récit de vie; Ingl.: lite writing (story); turar a evolução da história de vida desde os mortos de um cemitério, reconstituindo estabeleça o laço entre essa cultura e a ques-
AI.: Lebensbericht. sua origem antropológica (como uma estru- a vida trivial de un1a pequena comunidade. tão de atualidade, questão política, polêmica,
tura inata e universal) até as formas atuais do O retorno do relato autobiográfico con- abordada por meio dessa forma de jogo de
A história de vida, escrita geralmente em pri- teatro-narração (teatro di narrazione italiano firma-se como meio de aceder ao conheci- atuação.
meira pessoa, concentra-se na de contemporâneo, por exemplo). Passou-se mento da sociedade neoliberal e globalizada O teatro de narração: uma forma arcaica
uma existência, contada por um único indi - assim de u.ma forma nascida em uma socie- (assim é em Falk Richter), ou como confissão cheia de futuro? Pode-se esperar, pois o tea-
víduo COJU certo recuo. Tal relato não é pró- dade arcaica, rural, passadista, a um teatro dos tormentos amorosos (como em Angé- tro, em seu sufoco atual, sua falência eco-
prio do teatro ou da literatura, ele é bastante de narração, um gênero político, adaptável, lica Liddell). O relato, em Richter, é o de uma nômica, sua desorientação moral e política,
universal e foi estudado pela antropologia, aberto às mutações econômicas e capaz de educação sentimental e política, sem que se ganha trabalhando sem pesada tecnologia
pela história, pela psicologia ou pela medi- analisá-las com um olhar crítico. Entre esses possa distinguir sempre a perspectiva auto- nem burocracia asfixiante, transportando-se
cina. O teatro, em especial o contemporâneo, dois extremos, encontra -se uma rica paleta biográfica ou o ensaio demoral política. facilmente de um lugar a outro c, sobretudo,
imita, transpõe e reinventa a maneira como de experiências narrativas, notadamente: como um ataque de batendo para
se conta histórias. Ahistórja de vida pode ser O teatro na tradição do poema dramá- em seguida camuflar-se sob outras formas,
2. A RENOVAÇÃO DO TEATRO-NARRATIVA
assegurada por uma personagem, não neces- tico, forma que se encontra às vezes ainda em outras experiências. Um tal teatro-nar-
sariamente pelo ator, pelo narrador ou pelo entre poetas-romancistas, como Peter Han- Sob sua forma radical, o teatro-narrativa- rativa adapta-se, com efeito, às necessida-
v"""' , ... (Ver autooioarana-
' J . . . . . . . "L .......... r) "I 1 Tf"'\n ,-rr.l
i,",\e
dke ern Über die Dõrfer (Sobre as Aldeias, remonta a Antoine Vitez e tão descons- des do momento, renova-se sem cessar,
Adiantaremos a hipótese de que cada cul - 1981). Nessa obra, alguns locutores COIn -' trucionistas anos 1970. Mas ele conhece, coloca-se em questão, não tem tempo de se
tura possui seu modo de contar: ele não é põem por meio de suas longas tiradas, que especialmente na Itália desde o começo esclerosar em formas pesadas e em receitas
o mesmo na França, na Itália, na Inglaterra não são verdadeiramente diálogos, mini-re- do século XXI com o teatro di narrazione, fáceis. Ele parece ligado à descentralização,
ou na Cor éia, apesar das estruturas narrati-- latos cuja soma recompõe uma sociedade uma Asca- a das capitais para as mas tam-
vas gerais comuns. Os ternas, a focalização, a aldeã do passado. nio Celestini e, na Sicília e na Calábria, com bémdas formas pesadas para as experiên-
familiaridade ou a concepção da identidade As adaptaç ões de obras romanescas nas Emma Dante, Massirno Barilla e Salvatore cias mais ligeiras e móveis, Como se o teatro
e a definição do eu diferem grandemente de quais as personagens evocam seu destino ao Arena). Essa forma estabelece o laço com de narrativa tivesse o poder, ou ao menos a
um contexto a outro. O teatro joga com essa fio da prosa: aqui o adaptador (o encenador, a tradição do contador popular presente esperança, de tocar grupos marginais, longe
rica diversidade; ele varia ao infinito as situa - muitas vezes) escolhe no romance longos tre- em todas as sociedades humanas, tradição das instâncias centrais, sem por isso recair no
ções da narração, os pontos de vista sobre o chosnarrativos retomando-os tais quais ou retornada por Dario Fo, nos anos 1960. No folclore, na nostalgia dos bons velhos tem-
mundo, a finalidade do relato e de sua escuta. dramatizando-os. O romance de Lydie Sal- caso de Celestini (por em Rádio pos, no bucólico e na pastoral. Teatro popular,
O narrador, e além dele, o autor dramático ou vayre, La Compagnie des spectres (A Compa- Clandestino), assim corno na maior parte transportável, adaptável, inclusive às mutações
o dramaturgo têm a esperança ou a impressão nhia dos Espectros, 1997), é assim adaptado dos numerosos solo -performances, os nar- socioeconômicas, e imediatamente reativo.
de reconstituir uma história coerente" corn -. e depois encenado (por Monica Espina eIn rattori (narr-atores: narradores e atores ao Comparando essa forma, tão ativa desde
pleta, a partir de um ponto de vista ou de um em função dos relatos dos protagoms- mesmo tempo) reatam com tradi- os anos .199 0 , a outros tipos de t:-lV"t"\t:-lrlpnr ·lr.l

eu coerente? Ou então defendem eles uma tas. O mais das vezes, nas adaptações".encon - ção popular. Eles recorrem à memória cultu- de teatro político, nota-se a vontade de um
concepção p ós-moderna- da identidade do tramas urna mistura de relato a ser lido, de ral coletiva, graças a U111 trabalho etnológico teatro mais ligeiro, mais incisivo, um teatro
eu, um eu considerado corno un1a instância texto a ser dito e de ações a serem desem- de registro e gravação de canções ou contos que se destacou do teatro oficial, institucio-
instável, um sujeito sacudido 1-' , " ....- "' . populares. Essa pesquisa etnológica se ins- nal, e que tomou igualmente suas distâncias
cias do desejo, pelas mutações da sociedade e En1 uma escritura poético-dramática -ro- creve, por sua vez, em toda urna corrente da de uma vanguarda fossilizada 1.
por uma estética do fragmento e do efêmero? manesca mais experimental, um escritor memória cultural, tal corno Stephen Green-
De tais parâmetros dependem a possibilidade corno Noelle Renaude produz massas de blatt a analisou em seus trabalhos sobre a NOTA
Obra geral sobre Gastón Pineau; Jean-
e a forma da história de vida. materiais narrativos muito retrabalhados, que cultura da época de ShaIeespeare. O "narr- Louis Le Grand, ..........., .... ...,.v......., vie, Paris : PUF, 2007-
não são necessariamente atribuídos a perso- -ator" nos mergulha em uma vida passada, (Que sais-jer)

nagens precisas. Sua acumulação, sua "fer-


1. QUE TIPOS DE HISTÓRIAS DE VIDA?
mentação" e sua rítmica acabam recriando
Essas formas de narrativa são inumeráveis do vias possíveis, por imaginar a gênese do indi-
ponto de vista da antropologia e a história víduo ou a cosmogonia de um grupo social.

158
159
2. A IDENTIDADE DO
Identidade
Mais do que todas as outras 'artes', o teatro -
Fr.: identité; Ingl.: identiry; AI.: Identitéit.
toda
' 1. A NOÇÃO DE IDENTIDADE "~ iclenticlade .c Mas teria ele urna? Não há mais
nada de teatro para ler, de literatura dra-
A identidade individual (a de urna pessoa) mática, nem mesmo de teatro a represen-
ou coletiva (a de um grupo social ou de uma tar -ajuizad am en te como a representação
nação) se define por sua permanência, sua fiel de um texto. Ele se abriu para o con-
continuidade e sua unidade. É isso queper..--"- j u,nto .inti.QHQ ci,ª~ a:ç ª-,e s· e· das performances
rnite reconhecer um elemento como sendo humanas e extra-humanas. Não resta, pois,
único idêntico a si Mas a de nada em comum a todas perfomances,
identidade não caminha sem a de nenhuma marca identitária Não há,
e a de mudança: como de fato ela se mante- pois, nenhum sentido maior em se pôr em
ria, quando a .realidade individuale social é busca, como ,s e fazia ainda 110S anos 195 0 , da
plural, heterogênea, movediça e quaseinã- 'essência do teatro (Gouhierjvnemsequer,
"preensível? cQmo nos (iDOS 191>0 e 1970, da teatralidade
Pelo que concerne ao sujeito in divid ual, ou do signo teatral.
sua identidade é posta-em questão e esta-
mos muito longe da definição cartesiana de
um eu sólido e Unificado. O budismo vai a 3· TIPOS DE IDENTIDADES NO TEATRO
ponto de rejeitar a concepção de um eu está-
vel, ele privilegia o fluxo da consciência, a Longe de semelhante essencia-
instabilidade e a ilusão de toda identidade. lista, mais vale examinar que tipos de iden-
Um mesmo sujeito concentra as identida- tidades entram em jogo na fabricação e no
des as mais diversas, sucessivamente ou ao consumo do teatro.
rnesmo tempo: identidades múltiplas, con - Identidade nacional: com o fim dos esta-
traditórias' passageiras, incoerentes. dos-nações e das literaturas e tradições
nacionais, a ideia de teatro ou de repertório
Identidade Imersão (Teatro deI

nacional, de cadinho cultural para uma urna identidade profissional "enraizada nos pois) ser assimilada a uma etnia ou a uma fazem ganhar) uma liberdade inesperada,
nação antiga ou recente, perde parte de sua valores técnicos específicos, ou sobretudo nas raça, e, de outro, a das minorias étnicas e impensável na realidade social e política, a
força e até de seu sentido. A produção teatral leis e princípios, que são o fundamento de comunitárias que servem de realce à identi- liberdade de experimentar novas formas de
é amiúdemultinacional e globalizada. As téc- todo performer diante de um espectador- em dade francesa" (p. VI)? identidade e modificar nossa relação com
nicas e os materiais, os atores e os artistas uma situação organizada de performance">. Constata-se certa fadiga do discurso sobre essas identidades.
pertencem a universos provenientes dos qua- Essa multiplicação de identidades em com - as identidades, e até uma rejeição dessa pro-
tro cantos do Inundo. A origem linguística, petição substitui o conflito aberto de ideias blemática devido ao desaparecimento pro- NOTAS
Ben edict Anderson [1983], Imagined Comrnuniiies:
temática e institucional não se pode mais e de ideologias nos anos 1960 a 1990. Um gressivo dos Estados, das fronteiras e dos Refl ections on th e O rigin and Spread of N a tionalism ,
retraçar, ela perde toda pertinência quanto número maior de parâmetros ajuda a cercar marcadores de identidade. London: Verso, 200 6.
à sua produção e recepção. melhor os fenômenos sociais e psicológicos, Iudith Butler, Perforrnative Acts and Gender Con -
stitution: Feminist
Identidade étnica: poder-se -ia, por certo, mas a resultante de todos esses conflitos está The or y, v. 40 , n. 4, 1988 , p. 98.
abordar as práticas perforrnativas de diferen- longe de estar claramente estabelecida, em 4. A. C H A N CE DO TEATRO NA ÉPOCA DA Maria Shevtsova; Christoph er lnnes, Directors/D irec-
tes etnias, mas o resultado correria o forte particular) de um ponto de vista político. É tal- IDENTIDADE GLOBALIZADA ting: Con versations on Theaire, Cambridge: Ca m -
bridge Univ ersity Press, 2009, p. 25 -2 6 .
risco de não ir além da enumeração de for- vez o que o endurecimento das posi-
Iean -Loup Amselle, vers un muuicuituraiisme trancais:
mas e de práticas. O empreendimento seria ções políticas antagonistas. Quer se aceite sem Todas essas contradições da identidade LeEmpirede la coutume, Paris: Flammarion,
útil para os etn ólogos) porém decepcionante hesitação o embaralhamento e a lista intermi- étnica não afetam diretamente a criação Le Monde, 6 maio 2 0 10 .
para os historiadores e teóricos do teatro. nável das diferentes identidades como a marca teatral. A generalização da noção de iden-
É de resto o que contentam muitas vezes de nossa com o risco de tidade é antes uma coisa positiva para criar
eln fazer os Perjomance Studies·. que "a multiplicação das identidades acarrete e pensar o teatro nesses tempos globaliza-
Identidade cultural: tornou-se quase impos - em incomensurabilidade e desresponsibili- dos. O teatro, ou mais exatamente a perfor-
sível distinguir culturas específicas, dada a sua zação dos indivíduos">, quer, ao contrário, a rnance sob todas as suas formas (as cultural Imersão (Teatro de)
rnistura. O debate sobre a identidade nacional gente se enrijeça em urna atitude reacioná- oertomances: representações culturais) tor-
toma U111 viés puramente político e polêmico. ria que só jure pela identidade nacional, ou nou-se um terreno de experimentação .para FI'. : im mersion (Théôtre dj; Ingl.: imm ersive the atie.
Identidade com unit ária: poucos teatros nacionalista) e rejeite todos aqueles que não essas identidades em competição. A globa-
se apresentam como sendo de certa comu- são nacionais, franceses de raiz e que reivindi- lizaç ão, ao ampliar os tipos de identidade) o teatro de imersão consiste eUl mergulhar
-----------_.; . -..__ todo caso étnica ou religiosa. quem outras identidades. Mas, acontece tam- permitiu, com efeito,' ao teatro estender seu os espectadores, individual ou coletivamente)
Algumas ,{(conll lnidades imaginadas?' refe- bém, como nota André Bercoff, que aqueles-- território a muitas outras práticas espetacu- "em um lugar.em um meio, em uma atmos-
rir-se-ão talvez a um gên ero de 'teatro, mas que reivindicam para si identidades múltiplas lares e a aceitar outros questionamentos teó - fera, em U111a situação que facilitará suas des-
não se m ais quase escolas, movi- e se fazem defensores de minorias utilizam o ricos. Renunciando à exclusiva identidade cobertas ou redescobertas do mundo, que lhe
rnentos, n em m esmo estilos característicos termo identidade (nacional) como um insulto: greco -latina) o teatro europeu ultrapassou o farão viver um momento autêntico e intenso
de uma comunidad e específica. "Identidade: palavra obscena para o coro das logo centrismo da literatura dramática) mas em contraste com sua vida cotidiana p ar a-
Id entidade social: a classe social é menos virgens da diferença rainha e do minoritário tamb ém transpôs o obstáculo da primeira lisada pelos hábitos e banalidades. Tudo é
reconhecível em marcas identitárias. O ges- rei; palavra a ser proscrita para as carpidei- etapa na história da demasiado feito para dar ao espectador- a de
tus- brechtiano é mais raramente empregado ras do angelismo compassivo que consiste em ligada a uma visão de um diretor cênico con - que os atores estão se ocupando individual-
para. encar n ar relaçõ es de fo r ça ou de clas- encontrar escusas, explicações e álibis para siderado como sujeito pleno e unificado, e se mente dele e que ele irá viver urna experiên-
ses sociais. Est am os em uma fase de indife- não importa quenl salmodie que a França é abriu alguns dirão se dissolveu - nas cultu- cia que mudará sua vida ou, ao menos, seu
renciação das p ersonagens (que são figuras umagarce à (puta para foder), ou outra 'h Destarte, o teatro tornou-se olhar sobre a vida. Os atores se dirigem a ele
0 1V 1 -f 'l 'Y' VVJ r1 'l ' 1 r o C'

abstr atas): a mul ti-identificação apaga a iden- amabilidade da mesma laia." um laboratório de pesquisas interculturais· e por seu próprio ~olne, tratam ~ no como UDl
tidade social de mas iado precisa. Para permanecer no terreno da identidade intericlentitárias. Ele testa alianças interartís- indivíduo, e não como uma massa amorfa)
Id entidade de gênero (relações sociais de étnica na França, observamos, com Amselle, ticas· inesperadas: literatura/dança, música/ convidam-no a uma interação, faze~n-lhe
sexo): ela é conc ebida e produzida como "uma que dois tipos de identidade podem coexistir canto/textualidade, enquete sociológica/jogo perguntas pessoais e até íntimas. Assim
obra perfonnativa realizada, tornada obriga- sobre o mesmo território e em urna mesma (Rimini Protokoll), rnilitância antiglobali- imerso e "intimado", o espectador se encon-
tória por uma sanção e U1n tabu sociais">, política, corno no caso da França: "No plano zação/criação videográfica (Gómez- Peí1a). tra em um mundo real ao qual é chamado a
iaentiaaae protissionat: além das diferen- étnico-cultural, duas instâncias maiores se Recusando-se entrar no jogo das identi- reagir pessoalmente, oferecendo o seu corpo
ças de treinamento do ator e dos métodos colocam: de Uln lado, a da nação francesa, dades nacionais, no templo da pureza étnica, e o seu caso à arte teatral e à ciência teatro-
de encenação, há ) corno bem notou Barba, composta por (franceses de raiz: e que pode, o teatro e a arte perfonnática ganham (e nos lógica.

162 163
Instalação
Indeterminação
Instante Pregnante Interartístico

NOTAS a «face palpável dos signos" (Roman Iakob- Claude Régy em 4.48 Psychose ou Ode mari-
Théâtre/Public, n. 184, jan . 200 7, p. 62. I ,nte ns ifica ção son). Corno o anota Denis Podalydes, o "pra - time, as associações de imagens e de sons
2 Claire Bishop, Artificial Hells: Participa tory A rt and
the Politics of Sp ectatorship, New York: Verso, 2012) Fr.: inte nsitication; Ingl.: heighteningl intens incotion; zer de dizer a língua': esse procedimento traz do Théâtre du Radeau de François Tanguy,
p. 219 - 2 39· AI.: Ubersteiqerunq. para os atores, especialmente franceses, a a montagem de imagens fílmicas e de frag-
censura de artificialidade, uma vez que não mentos de jogo dramático live nas produções
o termo inglês heightening (literalmente, apenas um procedimento de lnt-arlC'1t-lr ... ,...;:;........ do Wooster Group, são outros tantos exern-
elevação) expressa bem esta noção "Diz-se que eles cantam, que eles se ouvem pIos desses vetores de intensidade, que não
de intensidade e esse processo de falar, que eles perdem seu natural. Censura- visam à construção de um sentido objetivá-
Instante Pregnante intensificação que caracterizam -se o teatro francês de dar demasiado impor- vel, mas a uma intensificação das sensações
a encenação e o jogo teatral tância à linguagem, à dicção, de 'representar: no espectador.
Fr.: instont prégnont; Ingl.: preqnan t moment;
contemporâneos, quando eles se afastam como se diz, as palavras, de reificar a língua Um tal teatro de intensidades, um «tea-
AI.: ttuchtboter Augenblick tptáqnanterMon 7ent).
do realismo cotidiano! concentrando e de empastá -la, onde ela deve ser fluida, se tro energético" (Lyotard, 1973), «produziria
seus efeitoscorno em um cadinho ou dissolver, ser apenas um elemento da signífi- eventos efetivamente descontínuos': como as
Essetermo de Lessing (traduzido também
um espelho côncavo, dando à forma cação." Semelhante intensificação é uma esti- ações de Iohn Cage. Ele "não tem de suge-
por momento fértil) no seu ensaio sobre
uma densidade e uma intensidade lização estética-, rítmica e não psicológica. rir que isto quer dizer aquilo; ele não tem de
Laocoonte (1766) é precioso para a
excepcionais. Ela conduz a urna exacerbação da forma, que dizê-lo, como desejaria Brecht. Ele tem de
teoria contemporânea! pois prefigura os
pode à pesantez, ao ridículo, à recusa produzir a mais alta.intensidade (por excesso
esforços atuais para conciliar o estatismo
L DA pelo Mas dispositivo ou por daquilo que aí, sem inten-
da pintura e o do relato! por
lístico e essa estilização valorizam a forma e ção" 2.A teoria contemporânea não cessa de
exemplo o da imaqern cênica.
Umãprirneira e fundamental intensificação aprofundam a experiência estética. procurar esse possível teatro das intensida-
o instante pregnante designa um momento dramatúrgica se produz graças à concentra- O espectador torna, às vezes, ele tamb ém, des' como que para melhor avaliar a expe-
único em que o relato se conc en tr a com ção de um grupo reduzido de pessoas (uma a experiência da intensificação, experiência riência estética para além do seu sentido
grande intensidade em uma situaçã o ou uma fam ília , um clã, UIn pessoal da casa) cujas sentida como única , não repet ível, malverba - primeiro.
irnagemrPassado, presen te e futu ro são con- ações são limitadas no tempo e no espaço, lizada, inten sa como uma quase iluminação
. densados em uma atitude sintéti ca intensa. segundo a velha regra das três unidades. (satori-). O mo vimento ajuda a intensificar os NOTRS

É preciso distinguir o instante pregnante A intensificação incide igualmente sobre sentidos auditivo e visual, a perceber melhor L e Monde, 14 mai 2010.
todas as componentes da mise en scéne. Esta sua identidade e sua relação com o outro. 2 Je an -François Lyotard, D es Dispositifs pulsionnels,
do Kairos: ou do instante decisivo da foto - Paris: UGE) 1973) p. 102, 104; id em, The 'Iooth , th e
que Cartier- Bresson vi a corno o última brilha então por suas escolhas siste- Palm, 5;
v. n. ··lS, 1976, 105-no.
momento em que o deve L"1""~''''''''''''''''' m áticas e sensíveis ao de toda a
o botão. "O instante pregnan te é fun dam en - sentacao, com as necessárias variações. 2. PRINCíPIO EST ÉTICO

talmente distinto do instante decisivo, pois o É na dan ça e no gesto coreográfico


primeiro é um clímax, isto é, um momento que o processo de intensificação se deixa A intensidade da experiência vivida opõe-se,
melhor observar. A dança é, com efeito, o na teoria e na prática do teatro contempor â-
de forte intensidade dramática situado em I ,nte ra rtís tico
urna continuidade dos acontecimentos que movimento percebido como retrabalhado, neo, à significação do sentido recebido. Se a
ele sintetiza e simboliza, ao passo que o redesenhado, refeito em um quadro especifi - significação result a de uma análise sem ioló - & Fr.: ín terortistique ; ingi.:interortistic.
segundo é um hapax, isto é, urna oco rrên - camente criado para tal efeito . O movimento gica dos signos da representação, a intensi-
cia única, não renovável, uma coincidência cotidiano adquire uma dimensão estética e dade, ela, não está ligada ao signo, porém à A noção de interartístico, cada vez mais uti-
singular e imprevisível.. ." 1. A noção d e ins - cinest ésica, um refinamento e unla precisão energia desdobrada. A energia ou a intensi- lizada desde os anos 1960, recobre realidades
tante desempenha UUl papel cru cial na esté - que decuplicam seu valor e sua força. Os afe- dade' noções por certo mais imprecisas, dão, muito diversas:
tica rl'...n .... r'~n .." r .....
:;)rY1' ...... tos- dos dançarinos ou dos atores tornam -se no entanto, melhor conta das 'O.....
a "V"1 n '01... r ..... " A reunião das artes: é a ideia banal de que
sensíveis ao espectador", afetividade se teatrais recentes. Elas se manifestam no o teatro, o espetáculo e a arte performática
NOTA vê fortemente mobilizada. na vetorização dos afetos- e das impressões, são feitos de todas as outras artes-Com-uma
Iean -Pierre Montier, Henri Cartier-Bresson: L:Art sans O ator possui o poder de apresentar sua e não na elaboração de urna significação dosagem diferente, conforme as épocas e de
art, Paris : Flammarion, 1995, p. 2 7 2.
gestualidade e sua dicção com um efeito de oculta ou simbólica. A intensidade de uma acordo com a ideia essencialista de que cada
estilização. Daí às vezes certo maneirismo, iluminação de Robert Wilson, a "intensidade arte possui propriedades específicas e imu-
uma artificialídade, um modo de fazer sentir .quase sobrenatural" da luz na encenação por táveis. De há muito se definiu o espetáculo

166
167
Interatividade Intercultural (Teatrol

como o produto da utilização pelo encena- mise en scêne na posta em cena': atuando com um na plateia. Às
dor de outras artes postas em relação na mise Todas essas experiências de transferência vão vezes, um pouco rapidamente, afirma-se que NOTAS
en scêne. A lista das artes ou das técnicas é contra a ideia essencialista de especificidade. o teatro onde o público não está mais sentado, Edmond Couchot; Norbert Hillaire, L:Artnumérique:
comment la technologie vient au monde de l'art, Paris:
infinita. Daí a impossibilidade de se dar uma Às vezes, a arte reage: Robert Bresson pen- mas deve deslocar-se, é um teatro interativo, Flammarion, 2003, p. 97-98.
definição "compreensiva» da arte teatral e das sava que "não havia nada de mais deselegante o que seria uma prova da renovação dramá- 2 Herv é Fischer, Les Techniques d'image, em Laurent
práticas contemporâneas. e de mais ineficaz do que uma arte concebida tica e do desaparecimento do teatro -à antiga Gervereau (éd.), Dictionnaire mo ndial des images,
Paris: Noveau p.
O sistema das artes: cada época (menos na forma de outra". Hoje , a arte performática com o seu público comedida e frontalmente
a presente) tenta defini-lo, hierarquizando e a instalação, mas tamb ém a encenação de sentado diante de um palco, da cena.
..os sistemas e os materiais, O sistema é sem textos, sentem prazer em citar, e até em ado- A interatividade é a relação entre um sis-
cessar reposto em questão: uma nova mídia,
uma nova prática artística recalca as outras,
tar, técnicas e aspectos de outras artes, em
particular do cinema, das artes plásticas, da
tema informático e seu ambiente, A interati-
vidade se faz com um agente humano ou não
- lntercultural (Teatro)
as engloba (rernidiaç ão-, interrnidialidade-).
Estamos bem distantes da ideia de que as artes
estabeleceram suas propriedades e suas fron-
teiras-, como sustentava ainda Greenberg
arquitetura, da fotografia, do jogo
racional" da arte perforrnática (o performer
não representa urna personagem, porém se
"apresenta" ele próprio).
humano: uma máquina, mas também a natu-
reza e o meio ambiente. As mídias, os videoga-
mes encorajam e controlam a interatividade.
O teatro empresta deles cada vez mais.
I
.. Fr.: intercu/turel(théâtre); Ingl.: intercultura/ ttieatre;
m
_ AI.:interkuíturel/esTheatei.

and Culture, 1961) nos anos 1950. A descorn- . s componentes de uma arte podem tarn-
.A As artes interativas instauram uma intera- o teatro intercultural existe ainda? A questão
partimentação das artes se generaliza. bém constituir objeto de urna nova relação ção visual ou sonora entre a obra e o público. parece paradoxal, e até provocadora, mesmo
Novas aparecem incessante- com sua arte de ou outra arte: assim, <'A interatividade é um princípio dinâmico quando as tro cas culturais de todas as ordens
mente e elas tendem a repor em questão as a cenografia assume às vezes certa autono- sem fim que impele a obter do computador regulam nossa vida cotidiana e quando o
precedentes. Assim, as visual arts conside- mia, usando o terrno de Adorno, e se opõe à respostas cada vez mais sutis e imediatas. Daí menor artístico invoca fontes e públi-
rarão que as performing arts, notadamente encenação, teatral ou coreográfica, sugerindo uma busca incessante para aperfeiçoar tec- cos dos mais variados. O fato é, entretanto,
a performance, fazem parte de seu domínio, que a considerem em sua relação com ela. nicamente as reações da máquina, daí um que o teatro se distanciou muito das expe-
como urna das possibilidades. O interartístico liga -se à intcrrnidialidade, retorno aos primeiros objetivos da ciberné- riências interculturais dos anos 1980, as de
As{ntese das artes: ela é realizada em cer - visto que as artes concretas da cena se mis- tica: simular comportamentos, percepções, UlTI Brook ou de uma Mnouchkine. Não se
tas estéticas (C;esa11'ltkunstlverko de Wagner). turam e se opõem aos mundos virtuais que uma inteligência que se aproxima do homem." debate mais tampouco, conlO antes, sobre
Nesta síntese (essencialmente: m úsica, texto, os computadores podem criar sobre a cena Enquanto a primeira interatividade se inte- a das exp~_~iências intercul-
jogo teatral, dança), fala-se de arts [rêres ou em suas margens. O caso mais frequente ressava pelas interações entre o computador turais . O interculturalismo, noção recente
(masculino em francês), "ar tes irmãs" em é o do jogo do ator ao vivo confrontado com e o homem segundo o modelo estímulo-res- (anos 1970) e outrora contestada, banalizou-
alemão, Schwesterkunste, a palavra arte imagens de si lllesn10 ou do . ~ _ . _ - - - _ - - ~- posta ou a segunda interativi- -se consideravelmente. Por isso vale a pena
(Kunst) é feminina. Outrora, dizia-se "artes projetadas sobre tela s. dade se interessa mais pela ação na medida verificar o que ele recobre em nossos dias
reunidas" Em todo caso, qua se não se insiste em que ela é guiada pela percepção C<enação"), e se é ainda útil para descrever a produção
mais sobre a especificidade das artes, mesmo pela corporeidade e processos sensório- atual do teatro e da arte performática, par-
porque a realidade mostra diariamente que ' - =lllotores, pela autonomia... (P.99) . ticulannente nesses tempos globalizados e
as artes se associam, em vez de se excluir e Paradoxo das tecnologias digitaise do corpo
Interatividade mundializados. Deve-se falar do intercultu-
de se umas às outras. no teatro: as tecnologias "visam assim res- ral corno coisa do passado?
O franjamento (Verfran zung) das artes é tituir à comunicação todos os poderes da
Fr.: interactivité; Ingl.: mteractivity; AI.: tnteraktivitãt.
a ideia de Adorno, na sua Teoria Estética, plurissensorialidade emocional, que a tecno-
segundo a qual o~_ contornos, os limites das Interação/Interatividade: con vém distingui- logia do impresso e do papel haviam, desde
artes perdem sua nitidez, que se desfiam, daí -los. i\. interação é uma ação entre duas pes- a invenção de Gutenberg, tendido a reduzir a. Referências Históricas Recentes
sua aproximação, mas também sua perda de soas. No teatro, há entre UIn ator e a uma linguagem visual e abstrata". Um. ator A do muro de Berlim e o fim do COInu-
identidade. um espectador-, o que constituía até há pouco Inove-se e ativa sobre a tela unl sujeito de nismo em 1989 marcam uma virada decisiva
Aplicação de urna arte a outra: trata-se a maneira de definir a relação teatral. Fala -se síntese que reproduz exatamente seus movi- para o pensamento intercultural. Esse pensa-
de projetar princípios de uma arte em outra mais especificamente de quando um mentos, Pondo em contato seres humanos mento o desaparecimento do prin-
arte ou outras artes. Fala-se, por exemplo, da dos dois termos da relação se dirige ao outro. e simulações, as artes interativas ativam o cípio de universalidade, o do humanismo
encenação de um quadro ou da dicção teatral O teatro sempre conheceu esse tipo de inte - corpo inteiro dos participantes e restituem ocidental assim como o do internaciona-
em uma cena filmada, ou da influência da ração entre o ator dirigindo-se ao público ou ao corpo uma centralidade. lismo proletário, florão fanado do socialismo.

168 159
Intercultural (Teatrol Intercultural (Teatrol

Bharucha/ o orientalismo de Brook


ou contra ocidentais
mente, a cada de nr"C''''lrr.,::llC

de colonialismo do '-'\...-.I.\...I.1'--J r r.v,

unzuaaem uemaaogica em Kno-


Lembremos dos ataques de um

170 171
Intercultural (Teatro) Intercultural (Teatro)

não fu n cion am mais tão bem, quando se diferença cultural; seja, ao contrário, a de constrangedora, da leitura das legendas vontade de se isolar da sociedade amiúde
trata de descrever essas obras híbridas, insistir no particularismo de cada cultura, intercaladas. multicultural em que se desenvolve. Certos
rnesmo quando são globalizadas. Os tex- recusar toda aproximação e toda síntese, e O teatro sincrético- utiliza materiais tex- dramaturgos saídos de minorias negras ou
tos e os espetáculos de nossa época globa- escorregar para um particularismo extremo, tuais' musicais, plásticos emprestados de asiáticas na Grã-Bretanha (é o caso de Roy
lizada não sofrem mais a necessidade de se que degenera depressa em um multicultura- muitas culturas, especialmente das culturas Williams com sua peça [oe Guy (2007) ou
definir COD10 uma confluência de culturas, liSD10, e até em um comunitarismo sectário. mcuaenas que se veem assim misturadas às nos Estados Unidos (é o caso de Sung Rno
como se a coisa avançasse por de fato, Corno mostra Ernesto Laclau, a e formas europeias, tratando inúmeras vezes com
que sentido teria a interculturalidade se as a reflexão democrática durante muito tempo de problemas do colonialismo ou do neo - O teatro para turistas-, por certo não
culturas já se encontram tão "misturadas"? hesitaram entre essas duas posições: "O dis - colonialismo. anunciado corno tal, mas muito presente
A antiga distinção entre o intracultural e o curso democrático centrara-se na igualdade a teatro pos-coionial- inscreve a escri- em países que ViVelTI do turismo e desejam
intercultural não é mais hoje fácil de estabe- além da diferença. Isso é verdade no tocante tura dramática, a de um Derek Walcott ou proporcionar de sua cultura, aos turistas
lecer. Aquela entre cross -cultural e intercul- à vontade geral de Rousseau cumo a do jaco- de um Viole Soyinka, por exemplo, na lín- ocidentais, uma imagem acessível, exótica
tural (e transcultural) é útil, mas totalmente binismo ou da classe emancipadora do mar- gua e na cultura do colonizador, ao mesmo e "apresentável?",
teórica: cross indicaria a mistura, a hibridez xismo. Hoje, ao contrário, a democracia está tempo enriquecendo essa língua e essa cul - O teatro parafestival dirige-se a um público
(corno em cross-breeding), enquanto inter ou ligada ao reconhecimento do pluralismo e tura. A encenação se inspira em técnicas do amiúde internacional, às vezes muito enten-
trans assinalariam a passagelTI e a similari- das diferenças.?" O teatro intercultural não jogo teatral da culturade origem, confron- dido. Ele procura adaptar-se às modas e às
dade universal", à maneira de um Grotowski, '"\rI1" ·C>"/~~1~\~ desse debate. Ele não
...... tando-as com práticas mais do expectativas do momento, esforça -se em tor-
UI11 Barba ou um Brook, doravante nem eludir questão de sua colonizador. lld.l ~Ui::t LLLlllH d acessível

A esses três encenadores censurou -se, por -. ragem socioeconôrnica, nem se desinteres- a teatro.e, mais frequentemente, as de compromisso (Festivalização-).
exemplo, a busca abstrata de universais tea - sar de U111a análise política e econômica das criouli zada buscam o recontro, a diferença, a O teatro cosmopolita-, assim chamado em
trais, quaisquer que sejam as culturas; fusti- mutaç ões engendradas pela globalização·. .relaçâo da escritura "ern presença eletodas as . conseqü ência dos trabalhos de Appadurai,
gou-se sua falta de análise política ou histórica línguas do Inundo" (Edouard-Glissant), para de Reinelt" ou de Rebellato, pretende se dife-.
concreta ..Brook teria uma visão essencialista c. Mutações das Experiências Espetaculares melhor lutar contra a rnundialização e st.t.?- renciar do teatro mais globalizado do que
do ser humano, reduzida a um liame e a urna Interculturais uniformizaç ão. Eles designam antes de tudo intercultural...O cosmopolita, com efeito, "se
essência 'perceptível quaisquer que fossem Fica-se hoje em dia impressionado pela grande a língua enriquecida em Ul11 "Todo mundo': distingue da ética que governa a globaliza-
os contextos. Barba procuraria no pré-ex- diversidade do teatro intercultural e dos gêne- por certo caótico e.imprevisível, mas afastado çãO"14. Resta saber no que exatamente!
pressivo características supra-é atépré-cul - ros que lhe sãoaparentados.A denominação do multiculturalismo. (Hibridez·) Essas categorias que dependem pouco ou
turais comuns a todas as formas existentes de "teatro intercultural" é cada vez menos 'b é um teatro que muito do movimento intercultural se entre-
teatral O não usada. O teatro intercultural se rt1c'T1?'\Cn ··' D combina várias linguagens, cortam lista não está
injustificado, I11aS ele se apli ca bem menos dos seguintes, dos quais ele constitui dentro ela 111eSrna peça ou da mesma fechada. Todas se ressentern do impacto
às produções recentes de UD1 Barba, de urna amiúde variações ou especializações: performance. No sentido estrito e político da globalização. O teatro intercultural se
Mnouchkine ou de um Brook. .A teoria per- O teatro multilingue-, em regiões rnul - do termo, o teatrornulticultural não existe, reduziria progressivamente a um "teatro
manece, pOI: certo, majoritariamente ocidental tilíngues como a Catalunha ou Luxemburgo, na medida em que negaria o contato e as globalizado"?
(anglo-americana), mas o Ocidente não possui que se baseiam no bi- ou rnultilinguismo trocas salutares entre culturas diferentes. Do Apostemos que, para se prolongar 'ou
mais o monopólio da reflexão teórica, mesrn o do público para mudar constantemente mesmo modo, Ul11 teatro comunitarista que mesmo para existir, o teatro intercultural
se os países onde se pratica o intercultural nã o de língua, efetuando uma alusão e um pis-: se encerrasse em un1a só cultura, religião ou dever-áreencontrar, ou antes, encontrar, o sen-
tenham as mesmas expectativas que o intercul- car de olho para uma parte dó público. Um comunidade fechada, teria visibilidade ape- tido do humor: não se levar demais a sério,
tural dos anos 1970 no Ocidente, e pratiquem, . humoristaargelino, corno Pellag, passa seus nas interna, apenas para sua comunidade. saber troçar de si mesmo, de seus limites, de
eles próprios, empréstimos à culturae litera- sketches do francês ao árabe ou ao berbere O comrnunity theaire (teatro de proximi- seu futuro e de suas origens, por mais sagra-
tura ocidentais sem temor de serem taxados de conforme as alusões culturais ou as por contraste criado pela comuni- das que elas sejam, e sobretudo lembrar-se
irnperialismo ou sões idiomáticas intraduzíveis. dade- local ou sentido de que não se tratafinalmente senão de arte
Coreia, Japão, notadamente). O teatro "em vo " (em Versão Original- e não por uma comunidade recolhida em teatral.
O teatro intercultural conhece duas ten - expressão da tevê) é com frequência legen- si mesma,
tações: seja a de fornecer urna visão uni- dado, o que permite uma recepção original O teatro das minorias: não é necessária- <http:// ww w.revuedumauss.com.fr/
versal, e até universalista, do ser humano, e adaptada, mas deixa entender o texto mente intercultural. Ele se dirige a mino- med ia/GDI.pdf>.
e de atrair sobre si os raios dos chantres da original, com a possibilidade, sem dúvida rias étnicas ou linguísticas, sem poder nern

172 173
Interpelação Intersubietividade

NOTRS
Cf. Arjun Appadurai, Modernity at Large: Cultural
Dimen sion s of Globali zation, Minneapolis : Univer-
I Interpelação dito pós-dramático- tem muita dificuldade
para responder às instâncias de outrora: sujei-
socioeconômicos e dos meios de controlá-los
pela comunidade.
sity of Minnesota Press, 1996. (Trad. fran.: Aprés le Fr.: inte rpellat ion; Ingl.: in terpe/ la tion; AI.: tos, pessoas, ações, mensagens e imitações se
colonialisme: Les Conséqu ences cultu relles de la glo- In terp e//ati on.
baíi z ation, Pari s: Petite Biblíotheque Payot, 200 5.) ausentaram ou são irreconhecíveis. Em seu NOTAS
É, aliás, ainda dessa forma certos lugar, o espectador empenhar-se em Pour Marx, Paris: Maspero, 1970.
pesquisadores que se prop õem a Por esse terrno, Louis Althusser' remete realizar leituras aleatórias, possíveis, mais ou 2 Marie-José Mondzain, I:Hospitalité, mimeografado,
intercultural hoie ern dia., ~oJ,)UH., Á'''''lV'VV''~'',
.. " ...... P·4·
em sua síntese Theatre and Int erculturalism (Basing -
mecanismo pelo qual a ideologia menos produtivas e coerentes. Desde os anos
stoke: Palgrav e Macmillan , 2010), retoma as m esmas transforma os indivíduos em sujeitos 1990 (desde a queda do Muro de Berlim?),
banalidades sobre as van tagen s e os perigos do int er - obedientes, intimados a pensar e agir de não há mais necessidade de interpelação ou de
cultural (por exemplo, p. 1).
Robert Abirached, Le Thé âtre étranger à notre sociét é,
maneira social e politicamente correta, detenção policial dos transeuntes, mesmo se
Fórum du thé ãtre européen , 2008, Nice, Du Th éãtre, ao menos com respeito à ideologia estiverem disfarçados de manifestantes. Nin-
n . 17, ju n . 20 09 , p. 241. dominante do momento. Essa teorla guém mais se dirige a você na qualidade de
I lnters Ubiet ividade
A. Appadu rai, op. cit ., p. 4 .
correspondia ao momento dramatúrgico sujeito responsável ou diretamente político. Fr.: intersu bje ctivi té; Ingl.: intersubjeetivity;
Ibidem, p. 8. 'TJes cornmunaut és affectives" tradu -
ção fran cesa, p. 37. e político brechtiano dos anos 1950 e 1960 A interpelação se fez mais discreta, mas tam- AI.: lntetsubjektivltõt.
É assim, por exem plo, que, segu nd o Dan Rebell ato, e à renovação da teorização marxista dos bérn mais matreira. l\. política mudou de sen-
Theatre and Globalization, os "pesquisado res em tea - anos 1960. tido, e até de objetos. Ela pretende ser, por 1. EM FILOSOFIA
tro têm tido a tendência a con siderar in st ân -
do int erculturalismo teatral os pontos: ~.(}."',.l.l.l~/.lV, urna "política de afetos";
hi stória convertida l..~.J'J.J.\""a.'Ua. ao teatro
.i. fez o e a política [. . não O ,conceito de é empres-
co optar forrnas (habitualment e) Althusser a propósito B. Brecht e do ence-
revi gorar sua cultura" (p. 3).
mantém sua validade .. ] senão das opera - tado da fenornenologia (Husserl, 1913) e
curso em R. Knowles, op. cito nadar Giorgio Strehler), a noção de inter- ções que reúnem invisivelmente aqueles que da hermenêutica (I-Ieidegger e seu "ser no
Cf. Res tem Barucha, TI1e Politics o/ Cultural Practice: pelação é útil para observar corno, por UIYl queren1 construir sentido'". Esta busca da mundo através da linguagem"). Ele designa
Thin king ihrough 'Ih eatre in an Age o/ Globalization, conjunto de. convenções e ordens (meS1110
Lon don: Athl one, 200 0.
comunidade- perdida (maneira de escapar as relações entre sujeitos: trocas, comunida-
8 R. J<:nowl es, o p. cit., p. 11-12.
implícitas), o espectador- recebe o espetá- talvez ao comunita rismo?) substitui quase -a. des.de modos de ver, sentimentos, mas tam-
Cf.Den nis Ken nedy, 'lhe Spectator and the Spectacle: culo «como se deve': (Em francês, o termo interpelação, ou então esta não tem mais outra bém debatese co~f1itos. Ultrapassando seu
AU;li3ie nces in Mo de rnity a nd Postm ode rnity, Ca rn interpelação tem dupla significação: o de sau- finalidade do que a de atrair os espectado- individualismo, e até seu solipsismo, os indi-
bri qge: Carn br idge Uni ver sity Press.. 2009 . Em par-
dar e deter.) Esse espectador dos anos 197 0 res ern função de uma 'identidade de grupo, víduos prOCUraIl1 compreender-se, interpre-
t,icdliu, o ~~pítulo 6, "Interc ultur alism and the G lo bal
Spe ctator . e 1980 era sensível às contradições sociais de uma comunidade de interesses, e até de tar e construir o mundo em conjunto. Nós
10 Lo e He le n Gi lbert, Tow a rd a de textos, especialmente clássicos. Ele um autoteatro-, no melhor dos casos de uma vivemos em uma cornunidade-, nos situa-
Theater T DR /
'-..-'l\J':>'''·-''.J LULLUCU
assim que as encenacoes renronuzis- comunidade decidida reunir-se corno grupo mos em realidade de ordem
11. 3, Fall
11 Ernesto Lacl au , d es id en tit és, à sem denunciassem os mecanismos de "Sem teatro, o sítio fundador de espaçotemporal quê.forma assim, para nós
edi ção franc esa de Eman cipations (1996), Rev ue du nação social e mental. O que acontece nesse regula ção de afetos partilha emocional todos, o ambiente das existências".
Mauss , p. 8.
começo de um novo mil ênio? e esteticamente divertida coloca os cidadãos A intersubj etividade eleva o face a face
12 Ver, a esse resp eito, o livro de Dennis Kenn ed y, o p.
cit., enl particul ar o capítulo 5, "The Spectato r as a Os sujeitos espectadores estão, por certo, em situação de vizinhança e de agrupamento entre duas pessoas ao nível de um face a face
'Iourist" Ver igua lmente: Crist oph er B. Balrne, Pacific submetidos aos mesmos controles ideológicos político:' (p. 6) original de linguagem: "O sentido é o sem-
Perform ances: Theatricality anelCross-Cultural Encou-
quase policiais, mas os aparelhos id eológicos Assim, o interpelado não pertence blante de outrem e todo recurso à palavra já
nte rs in the South Seas, Basingstoke: Palgrave Macmi l-
lan , 2 0 0 ?- Em particular o cap ítulo 7: "AsYou Always de Estado não são mais tão poderosos, pois sornente à uma ideologia, a um tipo de dis- se coloca no interior do face a face original
Irn agined It: The Pacifi c as Tou rist Spec tacle" eles mesmos estão submetidos a mecanismo curso) mas a uma série de comunidades em da linguagem." O face a face de Lévinas ou a
13 Helen Gilbe rt; Iacqueline Lo, Performance and Cos-
supranacionais, econômicos e financeiros. construção, ou em reconstrução, comuni- oposição de Sartre entre «objeto subjetivo"
mopolitics: Cross-Scultur al Trãnsaciions in Austra la-
sia, Basingstoke: Palgrave Macmillan, N ão se sabe mais muito beITI quenl interpela dades muitas vez es que teriam e «sujeito objetivo" são outros tantos encon-
14 Dan Reb ellato, p. 71. quem com que fins. Como os dis- muita dificuldade a tros intersubjetivos. A intersubjetividade da
de identidades numerosas, esrumadas ~
.. r-... ~ ,..., rot- .... r""' 0 e autoritárias. O instru-
..... língua e a da compreensão devem ser inces-
e parciais, eles hesitam antes de responder às 11lentoconcebido por Althusser reencontrará santelnente construídas, e não somente des-
interpelações, ou, antes, às incitações mercan- sua eficácia se for utilizado no novo contexto construídas, conlü desejaria Derrida.
tis ou publicitárias. Tornou-se difícil, para eles, da globalização· e de tudo aquilo que esta Em linguística,.a intersubjetividade é a do
posicionar-se diante de unl fluxo de solicita- ünplica em terlnos de controle frenético, locutor, o qual se dirige sempre a outra pes-
ções de proveniência diversa. Assinl, o teatro 111aS também de reavaliação dos mecanismos soa, explícita e implicitalnente.

174
175
Intersubjetividade Intervenção

o gosto também é intersubjetivo, o julga- duplamente sua faculdade intersubjetiva, ten- Intertextualidade às influências e às fontes. A intertextualidade
rnento não é nem objetivo nem totalmente tando compreender como os diálogos (ou os concerne aos aportes e às trocas entre enun-
subjetivo: "como se sabe ao menos desde a textos) foram arranjados. Essa faculdade se Fr.: intertextualité; Ingl.: intertextuality; AI.: ciados, de significantes textuais. Ela chega
época de Kant, os juízos estéticos não são manifesta na empatia- por uma personagem tntettextuahtãt. depressa a designar as relações entre os tex-
objetivos, não são, pois, mecanicamente ou uma situação, na identificação- com outra tos literários, entre as referências culturais. Ela
dedutíveis das propriedades materiais das pessoa. Segundo a teoria do "agir comunica- É a ideia de que não se compreende um texto, se estende igualmente às mídias (interrnidia-
obras; mas não são, no entanto, subjetivos, cional" de Habermas, nossos gostos, nossas escrito ou oral, senão através dos outros, que lidade-), às artes (interartístico-), às culturas
isto é, deixados à livre escolha do indivíduo. percepções, nossas dissensões podem travar ele está na junção de todos os outros. O inter- (intercultural-). Essas novas "inter-relações"
O gosto é intersubjetivo, dito de outro modo, debate; os pontos de vista subjetivos podem texto, diz Barthes, é "a de não têm unidades aos
presta-se ao debate argumentado que pode ser censurados, e até discutidos, argumenta- viver fora do texto infinito - quer esse texto discursos, aos ideologen1as segundo a teoria
terminar no consenso'". dos e substituídos nas diferentes comunidades seja Proust, ou o jornal diário, ou a telatelevi- de Bakhtin e Iameson-, porém fornecem um
A intersubjetividade aos indiví- subjetividade das peSSDas siva: o livro faz sentido, o sentido faz a vida". para pensar melhor suas evoluções.
duos comunicar, partilhar conceitos e valores, pode ser, por assim dizer, demonstrada por Convém estabelecer a diferença entre inter- No teatro, todo elemento utilizado em
constituir uma comunidade ou urna identi- um discurso argumentativo e pela referência textualidade- e o estudo das fon tes ou das cena é tornado em inumeráveis relações
dade cultural, compreendermais ou menos as uma comunidade interpretativa ou cultural. influências de urn texto. A intertextualidade intertextuais, interculturais ou interme-
mesrnas conotações na obra percebida. Em compensação, segundo Derrida, a obra concerne a todas as relações que o leitor pode diais. Assim, a intertextualidade universali-
literária ou o texto filosófico não podem ser estabelecer entre os textos, ao mesmo tempo zou -se, com o risco de perder seu rigor e sua
senão desconstruidos, assim C01110 os sujeitos cronológica e diacronicamente. Não se com- \..L.l~""~~'-'.l.U., se esses termos possuem ainda
V'-'.l

2. NüTEATRO nas múltiplas identidades, os quais podem ser preende nenhum texto-a-não-ser que se leve um sentido em um Inundo globalizado e
igualmente o ser. Esses sujeitos desconstruídos em conta sua relação com todos os outros interconectado. Asformas pós-modernas-
Tudo, no teatro, é questão de de são então considerados em sua relatividade textos, e ele não poderia ser inteiramente ori- e pós-dramáticas- não existem senão nesse
troca, de diálogo (verbal ou .n âc ), de relação e suas diferenças, e não em sua faculdade de ginal ou completo ou independente das leitu- embaralhamento de textos, de estilos e de
com outrem: entre os atores, entre as persona- encontrar um terreno de entendimento por ras do locutor, do autor ou do receptor práticas artísticas (hibridez-).
gens, entre os elementos da cena, entre a cena um acordo intersubj etivo. ou espectador-). Nunca se pode estar seguro
e a sala, e finalmente entre os espectadores. No teatro ü;tercultural", a intersubjetivi- de retraçar sua origem (Derrida). Outros ele- NOTR5
1 Le Plaisir du tex te, Pari s: Seuil, 1973, p. 59 .
O o encenador, os atores e os intérpre- dade torna possível o diálogo entre o eu e o mentos artísticos ou sociais estar, eles 2 Cf. La Poétique de Dostoievski, Paris: Seuil, 1970 .
tes, todos se esforçam em responder as ques- outro: o conhecimento de si e a compreensão também, textualizados c) portanto, presos em 3 Cf. Recherches po ur une semanalyse, Paris: Seuil, 1969.
tões (não formuladas) de sua época. Eles estão do outro, o próximo e o longínquo. Não se uma rede intertextual de alusões, de reelabo- (Trad. bras.: Introdução à Semanálise. São Paulo: Pers-
em diálogo com qualquer outro, no interior trata de ver outra cultura como alguma coisa pectiva,
rações, de reescrituras, A intertextualidade
4 Cf. Fredric Iameson, The Political Unconscious, Lon-
da esfera pública de que fala Habermas, essa somente diferente de mim, mas de perceber estuda a maneirapela quall~n1 texto é. adap- don: M ethuen , 1981.
"intersubjetividade quebrada' que deve ser sem tamb ém o que me aproxima dela. tado, citado, parodiado, pastichado e imitado
cessar "remendada" pelo cornunicacio- A noção de intersubjetividade, ainda mal (no sentido clássico de umareescritura). Ela
'na!" de sujeitos em diálogo ou em conflito. Isso, ."explor ada paraasanálisesdo teatro, consti- é particularmente útil para uma literatura,
entretanto, vale sobretudo para o teatro "dra- tui uma indispensável primeira avaliação do .Ll...l'.-' ~4\'-.l" L.' U" que se nutre de
rnático', baseado na~roca. Esse de teatro é fen ômeno e da maneira pela qual os espec- todos os textos para se constituir, em que o Intervenção
tal que os espectadores partilham certo número tadores fazem circular a palavra entre a obra texto é uma pluralidade irredutível de sen-
de convenções e realçam as mesmas conotações e eles, entre a obra exterior e a intimidade- tidos (Barthes) que tende ~s.capar a toda Fr.: intervention; Ingi.: intervention; AI.: Intervention.
na obrarecebida em comum, O pós-dram áti- do indivíduo. autor-idade, a do autor dramático, do dra-
co-, ao contrário, abandona a id éia de sujeitos maturgo ou do encenador. O teatro de intervenção já possui uma longa
em conflito, e mesmo ern diálogo, de sujeitos de intertextualidade, criada por história. Ele tem seguimento no dos
NOTRS
Edmund Husserl [19J-3], Idées direcirices pour une phé-
A
que seriam ainda capazes de se ent ender. Mikhail Bakhtin-, sob o nome de dialogismo, anos 1920 e conhece uma renovação nos anos
noménologie, Paris: Gallimard, 1950, p. 9 4.
e popularizada por Julia Kristeva', apareceu 1960 Ele tem por missão intervir, à margem
1
Na dinâmica dos diálogoscada um deve, 2 Ernmanuel L évinas, Totalité et infini: Essay SUl' Texté- •

eln todo caso, por seu turno, colocar-se nos anos 1960 (na Europa Ocidental) para do teatro oficial, nos públicos: ruas,
riorité, La Haye:Martinus Nijhoff, 1968, p. 181.
3 Tzvetan Todorov, La Peur des barbares, Paris: Robert
na perspectiva do outro, utilizar a lingua-
Laffont, 20<?~, p. 67..-,68. se distinguir da de intersubjetividade-, jul- fábricas ocupadas, centros comerciais, todos
geln como moeda de troca e instrumento de gada por demais psicológica, ligã:aa'às'trü= . 'lugares cujo público não tem em geral acesso
Habermas [1981], Th éoriede Tagir communi-
comunicação. O espectador- deve manifestar Paris: Fayard, 1987. cas emocionais, às alusões, reais ou supostas, ao teatro institucionaL

176 177
Intimidade Intimidade

Desde os anos 2000 desenvolve-se outro D. Har tmann; L E1nke; Nitzche (Hrsg.), Interven - mais com um cuidado de exatidão e de exaus- não um portador de personagem, de rosto,
tionen, München: Fink , 2012, p. ]27-
tipo de intervenção corno teatro, que é denomi- tividade, mas com a faculdade de observar, uma máscara revestida durante o tempo da
3 Segundo o encenador Emílio GarciaWehbi, citado
nado amiúde "teatro de intervenção urbana' por K. R õttger, op. cit., p. 136. isolar e transformar em palavras as peque- representação. A. presença fílmica do corpo
ou "intervenção artística no espaço urbano">. nas coisas da vida e, finalmente, criar uma do ator de cinema na tela-causará-outro tipo
Essa nova forma tenta se distinguir do antigo epopeia dos humanos. Este pôr à distância de sentimento, ligado à pulsação escópica,
teatro de intervenção ou do teatro de rua. Suas da intimidade se explica provavelmente pela induzirá a um voyeurismo mais possante do
metas e seus efeitos são diferentes. A inter- em a urna psicologia do eu
que o do teatro, ainda que seja apenas por
venção tem lugar em grande escala em uma autêntico e da intersubjetividade-. que não existe o perigo de ser tocado "real-
Na performançe ou na autoperformance,
cidade, um bairro, um centro comercial, nos mente" pelo ator do, filme e, portanto, de
o performer é frequentemente levado a falar
espaços neutralizados, esses não lugares de entrar em uma relação de intimidade indu-
de si mesmo, rejeitando a máscara da repre-
que fala Marc Augé, esses lugares tocados pelo zida como no teatro e na arte perforrnática.
sentação teatral para a "apresentação do eu
comércio internacional e globalização-. o teatrointimista dos anos 1920, notadamente na vida cotidiana'". Esta vontade de autenti- É razão qual teatro ou o
Encontramos esse tipo de intervenção global o de Heriri-René Lenormand ou de Jean -Ia- cidade- da performance exige uma relação teatro de participação- alcançam hoje tanto
em numerosos países, especialmente na Ale- cques Bernard,-voltado para a vida interior - de intimidade com o espectador, mesmo sucesso, pois eles exigem a faculdade de acei-
manha e na América Latina: no Brasil" tor- das personagens, desapareceu sob sua forma quando ele não está preparado para tais con- tar' se não a de partilhar" certa intimidade
nou-se uma experiência muito popular com psicológica, sua busca dos subentendidos e do fidências sobre a vida pessoal. Nesta rela- emocional, em vez de se contentar, "corno
o Teatro da 'Vertigem de Antônio Araujo em subtexto do diálogo. Mas a questão da inti - ção, o espectador deve ao menos darprova outrora', com a identificação consciente ou
São Paulo (usr) ou com o grupo de André midade no teatro sobrevive e vem à tona sob de compreensão para com o outro. inconsciente COIn personagem lá \""J.J..I.VC:t.l.A.V

Carreira da Universidade do Estado de Santa formas e denominações diversas: -Ih e entrar assim em uma relação de par- em uma cena: Em um mundo em que os
Catarina (Udes c) em Florianópolis. Na Argen- A dramaturgia do intimo continua a ins- ticipação emocional positiva em face do "espectadores" desejam imergir, a intirni-
tina, a intervenção é com frequência "um pro- crever-se, por contraste como teatro p olítico, performer. Enfim, ele deve admitir que esta _ dade dos "atores-perforrners" invade a vida
jeto global contra a globalízação">. .intimidade oferecida pelo outro não lhe per~ . pessoal do espectador, a menos quesejam
como urna escritura centrada nas preocu -
Srtuado no cruzamento da performance, maneceestranha e que ela lhe revela lados os espectadores que invadam a intimidade
pações do indivíduo ou do de
das artes da instalação, do ativismo, ocultos de sua própria A pre- do ator transforrnado em terapeuta malgré
Tarnour [Clausura do An10r], de Pascal Rarn-
dOln~etingpolítico, essa nova intervenção é sença física "direta" do perforrner induz a iui, a despeito dele mesmo.
bert) ou nos tormentos da doença m en ta l
ao mesmo tempo política e artística. Todas um sentimento de intimidade no especta-
(4 .48. Psychosis, de Sarah Kane) ou qu alqu er
dor, se este aceitar a proximidade emocional. NOTRS
as posturas são encaráveis, conforme os outro distúrbio da relação com o outro. Essa A identificação se faz, entretanto, somente Estudado por Jean ,Pierre Sarrazac em 'TI1iâtres inti-
casos, mas observa-se certa contenção na escritura do eu se exprime muitas vezes em COIn a personagem, com aquilo que se ima- mes: Essai (ArÍes: Act es Sud, ou em Th éãtre
rr.."Y'''''''''''' ,,",, r,....r.. de conclusões não há
111
wn um num gina de suas emoções, ela se realiza através moi, théâtre du 1995).
nenhum ponto de vista exterior dominante, autobiográfico. Ela não se limita mais , corno 2 Para retomar o título do livro de Erv in Goffman ,
do ator que simula a personageln e não do TI1e Presenta tion of Self in Everyday Lije, Ne w York:
sugerindo solu ções, e mesmo propondo no Teatro do Intimo fundado outrora (19(>7) perfornier que se dá por urna pessoa real e Doubl eday Anchor Boo ks, 19 59 .
urna an áli se e uma ação ulterior. Em lug ar por August Strindberg, no "Teatro Ín tim o',
disso, os transeuntes-espectadores assistem considerado como o lugar de encontro entre
a ações urbanas espetaculares, não ligadas a o eu do autor e o mundo', Ela interroga, antes ,
um texto, uma fábula, a personagens, como o eu tenso a ponto de ron1per-se entre a von -
no tradicional flash mob-. Trata-se antes de tade de tudo revelar e as deformações inevi -
apree n der a cidade na sua realidade global táveis da escritura (autoficção-).
e globalizada, sugerindo suas contradições, "As epopéias do íntimo": esta bela fórmula
luas s-empre de maneira quase imperceptível, do autor Roland Fichet, que PhilippeMín-
quase implícita e subversiva: nenhuma inter- yana retoma com frequência, bem o
de tipo militar, policial oucirúrgico. desarranjo na representação do íntimo hoje
em dia. Com efeito, muitos autores, de Fichet
NOTRS a Minyana, de Noêlle Renaude a Patrick Ker -
Le Th éàire d'i nterventio n depuis 1968, Lausanne: LÂge
d'Hornrne, 1983. rnann, descrevem a alma humana, como se
Kati Stadt aIs Bühne: urbane Interven- descrevia um campo de batalha no século
tionen die Raum-Zeit der Globalisierung, em XIX, com a mesma minúcia e distância: não

178 179
K
L

dos atos,
reproduz as didascálias,
os intertítuios que ajudam a
melhor
Liminaridade Live Rrt

um aspecto decorativo e plástico à interven- "As práticas pelas quais a sociedade tradi- mais completamente ele próprio sem ser performance art'i, é dificilmente traduzível,
ção dire tamente textual. cional se mantinha e se reproduzia eram ainda outra pessoa. ao menos em francês. Às vezes, é vertido
De ve-se então falar de legenda quando caracterizadas por um 'entre dois' ou UU1 O espectador- deve entrar no universo erroneamente por espetáculo vivo-o Ele
a en cenação inscreve partes do texto origi- entre dois estados liminares (ou: limiares), imaginário, depois sair dele. Ele realiza um é amiúde empregado no sentido de '
nal ou dublado, repetindo-os oralmente ou do latim limen, palavra que é raiz de limiar'" frequente ir e vir entre os dois. Ele hesita performance art ("a performance") se bem
«saltando-os" com Em Par rou - Assim, por exemplo, transe é un1 estado em permanecer fora da representação ou, ao que pareça ter sido criado justamente
Noélle Renaude, dirigido por Frédé- liminar, entre consciência inconsciência ou contrário, absorver-se nela. A r\D1~1"íV1"1"""'"\1 .. r D
para '-"' . .
' 1.1111"'1'-111

ric Maragnani, o texto proj etado não o é por entre a vida cotidiana e a vida dos deuses" joga com sua hesitação em intervir se o per-
motivos Iinguísticos, filas corno di spositivo (p. 110). Fala -se tamb ém de ritos de passa- fonner lhe parece correr UIn perigo, ou estar
irônico, COlno urna piscadela para a textua- gen1 da adolescência à vida adulta.
o live art não é um gênero novo, ele aco-
a ponto de ferir -se. Ele está desestabilizado,
lhe, ao contrário, práticas conhecidas, mas
lidade e a artificialidade da viagem de carro Todas as sociedades conhecem ritos de não está nern no real, nem na ficção; esse
excluídas pelo teatro literário ou visual. Urna
no palco. pass agem, por exemplo entre grupos muito estado de inc erteza, esse ser em suspens ão,
lista não exaustiva dessas práticas incluiria:
diferentes, ou então, para facilitar a passa- esse estado de limiar é liminar. Ao fim do
• A arte perform ática, tal qual inventada nos
gem de uma fase à outra. Distinguem-se espetáculo, o espectador reencontra a rea -
anos 1960, nos museus e nos locais alter-
3. INTERMIDIALIDAD Etl três fases nesse processo: preliminar, limi- lidade exterior, mas conserva por um ins -
nativos não teatrais.
E NIU D A N ÇA D E P ER CE P ÇÃO nar' pós-liminar, que correspondem a: 1. tante alguns traços, algumas impress ões do
da sociedade (separação de Uln
\ .. D1r'\"l1·/'lr'r'lA (estado
.0('1".. <:\ 1" ,,,\ ,-" I r. Esse esr>ecraClor • A arte corporal (body o perfonner
se a ponto de de uni Estado 'é~ l~C1rl I
n'1 n ''JI foi, objeto utiliza próprio corpo para D'l.r Y'\ D .~, D 1"
ocasião divertida de jogar com o texto fase intermediária, um tempo de suspensao como, segundo Turner, no ritual e no teatro. eias reais, a fim de testar seus limites e os
original, de adi cionar U1l1 nível de sentido, às . entre dois rnun dos; 3. Reintegração em uma nossos (Stellarc, Orlan, Franko 13, G óme -
z-Pefia),
vezes inclusive de reencontrar a língua origi- nova realidade. O antropólogo Victor Turner NOTRS

nal quando a peça foi traduzidada língua do (1982) retomou o esquen1a de Van Gennep2. Apud Sim on Sheph erd; Mick Wallis, Drarna/Theatre/ .. As art esplásticas (Visual Arts), as instala-
Perform ance , London/New York: Rou tled ge, 20°4,
públicopara outros idiomas, o qu e confere Seu social drama: comporta as rnesmas três p. n o. ções-, o teatro visual (Laurie Anderson).
aos espectadores leitores um controJ e a mais fases: ruptura de normas sociais ; fase liminar Cf Victo r Turner, From Rit ual to Theatre: lhe Human • ~4 dança, o , "Physical Theatre" (Teatro do
sobre aten cen a ção. Ao modificá-Ia, ao variar ou cri se no cu rso da qual a ruptura tende a Seriou sness ofPia)', New York: PA I, 19 8 2 . Gesto), o mimo segundo Decroux,
3 Kcn neth Pic kering, Liminality, K ey Conc ept s in
a pe rcepção, ao passar de U111a m ídia a outra, se ampliar, ação de retificação seguida de D ram a and Performance, Basingstoke: PaIgrave ~ Ar te autobiográfica-o
a legenda se presta a uma reflexão em ação reintegração do grupo social perturbado ou Macmi llan, 2010 , p. 235. + O site-specific perfor.mance.
sobre a intermidialidade, ela torna a dar ao reconhecimento social ainda legitimação
.. o ativismo- teatralizado,
UITla dimensão literária exces - de inevitável
ou o atuacionismo
sos miseen scêne, ela ajuda o a
nense .
tornar consciência de todas as faculdades de
atenção e de percepção de que dispõe, sem 2. A P LI CAÇA o AO T EATRO I Live Rrt * Live art: um termo geral, guarda-chuva e,
mai s do que isso, um "para-raios "
que esteja seInpre consciente delas . I
A estrutura narrativa de numerosas peças I Essetermo inglês utilizado na Grã-
NOTRS
encontra essa Iiminaridade em três fases: ~ Bretanha desde o início dos anos 1980, Cf. Paul Allain , [en I Iarvie, The Routiedge Com pu -
situa ção bloqueada, ruptura, reintegração. e mais recentemente nos Estados nion to Theatr e an d Performance, Lond o n: Rout-
ledge, 2 0 0 6 .
O ator: situa-se no limiar, entre o privado Unidos (onde se fala de preferência a
2 Cf Rob ert Ayers ; D avid Butler, Live A rt. Sunder-
Lirnlnartdade e o público'. En1 Barba, o "corpo decidido" é land: AN, 1991.
o corpo do ator no momento exato antes de
limino/ité; lnq l.: Ai.: 1- 1 / / 11 1 ,,~"''',\.'". começar atuar. Merleau- Ponty; "a
entre minha e meu corpo são,
1. o M ECANI SMO DA LIM IN A RI DA D E no movimento das coisas, mágicas': (Phéno-
ménologie de la p erception) .
A noção de liminaridade (sole ira, limiar) Na tradição do teatro psicológico, o ator
está ligada à de ri to de passagenl, definida passa por uma sequência de decisões. Há
pelo antropólogo Van Gennep em 1909. uma liminaridade do ator, pois ele não é

181.1
185
M
não diz outra coisa ao procurar com seus ato-
Ma
res e seu s colaboradores o intervalo, a pas-
Termo japonês proveniente do ideograma sarela, a regulagem, o liame entre espaço e
chinês que representa um sol entre duas tempo, Ele tamb ém pode muito bem refe -
portas. O Ma é o espaço-tempo entre rir-se à noção de cronotopo, teorizada po r
duas pessoas, duas coisas ou dois eventos Bakhtin.Mas mais ainda que o cronotooo o
espaciais ou temporais. No pensamento Ma é concebido por intuição, e não por J.ul~1a
japonês, o espaço e o tempo não reflexão consciente e mensurável.
estão nitidamente separados, eles são O .1VIa é para a criação contemporânea
interdependentes: não se pode perceber o o espaço intermediário, isso que Derrida
espaço sem levar em conta o escoamento chama, em outro contexto, de espaçamen-
do tempo e, inversamente, o tempo não to-, a remessa para mais tarde
existe senão em relação com um movimento ou mais longe do sentid o esperado.
no espaço. O Ma é também uma categoria Artistas visuais corno Robert Wilson e
da experiência, da tomada de consciência, . Robert Lepage ou coreógrafos corno [iri
uma maneira global e intuitiva de perceber a Kylian são sensíveis ao Ma como base do
qualidade do espaço entre os indivíduos. movimento e da imobilidade, como liame
íntimo do espaço e do tempo, como o caso
Esta noção é amiúde empregada pelos ence - deste últim o, em Kaguyahime, na composi-
nadores contempor âneos (Barba, Bogart, ção musical de Maki Ishii (1936-2003 ).
Wilson) para fazer os atores compreende-
rem e, por extensão, os espectadores-, que
lhes conv émestar atentos ao fato de que
posições são "reversíveis" no espaço-tempo. Magia (Nova)
"Achar seu Ma", diz o mestre de dança Butô
a seu discípulo, sugerindo -lhe procurar a Fr.: mogie (nouvel!e) ; Ingl.: mogic; AI.: Zauberkunst.
maneira justa de se mover no espaço segundo
o ritmo apropriado (Barba; Savarese; A Arte A arte da prestidigitação ou da magia tem
Secreta do Ator, p.18). O encenador ocidental uma longa tradição que nada deve ao
Mainstream Materialidade

do teatro que
no corpo dos atores,
onde a representacao f
o que
do
188
Materialidade Mediação

Mas isso está literários porque esses textos não são sim- que uma sob a forma de uma
píesmenre culturais em virtude da referên- preparação, de uma introdução, de uma
cia ao mundo para além deles mesmos; eles racrntacao, parece Esteja
culturais em virtude dos valores sociais ou não consciente disso, o .,.-f'':lrinl''.
I"\<"'."\r•

dos contextos mesmos absorveram sempre se beneficiou de mediações no


seu encontro com as obras.

1.

tt 1t:~:)IULIU[J; AI.. VenTIIfl~/unQ.

Entre o grande público a obra de arte há


às vezestal abismo tal incompreensão

190 191
Mediação Midialidade e Intermidialidade

ou prática, estão quase sempre entregues a primordial que não exige, necessariamente, o mediador conhece aqui seus limites: ao risco de feri-los pela falta de experiência.
si próprios, uma vez que nem a instituição urn conhecimento universitário de métodos: na maior parte do tempo, ele persiste em Nos dois casos, a mediação tem muita difi-
clássica, nem a família (clássica) lhes prestam o mediador indica simplesmente o que cada "proteger" seu aluno, ajuda-o a ignorar a culdade em gerir .as obras contemporâneas
mão forte. Corno se cada um devesse se tor- abordagem metodológica permite entrever; transgressão·, a provocação, o excesso· e a e problemáticas. O que, no fundo, nada tem
nar seu próprio mediador em um self-service, ele dá um exemplo, habitua o noviço a pro- violência que a obra veicula, ele se recusa a de espantoso.
iun fast-food cada vez mais e cada por simples à obra; ele lhe acomnanna-Io nos dolorosos processos de
menos nutritivo. Os animadores, cha- que é de direito esperar de tal ou desvelamento que esta estética Gaudibert. Action cu/ture//e:
mados às vezes de [acilitadores, se limitam a tipo de análise - explicação semiológica dos lhe oferece. Mas ganharia o espectador tal /ntégrotion et/ ou subversio . Paris:
balizar o terreno, a dar acesso às novas tecno - signos? Relação da obra com a sociedade? proteção? Casterman, 19 77.
logias voltadas para uma autoaprendizagem. Impacto físico sobre o observador? Aflora-
Serge Saada. f t si on part aqeait /0
Na falta de lugares e de momentos neces- mento de seu próprio inconsciente?
cu/ture? f ssoi sur la mediotior. cu/ture/le
sários p ara iniciar esse trabalho de fundo de Resistências inconscientes: são in eontcsta- 2 . A ESTREITA VIA DA lVIED I AÇÃ O
et /e potentiel du spectateur. Toul ou se:
todo instante, convém repensar os objetivos velmente as mais difíceis de superar ou, para
Éd it io ns de l'Attribu t, 2011.
e as prioridades da animação cultural. Se nos ser exato, de aceitar por si mesmo, na posição Hoj e em dia, o mediador caminha especial-
limitarmos à sensibilização C0111 respeito à inconfortável do observador sacudido por mente pelas obras experimentais contem-
NOTAS
arte contemporânea da cena, não para pra- assuntos provocantes, por ternas tabus, por porâneas numa via estreita. Diante da obra No sentido da atividade crítica como mostra Michel
ticá-la de imediato, mas para introduzir à humanas que geram nele angustia
0.LI.'U,C,I.\,_V\'_V clássica, ele concebia claramente sua tarefa Vaiss, em d'un critique
de
descoberta, proveito as ou eo a sua como ajuda ao para tomar
2 Christian KUby,Le~) Resistances
resistências dos às situação consciente e inconsciente. consciência de suas diferentes alienações, Bruxelles:
rimentais, Elas são de várias ordens: I--Iá selnpre um momento em que o indivíduo fornecendo -lhe os instrumentos necessá-
Resistências culturais: o espectador está deve assumir suas próprias responsabilida- rios à sua emancipação, facilitando sua
desorientado não tanto pelas obras provenien- des e em que ele não pode mais refugiar-se recepção do espetáculo. Este auxílio dege-
tes derradiçôes que lhe são estranhas; mas em uma explicação exterior, em uma moral nerava depressa em urna maneira um pouco
pelas Iormas e pelos tipos de performances tradicional e eIll urna pedagogia. paternalista de ministrar a lição aos alunos Midlalldadee
desconhecidas. É preciso que ele aceite inse- O acompanhamento' do mediador revela- para nivel á-los. No confronto com a obra lnterrnldlalldade
rir-se ~[lJ. um contexto no qual é intimado a -se delicado, pois a resistência do espectador de vanguarda, não é tão fácil explicar corno
realizar anovaexperiênciavsem nenhuma exposto é tanto física (e, portanto, agressiva) °
ler as obras: mediador se encontra quase Fr.: medialité et intetm éaiatité; Ingl..tnediaíity and
referência cultural. então quanto inconsciente portanto, dolorosa). na mesma situação que seu aluno. A isso se inrermedio/ity; AI.: Medialitéitund /nterrnedio/itéit.
os pressupostos
.......A ..........., • conl.-
... ;.., ....... O hesita sempre um pouco em +,..'1'l .... CrT't·,oC'c'''lr'' o excesso e a violên-

parando-os com del e fazê -lo cia de muitos constituem parte A midialidade se interessa pelos sistemas
o espetáculo com seu corpo seu
aceitar essas formas desconhecidas, descre- de sua e que não haveria quase sentido dos diferentes tipos de mídias, sem
inconsciente. E, no entanto, C01110 observa
vê-las tecnicam ente e, portan to, dessacrali- Christian Ruby, "de cada obra, o espectador, atenuá-los seJTI fazê -los perder toda a vitali- entrar nos detalhes técnicos de seu
zar a obra, aproximando-a de uma fabricação se ele é acolhedor, recebe no fim de contas a dade. Se ele tentasse, não obstante, arranjar funcionamento, mas refletindo-os em sua
"doméstica" Ela ensina o espectador a fazer a . proposição de uma regra para o seu corpo, as coisas, por rnedo de deixar o espectador constituição, em suas possibilidades e ern
diferença entre juízo afetivo e juí zo de valor. sua sensibilidade ... de leitor, de ouvinte etc. entregue a esta viol ência gratuita e obrigado sua evolução. Quais são os instrumentos e
Resistências metodológicas: di ante d e U111 No ápice, por conseguinte, este espectador a fazer intervir seu inconsciente, de baixar a os cornponentes da rnidialidade?
espetáculo cultural e artisticamente dife- se encontra então incluído em uma sucessão guarda de suas defe sas, o mediador privaria
rente, o espectador arrisca-se a não se atrever de lancesern que ele põe a si próprio em jogo seu aluno do tratamento de choque da obra 1. M:F.DnrM E MÍDIA
a efetuar o esforço de adaptação. Provável- teatral'", Deveria o mediador fazer o de e, no mesmo lance, de sua experiência esté-
mente, com efeito, não há ferra-- acompanhar seu tica catártica. Uma que tende por certo a desa-
menta de seu conhecimento nem Sem ir esse extremo, o mediador está em A torna-se assim uma arma de parecer, esvxernédíum, meio, média, mídia,
mesmo dos especialistas) para substituir essa condições de preparar o terreno da autoa- duplo corte: ou bem ela degenera ernpeda- revela -se esclarecedora:
obra pioneira no sistema das expe ctativas e nálise do espectador, ele o ajuda a aceitar e gogismo, a escola tornando-se o túmulo da O m édium é um conjunto de técnicas
de esboçar uma descrição dela, seguida de a referenciar esses momentos, sem negá -los, obra de arte pouco apresentável e incorreta; artísticas ou de materiais próprios a uma
uma análise ede uma interpretação. A ten- sem recalcá-los. Mas seu papel é este? ou então ela perde o seu papel protetor, arte, um meio de expressão. É ao mesmo
tativa de diversos métodos é uma mediação expõe seus aprendizes a todos os perigos, tempo o domínio e a técnica típicos de uma

192 193
Midialidade e Intermidialidade Midialidade e Intermidialidade

arte. Assim, fala -se de médium da pintura. que invadem pouco a pouco nossas capitais. sobretudo, mídias audiovisuais ou até mass realidades. Assim, a intermidialidade torna-
O "médium" teatral (expressão pouco usada, Essa mídia é, ela própria, composta de diver- media ou "novas mídias" (que entremen- -se um processo de transformação de pensa-
é verdade) seria a maneira de utilizar a cena, sas mídias em número e natureza variáveis. tes não são mais tão Esta é a razão mentos e de processos em que alguma coisa
o ator e, eventualmente, o texto dramático. Cumpre, pois, estudá-la como uma confi- pela qual o espectador sente às vezes ainda de diferente e formada por meio da perfor-
A média, a mídia, por contraste, é um guração móvel de mídias em suas diferentes como uma invasão a presença das mídias e mance " !
sistema de cornunicação e de transmissão manifestações históricas. A dificuldade éa da tecnologia no palco. ~A pertença do tea - Esse processo de transformação não é
de informações. Esta oposição mostra por de distinguir bem as mídias dos sistemas de tro ao nosso mundo atual e às mídias, obri- outro senão a perfonnatividade, esta fusão
cotejo a diferença que o inglês faz entre signos, dos materiais e dos gêneros. ga -o, queiramos ou não, a levar em conta o de materiais ou esta assernblagem- dinâmica
semiotic media (o médium, o meio, por exem - Os sistemas de signos se definem pela domínio das rnídias sobre o Inundo. Se o de materiais justapostos. Nos dois casos, tra -
plo a linguagem, som, a imagem) e trans- natureza de seus significantes: espaço, som, teatro existir para além de sua situa- ta-se de fato de mise en scêne de elementos
missive media; a m édia, a mídia, que serve materiais diversos; esses significantes já estão ção momentânea e de sua suposta imedia- do espetáculo.
para transmitir ill cnsagen s (a mídia, por formatados; associamos-lhes significados tidade, ele deve situar-se no jogo interativo
exemplo a televisão, o rádio, a internet). possíveis. das mídias. b. Adaptação e Mudança de Médium
VUl médium pode evoluir e mudar de Os materiais pertencem todas as ordens Seria distinguir a interrnidiali-
suporte, permanecendo um médium.Kssui», do sensível: visual, auditivo, olfativo, cines- 3. A INTERMIDIALIDADE dade da adaptação de ·llln a mídia (ou de
o médium cinematográfico "durante muito tésico, tátil etc. umgênero) a outra, a Medienwechsel como
a. LTma Nova Teoria?
tempo foi o filme: hoje ele é mais abstrato, Os gêneros se definem como conjuntos de dizem os alem ães (mudança ou troca de
Com risco de ser e I J1t~( H 1:--1.',- J.'J.'~""'J'''''''J.JJ.J' não de uma midia-
con1 o desenvolvimento e rápida neaernoma convenções mais ou menos estáveis segundo
da filmagemdigital'". as épocas: convenções literárias, mas tam- tico, fala -se de intermidialidade, corno se, lidade por outra, mas a passagem, isto e, a
bem teatrais, plásticas, musicais etc. Falar- por definição, a mídia já não fosse algo adaptação de uma obra de uma mídia numa
-se-á, por exemplo, do gênero Western ou conectado e conectar. l\. interrnidialidade outra de um livro em UIn filme, ou de uma
2. AS MÍDIAS
do gênero da comédia musical. estuda as trocas entre mídias, na his - pe\--:a teatral em u ma peça radiofônica, por
a. Definição Geral de Midias tória cultural e artística, seja no interior de
Por oposição a essas três categorias, a exemplo,
Com Frédéric Barbier e Catherine Lavenir, mídia se define CeTI10 um conjunto de res - urna obra. Assim, por exemplo, levantar-se-á
define-se corno mídia: "Todo sistema de técnicas, de virtualidades, não como a influência da montagem cinematográfica c. "Remidiaçào- " ou Remidia?
comunicação que permite a urna sociedade um corpo de regras a seguir.
sobre escritura dramática ou romanesca Não se poderia estabelecer uma teoria geral
preencher tudo ou uma parte das três fun - Não se poderia definir o teatro ou os espe- nos anos 1920 ou 1930; ou, mais concreta- das m ídias, em particular de suas trocas. Em
ções essenciais da conservação, da comunica- táculos pela presença obrigatória de certos mente, analisando UlTI momento de mimo, compensação, é possível desenvolver estu-
ção à distância de Inensagens e de saberes, e sistemas de signos, de materiais de verificar-se-á se gestuaJidade empresta a dos caso ern que observaria a passa-
da reatualização das práticas culturais e pol í- ros. j\ mídia teatral nada tem de específica. outras artes corno a pintura, o cinema, para gen1 de uma m ídia a outra, sua retomada
ticas." O teatro e a maioria dos espetáculos Constata-se no máximo que cada época figurar o movimento. e transformação. Iay e Grusin propuseram
respondem a esses três critérios: a escritura parece focalizar-se nurna maneira especí- 1'1"0 sentido estrito, a interrnidialidade é uma teoria da rernidiaçâo indo a ponto de
dramática conservar por e fica entrever seu obj eto: representação que as mídias. Na não é definir toda mídia já como uma remidiação,
transmitir n1ensagens; a encenação concen- em face do texto nos anos 1950 e 1960, na sempre fácil fazer a distinção entre rnídias, uma reelaboração de uma mídia a partir das
tra e conserva por um. certo tempo as esco - França; pesquisa da especificidade do teatro, gêneros e materiais, ou sistemas de signos. precedentes, um pouco COITlü se lê UHl texto
lhas e as relações entre os sistemas: quando do signo teatral e da teatralidade, nos anos Uma teoria da adaptação tentou em vão intertextualrnente, corno reescritura de tex-
reprisada ou recriada por uma outra 1960 e 1970; encenação C01I10 sistema estru- todas trocas e imagi- tos precedentes: "Um rnédium e aquilo que
ela reatualiza as práticas culturais e políticas, tural ou semiológico nos anos 1980; perfor- náveis, ela se choca com as mesmas impreci- remidia. É aquilo que apropria as técnicas,
adaptando-as a um contexto e a um público__ mance e perforrnatividade nos anos 1990 e sões metodológicas. A definição muito ampla as formas e a significação social de outras
novos. 2000. da intennidialidade por Chapple e Katten- mídias; e aquilo que tenta rivalizar com elas
belt tem.entretanto, o mérito de esboçar este ou remoldá -las em nome do real."
b. Mídia, Sistema de Signos, c. Mldias Audiovisuais, espaço intermediário em que se trocam os
Material, Gênero Mass-Midia, Novas Midias pensamentos e os processos: "Afrrtermidiali- d. Questôes de Análise
Pode-se, pois, ver o teatro como uma mídia, Tem -se sempre UH1 pouco de dificuldade em dade é um espaço onde as fronteiras se esfu- Limitar-nos-emos a questões rela-
mas não corno uma mass media, se se faz recolocar o teatro no interior de uma teoria n1am - e nós nos situamos entre e no interior tivas à análise dessas mídias embaralhadas:
abstração do Mc7heatre e do Megamusical das mídias, pois por esse termo entende-se, de uma mistura de espaços, de mídias e de 1. Como identificar as mídias? Elas nos são

194 195
Minorias (Teatro das) Modernização

dadas a ver ou se apresentam mascaradasi, influem em nosso cérebro, em nossa expec- onde a noção de literatura pós-colonial- é Do ponto de vista ocidental, a modernização
2. São produzidas ao vivo ou preparadas tativa e em nossa experiência física, cines- pouco empregada e até rejeitada por aque- é a melhoria, a renovação de uma coisa, de
de antemãot: 3. Veem-se e ouvem-se seres tésica e sensual do espetacular. Poder-se-ia les mesmos que poderiam invocá-la, a situa- uma tecnologia, de urna instituição: moder-
humanos? São filmados? Ao vivo?; 4. Como considerar as mídias como uma extensão dos ção é mais ambígua. Sem apoio oficial, sem a niza-se uma coisa que não era mais ou não
cooperam ni sso as m ídias? Quais traços são diferentes tipos de cultural perjormances-, da vontade dos artistas de se distinguir de uma era ainda. Compreende-se facilmente a
de remidiação?; 5; Elas nos ajudam a perce- qual a encenação de teatro não é senão um produção demasiado mainstream-, ou dema- necessidade da modernização técnica, a da
ber o Inundo de modo diferente? caso particular. Essas mídias, em geral, não siado majoritária, esses grupos étnicos dificil- modernização ou modernidade artística é
são substituídas pelo evento live; elas abrem mente encontram uma.identidade específica. menos evidente. A modernização de U111a
o texto dram ático ou a prática cultural a uma Na França, por exemplo, autores dramáticos obra teatral em sua encenação, termo qu e
4. AS MÍDIAS, A SOCIEDADE A POLÍTICA pluralidade de com. identida- de origem étnica africana (Marie NDiaye, José seencontra com mais em lugar
des e rendimentos variáveis. Pliya ou Koffi Kwahulé) não invocam sua per- daquele, mais justo, de atualização, consiste
Falta-nos uni a história das mentalidades tinência a uma minoria particular', C111 ajustar ao gosto do dia um texto, clás-
a. Reavaliação das Mídias escrita à luz não somente das técnicas (o que Se na França o teatro não é endereçado sico na maioria das vezes, conferindo-lhe um
O exemplo do teatro é apenas o de um caso foi feito muitas mas das mídias. Seu muitas vezes diretamente esses grupos aspecto modificando
particular que, no entanto, nos faz tornar exame indicaria, talvez, a evolução da per- minoritários, o cinema, em compensação, ou simplificando sua aparência (mudança
consciência do papel da midialidade em cep ção dos espectadores- no curso dos sécu- está muito mais preocupado com o passado de cenários, de costumes, de comportarnen-
nossa vid a. Estima-se que passamos quinze los, em função das mídias disponíveis. colonial e com a sorte dos grupos "p rove- tos), seja adaptando-o a um novo público,
anos 'de nossa vid a um terço de nientes da imigração": assim, os filmes de melhorando-o e tornando-o mais atraente.
nossa existência confrontados com as mídias NOTRS Abdellatif Kechiche CI:Esquive), de Rachid A releitura dos clássicos, nos .anos 19 §O , a
Mari e-Laure Ryan , Media and N arrative, em D. Her- Bouchareb tlndigênes, 2006), de Nabil Ben
audiovisuais, a m úsica e a navegação na inter- 1970, ' propôs muitas mudan ças na concep-
m an et aI. (eds. ), RoutledgeEncyclopedia oj Narrative
net. Nos sa atenção, nosso imagin ário, nossas 2 89 · Yadir (La1Vlarche, 2013). Os oneiwoimanshow ção da obra interpretada e encenada, mas a
convicçõ es e nossa domundo são Aumont, lVlicl1.eL Marie,J.j'lctiWnl1mre th éo- (stand up comedy) se prestam melhor que o moderniza ção não é senão um termo muito
rio ue et critique du ciné m a, Paris: Arrnand C olin,
profundamente impregnados disso. A reali- teatro stricto sensu às questões de integra- geral e pouco técnico.
20 08, p. ]48.
,dade virt ual, em que nós no s refugiamos cada 3 Histoire des médias, Pari s: Arrnand Colin, 1996 , p, 5· ção' discriminação, racismo e minorias. Se as Do ponto de vista asiático, notadamente
vez máis~ ' nos faz duvidar de toda identidade Chi el I.. . . a.I.í.l:l ,IUC;,lt,ll'zter'm e'{.tzalzt)l minorias são cada vez mais visíveis, elas nem japonês, modernização (amiúde sob o
estável,;cle toda autenticidade. E, no entanto, Theatre senlpre são mais audíveis, isto é, na medida nome de "ocidentalizaç ão") consistiu, desde
Rodopi, 2 0 06, p. 12.
nossa relação com as míd ias é menos apurada da entrada na arena política e artística. a ab ertura para o Ocidente, em tornar-se
5 [ayBolter; Rich ard Grusin, R em edi ation: Und erstan-
que outrora. A Escola de Frankfurt (Benja- ding N ew Medi a, Cambridge: MIT Press , 2 00 0, p. 65. Entre os comediantes e os c ômicos cabe moderno, retomando todas as componen -
min, Adorno, Horkheimer, Fromm, 1\/1 "'1 1"rl1(',D I assinalar Maimonna elle est tes das obras ocidentais a
estabelecida em 1923, exilada nos Estados Uni- noir mais elle est bellei, [amel Debouzze; Ibsen), imitando-as é transformando assim
do s em 1933, reinstalada na Alemanha em Booder.Smain, Sourai Adéle ou Dieudonné as formas japonesas existentes. Tu d o é, por-
1953, não perdeu, para os pesquisadores con - (Émeutes en banlieue), tanto, efetuado do ponto de vista do artista e
(corno Habennas ou os herdei-
1-<::. ....''\ 1''''1''''....... <:>I'\ C'
inorias (Teatro das) do espectador japonês, como para assimilai"
ro s da critical theory, bem como dos cultural NOTR 'ao máximo as técnicas ocidentais eTI1 ' fun-
Ver as ent revistas e análises de Edward Baro n Turk,
stu diesi, sua radicalidadc, 111âS este~ últimos Fr.: mi norités(théâtre des); ingl.: minoriry; ção das necessidades lo cais. Con10 observa
French Theatre Today: The View From New
t êm consciên cia de que as teses do embruteci- Ai.: IVlinoritdt. Paris, Iowa City: University of Iowa Mitsuya Mori', essa modernizaç âo difere con -
rnento pelas mídias devem ser matizadas. No 2011, J5~ 2'"26 - 237. forme as componentes, pois a assimilação é
presente a questão não é tanto: o que fazem as Em certos países (Estados Unidos, Canadá) em mais ou menos possível: o esp aço cen ográ-
m ídias conosco, mas o que fazemos C0111 elas? "que as minorias possuem um estatuto clara - fico, os costumes e o sistema da encenação
mente definido por uma política multicultural, serão facilmente modernizados; etn compen-
b. Extensão das Performances o teatro desses diferentes grupos beneficia-se sação' a escritura da peça , seu sistem a dr ama -
No caso do teatro aceitamos, e ITleSn10 de um suporte oficial, o que encoraja autores
Moderntzaçao...
t úrgico e, mais.ainda, seus conteúdos e seus
apreciamos, experiências em que as mídias dramáticos desses diferentes grupos a trabalhar, temas serão mais dificilmente transponíveis.
Fr.: modemisatton; Ing 1.: modernizotion;
conquistam um cada vez maior. se não em sua língua, ao menos em sua cul - AI.: Modemisierung, Deve-se tomar cuidado de não confun-
renternente, tomamos nota da maneira pela tura. Em outras nações, como a França, onde dir a modernização com o teatro intercul-
qual os mass media preparam o terreno e não se fala oficialmente de minorias étnicas, tura1. Este último combina e retrabalha

196 197
Movimento Movimento

elementos culturais de proveniência diversa e na representação mental daquele que per- é difícil para o controlar o e sua postura corporal. De acordo com M.
e confronta ou assimila tradições culturais cebe o movimento. Segundo a teoria ainda vimento, amplamente inconsciente, é ainda Chekhov, o ator deve testar vários tipos
diferentes. l\ modernização se faz a partir de um tanto fluida dos neurônios -espelho e muito mais árduo para o observador lê-lo e de gestos aliados a certa emoção, a fim de
um único ponto de vista, o do "importador": da empatia- cinestésica, a representação do senti-lo. Ora, COlDO nota HubertGodard, «a encontrar o gesto psicológico que lhe pareça
ela não visa à produção de uma "inter-cul- movimento recorreria às mesmas estruturas significação do movimento executa-se tanto caracterizar melhor sua personagem. Essa
tura" nova - híbrida ou universal -, mas a neurológicas que as ativadas movimento no corpo do dançarino quanto no do espec- personagem pode, entretanto, ser apenas
um Cesperado) do sistema efetivo. Por outro lado, sabemos que per- tador" (p, 239). urna figura abstrata, perfeitamente dese-
existente, graças às técnicas ocidentais. cepção do movimento é tanto visual Ccon- nhada, que prefira a geonletria do movi-
forme uma gravação dos pontos de passagelll c. Movimento e Gesto
mento à expressividade do gesto.
NOTR e das figuras) quanto cinestésico (percebi- Godard estabelece uma clara distinção entre Ultrapassar a clivagem entre teatro do texto
Mitsuya Mori, The Structure of Theatre: A Iapanese movimento e gesto: "não se pode, por can-
Vie w on Theatricality, SuliStance, issuc 98 -99, V. 31,
dos pelos sentidos musculares e pelo ouvido dramático e teatro do gesto: opor um tea-
n.2 -3, p. o movimento, do em que o movimento estaria
preendido como fenômeno que consigna os ausente, a um teatro físico sem fábula nem
a. Motion estritos deslocamentos de diferentes segmen- relato, tem pouco sentido. A prática não
O movimento - ou, mais precisamente, o tos do corpo no espaço - ao mesmo título cessa, aliás, de no-lo lembrar dia após dia
motion no sentido inglês de passagem do que uma máquina produz um movimento - e ao misturar alegremente os dois "gêneros".
Movimento corpo de umlugar a outro, a ação de mover o gesto, que se inscreve no desvio entre esse Vale mais, pois, sob Ulll ângulo teórico, rnis-
o corpo ou uma de suas partes tornou -se movimento e tela de fundo tônica e turar os dois pontos de Analisar-se-á
Fr.: mouvement; Ingl.: movement; AI.: Bewequnq. objeto de todas as atenções: falta-nos definir tária do sujeito: quer dizer, o pré-movimento assim o movimento rítmico do texto, sua ges-
todo o resto e,especialrnente, a passagen1 do em todas as suas dimensões afetivas e projetí- tualidade, o modo corno a voz o manipula, o
Na galeria das diferentes culturas e das tempo. Para os cognitivistas, "o movimento vaso É aí que reside a expressívidade do gesto afasta ou o aproxima. E, inversamente, pro-
artes, o estudo do movimento corporal parece ser primário e o tempo é conceituado humano, que não é municiado pela máquina" curar-se-á no teatro físico as etapas e as con-
continua no centro das preocupações metaforicamente em termos de movimento":. (p, O teatro e a dança se ocupam de ges- venções de uma história, de uma
dos-pesquisadores oriundos de diversos tos, mas a dança pós-moderna pode esco- caracterização.
hO ~~;fontes.O que, todavia, mudou desde b. Movimento e Pré-Movimento) lher, como por desafio, tratar o corpo corno Descentrar o espaço: em lugar de definir
os ~>~:os 1980 e do aparecimento da Movimento Sombreado . uma máquina que produz movimentos, isto o espaço e o movimento a partir do ator ou
da nçapós-rnodema- ou doteatro pós - Para executar um movimento ou para ana - é, preferir assim os frios movimentos geomé- do dançarino e corno seu prolongamento,
dramático- é a orientação dessa pesquisa. lisá-lo' devemos ser sensíveis ao pré-mo - - tr ícos (cf a break dance) aos gestos carrega- . corno faz, por exemplo, Laban, o coreógrafo
Esta última não está mais obsedada pela vimento, "esta atitude para com o peso, a dos de afetividade. Desde que o movimento o dançarino o concebem exterior como
vontade de educar pelo movirnento gravidade, que existe já antes de nos mexer- se faça expressivo, desde que se intensifique, uma projeçãogeométrica, para o interior da
(Delsarte, Jacques-Daicroze, Copeau, J110S, pelo único fato de estarmos de pé, e ele se torna um gesto estético. qual os performers podem se inscrever. É o
Decroux, por exemplo) ou de avaliar sua que vai produzir a carga expressiva do movi - que o Bauhaus de Schlemmer hávià imagi-
qualidade (peso, espaço, tempo, fluxo menta que iremos executar">, Esse pr é-mo- nado e esboçado e foi muitas vezes realizado
em Laban). Ela aborda o movimento no vimento invisível determina a realização e 2. o IvfOVIMENTO NA PRÁTICA CÊNICA pós-modernidade radical de um Cun-
quadro mais gera! de um espetáculo ou a qualidade emocional c estética do 1990 2010) ningham ou pela abstração sincrética de um
da utilização do corpo na vida cotidiana mento. Forsythe.
e dos esportes; ou então; ainda, em uma É preciso distinguir esse pré-movimento o estudo do movimento tem menos o cará- Coreograjar o movimento: as figuras de
teoria geral da ação e da performance -- do "movimento sombreado" (shadow move- ter de uma teoria homog ênea do que o de objetos moventes Catores, elementos de cená-
ern todos os sentidos do termo. rnent) de Laban, movimento que para ele um projeto ainda em execução. Ele obriga rio, ritmos verbais ou musicais) são repeti-
consiste de "ínfimos movimentos museu - a regular certo número de problemas, dos ' das, retrabalhadas, fixadas graças olhar
L ESTADO ATUAL DA TEORIA DO lares corno um alçar de sobrancelhas, um quais enumeraIl)os alguns: do encenador/coreógrafo. Este se coloca de
.MOVI1v1ENTO tremor da mão ou o bater de um pé'". Esses Encontrar a persollagern por meio do movi- fora para imaginar, visualizar e, depois, plas-
movimentos sombreados "são executados menta: centrando seu trabalho na execução mar os movimentos; ele aplica aos corpos em
Segundo a recente hipótese da psicologia inconscientemente e, qual uma sombra - daí dos movimentos segundo urna partitura movimento uma série de diretivas e direções.
cognitiva, a atividade motora irnotion, errl o termo -, são acompanhados muitas vezes precisa, o ator ou o dançarino aborda sua Aquilo que outrora fazia o mestre de balé no
ocorre ao mesmo tempo no ambiente de movimentos de ação deliberada" (p, Se personagem conforme seus deslocamentos ballet de cour regrado a de um ponto

198
199
Movimento Multicultural

de vis ta exterior, e cnscrpnnar, exemplo) deu lugar uma teoria do movi- NOTAS criticado, e até reposto em questão pelos
George Lakoff Mark Iohnson, Philosophy in the
aquilo que Schlemmer impunha aos baila- mento puro, a um Limbs Theorem (teoria do Flesh the Embodied Mind and lts Challenge to Wes- governos no poder (Inglaterra, Alemanha
rinos ocultos de seu Balé Triádico, o ator a membro) em Forsythe. Longe de toda inte - tern Thought, New York: Basic Book s, 1999, p. 140. e França, entre outras) , pois ele favorece a
serviço de Bob Wilson ou o dançarino de rioridade, "o movimento é expressivo além '1. Hubert God ard , Le Geste et sa perception, La Danse guetização da sociedade em grupos mal inte-
au xxe siêcle, Par is: Larousse, 2002, p. 236.
break dance realizam hoje em dia sobre o seu de toda intenção" (Cunningham). grados na nação ou em comunidades religio-
3 Rudolph von Laban, La Maitrise du movemeni, Arles :
próprio corpo e em suas evoluções no espaço. Retrabalhar o movimento graçasàs midias: Actes Sud, p .30. sas que não reconhecem mais a autoridade
Musicalizar o movimento: desde Meierhold a câmera ao vivo ou em tomada do Estado. Muitos intelectuais críticos veem
ou D óris Humphrey (sua seq üência de [all/ indireta, o corpo em todas as suas evoluções, também no multiculturalismo uma maneira
recovery, quedaiamortecimento), sabemos dar o movimento sob todas as suas formas. Ela os de desviar as atenções para as identidades
ao movimento a estrutura rítmica da música. retrabalha instantaneamente e os reinjeta na sem levar em conta as lutas políticas e as lutas
. ssegurar a musicalidade do movimento e, de
.A performance live. Os performers live tendem Multicultural de classe. Essa rej eição da solução multicul-
modo mais da a tarefa a atrás das ampliadas tural o pouco inte-
principal de artistas como François Tanguy ou embelezadas pelas m ídias, Fr.: multiculturel; Ingl.:m ulticultural; AI.: Multikulturell. resse da gente de teatro pelos espetáculos em
ou JosefNadj. O tempo e o espaço do movi- Dissociar o movimento e a voz: o perfor- que culturas e identidades separadas e fecha-
m enta são uma matéria rnale ável que pode- mer e o encenador/coreógrafo podem dis - Deve-se tornar o cuidado de não confun- das coexistiriam em um espetáculo.
mos cornpor musicalmente. sociar o ritmo verbal e o ritmo gestual, ou dir o multiculturalismo e a obra multicul- Não se poderia falar de teatro multicultural
Desacelerar ou brecaro movimento: cer- então montar um novo texto sobre a tural. O primeiro é uma doutrina política, a como resultado de uma política multicultural
formas corno Butô as céle- lidade para outra coisa. O de uma obra constituída elementos
'"n ...)' ........... ,L ......... que reuniria diversas comunidades com vis-
bres desaceleraçõ es de Robert Wilson vão a descontinuidade entre texto e movimento emprestados de diversas culturas. O multi- tas a um trabalho ern COIIlum: isso seria, no
ponto de neutralizar todo movimento visível. é um elemento distanciador, que nos torn a cultural n ão é multi étnico (comunidade de fundo, contrário ao espírito do desenvolvi-
O But ô busca um estado fetal que produz, atentos às duas lógicas e nos afasta tanto da língua, de costumes, de práticas culturais), mento cultural separado. Os únicos encontros
tantono intérprete corno no espectador-, Ul11 peça bem-feita quanto da encenação bem - nernmultirracial (cara cter ísticas físicas). entre as comunidades ocorrem por ocasião de
mar-estar que não se atenua senão corn o -feita, a saber, demasiado bem coordenada O multiculturalismo prega a igualdade festivais multiculturais no curso dos quais se
acouumento de outro corpo, desacelerado ou a ponto de parecer redundante. Lá os entre os cidadãos pertencentes a diferen- can1para as cozinhas do outro, se assiste às
inerl h,' que teria sido dese rtado pelo movi- dançarinos pós-modernos, os do Tanztheater tes grupos étnicos no interior de um estado danças folclóricas ou às representações teatrais
Inen~8' e talve z pela vida. Quanto a W ilson, de Pina Bausch por exemplo, conseguen1 dis- que assegura a cada UIU os mesmos direi - que giram em torno da beleza e do exotismo
ele procura UIU tempo "natural', lento mais sociar dicção e gestualidade, os atores estão, tos. Desde 1971, o Can ad á inscreve o mul- dos costumes, aos desfiles em roupÇl.S folcló-
do que desacclerado, em que o espectador ' 'po r seu 'úiiÍ1Õ, lnulfasvezes em dificuldade: ticulturalismo em sua constituição. Outros ricas e, ao fim da jornada, se adquire alguns
a flutuar. essa entre vocal ocidentais, com o os Estados Uni- artesanais locais ...
"/"'lY'."""; 'llt"r\C'

Ultrapassar os dualismos: a performance e a do gesto seria muito difícil de ser obtida dos, a Austrália, a Grã-Bretanha invocam, É sob a forma do.intercultural-, mais do
e muitos espetáculos criados nos primei- por atores, cuja mestria busca, ao contrário, entre os seus princípios, o multicultura- que do rnulticultural, que o teatro e as artes
ros anos do século XX I , em dança corno no a transparência entre a palavra falada (texto) lisrno, ainda que essa política seja hoje em apelam para diferentes culturas. Provavel-
teatro, não estão a serviço de um te xto a e a atitude corporal" (Godard, p. 238). dia posta de novo em questão, por causa do mente, porque tanto a dramaturgia como a
ser montado, de uma paixão a ser expressa A reflexão sobre o movimento tornou - risco de explosão qu e apresenta aos Estados- cena transformam as culturas em qualquer
uma atitude, um sentido a trans- -se central para compreender da das dificuldades de de outra coisa, ficcional, sem se preo-
mitido. O movimento não remete n eces- dança e do teatro. O movimento está no cora- populações imigradas, de derivas comunitá- cupar com a exatidão étnica nem a corre-
sariamente a uma motivação psicológica ção da produção e da análise do novo teatro rias ou de fundamentalismo religioso. Cada ção política. Com a globalizaç ão, a mescla
identific ável. Assim) portanto, a perfor- e de todas as suas experiências. O estudo do país regula à sua maneira o delicado equilí- das culturas, sua transformação eln merca-
mance ultrapassa o dualismo interior/exte- movimento tem muito a esperar da psico- brio entre o universalismo republicano e o dorias adaptadas ao mercado tornam-se a
rior; o vertical não é mais preferido ao logia cognitiva. Inversamente, é justo dizer comunitarismo reivindicado às vezes pelas regra. É doravante a lei do mercado que reina
horizontal corno na dança clássica; o alto que a experimentação, amiúde anárquica e minorias ou identidades culturais, religiosas e, muito menos, a das relações de força entre
não é rnais declarado superior ao baixo. antiteórica, da cena contemporânea, faz, em e étnicas. O dom ínio crescente da globaliza- cultura dominante e cultura dominada.
A metafísica das paixões ou seus avatares troca, avançar de maneira considerável nossa ção- obriga a rec onsiderar as reivindicações O teatro parece superado por essas sub-
modernos (os quatro elementos -'- ar, terra, compreensão do movimento e do corpo em étnicas e culturais à luz de considerações eco- versões culturais e essas novas relações de
fogo e água - de um M. Chekhov, de uma situação de representação. nômicas supranacionais. Desde os primeiros força. Ele tem dificuldade em encontrar a
Wigrnann ou de uma M. Graham, por anos do novo milênio, o multiculturalismo resposta: não apenas devido à dificuldade

200 201
Multimídia Musicalização

intrínseca de colocar os pronternas em ter-


nl0S culturais e não mais, como
de e artísti-
cos. Ele desconna
ou coexisten-
representacao, combinadas

que
(cinema,
.c>ÍC'.tyr;'ni,,..~C"

comoutadores. orotecoes). Mais


rnultimídla apela para os
videogames para os

202
N
Narractor 1990, que a escritura dramática contempo-
rân ea não só introduziu o narrador (COIU
Fr.: narracteur; Ingl.: narroetor; Ai.: Nar raktor . estatutos por certo muito diversos) como
também o colocou em tensão ou em com-
Os narr-attori italianos são os narractores, petição com o ator e suas personagens. EIn
os contadores- (narradores-) que são tam - certos textos dramáticos, não há mais hie -
bém atores. Nesse gênero novo do s anos rarquia 'entre .narr ár e encarnar, na rração e
1990, atores italianos, nas pegadas de Dario ação cênica. O mesmo sem
Fo, retornaram à tradição ancestral do con- qualquer advertência do papel de narrador-
tador popular, mas eles escrevem e atuam -com entador ao de personagem (assim é no
doravante nos rnais diversos lugares, inclu - teatro de Joêl Pommerat ou de Mike Kenny
nas mídias, textos I.''-,'LI.\.L'-''-'''-', .....,.L l ;l:; 'U / (.l "-L V u , (Walking the Tightrope). Essa mudança de
críticos e cômicos, Seu teatro di narrazione papel não n ecessita de justificação drama -
(teatro da narração; du r écit, do relato) trans- tú rgica, afora a de surpreen d er o leitor ou o
torna a tradição que tende a separar o teatro espectador-, por não o deixar jamais instalar -
e o conto, o ator e o contador de histórias. -se em um sistema, O narrador era conside-
Sobretudo, ele ultrapassa um teatro popu- rado aquele actante que reorganiza e baliza
lar, quase folclórico, satír ico ou critico, nl as o relato, mas doravante ele é também capaz
quase nada político. Ele inventa uma escri -- de baralhar as pistas. Trata-se, enfim, de uma
tura e uma maneira de contradi zer que seja m aneira de pôr em questão a oposição, tida
política, e até militante, a serviço dos cida - durante muito tempo como algo que vai por
dãos e dos ativistas para lutar por causas que si, en tre o logos do narrador, que suposta-
parecem perdidas de antemão. rnente deveria nomear e explicar, e a mim e-
Segundo a concepção ocidental, aristo - sis, que estaria em condições de mostrar sem
télica, mimética, conv ém opor rnimese e comentar. Na evolução do teatro, o narractor
diegese, imitação e relato , personagen1 e nar - é chamado a desempenhar um papel chave .
rador. O narrador é excluído, ele é reduzido
ao coro, ao mestre de cerimônia, ao recitante.
Foi apenas muito recentemente, após os anos
Neodramático Nova Dramaturgia

Neodramático 1. A ANÁLISE DRAMATÚRGICA CLÁSSICA: De a enumerar as tarefas do para melhor renascer. Limitar-nos-emos a
REPRISE E APROFUNDAl\tIENTO dramaturgo, o que leva rapidamente a uma alguns exemplos dessas novas dramaturgias,
Fr.: néodrom ati que; Ingl.: neo-dramatic; AI.: lista normativa de atividades, mesmo sob O devised theatre é um teatro não tanto
neodram atisch. A grade de análise: Desde a era brechtiana a aparência da infinita diversidade, valeria de criação coletiva quanto de colaboração.
e, sobretudo, pós-brechtiana, nos anos 1950 mais interrogar a função dramatúrgica no O dramaturgo não tem (teoricamente) urna
'Termo utilizado por Hans-Thies Lehmann (a na Europa, a análise dramatúrgica ajustou curso da história, interessar-se pela mise en posição diferente da de seus camaradas: todas
propósito do autor Falk e por alguns um método de leitura de das scêne mais do que pelo encenador, pela fun- as funções da criação para a cena estão abertas
cri ticas, para dar sequência ao que foi deno- peças bastante aperfeiçoado; ela se beneficiou ção espectadora (perceptiva, intelectual, par- a cada um, como também notada e estrategi-
minado de pós-dramático",a fim de distinguir das ferramentas eficazes das ciências huma- ticipativa etc.) mais do que pelo espectador-. camente a intervenção dramatúrgica.
um do outro e in dicar uma nova -tendência, nas. Fazer a dramaturgia de uma peça con- Para melhor dernarcar a expressão "análise A educational dramaiurgy (dramaturgia
desde o início do século XXI, da escritura dra- siste em preparar as escolhas de uma futura dramatúrgica', não é inútil salientar a dife- pedagógica) é uma iniciação à leitura e ao jogo
mática internacional. Anne Monfort vê no encenação, quer ela concretizada ou rença com a leitura de peças, uma da atuação para as os adolescentes
neodramático uma "teatralidade em que um não. É - ou é preciso dizer: era? - recorrer leitura individual, efetuada sen1 a finalidade e os amadores. Ela constrói urna ponte entre
texto, personagens e urna ficção permanecem às disciplinas da história, da sociologia, da de uma futura encenação. Precisemos que o mundo da educação e o da criação teatraL
na base do trabalho cênico, e isso mesmo se psicanálise, da linguística ou da semiologia. a expressão "análise dramatúrgica" refere- A dramaturgia do ator: esta expressão
o texto for descstruturado, as personagens Mas é também impor às vezes ao encenador -se ao mesmo tempo à leitura de um texto criada por e a propósito de Eugenio Barba
deslocadas e a ficção posta ern dúvida?'. uma grade de leitura que poderá lhe parecer e à maneira pela qual o espectador e, a for- convém a UDl modo de trabalho eln que o
Falk Richter, Joel Pommerat demasiado limitativa..Daí a da drama- iiori, o analista, recebe, e descreve, ator, ou atriz com mais esco-
ou Mike Kenny seriam os exemplos desse turgia, justamente quando ela se institucio- em palavras a maior parte do tempo, o espe - lhe seus próprios materiais vocais, gestuais,
tipo de escritura que recorre multas vezes à naliza UI11 pouco por toda a parte e está em táculo, reconstituindoos princípios de sua textuais e vestimentários etc., para reuni-
forma do teatro de relato-. busca de novos caminhos. composição. -los pouco a pouco no curso de improvisa-
As tarefas da dramaturgia: Seria preciso ções individuais, o mais das vezes, durante
NDTFI
Lraiectoires, n. 3, ainda entender-se sobre as tarefas da ativi- meses'. A do é, no
dade essas tarefas variam 2. AS NOVAS DRAlVIATURGIAS fundo, um modo comum de trabalho tea-
consideravelmente de um país a outro ou de tral ern que o ator é requisitado a propor
uma instituição a outra) a tal ponto que se A enquete dramatúrgica nasceu de uma refle- materiais que ele já enforrnou , aceitando em
tem o direito de se perguntar se elas parti- xão sobre a eficácia da representação teatral: seguida, mais ou menos de bom grado, ser
Nova Dramaturgia cipam da mesma atividade. Na Alemanha evidente desde senlpre, com autores-homens desapossado deles em proveito de escolhas
e na ao lado do de teatro como Shakespeare ou Moliere, ela /11~'''''rY1,,,,,,Tl' ....rl'1r ''}c ou de cênicas. IvIais
dramatuiqienouvelle; 11'1 91.: newdtomatutqy; encenador, pela interpretação histórica e encontra a sua formulação teórica apenas na vale, entretanto, reservar essa denominaç ão
AI.: neue Dromaturqte. política da peça; no Reino Unido, ele ajuda segunda metade do século XVIII com Diderot aos espetáculos fabricados a partir de impro-
am iúd e à promoç ão da escritura dramática e Lessing. Essa eficácia da análise dramatúr- visações vocais 011 rítmicas antes de serem
Assistimos ao mesmo tempo ao triunfo ou participa da elaboração coletiva do espe- gica confirma-se no fim do século XIX com "preenchidos" de textos e de narração, e de
e ao estilhaçamento da dramaturgia, táculo (devised Theatre); na Bélgica ou nos a invenção da mise en scéne e a releitura dos serem finalmente montados por um encena--
não sornente da no sentido Países Baixos, ele se ocupa corn frequência clássicos; ela e se estabelece em dor que não se sente ligado por urn contrato
da escritura dramática, mas ainda da de dança ou de formas perforrnativas liga- numerosos países além da Alemanha após narrativo claro, nem por uma exigência de
análise dramatúrgica, ou seja, a leitura e das às artes 'p lásti cas etc. Uma diferença de a Segunda Guerra Mundial, para culminar narração resumível em uma fábula.
a preparação efetuadas pelo conselheiro denominação indica tamb ém um afasta - nos anos 1960, sob a influência do método A dramaturgia pôs-narrativa (ou pós-clás-
literário ou artístico do encenador, chamado rnento muito grande na prática: enquanto brechtiano, Com a chegada das ideias rela- sica), à qual o exemplo ea obra de Barba
de Dramaturg na Alemanha, ou dramaturge o In uitas vezes à tivistas pós-modernas- e pós-dramáticas- ou de Beckett pertencem de pleno direito,
na França. Um sobrevoa do estado e dos ern colaboração COIU o encenador, o conse- dos anos 1970, a dramaturgia está em recuo é outra categoria que engloba os textos e
métodos da dramaturgia atuais, assim lheiro literário ou artístico é um arroteador ou em mutação. Ela se afasta cada vez mais os espetáculos privados (ou liberados?) de
como de suas recentes mutações em de textos ou UIU experto em arte contempo- de suas origens críticas e políticas, de sua toda fábula, de toda narração e que~ po r-
inúmeras drarnaturqias específicas, deixa rânea. O animador (facilitator, ern inglês) obediência brechtiana. Ela não desaparece, tanto, se distanciam da dramaturgia clássica,
entrever uma paisagem tão rica e variada auxilia os amadores ou os participantes a no entanto: inúmeras são suas maneiras de não somente a daforma dramática, mas tam-
quanto confusa atormentada. se organizarem, renovar-se, de ou de camuflar-se bém a da brechtiana ou pós-brechtiana.

206 207
Nova Dramaturgia Nova Dramaturgia

o modo de funcio-

composicao coreo-
coreograna trabalha a
Novos Lugares
Nova Dramaturgia

partir de m ovimentos, e não de ações mimé- neodramaturgia reativada pela vontade de essencialmente da abordagem criativa dos Novos Lugares
ticas dos ato res qu e representam pe rsona- não colar na peça ou na representação um atores, dos encenadores e dos espectadores.
gens. A dramaturgia consiste em produzir, esquen1a preconcebido, de propor, ao contrá- O dramaturgo perde aí sua aura científica, Fr.: nouveouxlieux; Ingl.: newsites; AI.: neue Orte.

e mais tarde para os esp ectadores, em res- rio, essa análise dramatúrgica através de um mas ganha o prazer d e produzir realmente
saltar a composição do s ritmos, das tensões, ato criador do dramaturgo, que não o cede, sentido: artista entre artistas, o dramaturgo De um mundo ocidental outrora industriali-
das mudanças de posições e de atitudes. Essa pois; em nada à criatividade do encenador. d e produção não é mais um documentarista zado e militarizado restam hoje em dia fábri-
dramaturgia não está em busca de significa- l\ tal ponto qu e se torna difícil, e até impos- angustiado e deprimido. Mesmo o especta- cas' entrepostos, casernas desativadas, que são
dos , ela estabelece princípios formais, uma sível, distinguir a função do dramaturgo e a dor, espécie de dramaturgo da recepção, não às vezes colocadas à disposição de artistas das
"lógica da sensação" (Deleuze) , uma estru- do encenador (ou do coreógrafo). lhe fica a dever, porquanto lhe compete dar artes visuais e espetaculares. Robert Wilson
tura da composi ção. As "Dez Notas Sobre a Dramaturgia', de termo à produção do sentido. Todo mundo tem suaWatermill em Long Islanel; Robert
Dramaturgia do esp ecta dor: p ara voltar Peter Stamer, promovem de maneira convin- é UD1a cena dramatúrgica. Lepage, sua caserna Ex Machina em Québec;
à dramaturgia ou à en cen ação, poderemos cente essa idéia de performative dramaturgy, Ariane Mnouchkine e outros encenadores,
dizer que elas consistem tanto no que "eles" Trata-se de criar a dramaturgia em lugar de NOTRS sua Cartoucherie de Vincennes; o prestigioso
Patrice Pavis (éd .), Degrés, n. 97 -99, 1999· (La Dsa-
(os artistas) fizeram e fazem por nó s quanto aceitá-la ou de impô -la do exterior, "pois a m aturgie de l'actrice.) Odéon, seus Ateliers Berthier: François Tan -
no que nós espe ctadores fazem os do espe tá _.. dramaturgia não estrutura um sentido dado 2 Luc He rma n; Bart Ver vaeck, Po stclassical Drama- guy, sua Fonderie em Mans etc.
culo pelo modo COTI10 nos envolvem os nel e. de antemão que se deva aplicar à obra, mas tur gy, D. He rman et al. (eds.), Routledge Iincyclop e- Muitos artistas apreciam o espaço e a
dia of Narrative Theory, p. 450 .
Seria necessário do mesmo modo precisar ela cri a, de preferência, um sentido que não caln1a de seus navios fantasmas, eles os pre-
Patr ice Pavi s, L Écriture à Avignon (2010): Ver s um
duas coisas, duas diferen ças: 1. A difere nça havia sido revelado até aqui'". A dramatur- reto u r de la narrat ion?, em Arielle Me yer MacLeod; ferem às salas clássicas, pois desejam rema-
entre aquilo que os artistas pareciam qu erer gia perforrnativa, quer seja visual, gestual ou Michele Pr along ( éds.), Racont er des histoires: Qu elle ncjá-los , reconstruir os lugares de ensaio e
nar rat ion au th éãtre au jourd'huii, Gen éve:
fazer e aquilo que eles efetivamente fizeram: musical, retoma esta ideia de uma interven- 2012, p. 113 - 13 3.
de representação, criar uma atmosfera que
2. A diferença entre aquilo que vemos n o ção criativa que vai se desprendendo pro- 4 Ioseph Danan, Ou est-ce qu e la dramaturgiei, Arl es: remeta mais ao mundo industrial do que aos
resultado produzido e aquilo que terí amos gressivamente, um pouco como no devised Actes Sud, 2 011 . códigos da teatralidade burguesa. Sernnecés-" -~. ---
Cf. Mo nika Fludernik, Towards a «N atural" Narra -
vontade dever. theatre, e não corno um prograrna a reali- sariamente utilizar tais espaços encontra-
tology, London: Routledge, 1996.
Quantomais no s afast amos da dramatur- zar. Ela se emancipou da teoria descritiva e 6 Kn ut Ove Arntzen, A Visual Kind of D r arn aturgy,
dos para realizar uma encenação específica
gia escrita por um au tor (segundo as regras prescritiva; ela se apresenta decididamente 'Iheaterschrift, 1994, n. 5-6, p. 274- 27 6. nes se lugar, eles têm uma liberdade
clássicas) ou da dramaturgia pensada e rea - como urna atividade artística: "O trabalho 7 Em Visua lity in lh e Th eatr eiDe L ocus of L ooking, para recup er ar, à sua maneira, esses espa -
Basingst oke: Palgrave M acmillan, 2 0 0 8 , p. 7-
lizada pelo Dramaturg (na época moderna, a da dramaturgia é uma prática da teoria por ços encontrados, no sentido de objetos trou-
8 C f. Mon ika Fludernik, op. cito
saber, de Lessing a Brecht), deveremos tanto oposição à teoria an alítica como escritura de 9 Peter Sta me r, Ten Notes on Dramaturgy, em N icole
vés (encontrados), que se trata de reanimar e
mais, no fim d e contas, fazer n ossa própria críticas ou análise de espetáculos." (p. 257) Karin Fenb ôck (Hrsg.), Denkfiguren: Per- reinvestir. Muitas das tendências da produ-
drarnaturgia (p ós-m odern a- ou pós-dram áti- "A dramaturgia perforrnativa não administra tormaiives z wiscnen Bewegen, Schreiben und Erfin den, ção espetacular contemporânea realizaram
Evpo d iu m , 2010 , p. 257·
ca·) a partir de um resultado amiúde ilegível, a partir do exterior elo processo artístico o ne sses terrenos baldios um primeiro esboço
e estaremos tanto 1113;i5 numa dramaturgia do sentido que se trataria de aplicar, ela é cria- de seu trabalho exp erim ental,
espectador. Quando mais a dramaturgia da tiva realizando a forma a partir do interior"
produção, por exemplo a do ator à maneira (p. 258)
das atrizes de Barba, for ilegív el, tan to mais Devemos tornar nota ela revolução coper-
deveremos "reescrevê-la" nós próprios e, niciana da dramaturgia e da encenação.
portanto, tanto mai s deveremos agir conlO Reviravolta e descentramento que situare-
espectadores-dramatu rgos . mos nos anos 1960 para a teoria literária
Perjormative dramaturgy (d ra rnaturgia e, para-o teatro, nos -anos 1970. Essa revo-
performativa): a perforrnatividade é em toda a lução corresponde à morte anunciada do
parte chamada em socorro para mo strar como autor, seja por Foucault, Derrida ou Bar-
os numerosos fatos sociais são obj eto de uma thes. Se o autor desaparece, o dramaturgo
construção, de uma ação por convenção, de o segue de perto. 1I1as sua ressurreição e
modo a levar a cabo urna ação sobre o mundo. sua metamorfose não são mais espetacu-
Aquilo que Peter Starner denomina perfor- lares. 1vluitos outros tipos de dramaturgia
mative drarnaturgy nos leva à ideia de uma são, com efeito, concebíveis, dependendo

210 211
o
I Obra de Rrte
Fr.: oeuvred'ait; Ingl.: work of art; AI.: Kunstwerk.
dissolver-se na vida social, sociocul-
tural.Não encontramos mais a presença da
obra de arte total corno no tempo de Wag-
ner (Gesalntkunstwerlc o ) ou como na época
i. LIMITES E IDENTIDADE da encenação "clássica» (1880 a 1920, apro-

Não é tão fácil definir a obra teatral ou per-


formativa, nem mesmo precisar seus limites
3. PERFORl\1ATIVIDADE
ou fixar sua identidade, pois o objeto varia
consideravelmente: texto dramático, simples Sabe-se bem, ao menos desde a semiologia-
script, representação, série de obras de um e a estética da recepção», que a significação
mesmo artista, acontecimento, obra também do contexto cam-
atividade socioartística, caIupo midiático. biante de sua recepção, da perspectiva do lei-
Quando muito constatar-se-á que a obra é tor e do espectador-. Sua concretização varia
sernpre o resultado de um trabalho coletivo, assim corno varia a série histórica ou indivi-
de uma fabricação mais artística que artesa- dual das interpretações. A teoria da perfor-
nal que traz um valor agregado, urna pro- matividade vai, no entanto, ainda um passo
blematízação, o que aliás permaneceria uma adiante: é, COIU efeito, em sua performance,
simples produção e que é transformada em eID seu processo·, isto é, na maneira como o
uma produção estética. receptor a coloca em movimento, que a obra
ganha seu sentido: "O sentido não reside
na obra de arte mas em sua performance,
2. ACABAMENTO em sua através de
numerosos contextos, o que reativa conti-
A obra contemporânea raramente é acabada, nuamente a obra,"' .A.ssim,a obra teatral con-
mas amiúde ela é desconstruída, por vezes temporânea· não se prestaria tanto a decifra r
antes mesmo de ter sido construída; ela se corno a colocar em movimento. Ela daria a
reduz a UInevento único não repetível. Sob pensar, a provocar o pensamento sem neces-
a forma de uma performance, ela tende a sariamente pensar ela mesma.
Orientalismo
Olfato

..I.'.L''-'..I.'~..I...n.. .....,rL\..)'' em urna representação [... ] sugere que Edward Said, publicado em 1978, para
4. CONCRETIZAÇÃO OU Olfato
mos aos corpos em representação ao consi- dispormos de um estudo extremamente
Essa reativação constante, outrora foi deno-
Fr.: odorat; IngL: sense oi smell; AI.: Geruch. derá -los imagens tácteis em vez de imagens profundo e para compreendermos essa
minada "concretização": um processo de
visíveis [... ] A comunicação do corpo- noção chave dos estudos pós-coloniais'.
produção do sentido textual ou cênico que
depende tanto da produção quanto da recep-
o olfato não está excluído do teatro ou da -que-ch eira no teatro leva o público a uma Said definiu o orientalismo como
arte da performance, mas é pouco utilizado comunicação proxêmica mais intensa, a qual "um modo de regular a relação com o
Mas hoje, notadamente à luz dos trabalhos
e ainda menos teorizado', corno se o temes- experímentamos com o sentido do olfato, Oriente que é fundado no lugar
dos fenomenólogos, dos pós-drarnáticos-,
sem ou o menosprezassem. De um ponto urna sensação que tem lugar quando se do Oriente na experiência ocidental
dos esteticistas do performativo", o pêndulo
de vista antropológico, sempre se deve per- intensifica o caráter carnal do outro"; européia". O orientalismo é um discurso
parece ter ido mais longe, no outro sentido:
guntar CalDO cada cultura valoriza o olfato As pesquisas acerca dos efeitos produzi- gerido pelo Ocidente sobre o Oriente
em direção à total relatividade da obra. Esta
(mas também o gosto· ou o tato·) na vida dos e a respeito dos afetos no teatro contri- tal como o Ocidente o imagina, em uma
última só existirá como acontecimento per-
cotidiana ou em suas espe - buíram sem nenhuma dúvida para instalar mescla de fascinação e de sentimento de
formativo e no olhar do único
taculares. Esses três sentidos extremamente o olfato, mas também o tocar e o gosto, no superioridade, o que contribui ao mesmo
responsável pelo sentido do texto ou da ence-
«físicos" devem, no entanto, desafiar um tea- centro de nossa experiência e reflexão. Disso tempo para afirmar sua identidade e
nação. De nada mais servirá analisar, descre-
tro contemporâneo que em geral é audacioso depende um melhor conhecimento das cul- justificar suas visões imperialistas e
ver ou interpretar a obra "em si':
na sua dimensão perforrnativa, participati- turas no interior das quais a performance coloniais.
Entre a concepção de uma total e arbitrá-
va-, imersiva-, pós-dramática". .Na realidade, olfativa e gustativa está, por assim dizer,
ria recepção e a de uma produção fixada para 1. ORIENTALISMO DO TEATRO
é somente dos anos 1980 que um tea- ensanduichada.
decodificar melhor seria
tro olfativo faz de tímidas aparições, graças a INTERCULTURAL?
não ter que escolher. Melhor seria observar NOTRS
alguns autores previdentes .- ou deveríamos
o constante movimento pendular entre pro- Uma exceç ão not ável: o livro d e Dominique Paquet,
o orientalismo se apli ca a toda cultura e a
dizer «prescientes" - , o papel e a po tência La Dim ension olfactive dans le th éàtre contemporain,
dução e recepção. toda literatura daqueles países "redu zidos"
evocadora do olfato nos espetáculos. Paris: L'Harmattan, 2005.
De maneira menos insistente e mais pon - 2 Rachel Fensharn, To Watch Theatre: Essayson Gente ao substantivo Oriente. Limitando-nos ao
and Corporeality, Bern: Lang, p.
tual, performances não hesitam em cozi - teatro, à maneira com
5. ENTRE CRIADOR E DESCONSTRUTOR
nhar em cena, preparando, por vezes, um a qual Racine imagina o Oriente em Bere -
prato servido ao público depois do espetá - nice C<No Oriente deserto , qual tornou-se
Descobrimos uma outra versão dessa ausên- meu tédio!', I, 4) ou à imagem que Voltaire
culo (Risotto, de Amedeo Fago e Fabrizio
cia de dialética entre produção e recepção da faz da China ou do paí s de Maorné: outras
Beggiato). Pela provocação, pela busca de
obra. A.. obra é então concebida segundo duas Orientalismo tantas visões orientalistas avant la lettre.
efeitos cômicos, os atores comem e bebem
visões opostas: ora individual de
em cena, igual a ações reais que a Restringindo -nos e à sua repre-
um sujeito criador soberano, espécie de gênio Fr.: Orientolisme; . Orientalism; AI.:
ilusão teatral e fantasmática do fingimento, Orientalisrnus.
sentação de regiões longínquas e exóticas,
demiurgo controlando tudo; ora a recepção de
() Misantropo, de Ivo von Howe (2007)) se entramos no universo frágil do teatro inter-
UI11 sujeito desconstrutor, espécie de intérprete
cobre e se empanturra de comida para pro - No século XIX, o orientalismo é a cultural, um teatro qu e floresceu no decor-
tão genial quanto versátil, único habilitado
testar contra uma sociedade extremamente ciência do Oriente, de suas línguas, rer do último quarto do século xx. A maior
para desconstruir, e portanto constituir, a obra parte dos enccnadores que r ~"""\ .O f'· l YY\ C) -r\ r ~ 1·~ ~·~~
engomada nas conveniências na mentira. de sua literatura e de sua cuítura. Seu
D ...

de arte. Dessa forma, por que não observar o


Assim ligado ao táctil, o olfato obriga o espec- domínio é o mundo árabe e islâmico, a o interculturalisrno (notadamente Peter
jogo que se estabelece entre o artista-criador
tador a se esfregar nas realidades da cozinha Turquia, o Oriente Médio, mas também Brook.Ariane .M n o uchkin e), os próprios
e o espectador-desconstr utor?
teatral. É raro, entretanto, que os práticos) a China, o Japão e os outros países do críticos não ocidentais (ou ocidentais por
e, em seguida a estes, os te óricos, se aven - Extremo Oriente. Desde aq uela época, acidente: pela sua educação) seus estudos,
NOTRS
turem a analisar os efeitos produzidos nos o orientalismo é igualmente o que seus ensinamentos nos Estados Unidos) são
1 Ric Alsopp, research,
v. 11, 11. 3, 2006, p. espectadores pelo dos imita a ou é influenciado pela cultura e vivamente censurados sustentar um
2 Por exemplo e respectivamente: Iens Roselt, Phano - atores. É o caso do encenador Barry Kosky, civilização "orientais" A história dessas olhar deformado sobre uma cultura que
menologie des Theaters, München: Fink, 2008; Hans- não é a deles e que eles "orientalizam", sem
Thies Lehrnann, Posdramatische Theater, Frankfurt: cujo Rei Lear (1998) Rachel Fensham ana - relações fascinadas, mas problemáticas
Verlag der Autoren, 1999 (trad. bras. : Teatro P ás- lisa. Fensham esboça urna análise do srnell- entre o Oriente mítico ou exótico e o respeito pelos textos sagrados, sem conhe-
-Dramático, São Paulo: Cosac Naify, 2007); Erika cimento de sua espiritualidade. Quanto
-body (corpo que cheira) que cheira mal, um Ocidente expanslonista é bem conhecida.
Fischer-Lichte, Aesthetik des Performativen, Frank-
furt: Suhrkamp, corpo abjeto). «Teorizar o corpo-que-cheira Foi preciso, todavia, aguardar o livro de aos teóricos (ocidentais) do intercultural,

214 215
Orientalismo Orientalismo

eles não têm sido mais poupados que os situamos mais então no orientalismo, aliás, 2. o ORIENTALISMO vezes próprios para colocar os cidadãos uns
outros: são acusados de arranjar a cultura não mais que em seu simétrico, um oci- E O PÓS-COLONIAL· HOJE contra os outros: "esse espetáculo foi apoiado
fon te conforme as necessidades da cul- dentalismo do ponto de vista da China ou pela Sociedade nacional da história da imi-
tura alvo do público ocidentaL A adap- do Japão. Estamos em uma mundialização Certamente, a atitude orientalista, para com gração e pelas instituições culturais regionais
tação de uma cultura a uma outra seria, que apaga os traços culturais específicos, a sociedade ou nas artes, está sempre pre- e nacionais em nome da política suposta-
segundo Ric Knowles, uma simplificação, que obriga a inverter a perspectiva orien- sente, mas menos sob a forma caricatural mente de 'integração', enquanto Mohamed
urna distorção, urna prova do imperialismo talista de outrora, que reequilibra as trocas que ela conheceu até metade do século Ruabhi advoga para U111a arte que divide e
de um "Ocidente sell1 dúvida monocultu- com todos os países outrora colonizados ou xx. A descolonização e a globalização em que coloca uma parte dos franceses contra a
ral" Semelhante crítica das obras, tal bar- explorados que se reúnem agora na polí- voga desde os anos 1980 encorajou os artis- outra" (p. 153). Essa experiência não é típica
reira antiteórica, denega toda justificação tica' na economia, e na cultura globalizadas, tas a mais nuance e menos condescendên- do teatro pós-colonial em geral, nem das
do teatro intercultural, condenado de saída quando isso não se trata de colonialismo - cia para com o estrangeiro. O sucesso do experiências do teatro da imigração, mas é
por causa do orientalismo Infe- China na África (p. 328). Certamente, o teatro pós -colonial, sobretudo nas também revela insu-
Iizrnente, crfti cos como Rustorn Bharucha, colonialismo ainda existe no mundo, mas multiculturais-, forneceu ao público uma ficiência de um pensamento político e dos
Una Chaudhuri, Gantam Dasgupta, Ric ele é, de algum modo, deslocalizado: não visão mais sutil das coisas, porém esse teà - meios dramatúrgicos ao aplicá-la evitando
Knowles, Lo e Helen Gilbert, não fazem tem mais necessidade da política da força tro não ultrapassou em nada o círculo res- "os"discursos diretos e incendiários que não
nenbumacontraposição teórica; eles se con- armamentista para se impor; ele se exerce trito de conhecedores ou de comunidades ajudam em uma tomada de consciência do
tentam em condenar o princípio mesmo do à distância sobre populações deslocaliza- referidas. "N os países europeus, o teatro da público e dos atores. Quando o teatro ape-
intercultural no teatro. Assim, Ric Knowles das bem a domicílio. permanece
1Y\"1rT1r'r:\r'r:\r"\ confiden- cnscurso e arte militante
não nos explica de modo algum o que ele a deslocalização do trabalho e das culturas cial. Aliás, isso não ocorre por falta de auxí - primária, ele se arrisca a perder toda a eficá-
colo ca sob as categorias de culturalisrn (cul- permite repensar e reforçar a colonização lio dos poderes públicos, que encorajam de cia política e a afastar UDl público que espera
turalisrno), critical studies (estudos críticos), do outro. bom grado esse tipo de iniciativa valorizando também por uma maior ambiç ão artística.
criticai' race theory (teoria crítica da raça), A globalização tende a esfumar a distinção o papel positivo da imigração e da integra- A solução para esse tipo de teatro político
criticalcosmopolitisms (cosmopolitismo cr í- entre orientalismo e ocidentalismo. Na con - ção. Todavia, segundo Gérard Noiriel, his - não é mais, COIn certeza" a encerrar-se em
whiteness studies (estudos da bran- clusão do seu livro de 1978, Said adverte lei- toriador da imigração na o teatro da uma arte isolada, pós -moderna- ou pós-
quid ade) ou os diaspora studies (estudos tor de que "a resposta ao orientalisrno não é o imigração se contenta muitas vezes em ata- -d r am ática-, mas a de encontrar um equilí-
da diáspora) ", À parte o fato de que seriam ocidentalisrno. Nenhum 'ex -oriental' se con - car frontalmente os franceses de estirpe, os brio, uma tensão entre investigação artística
doravante críticas, não aprendemos nada solará COlTI a ideia de que, tendo sido ele pró- intelectuais, os professores e a classe média. e crítica política da sociedade pós -colonial.
do s métodos dessas novas disciplinas cujas prio um oriental, pode agora estudar novos "Em cinquenta anos, o teatro da imigração
substituem o prograrna teórico.
'l...L.L'-i ....l'l...\....:.l0 'orientais' ou 'ocidentais' sua nunca sucesso em obter o reco- NOTRS
Edward w. Said, New York:
Isso é ainda mais larnentável quando autoria" (p. Não entrando na questão nhecimento que 111erece porque seus parti- Books, 1978, p. 1. Crientalismo: O
ess es críticos solicitam à razão urna apro- da globalização, eI11 sua época menos visível dários jamais refletiram sobre o problema Como Invenção Ocid ente. Trad ução de Ros aura
ximaç âo rnais política, econômica de trocas Eichenberg, São Paulo: C om panhia das Letras, 2007-)
que no presente, Said já nos sugeria que os da legitimidade de sua prática cultural."
2 Ric Knowles, Theatre and Inte rc ulturalism, Basíng-
culturais, e isso em um momento ern que, Orientais não ganhariam nada ao fazer dos A análise de Noiriel de um espetáculo de stoke: Palgrave Macmillan, 2 0 10 .
desde os anos 1990, a globalizaç ão- ernba- outros seus Orientais, ao repetir os 111 esmos Moharned Ruabhi (Vive la Prancef) demons- Gérars Noiriel, Histoire, Th éãtre, Potitique, Marseille:
novamente interculturais estereotrpos raciais, e tra que os espetáculos são às P·15 2 .
e exige um modelo sociopolítico-econô- listas. Talvez pudéssemos acrescentar hoje
mico de intercâmbio, Não sem ironia ou que a globalização, para o melhor e para o
cinismo, os argumentos de um Bharucha, pior, transforma cada vez mais os Orientais
que via na encenação do Mahabharata de em Ocidentais "globalízados', cuja origem
Brook "um trabalho especificamente desti- geográfica e cultural não conta mais.
nado ao mercado internacional', tornam-se - E-a respeito disso o que dizer da
os critérios reivindicados pela exploração do teatro? O teatro tornou-se tão globalizado
dos espetáculos "globalízados" 1)0 ponto que nele não distinguimos mais o Ocidente
de vista chinês ou coreano, uma tal situação do Oriente, nele o Orientalismo tornou-se
seria justamente ideal e conforme as inten - um Ocidentalismo e reciprocamente? Feliz-
ções da empresa teatral. Doravante, nos mente não chegamos nisso ainda!

216 217
Paisagem de maneira mais falar de fatores
etnológicos, midiáticos, tecnológicos) finan-
FI".: paysaçe, Ingl.: landscope; Al.: Londscbatt. ceiros e ideológicos. O fato) entretanto) de
ele ter escolhido redefini-Ios corno paisagens
A noção de paisagem, utilizada cada indica - além do efeito de moda - que não se
vez mais frequentemente nos estudos poderia atualmente definir de maneira está-
teatrais e "perforrnativos" assim como nas tica e fixa em
ciências humanas em geral 'd esd e os anos ção. A paisagem, com efeito)por sua natureza
1980, não testemunha tanto uma "virada terrestre (ou lunar» se presta à relatividade
espacial" em todas essas disciplinas do percurso e da trajetória do observador, a
quanto uma metáfora cômoda para seu volume variável, talvez também à beleza
sobrevoar e considerar do alto de longe dos pontos de
lr'1t:>.Cr-.O::l>l- ' ) ( ; ' ) de onde pode-
um fenômeno que consiste ern levar em mos admirá-la.
conta o ponto de vista sobre a paisagem Ocorre o mesmo nos performancestudies-
textual ou cênica. O passeante ora a desde os anos 1980. As paisagens são também
contempla em ressalto, ora, ao contrário, o objeto de estudos, não unicamente o land
evolui na obra, corno imerso nela. art, mas a forma de abordar U111 texto, uma
obra plástica e uma criação sonora.
Muito cedo) e como uma pioneira para
A rnetáfora ao rnesmo tempo espacial, dinâ- os textos literários e os perforrners-cenó -
mica e relativista da paisagem nos ajuda a tra- grafos) Gertrude Stein concebia suas peças
tar de objetos os mais diversos COIn a mesma como uma landscape play (peça-paisagem),
ligeireza aérea. UIn etnólogo especialista da ou como uma audio landscape (paisagem
economia globalizada e dos fluxos áudio» como textos em que o leitor é convi-
tórios como Arjun Appadurai propõe, por dado a passear com toda liberdade) portanto
exemplo, denominar as cinco dimensões das fora das sendas batidas e longe da estrada real
ondas culturais globais como: "a. Etnoscapes; de uma interpretação universaL
b. Midiascapes; c. Tecnoscapes; d. Finances- Para o autor dramático Michel Vinaver,
capes; e. Ideoscapes." Ele poderia, é certo, o "trabalho na escritura é ir para paisagens
Participação PatéUco/Pático

aplicada tudo que o leitor, o


ouvinte ou o sofrem, os
efeitos que o patos produz sobre ele.
"Pathé, Roland

o páthos, palavra grega para


perturbação, uma agitação interior,

220 221
Pele, Carne, 0550 Pele, Carne, 0550

quer dizer, daquilo que é experimentado car-


nalmente no dito." O pático «éuma defesa do
I Pele. Carne, Osso
Esse modelo ternário corresponde muta-
tis mutandis aos três estilos fundamentais do
e ossos não é idêntica à do corpo e da
alm.a, da matéria e do espírito, da forma e da
afeto na transmissão do sentido a partir do Fr.: peau,chair,os; Ingl.: skin, flesh, bone; AI.:Haut, jogo do ator ocidental: naturalista para a pele substância, do significante e do significado,
momento em que se está na cena das pul- F1eisch, Knochen. e o humano; realista para a carne e o animal; do visível e do invisível, da superfície e da
sões, do desejo e da partilha política" (p. 67). I abstrato para o osso e a máquina. profundidade. Ela é, sobretudo, a distinção
Essa partilha política deve ser p ática, mas 1. A ·L'.'-J .... A.-Jv .. .......... DA PELE daquilo que me toca ou me fala, da sensação
e tal é o sempre, segundo Mond- ou do conceito, da suave ou dos ossos
3. A DISTINÇÃO DE ZEAMI
zain - ela não exige UlTIa partilha da visão, ~A.. pele
nos protege do mundo exterior, marca rígidos. Com Zeami, essa oposição torna-se
"pois jamais uma pessoa verá o que a outra vê. a fronteira entre ' o indivíduo e o Inundo, ternária, mesmo quando se inclui aí a carne,
A distinção entre pele, carne e osso empres-
Não se partilha senão aquilo que não se vê"4. dei xa passar as influências externas e nos que faz o liame entre os ossos e a pele.
tada de Zeami, ator, autor e teórico japonês
Ver em conjunto um espetáculo, ou consi- conta as identidades do sexo, da idade, da É este modelo ternário e progressivo,
do nó, mostra -se igualmente útil para com-
derar uma questão em é, portanto, étn ica e social. Ela é porta aberta não dualista e dialético, que as análises e os
ar a tradição ocidental, desde que pro-
........ l:>D n r1
estar sernpre pronto a discuti-los, debatê-los para as nossas elTIOçÕeS, daí sua importân- espetáculos ocidentais adotaram com tanta
curemos distinguir vários níveis no corpo do
de maneira crítica, quer se trate de política cia no teatro. dificuldade, pois eles não escolheram, mui -
teatro e aprofundar a maneira pela qual per-
ou da avaliação de um espetáculo. Se é verdade que "o que há de mais pro- tas vezes, senão uma dimensão - a pele ou
cebemos a representação. Segundo Zeami,
Tal é o destino do pâthos: esperar a opi - fundo no homem é a p ele" (segundo Valéry os ossos -, fechando-se assim à mediaç ão
é preciso localizar, .n a prática de nossa arte,
nião do público, perguntar-se segundo quais em 1933) , esta pele não é somente da carne, esquecendo a escuta sensível da
os elementos pele, carne e osso: "chamarei de
vai decodificar as pai- a dos atores, qual nos é como que dada carne, da voz e da fala. .Mais delicado ainda,
osso a existência deumfundoínato e a rnani-
xões emitidas em. sua atenção para con- a ver e a sentir, é em geral mais a pele do mas, no entanto, indispensável, é a sugestão
festação dapotência inspirada que dá nas-
vencê-lo, seduzi-lo ou di verti lo. Mas «o esp et áculo, sua su p er fície, sua aparência, feita ao espectador-leitor para que aborde o
cimento espontâneo à habilidade. Chamarei
esbo roamento da partilh a d o COIT1Un1"5, de sua tex tur a·, seu estilo e sua arte da car í- objeto teatral com sua pele, sua carne, seus
de carne o aparecimento do estilo acabado
que falam Myriam Revault d 'A..I lonnes e cia-. Esse primeiro contato com a mise en os~os. A experi ência estética desse reencon-
que bebe sua força no estudo da dança e do
Marie-Ios é Mondzain, essa "frágil humani- sc éne fundante e fundamental: ele cons- tro entre a obra e o espectador é comparável
canto. Chamarei de uma
dade': se e reflete sobre a perda do p áthos, titui sua experiência sensível. Esse contato a um de sua pele, de sua carne e
que, desenvolvendo ainda esses elementos,
faculdade de int1uenciar o out.ro tanto quanto tem, toda via, necessidade, para durar e se de seus ossos. E uma questão de contato, de
atinge os ápices do desembaraço e da beleza".
de ser influenciado por ele, portantosobre o afirmar, de urn a estrutura sólida) de uma tato, de experiência sensível.
Se reportarmos esses três elementos às três
isolamento dos seres humanos, Daí os esfor - ossatura dramatúrgica. .A.. carne torna-se, faculdades da percepção, a saber, à vista, ao
ços do teatro e do jogo do ator para atingir e então, a m ediaç ão necessária'entre os ossos ouvido e ao espírito, a vista corresponderia
reconq 11.11Star o outro, mesmo que tenha de ea que vida, consistência e 5. DOIS TIPOS DE
à pele, o ouvido à carne e o ao
parodiá -lo, de zombar de seus excessos, de volume ao esp etáculo. O osso representa a força artística, a habi-
super-atuar e de super-significar, que são Tratar-se-á, pois, não de analisar em si o
lidade nata; a carne corresponde à me stria
outras ta ntas maneiras de tecer de novo laços objeto textual ou cênico - sempre isolado,
da recitação e da dança; a pele simboliza o '
entre os membros desta "frá gil humanidade"; 2. P ELE, CA RNE , OS SO e até inapreensível -, mas de pôr em con-
deSeITIbaraçoe a beleza da perforrnance..
tato duas peles, a do objeto estético que se
NOTAS
quando reúne as duas qualidades
Sem demais a metáfora, poder-se- fecha e se cobre de urna sensível, e a do
Rol and Barthes , I'Ancienne rh étorique: Aid e-m émoire, teso Além de uma progressão para a
Co mm unications, dez. 1970 , retomado em Oeuvres -ia dizer que o ator deve, no seu jogo, esco- espectador que se abre e se expõe ao perigo
ção, passando pelas três .etapas, osso, carne e
com pl etes, t. 2, Pari s: Seuil, 1994, p. 946 . lher um a atuação que seja "representar pele': no seu modo de percepção.
pele, deparamo-nos com uma teoria elaper-
G ille s De leuze, Francis Bacon : Log ique de la. sen sa -
"representar osso" ou "representar carne": cui- I-Iá no teatro duas percepções insepará-
tion, Paris: D e la Différence, 19 94, p. 31. cepção do espetáculo que se revela, ainda
dar das nuances psicológicas e epidérmicas, veis: uma percepção visual, isto é, óssea, dis-
1\1 1 ~rI P ._I( ·." :P M on dzain em Luc Boltanski et al., I.:As- hoje, urna preciosa fonte de inspiração para
th éãtrale, p. ser claro e esquemático como um escueíeto tanciada e geométrica, e uma percepção tátil,
os criadores e os espectadores.
Id em , Le Commerce des regards, Paris: Seuil, 2003 , ou encontrar a boa distância carnal entre figu- e até háptica-, ligada à apreensão pela mão e,
p.14°. em primeiro lugar, pela pele, esse posto avan-
Myr ia m Re vaul t d'Allonne s em Luc Bolt an ski et al.,
ração e abstração. Essa escolha de um nível
La R eprésentation tTravaux d e Iassociation Sans cible repercute sobre o corpo do espectador-, solici- 4. DE UM MODELO AO OUTRO çado do corpo. Assim, aberto ao outro, osso
2) , Paris: LAmandier, 2004, p. 94. tado CO!ll prioridade na sua epiderme, na sua contra osso na pior das hipóteses, ou pele
Idem, Fragile humanité, Paris: Aubier, 20 0 2 . Não se deveria , contudo, confundir a distinção contra pele na melhor das hipóteses, a obra
reflexão intelectual ou na síntese e na aliança
dos dois por meio da ' ' ' y .
japonesa e o modelo ocidental. A oposição da e seu receptor se situariam e se viveriam em

222 223
Performance
Percurso

um continuum. Haveria aí igualmente uma


continuidade, um contato ininterrupto entre
I
Percurso
francês, além de seu sentido atual de
rendimento, de façanha esportiva ou de
proeza comercial e econômica, limita-se
certeza, imaginar um teatro de marionetes
ou de objetos, mas sabemos que a ((perfor-
mance" foi preparada por seres humanos
autor, encenador, ator e espectador. Fr.: parcour s; lngl.: promenade performance; AI.:
A formação desta tríade pele-carne-osso pa rcours. àquilo que se denomina em francês (e em e não - em princípio! - por animais ou
pode vir a ser o fantasma criador de todos português) "a performance" (em inglês: máquinas que teriam, eles próprios, deci-
os participantes do espetáculo e dos espec- Fala-se em inglês de promenade performance art). Há aqui, pois, uma dido a encenação! A esse título, ela merece
tadores: dar a ver, a ouvir, a apreender uma performance. Em francês, dir-se-ia diferença radical que torna a comparação, a denominação de performance. Com efeito,
ação humana em todas as suas dimensões, antes parcours théâtral. Nesse tipo de entre o uso da palavra nas duas (três) é indispensável que o espectador- a quem se
desde sua concepção até suas últimas con- espetáculo, o público é convidado línguas, extremamente problemática, mas endereça o evento reconheça aí certa inten-
sequências; chegar ao espetáculo através a deambular por diferentes lugares, também estimulante, se quisermos de cionalidade e compreenda sua organização.
dessas camadas sucessivas de nosso corpo no interior e no exterior do teatro, fato refletir a seu respeito. Partamos do A arte performática não se limita ao tea-
e segundo nossos diferentes modos de per- convidam-no a assistir cenas em locais inglês, porquanto a noção francesa de "Ia tro, ela existe desde que o acontecimento
cepção. Quem não alimentou o fantasma ou diferentes, em pequenos grupos ou em performance" vem dessa palavra francesa. se dirija a um espectador ou seja recebido
a nostalgia de uma ação catártica, física el sua totalidade, guiado geralmente pelos (Pavis, La Mise en scéne contemporaine) por um observador. Tal é a definição, muito
ou mental, experimentada e concebida pelo atores, pelo pessoal do teatro ou por ampla, que Erwin Goffman dá em seu livro
autor, reenquadrada pelo encenador, levada a atores do espetáculo. Aplicada ao teatro, a performance é o fato de Frame Analysis: "Urna performance [.. ] é
cabo e revestida (mais do que revivida) pelo que uma ação é realizada pelo ator ou, de um um arranjo que transforma um indivíduo
ator c, finalrnente, acolhida tal qual por UIl1 Esta forma existe em numerosas variantes modomais por todos os meios da cena. em um performer para a cena, sendo esta
espectador para si mesmo? O puro movi- desde a Idade Média. Ela se renovou de um É ao mesmo tempo o processo de fabricação última, por sua vez, um objeto que pode ser
menta se transmitiria assim de um polo ao modo considerável nos anos 1970, notada- e o resultado final. Lá onde o vê uma olhado devido ao seu comportamento inte -
outro sem perda de energia. O espectador mente com o Bread and Puppet, o Odin 'Iea- imitação, urna re - presentação, o inglês insiste ressante por pessoas que desempenham o
remontaria através de suas diferentes per- tret e o Welfare State. A análise deve cada na realização de uma ação, e não apenas em papel de 'público?"
cepções até a fonte da encenação. vez avaliar a função estética e poética deste uma cena, mas no mundo.
Poder-se-ia analisar o trabalho do ator (e passeio. Esta ideia se reencontra na noção de per-
associados) e do espectador (e assimilados) Esse percurso-passeio difere do teatro de [ormance art (arte da perfomance): nesse 2. A ARTE DA PERFORMANCE

como a constante renegociação desta tríade rua, do teatro de intervenção- urbana e do gênero, surgido por volta dos anos 1960, o
de Zeami e de tudo o que ela representa. teatro criado em um lugar específico- (Site perjormeur, o "perforrnador", não desempe- No sentido estrito do termo, a arte perfor-
O resultado dessas trocas peleicarne/ osso é, specific performance). Quanto à land art, ela nha um papel, ele não imita nada, ITIaS rea- mática é uma prática que aparece nos Esta -
talvez, o que foi sentido e que se encarna no se aproxima da ideia de passeio e de cami- liza ações e é multas vezes o próprio objeto dos Unidos nos anos 1960, à margem muitas
tato: não somente o que vemos pelos olhos, nhada/rnarcha-: caminha-se na natureza, de sua presentação·, verbal ou gestual. vezes da "alta cultura'i.em reação a um tea-
ouvimos em nós e fora, apreendemos pelo individualmente ou em grupo, tendo sido o Para maior clareza, distinguiremos três tro de texto e de repertório que é sentido
espírito, mas também o que nos toca, nos objeto natural moldado por artistas paisa- sentidos da noção inglesa de perforn1ance, como estando pouco em harmonia com os
fala, nos prende. Isso implica, entretanto, gistas sensíveis à originalidade e à beleza das muito mais ampla que o termo francês e do novos tempos.
rever a maneira pela qual os criadores pro- formas, Livre está então o encenador para qual se vê muito bem a correspondência em Certos pesquisadores americanos distin-
cedem e pela qual os espectadores organizam reintroduzir uma fábula, textos ou uma mon- francês e em outras línguas: 1. A ação reali- gueln art performance e performance art'.
sua percepção: não mais como uma série de tagern sonora. O teatro não fica longe: logo zada' especialmente sobre a cena; 2. A arte A art performance vem do meio das artes
motivos ou de signos, de materiais e estrutu- ali, no fim da aleia. da performance a partir dos anos 19 6 0; 3· plásticas. Certos pintores e escultores sen-
ras, mas corno uma bricolagern de experiên- A noção, em linguística e em filosofia, de tiam-se constrangidos nas galerias e nos
cias sensíveis, que é igualmente tão delicado perforrnance!performatividade. museus. Seu movimento estava em revolta
associar quanto dissociar. contra uma abordagem essencialista da arte,
a de um Clement Greenberg, por exemplo: a
NOTA Performance 1. A PERFORMANCE:
pintura não é para eles uma essência, um sis-
Zeami, La Tradition secrête du Nó , Paris: Gallimard, É a realização de uma ação ou de um texto, tema puro e formal, mas, ao contrário, uma
1960, p. 147
Se o termo inglês performance se aplica é o acontecimento que daí resulta. A perfor- ação física, um traço-, uma pegada cuj a ori-
a toda ação, atividade, operação, a tudo mance ocorre live: ao mesmo tempo ao vivo gem é uma ação (como a actionpainting, por
aquilo que se pode executar, o termo e encarnada por seres vivos. Podemos, com exemplo), um acontecimento e o resultado

225
224
Performance Fílmica Performance Studies

de um fluxo (é assim pa ra o gênero do


happening: ou para a corrente Fluxus). Daí
I Performance Fílmica estéticas, ela se estende a todos os objetos
da vida social que possuem a menor
assegurado pelas diversas ciências humanas
às quais eles recorrem, nem sempre acon-
a recusa da especificidade de um médium, Fr.: performance17lmíque; Ingl.: 171m performance; relação com a idela de fazer,de realizar tece o mesmo no tocante aos performance
de um meio, e o desej o de sair do quadro
do gênero, de deixar entrar out ras práticas
I AI.:Fi/mperformance.

Quando em uma cena ou em qualquer


uma ação sob os olhos de um público,quer
este a olhe de perto ou de longe ou então
studies. Não que essas ciências percam ao
seu contato sua precisão, mas simplesmente
artísticas. Essa tendência das artes plásticas que a comunidade participe de tal ou tal porque a diversidade e a complexidade das
se reconhece na body art-, no teatro místico outro lugar os atores são filmados ao vivo acontecimento distraidamente. performances obrigam a cada vez multipli-
ontológico de Richard Foreman, nos concer- e sua imagem é retransmitida ao público, car e adaptar as ferramentas necessárias. Ora,
tos de rock e de poesia de Laurie Anderson, sem que eles sejam necessariamente Há alguma coisa de tautológico na nova poucos analistas dominam os instrumentos
nas performances punk, em performances visíveis "em carne e osso" fala-se de maneira de caracterizar uma disciplina ou da pesquisa em terrenos que lhes permane-
feministas muito provocantes. "performance fílmica": trata-se de fato de um campo opondo-lhe o termo muito vago cem estranhos. Ademais, ao passar de uma
l\. Performance A rt revolt a-se principal um filme que é mostrado, mas a ação é de studies (estudos), com o se a gente se con - obra estética a uma-pr ática antropológica,
mente contra o teatro de texto ou a ence- produzida e retransmitida ao vivo.Sob tentasse em constatar que as performances a perspectiva do observador muda radical-
nação pouco inovadora. Este ramo é muito sua forma extrema, nunca se vê os atores, são aquilo que pode ser estudado sob esse mente. A estética para o
mais conhecido na Europa e veio representar salvo na saudação final! nome. E quando Richard Schechner afirma nosso senso da beleza, de invençãoficcional,
o que se chamou na França, desde os anos que os performancestudies são "uma resposta da construção artística. Em compensação,
1960, "a performance" Esse gênero existe sob diversas formas desde a um mundo cada vez mais perforrnativo"; a "performance cultural" tcuuural perfor-
os anos 1990. Frank Castorf o na este truísmo não roça a tautologia? mance-), social ou antropológica, deve ser
Volksbühne. Muitas vezes a ideia é a de com- analisada segundo critério totalmente outro:
3. TEATR O / PERF O RIVIA NCE : pletar o trabalh o dos atores filmando-os de função social, eficácia simbólica, integração
AS GRANDES OPOSIÇÕES
muito perto, quando não são visíveis direta- 1. o OBJETO DOS PERFORMANCE STUDIES na vida cotidiana ou espiritual.
mente ou quando tentam escapar aos olhares Perigo das misturas? Entre o estético e o
A esse r esp eito, vale consultar as seguintes indiscretos. Em Nobody, a partir dos textos Por problemática que seja, esta etiqueta Per- antropológico, por exemplo entre oteatro e
entradas: de Falk Rich ter, Cyril Teste filma seus ato- formance Studiesguarda, no entanto, todo seu o ritual, tende-se a erigir um compartimento
res, que desempenham o papel de indivíduos interesse, pois reagrupa fenômenos sociaisque estanque. Com efeito, as coisas pareceln niti-
Estudos teatrais Perfomance Studies
despersonalizados de uma empresa contem- têm relação corn ações destinadas a serem damente marcadas: como poderia alguém
Estética Antropologia
porânea. A form a junta-se então ao propósito mostradas, ou antes "performadas" isto é, não se interessar por um ritual senão po r
Produto Processo
da peça. É isso o que tentam muitos encena- efetuadas por indivíduos ou grupos C0111 o motivos estéticos, sem participar nele ou ao
Representação Pre sentaç ão
dores, utilizando todas as mídias em função propósito de realizar visíveis, espeta- menos crer nisso? Haveria aí um sentido em
Mimese
de seu projeto estético e político. culares' na acepçãooriginal e neutra da pala- observar esse ritual preocupando-se apenas
Ausência Pr esença
Segundo as diretivas de Teste,a performance vra. Nesse conjunto aberto de performances, com as luzes ou com a cor das roupagens?
Discurso e texto Corpo
fílrnica é uma "forma teatral, perforrnativa, reagrupam-se uma.infinidade de coisas: ati- Assiste -se à missa por motivos estéticos?
Ator Per forrner
cmematozranca: "montada em tempo real,sob vidades artísticas, comportamentos e
Personagem Persona
os olhos do público"; "música e som devem ser cas sociais da vida cotidiana ou festiva, jogos
Simulador Estimulador
rnixados em tempo real"; ela "deve ser extraída (plays e games), rituais, cerimônias, esportes, 3. A GLOBALIZAÇÃOc IvIETODOLÓGICA
Encenação Produção
de um texto teatral ou de uma adaptação livre divertimentos populares, feiras, exposições,
Modernismo Pós -modernismo
de un1 texto teatral" . folclore, circo, music-hall etc. Há urna única Outro fenômeno-o da globalização da pes-
condição: essasperformances devem ser reali- quisa, embaralha as pistas. A estandardiza-
iV\arvin Carlson, Perform ance: A Critico!
zadas por pessoaspara outras pessoas, alguém , ção internacional das formas de teatro, tanto
-/ntroduction, London, Routled ge, 2004.
deve mostrar alguma coisa a alguém. quanto dos temas e das disciplinas, acarreta
Performance Studies um nivelamento de pesquisas e de m étodo-
NOTRS
Erwin Goffm an, Frame Analysis: An Essay on th e logias. As tradições teatrais, especialmente
Org ani z ation of Expe rience, New York: Harper and É impossível traduzir esta expressão anglo- 2. o MÉTODO extraeuropeias ou extra-americanas, ten-
ROW,19 74, 124 . (Trad. fran.: Les Cadres de lexp é-
rience, Minuit, 1991.) americana! "Estudos do espetáculo" deixa dern a se apagar sob o rolo compressor da
2 Noel Carrol, citado por Shepherd e Wallis, Drama/ escapar o essencial: a performance não se Diferença do objeto: Se os estudos teatrais têm pesquisa ocidental (essencialmente anglo-
Theatre Perform an ce, London: Routledge, 2004, p. 83. limitaaos espetáculos de palco, às obras uma longa tradição de rigor metodológico -americana): isso vai assim também tanto

226 227
Performance Studies Performance Studies

para as formas de jogo de atuação quanto mundialização da pesquisa, de uma inevi- Os pesquisadores-artistas refletem e teori- convidado, salvo a residir perma-
para as maneiras de abordá-las teoricamente. tável homogeneização? Não seria preciso zam sua obra quando muito concebida e con - nentemente na tribo analisada.
Convertida na línguafranca dos performance rever e passar em revista, visitar ou revisitar vertida em um objeto modificável tanto pelos O estudo dos ensaios, durante longo tempo
studies anglo-americanos, a metodologia as produções artísticas, mas também as teo- ensaios da prática quanto pelas hipérboles de negligenciado, não é por certo senão o ponto
ocidental se dá ao luxo de adotar uma ati- rias locais, quando estas ainda não desapa- leitura. Encontra-se assim verificada e pro - de partida da análise teatral ou etnológica.
tude pós-moderna- e pós-dramática- anti- receram por completo? Mesmo se esse olhar longada a vontade dos performance studies Os teóricos sabem muito bem que, tal como
teórica, de renunciar às globais sobre as riquezas locais se presta facilmente a de englobar teoria e prática graças à ferra- Gay McAuley, completam esta primeira etapa
de antanho, de calar suas reflexões políticas. uma acusação de neocolonialismo e de pater- menta performativa. pela análise do espetáculo e pelo estudo dos
Ela não é, aliás, a única culpada desse derro- nalismo? Os rehearsalstudies (estudos dos ensaios) públicos e dos espectadores. Implicitamente,
tismo teórico generalizado, pois as tradições tornaram-se, sob o impulso notadamente McAuley parece sugerir que se trata aí de
não europeias, notadamente japonesa, chi- de Gay McAuley e Sophie Proust', um ramo um ciclo, de um anel que liga as três princi-
nesa e coreana (portanto, dos asiáti- 4. REEXAME DA QUE8Tr\O OU CORRETIVO? importante dos estudos teatrais, do qual se etapas: ensaios, análise do espetáculo e
cos mais desenvolvidos economicamente), se espera agora as consequências teóricas para a estudo do espectador',
inspiram cada vez mais na dramaturgia euro- o império dos performance studies corre o antropologia e as cultural theories. Uma coisa A "virada performativa" dos anos 1960,
peia-am eri can a ocidental, na sua maneira risco de todos os impérios: estendendo-se já é clara: a atenção ao trabalho preparatório se quiser continuar seu caminho (linear),
de escrever e de encenar. Produziu-se, no a perder de vista, ele perde o controle de obriga a comparar o projeto e a realização, a deverá contar com outra virada, mais recente
curso dos dois últimos terços do século xx, sua política. Este império muito poderoso observar paralelamente, nas duas extremida- e inesgotável, uma "virada social" que nos
uma curiosa contradança: um lado, os oci- e é desde já transbordado por des da cadeia, a análise dos processos cria- revisar nossa concepção de performan-
dentais não juravam mais, desde Artaud ou todos os lados: a perforrnatividade tornou- tivos e dos mecanismos de recepção. Para a ces à luz da análise social e política. Com
Brecht, Mnouchkine, Grotowski ou Barba, -se o modelo teórico universal que engloba maioria das cultural performances, como as demasiada freqüência, os performance stu-
senão pelo teatro oriental, utilizando os prin- todos os funcionamentos humanos, tor- cerimônias ou os rituais, o observador não dies, por exemploos de Schechner, brilharam
cipais conceitos estéticos desses países asiá- nando a explicação e a análise individual poderia estar presente, no curso dos ensaios, por seu apoliticismo, sua recusa constrangida
ticos' o distanciamento, o koan ou o dos também um pouco mais pois eles não existem como tais, mas como em propor uma análise socioeconômica às
outro, em ritmos por certo diferen- difícil. Os performance studies reivindicam uma longa tradição de savoir-faire, de um performances culturais consideradas.
tes' os.países asiáticos não se interessavam sua interdisciplinaridade, proclamando ao saber fazer transmitido de uma geração a Esse positivismo, falsamente científico e
mais de fato por seus conceitos clássicos e mesmo tempo (Schechner, por exemplo) outra. O antropólogo não é um espectador, neutro; não se sustenta mais diante de um
importavam sem complexo uma dramatur- que não são unla disciplina. Ao se institu- porém, no melhor dos casos, um observador, mundo social que se tornou doido e mortí-
gia ocidental e um estilo de jogo teatral imi- cionalizar (na universidade, com os postos e até UIU testemunho engajado. Ao inclu í- fero para urna grande parte da humanidade.
tando o realismo europeu depois, desde eo acadêmico fim), ao organizar- -lo no processo criativo e a tea- é, ver se os performance
os anos 1970, retomavam por sua conta as -se (r-si: Performance Studies iniernational), trologia de inspiração antropológica nada studies serão capazes de se abrir a urna prá-
ideias interculturais. Longe de todo senti- eles se solidificam em uma ou várias disci- faz senão ratificar a hipótese de um circuito tica social: não simplesmente descobrindo
mento de culpa, corno outrora os ociden- plinas' corno antes do tempo de seu reagru- entre produção e recepção. Os etnólogos são e analisando sem cessar as novas as cultu-
tais, eles se põem a retrabalhar e a exportar, pamento estratégico. Cada estudo de caso convidados,a estabelecer laços com infor- ral performances, mas propondo uma aná -
eles mesmo, suas j aias culturais. Com muita recupera sua liberdade de associação, sua mantes; eles correm o risco, tornando-se lise política histórica dos objetos estudados,
ÁÁ "'-'-I.. entretanto, essa
4 .... ,J..L .... ,J...... ' não preferência por tal ou tal acom- participantes mais do que observadores, análise que concerne também ao público ao
avançava senl uma renúncia a uma teoriza- panhamento teórico. Os performance studies de perder o seu estatuto objetivo e cientí- qual elas se dirigem.
ção própria a esses diversos contextos cultu- não poderiam, portanto, ser substituídos por fico, de fundir-se com o objeto que eles se
rais. Ela se acompanhava de uma renúncia outra disciplina ou contrapostos com sucesso propõe perscrutar. Semelhante desventura NOTRS
às teorias "locais", e de uma fascinação pelos Richard Schechner, Performance Studies, London:
por uma nova metodologia, luas podem a pode acontecer aos teóricos absorvidos por Routledge, 2002, p. 4.
métodos, pelas inovações e pelas teorias oci- todo momento mudar em outro conjunto, seu objeto, infectados vírus da criação Pertormance Studies, Semiotics
l.V.L\.,\,JO, " u o,y.

dentais julgadas mais científicas e universais. em outro c!uster de disciplinas e de direções teatral, e perdidos para os estudos ... Essa Encyclop edia on <http://semi-
A teoria se submete facilmente aos valores oticon.COIT1/seo/P/performance.htm1>. Por Sophie
metodológicas, sem, aliás, engendrar para desventura, que é também a prova última Proust: La Direction dacteurs dans la mise en scêne
anglo-americanos, pós-modernos e agora às tanto teorias explicativas mais confiáveis. de seu engajamento, é, entretanto, mais rara théâtrale contemporaine, Vic la Gardiole: LEntre-
simplificações estandardizadas dos perfor- Uma mutação já concretizada em uma abor- e, sobretudo, menos angustiante, visto que ternps, 2006.
mance studies. Na hora da globalização eco- dagem teórica e prática seria a experiência de 3 Performance Studies, Semiotics Encyclopedia on Line,
o trânsfuga pode tornar-se um criador de
disponível em:
nômica e cultural, escapa-se ainda de uma practice as research como pesquisa-). pleno direito e não um etnólogo que não é forrnance.htm1>. em: 3 jul. 2017.

228 229
Performatividade Performatividade

Performatividade mas a todas as espécies de espetacula- sobre a representação teatral e social e sobre a devem ser reproduzidas. Podem
res' de encenações, de happeningss, de per- formação da identidade sexual pelas repetições elas sê-lo diferentemente? A performativi-
Fr.: performativité; Ingl.: performativity; formances no sentido inglês de "performance dos mesmos comportamentos. A performativi- dade é o processo que leva a reproduzir essas
AI.: Performativitdt. ar f: Aos quais se acrescem as cerimônias, dade permite ir além da questão das identidades normas de um modo subversivo". O teatro, e
as festas, os rituais, tudo o que uma cultura e da política da identidade sexual. singularmente o jogo do ator e da encenação,
L ORIGENS DA NOÇÃO pode produzir como manifestação, como [udith Butler - mais antropóloga do que retrabalha sem cessar suas normas, congelan -
exteriorização, em suma, corno "perforrna- teatróloga - concebe o gender como a repe- do-as pouco a pouco, antes de modificá-las e
a. Em Linguística tividade" Esta "perforrnatividade" é sempre tição de ações performativas estilizadas e variá-las. Por subversão, ele modifica as nor-
A performatividade se inscreve na teoria dos uma produção (também no sentido inglês visíveis à superfície do corpo, o que não é, mas, muda as identidades, converte-se em
performativos de John Langshaw Austin e de de mise en scênei, uma produtividade: a de entretanto, senão um efeito enganador de um terreno de ensaios para uma peça sem-
seu livro fundador How to Do Things With uma experiência, de uma situação de enun- urna substância interior estável: "Os atos, pre a ser encenada, a ser modificada; ele se
Words?l teoria dos atos de fala ...-1.",1".,..,........ ,........ aqui agora, de uma Não os eo o efeito de nas normas da identidade do
os enunciados constativos, que descrevem e se poderia estudar peças de teatro, nem tam- um núcleo interno ou de uma substância, oferecendo-lhe ao mesmo tempo um modelo
relacionam proposições, e os enunciados per- bém textos literários escritos, sem levar em mas produzem isso na superfície do corpo, de ensaio, de jogo e de experimentação mais
formativos, que efetuam uma ação pelo pró- conta sua possível performance cênica ou sua por meio do jogo de ausências significati- ou menos subversiva.
prio fato de serem enunciados: ao empregar leitura, sua adaptação, sua intertextualidade. vas que sugerem, mas não revelam j amais, o
um performativo, ao pronunciar uma palavra princípio organizador enquanto causa. Tais b. O Jogo do Ator e a Encenação
ou frase, faz-se o que eles dizem (Tsso, eu atos, gestos, jogadas, construí- ao modelo da do gender por
juro...': "Eu tomo você por testemunho ..." 2. A VIRADA PERFORMATIVA E OS dos, são performativos, no sentido de que meios definitivamente "teatrais': estamos, em
etc.). Desde os anos 1970, o conceito de per- DOMÍNIOS DA PERFORlVIATIVIDADE a essência ou a identidade que eles visam, troca, em melhores condições de compreen-
formatividade irrigou todas as práticas cul- sobretudo, exprimir são fabricaçõesmanu- der as convenções ocultas e explícitas do jogo
turais e as ciências humanas. Tanto as ciências humanas quanto as novas faturadas e sustentadas por signos corporais do ator e da mise en scéne. Tais convenções
experiências teatrais, com o aparecimento, e outros meios discursivos. O fato de que o são mais ou menos conscientes e reguladas.
b. Em Sociologia em 1\ ntrotrotooia
especialmente, nos 1960 e 1970, de "a Per- corpo sexuado é performativo sugere que ele A regulagern de todas as regula -
Na mesma época e paralelamente, o sociólogo formance" (Performance Art) , indicam uma não tem estatuto ontológico distinto dos dife- gens, é o resultado nunca definitivo do tra-
Erwin Goffman (The Presentation ofthe Selfin rnudança de paradigma, urna "virada perfor- rentes atos que constituem a sua realidade. " balho de todas as performances dos artistas
EverydayLife [1959], Stigma [1963], lnteraction mativa" A teoria dos atos de linguagem de Assim "fabricado': o gender seria, pois, o do espetáculo, quer estejam repertoriados ou
Ritual [1967J), se interessa pela maneira como Austin ou de Searle"é então estendida e apli- resultado de repetições de gestos e de com- estejam implicitamente na origem das ações
cada indivíduo se apresenta e se caracteriza cada outras humanas, realizadas pelo portamentos' de discursos e, e dos Todos e, portanto, não apenas
através de seu comportamento e de suas ações. fato de se dizer ou de se repetir gestos que se portanto, de atos performativos, que aca- o encenador, p õem em prática, testam uma
O antropólogo Milton Singer forja o conceito tornam uma segunda natureza. Os dom ínios bam por deixar traços na "superfície" do proposição, urna ideia, a fim de regular e des -
de CulturalPerformance- em seu estudo Tradi- da performatividade têm extensão infinita, corpo, no sentido de comportamentos que regular a representação, o que constitui pre-
tional India:Structure and Change (Filadélfia, pois a perfonnatividade torna-se quase sinô- se apresentam como fundados sobre uma cisamente a arte da encenação. Estendendo a
1 9 59 ), um conceito destinado a uma prodi- nima de "pôr em prática" essência interior, portanto invisível, secreta noção de performatividade considerada como
fortuna nos Studies: a par- Enumeremos alguns domínios das huma- e inalterável. O definido, determi- encenação a outros domínios da vida social,
tir do fim dos anos 1980. nidades e da vida social em que reinarn agora nado e reconhecido pela performatividade, compreende-se melhor, em compensaçâo. .o
a teoria da performatividade. Como a lista é como a regulagern pelo sujeito de seus fei- funcionamento da encenação teatral e espe-
c. Nos Estudos Culturais dos Espetáculos tacular. Os políticos, os empresários torna-
potencialmente ilim.itada, restringir-nos -e - tos e gestos, regulagem que lhe permite viver
Sob a influência de antropólogos como Mil- 1110S aos domínios próximos das artes per- em sociedade como esta exige dele e lhe ram-se .às vezes os expertos da mise en scêne
ton Singer ou Victor Turner, o objeto "tea- formativas e das impõe. Nosso comportamento "performa" aplicada à à enganação e à per-
tro", desde o momento que é observado (realiza e atualiza) diferentes convenções suasão dos mais diversos e crédulos públicos.
em outras culturas além da cultura euro- a. A Identidade do Gênero Sexuado sociais. Para J. Butler, "o gênero é um pro-
peia, muda consideravelmente de identi- (Gender, "Relações Sociais do Sexo'r) c. A Antropologia do Corpo e da
cesso, um devir perpétuo [... ] Nós somos
dade depois dos anos 1970. O interesse não Para as teorias feministas, a noção de performa- Corporeidade:
sempre profundamente formados, construí-
se dirige mais unicamente aos espetáculos, tividade é crucial, tanto mais, aliás, quanto esta dos pelas normas do gênero. Essas últimas Graças aos aportes de gender e _de cultural
ou ao teatro de texto com sua representação, noção deve muito às reflexões que elas fazem não são imóveis, fixadas; para serem eficazes, studies, o corpo humano e, especialmente,

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Performatividade Performatividade

o corpo do ator (do performer, dever-se-ia e. A Arte de Contar Histórias um automóvel. A performance está ligada, contraperformance: no esporte, na bolsa,
dizer!), é substituído no seu contexto cultu- O storytelling está em toda parte: do conto segundo ele, à eficácia? na escola, em nossa vida cotidiana. Nisso
ral e intercultural, segundo sua identidade para crianças à política, da explicação a um pode estar a dificuldade, de parte do leitor,
h. A Universidade do espectador ou do usuário de mídias, em
sexual, étnica, política, nacional, profissio- passante a fim de indicar-lhe o caminho à
nal etc. A perforrnatividade fornece um maneira de apresentar os resultados de um A universidade, interessada na performativi- decifrar correta e produtivamente o objeto
quadro teórico para seguir a maneira como problema de matemática. É uma maneira de dade, e até na performance, avalia segundo cultural com o qual são confrontados, de
o ator "performa', isto é, encarna (embodi- produzir e veicular conhecimentos. Não é o modelo anglo-americano a performance reconhecer o gesto performativo do autor, do
menti, mostra, reconstitui seus papéis, seja uma simples técnica narrativa para embele- de um professor, de um pesquisador ou de encenador ou do jornalista, de não apreen-
na realidade social ou no palco. A teoria zar as explicações, é urna técnica para pro-o um estudante. Ela quantifica suas pesquisas der em que processo eles estão engajados e
performativa aplicada à corporeidade per- duzir sentidos, para ser convincente e bem e renuncia assim ao trabalho de apreciar sua nos engajam,
mite ultrapassar a concepção semiológica ou compreendido. Saber contar uma história qualidade. Imitando os métodos da indús- cedo demais para julgar se a !-"I...-JL.l..V ............. \,A

sociopolítica (Gestüso ) do corpo dos atores e mesmo a partir de um texto abstrato ou tria, sucumbindo à cultura dos resultados, ela tividade constitui o remate e o cim o dos Per-
sociais e cênicos, concepção que tendia a enfadonho, não é tarefa do dramaturgo e do desconhece as regras da pesquisa em ciên- formance Studies, ou então se ela assinala o
reduzir o corpo a signos estáticos ou a este- encenador, dos atores em todo momento do cias humanas. A performatividade, é ver- começo do fim deles, ao propor ela mesma
reótipos sociais. A perfonnatividade enco- jogo teatral? dade, torna-se de bom grado quantitativa por uma epistemologia radicalmente nova. Pode-
raja uma abordagem antropológica do corpo, comodidade, mas a tarefa dos intelectuais é -se, entretanto, temer que se estendendo, de
interessa-se por sua vetorização, sua energia, f. A Retórica dos Discursos e o Controle dos a de opor-se a esta tendência propondo cri- maneira com frequênciametafórica, a todos
sua estilização e sua intensificação. Ela faci- - Ouvintes-Espectadores térios de avaliação qualitativa. os domínios da vida social e simbólica, ela
lita a avaliação dos afetos sensíveis sobre o A retórica é a arte de influenciar outrem, de corra o risco de perder sua coerência meto -
i. A Vida Cotidiana e Profissional
corpo do ator, e depois do espectador-. l\ cul- persuadir um auditório ou de comover um dológica, assim como
tura se presenta ou serepresenta pelos meios público. O performer (ator, orador, político, A vida cotidiana é cada vez mais submetida e os cultural studies perderam rapidamente
lúdicos ou mim éticos da performance como professor) estabelece uma relação de colabo- às normas amiúde implícitas, mas implacá- sua força teórica e analítica em favor de urna
um pôr à vista e em carne. veis' das "regras da vida em sociedade': Essas universalização de seu objeto.
ração ou de persuasão. Ele recorre às vezes a
regras cotidianas reagrupam o conjunto das
procedimentos de distensão cômica ou então
d. O Ritual performatividades próprias a todos os domí-
suscita descargas de afetos-. A perforrnativi-
Qualquerque ele seja: religioso, cerimonial dade retórica consiste eln avaliar os efeitos nios enumerados acima. Elas tornam-se uma 4. PERFORlvIATIVIDAD E E MIDIALIDADE:
ou cotidiano (trabalhos domésticos, preparo do discurso e das ações, de modo a melhor segunda natureza, um pouco como o gen- UM NOVO PONTO DE PARTIDA?
de um curso, técnica corporal para tornar dominar a sua produção. Tudo, no texto der segundo Iudith Butler ou o performance
uma ducha ou para cumprimentar uma corno no espetáculo, é concebido e fabricado principle de que falava outrora Herbert Mar- A performatividade parece ter invadido o
pessoa), o ritual exige nosso conhecimento na perspectiva das ações perfonnativas que cuse (em Eros e Civilização) ou a interpela- espaço de nossas vidas, seln que sequer nos
das regras da perforrnatividade. Observa-se eles não deixarão de suscitar. ção segundo Louis Althusser, tenhamos dado conta disso. Pouco o
as ações repetitivas e deduz-se daí o modo A vida profissional tira proveito, ela tam- que façamos, no que trabalhemos ou quando
de emprego para compreender o sentido; g. A Economia bérn, de uma clarificação das interações entre descansamos, nós "performamos" sempre
a gente se interessa mais pelo processo do Os expertos se referem sem cessar aos resul- as pessoas. A relação médico-doente ou pro- alguma coisa. Significa que, como se diz, nós
que pelo produto final, pela forma corno se tados mensur áveis, facilmente quantificáveis fessor-estudante ou patrão-empregado ganha agimos: realizamos ações pelo próprio fato de
fazem as coisas do que -p elas coisas em si. e amoedáveis. Trata-se, segundo a palavra e o com o fato de ser mais bem formalizada pelas dizer algumas palavras, de dar ordens, de pôr
Esta ritualização da vida social e do cOlnpor- livro de Jon McKenzie, "to perfonn or else'", ferramentas das teorias performativas apli- em movimento mecanismos, de organizar
tamento une-se àquela do processo de aqui- de "ser performante, senão..." A ameaça de cadas às relações de trabalho. projetos que comprometem nossa respon-
sição da identidade sexual segundo Butler. represálias mal é velada. Os indivíduos, mas sabilidade e a dos outros. O que vale para a
A rnise en scêne torna-se, ou volta a tornar- também os países e suas economias são ava- vida psíquica e social vale mais ainda para
-se, após seu aparecimento na época barroca, liados' notados, sancionados: o resultado e 3. OS LIMITES DA PERFORMATIVIDADE as ações performativas em um espetáculo:
a metáfora para descrever como se organiza o impacto sobre a bolsa e a vida socioeco- os atores) os que desempenham um papel
nossa vida em função de nossas origens, o nômica são imediatos. Desde La Condition Felizmente, a performance pode malograr e ou os que se apresentam eles próprios como
que não deixa de conduzir a certo determi- postmoderne, ]ean-François Lyotard subli- nem tudo se reduz a uma performance eco- performers, realizam ações simbólicas, atos
nismo e fatalismo, nhou o sentido econômico e técnico da per- nômica ou a uma perfonnatividade univer- reais ou simulados, rituais que se dirigem a
formance' quer se tratasse da bolsa ou de sal. A performance se converte às vezes em um público e que valem não só por aquilo

232 233
Performativo(Teatro) Poesia e Teatro

que representam e significam, mas tam- do teatro com a ação e as mídias, a fim de como na vida social. Iosette Féral, constatando "A poética, na origem, é a maneira como é
bém pela eficácia simbólica que revelam e melhor compreender o mundo em que vive - a justo título, "uma perfonnatividade que se preciso compor as histórias, se quisermos
pelo impacto que exercem sobre o público. mos e o universo artístico que se cria diante tornou hoje frequente na maior parte das cenas que a poesia seja perfeita:' (Aristóteles, Poé-
Os atores conhecem bem esse fen ômeno de de nós e conosco. Performatividade e mídia- teatrais ocidentais (Estados Unidos, Países Bai- tica, 1447a, 10-13) Trata-se, pois, da compo-
encarnação de suas ações e de suas palavras lidade nos acompanham cotidianamente. xos, Bélgica,Alemanha, Itália,Reino Unido, em sição e do funcionamento das obras segundo
no palco. Eles sabem que o importante não Resumamos. Quando falo, realizo mila- particular)': propõe o termo "teatro performa- diversos sistemas, gêneros etc. A poética é,
reside apenas na sua presença corporal que gres, porque agi sobre os outros e o mundo tívo" Poder-se-ia dizer tamb ém: performise ou desde a distinção de Paul Valéry, o estudo do
"perforrna" e executa uma ação concreta, sem que eles se dessem conta: é a performa- mise en per], isto é, pôr em performance (Pavis, processo da produção das obras.
porém na maneira como exprimem e encar- tividade. E como o mundo coloca entre ele e La Miseen scéne contemporaine). O importante
nós todos os tipos de e de mídias é avaliar a cada vez este oximoro que reagrupa b. A Poesia em Nossas Vidas
nam as palavras que atingem o público.
Essa perforrnatividade é acompanhada de destinadas a acelerar a sua marcha, os mila- .-teatro e performance. No sentido cotidiano da palavra, a poesia
outro fenômeno que parece não ter relação, gres se aceleram: trata-se da midialidade. ou o poético é "o sentimento que propor-
mas que também transformou nossas vidas: ciona uma percepção incomum e tocante
a midiatização das relações humanas, o uso NOTRS do mundo?', Essa percepção do mundo, além
Cambridge: Harvard University Pr ess, 1962. das formas literárias, esse sentimento de per-
generalizado de todas as espécies de mídias, Poesia e Teatro
Cf. [ohn Searle, Speech Acts: An Essay in the Philo-
não somente da escritura e da imprensa, tencimento ao mundo, a poesia nos torna
sophy of Language, Cambridge: Cambridge Univer-
porérn, cada vez mais, das m ídias audio - sity Press, 1969. receptivos a isso, ela nos convida a refletir a
Fr.: poésie et th éàtre: Ingl.: poetry and theatre;
visuais e do computador ern todas as suas Tal a tradução gender por M artine Delvaux e esse respeito. A poesia veio a significar não
AI.: Dichtung und Theater.
Michel Fournier, artigo "Rapports so ciaux du sexe' ,
formas. Todas essas mídias n ão são simples mais tanto uma forma ou um gênero literário
em Paul Aron; Denis Saint-Iacques, Alain Viala (éds .),
ferramentas, elas contribuem para uma reno- Le Dictionnaíre du litt éraire , Paris: PUF, 2002, p. 489. Difícil estada, a da poesia no palco. Queremos quanto a força lírica, o po ético, "o registro da
vação de nosso modo de pensar e de nossa Cf. [udith Butler, Gend er Trouble: Feminism and the fazer ouvir sala do teatro não é atenção ao inesperado do mundo" Cp.
Subversion of Identity, London: Routledge, 1990. Se conciliarmos a definição literária e a intui-
sensibilidade. Esta exposição às mídias pode Idem, Entretien: Le Fém inisme français m'a beaucoup um bom lugar: melhor seria uma sala de con-
causar medo, ela faz às vez es com que os in spirée; propos recueilli s pa r [u liette Cerf, Télérama , certo, corno para um recital. Mas é sempre ção existencial dapoesia, reencontraremos o
atores, os artistas e os espectadores tenham n. 3339, 11 jan. 2014, p. 8. Disp onível em : <http : / / estimulante enfrentar a poesia no teatro. Do lado inesperado, necessário, da emoção poé-
www.telerama.fr/>. Acesso em: 3 jul. 2 017· tica. É bem, com efeito, "a unidade indis-
receio ser eliminados dos Cf. 01' Else:From Discipline
teatro, espera-se o drama, a e não uma
dos corpos na cena. Mas a midialidade pode to Performanc e, Lond ón: 20 0 1. parada durante a qual se ouve textos, lidos ou sociável e quase sempre misteriosa, em um
igualmente enriquecer a presente situação _Cf. leaI1 ~ J.=:rançois Lyo ta rd , La Condition postmoderne, recit ados, mas-não dramatizados, não repre- discurso dado, da música, do sentido edo
espaçotemporal do teatro. Ela adiciona então Paris: Minuit, 1979 .
sentados e não integrados em ações; ou então, verdadeiro, donde nasce a emoção">. A poesia
à teatral - o encontro entre urn ator ao contrário, textos muito carregados seman- aquilo que de súbito faz sentido e consti-
e um espectador - toda urna pal eta de per- ticamente .e.amortalhados sob ações cênicas tui beleza para um sujeito, sem que ele possa
cepções novas, de experiências in éditas, de mim éticas seln maior interesse. separá-los, nele e fora dele.
extensões infinitas. Graça s a essa nova rela - É preciso distinguir cuidadosamente entre
PerformativD (Teatrol
ção com o mundo, a essa informatização de o «teatro poético" (a poesia corno ornamen-
2. A FUNÇÃO POÉTICA
nossas vidas, nossas existências concretas, Fr.: performatif (théâtre); Ingl.: performance; tação do diálogo, que não põe em causa a
que julgávamos isoladas, pe ssoais, inatingí- AI.:performatives Theater. forma dramática) e o "teatro -p o esia" (a a. Projeção
veis' assumem uma dimensão inesoerada. poesia como fator que coloca em questão o De um ponto de vista técnico é útil retor-
Para o teatro, não chegou ainda o A expressão "teatro perfonnativo" é às vezes diálogoe em crise o dramático). Concentrar- nar à "função poética" de [akobson, No
momento de se interrogar sobre suas poten- (raramente) ernpregada em franc ês no sentido -nos-enlOS nesse último aspecto. texto poético (ou na obra de arte), a fun-
cialidades e sobre o seu futuro, de sair de sua de performance, Ela se presta à confusão e vale- ção referencial é secundária, o texto fala de
torre de marfim, estreitamente nsicol óaica, ria mais distinguir e opor teatro e performance, um mundo imaginário e não se preocupa
e de se engajar, sem medo, mas sem ilusão, Essas duas noções referem-se a duas práticas 1. A POESIA, o POÉTICO senão com sua própria forma, de maneira
no mundo da midiação performante que se distintas: a encenação, resultante da tradição autorreflexiva. Para Iakobson, a função poé-
tornou nosso horizonte cotidiano? ocidental do teatro, remete à ideia de represen- a. Origem do Termo tica é uma das seis funções da linguagem, é
É sobre isso que deveríamos refletir con- tação cênica sob a direção de um encenador; Poético/ Poiésis: poesia vem de poeien: fabri - uma proj eção do princípio das equivalências
frontando as noções de perfonnatividade e a performance é um pôr em ação que assume car' produzir. Poiesis é a fabricação artesanal a partir do eixo vertical paradigmático da
de midialidade, tentando repensar as ligações todas as formas imagináveis, nos espetáculos de um objeto, depois de um texto literário. seleção sobre o eixo horizontal sintagmático

2311 235
Poesia e Teatro Poesia e Teatro

da combinatória. "Afunção poética projeta o e. Lírica muito «pós': faz com que coexistam estilos e sentido, no teatro, toda poesia torna-se uma
princípio de equivalência do eixo da seleção A lírica é uma subcategoria do poético, visto gêneros. O texto pós-moderno· ou pós-dra- "poesia de circunstância" (Gelegenheits-
sobre o eixo da combinaç ão." que a poesia é dramática, épica ou lírica. Só mático· é ipsofacto poético, autorreferencial, dichtung, dizia Goethe).
foi no século XIX, na Europa, que o lírico se híbrido, ele se faz notar por um uso livre de
b. Hipótese Sobre a Projeção materiais. Não há mais unidade sujeito-vo- c. O Retorno da Poesia
tornou sinônimo de O lírico não é
Coloquemos a de que esta prorecao, senão um dos aspectos da poesia. No caso do z-personagem. As vozes se embaralham, os
que está na da função seja poenla lírico, estamos, é verdade, nas sujeitos ultrapassam a consciência unificada histórico isso se situa, concepção cada
comparável à maneira pela qual a poesia se das ao mesmo tempo do relato e do drama. de uma única personagem. Atrás da máscara: época faz da poesia. A virada entre poesia
encontra, ela também, projetada no mundo O lirismo provém da expressão musical: a vozes e identidades mescladas. como gênero e a poesia como experiência
linear e cronológico da estrutura dramática. lira de Orfeu. Esta origem do lirismo se con- O teatro acusa desde sen1pre certa defa- individual lírica é o romantismo europeu
Com efeito, as figuras (metafóricas) equi- servou na expressão "teatro lírico': ou ópera: sagem teórica: no teatro se experimentou, (Baudelaire, Musset, Mickiewicz, Byron,
valentes , oriundas da intuição poética, são teatro da m úsica, da palavra e da cena. Na sobretudo, o relato, o storytelling, a estrutura Rimbaud) : o individuo reivindica, por exem -
projetadas sobre a estrutura linear (metoní- poesia lírica, o poeta fala em seu nome pes- neo- ou p ós-dramática, Em compensação, plo, em Baudelaire, o transitório e o fugaz
mica) do dramático, Doi s princípios coexis- soal, exprime suas próprias emoções. testou -se pouco o efeito da poesia no teatro' e da modernidade (((a modernidade é o tran-
tem, pois, no "teatro-poesia": a equivalência estudou -se pouco a narratividade da poesia, sitório' o fugaz, o contingente, a metade da
paradigmática metafórica e a contiguidade como se ela tivesse sido excluída, por essên- arte, cuja outra metade é eterna e imutável?"),
smtazmatica metonímica. 3. DA POESIA NO TEATRO cia e por princípio, da dramaturgia. Esta modernidade se na inven-
CONTElVIPORÂNEO
ção da scéne corno sistema, notada-
c. ou Intrusão elo Poético? b. A Poesia e Seu Duplo mente no simbolismo e no naturalismo, no fim
Aquilo que designamos corno ir rupção do A poesia aparece sempre ern conflito com do século XIX. Como o poema dramático e o
Deve-se tomar cuidado para não se confun-
poético é, antes, urna irrupção da fu n ção diversos adversários: 1. A prosa transparente, drama para ser lido transformaram -se em uma
dir o drama poético - cujo estilo, ou seja, cuja
poética, da artificialidade. Esta chegada a linguagem utilitária, transitiva, utilizada obra cênica homogênea, eles não suportam ser
escritura é inteiramente poética - e a poesia
da poesia no teatro é, muitas vezes, sen- mecanicamente como veículo utilitário; 2. perturbados pelairrupç ão do poético que irá
(os "efeitos de poesia") no teatro e nos textos
tida como uma intrusão, com o se ela fosse A tensão dramática; 3. O texto -argumento, desarranjar a homogeneidade da encenação.
dramáticos. Na França, não se escreve mais
contrária às leis do drama, ou como se o considerado como não public ável, «descartá- Mas com o pós-moderno, desde os anos
muitos dramas ou peças poéticas, julgadas
drama tivesse prioridade, ou não existisse ver: uma vez que serviria apenas para fabri - 1960, e o pós-dramático, a partir dos anos
tediosas, pois pouco dramáticas, porém o
senão como teatro "dramático" De outra car o espetáculo. 1970, a irrupção do poético no teatro tor-
poético está de volta nas peças e na drama-
parte, desde o século xx, tem -se a tend ên- Na dramaturgia, desde Koltes ou na -se a norma. O teatro recusa o edifício
turgia contemporânea. Por que esse
pensar que não deve nar- até Ion Fosse, ou Danan, demasiado liso da moderna,
pio
e menos ainda dramática, Mas esta a que aflora de tempos em tempos é "autorizada" A poesia torna-se sinônimo de
é apenas uma concepção recente, é o signo a. Ra zões Obj etivas? corno um dissolvente das estruturas dramáti- instantaneidade, desconstrução, subjetiva-
do triunfo, no século XI X , da poesia corno Há numerosas razões para esse reforço, e até cas rígidas. Ela apaga as estruturas dramáticas ção, ruptura. Deixamos de lado a concepção
lirismo. essa pressão da poesia. Trata-se, em pr imeiro dernasiado solidificadas, passa a outro tipo de modernista, romântica ou neorromântica,
lugar, de uma reação à estandardização da discurso, inventa às vezes uma nova estética: segundo a qual a poesia seria uma anti-
d. Razões da In trusão
língua sob efeito das mídias, da newspeak Pode acontecer tamb ém qu e, no caso de linguagem, ultrapassamos a ideia de que a
A chegada da poesia traz uma mudança de estruturas drarnáticas frac as, ainda não con- poesia "pretende ser uma antilinguagem" e
(n ovilí n g ua), essa linguagem sirnplificada
ritmo, no mais das vezes desacelera, às vezes geladas, a poesia introduzida no texto «gere de que "a poesia moderna se afirma sem-
imaginada por Orwell em 1984 para impe-
acelera, quando a formulação resume ou estrutura": não somente se estenda, mas pre como um assassinato da linguagem'".
dir todo pensamento crítico e subversivo.
anuncia longos desenvolvimentos ou expli- forme e imponha uma estrutura esnecinca Nós nos despedimos da concepção metafí-
A luta contra a linguagem drarná-
complicadas, amiúde uma concentra- e, portanto, que ela destrone a forma dramá- sica do poeta inspirado e palavra como
tica, novilíngua teatral. Trata-se também
dos sentidos, uma mudança do estatuto tica. Se, ao contrário, a estrutura dramática aquilo que vem de outros Não afir-
do fim da escritura absurda ou metafísica/
ficcional, uma mudança na percepção, por- (precedente à entrada da poesia) já é uma mamos mais que a poesia deve fazer a lingua-
concreta (de Beckett, por exemplo). Isso se
tanto um efeito de estranheza, de distancia- armadura sólida, a poesia não tornará seu gem com silêncio, ou dar a ouvir "u m a outra
explica ainda pela fadiga do realismo televi-
mento (a Verfremdungde Brecht), ou de pôr sentido senão nas "circunst âncias dadas" da voz" (Octavio Paz). Nem, aliás, o inverso,
sual. Talvez o público se canse, além disso,
enl evidência (foregrounding). situação dramática, as das personagens,as que preciso fazer silêncio com linguagem"
dos diálogos embaralhados à maneira da "é

dramaturgia de Vinaver. Uma nova estética, dó autor dramático ou do encenador. Nesse (Beckett). Tomamos distância da concepção

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Poesia e Teatro Poesia e Teatro

é O inconsciente que retoma, mas também Como a desde o fim do


o o irracional, tudo pouco narrativa e ela intervém sob a
o que os filósofos, Platão foi o se forma compacta do da
queixam de controlar. h::::> e de outros tantos
TlllfTllr.r:l't...

intensos, localizados.
4. POESIA
Constatou-se muitas
lidade de definir a
critérios puramente 0('1",.1""1-./","",,,

belecer somente
de um estudo de suas
Portanto, os .,,1->.<" .....
t

Paixões?

se fazem notar por c. Da Dramática


aparece sem Pós-Dramática
como um sopro de
........ ,...........<'""" ...,...... j:; ......... ,"", Nós, "Ocidentais" continuamos
de sexo. Com a sia como que invade a dramaturgta,

239
Política e Teatro Política e Teatro

o Tea- d. na sociedade

em si, mensagem
um corpo doutrinas diretamente
anncaveis. O espectador-
dramático ou o encenador,
1"nt'01'''t... V'O+''''""t......

cutem,coJITlPiletam

quer o
anos 1920
documentano dos anos
dá provas
desconnanca, Ele
demasiado abertamente militante Outras
obras que apresentem uma nova
Política e Teatro Política e Teatro

político. Elas se devem à nossa concepção a teoria das identidades e das diferenças, um consciência é solicitada por experiências de Para produções de certa amplitude, uma coo-
renovada da história e da política. Poucos dos mais belos florões do pós-moderno- e minipúblicos reunidos em um lugar ou um peração internacional se mostra indispen-
autores dramáticos esforçam -se nos dias de do pensamento globalizado, recalca a aná- squat (terra grilada), por ocasião de uma sável. Mesmo o teatro público, fortemente
hoje em dramatizar UlTI acontecimento polí- lise política. O cultural recalca o artístico. visita coletiva e noturna a uma enlpresa etc. subvencionado, tende a sucumbir às leis do
tico ou histórico reconstituindo seu embasa- O humanitário e as ONGS recalcam a política. A experiência é tão política quanto revela mercado. Deve-se, pois, procurar a forma
mento ideológico e socioeconômico. Isso se Percebe-se mal sobre quais mecanismos de os mecanismos de poder, de exclusão e de de rede, esta «forma intermediária, que não
explica pelo sentimento de que todo afresco poder ou de exploração repousam as respon- transgressão, lá onde, por exemplo, o capita- é a do estado todo-poderoso, nem a do mer-
histórico, todo balanço e toda explicação tor- sabilidades da política. A política politiquei- lismo deixou uma brecha na qual os excluí - cado todo-poderoso, na qual o teatro está
nam-se mui rapidarnente prescritos. Sofre- ra-" (para retomar uma de suas expressões dos podem por um instante se engolfar. preso'>. A maneira de trabalhar a organiza-
mos a tirania do "presentismo": visto que as favoritas na França), muito desacreditada, ção de competências e de poderes muda, ela
coisas só possuell1 importância no presente, é não ousa mais denunciar os mecanismos da g. Objeto da Política
também. Benoit Lambert vê no encenador
vão referir-se ao passado e antecipar o futuro. alienação e da luta de classes. Os estudos pós- Tanto na vida social como no teatro, o contemporâneo um empreendedor descen-
A história e, a atualidade têm dora- -coloniais- explicam o presente pelo que foi objeto da política mudou muito. Desde os trado ou deslocalizado, o equivalente do
vante a memória demasiado curta: "Com a a colonização e não encaram o futuro senão anos 1960, no Inundo ocidental, admite-se couch, do treinador, "da nova empresa capi-
ge:neralJZ,lçaLO da de fluxo e a montante pelo termo muito vago de "pós': Os estudos que a política não pertence unicamente ao talista?", Até .osistema da intermitência,
das mídias de injo contínua --televisão, rádio, sobre a globalização· se refugiam em consi- domínio público, mas também ao domínio que indeniza os profissionais do espetáculo
internet, twitter - a duração da vida da atua- derações econômicas e propõem raramente privado, na medida em que as identidades durante os momentos de preparação, tor-
lidade é cada vez mais curta, algumas horas, análises socioculturais. Eles querenl mui- individuais são influenciadas, e até consti- na-se um modo de resistir à desregulação
talvez alguns dias. É o reino do 'instantaneís- tas vezes fazer crer que tudo é globalmente tuídas' por todas as espécies de identidades generalizada e, neste sentido, a intermitência
mo':' 40 teatro em geral, o teatro políticoem idêntico e que toda resistência à globalização coletivas". Durante muito tempo consideradas se revela "uma forma de organização social
particular, tem difi culdade em reagir COlTI seria tão ingênua quanto inútil. como negativas, especialmente no modelo realmente inovadora, que corresponde por
a uma ao passo que dominante da identificação, na Europa pré- inteiro às novas exigências do capitalismo,
outras mídias (televisão, rádio, imprensa via f Reconstrução do Liame Social -fascista e fascista dos anos 1920 e 1930, as como a mobilidade, a flexibilidade etc., mas
"'J ou outros
.l.l.lI."-.lÁ.l .... (slam, chanson - A tendência da época é mais para uma "pipo- emoções não são maiscriticadas de maneira °
que impõe aos .empresários pagar preço
niers '- compositores e cantores de música lização" (do inglês, people, povo), uma expo- sistemática e por princípio como sendo disso" (p. 12).
popular -- rap) podem fazê-lo instantanea- sição à luz do dia da vida privada dos stars, necessariamente negativas, e até reacioná- Todas essas mudanças sociopolíticas expli-
mente. O teatro passa ainda por todo um dos astros, e dos políticos, do que para uma rias. Elas têm de novo direito de cidadania cam o aparecimento de formas novas do tea -
circuito da escritura, da leitura pública, da politização e uma análise da vida pública. em nossos palcos, mas se tornam doravante tro político.
publicação, da encenação e da críticadra- Esse enfraquecimento do político não sig- objeto de uma análise de efeitos produzidos
mática. nifica' todavia, seu desaparecimento. Cons- sobre os espectadores, de uma "política" de
tata-se mesmo, desde o início do milênio e afetos· e de paixões, de "um tratamento de 3. ALGUMAS FORMAS NOVAS
e. Eniraouecimento do Político
das crises financeiras mundiais, uma volta --- paixões intratáveis, tratamento de afetos
Consequência desta mem ória curta, a vida da questão social ao debate público, o que indefinidamente renovado, indefinidamente Essas novas formas evitam frequentemente
política, desde o s anos 1970, conhece, por certo não restitui ao teatro sua força retomado'", o termo "política", corno se ele tivesse se
segundo os sociólogos, um «en fr aq ueci- política dos anos 1960, mas reaviva o desejo tornado pejorativo, e até sinônimo de tea-
mento do político sob a democracia cultural". de reconstruir para o seu público um liame h. A Política na Maneira de Fazer Teatro tro de propaganda. Baz Kershaw prefere o
Segundo Alain Brossat, "se tudo é suscetível social e um senso da comunidade. Talvez A política não é sornente um tema que o tea- de "radical': mas ele duvida, no entanto, dos
de tornar-se nada mais o é. polí- também se estej a sentindo as primícias de tro trata sugerindo Ulna alternativa à rea- poderes políticos do teatro ccntemporâneo".
tica e a cultura não são mais do que sub- uma vontade das pessoas de tornar em mãos lidade presente) convidando o público a Lehmann vai ainda mais longe, porquanto ele
".~
.... de noções vagas como a vida, o
.... ;;.,,'V'.L,L ...L'-' seu destino, de não mais suportar tudo ou mudar seu ponto de vista sobre o mundo, não vê o futuro do teatro político senão no
vivenciado, a sensa ção" Ou ainda: "A polí- de esperar tudo da coletividade e do Estado, e até a mudar esse mundo. Ela se exprime abandono da significação e na destituição das
tica terá balançado no ar o regime geral da de moldar o Estado em função de suas novas igualmente na maneira de criar e produzir categorias tradicionais do político, em favor
vida ..." (p. 54). A referência ininterrupta à necessidades. Assim, os laços sociais ou hie- o teatro em um mundo globalizado e desre - de uma "política da percepção" (Politik der
cultura e ao in terc ultural revela no fundo rárquicos não entravarão mais as iniciativas gulamentado. Wahrnehmung) aliada a uma "estética da res-
uma recusa de colocar os problemas em ter- e as necessidades pessoais, não impedirão O trabalho artístico não escapa às muta- pons-abilidade" (Aesthetik der Ver-antwor-
mos sociopolíticos e uma série de recalques: mais a tomada de consciência política. Esta ções de urna economia neoliberal globalizada. tung)". Segundo Lehmann, é somente nessa

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243
Política e Teatro Política e Teatro

condição que o teatro poderá continuar a universo dramático e político por meio de autobiográfico e à performance, indo mais mais concreto e direto possível, o que cons-
ser pol ítico". citações autênticas. A montagem textual é, até o excesso e à derrisão do que a uma crí- titui uma outra e nova categoria de teatro
Destituir as categorias do político não pois, sempre confrontada e contrastada com tica social ou política, julgada provavelmente íntimo e pessoal.
pode estar, entretanto, ao alcance de todos os o jogo teatral e com a encenação. Os ingle- muito surnária. Essas ações políticas podem se Esse coletivo é amiúde cindido, deslocado:
artistas. Constata-se, aliás, que muitas formas ses falam de [action, mistura de facts e de efetuar a partir da adaptação de obras clássi- a totalidade do grupo não trabalha necessa-
de espetáculos e até .LJ.'""v!-"V.LJ.I..J..... v " , ·confirm an d o que a exposição cas: assim Oliver Frljic se refere às Bacantes de riamente ao mesmo tempo, eles intervêm em
1",r.I/"'11',."""'~ e às
...... renovam os tiva e documentária de fatos requer sempre .. -'~ ,~\J para protestar contra a tortura dos
........I-" ......... momentos distintos, são submetidos a novas
tradicionais do teatro político. uma história, uma ficção, uma dramaturgia. prisioneiros políticos sérvios e muçulmanos obrigações do trabalho flexível, intermitente,
Limitar-nos-emos a enumerar alguns, sem É evidente por si que esse gênero não é neces - no campo de Lora em Split. Elas podem igual- globalizado e «exteriorizado': Essa equipe não
prejudicar outros menos conhecidos ou ainda sariamente político, e ainda menos crítico mente emanar de grupos marginais, os dos se torna um coletivo artístico ou um coletivo
a serem inventados: ou artístico. Corno para todo documentário, corais de amadores, e até de grupos políticos. de enunciação a não ser que todos - artí-
() teatro popular», pós-brechtiano ou (na tudo depende da apresentação, do discurso O teatro milita nte e o retorno do coletivo: fices, artistas, técnicos, intérpretes, perfcr-
França) pós-vilariano, não existe mais sob implícito do autor e depois do encenador. sob a forma de uma crítica radical, ligada a mers - trabalhem no interesse da obra em
a forma militante e otimista dos anos 1950, Entre as numerosas criações do verbatim grupos políticos ou sindicais, o teatro mili - constante evolução.
mas sobrevive nas encenações dos clássicos: theatrecitemos: The Permanent Way, de David tante praticamente desapareceu da paisagem, Uma nova utilização da dramaturgia: gra-
estas possuenl, com efeito, a possibilidade de Hare; Talking to Terrorists, de Robin Soans; ao menos europeia ou norte-americana. E, ças a esse trabalho de equipe cria-se um novo
aclarar, C0111 a de alguns Pires in the River, de Anna Deweare Smith; Le no entanto, grupos, muitas vezes de tipo de dramaturgia-: não mais a de um dra-
PO:Slç()eS . . ..... ,~'-J' s. de grupos ou de
'-'.;;:;...J. .... (.jL" 11 .20 0 1 , de Michel Vinaver. res, dessa forma, C01no maturgo individual de
indivíduos, de transpor situações dramáti- militante: esta forma vai alénl América Latiria o Teatro de Arena de Baal, na leitura e na encenação de um texto ou na
cas ern UHl contexto equivalente e rnelhor do Verbatim ou do documentário, pois ela não mais no espírito do agit-prop, mas como elaboração de uma performance a ser rea-
conhecido do público não espe cialista. Esse se propõe a urna verdadeira -intervenção- uma nova escritura e urna encenação aberta lizada' mas a de um novo contexto político
modo de interpretação con tin ua sendo a urbana, a urna ação política. Trata-se de uma que confronta a experiência pessoal do s indi - em que o dramaturgo se torna logo um tra-
fórmula mais frequente do teatro crítico e mistura de arte perforrnática, de happening-, _ _ duos e do jogo cênico. Isso se m anife sta
--'V<--Lí...... balhador social, um ativista, um diretor de
político, j\ politi zação seria rapidamente per- de ação de rua e de ficção teatral. A ação quer ami úde no retorno do col etivo. Não m ais projeto, uInjacilitafor (animador, catalisa-
cebidapelo público contemporâneo C0111,0 ser militante, ativista, às vezes sindicalista, no modelo da criação coletiva do s anos dor) quando não um curador, um comissá-
simplificadora, e até simplista. Daí por qu e politizad a e não simples representação tea- 1960, ou do coletivo drarnatúrgico alem ão, rio de exposição.
a encenação ou a escritura dramática tornam tral ou performance, Da ação poética sobre corno na Schaubühne dos anos 1970) por ém, A autobiografia- mesclada a considerações
de nã o martelar demasiado suas o Garcia Wehbi'") a Uln ati- mais modestamente, a dos grupos gerais da vida social renova tanto a perfor-
deixar o ou vismo só utiliza o para melhor reflexão de alguns atores ou artis tas mance dos anos 1960 quanto
encontrar sozinho uma possível de fazer sua 111ensageln, todas as nuan- as novas condições de atividade. análise mais objetiva de uma situação social
mascarar as conclusões nas form as comple- ces são consideradas. A ação política mili- na França, o coletivo LAvantage du doute, por meio do documento ou da ficção. Guil-
xas e estéticas que o espectador terá prazer tante é ambígua: serniteatral, ela está baseada refletiu sobre a herança de 1968 e 'seus ecos lermo Gómez- Pena é o representante mais
em descobrir. na ficção; semiperformativa, ela repousa na longínquos (em Tout ce qui reste de la révo- conhecido e incisivo desse gênero misto. Seus
O verbatim theatre é aforrna mais recente, resolução de ações reais. Ela se presta bem lution, cest Simon). Eles se interessam pel a esquetes partem muitas vezes de sua situação
na Grã-Bretanha e no Inundo anglófono, do às intervenções pol ítico-midi áticas dos anos política por meio de enquetes, leituras, rela- d e [ronterizo, de cidadão da fronteira" entre
teatro do cumentário dos anos 1950 (conhe- 2000 . Foi lançada, na Alemanha, pelas ações tórios de expertos, às vezes chamados para México e Estados Unidos, de messagerinfa-
cido tamb ém, ali, sob a forma do theatre of de Christoph Schlingensief (1960-2010): testemunhar ao vivo, e de discussões com o tigável entre duas culturas e dois estilos de
fact) e dos anos 1960, notadamente na Ale - Passion Impossible: 7 Tage Notrujfür Deuts- público: outras tantas tarefas outrora reserva - vida. Uma tendência se desenha na Europa
manha. Ele utiliza as histórias e as palavras chland» Bitte liebt Õsterreiclt (2000). das ao dramaturgo ou ao conselheiro literá- e cada vez mais no mundo inteiro (América
de pessoas reais, citando-as ou colocando-se Sob mais classicamente teatrais con- rio ou artístico. Na Grã-Bretanha, o método Latina, Coreia do Sul, que vê artis-
na dos atores a de evocar uma situa- tidas edifícios teatrais, as encenações de de trabalho do devised theatre preenche tas contar o Inundo de seu ponto de vista,
ção histórica real. Não se trata, entretanto, Rimini Protokoll (Deutschland 2; KarllvIarx: função eminentemente política, uma vez que levar continuamente a situação individual a
de reconstituir esta situação corno uma peça Band Eins;Cal!Cutta) operaln a mesma con- o conjunto dos artistas participa de todas as um estado do mundo, e inversamente; Um
histórica o faria, mas de recorrer a um mate- frontação de situações reais e de teatralização etapas do projeto. Os atores-autores desse exemplo recente, que confrontava três atores
rial real e bruto, de "desviá-lo" de maneira irônica. Os mon ólogos e diálogos «furiosos"·_-- grupo misturam documento e autobiogra- e seus verdadeiros pais: Das Testament, pelo
irônica ou teatralizada, de reconstruir um de René Polesch pertencem antes ao gênero fia para falar de sua vida cotidiana do modo grupo alemão She She Pot.

245
Política e Teatro Política e Teatro

Coralidade: a volta do coro na escritura e ele se dirige ao «não público" dos que não vão 4. o FUTURO DO TEATRO POLÍTICO deformação, de maneira indiscutível, evi-
na encenação contemporâneas é um fenô- ao teatro, reencontrando-os nos lugares não dente e transparente. E, de fato, no teatro,
meno internacional que não deixa de espan- previstos pelo teatro, corno uma escola, urn Poderíamos citar muitos outros exemplos e a política nunca é dada ou acessível corno
tar. Como se explica isso? A função do coro centro cultural, Ul11 local de encontro para alongar ao infinito a lista de tipos de teatro uma mensagem transparente e unívoca. Ela
não é mais si.mplesmente, como na tragé- a comunidade, uma prisão, uma aldeia afas- político contemporâneo. Esse gênero inventa se mescla ao material dramático e cênico.
dia grega, a de comentar e de uma tada das cidades. Três domínios conheceram, sem cessar novas fórmulas, e novos disfar- Ela joga com a ficção do teatro. Ela não se
conclusão, segundo uma voz autorizada, desde os anosiçso, um crescimento conside- ces, como se a multiplicação e a diversifi- reduz, exceto no agit-prop ou no teatro de
a do autor, ou do coreuta encarregado de rável: o teatro da comunidade· (community cação das formas fossem necessárias a sua propaganda besta, a uma mensagem direta.
sublinhar uma mensagem moral ou política. o teatro para a educação (1heater in sobrevivência. Na realidade, trata-se menos Os afetos dos artistas como os dos especta-
O que se tem aí é, sobretudo, o signo de urna Education); o teatro de participação- (Partici- de uma multiplicação de formas do que de dores deformam, mas também revivificam e
"utop ia da comunidade" (segundo o encena- patory Theateri; mais recentemente, o teatro uma invenção permanente de maneiras de retrabalham a mensagem, tornando-a con-
dor Heinar Schleef). A palavra individual é para o desenvolvimento Deve- fazer política. Esta está em busca trarntona, porem mais rica'>. Por a
marcada pelo conjunto dos protagonistas, lopmenti. Este últim o ramo tomou grande de novas formas de intervenção·. política está ligada ao conflito, à luta) às rela-
mas também pela visualização, a instalação amplitude sob a ação das organizações não Com a crise econômica e financeira mun- ções de força e não ao consenso, ao qual a
virtual, na cena, da comunidade dos espec- governamentais, COIn o fito de sensibilizar, dial' o teatro político reencontra um lugar de ideologia neoliberal e globalizada gostaria de
tadores, de seu olhar coletivo, de seu desej o pelo jogo dramático e pelo teatro, uma popu- relevo. Segundo o encenador Thomas Oster- reduzi-la. É procurando novas formas polí-
de se reencontrar como grupo por meio das 1ação rnuitas vezes analfabeta sobre questões meier, saímos da fase do pós-dramático e ticas paradoxais, sem fugir ao conflito e aos
personagens e das forças éticas ou morais de saúde pública (luta contra AIDS, controle retornamos ao terreno dos conflitos políti- problemas a resolver, que o teatro político
que elas representam. Através de soluções de natalidad e, nutrição). É evidente por si cos: «(O p ós-dramático, esta estética dispersa, conserva sua força de convicção) seu inte-
técnicas e o trabalho con1 o que esta intervenção nunca é neutra, que ela -f ragn1en tad a, era UITl eco do período domi- resse, sua contradição, preserva seu futuro,
coro testa "as diferentes maneiras teatrais se situa selnpreem um contexto público e nado pelo fim da História, do esgotamento e o nosso.
de partilhar uma palavra e, transitivamente, político) contexto que os governos, as ONGS, do sonho revolucionário. Com-a crise; os
de questionar o estar em. . Nesse os artistas-ou os anirnadores se por can1pos políticos tornam-se mais marcados. NOTRS
Lue Boltanski em Lu c Boltanski et al., EAssembl ée
sentido, a coralidade estabelece a relação do controlar, ao ajudar os amadores no processo I-Iá um retorno de lutas e de contradições th éãtrale, p. 13".
indivíduo COIll o grupo, ou do poder de Ull1 da escritura) do relato e do jogo de atuação. sociais:' (Le Monde) 20 jul. 2012). A volta do 2 Patrice Pavis, Staging Calarnity: Mise -en-scene and
sobre o outro, e ela inscreve as relações de A tarefa desses animadores muito delicada político ao teatro acarreta uma restauração Performance Avignon 2005, em Linda Ben-Zvi,
da representação, damimese, mas também Tra eyC. Davis (ed s.), Considering Calamity: Methods
força na imagem de urna comunidade a ser em um contexto cultural e político que não é, ofPerfo rmance Research, Tel Aviv University: Assaph
instalada politicamente na cena do teatro e muitasvezes.toseu.:e que conduz, às vezes, a do relato e das personagens: é o que se pode Books, 200 7, p. 13 -38.
do Inundo. Às vezes o encenador, como é o fraca ssos, e até a excessos trágicos. observar depois do pós-dramático, C01TIOem Luk ács, Realism in Ba lan ce, em Erns t Bloch
e t al., an d Politi cs, London /Ne w York:
caso de Volker L õsch , trabalha corn grupos Travessiadas fr onteiras: no caso do Teatro Chapitres de la chute: Suga des Lehman bro-
Vers o, 2010 .
de cidadãos ou de desempregados, dirigiu- para o Desenvolvimento tTheatre [or Deve- thers, de Stefano Massine (2013). D eni s lvIuzet, Le Monde, mai 2010 , p. 20.
do-sediretamenteão público: a intervenção lopmenti, imagina-se com facilidade que o O cidadão não renunciou ao pensamento Alain Brossat, D émocratie cultu relle: Le Grand dego üt
política assume então lugar da ficção teatral. animador, mas também os atores e, depois, político, corno se afirma muitas vezes. Ele cultu rel, Pari s: Seuil, 2008 , p. 2 0 8 .
O teatro outros exem- seus são obrigados incessante- simplesmente se tornou mais cético, mais 6 No na au sência d e um termo
vernacular perte ítamente compatível, optou- se pelo
plos, tomados de empréstimo sobretudo mente a passar todos os tipos de fronteiras: exigente, mas também mais ambívalente termo pejorativo , acepç ão também presente no vocá-
do modelo anglo-arnericano, situam-se na entre sua cultura e a do s outros, entre as fron - em relação ao papel da política: de um lado, bulo fran cês. (N . da 1.)
órbita do theater: um teatro apli- teiras sociais, sexuais, profissio- ele não crê na eficácia da crítica política na Cf. Er ic Fassin, Outre Sc éne, n. 11 , p. 9 .
Myriam Revault d'Allones, op. cit. , p. 7 8.
cado a mil atividades, quase sempre ativi- nais, entre as identidades de todas as espécies. arte; de outro, exige que o teatro faça urna
9 Lue Bolt ans ki, op. cit., p. 12 .
dades sociais, UJn teatro que é o veículo de 'VIn gênero novo , do qual G. Gómez-Pena é o crítica radical, clara e nítida das situações. 10 Benoit Lambert em Lue Boltanski et al., L'Assemblée
uma intervenção crítica, social e política. melhor representante, consiste em situar uma No entanto, como assinala Myriam Revault th éãtrale, n.
Para retornar o jogo de palavras de Prenkti peça ou estilo de jogo a cavalo sobre tais fron- d'Alonnes, "a ideia da transparência é o con - 11 Cf. Baz Kersha w, The Radical in Performa nce, Lon -
don: Routledge, 1999 .
e Preston: esse teatro está "ligado a outras teiras, ern conformidade com a tendência da trário daquilo que constitui o próprio do
12 Hans-Thie s Lehmann, Postdramatisches Theat er,
atividades como um curativo poderia estar globalização em passar as fronteiras a fim de político, isto é, de sua fenomenalidade: o fato p ·471.
aplicado sobre um ferimento?" melhor comerciar livremente e fazer trabalhar de que o político se desdobra e se desenrola 13 Ibidem, p. 179. "Enquanto ab er tura do m odo op e-
O teatro aplicado se distingue do teatro os migrantes de um lugar a outro, àmercê das no aparecer?". De um modo claro : não pode- ratório logocêntrico, no qual p redomina a identifi-
cação, em proveito de uma prática que não teme o
profissional, comercial ou experimental, pois necessidades e das deslocalizações. ria haver aí um teatro que diga tudo, sem abandono da fun ção de sign ificação, sua interrupção

246 247
Popular Pós-Colonial

e sua suspensão, o teatro pode ser polí tico . Esta tese chamado às vezes de teatro antropológico, O espetáculo globalizado é o produto da cul- depois aos mass medias e à indústria cultu-
contém o paradoxo, que não é senã o aparente, de que
o teatro é político, na medida em que interrompe e
um teatro amiúde dirigido ou redirigido por tura de massa industrializada e exportado ral globalizada, e por fim, em um processo
destitui, ele pr óprio, também, as categorias do polí - intelectuais ou artistas desses países (México, em todo o globo. Ele não é em nada uma último de abstração, a uma economia des-
tico, em ve z de apostar em novas leis, por melhor Peru, por exemplo). cultura popular, mas se nutre dela, inclusive materializada, a uma fluidez de capitais, a
intencionadas qu e elas sejam:'
O teatro popular dos anos 1950 e 1960, na das tradições e dos teatros populares tradi- uma evanescência dos corpos tangíveis de
14
Europa especialmente, França, é o her- cionais. Ele retrabalha e mescla diferentes outrora.
deiro, e o modelo um pouco fantasmático, Iinauazens, diversos níveis culturais, do mais
sociodrama
sociológico e didático. [. . .] Prefiro como dessa cultura popular. Com efeito, seus artis- vulgar e comum ao mais refinado e elitista. NOTRS
Iohn Fiske, Popular Culture, em Frank Lentricchia;
uma ação po ética que espera p ela normalidade da tas e animadores dirigem-se a uma popula- Ele os submete à comercialização mais ren- Thornas McLaughlin (ed s.), Criticai Terms [orLiie-
vida cotidian a:'
ção recrutada nas classes menos favorecidas, tável e melhor adaptada aos novos clientes rary Study, Chic ago: lhe University of Chicago Press,
1S Ver a an álise de Jorg von Brincken ; Andreas Englhart.:
um público cuja educação dr amática, estética 1995, p. 3 3 1.
Einfiihrung in die moderne Theaterwissenschaft, globalizados. Mais do que nunca se percebe
2 Patri ce Pavis, La.Parodie dans le Kspop, Criticai Sta-
D arrnstadt: W issenschaftlich e Bu chg esellsc baft, e polític a é o objetivo último da atividade tea- o antagonism o irredutível entre urna arte ou ges, n . 6, 2012. Disponív el em: <h t tp.V/ www.criti-
2 0 0 8 , p. 13 2 - 14 °.
traL Esta forma de escritura, de jogo de atua- um artesanato popular, oriunda do povo (de cal-s tages.org/> . Retomado em P. Pavis, Performing
16 Iean-Loup Riviere, Comment est ia n uiii, Paris:
ção ou de encenação e de política cultural outrora), e um consumo de massa, global- Korea, London: Palgrave Macrnillan, 2016.
LArche, 200 2 , p. 4 0 .
1] Tim Prentki; Sheila Preston (ed s.), lh e App lied Thea - praticamente desapareceu na Europ a, com mente endereçado às massas populares.
ter Rea der, London: Routledge , 20 0 9 , p. 10 . a concorrência, depois ultrapassada, desde A relação entre a indústria cultural (ou
18 EAssembl ée th éãirale, p.
os .anos 1970) por todo discurso quase criativa) a cultura ainda ligada à
19 Wh at Is Polítical Theater
Lecture, populista contra as formas, assim dizer, nação ao corpo de é evidente-
elitistas do teatro. As formas po pulares que mente desequilibrada. Todavia, como Inostra Pós-Colonial
visam substituí-lo valem-se de empré stimos Fiske, "A indústria tenta sen1pre incorporar a
dos jogos televisivos, das variedades, do tea - cultura do povo e o povo tenta sempre eXCOf- Fr.:p ostcoionfal; Ingl.:postcoloniol; AI.: postkoionial.

I
tro de boulevard e dos cômicos populares. parar os produtos da indústria.vCom uma
Essas formas populares, poder-se-ia dizer globalização generalizada e clientes consu- o pós-colonial não é simplesmente
Popul ar essas cultural p erformances, são inumerá- aquilo que, na literatura, nas artes ou na
midores que jamais conheceram nada de
I Fr.: popu iaire, Ingl.:popular; AI.: voíks-rpoputár. veis, em perp étua renovação e ern cons- diferente, não é espantoso, entretanto, que cultura, vem após a colonização, depois
que os colonos se retiraram do país após
tante extensão. Elas são estudadas p elos o corpo-em sua dimensão cultural, e a indús-
Tanto corno o substantivo "povo': o performance studies-: esportes, programas tria dos corpos estejam cada vez mais imbri- a independência; ele éem primeiro lugar
adjetivo "popular" assumiu tão numerosas e folhetins televisivos tevê) etc. cados, indissociáveis. Que se pense no e acima de tudo um movimento cultural,
significações que impossível Por entende-se no sentido Kvpop o corpo das dancannas-can- artístico, literário ou teatral, um conjunto
distingui-los. Considerando a frequência de público": nada difícil de com- toras, seus movimentos, as menores alusões de ações e de obras que se inscrevem
de seu emprego na linquaqern corrente preender' fácil de apreciar e rápido de se à sociedade coreana foram apagadas, incor- em oposição, em resistência ou em
ou no discurso crítico, tentaremos esquecer. Essas form as pa rticip am de um poradas pela indústria doshowbiz, eles per- desafio .ern relação ao sistema colonial
desembaraçar a rneada . teatro de massa: urna representação teatral deram toda individualidade "em proveito' em todas as suas facetas. "Longe de ser
que não é, ou é muito raram ente, destinada de um mecanismo coreogr áfico e comer- uma sequência teleológica ingênua
A cultura popular é a cu ltura qu e prové m do a um público m assifi cado n o exterior para cial inteiramente sob controle. Ao mesmo que substitui o colonialisrno, o pós-
povo, no artesanato, nas artes e nas técnicas. recebê-lo, mas uma produção que será ime- tempo, cada um dos artistas aspira a uma colonialismo é, antes, uma abordagem
A antropologia- se interessa, ao menos desde diatamente popular (acessível) junto à massa certa individualidade, ainda que seja apenas e urna contestação dos discursos do
Herder e sua Kultur des Volkes (a cultura do dos consumidores. O teatro de boulevard, o para sobreviver e guardar o domínio de sua colonialismo, de suas ~struturas de poder
povo), por certas culturas e tradições teatro de rua, o folhetim televisivo são casos arte. Mas esta arte individual é de tal modo e de hierarquias sociais:" Imagina-se a
res que tendem a nas sociedades de uma de para a massa, submetida normas físicas, comerciais, eró- dificuldade de uma teoria com
industriais ep ós-industriais, e que sobrevi- não apenas, como se diria anos 1970, para ticas do entertainment internacional que ela essas situações extremamente diversas
vem penosamente em países COIn fortes tra- as massas populares (J\1ainstrearn ê
) . se vê despersonalizada, visto não ter mais do colonialismo no mundo. Ao que se
dições populares. Trata -sede urna cultura Mais recentemente, sob o impacto de direito ao erro, nem ao menor desvio". acrescenta a diversidade da criação nos
feita pelo povo e para o povo. As festas, as uma globalização- que se intensifica desde A cultura popular é o corpo do povo: diferentes países da diáspora.
cerimônias, as danças folclóricas, as drama- os anos 1990 , a cultura e o espetáculo popu- esse corpo se oferece e se incorpora, mais
tizações pertencem a esse te atro popular, lar assumiram novas formas e aparências. ou menos voluntariamente, à significação,

2l.j8 2Ljg
Pós-Colonial Pós-Colonial

1. ATITUDES, FORMAS entremeio, como "um inglês esquisito, um um pensamento sincrético. É nesse espaço de Dieudonnée Niangouna: "Corno ser um
E OBRAS PÓS-COLONIAIS inglês um pouco bizarro, o fruto de duas his- desconfortável que a criação pós-colonial autor africano? [... ] Por que então devo eu
tórias': como disse Hanif Kureishi, o paquís- tenta emergir e que ela reivindica sua hibri- ser o produto de um Ocidente repudiado ou
Sempre existiram, e existem ainda, numero- tanês escrevendo em inglês as palavras que dez e suas contradições. Raramente, ela se de uma África atrasadaí?"
sas formas de colonialismo na história e no ele atribui a Karin Aluir em 1he Buddha of apoia em um.a sólida análise das condições Além do estudo de peças nos livros de
mundo, mas o teatro ou a literatura pós-co- Suburbia. socioeconômicas da cultura pós-colonial Gilbert e Tompkins, ou de Balme, há pou-
lonial se referem o mais das vezes ao impe- Osestudos pós-coloniais: eles se generalizam ou subalterna e em um estudo aprofundado cas pesquisas sobre as encenações de textos
rialismo ocidental, ingl ês, norte-americano e se estabelecem desde o fim da descoloniza- das obras. As relações de poder, evidentes e de espetáculos. Sem dúvida porque o teatro
ou francês notadamente, o qual estendera seu ção nos anos 1960. Foram, todavia, preparados na situação colonial, assumem um aspecto ou a performance devem ser examinados in
império sobre o mundo inteiro, em especial o trabalhos pioneiros de Fanon, Césaire e mais discreto, mas não menos efetivo em loco e com .ín str um entos adaptados a essas
africano, o asiático e o australiano. A expres- Albert MemmP. Eles coincidem assim - e isso uma situação intercultural, multicultural produções. A categoria do pós-colonial não
são e a noção de literatura ou de teatro pós- não é evidentemente um acaso - com o surto ou pós -colonial. Segundo Susan Hayward, (a é sempre a melhor para avaliar essas produ-
-colon ial são empregadas sobretudo para o dos Performance Studies· e do pensamento teoria pós -colonial procura, em um processo ções originais.
estudo dessas literaturas cujos autores ou intercultural. Entre o teatro pós-colonial e o de diálogo de numerosos Em certos contextos (corno a os
artistas são inspirados pela cultura colonial teatro intcrcultural, há uma suspeita rnútua: o tos de vista), pôr em evidência o laço (natural' dramaturgos têm dificuldade de criar um
tanto quanto por sua própria. Isso não deve - teatro intercultural é visto por muitos pesqui- do saber ocidental com a opressão (o impe- ~te atro da imigração': que abandona todas as
ria nos dispensar de considerar muitas outras sadores como sendo a primeira etapa (orien- rialismo/colonialismo) e repensar a maneira outras questões. Os artistas vindos das ex-co-
situações pós - ou neocoloniais, que a globa- talista) antes da fase colonial ativa e da crítica exata pela qual o saber foi construído"> lônias, sobretudo os dançarinos, cantores e
lização- propicia ou CaITIU fia. pós-colonial. O teatro intercultural, que apa- A s obras pós-coloniais: quer se tratasse ator~~,se vêm nluitéls~ye~~~§=ºj;)rigados, para
A atitude pós-colonial: para os artistas vin - rece no momento da reflexão de Said! c, muito de peças (estudadas, por exemplo, por Gil- atrair a atenção dos ocidentais emposição
dos das colônias, a ideia é simultanea- antes dele, de Franz Aimé Césaire", é bert e Tomkins [1996)] ou Balme [1999]) dominante no circuito das tourn éese para
mente escapar aos valores e estilo próprios da acusado de lançar um olhar colonialista, ou ou de performances descritas por testemu- o reconhecimento internacional e global, a
antiga colô nia, n ào recair nas influências oci- pós-colonialista, sobre as tradições "orientais" nhas sem verdadeira metodologia de análise fornecer a imagem, o corpo e a temática qu e
dentais, euro- ou anglo cêntricas, e ao mesmo e "africanas': Este ('1nau encontro" entre cul - adaptada a esse tipo de criação sincrética e o Oeste esperadeles.mesmo que tenham de
tempo escrever sobre essas ouestoes tura e teatro intercultural coin- híbrida", as obras as de antes da reproduzir e acentuar estereótipos exóticos,
colônia e a metr ópole dos antigos coloniza- cide igualmente com a crise do estruturalismo colonização são confrontadas às dramatur- e até racistas, que eles desejariam denunciar.
dores), inspirando-se n ão menos nos sabo- eda semiologia, desde 1966, e com um pro- gias e aos 1110dos de interpretação e de jogo É certo que a ironia permite passar por cima
res , nos ternas <de sua cultura de origem, da fundo mal-estar político (fim das derradeiras de atuação próprios à tradição .ocidental. dessas barreiras, mas o público de consumi-
qual eles não não querenl se separar ilusões sobre o socialismo soviético ou chinês Os romancistas, assim como os dramatur- dores nem sempre a nota.
inteiramente. Tr ata-se, portanto, ele criar com para os intelectuais do Ocidente, por volta de gos pós- coloniais, são tidos como incumbi- O teatro pós-colonial se mistura, e até
os materiais, os m eios e os m étod os de sua 1968). Sob o efeito da globalização, a cultura dos de "resp ond er", contra-atacar (to write é absorvido, ao teatro globalizado, em que
cultura, inventando ao mesmo tempo se revela cada vez mais COIno alguma coisa back": responder, devolver os golpes e vin- se torna algumas vezes problemático dis-
seu próprio estilo, sua escritura pessoal. Horni de não homogênea, não ligada a urna nação, gar -se pela escritura). Eles devem, pois, des- tinguir os colonizadores e os colonizados.
Bhabha fala a esse respeito de colonial mimi- a urna cultura ou a U111 povo, não autenticada construir, parodiar, desmontar o discurso Esse modo de escritura cada vez mais glo -
cry (mimetismo colonial), a vontade ou a por um passado e uma origem estáveis/o colonial dominante inventando sua própria balizado aplaina todas as asperezas de diver -
compulsão de imitar técnicas maneiras O colouialismo puro e duro por certo escritura. Trata-se de uma reciclagem- pós- sas culturas, sobretudo pré-coloniais muitas
de ser coloniais) em b ora se distanciando e desapareceu em sua forma imperialista con - -rnoderna-? O termo teria qualquer coisa vezes esquecidas e .mais imaginadas do que
até zombando delas ("Ahn ost but not quite"; quistadora' mas a influência, o poder e os de ofensivo: 111aS isso não é tampouco uma reconstituídas pelos etnólogos.
"Not quite, not white": "Quase, luas não intei - capitais são ainda, con1 freqü ência, ociden- adaptação (uma Bearbeitung, um "retrabra-
ramente"; "Não de todo, não branco': tais. O outro o Oriental, o o colo- lho" brechtiano). No domínio francófono
as fórmulas de Bhabha) ". Vontade também de nizado, o subalternos - é ainda construído como no anglófono, a literatura pós-colonial 2. A CRÍTICA DO TEATRO INTERCULTURAL
assumir uma identidade híbrida, incompleta, como o desejo e a força de trabalho do Oci- é muito mais prolixa para o romance, para a PELOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS
contraditória. De se situ ar ao mesmo tempo dente? O pós-colonizado situa-se entre o poesia ou para o ensaio do que para o teatro.
no pré-colonial, no pré-moderno e no pós- olhar euro- ou americanocentrista e a cul- Os autores muitas vezes não se reconhecem Do teatro intercultural ao teatro globali-
-rnoderno-, no multicultural- e no pós-van- tura da ex -colônia. É um ser híbrido, que como escritores pós-coloniais, repugna-lhes zado: se a noção de cultura está em cons-
guarda. E senlpre tamb ém em uma língua do fala uma língua "criolizada' e raciocina com serem etiquetados como africanos. É .o caso tante reelaboração, perdendo seu caráter

250 251
Pós-Dramático
Pós-Colonial

sistemático em proveito de uma intercul- essencialista. Acusam-na de negligenciar Novas tarefas se apresentam à encenação NOTAS
Helen Gilbert; [oanne Tompkíns,Post-colonial Drama:
turalidade difusa, como não estaria o tea- no mesmo lance a análise socioeconâmica intercultural e à teoria pós-colonial. Deve- Theory,Practice,Politics, London: Routledge, 1996, p. 2 .
tro intercultural, ele também, em constante dos espetáculos em favor de sua exclusiva nlOS retornar de modo incessante às frontei - 2 Cf. Homi Bhabha, The Location of Culiure, London:
mutação? Cada vez mais frequentemente, as dimensão estética e humanista. A dificul- ras entre as culturas, entre o passado colonial Routledge, 1994.
3 Cf. Albert Mernmi, Portr ait du colonisé, pr écédé de
obras interculturais são criadas e p ercebidas dade é de fato, a bem dizer, a de Iançarurn e a pós-modernidade globalizada, entre as
Portrait du colonisateur, Par is: Buchet/Chastel, 1957·
através do prisma de urna visão pós-colonial olhar de historiador e de economista sobre diferentes identidades. Os artistas, assim Cf. Edward Said, Orientalism, New York:Pantheon,1978.
da cultura. Ora, a categoria do teatro inter- a obra intercultural e sobre a situação colo - como os espectadores, redefinem constan- Cf. Franz Fanon, Peau noit-e, masques blancs, Paris:
cultural é muito recente: dos anos 1970, e ela nial. Pois se não nos faltam excelentes eco- temente essas fronteiras, eles as franqueiam, Senil , 1952; id em, Les Damn és de la terre, Paris: Mas-
pero, 1961.
se constitui ao mesmo tempo que a teoria nomistas e sociólogos, a dificuldade é a de as transpõem de modo fraudulento e as reco- 6 Cf. Aimé Césaire, Discours du colonialisme, Paris:
pós -colonial. Seria preciso, todavia, esperar aplicar seu saber ao objeto estético, em vez nectam. Na França, autores dramáticos corno Presence Africaíne, 1955;'
os últimos anos do século xx para que a teo- de permanecer a esse respeito em genera- Marie NDiade, José Pliya ou Koffi Kwahulé H. Bhabha, op. cit., p. 37.
ria do intercultural e do pós-colonial levasse lizações pés-coloniais ou de recriar, a Termo forjado por
ricos dos "Subaltern Studies'; Gayatri
em conta as for ças políticas e econ ômicas da vez, o mesmo capítulo da história do colo- errância">' ou escritores da literatura-mundo" Other Worlds ) Essays in Cultural Politics,
globalização. nialismo. do que representantes da minoria negra. Methuen, 1987.
A nova situação no jogo da }!lC)OCllllz:açlao: As novas identidades pós-coloniais: a cada O pós -colonialismo é necessariamente 9 Susan Hayword, Cinema Studies: The Key
London: Routledge, 2006, p. 295·
desde os anos que se seguiram ao fim do nova época, novas questões. As objeções à crítico, anticolonialista e intercultural? 10 Cf. Bill Ashcroft; Gareth Griffiths; Helen Tiffin, Key
comunismo na Europa, ao começo do s anos teoria se veem com frequência levantadas Nem mais nem menos do que as outras Concepts in Post-Colonial Studies, London: Rout-
1990, há a tendência de atribuir à globali- graças a uma prática renovada e política do formas do teatro contemporâneo, as quais se ledge, 1998 .
11 Para retom ar o título do trabalho clássico de B. Ash -
zação todos os Inales do mundo. Ela seria interculturalismo. O teatro intercultural, ou inscrevem no choque de culturas e de discur- croft; G. Grifiths: H. Tiffin, Writes Back:
responsável pela uniformiza ção das práticas bem si.tnplesmente as práticas globalizadas sos. Os estudos pós-coloniais são, por certo, Postcoícnuu Literatures, Lon -
culturais, seria UIna nova f.orrna de colonia- da cultura e da arte, tornaram-se mais aten- injustamente negligenciados em certos países don: 19 89 .
12 <C.É o co rpo que escreve, o espírito tinge", Le [our-
lismo a. controlar o trabalho e a pr odução do tos ao olhar do analista estético e político. corno a França ou a Europa continental, mas
nal du th.éâtre Nanterre-Amandiers , n. 11) sept. 2009·
trabalho deslocalizado. Muito m ais preocu· O ·interculturalismoestá doravante mais eles existem, no entanto, sob outras denomi- 13 Franck Michel, Métissage, em Michela Marzano (éd.),
pante parecceser a conseq üência desta deriva preocupado comas implicações econômi- nações, desde que passou a haver interesse op . cit ., p. 585.
do p ós-colonial para uma globalização. Pois cas da troca e da globalização, mais atento pelas formas extraeuropeias ele espetáculos. 14 Cf. Sylvie Chalaye, Afrique Noite et drama turgi es
contemporaines: L e Syndrome Frankenstein , Paris:
a cultura deriva então para uma aos de urn neocolonialismo sob a Em face dos colonizados de outrora, Éditions Théâtrales, 2004. Ver igualmente: idem,
concepção multicultural ou cornunitarista, cobertura de um simples e neutro pós-co- diante da dificuldade para os artistas pós- Nou velles dramaturgies d'Afriou e .N oire[rancoph one,
-colonizados de encontrar sua própria voz Rennes: PUR) 2004·
seja para uma visão congelada essencia- lonialismo. Partindo de novas bases, o pós-
15 lvlichel Le Bris; Jean Rouaud ( éds.), Pour un e lit-
lista. No caso, um grupo, reJIQ]lOSO -colonialismo se fundamenta em um estudo sern renegar o passado, nem se excluir t érature-mon de, Paris: Gallimard, 2007.
amiúde, se arroga o dir eito de decidi r qu al é . apurado das diferentes afinidades em jogo da (pó s) rno dernidade, os descendentes 16 Iean -Lou p A rnse lle , Bran chem ents, Par is: Flam m a-
a boa cultura e a boa religi ão, o di reito tarn- en1 um espetáculo que recorre a ações, a ato - dos colon izadores t êm amiúde muito má r ion, zoo i, p. 20 6 . ..

bém de enquadrar os cidadãos nas regr as res, a espaços pertencentes a diversas cultu- cons ciên cia, eles se sentem culpados pelas
opressoras que matam toda liber dade indi- ras e diferentes tradições de jogo de atuação. açõe s de se us ancestrais, e estão prontos a
vidual; no segundo caso, a cultura, como nos A multiplicação das identidades é infinita fazer todas as penitências. Tanto quanto os
mais belos dias do colonialismo, tende a se em espetáculos rnulticulturais e multimí- indivíduos ou os regimes políticos, seria
fixar com dogmatismo em um modelo pre- dias. Além das identidades sexuais, étnicas, necessário poder mudar as mentalidades: Pós-Dramático
tensamente universal, mas que na realidade históricas, religiosas etc., pode-se imaginar "Descolonizar o pensamento, não consiste
postdrama tiqu e; Ingl.: postdram atic; AI..
só favorece a mesma classe esclarecida e já comunidades qUê multiplicam as marcas de em dar raz ão ao colonizado de hoj e contra
postdrarnatisch .
fixada no lugar: os colonizadores de outrora, pertinência e, portanto, de exclusão. A con- o colonizador de ontem, mas instaurar um
os deslocalizadores do presente. sequência não é anódina: "o confinamento diálogo, ou de modo mais preciso conceber
Mais de dez anos após seu aparecimento
Crítica do essencialismo: censur ou -se mui- identitário parteja a recusa do outro?", Mas o pensamento COIno intrinsecamente dia-
em 1999, o livro de Hans-Thies Lehmann,
tas vezes a primeira onda da prática e da o que é pior: o confinamento pela identi- . lógico, isto é, interconectado.?" Este pen--
Postdramatisches Theater (publicado pela
teoria intercultural (a de Brook, por exern- dade comunitária ou pela multiplicação ao sarnento dialógico, o teatro, mais do que
Autoren) .co nt inua a animar os debates
plo) de sucumbir a uma tendência autossa- infinito e ao absurdo das identidades, que toda outra arte, está em condições de man-
sobre o teatro contemporâneo. Nenhum
tisfeita, a um idealismo e até a um angelismo levam à decomposição do ser humano? Não tê-lo vivo.
outro termo havia sido proposto desde
das relações humanas, a urna tendência é isso, no fundo, a mesma coisa?

252 253
Pós-Dramático Pós-Dramático

o Teatro do Absurdo nos anos 1950 para incitará ao confronto de um com o outro.
englobar grande parte da emergente mental Certos encenadores ou são conheci-
produção teatral experimental, ou "de arte, ou o aktionism "lprlprl,~p dos por rítmi-
pesquisa" procuraram bem Knegenourg, Thalheimer,
das
DO TERl\10 haveria

desconstruír o
humor involuntário caractenza . . U'\..u, '~U'\..JlUl.JU.J.U texto, propor
trindade: radicalmente
O desco- os atores como
brir o texto tempo que a cena e para a recencao

255
Pós-Dramático Pós-Dramático

o ator e seu duplo PM e PD, o perforrner, uma filosofia e uma literatura que não induz sem do teatro PD na Aiemanna. A Lehmann faz muitas
nos ajudam melhor a cercar as diferenças a uma nova prática da cena. Beckett constitui e depois, sob outros nomes, na França e vezes referência à desconstrução segundo
entre o dramático e o PD. Talvez compreen- uma espécie de transição entre literatura dra- em outros lugares: esse teatro de pesquisas Derrida, sem, todavia, diferenciá-la clara-
damos melhor o TPD examinando, através mática e prática abstrata e não simbólica da fortemente subvencionado pelas cidades e mente de sua própria concepção do PD. Ora,
do perforrner, a nova identidade do ator: o cena. Quanto às estéticas puramente visuais pelo Estado, sustentado artificialmente, não parece, no entanto, necessário distingui-los,
performer não tenta construir e imitar uma (Wilson, Kantor, mais tarde Gentil sobreviveria sem essa ajuda. Na Alemanha, muito embora o PD e a tanto
personagem, ele se situa no cruzamento de etc.), estruturam tanto em reacãocon- os Stadtstheater (teatros municipais), muito em Lehmann corno em Derrida, se distingam
forças, em uma coralidade, em um disposi- tra o teatro de arte ou teatro de encenação, poderosos e ricos, logo o adotaram, reforça- explícita e contrariamente dopensamento
tivo que reagrupa o conjunto de suas ações quanto contra a líteratura dramática. ram e institucionalizaram. Daí, com a retra- p ós-moderno- (PM).
e de suas performances físicas. Ele vale corno No entanto, essa literatura dramática con- ção do Estado e das instituições, o risco, e até Poder-se-ia definir a desconstrução como
simples presença da persona que se desfez serva, em outros países corno a França, certa a probabilidade, de que o TPD desapareça ou a maneira pela qual uma encenação se elabora
da personagelll, ou cO.mo de autonomia com a de escrituras se transforme um mais comer- e desfaz alternadamente diante de nós. Ela
resistência vocal ou física (Pollesch, Cas- ele edição teatral desde os anos 1980 (Viria- cializável, que se volte a um teatro "mais referencia e induz sua própria fragmentação,
torf). Ele não precisa mais entrar nas emo- ver, Koltes, Novarina) ou 1990 (Gabilly, acessível': a uma peça "bem-feita', uma per- põem em evidência suas dissonâncias, suas
ções do espectador- por m eio da imitação Lagarce). Teóricos do drama, como Vina- formance «elegante e distinta" ou uma peça contradições e seu descentramento-. Um por-
ou da sugestão de suas próprias emoções ver (e suas grades de análise do teatro uni- de boulevard inteligente (Cf. Yasmina Reza menor da representação pode desconstruir a
(Einfühlung) , porém, segundo a feliz fór- versal) ou Sarrazac (COIll sua concepção do e Eric-Emmanuel Schmitt). Essa restaura- estrutura narrativa gl05àl, arruinar toda pre-
mula de Roselt, ele deve sair da identificação teatro não se inscrevem mini- ção se desenha, aliás, em um bom número tensão da a representar o mundo
(Ausfühlung), deixar o pântano das emoções mamente em uma reação anti-ou pós -dra- de espetáculos novos. ou a construir uma personagem. Trata-se aí
simuladas, para reencontrar as suas próprias, mática. Eles consideram ainda a encenação de operações sobre o sentido e não simples-
como um esportista, um intérprete musical , COITIO uma alavanca para desconstruir, des- mente de dispositivos estilísticos superficiais.
um corista -um técnico a serviço não de urna locar, desviar os textos canônicos clássicos. 4. RUIYI0 A UMA ENCENAÇÃO PD Aqui reside, aliás, toda a diferença com o PIYl,
umtacao.numana e de uma ilusão teatral, Por esses teóricos dei xam ao E DESCONSTRUÍDA? o se reconhece por seu gosto mis-
mas de um coletivo de enuncia ção", TPD o calnpo livre para efetuar alianças com tura dos. registros, dos gêneros , dos níveis
as mídias, as artes plásticas, os espetáculos Ecletismo filosófico: Não.se encontrará Ull1 deesfilo, pela hibridez- das formas e de uma'
populares e as variedades. Eles preSerVall1 sua conjunto conceitual adaptado às novas expe - intertextualidade- muito carregada ".
3. MOMENTO HISTÓRICO confiança nos poderes da encenação, no pro - riências cênicas e extracênicas após 1970: Princípios da desconstrução:
DO A PA RE C I MENT O DO TPD longamento dos anos 1960 e 1970. A úni ca nem no estruturalismo, nem na serniologia-, 1. Descentrarnento da encena ção: não se
coisa que eles com o é nem na da A obra, sendo tem mais discurso discurso erice-
Nada é menos fácil do que distinguir o certa cegueira, e até uma indiferença osten - ela própria fragmentada, desconstruída, nação, ao menos explícito e claro. O ence-
P D como princípio teórico e o TPD corno siva' em relação às experiências intercultu - inacabada, o espectad 01' ou o teórico não nador não é mais o aut or, o sujeito central
objeto concreto (texto ou prática cênica). rais e à ampliação dos estudos teatrais nos dispõe mais de conceitos ou de ferrarnen- controlando tudo. O ator) o grupo inteiro, a
A mudança deste objeto teatral se explica Performance Studies: e no estudo de todas as tas ao mesmo tempo amplas e pertinentes. tecnologia e as mídias não obedecem mais
por razões históricas, a teoria PD não mais Cultural Performances. A única coisa que o PD de Lehmann pode a um artista derruurao.
do que uma reação tais E, no ra uaanca de m étodos: essa his- fazer é recorrer de maneira pontual e eclética 2. O esfacelamento da encenação clássica
entanto, para percebê-las é necessário precí- tórica coincide com as mudanças de m éto- a noções emprestadas de filósofos franceses de outrora, devido à fragmentaç ão do sujeito,
sam ente ajustar um aparelho conceitual tão dos , e até de epistemologia, de 1968 a 1980: como Derrida, Lyotard, Deleuze, Baudril- explica-se por Un1110VO m étodo de traba-
preciso quanto possível. fim das análises dramatúrgicas de inspi - lard ou Ranciere. O PD procede ami úde por . lho: collaborative production e collaborative
Mudança do objeto teatral: a mudança, ração brechtianas, fim do Imperialismo oposições de conceitos: acontecimento/situa- reception;conforme os termos de Puchner".
Lehmann observá-Ia nos espetáculos sermoíozíco, inícios da ção' parataxe/rueraro uia, espaco/suuerncre. 3. O expor à vista um processo-, a presen-
e nas performances que ele viu, nos anos 1970 A obra de Adorno, sua Teoria Estética, ou representação/presença etc. Esses conceitos tação performativa de UlTI evento substitui
e 1980, especialmente em Frankfurt tTheater seu "Ensaio Para Compreender Endgame", em oposição o ajudam a organizar a massa toda representação, figuração e, às vezes, até
ara Turmi na Alemanha, nos Países Baixos e constituem referências essenciais para quem de observações, a verificar a grande dicoto- mesmo a significação.
na Bélgica. Esses espetáculos formaram co~­ quiser seguir o desenvolvimento desse TPD 7• mia dramático/r-n. Esta partição binária é, 4. Toda encenação, a [ortiori, toda ence-
pos, porque foram criados em reação à lite- Mudança de instituições: ela é ainda urna entretanto, redutora para explicar fenômenos nação desconstru ída, é urna «Poética da per-
ratura do absurdo, essencialmente a última e fundamental razão para esse surto que escapam a uma dicotomia terminante. diz Lehmann,

256 257
Pós-Dramático
Pós-Dramático

de que o
tomado ao

luz
Estaocr,>,"",,"""'l'V'rJ

ou na l1"'\r1'I"']1·<:'1"1.-"']
de Bruno que tende tornar-se fre-
Atualizar os que quente, se não dominante, no teatro de pes-
até de quarenta anos parece como duas gotas TPD.

259
Pós-Moderno Ifaatrul

futuro. O está de entregue seu


estilo, nem teoria, nem método,
deslocar as rA·nT ...·'"lrt1r~'\pc
mooueanas, Sua sobrevida ou
uenendem de modo nenhum do
A expressão de teatro pós-moderno
extremamente vaga, se
indistintamente práticas textuais
sem

todas de comunidades considera-


1880, a assinatura de um enccnador, das com os mesmos que
U\..UV.l';:) c,\.. sistematiza em numerosas minorias- de toda ordem.
Pós-Moderno (Teatro) Pós-Moderno (Teatro)

A chegada do pós-moderno marca uma faz repetição inútil com o de mise en scêne, tem mais por objetivo liberar, emancipar, seja, de exprimir qualquer coisa, de mani-
mudança de época. O pós-moderno designa, seja ela moderna (cerca 1880) ou pós-mo- achar soluções codificadas em sutis análises festar uma intencionalidade, sentindo-se ao
de saída, a arquitetura «não internacional': derna (após 1950). Outras áreas culturais, em dramatúrgicas ou em escolhas cênicas. Essa mesmo tempo culpado de não exprirnir qual -
capaz de integrar os estilos históricos mais compensação - Europa Central e Oriental noção demise en scêne, como pesquisa de um quer coisa para outrem: "Nada a exprimir,
diversos (sem que o edifício venha a desmo- ex-comunista, mas também países pós-co- sentido oculto ou novo, é posta em dúvida; nada com que exprimir, nenhum poder de
ronar imediatamente). A arquitetura pós -mo- loniais (tais como a Coreia, a África, a Amé- a preferência recai sobre a perforrnance-, a exprimir, nenhum desejo de exprimir, tudo
derna queria ultrapassar a Bauhaus e seus rica Latina) -, o utilizam muito mais, porém instalação.a exposição de palavras (expor à isso com a obrigação de exprimir."
herdeiros (Le Corbusier, Gropius, Moholy- de uma maneira Ulll pouco anárquica, mais vista e no som a linguagem, sem se preocu- O fim dos "grandes relatos" emancipa-
-Nagy), considerada COIllO por demais aus- como estilo, atitude, marca de fábrica ou par com o sentido). A pesquisa brechtiana dores (marxismo, freudismo etc.), anun -
tera, purista e até puritana. O "teatro de arte': etiqueta do que corno noção teórica e ana- da historicidade ou da historicização de uma ciado por Lyotard desde 1979, repercute na
criação puramente modernista, se esforça por lítica. Segundo dramaturgos da "periferia" peça ou de uma representação é recalcadaem ausência de conclusão narrativa, de relei -
imitar tal purísmo, um esteticismo elegante ou C01I10 a Argentina ou o Chile --, a oposição proveito de um historicismo que pretende tura d ramatúrgica sistemática, mas ela não
aristocrático, ele confia à encenação a escolha entre modernidade e pós-modernidade é reconstituir as condições históricas do jogo significa por isso o fim do relato, do story-
ponderada de uma leitura aprofundada. Em expressamente sentida COIllO artificiaL Tal é de atuação dos clássicos. Interpretar Racine telling. As formas são somente diferentes,
compensação, a estética pós-moderna prega a o testemunho do autor Rafael Spregelburd: em declamação barroca como no século XVII muito "simplesmente complicadas': como
abertura e se preocupa pouco COIn a origina- "A distinção é, para nós (argentinos), uma é também um meio de nada dizer da peça diria Thomas Bernhard, a saber, refundi-
lidade. Sua estética "pop" aprova o ecletismo, categoria europeia. Os países periféricos, que seja útil à nossa época. Atitude essen - das em modos narrativos menos espetacu-
a arte comercial e o .kitsch . pós -coloniais, aqueles que não participam cialista que vê a declamação, o signo teatral, lares ou grandiosos,póréll1rnaispróximos
A pós-modernidade se estabelece filosofi- do concerto das nações, são países que, na a teatralidade ou a encenação corno catego- da vida cotidiana 'das pessoas e de suas ane -
camente com Lyotard e sua incredulidade em re alidade, não conheceram modernidade." rias intemporais congeladas, ao passo que a dotas memoráveis,
relação aos grandes relatos: "Uma longa série Certos princípios do pós-moderno não construção do sentido é histórica, variável, A relação com a tradição .mudou: esta não
de oposições modernas perdem seu gunle: parecen1. se aplicar diretamente ao teatro. ancorada na modernidade. é mais negada ou violentamente contradita,
novo/antigo, presente/passado, esquerda/ Assim, a mistura pós-moderna de arte elitista Nenhum centro, nenhuma identidade como nos textos modernos que se insurgiam
direita, prqgresso/reação, abstração/figuração, e de en treten im ento popular tem dificuldade estável controla mais o texto ou a represen- contra as práticas ouos textos clássicos estra-
modernismo/realismo, vanguarda/kitsch ."3 de se impor: a encenação é intimada a esco- tação. i\ relação com a tradição do jogo tea - tificados. Ela é antes sub-repticiarnente des -
O discurso pó s-moderno alimenta a con- lher entre pesquisa intelectual e entreteni- tral ou de interpretação se esfumou, quase se viada por efeitos de ironia ou de paródia, e
fusão entre literatura, arte, filosofia, teoria, fic- rnento popular, ao menos na Europa, pois apagou: amiúde os artistas rejeitam a tradi- não mais de pastiche. O pasfiche imita um
ção, realidade social, business (negócios): ele o corte não é tão nítido em outras regiões, ção, eo público não a conhece mais. Todos se gênero precedente e lhe rende assim horne-
gosta de confrontar práticas habitualmente corno a China ou a Cor éia. veem tomados de um "presentismo" no culto nagern reproduzindo seus dispositivos esti-
separadas que a cena pode testar e nos fazer Muitos outros princípios da estética pós- do instante e do presente que não autoriza lísticos. Uma par ódia como do argumento
saborear sua arte de acomodar os restos. ,-moderna se aplicam, entretanto, aos espetá- .L.L~,u. tornada de distância crítica, pri-
.L .. '-.L.L.LJL ..... e do filme de Duras e Resnais, Hiroshima,
A modernidade - isso foi muitas vezes culos de teatro, além da dança e de seus grandes sioneiros daquilo que é agradável e imedia- mon amour, por,Burnier e Rambaud (Paro-
notado - é sintomática de uma crise aguda coreógrafos (Lucinda Child, Simone Forti, tamente consumível. Não se procura mais, dies, 1977), fornece um exemplo pós-mo-
na cultura, de um "Mal-estar na civilização" Steve Paxton, Merce Cunningham, Yvonne portanto, uma mensagem para decifrar, con- derno de paródia (bastante rara no teatro).
(Freud). A pós-modernidade conhece, ela Rainer, William Forsythe, Trisha Brown). tradições para deslindar, uma assinatura ori- O célebre leitmotiv, tu r/as rien vu à Hiroshima,
tamb ém, urna crise, porém difusa e inapreen- ginal de um encenador ou d e U111 artista, "você não viu nada em Hiroshima', torna-se,
síve1. (A pós-modernidade não é urn movi- como no tempo da modernidade. por exemplo: Tu nas rien vu, Mirot chinois,
mento, nem uma corrente artística. f: bem AL GUNS PRINCíPIOS ESTÉTICOS A escritura dramática como a encena- "Você não viu nada, Mirot chinois," Par ó-
mais a expressão momentânea de Ulna crise DO T EAT RO PÓS-MODERNO ção pós-moderna privilegiam os elementos dica na intenção geral e na sátira do filme
da modernidade que aflige a sociedade oci- contraditórios, as formas híbridas em seu literário e exaltado, a reescritura burniero-
dental e, ern particular, os países mais indus- Não se encontra quase mais releitura radi- estilo, seu gênero, sua temática, A crise da -rambaldiana reata ao mesmo tempo com o
trializados do planeta,"! cal de clássicos ou interpretação original e representação, a dificuldade de representar gosto do pastichedo lirismo durassiano. Ela
inédita de obras: todas as leituras parecem o real e, mais ainda, de sair da representa- retoma seus dispositivos e tiques de língua-
b. No Teatro ção para não estar mais do que no presente gem, sugerindo, também, maliciosamente,
possíveis ou indecidíveis, de acordo com a
Na Europa Ocidental emprega-se pouco o célebre fórmula de Paul Feyrabend (any- e na presentação, se traduz muitas vezes por que o filme não pode ser visto, pois que o
termo teatro pós-moderno, talvez porque thing goes!; tudo serve!). A encenação não uma recusa de representar o que quer que espectador-é míope ... Esse tipo de desvio- é

262 263
Pós-Moderno (Teatro) Pós-Moderno Haatroj

fundamentalmente pós-moderno, na medida nossas vidas são "simulações da realidade'", todas essas noções sejam empregadas umas prepara para o imprevisível, instala-se na
em que nada faz senão retomar elementos de Esse universo é o de um reencontro ima- pelas outras. É comparando o modo de instabilidade de significações, faz com que
textos originais, subvertendo-os, sem preten- ginário e, no fundo, inteiramente artificial; recepção do espectador que se poderá dife- se renuncie à busca das origens do sentido.
der mudar a relação com a realidade, mas trata -se de uma pura invenção do espírito, renciar esses termos e essas práticas concor- O espectador é implicitamente intimado a
retrabalhando o estilo. que se faz passar por realidade. rentes. situar-se em uma atitude de ironia e, às vezes,
resulta um maneirismo muito pro- 2. fabrica O pós-moderno é movimento estético também de desespero em das contradi-
nunciado que o do ator e a encenacao adapta para a cena materiais já formados: reúne grandes tendências ções insolúveis da obra.
sabem muito bem como levar em conta. citações de coisas existentes, cuja fabrica- do pensamento e da cultura de sua época A intermidialidade e a remidiação- (passa-
A artificialidade, a intensificaç ão- e o engros- ção artesanal em função das necessidades da (após 1950 mais ou menos). Todas as outras genl de uma m.ídia a outra conforme a evo-
sarnento dos efeitos estilísticos dãoàs vezes cena salta aos olhos, empréstimos de mate- categorias são atingidas pelo pós-moderno, lução tecnológica) estão na origem de um
a impressão de um exagero, de um excesso-, riais pertencentes a gêneros ou a horizontes como por impregnação. Elas possuem em gênero novo: não o espetáculo multi-per-
de urna paródia, como se os artistas não sou- culturais diferentes, por exemplo. comum o fato d~ _ aceitar critérios os mais forrnance, mas o gêner0~·de~espetáculo que
bessem imitar as personagens e suas situa- 3. Intertextualidade: ou, mais exatamente, contraditórios, como se fosse necessário, foi elaborado ao termo de unla sequência
ções. lvlesguich na França, Kriegenburg ou interrnidialidade-, pois os textos citados ou enfim, encontrar uma solução conciliadora de remidiações, de empréstimos de possi-
Thalheimer na Alemanha são especialistas retrabalhados provêm de diversos sistemas e democrática para o radicalismo e para o bilidades de uma mídia, A. força dessas tec -
nesse jogo não psicológico, sentido como semi óticos: visuais, gestuais, rítmicos, sono- autismo das vanguardas da modernidade. nologias, quando bem empregadas, é a de
literário e artificial por um público habi- ros, midiátícos. Após melancolia do modernismo, à fazer retornar à arte do relato, de saber contar
tuado ao realismo, jogo que se associa 4. e modo de impossibilidade de adeus a urna uma por todos os (as
amiúde também ao pastiche pós -moderno: trabalho dos três critérios precedentes, a radical, o pós-moderno cederia, assim, um sem o espectador pelo uso visí-
distância irônica, mas não necessariamente bricolagern, quando se torna sistemática e cinismo democrático: tudo é possível, pois vel e pesado de uma tecnologia que bloqueia
c ômica, amor muitas vezes elitista da forma coerente, une-se à (bem chamada) descons- nada nos satisfaz, a democracia das artes e o fluxo do relato. Basta pensar na maneira
e da construção dramática ou visual, sem trução·. Ela assegura o vaivém entre uma teo- dos compromissos é a última coisa que nos como Robert Lepage reencontra a força de
nenhumdesejo de aí veicular ataque, mas ria explicativa e uma prática espontânea e resta. Atitude semelhante tem todas as chan- um relato sem indispor o espectador, mas
para um-público de iniciados que ·está de anárquica. A prática anárquica necessita da ces de encontrar um eco favorável no teatro, encontrando a cadamomento am ídia apro-
posse dos códigos de funcionamento e das teoria para ser interrogada de maneira coe- porque essa arte ama acumular os materiais priada ao tipo de relato ou ao efeito previsto
regras do jogo teatral. rente e original. e os signos, sempre sem decidir sua hierar- sobre o receptor.
Esta insIstência na teatralidade encontra Esses quatro critérios confirmam urna quia e, ainda menos, suas interações. E o que a teatro intercultural· não pertence ao
sua pós- moderno pelo do teatro pós-moderno salva, todavia, a a pós -moderno: o espectador coloca muitas
ludismo, pela de ele pode ter rolo compressor. que ela dedica da e vezes mais e socio-
e de figuras de estilo, todos esses tra - Mas, paralelamente, nota-se uma diversifica- da no estabelecimento do sentido por lógicas do que e estéticas;
ços que o jogo de atuação sabe perfeitamente ção de experiências, uma extrema individua- parte do encenador tanto quanto do espec- por exemplo, sobre as identidades e as per-
produzir e que seIllpre se associou à mentira lização de práticas teatraiseperformativas, tador. ",1\ contribuição deste últim o é inces- tinências de todas as ordens. Sua faculdade
teatral, tão odiada pelo naturalismo. assim como do consumo cultural. O teatro santemente utilizada e ele deve implicar-se de mudar incessantemente de código (code-
Outros critérios do teatro pós-moderno. pena para pennanecer uma mídia genera- na gênese do sentido. Ele faz sempre o liame -switching) é capitaL O espectador descon-
Os quatro critérios do cinema pós-mo- lista, coordenadora; ele tende a fragmentar- entre sua experiência prática e sua hipótese fia, pronto a rir ou a sorrir da outra cultura,
derno, segundo Hayward/, encontram-se de -se em gêneros individualizados, consumíveis teórica para interpretar o texto ou o espetá- porém pouco à vontade por não ter mais
novo,mutatis rnutandis, no teatro pÓS-1110- à la carte por minipúblicos de aficionados, ami - culo. Em última análise, ele tem toda liber- o direito de o fazer abertamente, ternendo
derno: gos, família ou colegas dos artistas. dade para interpretar e avaliar a obra cênica o menor mal-entendido cultural (political
1. Simulação, nos dois sentidos do termo: ou textual. corectness obriga). Se ele está pronto a trans-
a. sentido .de uma simulação conlO em aesconstrucão, por pouco que se formar a cultura do outro sua
uma experiência científica (simula-se uma 4 . PÓS-:MODERNO, PÓS-DRAMÁTICO·, entendê-la segundo filosofia de pria cultura, acha-se muito menos inclinado
catástrofe at ômica e o que será preciso fazer DESCONSTRUÇÃO, INTERCULTURALIDADE, Derrida, é uma disciplina de ferro para o a adaptar-se aos códigos culturais estrangei-
para remediá-Ia): aqui simula-se o reen- INTERMIDIALIDADE, ET ALI! encenador aprendiz ou o crítico estreante. .rós ,'ainda que 'seja"pelo tempo de um espe -
contro não tanto dos grupos sociais ou das Ela o obriga, de fato, a renunciar ao intento táculo. (Ver modernização-)
classes quanto o dos estilos e das corporalida- Na linguagem corrente, assim como nas de encontrar um sentido definitivo, sem COIn o teatro'gtooaiizado". espécie de
des; b. No sentido em que, para Baudrillard, obras históricas ou teóricas, não é raro que por isso renunciar ao de procurá-lo. Ela pós-moderno hibridizado ao extrem o e

.2 6 4 265
Pós-Moderno (Teatro) Practice as Research (Prática [orno Pesquisa)

submetido às normas internacionais, as ques- ou das mídias nada faz muitas vezes senão 7 Susan Hayward, Cinema Studies: The Key Concepts, arbitrária do corpo. Um dos métodos con-
London: Routledge, 2006, p. 299-310.
tões de ética e de correção intercultural se confirmar o que já se sabia e que nos impede siste em partir de um trabalho preciso sobre
8 Philip Auslander, Theory for Performance Studies:
propõem felizmente muito menos, o que de reencontrar o Outro, de reafirmar o laço A Student's Guide, London: Routledge, 2008, p. 57. as posturas e o corpo, para, ern seguida, ace-
libera novas perspectivas criadoras, dando social, de reforçar a comunidade, de tirar 9 Cf. Introduction à une anthropologie de la surmoder- der às emoções e às nuances psicológicas.
mesmo a esperança, muitas vezes ilusória, proveito de uma catarse coletiva. nité, Paris: Seuil, 1992.
Michel Liard nos lembrava: "Mais vale às
10 GilIes Lipovetski, Les Temps hypermodernes: Nou -
de que o teatro acabará por tocar todos os O teatro pós-moderno tem, sem a menor veau Collêge de Philosophie, Paris: Grasset, 2004, p. 71. vezes fazer como se a gente não soubesse
públicos do mundo e que é suficiente saber dúvida, uma tendência extremlsta, elitista, iso- 11 Cf. Hans- Thies Lehrnann, Postdramatisches Theater. mais nada e colocar o corpo em uma postura
como exportá-lo. lacionista. Como poderia o teatro lutar con- 12 Cf. AIain Brossat, Le Grand dégoút culturel, Paris: de trabalho: a inspiração virá. "
"Teatro da Supermodernidade": deste modo, tra este isolamento sem cair na facilidade, no Seuil ,2008.
13 Alain Badiou, Second Manifeste paul' la philosophie,
poder-se-ia, con1 referência a Marc Augé", populísmo, na boa consciência? A ausência de Paris: Flammarion, 2010) p. 110.
NOTRS
[ean -Claude Martin, Communiquer: Mode demploi,
chamar esse teatro de global-pós-moder- projeto coletivo, o ceticismo para com a polí- 14 Cf. Elinor Fuchs, The Death of Character: Perspectives Paris: Marabout, 2002 , p. 36.
no- pós-dramático- desconstrucionista. Augé tica, o refúgio na ética e no compassível indu- on Theater after Modernism, Bloomington: Indiana
Mic hel Du texte
University Press, 1996.
define a supermodernidade por meio de três zem a certo fatalismo: tudo vem tarde demais, à la scêne, Nantes: loca 2006, p. 71.
fatores: superabundância de acontecimen- não resta alternativa senão associar a arte e
tos, superabundância espacial, individuali- a cultura ao negócio gerenciado) se ainda se
de referências. O teatro não escapa a deseja salvá-las. O pós-moderno gabava as
esta superrnodernidade. O acontecimento virtudes do intercultural, o pós-dramático,
Practice as Research
cênico está nucleado na massa de aconteci- com Lehmann", é muito mais cético acerca da Postura (Prática [orno Pesquisa)
mentos' live ou midiáticos. O espectador é possibilidade de uma mudança política e vê no
convidado a ler e a decifrar o que lhe apraz, "todo-cultural" um signo de despolitizaç ão", Fr.:posture; Ing l.: stance;AI.: Kôtpemaltunq. Fr.: Pratique comm e recherche; AI.: Ptaxis ais
a escolher as alusões e as referências que lhe Esta tibieza pós-moderna é um sintoma de Forschung.
convêm. (Ver conternporânco-) nossa predileção pelo compassível, pela reli- Termo médico aplicado ao ator; a postura
giosidade' pela referência constante aos direi- é a posição do corpo, sua manutenção, A expressão practiceas research (PAR)
tos do homem, o que Alain Badiou chama de sua atitude, muitas vezes desconfortável, é ernpreqada desde o infcio dos anos
5. E APÓS O PÓS -l\10DERNO? "moralismo tolo com tintura religiosa?". e até pouco "correta': em todos os sentidos ._19 9 0 , em particular no Reino Unido,
Talvez o p ós-dramático seja o chofer de desse termo. A postura é corporal, para descrever uma maneira de fazer
Supondo-se que se possa sair da crise pós- um bólido pós-moderno lançado a toda velo- cinestésica, ao passo que a atitudes é os estudantes de artes trabalhar.
-m oder n a tão forte e confortavelmente anco - cidade e indo direto contra a parede: a pai- psicológica, da ordem do sentir. Considera-se que estes devem criar
rada em nossa época, nota-se - talvez na sua sagen1 em volta é magnífica e alguns raros urna obra original antes de propor
própria lógica? -- certo sufoco desta filoso- passageiros têm de escolha entresaltar em A teoria da comunicação esforça-se por ler uma reflexão, o mais das vezes escrita,
fia e desta estética, ao menos como maneira movimento ou esperar que isso acabe':', as diferentes posturas de um indivíduo para sobre a sua criação, o que lhes permite
de designar nossa época. O pós-moderno interpretar sua atitude interior. Ela distin- conquistar um diploma de mestrado
estaria quase a perder o fôlego, segundo os NOTRS gue notadamente uma postura em contração ou doutorado. A ideia é, portanto, que
seus próprios teóricos: "Há vinte anos, o con- Ver as atas da conferência organizada por Ivleewon (submissão), em extensão (dominação), em sua prática constitua o objeto de sua
Lee na Kore a National Un íversity of Arts , em Seul ,
ceito (pós-moderno' dava oxigênio, sugeria out. , 2012, Wh er e Do We Go After the Post-Avant-
aproximação (partilha), em rejeição (recu- própria pesquisa, à maneira dos estudos
o novo, urna bifurcação maior, Ele se torna Garde? sa)'. Ela descreve as mudanças de posturas puramente teóricos ou históricos que
agora vagamente obsoleto,"? Com efeito, pas- Andy Lavender, Hamlet in Pi eces': Shakespeare efetuadas graças aos marcadores cinestési- versam sobre as obras dos "outros" Este
Reworked by Peter Brook , Robert Lepage,Robert Wíl-
sou-se "do pós ao hiper: a pós-modernidade c~s. Observa os traj etos cinestésicos de uma método da "prática considerada como o
son) London: Nick Haern, 2001, p. 30.
não terá sido senão um estádio de transição, Cf. Iean -Françoís Lyotard, La Condition postmoderne, pessoa em uma mesma situação. objeto de sua própria pesquisa" pode ser
um momento de curta duração. Já não é mais Paris: Minuit, 1979. É lícito aplicar esta teoria das posturas à estendido ao ensino das artes em geral:
o nosso" Cp. 80). Marc Iimenez, Qu-est ce que l'esthétique? Paris: Gal- análise do ator se o seu jogo segue a tradição a prática de uma arte e a produção de
limard, 1997, p. 418.
Assistimos, em todo caso, a certo con- psicológica e mimética. Visto que o trabalho obras tornam-se o objeto da investigação
Rafael Spregelburd, em Iudith Martin; Jean-Louis Per -
tra-ataque após o sucesso do pós-moderno rier (éds.), Buenos Aires, gén ération théâtre indépen - da encenação ou da coreografia retrabalha o e da reflexão e elas nutrem então a
como explicação universal. O presentismo dant, Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2010, p. 86. corpo conforme suas próprias leis não psi- pesquisa. Para o teatro, a representação
Samuel Beckett, Disjecta:Miscellaneous Writings and
contraria nossa necessidade de sair da crise cológicas, convém inventar outro modo de ou a performance realizada serão o objeto
a Dramatic Fragment, ed. Rubi Cohn, London: Iohn
(p. 9 2 ) . A comunicação ultrarrápida da internet Calder, 1983, p. 139. descrição e de estar atento à plástica amiúde de um estudo segundo os mais diversos

266 267
Practice as Research (Prática [orno Pesquisa) Practice as Research (Prática [orno Pesquisa)

métodos. Esse estudo é às vezes o ponto o ensino da arte e, portanto) a própria arte. de qualidade e de subvenção é que a ativi- a eles submeter-se, dedicando muitas vezes
de partida de um novo modo de pôr em Todas essas razões explicarn o surto dessa dade artística possa ser considerada legitima- mais tempo a compreender as diretivas ou a
prática que leva em conta as observações nova maneira de praticar a pesquisa. mente como uma pesquisa "séria" Segundo documentar sua obra do que a criar!
teóricas. E assim sucessivamente, ao o ResearchAssessment Exercice (RAE) para as
infinito ... universidades britânicas de 2001, o trabalho d. Inverter a Situação?
2. RAZÕES E PROBLEMAS DO SURTO de pesquisa dos docentes deve responder a O desenvolvimento) no início dos anos 1990,
1. A LÉIVl DO DEBATE SOBRE A T EORIA E A DA PAR (r-cn) critérios bem precisos, mas dificilmente veri- do p ós-estruturalismo, da CriticaiTheory, do
PRÁTICA ficáveis: "Para ser considerado como pesquisa, feminismo e dos Performance Studies: coin-
o trabalho deve mostrar que ele poderia: cidiu com a vontade de introduzir a prática
A Practice as Research, a prática considerada a. As Novas Condições do M ercado nos cursos universitários e aceitar a ideia de
a. interrogar-se de maneira crítica; b. situar-
como pesquisa) é.ern primeiro lugar e antes Se a questão ela PAR, às vezes denominada -se em seu contexto de pesquisa; c. contribuir que a arte pode ser analisada e teorizada. Infe-
de tu doa p rática constituindo o objeto d e Parip (Practíce as Research in Performance), para umsaberou para uma compreensão ori - lizmente, a privatização e o gerenciamento
uma pesquisa. Não se tem aí nada de muito se coloca com tanta insistência, é porque ela ginais; e d. dar nascimento a outras formas universitário com frequência simplificaram
novo no campo dos estudos teatrais obse- é sintomática das mudanças do mercado de discurso que permitam sua disseminação" e comercializaram a pesquisa. Contudo, o
dados desde sernpre pela possibilidade de universitário. Além da demanda estudan- (Whitton, 2009, p. 81) fen ômeno não é irreversível, como faz notar
en con trar a teoria mais apropriada para til, o desafio é integrar o trabalho artístico e Fiona Candlin: (~A reforma conservadora da
descrever e in terp retar a rep resentaç ão ou os profissionais na universidade) de incitá- c. Forma da Pesquisa Teórica educação permitiu talvez a instalação de dou-
o tex to d r amático. Tr ata-se a seguir) e de ~los a provar s~la utilidade e a justificar seu As diretivas oficiais e a maior parte dos torados baseados na prática) mas, paradoxal-
maneira m ais re cent e e indireta, da ideia de lugar. 90 % da discussão sobre a Parip versam docentes tendem a considerar) um pouco nlente, criou talvez um lugar para repensar de
que elaborar-s e p or m eio e ao sobre a legitimidade e o lugar quantitativo e rapidamente, que a pesquisa deve efetuar- maneira crítica a prática universitária."
termo de uma a qual nã o é sepa- qualitativo da prática) seja para os estudan- -se sobretudo após a fabricação da obra, Trata-se, portanto, agora) de retornar esta
rada de seu objeto ar tístico ou posterior a ele, tes seja para os docentes. Por toda parte) a tornando a forma de um ensaio) de uma ideia da Parip (cujo valor em si não suscita
mas é p arte ativa e simul t ân e a de sse objeto. arte e os artistas têm senlpre suscitado certa dissertação ou) ao menos, de urna discus- dúvida) para propor e testar práticas expe-
O ensino do teatro é UlTI.a coisa completa- desconfiança da universidade. É . sobretudo são oral. Qualquer que seja a forma adotada, rimentais que induzam novas teorias ereei-
mente PAR as research): no mundo anglo-americano, mais aberto e trata-se senlpre de falar de arte em termos procamente.
éa ger al ao processo de cri ação, mais pragmático. que a universidade inte- cognitivos e provando sua originalidade e a Entretanto, resta tudo a fazer, poi s a PAR é
porque est a última versa so bre o estudo dos grou resolu tamente a formaç ão para os atores inovação da obra: ('A ambiguidade do fato apenas um quadro vazio) e não um conjunto
textos e d as formas tea trais, sobre a en cena- e os diversos ofícios do espetáculo. de sab er se a prática corno pesquisa é ob ri- de teorias existen tes, que bastaria apli car.
ção corno ar te, sobre o jogo do ator ou sobre gada a demonstrar uma inovação artística Tudo depende, pois, de observaçõe s empí-
as ar tes do eso et acuio. b. Os Perigos e as Ciladas
ou U111a originalidade em termos cognitivos ri cas e de métodos julgados os mais aptos
Uma nova norma institucion al: é o que da Institucionaliza ção da PAR
é algo que ainda é preciso resolver. " Serão p é1-ra explicitar a prática. E, em última aná -
não se pod e deixar de observa r no contexto Apesar dos debates salutares que suscita, a ins- as pala vras ) com efeito, sempre as mais ade- lise, tudo depende da política adotada pela
britânico ou, de UH1 m odo mais geral , euro- titucionalização da prática na universidade quadas para avaliar UU1a obra visual, uma universidade) política em face da mercanti-
peu. Com a transformaç ão do en sino eIU ou nas escolas) acarreta numerosos mal-en- melodia ou uma voz poética? Quanto à ori- lização e da comercialização da educação e
um mercado ern que supostam ent e reina a tendidos. f...s diretivas oficiais do s organis- ginalidade' cumpriria ainda dizer em relação das univ ersidade s.
livre concorrência , as uni versidades entram mos destinadas a candidatos aos mestrados a qual norma e se lembrar que essa suposta
em competiçã o para oferec er aos estudantes e doutorados "práticos" são muito gerais) e qualidade universal nem sempre foi a regra e. Entre Sabotagern e Subversão?
aquilo com qu e senlpre son haram : as práticas até ingênuas. Conviria, segundo elas, demons- obrigatória. A pesquisa, tal corno aconcebe a An tes de passar às proposições concretas
de uma arte sancion ad a e recompensada por trar uma "alta qualidade artística no trabalho universidade ou os orzanismos de "controle e po sitivas) algumas reflexões sobre essa
~)

um diploma universitário . Para as universi- criador) [. . .] apresentar concepções novas ao de qualidade': implica uma grande simplifi- reforma educacional conservadora, dos anos
dades, a busca de clien tes pr ontos a pagar o conhecimento e substanciais, [... ] trazer uma cação, uma ingenuidade burocrática, e até 1990 e 2010, não serão talvez inúteis. Não se
alto preço torna-se U111a necessidade, depois contribuição ao conhecimento?'. Infelizmente, uma técnica de adestramento para aman- trata de recusar em bloco essa reforma insti -
rapida m ente urn a qu estã o de sobrevivência) esses votos piedosos (e vazios) são tão subjeti- sal' o monstro cênico e perforrnativo. Esses tucional, mas de questionar e até sabotar seus
ainda que seja para se beneficiar das subven- vos quanto arbitrários e ingênuos, pois quem pressupostos muito discutíveis não sornente fundamentos, de organizar a resistência e até
ções do Estado e de org anismos que se arro- irá verificar o conhecimento e a qualidade? não ajudam a pesquisa) mas a empobrecem e a subversão) antes de assumir finalmente o
gan1 o direito de legislar sob re o que deve ser A preocupação dos organismos de controle põern em perigo a arte, se os artistas aceitam risco de propor exercícios concretos.

268
269
Practice as Research [Prática Como Pesquisa} Practice as Research [Prática Como Pesquisa}

Assim, a do UKCGE
Council Graduate bQuc:atl()n)
J.'-.lJ..lj:::".\..J.V.l.l.l

trabalhos de doutorado
incluir uma con-
textuanzacao substancial do trabalho de
Os trabalhos de doutorado
com efeito, contextuanzados: '''::lI . .
't"'t:>rY"IA'n,T"'l''''..

portanto,

270 271
Practice as Research (Prática Como Pesquisa) Prega. Dobra

e não somente no sentido de o ator encar- início do trabalho!), do diário de criação concepção do semblante humano, o recurso Christophe Bara; Bernard Guittet, CArt de Tacteur
dans la tragédie classique, Lectoure: Bouffonneríes.
nando e imitando pessoas. O corpo aparece (caderno de direção) que a pesquisa acon- a atores m ostra ser o melhor método: estes 199 6, p. 59·
então em sua dimensão histórica, como uma selha, se não impõe, ao candidato encena- poderão improvisar o encontro COIn o outro, 8 Emmanuel Lévinas, Ethiqu e et injini, Paris: Livre de
aposta estética e política, corno uma forma dor, há talvez outra maneira de proceder: o compreender o rosto do outro como um a Poche, 1981, p. 80 .
de descobrir e figurar o mundo. Tal exercí- de progredir por meio de balanços parciais interdição de m atar "o rosto está exposto,
cio sobre os modos d e encarnação após cad a etapa criação, interro- ameacaao , como que n os convidando a um
conduz a outro uso da
também da pesquisa quando ela não receia
testar e provocar a prática. Ele questiona
as diretivas oficiais, nos modos de pensa-
mento, o binarismo desta oposição entre
mas gando o criador um a vez term inado o pr o-
jeto e sem obrigá-lo a tudo justificar, a dizer
aquilo que ele não tem vontade de dizer.
ato de violência. Ao mesmo tempo, o ros to
o que nos proíbe de matar'". Somente a expe-
riência .dramática e-teatral, graças aos atores,
n os aju dará a compreender e aprovar essa
filos ofia do encontro humano.
I Prega, Dobra
Fr.: p/i; Ingl.: fo/d; AI.: Falte.

pesquisa teórica e experimentação prática, 4. o F UTURO DA PAR: A PAR como a RAP são pistas doravante
cognitiva e emotiva, espírito .e corpo, pen- CONCLUSÕES PROVISÓRIAS indispensáveis à educação tanto de pesqui- Seg un do Gilles Dele uze, relend o Leibniz, lia
sarnentos e afetos. sadores como de artistas. COIn a condição, matéri a não ces sa d e se redobrar (replier)
D. O processo e o produto: o criador-pes- A PAR está apenas em seus inícios, inícios to davia, de que a formação e a enquete res- sob re e la mesm a, ma is geralmente o
quisador deve resistir às injunções de refle - promissores, pois obrigam o teórico assim peitem a ar te, que deve pern1anecer a maté- mundo é do b rado (plié) [. ..] Desdo b ra r
tir incessantemente o que ele Ele como o a repensar suas categorias , -, ,, insubstituivel. Se se faz entrar e
r'1, .... , ... " .., ..... (deplier) o que es tá dobrado (plié) é
tornar o de não se suas arte na universidade, deve-se ta m- po ssível. ma s é urna ope ração de a bstração.
val' a todo momento uma ·t-'·" ......n'"
r ' ó ,... Mas a PAR é ou seria ainda dizer: bém velar para não a controlar pelas normas Oq ue está d obrado não existe se nã o co mo
intimada-a justif car à PAR sua maneira de deveria ser? - também uma RAP, uma recher- de uma universidade que se converteu em e nvolto e m a lguma co isa" . Esses afor ismos
andar!). Para fazer isso, o criador-pesqui- chepar la.pratique (pes quisa pela prática): a empresa unicamente preocupada com sua se deixam facil m en te trad uzir pa ra a língu a
sador trabalhará de preferência sobr e blo - pesquisa, por sua vez, tem, de fato, necessi- produtividade; deve -se, pois, contornar, sub- da prática teatral, fazen do da do bra uma
cos prático-teóricos, unidades nas quais dade de uma prática experirnental, de uma verter, e até sabotar as managerial decisions imagem-conceito g,ue de sdobra muitas
não se poderia dissociar a reflexão teórica e possibilidade de testar sobre um material (decisões gerenciais), mantendo ao mesmo questões embru lhadas da drama turgia e da
a experim..entação intuitiva. Ele se valerá da (texto, ator, espaço etc .) algumas hipóteses tempo o sorriso indefinível dessa arte posta en cenaçã o.
hipótese teórica para continuar sua.prática teóricas. Por exemplo, a fim de verificar os em questão. Prática e pesquisa possuen1,
e recorrer à prática para verificar um esboço cinco pontos de todo movimento, segundo todas as duas, direito de cidadania tanto na VIn texto, sobretudo literário e dramático, foi
de te oria. Bara e Guitet (pontos de de decisão, cena C01110 na escola. Em de opô -las, ou dobrado por seu autor em UInacaixa denomi-
obriga mui op ortunarnente ele conclusão, de uma contra outra, não nada obra. Palavras, frases, discursos
dor-pesquisador a ea há todo interesse em confirmar COIn todas mais fazê-las jogar urna com a outra? mas também todas de materiais
antes tanto sobre o resultado quanto sobre espécies de movimento: arremesso de bola, cênicos - foram aí reunidos, comprimidos em
o processo<!l, a não cindir o processo do pro- deslocamento de Ullla pessoa .n o espaço, NOTA S unidades denominadas ora cenas e atos, ora
David Whitton, The Practical Turn in Theater ações faladas etc. Eles foram, portanto, sub-
duto. Trata-se para ele, C01110 mais tarde para golpe desferido eIn alguém, ação mínima ou Research, Forum Modernes Theater, v. 24, n. I, jan. .
o espectador, de saber perceber o processo no sequência inteira, ao que se poderia acres- 2009, p. 83-84. metidos auma série de dobras, mais ou menos
produto, portanto de imaginar COl110 os artis- centar: a dicção de U1l1 alexandrino, de urna Anna Pakes, Origin al Embo d ied Knowledge: The Epis- visíveis, dobras que será preciso, agora, pelas
temology of the New in Dance Pra ctice as Research, necessidades da leitura ou da performance,
tas trabalharam e corno a obra traz em parte tirada clássica, a interpelação de outra pessoa
Research in Dance Education, v. 4, n. 2, dec. 2003, p. 132.
o traço desse processo. Trata-se do mesmo etc. Trata-se então de afinar, precisar, dife- Fiona Candlin, A Dual Inheritance: The Politics of
desdobrar e estender a fim de decidir sobre sua
modo, para o artista, de saber transpor o pro- renciar esses tipos de movimento, antes de Educational Reforrn and PhDs in Art and Design, apresentação no palco. Para marcar as linhas de
.Tournal of Art and Design Education, v. 20, n. 3, oet. força ou de ruptura, as dobras são úteis, porém
cesso o método de trabalho na obra constatar se o esquenla de cinco fases corres-
2001,
mente proposta. ponde uma realidade un iversal, corno insuficientes, de um lado porque nunca esta-
E. Uma outra. maneira de estudar esquen1a narrativo a todo relato lTIOS seguros de encontrar as boas dobras, de
ção: ao lado dos ensaios (que constituem cation, v. 19, n. I, 2000, p. outro e sobretudo porque devemos de novo
base. É mesmo permitido pensar que propo-
Paul Allain; Franc es Barbe, On the Shoulders of Tra -
agora o objeto de pesquisas aprofundadas'), sições abstratas, teóricas, filosóficas podem dition from East and West: A Conversation,Studies
redobrar essas sequências mal desdobradas em
de entrevistas antes, no decorrer e depois do encarnar-se e explicitar-se no jogo dos ato- in Theater and Performance, v. 29 , n. 2,2009, p. 155. outra caixa, desta vez cênica, e por que iremos
espetáculo, de notas de intenção do ence- res no espaço-tempo da cena. É assim que, 6 Sophie Proust, La Direction d'acteurs dans la mise necessariamente (isto é certo!) imprimir novas
,en scêne contemp ora ine , Vic la Gardiole: LEntre-
nadar (às vezes redigidas um ano antes do para compreender a filosofia de Lévinas, sua temps, 2008.
dobras, em função daquilo que nossa leitura e

272 273
Presentação/Representação
Programação

nosso olhar irão imprimir no texto por um ins - O estilo presentational da encenacao Razõesdesta insistência noprocesso: durante ou encenadores (P. Rambert , T. K.an · t or, R.
tante desdobrado enl nossas cabeças. Não seria efeitos de teatralidade, longe de toda imita- muito tempo, a estética e a análise concen- Lepage) ou grupos (LAvantage du doute She
isso tão somente para decidir onde a voz se ção exata da realidade. A realidade é distar- tram-se quase exclusivamente na avaliação She P~p ) fazem às vezes o relato de sua gê~ese)
detém por um instante, onde o autor se coloca cida, abstrata, tratada com exagero, e até com da obra, fazendo abstração de seu modo de das dificuldades de tratar um material difícil
e sobre o que ele apoia seu corpo e seu fraseado. excesso·. O jogo de atuação quebra a ilusão fabricação, negligenciado por ser assimilado ou de se livrar d~ uma auto ficção. , que não
A encenação ~ e pouco importa se ela parte dirigindo-se diretamente ao público. O espe - à cozinha da criação. A isso se adiciona uma nos poupa das dIficuldades de sua criação.
de um texto ou de imagens ou de ações cêni - táculo (cenários, costumes, música, luz) cami - mudança conjecturaI inegável: a aceleração Trata-se sempre, nas obras, de estabelecer ou
cas inventadas - se constrói sobre essa linha nha nessa mesma direção de artificialidade, de da tecnologia e a necessidade, para manter- dar a compreender fenômenos cuja sucessão
de falhas e de dobras. Em última instância, é intensificação- dos signos. É também a pre- -se na corrida, de se adaptar aos progressos e sistema acabam por fazer sentido.
o ator que, por sua maneira de se situar no sentação de si, no sentido de Goffman'; uma técnicos, se possível antecipando-os. Tal era NOTRS
espaço e gerir o tempo, ora deixando-se levar referência à sua própria identidade. O indi- o sentido da questão proposta a Iacques Der- Iacques De rrida; Bernard Stiegler, Échoo-raphíes de
por ele, ora dominando-o por um instante, é víduo, assim COlno o ator, não busca sen1pre, rida por Bernard Stiegler, por ocasião de suas la t él évision, Paris: Galiléc, 199ó, p. 80. c»
2 Clyde Ch abot, Des oeuvres proc essuelles, Th éâtre/
responsável pelo desdobramento -da encena- um pouco, tornar-se interessante? Échographies de la télévision: "O senhor ~ão Public,n. 184 jan. 200 7, p. 2 7· (Número especial:Théâtre
ção. Denomine-se o resultado com o termo O estilo representational, ao contrário, acha que a esta processualidade está ligada cont emporain: écriture textuelle, écriture scénique;
partição, encenacao, despregamento, imita mimeticamente a realidade na cena a questão de uma velocidade de desenvolvi- dossi ê concebido e realizado por Clyde Chabot.)
tivo-, espaçamento ou desdobramento, pouco (objetos, mas também comportamentos, menta do sistema técnico em relação ao qual
importa. O que conta é compreender e dar a emoções autênticas). É o estilo da est ética as estruturas em que temos vivido durante
compreender qual pulsação, qual rítmica orga- realista ou naturalista, a qual faze r séculos, e até mil ênios, se revelariam estru-
niza doravante a sequência das dobras, corno esquecer a fabricação artística e artificial da turalmente em atrasor'"
esta pulsação será recebida ou rejeitada, n ego- obra. Ela produz aquilo a que chegamos mai s Aceleraç ão de processos: a resposta a esta Programação
ciada ou repelida pelos espectadores-, quais tarde, com R.oland Barthes, a denominar de questão da aceleração dos processos só pode-
Fr.: progrommotion; !ngl.: program m ing;
afetos- eles ai perceberão eem que esses afe- efeitos de realidade e de autent icidade. O ator ria ser positiva. Sem elhante aceleração é tanto
AI.: Progromierung.
tos reencontrarão as dobras de seu cGrpo e de se esconde atrás de sua p er sonagelll, corno teletécnica e infonnacional quanto econômica
seu imaginário, que para melhor representá-la: mostr á-la e e sociopolítica: ela está ligada às mutações A proqramaç ão de uma temporada teatral
fazer de si seu representante. tecnológicas e à globalização- daí decorrente.
ou de um festival incumbe cada vez mais
NOTA Derrida, entretanto, matiza esse entusiasmo
Curso ministrado em 16 dez. 1986 na Universid ade a uma naval porém crucial, figura da
NOTR para com os processosinformáticos: "É pre-
de Pari s 8; ver seu livr o: Le Pli: Leibniz et le baroqu e, 1 Erwi n Go ffrnan , The Presentation Everyday empresa teatral: õ proqramador.
Paris: Minuit, 1938 .
Edinburgh: Vl .L:'U U 1 U U,1 f::.U , 1956. (Ne w
ciso ficar atento aos processos sem negligen-
Doubleday Anchor ciar, por isso, descontinuidades, as estases, 1. o PROGRAMAD01l, o NOVO
as suspensões, as estruturas, as heterogeneida- OR GA NI ZA D OR DO JOGO?
des entre os modelos, os lugares, as leis:' (p. 82)
Esse conselho vale para avaliar a obra contem- Os são cada vez mais onerosos,
po rânea, no dom ínio das àrtes plásticas, assim os esp ectadores- cada vez mais cortejados,
Presentação/
Representação Processo como no do teatro. De tanto se fixar no pro- a programação não poderia permitir-se o
cesso e na produção, corre-se o risco de se per- menorerro. Antes mesmo que o espetáculo
FI'.: présenta tion/teptésentation, Ingl.: presentation/ Fr.: processus; Ingl.:process; AI.: Prozess. der de vista a qualidade estética das obras e, exista, ela deve efetuar suas escolhas, quer se
represen to tio n; AI.: I/orstellungl[)orstellung. pura e sim plesm ente, sua organização formal, trate deuma criação da casa ou de um espe-
o elogio da fabricação: corno a performance , bem corno os conteúdos veiculados. táculo convidado para algumas noites. Ante
A oposição presentação/representação a encenação pós-moderna- ou p ós-drama - Tal é, COlTI efeito, o risco que se corre com o acréscimo da oferta teatral, o programador
pode ser útil para diferenciar estilos tica- insiste no processo de fabricação) nas as "obras processuais" segundo o termo de ajusta suas seleções às leis da oferta do artista
de jogo de atuação e de encenação. regras e nos modos de produção, muito mais Clyde Chabot: "o processo de criação torna-se eda demanda do público. Nos grandes tea-
É sobretudo no uso ing lês dos adjetivos do que no resultado final, às vezes julgado a matéria mesma dos espetáculos: as etapas tros públicos, o programador - estratego tanto
presentational/representational que os secundário, provisório e, muitas vezes, pouco de sua concepção e de sua realização [... ] são quanto gestor - parece impor-se lentamente
dois paradigmas são frequentemente convincente. Mais do que a obra ac abada, o explicitadas ou dadas a ver, ou então a repre- na paisagem atormentada da produção teatral.
utilizados e abrem perspectivas críticas que conta é então a fabricação do sentido, sentação é constituída pela introdução no jogo Corre ele o risco de curto-circuitar a :figura
relevantes. sua construção e sua desconstrução·. cênico de suas ferramentas'> Certos autores dos artistas e do encenador?

274 275
Propriocepção
Programação

2. QUEIvI PROGRAMA O PROGRAI\1ADOR? Uma velha ideia brechtiana pretende os artistas sentem-se, de fato, coagidos a essas noções designam a estrutura e a coe-
que as obras sejam programadas em fun- propor produtos apetitosos, no espí- rência da mise en scêne.
A. finalidade da programação é sempre um ção da necessidade e da atualidade do com- rito do tempo, evitando assumir qualquer Os diretores e uma parte da imprensa
pouco ambígua. Ela não é necessariamente bate político e, se for preciso, adaptando-as risco. Torna-se quase impossível, no teatro do tão controvertido festival de Avignon de
(COI110 outrora nos países "socialistas") a de e até "traficando" com as peças por meio de público, contornar as exigências da moda 200 5 explicavam a rejeição de um espetá-
exercer uma censura ou um controle político sua encenação. Mas quem acredita ainda e do gosto, de contrariar as prescrições e culo pela hipótese de que certos espectado-
sobre os teatros. Seria mais a de manter assim na possibilidade de mudar a sociedade pela os diktats dos programadores institucionais res não tenham querido ou não souberam
um equilíbrio entre os gostos e os custos, entre arte? Quando muito, conservou-se a ideia, e influir, portanto, a longo prazo, sobre o aceitar a proposta artística, que, no entanto,
as exigências artísticas e as necessidades eco- nos Stadttheater (teatros municipais) ale- público. segundo eles, estava longe de ser uma pro-
nômicas, de adequar o gosto, amiúde eclético, mães, por exemplo, de que se pode atribuir Deve-se temer que o reino da progralna- posta desonesta ...
do público e o valor suposto das obras. a uma temporada um ten1a geral, como o dos signifique o fim da liberdade artística
De onde o programador tira 8. sua legí - estrangeiros, por exemplo, no Karnmerspiele e da experimentação. Os programadores
timidade? A de seu teatro e, de Munique eI11 2008-2009. Tais tentativas não são senão um elo na cadeia teatral, que
portanto, as autoridades de tutela lhe con- atraem muitas vezes a crítica desabusada dos somente as pequenas produções indepen-
Pruurlccepçáo
fiam o papel de temporada para próprios artistas, pois estes se sentem instru- dentes, mas confidenciais, estão em condi-
satisfazer e conservar o público, sem pro- mentalizados' e até infantilizados, por Ulna ções de contornar. Compete à instituição e, Fr.: proprioception; Ingl.: proprioception;
vocar ao mesmo tempo a perda de muito pedagogia teatral simplista. pois, em última instância, aos políticos, deci - Ai.: Propriozeption.
dinheiro para a coletividade. Sua escolha Na maior parte do tempo, a programa- dir acerca do que eles esperam dos artistas,
artística é teoricamente livre, mas o pro- ção não tenta justificar a posteriori escolhas inclusive assumindo o risco de serem criti- A propriocepção é a integração no sistema
gramador não pode ignorar o gosto de seu mais pragmáticas do que filosóficas. Ela se cados e desaprovados por eles. nervoso central das .mensagens oriundas dos
público e as chances de atraí-lo e, por con- considera equilibrada, completa, pronta ao proprioceptores, os quais são responsáveis
sezumte, de rnanter a da empresa compromisso, ela oferece sua oportunidade pela sensibilidade dos músculos, tendões, arti-
teatral, pública ou privada. Ele trabalha a todos os gêneros e a todos os segmentos de culações, ossos, ouvido interior, por ocasião
mais para do que para os artis- público; ela sugere urna coerência que não dosmovimentos-. É também a sensibilidade
tas.A econô m ica ou política lhe está, no entanto, na linha de .u m partido ou Proposta Rrtística na posição da cabeça e do corpo em relação
delegaram o poder de selecionar os espetácu- de urna estética normativa. à gravidade. Ela é, portanto, a consciência de
los a serem criados, de convidar, de realizar Fr: proposition ortisticue, Ingl.: anistieproposa/; /\1.: nossos membros no espaço, sem ter de vê-los.
tournées. Fica a seu cargo imaginar as I110n- künstlerischer Vorsch/ag. A interocepção designa a sensação das vísce-
tagens financeiras, as coproduções, a espé- 4. DERIVA DA PROGRAMAÇÃO? ras, enquanto a exterocepção concerne aos
cie de espetáculos e, indiretamente, o tipo de Termo na moda desde meados dos anos cinco sentidos abertosao Inundo exterior.
sociedade que ele pron1üver: toda Correm os programadores o risco de ficar 2000 para índicar que o artista (encenador, ..A. empatia- cinestésica é uma forma de
programaç ão é imagin ável. fora de controle? Estão eles em vias de tornar performer, plástico) escolheu determinada propriocepção: o sentimento de estar se
o lugar dos encenadores, dos dramaturgos tese ou ideia estética, fez lmplkltarnente movendo enquanto se olha outra pessoa em
(na Alemanha), e até dos produtores de tea - urna proposta artística, por mais obscura movimento, sem que o sujeito tenha por isso
3. QUAIS CRITÉRIOS DE SELEÇÃO? tro? As condições econ ômicas impelem, de ou fútil qUê seja, que o espectador- de mover-se, ele mesmo. O ator e o dança-
fato, nessa direção: cada vez mais os teatros é solicitado a aceitar, se ele deseja rino manipulam nossa propriocepção, seja
Se quisermos de fato admitir que os crité- são geridos corno errlpresas queprecisam ser ,_ compreender e apreciar a obra de arte. nos corpos reais ou nas imagens projetadas
rios de escolha não são nern totalmente eco- rentáveis, segundo uma estratégia de con- Sem () que esse espectador permaneceria ou nos desenhos desses corpos. É também
nômicos (corno para o teatro privado) nem junto e como as enlpresas comerciais. O pro- fora daquilo que o artista quis realizar, ele a percepção da textura" de uma imagem ou
totalmente políticos e ideotoarcos '.l..J..J.J.c;.~'-'-'J.J. é urn dramaturgo dotado de U111
;;:;'.1.
não compreenderia a originalidade e as de um corpo, de uma figura e de seu fundo.
sob as ditaduras) e que esses critérios não cartão de crédito. Ele dá crédito aos outros intenções da obra, e não deveria então As projeções de imagens, frequentes nas
pois, ser nenl puramente estéti-
....... .., ....... '-' ........ U ... .... L, esperando cobrir seus custos: retorno sobre atribuir a culpa disso senão a si próprio. cenas desde os anos 1920, IDasde qualidade
cos, nem inteiramente desinteressados, per- o investimento. técnica perfeita somente após os anos 2000,
cebe-se a dificuldade, para o programador, Essas condições de estratégia, de moda A noção de proposta distingue-se da mais contribuem para provocar a propríocepção e
em determiná-los e, para o analista cultural, e de rentabilidade comercial têm impacto antiga e datada, a de discurso da encenação, a cinestesia. Para o ator como para o espec-
em interpretá-los. sobre a estética e a política dos espetáculos: ou da mais recente, a de dispositivo-o Todas tador-, a aposta é sempre a de saber ler e

276 277
Proximidade (Teatro de)

experienciar O corpo do outro, suas emoções, ; Proximização


seus movimentos potenciais, sua agitação e
sua din âmica.

Proximidade
I
I
'.'
:~
Fr.: proxirnisation; Ing 1.: proximation;
AI.: Annoherung.

Termo da narratologia por Gérard


Genette tPalimpscstes, 1982, p. 351)1. Esse dis-
positivo narrativo (na reescritura de um
(Teatro de)
texto) ou cênico (na encenação de uma peça)

o
Fr.:Proxirnité (théâtrede); In9 1.: community theatre,
AI.: Theater der Gerneinschoft.

teat ro d e proximidade é Ul11 teatro que


representa urna comunidade- por meio da
consiste em aproximar o texto e a cultura
font e da situ ação concreta do público-alvo,
transpondo e adap t ando a época) o lugar
d a ação, o meio social e o universo cultu-
ra l. Esse processo de adaptação é tido como
R
escolha de seus temas, da participação dos facilitado r da ta refa do leitor e do especta-
cidadãos em um projeto que concerne a dor-, A encenação recorre a esse dispositivo
seu ambiente. A mescla de atores amado- de sde que ela concebe seu corno o da
res e é Esse um quadro para a Reciclagem e intertextuaiidade:em um sen-
Reciclagem
tro de para a comunidade se esforça para e de uma interpretação que possa falar ao tido um pouco negativo ou ao menos auto -
at ar laço s estr eitos CO111 seu público, na esco - públicocontempor âneo. Fr.:recyclage; Ingl.: recycling; A!.: recyclinq derrisório, a reciclagem é a intertextualidade
lha dos ternas, nos métodos de trabalho e (Wiederverwendunq; do pobre. Todo texto, sabe-se muito bem
NOTRS
na maneira de refletir coletivamente sobre 1' G érard Ge ne tte, Palimpsestes: La Litté ratu re au second disso , faz alusão, remete a outros textos, se
o pr esente eo futuro. degré, Paris: Seuil , 1982, p. 351. No sentido geral do termo, a reciclagern inspira neles, ao infinito. A intertextualidadc,
é a reutilização de materiais existentes, já enquanto-teoria, 'rem onta no máximo àrefle-
empregados ou destruídos, para fabricar x ão de um Saussure, no começo do século xx,
um novo objeto com novas funções mas a reciclagern é velha como o mundo. Qu e
e efeitos inesperados sobre os novos se pense na reciclagem da mat éria, dos restos,
usuários. dos materiais artesanais ou indu~triais. Tudo
se recicla: o dom éstico,
Tudo é reciclável, corno sabem muito bem as águas utilizadas, mas também as palavras
bricoleurs (biscateiros, faz-tudo ), os antropó lo- usadas, os textos variados, citados, explici-
g08, e os visitantes de museu de ar te con tem- tados. Assim, são cotidianamente recicladas
porânea. Essa refuncionalização dos objetos palavras, expressões, maneiras de falar, esti-
se estende aos textos -e às ideias. Pode-se reei- los, retóricas: são outros tantos signifi cantes
dar tudo: quanto In ais os objetos são inespera- da linguagem e do discurso. E, alérn das pala-
dos, mais eles nos surpreendem sob sua forma vras' dos materiais verbais, são os temas, os
reciclada, mais a reciclagem será notada, admi- motivos, os relatos, as ideias que são o objeto
rada e, finalmente, elevada ao nível de princípio dessa reciclagem intertextual.
artístico ou de molinete universal. Uma mais séria e mais precisa nos
O teatro não escapa a muito ao con- obrigaria a de outras
trário. Ele vive, em seus texto s e mais ainda noções como a adaptação, a reescritura, a
em suas encenações, desse procedimento da intermidialidade-, a intcrtextualidade, a inter -
reutilização, como se se tratasse d e fazer eco - culturalidade, o interartístico, eIDsuma tudo
nomias e de provar que a arte se serve de todos o que é suscetível de ser prolongado, reelabo-
os pedaços imagináveis da realidade, que ela rado, reestruturado, re- formado, observado
não cria no fundo nada novo. em sua dinâmica de recriação permanente.

278
Reconstituição Registro

o teatro, e singularmente o teatro da mise perto possível da maneira pela qual ele foi sempre artificial, fabricada, que necessita Com as técnicas digitais, o registro se
en scéne contemporânea e pós-rnoderna-, montado na sua criação. Fala -se de recons- de um comentário épico, aproximamo-nos beneficia de uma maior flexibilidade e pre-
presta -se a todos os empréstimos e a todos os tituição histórica de uma representação con- da ideia de que a reconstituição não difere, cisão, o que o aproxima de uma filmagem
roubos, tanto por seu espaço, suas matérias, forme o que é transmitido ou o que podemos por natureza, de uma criação original para a para o cinema ou para a televisão. O risco é,
quanto pelos corpos humanos que ele soli - imaginar a seu respeito, ou de uma recons- cena, pois esta última é, de início, progressiva- portanto, que os atores da representação tea-
cita. Todos esses materiais são ora empresta- tituiçãode um espetáculo concreto, inteira- mente fabricada no curso dos ensaios e, depois, tral para as câmeras, as quais
dos às artes existentes - eles são combinados, mente refeito segundo o modelo original, segundo a expressão de Brecht, "entregue" ao se introduzem facilmente por toda parte ,d o
justapostos, adicionados - ora «aglomera- pelo mesmo encenador ou outra pessoa, público. Esse público é intimado a reconstituir espaço cênico. O resultado é um filme que
dos': tais corno uma colagem, um a compres- com novos intérpretes. urn Inundo ficcional, ações dramáticas, urna perdeu o sentido da relação dos atores com
são de materiais plásticos arte bruta" de Convém a da história, a partir de materiais que são postos seu público teatral. A no teatro do
unI Dubuffet. reprise: esta última é a continuação de urna à sua disposição. O trabalho de reconstituição Bouffes du Nord, da encenação de Hamlet
O teatro: reciclagem da reciclagem? A.. ence encenação após urna interrupção mais ou pelo espectador será, pois, a regra e não a exce- por Peter Brook (2001) , é um bom exemplo
nação não se contenta em examinar de onde menos longa, com intérpretes idênticos ou ção. O espectador está sen1pre ativo, recepti~o disso: encontram-se aí todos os ingredientes
vêm os ternas, corno as matérias combinam diferentes. No meio teatral, a é fre- a ponto de precisar incessantemente construir da teatral, notadamente sua
e 'COIU qual efeito. Ele confronta, comprime, quente, ao passo que a reconstituição de urna e desconstruir o espetáculo, se ele quiser com- concentração eIn um espaço teatral, mas o
reutiliza os ternas dos textos e as mat érias representação é excepcional, dada sua difi - preender sua dinâmica e seu sentido. enquadramento da câmera, depois a monta-
audiovisuais, ele põe em confronto, em ten- culdade.A reconstituição obedece a motiva- gem, têm a qualidade de um filme com nor-
são, esses elementos heterogêneos finda por ções muito fortes: aniversário ou celebração, mas internacionais.
reciclar igualmente os velhos hábitos que presi- vontade de dar a conhecer às novas gerações O registro propriamente dito permanece
diam a relaç ão entre texto e cena. Enc ontramo- urna obra que marcou sua época, cuja esté- fiel a suas origens, assim como os dramas
-nos assim ern de elementos tica fez escola ou, ao contrário, que jamais foi Registro retransmitidos ao vivo a partir dos estúdios
já conhecidos ou experimentados. .Daí resulta superada. É o caso de Einstein on the Beach, de Buttes Chaumont, ou ainda, desde 1966,
urna art e da hibridez», um gosto da impureza, performance-espetáculo de Robert Wilson, Fr.: Cap totion; ingl.: recordmq; AI.: Aufna hme. as transmissões para a televisão francesa de
do heteróclito. A própria noção de criado para o festival de Avignon en11976 e "Au Théâtre ce'soir" Éle tem. por norma fazer
vê assim reeiclada: "remontado" identicamente em 2013, o registro de um espetáculo teatral constantes referências teatral
tudo sobre uma cena COIn vocação de ser ou meSl110 artista, porémcom novos .atores- conheceu um desenvolvimento
pública da obra. Hoje em dia, esse registro é
vir a ser material: os objetos, os espaços, mas -performers. espetacular e urna evolução não menos conhecido mais comumente corno "filme de
tamb ém os textos e seus ternas, sua textura" Quem pode ter a pretensão de reconstituir digna de nota a partir dos anos 1990. Ele
teatro". Numerosos teatros propõem DVDS de
e sua textualidade e, finalmente, corpos o ou um artístico pertencente consiste em registrar verdade fugidia
seus espetáculos antigos. O é reali-
envelhecer dos atores que sempre nos lembram ao passado? Son10Scapazes de reconstituir um de um espetáculo: captar o que seria
zado durante uma apresentação pública com
alguma coisa, nos reconduzem ao presente e crime (para os juízes) ou um acidente (para dificilmente visível; apreender para
os meios técnicos sofisticados da televisão.
nos projetam para o futuro. a policia), mimetizando e explicando o que um futuro público de amadores ou de
Mas o dispositivo- do registro foi cuidado-
se passou, sem ter necessidade de cometer o pesquisadores o que representação live
samente pensado, ele é o fruto de uma refle-
Marvin Carlson. TheHaunted Stage: The crime de novo. Para a representação teatral possuía de "cativante"
xão e de uma decupagem dramatúrgica, de
I heatreas /Vlemory /Vlachine. Ann Arbor : e, mais ainda, para a performance, a explica- uma negociação entre o encenador da peça
Uni ver sit y I\~ichjgan ção pormenorizada ou a épica não Limitado anteriormente U111 documento de eo real izador do filme,
bastam: é preciso reproduzir as ações cênicas, arquivo, útil para os artistas (durante uma Com o aprimoramento do tipo de registro
proporcionar a ilusão de que o objeto criado reprise de umespetáculo, por exemplo) ou e a onipresença das mídias em nossas vidas,
é idêntico ao objeto do passado, que é sem- para os pesquisadores (trabalhando sobre a nossa relação com instrumentos de controle
pre, por um ultrapassado. obra de um tinha uma e de mudou. Este último sua
Esta exigência mimética é a do espectador" ambição modesta e raramente estética. Sozi- função ancilar relacionada ao teatro e ganha
Fr.: reconstitution; Ingl.: reconstruction; AI.: que demanda ao mesmo tempo a ilusão de nha' uma única c âmera testemunha regis- ao cooperar com todas as mídias, inclusive
Rekonstruktion. um universo cênico e a ilusão que o tempo trava continuamente a representação teatral; o teatro ao vivo. Ele não tem mais medo da
abole a si mesmo graças à recriação artística. com duas ou três câmeras, uma montagem interrnidialídade-.
Reconstituir um espetáculo passado é res - Se, em compensação, aceitamos a ideia ulterior alternava, o máximo possível, close- Essa é uma das razões do sucesso, ao mesmo
tabelecê-lo na sua forma de origem o mais de que uma reconstituição é uma operação -ups e planos de conjunto. tempo comercial e público, das retransmissões

280
281
Remidiação
Retransmissão ao Vivo de um Espetáculo

ao vivo· nos cinemas, a partir das maiores É muito mais difícil explicar a evolução 2. -Â. ENCENAÇÃO Inglaterra, seriam exemplos desse poder do
casas de ópera do mundo: Metropolitan dos gêneros e das formas teatrais no curso verbo.
Opera em Nova York, Scala de Milão, Royal do tempo do que de determinar o uso de o jogo retórico transborda sobre toda a Ator, encenador e escritor estão, talvez,
Opera de Londres etc. O público de cinema tecnologias e a invenção de formas verda- encenação, e isso não somente nas formas em busca de um teatro retórico que, numa
assiste às maiores encenações de ópera com deiramente novas. históricas do início do século xx, mas nas mesma dinâmica, integraria movilnento
os melhores elencos e preços acessíveis; ele experiências mais recentes, em toda a parte coreografado, expressão de afetos,figuras
se beneficia de uma tecnologia perfeita e NOTRS
em que urna estilização, uma convenção e estilísticas e sentidos da narração. "Ret órica"
Iay Bolter; Richard Grusin, Rem ediation: Understan-
tem a impressão de estar verdadeiramente uma concentração entram ern jogo. A tra- seria então outra palavra para a gestão con -
ding New M edia, Cambridge: M IT Press, 2 0 0 0 , p. 65.
"nos primeiros lugares". Um outro tipo de 2 M. Mcluh an, Und erstanding Me dia, London: Rout- dição francesa, que conservou muito desses certada e figurada de meios cênicos e dra-
público, menos afortunado, mas geralmente dlege, 1964 , p. ISS. procedimentos da retórica clássica, se redes - máticos' para a encenação por excelência.
melhor municiado, reencontra as joias da dobra em cada estética ligada a UHl encena-
transmissão ao vivo, mesmo à distância; dor: não só em Vitcz ou Mesguich nos anos
alcança detalhes com os quais não poderia 1970 e 1980, mas também em encenadores
senão sonhar. A impressão, bem diferente como Chéreau. Em sua leitura dramatizada
daquela proporcionada pela retransrnis- Retórica Retransmissão ao Vivo
de Mernárias do Subsolo, de Dostoiévski,
são televisual, é a de reencontrar urna certa de um Espetáculo
Chéreau não hesita em aliar uma leitura em
aura- do te at ro. Fr.: rhétorique; Ing!.: rhetorics;AI.:Rhetorik.
voz embargada a um jogo de atuação enfá - Fr.: retransmissionen direct d'un spectacle; Ingl.:five
tico' emocional e hipercodificado. Na en ce- Broadcasting of Performance; AI.: Live-Übertragung.
No jogo do ator corno na escritura
nação de Emília Galotti por Thalheimer
dramática, a retórica continua a oferecer
(2001), . os atores dearnbulam sobre urna Uma nova partida? Desde o início da radio-
um quadro e um estilo para uma
longa passarela como se o fizessem isso para difusão, as representações teatrais foram
Rem~diação estética ant irrealista. Resta interrogar os
um desfile de moda e dizem o seu texto em retransmitidas a um público ávido e dese -
mecanismos desta neorretórica em vários
Fr.:temediation: Ingl.: remediotio n, AI.: Remeaiation.
um ritmo totalmente artificial e afetado. joso de seguir ao vivo seus atores n os palcos
domínios:
parisienses. A ideia e as possibilidades técni-
Esse termo de Bolter e Grusin permite 1. o ATOR
cas de retransmitir ao vivo a imagem em alta
pensar a maneira peiaqual as mídias 3. A ESCRITURA definição e sobre a grande tela de um cinema
evoluem no curso da história, se o comediante é um retórico, pois ele orga- são, todavia, apenas muito recentes. A ini -
encadeiam, se arnalqarnarn ou Sê ni za (dispositio) seu argumento (inventio), Comparandodiferentes autores na Europa ciativa cabe ao Metropolitan Opera de Nova
.su bst it ue m . Segundo os criadores do p rocurando urna maneira adequada d e ou no mundo, constata-se a 111eSITla partilha York, que retransmite ao vivo e em alta defi-
termo, "urna mídia é aquela que remidia. falar (elocutío) depois de ter memorizado entre, por um lado, uma escritura que pre - nição suas óperas para a distribuição sempre
É aquela que se apropria das técnicas, das seu texto (rnemoria). ;\ retórica está sernpre tende colar-se ao real na sua maneira de fazer muito prestigiosa. Outras grandes casas de
formas e da importância social de outras implícita no jogo de atuação codificado da com que se exprimam personagens dotadas ópera seguiram o exernplo: Royal Opera de
mídias e que tenta rivalizar com elas ou as tradição ocidental, a que é anterior à inven - de uma psicologia facilmente legível e, por Londres, Bolshoi de Moscou, Scala de Milão
remodelar em nome do real'", ção e à reforma da mise en sc éne: o ator per- outro lado, urna escritura que se processa por etc. A ópera encontra assim um rneio de tor -
rnaneceu durante muito tempo um orador meio de grandes temas, segundo fi guras de nar rentável espetáculos de custos exorbitan-
A ideia d e remidiação ou simplesmente de a dirigir-se frontalmente ao público, COIrlO estilo muito elo quentes, com força de argu- tes que as subvenções não conseguem mais
midiação entre as mídias não é tão nova, para um recital, em vez de falar a seus parcei- mento como em um tribunal ou em um par- manter sem prejuízo.
visto que, já ern 1964 , Marshall Mcl.uhan ros. Retórica não queria dizer que os gestos lamento, sem medo de afugentar o leitor ou Democratização ou estandardização? A
descrevia a reorganização e o reposiciona- deviam imitar as coisas de que se fala porém de adormecer o ouvinte ... Semelhante escri- ópera sempre foi um produto de luxo, dada
mento das mídias: "Urna nova mídia nunca eles remetiam aos pensamentos luai; do que tura retórica não é necessariamente falsa ou afortiorí ern casas prestigiosas. Com a explo-
é urna adição a uma m ídia antiga, e ela tam- às palavras reais (para retomar a formulação paródica. Ela é a luarca de uma apresenta- são dos custos, ela não é mais acessível senão
pouco deixa a antiga em p az . Ela não cessa de Quintiliano). A retórica visa codificar pai - ção em uniforme de gala, de uma confiança a uma clientela de ricos turistas ou de ernpre -
jamais de oprirnir as antigas mídias antes xões' afetos-, atitudes, posturas, de modo a no poder hipnótico da dicção e da decla- sários para quem uma visita à Ópera é um
de encontrar para elas novas formas e novas concentrar os efeitos e a atrair a atenção dos mação. B.-NI. I<oltês, J.L. Lagarce, O. Py; na prolongam.ento do business com os meios
posiç ões ." espectadores· para o essencial. França; Peter Handke, Falk Richter, na Ale- do teatro'. A possibilidade para um público
manha, Sarah Kane (em 4.48. Psychosís), na modesto de participar dessa representação,
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283
Rir e Sorrir Rir e Sorrir

embora à distância, proporciona-lhe um qui - deformação ou desvio da norma. Do público. O riso parece haver se refugiado nos tempos do politicamente correto (r-c) ou em
nhão de consolo, na medida em que con- ponto de vista de quem ri, isso implica monólogos dos humoristas ou nos quadri- vias de "Pacificação': não se trata mais de
segue uma retransmissão de boa qualidade. súbita distensão após uma tensão nhos' nas facilidades do teatro de boulevard zombar e de ridicularizar qualquer um por
O esp ectador- desfruta de uma imagem psíquica em face de urna situação que ou nas proezas de circo e de seus clowns. causa dos excessos -de sua religião, de seus
quase cinematográfica, com uma monta- parecia bloqueada. É o que Kant resume Os autores dramáticos "literários" descon- comportamentos estranhos ou estrangeiros,
gen1 fílmica precisa e sofisticada. A repre- na sua bela formulação, ela também fiam dos mon ólogos ou dos efeitos cômicos de sua identidade sexual, social ou étnica.
sentação , as vozes guardam a fragilidade do fundamental: "O rir é um afeto que resulta dos humoristas; eles querem a todo custo Uma autocensura pesa sobre os dramaturgos
teatro graças à transmissão ao vivo. do súbito aniquilamento da tensão de evitar tais facilidades. e, desde os anos 1990, sobre os chansonniers,
Uma ex ten são no teatro das retransmis- uma espera," A temática da escritura dramática con- cantores de cabaré, e os humoristas. Situação
sões da Parece pouco provável, salvo temporânea é com frequ ência mais séria e esquizofrênica para os c ômicos: os limites da
ex ce çã o (National Theatre ern Londres). Essas três definições clássicas dos mecanis- sinistra do que cômica e bem-humorada. transgressão- política ou ética são inces san-
Pode-se lamentar o fato, pois o teatro encon- mos do rir podem ainda hoje no s servir de O isolam ento existencial do ser humano não temente re cu ados, mas o rir é cada vez m ais
tr aria não só UIU público potencialmente infi- base para uma discussão sobre o uso do rir se presta quase ao estouro de gargalhadas. controlado, avaliado e, às vezes, sancionado.
nito' mas prosseguiria em sua aproximação na prática da performance e' do teatro con- A ironia ou o humor de um Koltes ou de um A sátira "incorreta" é fortemente desacon -
com as mídias, combinando a transmissão temporâneos. Vinaver passam muitas vezes despercebidos. selhada' e até proibida. A sociedade ociden-
ao vivo, a gravação e a performance física. O humor negro ou rangente de um Beckett tal tornou-se mais intelectual e cerebral. Ao
1. NO TEATRO CONTEMPORÂNEO tende a recalcar o corpo e o riso fr an co que cabo de um "processo de civilização" (Norbert
NOTR o acompanha. Pois quanto mais a gente ri Elias, 1939) iniciado no século XVIII e visando
1 Ver so bre a questão d as subvençõe s: Mark Rave-
nhill, Th eatre Revie w, o riso em retração: COil1 o risco de genera- com gosto, mais se ri caIU o corpo. controlar as funções corp orais, ela perd eu
espe cial: Alphabet: lizar demais, diremos que não se ri muito A performance; ou o que dela resta, não sua vitalidade popular. Ela está, pois, meno s
Performanc e.) nas obras dramáticas contemporâneas ou, tem mais o humor de seus inícios ou as facé - inclinada a rir dos efeitos farsescos ou de se
se rimos, é muitas vezes ironicamente, com cias do happening-, A arte de longa duração divertir francamente com os procedimentos
um sorriso amarelo e sem convicção, em (durational art) cansa depressa seus espec- grosseiros de um. c ômico físico e "na tural".
segundo grau, como se tem êssemos demais tadores-, mesmo os mais condescendentes. Esse déficit de corporeidade, esse desapare-
nos abrir ao mundo e nos expor aos golpes. .l \ body art: amedronta mais do que acalma, cimento do cômico físico e burlesco e esse
Sorrir
Os autores, de Beckett a Adarnov, ou de Kol- principalmente quando a contribuição do esgotamento de urn riso maciço expliquem
Fr.: rireet soutire; Ingl.: lough arid smile; AI.: lachen tês a não se preocupam mais em corpo do perforrner é duramente exigida. talvez o aparecimento de diferentes terapia s
und tochetn . corrigir neln elU exercer a menor influên- . Os diferentes rostos de Orlan, após suas para o rir ou a eclos ão de clubes da risada.
cia. Derris ão, superioridade ou desprezo numerosas operações de cirurgia plástica Os clubes da risada são uma resposta ines-
Desde a Antiguidad e, os filósofos, os não são mais agora osefeitos .procurados. ' vIsª n_do multiplicar suas aparências e su as perada, porém oportuna, ante a carên cia de
retóricos, os escritores debruçaram-se Os autores não dão mais nenhuma licão não pertinências raciais não fazem rir tanto, em riso orgânico. Se o rir é de fato qualqu er coisa
sobre os mecanismos do rir e do c ômico. fazem nenhuma sugestão. 1:'.Jenhuln;gr~nde todo caso não mais do que as aparições de °
corporal, um espasrno que afeta tórax, o
A concepção de Arist óteles (o rir como coisa, é verdade, é considerada como ridí- Frankenstein. rosto, uma reação tão incontrolável co rno
urna deformidade que faz rir sem cula ou sagrada. Os ataques diretos e radi- um reflexo, deve-se poder agir d iretam ent e
maldade) reencontra-se na teoria clássica cais parecem ter-se deslocado para o gênero sobre a sua fisiologia, Ora, o rir não é uni -
de Bergson (LeRire, 1900). Segundo dos quadrinhos e dos humoristas que não se 2. RIR COM GOSTO? camente físico, mas é também psicológico:
Aristóteles, "o cômico consiste em um constrangem en tão ern zombar dos defeitos, é um coração que é preciso atingir e toca r.
defeito ou em uma fealdade que não inclusive físicos, dos políticos ou dos astros o medo da caçoada: não é tão fácil nem Segundo Clémentine Dunne, responsável
causa nern do r nem destruição" (La e estrelas. A grande corn édia de um Moliere tão frequente rir conl gosto e sem entrave. por um desses ateliês da risada, trata-se de
Poétique, p. 49) . Ao que Bergson parece ou de um Sheridan desapareceu faz muito Moliere não se engan<?u nisso: "É um grande encontrar, "enl cada um de nós, ess e lug ar
fazer eco ao in sistir que a deforrnidade é tempo : o c ômico n ão incide mais sobre a ataque aos vícios expô-los à risada de todo inalterável, esse Coração da Risada que pulsa
imitada, e não real: "pode tornar-se cômica estrutura dramática em seu todo, sobre um Inundo. Suporta-se facilmente repreensões; a vida" O trabalho do terapeuta assim COlD o
toda deformidade que uma pessoa bem vício ou um defeito que a fábula se empe- mas não se suporta em absoluto a zomba- o do artista ou de cada pessoa consistiria "e ITI
conformada chegaria a contrafazer" (p. 17). nharia em denunciar. Ele se mantém em ria. Aceita-se de bom grado ser malvado, encontrar o acesso e, em seguida, corno a
Essas duas definições são preciosas para o algumas palavras aguçadas ou em ações iso- mas não se aceita de modo algum ser ridí- assiduidade meditativa, residir o mais po s-
teatro em que julgamos cômica a menor ladas, em efeitos destinados a "despertar" o culo," (Prefácio de Tartufo) A [ortiori, nesses sível nesse Coração da Risada" (C. Dunne) .

284 285
Rir e Sorrir Rir e Sorrir

3. DESLOCAMENTO DA RISADA? caso de Rayrnond Devas, Iérórne Deschamps tonitruante, em que toda a sociedade se reen- Essa insistência no polo da recepção
e seus Deschiens, Simon McBurney). O bur- contraria em um grande estouro de uma exerce um efeito inibidor na escritura do
a. Da Literatura às Variedades lesco gestual distingue-se do cômico: ele evita calorosa risada reconciliadora. cômico, notadamente aquela destinada aos
Haveria aí, pois, UIndeslocamento da risada, a troça, e até o rnenosprezo, seu rir não é urn Seria isso o fim do riso unanimista? Em teatros públicos. Ela obriga os autores e os
uma transferência para outros territórios. riso de exclusão desdenhosa, mas de simpa- uma sociedade que se fragmenta em classes intérpretes a se adaptarem aos contextos
A farsa se torna rara, ela é relegada ao café- tia humana. O burlesco, diferentemente do herméticas, em grupos de interesse, em clãs nacionais e culturais. Não se ri completa-
-teatro ou ao s esquetes dos cômicos na tele - cômico, contribui ao riso, mas sem jamais sus- e em identidades múltiplas, não se poderia mente da mesma maneira, há expectativas
visão. A risada desertou o teatro literário, citar o desprezo. Pensa..se nos Deschiens, essas esperar alvo reconhecível e comum, Anti- diferentes para um texto escrito em -francês,
a literatura e a prática cênica experimentaL personagens de Deschamp e Makaieff que gamente, até os últimos belos dias do teatro mas lido ou representado na França, na Bél-
Ela refaz superficialmente nos espetácu- nos fizeram rir tanto, nesses imbecis felizes, e da encenação populares (na França, nos gica, na Suíça, em Québec ou no Marrocos.
los de variedade os one-( wo )man shows e, comuns e simples, mas simpáticos e humanos, anos 1950), o público podia ainda explodir Sem falar de contextos com tradições dife-
sobretudo, na s mídias aud iovisuais, corno o todos aqueles que, como o Pícaro, sobrevivem eU1 gargalhadas no mesmo instante. Ycomo rentes: um tipo de c ômico corno da stand-up
rádio e a televisão. O c ômico se apega tanto a todas as mudanças de chefe e às novas regras um só homem", e pelas mesmas razões. Bas- comedy passa mal as fronteiras da Grã -Bre-
ao jogo de atuação quanto à invenção tex- introduzidas pela mundialização. O público tava rever as fotos que Pie tirou do público tanha ...
tuaL Os intérpretes (seja o cômico, o ator francês, por um efeito de simpatia natural, de popular francês dos anos 1950 para a gente
que representa U111a personagern inventada bom humor e de benevolência, acaba Se111pre se convencer disso. Agora, quando o riso
por ele, ou o humorista, aquele que critica a por identificar-se conl eles. instaura certa igualdade democrática, é ape - 6. AS FORMAS E AS NUANC ES DO RIR
sociedade e seus defeitos a partir de sua pró- nas por alguns segundos. A maior parte do
pria perspectiva) produzem o riso pelo jogo tempo ele se tornou um riso de classe (é o Essa nova situação explica a predileção do
de atuação, aliam escritur a pessoal e inter- 4. AS NOVAS FONTES E F O R M A S DO RIR caso do boulevardfrancês ou da comédia bri - cômico por certo número de maneiras de
pretação. O stand-up comedian, que grassa tânica), ou então constitui o riso de grupos falar. Tais maneiras têm em comum uma
sobretudo no s paí ses de tr adição inglesa, o que faz rir nossos contemporâneos, de que marcam sua identidade a partir daquilo vitória do espírito sobre o corpo, do satírico
conta U111a história mais ou menos inven- Seul a Pequim, de Avignon a Edinburgo? que, segundo se considera, faz rir ou chorar espiritual sobre o burlesco físico.
tada conâbase em seu ponto de vista "pes - Os temas, os tipos de discursos, os gêneros, ou deixa indiferente. Essa especialização de A paródia é a -form a cômica mais fre-
soa)': improvisando a partir de eventuais as atitudes, os alvos da moda variarn consi- risadas discrimina ou exclui em vez de con- quente na escritura dramática contemporâ-
respostas do público do pub. Humoristas deravelmente' porém o desejo e o prazer de gregar e unir. nea e entre os cômicos ou os humoristas, sem
e comediantes fazem rir de si mesmos, eles caçoar de UUl ridículo animam ainda e sem- dúvida porque ela permite aparecer com o
inventam uma p ersonagenl engraçada, cujos pre os provocadores do riso. rosto mascarado. É paródica ora a drama-
dissabores eles contam e representam. COIn Quais ridículos puderam de fato se rnan- 5. PÚBLICOS ENDURECIDOS..E turgia noseuconjunto, ora tal ou tal achado
uma bela "p olid ez do des espero", eles zorn- ter a despeito das mudanças de sociedade, FRAGILIZADOS na expressão. A paródia dispensa às vezes
bam de si próprios. É o caso de Pierre Des- de regimes políticos, de épocas) de estilos apresentar ou explicar o objeto parodiado
proges, escritor tanto quanto ator c ômico, já de vida? A_ sátira é de todas as épocas, ela é A. correção mudou de sentido. Não se trata para procurar apenas ridicularizá -lo, e até
muito afetado pela doença, provocava assim inesgotável, porquanto, corno dizia Horácio, mais da correção de vícios e de indivíduos destruí-lo.
seu público: «Câncer? Eu poderia morrer de ela «arranca o envoltório brilhante em que faltosos, mas da correção política de que os O humor e o espírito caminham juntos,
rir!" Na do humor tcheco (Ha sek, cada UHT, exibindo-se sob os olhares, reco- artistas são incumbidos de dar prova, a fim 111a5 diferem. O humor, esta '(arte de fazer
Hrabal e, em língua alemã, Kafka), os cômi- bria sua feiura interior" Os meios desse des- d e não ferir nenhum grupo. sorrir COln" 2, trai uma cumplicidade entre o
cos manejam COIn brio a ironia, a autoderri- velamento são ilimitados, A sátira chega às O público é o único juiz não apenas zombeteiro e sua vítima; o humor «reside
são e a zombaria. 'Tantas características que 'vezes até o ataque ad hominem e «às fácies" daquilo que é divertido, I1laS daquilo que no sentimento de coexistência do ridente e
se perdem na tradução ou quando são trans- quando zomba de uma pertinência étnica é lícito dizer. Se é verdade que '(se pode rir do risível, seu sorriso é o de um espectador
postas em outros contextos culturais. ou de um defeito físico. de tudo, mas não com não importa quem" envolvido, distante e solidário ao mesmo
Nos dias de hoje, quase não encontramos (segundo a célebre fórmula .de Desproges), tempo daquilo que o diverte">, O espírito
b. Salvando o Burlesco
mais a grande comédia que se dê por mis- o autor e o artista cômicos devem levar em mostra a superioridade do ridente sobre a
Além dos esquetes televisuais, sempre muito são fazer a sátira de um vício ou dos ridícu- conta o público. O rir, muitas vezes «despa- sua presa, pois '0 gracejo não deixa a esta
populares, de receitas comprovadas, o bur- los de uma sociedade. Não mais, porém por chado" pelas mass medias, é cada vez mais presa folga para se defender ou ripostar,
lesco se mantém graças ao talento de ato- razões opostas, urna farsa ou um espetáculo controlado, portanto desarmado, autocensu- «O humor e o espírito [... ] se distinguem
res formados no teatro físico e no mimo (é o fazendo apelo a urn rir universal, unanimista, rado. Ele perde sua força, e até seu sentido. não ao nível dos procedimentos verbais

286 287
Rir e Sorrir Risco

empregados, mas em função das circunstân- e sua expressão não constituem senão uma forma de cômico, depois da reação do espec- Todo estudo desses mecanismos nos
cias nas quais a pilhéria é emitida. Há humor indicação, por certo crucial, da maneira de tador, uma parte do corpo, do semblante é obriga a nos situar no contexto histórico e a
se o estado de tensão precede o gracejo, espí- compreender a representação. particularmente afetada. Os cantos da boca determinar o momento do processo de civi-
rito se ele daí decorre." O teatro pena para Al ém do sarcasmo e do cinismo, reencon- se elevam no sorriso (daí bela expressão lização no qual nos encontramos.
valorizar o espírito de seus gracejos ou as traremos as virtudes clássicas do riso físico francesa sourire en coin). As sobrancelhas Poderemos ainda rir no teatro do século
palavras espirituosas da s p ersonagens, pois e popular, um riso libertador que afugenta se erguem e a fronte se pregueia na ironia. XXI? Talvez: não se deve desesperar! Quanto
ele não suporta (geralmente) urn narrador a angústia, restituindo à comunidade dos A boca e os lábios avançam na perstflage (zom - ao riso COIn gosto, não devernos mais contar
a encadear os gracejos (como outrora Sacha espectadores urna vitalidade e uma coesão? baria) (daí a associação desse termo à ação de muito com ele. A derrisão e o sarcasmo no s
Guitry nos seus filmes). Em compensação, o Não seria preciso, antes de tudo, reencon- sif!1er [assobiar], que não constitui, no entanto, arrastaram a um declive ensaboado e o sor-
humor convém à encenação desde logo por- trar sorriso? ° a origem dessa palavra). Somente o riso se riso benevolente se torna cada vez mais raro .
que ela suger e, pelo jogo da atuação, o que o comunica ao rosto inteiro, ao tronco e, logo, a Se o riso é um mecanismo de sobrevivên-
texto ou a querem ou ver - todo corpo. É selnpre bom sacudir esse corpo cia' o sorriso é um signo de aceitação dessa
dadeiramente diz er. 7- PARA ACABAR COM O SORRISO COlUO urn tronco de árvore, mesmo co~ o via que nos espera. Comecemos, pois, por
A caçoada, a troça, a zombaria, a chacota e risco de desenraizá -lo. sorrir, a sequência virá por si mesma.
sarcasmo constituem um grau suplementar Cumpriria ainda distinguir o sorriso do riso, O sorriso corno repressãodo riso: O riso é
na escala do s p roc edimentos c ômicos dirigi- extraí-lo do corpo, regenerar seus poderes. visível, porém ruidoso e pouco controlável. Aristoteles. La Poétique.Paris: Seull 1980.
do s para a sáti ra e crítica de um indivíduo e Sourire et seus-rire (sorriso e sub -riso): se O sorriso é sutil, a ponto de passar desaper-
Henri Bergson . i e Rire:Essai sur la
de uma sociedade. Constata-se na rir amiúde rir contra ponto de cebido muitas vezes. Somente o ator, em urn
signincation du comique.Paris: Félix
cia desses cinco term os urna progressão para querer quase elim in á-lo espiritual, e até fisi- plano cinematográfico, está em condições de
Alcan, 190 0 .
senlpre mai s m aldade: a caçoada, a troça, a de camente, so rrir é, antes, sorrir com alguém transmitir um sorriso, mas a cena teatral o
um Moliere para com suas personagens ridí - ou graças a um outro espectador, Norbert Elias. Überden Prozess der
tornará pouco perceptível. Seja na sala ou no
cul as, por exemplo, é a situação clássica de UlTI ou tro ser humano ao nosso lado: esse Zivilisation. Basel: Haus zunFalken, 1939.
palco, rir e sorrir caminham sempre juntos:
superioridade, ainda supor tável, do drama- ser qu e no s diverte e nos comove. Sorrir não o espectador passa constanternente de um
NOTAS
turgo ou do narrador para com sua persona- é evidentemente não mais rir com um riso estado, de um extremo a outro. A_arte da
Imman uel Kant, Critique de lafa culté de ju ger, Pari s:
gem. Le persiflage, a chac ota, term o aparecido barato, n ão é "sub-rir': Sorrir é rir sob riso, dramatu rgia ou da encenação é a de faz er Gallimard , 1985, p. 292.
na vol ta de 1735, traz um matiz rir sem rir, rir debaixo, rir por baixo. o espectador navegar entre esses afetos" 2 Iean-Marc Moura, Quelle politique du rire?, Le
suplementar d e impertin ência do ridente, Entreabrir o corpo: no sorriso o corpo Monde, 31 mai 2010, p. 16.
parentes, mas opostos, d e levá -lo a exterio-
Ibidem.
no presente ca so urna crítica mais cínica e se entreabre, 111as não a ponto de estourar rizar suas emoções no riso, ou in teriorizá-
4 [on ath an Poll ock, Le Rire, em Michela Marzano (éd .),
acerba de um com port amento, O sarcasmo em risada. Mexendo-se apenas, ele se parte -Ios no sorriso. op, p.820.
é urna caçoada mordent e, d esabusada, ofen - em um ligeiro sor riso. O sorriso faz o corpo
siva, di r igi da mu ita s vezes contra alguém en trar em si m esmo, enquanto o riso o exte -
mais fraco que defender-se. Ele rioriza. No sorriso benevolente, os lábios se 8. M AIS VALE RIR
participa d e um rir sád ico, que nada per- afastam Iigeiramentc, eles deixam o mundo
doa e que visa an iqu ilar o adversário tornan - penetrar em nós, eles o aceitam com suas Nossa época não se coloca realmente a ques - Risco
do -o irremedi avelmente ridículo. O te atro T't'r:lrll,pr;7~lc e su as Esta discrição do tão da aceitabilidade do riso ou da correção
do absurd o pratic ava o sa rcasm o su gerindo sorriso não gara n te, todavia, que a atitude do sorr iso. Ela tende, sobretudo nas repre- Fi".: risque; !ng l.: risk; AI.: Risiko.
que o ser human o é UITJa nulidade que nada do sorridente seja necessariamente posi- sentações midiáticas, a urna derrisão gene··
pode resgatar (Iones co) ou UITl silêncio que tiva e benevolente (como na maior parte do ralizada. O absurdo havia aber to o caminho, o teatro é o lugar de todos 05 riscos.
o riso selvagem ent rega à nossa imaginação tempo): podernos sor rir apenas com um sor- corn fre qüência a marteladas, desse teatro Sobretudo aqueles que não supomos,
(Beckett). riso amarelo, com um trejeito subentendido. da derrisão. Beckett retificou o tiro e subsu- aqueles que o espectador- corre ao
A qu estão é d e saber C0 111 0 o riso de cada A boca então cospe seu veneno no sarcasmo. miu essas contradições em U111 hU1110r e em assistir uma representação na qual
espectador exp rim e essas nu ances, to das teó- Fisionomia do(sub) riso: é tentador recor-- uma ironia apenas perceptíveis. A escritura está submetido à violência de uma
ricas, e como o crítico ou o teórico do riso rer a teorias um pouco duvidosas da fisiono- do após- Koltes retorna posturas .do "der- ação, exposto à violência de um tabu,
as percebe e as interpreta em sua recepção mia para observar quais partes do corpo são risório', esse termo desperdiçado da língua .mas também está confrontado com
global da ob ra inteira. Mas todos os dois não mobilizadas no riso, no sorriso e em todas as cotidiana que diz muito bem da ambiguidade sua própria interioridade à vista de um
escapam a essa análise global, lá onde o riso nuances intermediárias. Parece que para cada do riso e do ilusório. acontecimento exterior.

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Risco Risco

o primeiro risco, o mais visível, é o corrido contemporâneo. A arte performática (ou o tem como papel, por meio de uma estética inconscientes e desagradáveis de sua própria
pelo ator, cuj o aparecimento público nunca liveart-) expõe os performers a todas as espé- do risco, saber trabalhar com os extremos vida, o espectador corre um . risco calculado
é neutro: perigo de expor-se à vista de um cies de provas e perigos. É grande o risco do afeto, os quais contêm sempre também a e benéfico para ele e para o seu círculo.
público desconhecido; medo de enganar- de que a personage111 se fira fisicamente ou possibilidade da quebra ofensiva do tabu."
-se, de não dominar suas emoções; perigo de que o espectador não lhe preste socorro. Ao organizar essa quebra do tabu, essa trans- L'Art du th éàtre, n. 7, outono de 1987.
físico de ferir-se, para o dançarino ou o per- Gómez-Pefia relatou o de numerosas esse desencadeamento de e
former. Quanto mais o performer corre o roprrc,rro'"\-:l11ri:l>C' que quase acabaram mal e de afetos-, o espectador encontra ern si emo-
risco de um incidente, um ferimento, uma que con1 frequência deixararn os espectado- ções que são inconscientes e que seu temor NOTRS

queda, urna decepção, maior é o seu mérito res frios, seja porque estes imaginam "que do tabu ou do escândalo o fizeram recalcar. Guillermo Gómez-Pena, DangerousBorder Crossers,
London: Routledge, 2000, p. 210.
de superá-los, mais seu orgulho será intenso há aí um truque", seja porque pensam que Deparamos aqui coma célebre análise de Noções emprestadas de Deleuze e Guattari em Mille
e comunicativo. O acidente ou o malogro o perfonner é responsável por sua própria Freud sobre "as personagens psicopatológi- Plateaux, Paris: Minuit, 1980. Ver igualmente: Arjun
não são, por definição, ficcionais, mas reais, desgraça e que merece uma boa liç ão'. Essa. cas em cena":': o espectadorpercebe na cena Appadurai, Modernity at Large: Cultural Dim ensions
ofGlobalization, Ivlinneapolis: University of Minne-
eles recordam ao público que o teatro con- ausência de compaixão, esse cinismo são os do inconsciente pensamentos recalcados, o sota Press, 1996.
tinua sendo um jogo perigoso que expõe os de nossa época endurecida pelo mal graças que lhe proporciona ao mesmo tempo um Hans -Thies Lehmann, Postdramatisches Theater,
artistas a um risco autêntico, e que provoca ao intenso contato que se pode ter com ele prazer proibido e o libera de conflitos que p·473·
Sigmund Freud, Personnages psychopathiques SUl" la
nos espectadores um mal-estar quando eles ao observá-lo nas telas da televisão, ou por- o faziam sofrer. Assim, arriscando-se a ter scéne [1905], Revue [rançaise de psychanalyse, v. 44,
são testemunhas de ação dolorosa ou que cada vez mais pessoas pensa:rn apenas no teatro rnaus encontros com os aspectos n .l,
humilhante para o seus problemas, precariedade
Ao que se acrescenta para esse IneSrI10 nou-se o cotidiano de muitos: trabalho
espectador o risco de enganar-se na interpre- sível de encontrar, instável e embrutecedor,
tação, o temor também elenão estar à altura A.spessoas deslocadas, os imigrados clandes-
da obra oferecida ao público. Toda interpre- tinos ou legais sofrem dessa 111.eSn1a precarie-
tação de -uma obra de arte está suj eita a riscos dade, a qual recentemente constitui o objeto
herrnenêuticos, a hipóteses qu.e não desem- de numerosos estudos dedicados a descrever
bocarn sen1.pre na compreensão da obra, no e a compreender como os precários reagen1.
prazer de sentir-se convencido ou mesmo Estes recorrem às vezes ao teatro para dar a
emocionado C0111 o espetáculo. Nós fica - conhecer sua situação e para eles próprios
rnos às vezes decepcionados no teatro e, no tornarem consciência dela e responderem a
entanto, 110 mais das permanecemos isso por meio de de protesto
t11S:POIStC)S a correr o risco de sernlOS (1{~:S:..H HH1 - de resistência, de ações coordenadas por
tados. 50n10s, aliás, cada vez mais demandan- vistas, descritas às vezes COIn as noções de des-
tes de riscos: não simplesmente o risco que territorializaç ãoe .reterr ito rializaç ão -.
fazemos correr os artistas de circo dos quais O risco é inerente à vida e ao teatro, essa
se exige cada vez mais, porém o risco que nos vida acelerada, o reencontro a cada passo.
impomos a nós mesmos, quando entramos no Nas últimas páginas de seu livro, Hans-
jogo de uma imersão- que vai nos desestabili- -'Ihies Lehmann faz do risco um dos raros
zar, uma vez que ela anula o contrato dedis- lugares onde os tabus podem ainda ser que -
tância e de denegação que tínhamos costume brados. Com efeito, ern urn mundo racio- _
de assinar ao assistir, de longe e no conforto nalizado, desmistificado, desencantado,
de nossa cadeira, uma que nensavamos ninguém mais quase acredita em tabus, e
ser puramente ficcional, teme ainda menos. Ora, nesse mundo
Mas não podemos escapar aos riscos. vado de reações afetivas, o teatro está em
O teatro e, sobretudo, a arte performática, condições de produzir uma afetividade que
os acumulam. Sua variedade é extrema, faz falta ao homem moderno: "Na época da
como se a arte performática e os perfor- racionalização, do ideal do cálculo, da racio-
mance studies- quisessem testar o espectador nalidade generalizada do mercado, o teatro

290
291
5
Satori verdade" do passado', Barthes distingue o
"pu nctum' da foto: "este acaso que, em si,
Termo japonês do Budismo Zen: a me aponta, ma s tamb ém me machuca, me
iluminação, a experiência individual de agarra'". Peter Brook está em busca "desse
uma revelação na sequência de urna momento de verdade quando o perforrner
meditação e de um estado assumido de encontra o público, desse fluxo entre ator e
vazio interior, a compreensão intuitiva que público". A fenomenologia fixa-se naPlôtzli-
abre de repente perspectivas inesperadas chke it (subitaneidade), no momento da expe-
e uma nova percepção do mundo. No riênci a individual iexp erientiai momenti, no
Satori, o indivíduo sente-se subitamente A ugenblick (no instante).
capaz e tomado de energia criativa, ele O Sartori está no coração de toda expe-
ultrapassa as limitaçôes do dualismo do riência humana e bem-sucedida,
corpo e do espírito.
NOTRS
Semelhante iluminação revela-se particu- Wa lter Benj amin , Teses So bre a Filosofia da Histó-
ria , o [etztze it, é u m tempo d estacado do conti n uum
larmente útil ao artista, em especial ao ator d a hi stória.
e ao encenador que a utilizam aqui e agora 2 Roland Barthes, Oe uvres completes, Paris: Senil, t. 3,
para encontrar a chave de uma personagen1 p.1126.
Pet er Brook, Di rec tin g, em C olin Cham b ers (ed. ),
ou de uma cena. A prática do teatro ociden- The Coni inuum Co mp an ion to Twentieth Ce n tury
tal dispõe de numerosas noções equivalentes Theater, London/New Yor k: Co ntinuum, 2002: p. 210 .
às de Satori. Os gregos falam de Kairés-, de 4 C f. Karl-He inz Bo h rer, Plo tzli chk eit, Frankfur t:
Suhrkarnp , 1981.
momento oportuno, ocasião propícia, opor-
tunidade de agir de fazer o bem. Para Les-
sing, com o "instante pregnante', o espaço, Un ivers ity 1994, p. 41.
o tempo e a ação encontram-se na obra de 6 Iens Roselt, Phã nome nologie des 'Iheaters , Münch en:
Pínk, 2008, p. 123.
arte a fim de tornar o sentido claro e intenso .
Walter Benjamin refere-se ao [etztzeit, ao
"agora', quando "a suspensão messiânica
do passado" (da história) desvela o "teor de
Semiologia (Rpós a Semiologial Semiologia (Rpós a Semiologia)

e autônomo, e apresentar a seu respeito uma de um funcionamento do conjunto de siste- o mesmo com o espetáculo: os significantes
Semiologia
(Rpós a Semiologia) crítica ideológica. Para o teatro, a universi- mas de signos. As categorias e as questões são que o espectador· reconhece aí e segmenta
dade dos anos 1960 consentiu finalmente em bem numerosas, nem todas são a cada vez não correspondem termo a termo a ideias e
Fr.: sérniologie (Apres la Sérniologíe); Ingl.: tomar como objeto a representação (e não pertinentes a um espetáculo>, O questioná- referências .precisas ao mundo. A maneira
semiology; .AI.: Semiotik: mais apenas o texto dramático), em se inte- rio- se aplicava com prioridade a encenações C01110 percebemos a cena, eis o que dá seu
ressar pela encenação e pelos meios de ano- do tipo "clássico', centradas num encenador sentido ao espetáculo. Mas quem nos aju-
É banal constatar que a semiologia quase desa - tá -la, de analisá-la e interpretá-la (embora com opções claramente explícitas, cuja fábula dará na segmentação e na leitura dos signos?
pareceu dos radares da pesquisa teatral, que sem fazer sempre bem a diferença entre esses se consegue reconstituir. Dever-se -ia; pois, A leitura dos significantes e dos significa-
ela não é mais citada como a disciplina piloto três procedimentos). Sabemos, pelo menos ad ap tá-lo consideravelmente, e até evitá-lo, dos não depende unicamente do espectador,
das ciências humanas. Mas seria ingênuo crer desde a segunda metade do século XI X, que para espetáculos pós-dramáticos-. Mas quais ela é guiada pela organização do espetáculo,
que ela foi simplesmente substituída por outro a encenação é o objeto estético e político que questões se ousará colocar para a arte con- em outras palavras, pela encenação, a qual
método, melh or, mais moderno ou mais per·· convém levar eln consideração, porérn na temporânea sem.m edo de se cair em um dis - se exprime e'se constitui mais -claramente na
formativo: performatividade, fenomenologia, universidade anterior a 1968, ainda adorme- curso pedagógico, e até demagógico? (Pavis, dramaturgia do espetáculo, na sua compo-
desconstrução·, cognitivismo etc. Talvez tenha cida, a teoria, semelhante à Bela Adormecida L'Analyse des spectacles). ' sição, na sua estrutura interna e na sua refe -
°
chegado tempo, dez anos depois do pós-es- no Bosque, e a crítica dramática, ainda muito rência à realidade. Esta dramaturgia é mais
crito' de Keir Elam para a reedição, em 2002, de b. Razões de Sua Manutenção
impressionista, consideravam que a efêmera ou menos legível, ela nos ajuda a segmentar
seu livro, The Semiotics oj'Iheater and Drama representação não podia ser objeto de urna A serniologia se mantém como um conjunto os significantes e significados de modo mais
(1980), de proceder a um novo balanço da descrição e, menos ainda, de uma teorização. coerente de ferramentas de análise. E isso por ou menos fácil e pertinente. En1uma drama-
semiologia teatral. Se cons titui presunção pre- A análise dos espetáculos tornou-se en tão m uitas ra zõ es: turgia "clássica', lá onde espaço ; tempo, ações
di zer quais disciplinas darão prosseguimento uma disciplina central dos estudos teatrais. iaentiticacao dos signos: quando assis - e discurso no s ajudam a recortar o espetá-
nos dez anos vindouros ao caminho percor- A serniologia apareceu na época como um tim os a um espetáculo, podemos decerto, culo segundo seus significantes ou seus sig -
rido de diversas semroíogias agitador de conceitos, U111 meio de abordar por escolha, nos deixar levar pelas emoções, nificados sem ambigüidade, o espetáculo nos
no curso dós ano s 1960 , espera-se ao menos sem complexo o objeto teatral ou espetacular. pelos ritmos, pelas formas e pela materialida- parecerá legível, nós ~squeceremos a decifra-
ter tomado'suficiente recuo histórico e crítico .A
. iinguagem teatraltornou-se assim a met á- de- da representação. Mas, em um Ou outro ção dos signos: Haver á, entretanto, o risco de
p ara avaliárserenamente o que permanece fora principal da semiologia, m etáfora discu- momento, não poderíamos evitar de distin- que o pôr em cena trnise en scêne) seja um
da semiologia teat ral. O que resta "de nossos tível segundo o nosso ponto de vista atual, gui r alguns signos pertinentes da represen- .(CEôr em signo" (n1Íse en signe) demasiado
amores, o que resta de no ssos belos dias"2? Por mas então .necessária para incitar os analis- tação. Quer se esteja procurando traduzir legível, porque demasiado demonstrativo,
que a semiologia é "uma lembrança que (nos) tas a abordar um espetáculo de maneira sis- significan tes , mat érias em significados, em red un dante e enfadonho. Ao contrário, em
persegue semcessar"? Não é agora o momento temática corno uma estruturaorganizada, UITl se esteja pesquisando; a partir unia dramaturgia pós -clássica ou p ós-drama-
de lembrar qual foi o utrora a perspectiva da sistema semiótico, A ambiguidade do termo de um significado do qual se tem a intuição, tica, a segm en tação não terá nada de claro,
sem iologia e como, apesar das oportunidades reside na confusão com o conceito de mise en índices, sign ificantes do espetáculo que cor - parecerá arbitrária: a lógica do significante
perdidas com numerosas disciplinas antigas scêne. "Linguagem teatral" remete a urna ideia, res p on da m a esse significado. não d es embocar á automaticamente em uma
e emergentes, ela nos ajuda, mesmo assim, a e até a uma idealização do teatro, a uma com- A interdep endência do significante e do legibilidade do significado e, portanto, do sis-
enfrentar ainda alguns dos desafios dos estu- preensão, por assim dizer, universal de signos significado é, segundo Saussure, a principal tema dr amatúrgico. Nenhum grande bloco
dos teatrais e "perfor rn ativos"? teatrais, a uma suposta essência do teatro: tal característica elo signo linguístico. Saussure espaço -temporal ou actancialnos ajudará
é realmente, com efeito, a concepção de um compara o signo a uma folha de papel: de a interpretar a mise en scêne, a encenação,
1. A SElVfIO LOGIA N OS CO N T EXTOS DOS Grotowski ou de um Brook, nesses anos 1960 um lado o significante, do outro o signifi- esse encontro entre significante e significado,
ANOS 1960 A 19 8 0 e 1970. A encenação, na teoria semiológica, cado. Não se poderia segmentar um lado entre som e sentido. Teremos muita dificul-
se diferencia da representação. Uma vez que sem segm en tar o outro. Mas a segmentação dade em segu ir o que nos é contado, no eixo
a. Raz ões de Seu A pa rec l ní ls rll~o a representação é um objeto empírico, neutro, de um não corresponde à segmentação do sintagrn ático, narrativo e temporal, mas tam-
Em ergência: a semiologia deve muito às ainda não analisado, um reservatório de for- outro, visto que o signo é arbitrário: não há b érn muita dificuldade em associar, no eixo
mas, de significantes, a encenação, por sua vez, nenhuma relação de motivação entre o som vertical paradigmátíco, motivos a outros
Mithologies de Roland Barthes (1957), nota-
damente as diferentes semiologias aplicadas pressupõe um pensamento organizacional, um (a imagem sonora) e a ideia (o significado motivos, imagináveis, porém ausentes.
às artes e às culturais. Essas semio- sistema coerente, uma hipótese explicativa. que lhe é associado). A língua não é uma Graças ao modelo actancial, a massa de
logias pretenderam, ao mesmo tempo, des- Um questionário resultou dessas observa- nomenclatura que segmentaria o mundo signos, bem corno de percepções e de hipó-
crever melhor seu objeto, de modo objetivo ções, fundamentado na ideia estruturalista segundo suas próprias unidades. Acontece teses de leitura, não permanece muito tempo

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Semiologia (Após a Semiologial Semiologia [Após a Semiologial

caótica, ela se organiza, desde que estejam os a. As Razões da Mudança contemporâneos, de Heidegger a Derrida, semiologia devia refletir em sua pretensão
em condições de estruturar as principais for- de Ricoeur a Lévinas, de Zizek a Badiou, o de pôr tudo em signos. Mas como conciliar
O teatro "estético': teatro de arte ou teatro
ças actanciais da fábula em geral e dos relatos que, aliás, aborrece os "verdadeiros" filósofos, o modelo energético e a exigência de uma
experimental, tornou-se minoritário no seio
de todos os sistemas serniológicos em ação encabeçados por este último. A "Filo-Per - explicação por signos? A teoria dos vetores
do calnpo novamente redefinido das cultu-
na mise en scêne, o que constitui a forrnance" (Performance philosophy) propõe fornece uma resposta apenas parcial, um
1./..1. JlLL ................"
ral performances- e dos performance studies-.
tarefa do dramaturgo, O apogeu da aborda- timidamente, nos dias de hoje, encarnar e compromisso que precisa ser testado por
Essas culturais de toda ordem
gem coincidiu com o acerto de dramatizar a reflexão filosófica, notadamente análises de espetáculos contemnorâneos
são mais enumeradas e repertoriadas do que
Ull1 modelo actancial, sistema que reagrupa na perspectiva anglo-americana da -d ram át icos, espetáculos que se situam além
descritas ou teorizadas. Sua descrição antro-
as forças em presen ça em qualquer relato, rnatividade-. de toda dramaturgia explicativa.
pológica é empírica e raramente estrutural
verbal ou visual. Graças a essa fotocópia, gra- A dramaturgia perde sua posição de domí - A teoria dos vetores é uma dessas respos -
corno na antropologia cultural de Lévi-Strauss
ças a essa estrut ura drarnatúrgica, a encena- nio e de controle do sentido, seu posto de tas possíveis, ou melhor, um desses compro-
e sua retirada da semiologia. O teatro e sua
ção poderia instalar-se de maneira segura, observação da sem íología. Passamos de um a rnissos teóricos. Ela visa substituir o signo
semiologia se recolhem em si mesmos, se
tornando -se o encenador autor-idade, o dramaturgia do significado a uma dralnatu:- isolado e estático por uma vetorização de
isolam dessas novas práticas, tornam-se uma
controlador dos signos. Es te domínio, no gia do significante. O espectador é encora- elementos da encenação, que o espectador-
estética minoritária, não tentam tirar pro-
entanto, significava quase simultaneamente jado a imaginar a dramaturgia percebida no -an alista pensa decifrar, ao modo de urna
veito deste aporte de experiências etnológicas
a crise de um modelo fechado e centrali- espetáculo. Depois da semiologia e da aná- análise do "trabalho do sonho" segundo
ou sociológicas. A semiologia não percebe
zado' não podia senão levar a repor lise clássicas, fala -se, Preud, Lacan, Iakobson e
bem a de que se ope-
discussão a natureza do espetáculo e vezes, Os Cultural Studies, ainda do que
rou: passamos, de fato, da encenação, ins-
feitio po r demais di retivo e fechado devido os Performance Studies, são os grandes olvi -
tância mimética e literária, controlada por b. Os Encontros Apenas Esboçados
às escolhas dramatúrgicas e cên icas de urna dados da serniologia e de suas tentativas de
um artista único, à performance, instância
in stância central. A partir dos anos 197 0, a Em relação a essas oportunidades perdi- se pôr em dia. Surgidos desde os anos 1960
cultural, perforrnativa, ligada ao fazer, des -
crise da serniologia juntou -se a várias outras das ou simplesmente esboçadas, os artis - na Inglaterra e nos Estados Unidos, eles se
centrada, coletiva, que recusa a autor-idade
crises: a crise da dramaturgia clássica (escr i- tas de teatro são tão respons áveis quanto desenvolvem nos an~s 1990, depois da fase
de um encenador,
tura dram ática e análise dramatúrgica), a crise os teóricos. Com raras exceções, Antoine do pós-estruturalismo e da desconstru-
O teatropós-moderno- ou p ós-dram ático,
da encena ção autor-itária, da teoria estrutu- Vitez na Franca, Giuliano Scabbia na Itália ção-, marcando certo retorno a preocupa-
qu e aparece no próprio momento - e isso não
ral, da teorizaç ão separada da s novas práti- e Rex Cramphore na Austr ália, ao fim dos ções sociológicas e políticas, uma tomada
é evidente.m ente urn acaso em que a sernio-
cas cênicas. anos 1970, semiologia e arte teatral nunca se de consciência do ambiente, das mídias e
logia dá sinais de sufocar, modifica a relação
deram muito bem. Urna falta de confiança e, da mundializaç ão e, bem recentemente, da
Talvez se haja demasiado de
."' ''' ''-v-> ' "", I .'' '''I"'I <'l concebida COIno do
COIn ° A não é mais
às de respeito, é desse desamor, crise sistêrnica da economia mundial.
que isso , mas efeito isso pro-
mundo, m esmo essa disci plina se Mas os outros en contros falhados têm Mas as coisas evoluem: a semiologia não
du z em mim?" Passou-se do sentido à sensa-
separava de muitas outras disciplinas, de causas mais profundas. Eles se explicam por pode mais negligenciar os cultural studies
ção , da sign ificação ao efeito produzido. Não
urna incompatibilidade metodológica que
t.eorias ou de antiteorias, de !110d,oS de pen - se pergunta mais: "Onde estão os sign os r: nenhuma síntese ou negociação poderia apa-
sem se condenar a girar em círculos. Ela
deve não somente se aproximar deles , mas
sal' mais radicais, quando a época mudava e porém "C om o eles atuam?" O espectador
quando os «grandes narrativas" (Lyotard ), as gar. .A ssinalemos, sem insis tir demais nelas, recorrer a eles, para julgar novas formas de
não tem mais que interpretar a obra e seus
gr andes explicações, as esp eranças de urna algumas des sas con tra propostas, espetáculos que, de Rimini Protokoll a She
signos, mas fruí -la corno uma obra plástica
t eoria crítica da alienação se desvaneciam O teatro energético, que Lyotard apresenta She Pop, do grupo LAvantage du Doute a
exposta em uma instalação ao redor da qual
corno uma miragem no horizonte. em um curto artigo ("La Dente, la paume'" Das Plateau, introduzem na cena pedaços do
ele está convidado a caminhar sem objetivo
e no seu próprio ritmo.
ro Dente, a Palmaj) , faz uma crítica radical real, por exemplo pessoas que interpretam a
Deslizamos assim para uma estética- rela-
;0 empreendimento semiológico, no caso da si próprias diante de um público teatral. Para
2. OPORTUNIDADES PERDIDAS serruotozra aplicada ao teatro. Lyotard ima- dar conta da globalização do teatro, a teoria
cional, uma "teoria estética que consiste em
gina teatro que representa nada, tem necessidade de um modelo que ultra-
julgar as obras de arte em das relações
Uma série de mal -entendidos, de oportun i- que "se consome" em uma intensidade, urna passe o da troca cultural no teatro intercul-
inter-humanas que elas configuram, produ-
dades perdidas no curso dos trinta ou qua- intensificacão-. Poucas vezes o conceito de tural dos anos 1970 e 1980. O modelo desta
zem ou suscitam'".
renta últimos anos: tal é a explicação que se signo e a representação pelos signos foram análise intercultural hesitava demais entre
As teorias explicativas não são mais muito
poderia dar a essa miragem, a esse distan- tão radicalmente criticados quanto nesta uma semiologia da comunicação e uma
exigidas, ainda que, paradoxalmente, os crí-
ciamento, e até a essa rejeição da semiologia. concepção da intensidade. É nisso que a abordagem dec ididamente an trop ológica e
ticos não cessem de se referir a filósofos

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Semiologia (Após a Semiologial
Semiologia (Rpós a SemiologiaJ

sociológica. Ele acreditava ainda com certo "estético" e o estudo de todas as pós-estruturalistas terão de fato necessidade Como - pergunta-se o pós-estrutura-
angelismo na troca cultural recíproca, na outras cultural performances. Já é uma boa da coerência da semíologia, sem o que todos lismo - a semiologia seria às vezes, quando
comunicação, na semiologia, portanto. Tal- coisa olhar o teatro da mise en scêne (o teatro esses turns as afastariam do caminho reto! a impelem a seus redutos, um pensamento
vez resida aí uma últirna tentativa de sal- de arte) não mais apenas do ponto de vista m.óvel como a desconstrução (Derrida), a
b. Desaparecer? cooperação textual (Eco), ou "a intensifica-
vamento do antigo mundo crítico, elitista, estrutural semio-analítico, porém na pers-
comunitário, artístico, de uma estética já pectiva ampliada das cultural performances A semiologia, portanto, não está prestes ção energética do dispositivo teatral'Y
arcaica do funcionamento, da estrutura e e da performatividade. a desaparecer. O que é antes o «O que resta de nossos amores? O que
da causalidade explicativa. teatro tal como ela o conheceu em seus iní- resta desses belos dias?" o que resta da
A extensão do teatro europeu de texto em cios, em Praga, por volta de 1930, depois no semiologia que Saussure imaginou? Nada e
todas as formas potenciais globalizadas será 3. SALVAR A SEMIOLOGIA? mundo inteiro a partir de 1970, e ainda por tudo. Nada, se nos referin10s a .uma grade
certamente uma oportunidade para a semio- volta de 1989. Em sua versão extrema, o ator de análise, a U1l1 questionário, a um tipo de
logia e seu Ela a a. Salvar? e o espectador desapareceram: eles não análise, a uma rede de segurança. Tudo, se
valiar a atividade teatral, a confrontá-la com Essas oportunidades perdidas, esses encon- encontram mais, salvo nas extremidades das ela abandona o sonho saussuriano de tor-
outros tipos de performances e a raciocinar tros furtivos apenas esboçados entre a sernio- mídias, um diante de uma câmera que trans- nar-se U1l1a ciência piloto, pela tarefa mais
no quadro dos mecanismos da globalização· logia e a longa série .d e turns (giros) desde o mite suas imagens à outra, no fim do Inundo. humilde de ser, para todas essas disciplinas,
cultural. linguistic e semiotic turn dos anos 1950 e 1960 Impossível então decodificar signos produzi- tão numerosas a ponto de dar vertigem, uma
A fenomenologia é muitas vezes citada reciprocamente, àt é os culturale csperforma- dos ao vivo e comuns ao espectador e ao ator. simples chave de desvio de ferrovia. A tarefa
como a alternativa da Somente turns mais recentes, 'não terão sido tão A esta do e o futuro da após semiologia é,
Bert States, a partir de seu livro de 1985, ~egativos. Eles constituem a prova de que a teatral junta-se o desaparecimento fi-e quente pois, imaginar um lugar de troca, uma plata-
Greate Reckonings in Little ROOlrIS: ()11 the serniologia se comporta bem contanto que das fronteiras da obra, a qual é como que forma giratória, onde transitem todas essas
Phenomenology oj Theater, mostrou de fato a a sal vem. diluída no espaço público: assim é no exem- teorias e essas hipóteses. Uma disciplina que
complementaridade da semiologia e da feno -o Salvardo teatro a semiologia? Isso seria a e
plo do teatro da interrnidialidade-, Às vezes a prevê, aceita, mas sen1pre rebate seu próprio
argumento é clássico entre das soluções! A deve, ao C9n- obra que rebate seus limites, como essas obras fim: sua finalidade corno seu acabamento.
as censuras-mais frequentes feitas à análise trário, enfrentar o teatro em plena renovação, em estado gasoso de que fala Yves Michaud Não será, portanto, necessário abando-
semiológicarrepresentação demasiado reta- ela não deve ter medo de estar em atraso em (2003), em que contam apenas a experiência ná-la.
lhada e sem levar suficientemente em conta relação a ele: é da natureza da teoria chegar estética e a sensação do receptor: às vezes, é
a impressão global, por definição indivisível. sempre com atraso, quando tudo está termi- o espaço social, o espaço público. Õffentli- NOTAS
Cf. Post -script: Po stsemiotics, POsthUlUOUSSerniot -
States, entretanto, toma o cuidado de expli - nado. A semiologia é apenas perigosa se ela chkeit, o Inundo da política, do ativismo, das ics, Closet Semiotics, TIu Semioti cs of Theatre and
car que o deve a se abre para o Inundo, se ela um manifestações esfera pública ou Drama, London: J.'VU.ll\~U~,~, .<:'VV'k.

rialidade do signo, velar para não reduzi-lo a único tipo de teatro ou se ela trata todos os da esfera privada que absorvem a obra perfor- Como diz letra da "Que reste -t -ill de nos
amours" (194 2) de Charles Trenet e de Léo Chauliac.
uma ideia, apreciar a sua fenomenalidade e se tipos de teatro e de performance empregando mada. Poder-se-ia então temer que a semiolo-
E Pavis, Questionnaire, Dictionnaire du th éãtre, Paris:
entregar a uma experiência vívida do mundo. os mesmos remédios. gia não conseguisse mais se ativar, na falta de Armand Colin, 1996 , p. ?-7 8- 28 b . (Trad . bras. : Ques-
A performatividade é aquilo que veio Tratar-se- á então de salvar o teatro/da objeto para analisar. Mas a obra acaba seInpre tionário, Dicionário de Teatro, São Paulo: Perspec-
tiva, 2015, p. 316-318.)
mais eficazmente a perturbar a abordazem semiotooia. de poupar o teatro da aborda- por se reconstituir, por voltar ao estado sólido
Nicola Bourriaud, Esth éiique relationelie, Dijon: Les
serniológica. Esse desafio não é novo, o genl semíológica? É Isso que o pós-dramá- ou, pelo menos, não se Presses du 1998, 117.
performative turn já estava anunciado pela tico pretende ter feito: evitado as grades de evaporou por um instante senão para melhor Cf Des Dispositifs pu lsionnels, Paris: UGE, 1973·
linguística dos pe rformativos (J.L. Austin) leitura eas questões que não tocam Inais o se reconstituir alhures, melhor adaptada ao Em Discours, Figure, Paris: Klincksieck, 1970 .
seu novo objeto. Iean-François Lyotard, Des Dispositifs pulsionnels,
desde os anos 1950. Os perjormance studies , objeto analisado, por ele ser justamente não
p.99·
que apareceram nos anos 1970, tornaram-se, analis ável, não narrativo, não mimético e não
c. Abandonar?
sobretudo após os anos 1990, a maneira
de situar os estudos teatrais em UIl1 quadro Para se salvar (no sentido de salvamento, Esse processo quase de aparecimen-
COIn limites extensíveis, e até infinitos. mas também no de fuga), a semiologia deverá to-desaparecimento da obra e da semiologia
Resta estabelecer se essa teoria - alguns se prolongar (o que é o contrário de sobrevi- acaba por intrigar e atrair o pensamento pós-
dirão: esse imperralismo teórico - da per- ver) nessas novas ou antigas disciplinas que -estruturalista. .A. semiologia lhe parece per-
formance ajudará a esclarecer melhor ao ela negligenciou por um tempo demasiado seguir a obra corno uma rede de borboletas
mesmo tempo o estudo do teatro (o teatro E, inversamente, essas disciplinas da qual se teria a rede.

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Se nsação Sensação

2. LÓGICA DA SENSAÇÃO tátil e o óptico. Nós apreendemos o mundo por Henri Bergson: «Meu presente é, pois,
por mei o de todos os sentidos, mas notada- ao mesmo tempo, sensação e movimento; e,
Fr.: sensation: Ingl.:sensation; AI.: Ernpf7ndung. A tentação é grande, por conseguinte, de elu - mente pelo tato e pela vista, coordenando uma vez que o meu presente forma umtodo
cidar a lógica da sensação nas obras de arte. nossas sensações que se tornam percepções. indivisível, esse movimento deve prender-se
Ess e term o sensaçã o, qu e ret orna ao longo É a isso que se dedica Gilles Deleuze em seu
Na terminologia de Deleuze e dos psicólo- a esta sensação, prolongá -Ia na ação. Donde
das pági nas na crítica jo rnalíst ica com o estudo sobre a pintura de Francis Bacon. Não gos, este necessário encontro do tátil e do concluo que o m eu presente consiste em um
nas o b ra s acadêmicas so b re o teatro, se trata de pesquisar nas suas obras senti- óp tico se resolve e se ultrapassa no háptico, sistema combinado de sensações e de movi -
está amiúde associado ao de percepç ão». mentos ambivalentes: «não há sentimentos que é uma maneira de «ver com as m ãos" mentes. Meu pr esente é, por essência, sen -
No sentido filosófico, "há sensação em Bacon: não há nada, senão afetos, isto é, Do ponto de vista do dançarino ou do ator, sório-motor. "
quandouma modificação fisiológica, de (sensações' e (instintos: segundo a fórmula trata-se de transmitir fisicamente a sensação A trajetória e a queda: as sensações do
origem no mais das vezes externa, excita do naturalismo. E a sensação é aquilo que do movimento ou da cena; do ponto de vista movimento podem ser, segundo Deleuze,
qualquer uni de nossos se ntidos" . O teatro determina o instinto em urn dado momento,
do encenador, a arte é de atrair o olho do ou instantâneos de movimento, que
é certarnente a arte que mais mobiliza assim corno o instinto é a passagem de uma espectador, a fim de fazê-lo passear, de de,i- recomporiam sinteticamente o movimento,
as se nsa ções de todas as espécies. Ora, sensação a outra . .." 2 Encontramos nesta pin- xá -lo brincar, no espetáculo. na sua continuidade) na sua velocidade e
como di stinguir e triar essas sensações na tura que muitas vezes é salientado na sua violência" Tais sensações se
consciência e na percepção dos artistas ou pela cena: as sensações são 1. Sintéticas, 2. constituem em trajetórias-, lá onde o peso,
dos espectadores-? Motrizes, 3. Fenomenológicas. Nos termos 4. A BUSCA DE NOVAS SENSA Ç Õ ES o espaço, o tempo e o fluxo determinam o
de Deleuze: 1. "Toda sensação toda Figura movimento: or a lutando contra o peso e a
já são sensação 'acum ulada, (coagulada' r...]. Movimenta/sensação : se o h áptico está no gravidade, tendendo para a manutenç ão da
1. SENSAÇÕES E PERCEPÇÕES
Daí o caráter irredutivelmente sintético pelo centro das pesquisas atuais , práticas e teóri- vertical, ora, ao contrário, deixando -se ir
NO TEATRO
qual cada sensação material possui vários cas, é porque concentra sentidos e sensações e cair em direção ao solo, aceitando e exe-
níveis, várias ordens ou dom ínios." Cp. 29 ); hámuito tempo disjuntos. Sua importância cutando a queda" O mesmo.ocorre corn o
As sensações estão na origem de nossa per- 2. Daí "a hipótese motriz": "Os níveis de sen-
para a dança, para o teatro do gesto, assim espectador da danç~, do movimento ou da
cepção darealidade, a[ortiori as sensações sação seriam como pausas ou instantâneos
COl110 para toda outra forma de teatro, é dramaturgia-ele pode resistir a isso e recons-
de urna d ram ática, teatral ou p erfor- de movimento, que recomporiam sint ética -
óbvia. A j unção do visível e do sensível- truir a todo custo urna lógica de ações e de
rnativa: são produzidas, intencional- mente o movimento na sua continuidade,
sempre ocorre aí. Para a e siarnncacoes, abandonando -se a uma expe -
mente ou não, elas são transmitidas em na sua velocidade e na sua violênc ia." (p. 30);
não apenas para a dança Contact Improvi- riência puramen te senso rial que não seja
todos os níveise em todos os moment os do Daí a últ ima «hipótese, mais fen orn enol ó-
sation- de UDl Steve Paxton, ela se tornou espartilhad a pelos sentidos e por tudo aquilo
acontecimento, elas serão recebidas e cap - «Os níveis de sensação seriam real- o ponto de partida de toda criação. Assim, que , segundo se considera, deve «ficar em pé':
tadas, analisadas e experimentadas pelos mente domínios sensíveis qu e re meter iam
p ara Odile Duboc ou para Trisha Brown, é Co mpartilh an do sensações e sentidos: os
obser vad or es e pelos participantes. Os ato - aos diferentes órgãos dos sentidos; mas, j us-
o movimento que provoca a sensação, mas é espectadores, qualquer que seja a atitude
os os ape- tamente, cada nível e cada domínio teriam
também a sensação que induz o movimento. encoraj ada por eles ou escolhida por eles
larn para suas capacidades sensoriais, seja urna maneira de remeter aos outros, inde-
Segundo esses dois coreógrafos, o dançarino próprios, estão aí para p artilhar sensações,
no training, na coreografia ou na encena- pendentemente do objeto comum represen -
deve fazer emergir de suas sensações corpo- muitas vez es d esco nh ecid as, emoç ões for-
ção. Em lugar e antes de tudo, tado:' (p. 31)
rais (visuais, auditivas, mas sobretudo pon- tes e afetos- poderosos. Na maior parte do
estão as sensações de peso, de espaço, de
derais, táteis e, às veze s, olfativas), estados de temp o, ess as sens ações amalgamadas são
r itrnoe de fluxo, como be rn mostrou Lab an.
corpo que induzemmovimentos. O espec- "desmaranhadas" olhar discriminador
Os bailarinos e os coreógrafos sab em de fato 3· SENS AÇÕ ES TÁTEIS , Ó PTICAS, HÁPTI CAS
tador (ou, na improvisaç ão, o parceiro) ou pela palavra partilhada e circulante na
q ue sensação e movimento estão reunidos )
é receptivo a essas sensações-movirnen- comunidade". Tal é, pois, segundo Marie-
c oin cid em, completam-se, apeiam-se e até Esse carrossel de por tos, sensações movimentadas tanto quanto -Iosé Mondzain, o do teatro : «Se não
fund em -se. Por um fen ômeno d e empatia- Deleuze nos quadros de Bacon val e tam -
movimentos sen tidos. Todos são sensíveis a houvesse o teatro, neste caso de um modo
cin est ésica, os espectadores os recebem e
bém' mutatis mutantis, para o teatro. Todas uma mesma convergência do movimento e fundador antes de qualquer outro lugar, a
os retrabalham. Com certeza, à 1"'<1"1 n"lC>lf"1
as artes se apoiam no modelo mais da da sensação. A fronteira entre movimento palavra não dar conta da intimidade
vista, a m assa das sensações produzidas percepção humana, a qual se baseia em uma
e sensação, interioridade e percepção exte- pulsional e, portanto, da separação irredutí-
não coincide COI11 o coletivo das sensações lógica dos sentidos, especialmente na opo-
recebidas. rior, estímulo e resposta não cessa de se esfu- vel que afasta os homens uns dos outros," >Na
sição entre o tocar e a visão, isto é, entre o mar. Tal era a posição claramente enunciada tradição ocidental grega, as sensações do e
300
3 01
Sessão 50ft Power

no teatro terminam em uma experiência não vias de nos entediar ouvindo uma série de (performance), e intersubjetivamente perce-
5 0ciodram a
somente estética, mas política. - E, nos diz discursos? Uma top model se presta a uma bida como dotada de uma unidade para ao
Mondzain, é "o lugar da justiça, o lugar do
debate político e o lugar da partilha pática
(passional)" (p. 57).
sessão de fotos, mas os atores, cabe pergun-
tar' se detêm para apresentar algumas poses
espetaculares? A acupuntura nos propõe ses-
menos um indivíduo que as realiza (o per-
forrner) e pelo menos um outro que assiste a
isso (o espectador), estando cada qual cons-
1J Fr.: sociodrame; ínql: sociodrama; AI.: Soziodrama.

O sociodrama é uma técnica psicoterapêu-


A imersão nas sensações: ora, essa pro- sões de tratamento de meia hora, porém uma ciente de seu papel nesse processo. " tica. Um grupo é convidado a improvisar
cura das sensações puras, dos significantes sessão teatral de três horas proporciona ela A partir da sessão, leva-se em conta o con- sobre um tema que lhe diz respeito particu-
flutuantes e das experiências emocionais também uma trégua eficaz para nossas dores? junto do fato teatral concreto, quaisquer que larmente, uma cena destinada a revelar as
tornou-se, às vezes, a busca de um teatro r\ despeito dessas incompatibilidades sejam as modificações do objeto-teatro e as relações entre as pessoas, suas puls ões, seu
pós-dramático- ou de uma performance entre as sessões e o teatro, a sessão de tea- condições de recepção pelos públicos os mais sofrimento e os meios de remediá-lo. Se se
pós-moderna" que oferecem aos especta- tro - uma noção introduzida por Chris- diversos no curso da história e nos diferen- trata de fato de um psícodrarna coletivo, no
dores eventos, ações, experiências reais, em tian Biet - ajuda a chegar ao cern e de um te s contextos culturais. Este acerto teórico sentido de J.L. Moreno, nada é di to, neste
vez de representações simbólicas do teatro fenômeno próprio a toda experiência tea- é precioso se quisermos tratar as diferentes último, sobre a natureza sociológica do grupo
dramático e ligado à significação. O especta- tral e performativa. Para Biet, a sessão com- cultural performances- de maneira um pouco e sobre a sua ideologia. A ação se baseia em
dor quer então ir ao ato, e assim abandonar preende' de fato, as condições de produção coerente, em vez de multiplicar teorias adap- uma hipótese sobre a virtude catártica puri-
a representação teatral a fim de passar à arte do espetáculo e as circunstâncias concretas tadas a um único objeto e de cair em um ficadora do jogo de improvisação e do teatro.
perforrn ática, ao happening-, às ações reais. de sua recepção pelo público: "A sessão de ecletismo metodol ógico e teórico ao qual Segundo Moreno, cada jogador um
Ele qu er, em suma, permanecer no páti - teatro (que) substitui a performance teatral o pós-modernismo e o pós -dramático nos leque de papéis que determinam seu COIn-
co·, na sens aç ão e até no sensacional, nas no interior do tempo e do lugar da interação habituaram rnuito. portamento. Cada sociedade e cada cultura
experiências de imersão- na obra, sobre os com o público visto que há o fenômeno da dispõem igualmente de certo n úmero de
joelhos do artista, no pré -simbólico, exata- assembl éia teatral durante um dado tempo:'! NOTRS valores que elas inculcam nos indivíduos.
Ch ristian Biet; Christophe Tríau, Qu'est-ce que le th éã-
mente antes do estado de espelho e do efeito A sessão nos incita a considerar a representa- tre? Paris: Gallimard, 2006, p. 68.
de reconhecimento (anagnorisis). ção de maneira holística corno UIn conjunto Gu y Spielmann, L'''Événenlent-spectacle'': Perti -
que só toma o seu sentido em relação com n ence du concept et de la théorie de la performance,
Communications, I1. 92, 201311, p. 199.
NOTRS um público. Esta relação deve ser incessan-
André Co rnte-Sponville, Dictionnaire philosophique,
temente interrogada e reconstruída. Soft Power
Par is: PUF, 20 13, 915.
Gille s Deleuze, Bacon: Logique de lasensa- No mesmo espírito, Guy Spielmann pro-
tion , Paris: De la D ifférence, 1994, p. 30. põe urna teoria do "acontecim ento espe- '
Hen ri Ber gson , Mati êre et m émoire , Paris: PUF, 1939, t áculo" (Spectacle Event) que recorra à
p. 148. (Trad. bra s.: Ma t ériae Memoria: Ensaio Sobre
intersubjetividade entre o performer e o
Social Drama Por oposição ao poder imposto ao Inundo
a Relação do Corpo Com o Esp írito, 2. ed., São Paulo : (Drama Social) pelas armas (hard power), o
Martins 1999 , p. 161-162) . espectador. Ele cria mesmo o neologisrno
Sobre essas que stões da queda, ver P. Pavis, A FaU, francês spectation para expressar o processo poder suave ou um poder de veludo) é urna.
Performa nce Research, V. 18, n. 4, Aug. 2013, p. 98 -106. arte diplomática que financia as obras e os
do spectating, em contraste com o processo
(O n Falling. ) o social drama (O drama social) é, para o artistas em suas tournées pelo exterior para
Ma rie -Io s é Mo ri dz ain , Produire la cr éation , Paris: do performing, o fato de atuar/represen-
antropólogo 'Victor Turner (1982), inventor dar uma imagem cultural e culta, pa cífica e
Associ ati on Sans Cihle /LAmandier; 2007, p. 57. tar/realizar que a palavra franco -inglesa de
desta noção; um drama que pode ocorrer positiva do país de origem no . . . . . . . . ....
performance exprime de maneira deliciosa- LL'O;"''-LL

em pequena escala em uma aldeia ou, em Esse termo' inventado por Ioseph S. Nye Jr. J
mente imprecisa. Ligando como oximoros as
grande escala, entre as nações. Qualquer que descreve uma política exterior não agressiva,
ideias de performing/spectating (para arela-
seja a escala em que ele se produz, há seInpre que sustenta sua cultura em diversos países
ção teatral) ou de acontecimento/espetáculo
ruptura de uma norma, formação de partes julgados receptivos a essa doçura da arte.
Sessão (para a coexistência de um acontecimento e
em conflito, reintegração final do grupo ou
de sua mostração (mostration) a UIn espec-
reconhecimento de uma ruptura definitiva
Fr.: séance; lngl.: session, 1\1.: Sitzung. tador-), Spielmann propõe uma definição NOTRS
e de uma separação final. 1 Cf. BO Ul1cl to Lead: 'lhe Changing Nature of American
do "acontecimento/espetáculo": "Sequên-
Power, New York: Basic Books, 1990 .
A priori , a noção de sessão não parece apli- cia de ações de natureza comunicativa, exe-
car-se ao teatro: o parlamento está em sessão, cutadas em um tempo e um lugar dados, Victor Turner. FromRitua!to Theater.
mas se o teatro estivesse, não estar íamos em segundo modalidades fixadas de antemão New York: PAJ, 1982.

302 303
Som no Teatro Som no Teatro

musical (Muziktheater) na Alemanha (Rei- "Sendo reprodutível e tão fácil de manipu- [Barthes], corpo e corporalidade·, ritmo e
Som no Teatro
ner Goebbels), todos tomaram como eixo lar quanto se possa desejar, o som tornou- abstração da forma) e dos espectadores que
Fr.: son ou th éàtre; Ingl.: sound in the theotre; de seu trabalho a produção e a dramaturgia -se uma matéria autônoma C0111 sua própria o escutam e o ouvem sua moda, O som
AI.: Ton in Theatet. do som. Como sublinhou o teórico Daniel dramaturgia: toda mudança no som, que o está, da mesma maneira, preso à estrutura
Deshays, a reflexão acerca do som está ligada ritmo, a intensidade e a localização podem e ao dispositivo da encenação, integrado a
Durante muito tempo negligenciado a uma época, a uma série de momentos: o jazz causar ou desencadear, participa de toda dra- unla dramaturgia 6.
pelos teóricos e, às vezes, também pelos e a música contemporânea dos anos 1950, o maturgia do espetáculo de maneira sonora Resta estabelecer o estatuto do SOl11.
praticantes da cena, o som no teatro cinema (Godard), o teatro ou a performance e sã (o que quer dizer: não somente como Segundo a hipótese de Ross Brown", o S0111,
torna-se enfim objeto de estudos sérios ' e (Chéreau, Sellars, Wilson) nos anos 1970, a uma extensão ou um prolongamento de todo na prática contemporânea, tornou -se dieg é-
de realizações bem-sucedidas. Estaremos multimídia de hoje. Se os artistas visuais têrn :'3
outro elemento) O SOIU não é simplesmente tico: ele narra qualquer coisa e não, necessa-
talvez em vias de descobrir o som e aquilo às vezes dificuldade para seguir e utilizar um um acompanhamento do texto ou da mise riamente, aquilo que o texto pa rece dizer. Ele
que distingue c ruído, a música, a palavra pouco o som e a rnatéria sonora, a maior parte en scêne, uma difus ão, mas é uma cri ação de não se reduz, portanto, a uma ideia, a urna
e o silêncio? dos encenadores contemporâneos, em com- pleno direito que os espectadores recebem fábula, a um elemento puro, idealizado e ima -
pensacao, compreendeu que "a '-VJl.l.'-\'~V"'u.v e ' COl110 obra de arte. Mla- terial, Trata -se de uma matéria que vale COl110
son ora de um espetáculo depende de uma den Ovadija propõe "a tese da centralidade significante, que não poderíamos reduzir a
verdadeira escritura apta a dar profundidade do som como um elemento constituinte ao uma única significação. Assim send o, coloca
1. o O BJE T O DO EST U D O ao conjunto de sua dramaturgia, que tem o mesmo tempo performativo e arquitetural em questão a dramaturgia puramente tex-
seu eixo, por outro lado, totalmente no visual" do teatro contemnoraneo tual e nos convida a a dramatur-
Não basta estud ar afunção da música ou da (Deshays) . Alguns desses encenadores per- gia clássica por uma pós-dramaturgia do som,
sonopl astia em um espetácu lo, n e111 muito m an ecern, entr etanto, desconfiados em rela- da música, da auralidade. Desse mo d o, o cria-
rnais as técnicas de produç ão do som ou da ção ao criador de som (sound designeri. Eles 4. ALGUMAS HIPÓTES ES PAR A UMA dor de som (sound designei), que é um artista
(.'r\1"1 í\.~1 ·7 'l r '-!í\ da voz ao vivo ou, ainda, a fabri- têm medo da materialidade- significantedo PESQUISA QUE DESLANCHA por inteiro, e não um simples técnico ou enge-
cação datrilha sonora, Convém, agora, COIDO som ou do "grão da voz" (Barthes). A isso se nheiro de som, vê sua.posição reforçada; e ele
sugere DanielDeshays', cruzar campos d iversos acrescenta, par a o teatro intercultural-, a difi- Uma noção se impõe nos es tu do s sobre o é convidado a ~nfrentar o encenador (sobre-
corno a o cine m a, o teatro ou novos culdade, e até a indisposição, de ouvir as vozes som: a de aural e de a "auralidade" é tudo se este último permaneceu adstrito a seu
dornínios corno a prograrnação po r COITlpU- de outra cultura. 1\.OS amantes incondicionais a maneira de ouvir, de compreender os sons, papel na interpretação do texto e na direção
tador, os vide ogarne s etc. É, pois, a escritura da óp er a clássica ocidental, a voz de uma can - a qual depende do modopelo qu al o ouvid o dos atores). A dramaturgia do som faz explo-
sono ra" que d eve no s ocupar: não tanto o tora de Pansori coreano parecerá rouca, mal é em parte determinado pelo ambiente cul - dir o modelo hierarquizado e texto - ou cen o-
som que o teatro quanto o som trabalhada, tural do ouvinte, isto é, -centrado da miseen clás sica. Daí urna
que constitui o teatro e se constitui em uma subjetiva da escuta" >, nova maneira de ver -e principalmente de
dr amaturgia sonora. Mas como criar Ul11a per- A arte de ou vir i cn tendrei e escutar éa escutar - o teatro e, portanto, pa ra o teórico,
formance que cr uz a as diferentes matérias (tex- 3. QUA L OBJETO ESTUDAR? arte de aprender a excluir de no ssa percep - de analisá-lo. O espectador con cebe doravante
tual, visu al, 111usical, vocal e os ruídos de que não ternos necessidade. o SOl11 como uma matéria sonora, do é
para produzir um gênero ainda inédito? Não ba sta ou não basta mais estudar a tri- Ao mesmo tempo, o ruído, isto é, o SOIU cuja preciso experimentar o fluxo, o processo e a
lha sonora do espet áculo, explicar como o fun ção ainda não conhecemos, é indispensá - dramaturgia. O SOl11 e a música não são mai s
som é atualmente produzido nos teatros, veL H á selnpre ruído no teatro, a despeito dos um fundo sonoro do texto, eles constituem a
2. ALGUlVIAS EXP ERI ÊNCIAS quais máquinas de ruído c quais programas protestos dos espectadores que não querel11 estrutura do espetáculo. Poder-se-ia falar de
informáticos são utilizados. Trata-se de com- ser perturbados e que, no fundo, prefeririam musicalização· do teatro (e, inversamente, de
Tr ata-se aqui d e pensar, através do som, a preender e de avaliar a escritura sonora, o ser leitores na calma de sua sala de leitura. teatralização da música).
obra em seu pioneiros pro- sound Observar-se-á, por exemplo, O teatro e sua encenação revelarn e transfor-
cedentes de outros domínios além do som como rnáquinas de tratamento do som isam- mam ern jogo todas as interações entre ruído,
propriamente d ito, em especial do cinema, plers, exp anders etc.) são utilizadas direta- silêncio e ações físicas dos atores. 5. UMA NOVA FILOSOFIA DO SO M
coritr ibuirarn para essa nova dramaturgia mente no curso do espetáculo, e músicos, No teatro, o som não é o.simples veículo E DA IMAGEM?
do som: os cineastas Iacques Tati ou Jean - engenheiros do S0111, compositores voltaram do texto ou da é sem-
-Luc Godard, o s perforrners Carmelo Bene a ser outra vez improvisadores capazes de pre uma performance ligada ao corpo dos Desenhar o som? Perceber seus de senhos
ou Laurie An derson, os artistas do teatro manipular ao vivo o som como uma matéria: artistas que o produzem, (voz e grão da voz ocultos? Não é esta a tarefa do sound designer,

3011 305
Som no Teatro Som no Teatro

do criador de som? Mas esse desenho do som uma apreensão encarnada do corpo em é mais a ilustração realista de um lugar ou de Dramaturgia sonora: dando a oportuni-
consiste justamente em não o conceber como movimento do ator diante de nós e em nós, um texto, mas quando muito sua evocação dade ao sorn e às mil formas de exprimi-lo,
um desenho a mais, como um traço unica- além da visualidade do mundo, que outra por convenção. Ela não tem mais nada de a dramaturgia sonora proporciona ao teatro
mente visual. Trata-se, de fato, de ultrapas- coisa poderemos encontrar e sonhar? Fica- uma linguagem cênica autônoma com mui- (e não somente à ópera ou ao teatro musical)
sar ou, ao menos, de completar nossa visão n10S sabendo corno a encenação reagrupa, tas metáforas visuais como nos anos 1970 uma nova saída. Concedendo seu lugar ao
do teatro como encenação visual por meio associa e hierarquiza os signos visuais e os e 1980. De resto, os atores, durante longo ruído, como o outro do som organizado, da
de uma concepção sonora, auditiva, musical, materiais ao construir um Inundo organi- tempo considerados como a condição sine música e da palavra, ela rompe as fronteiras
rítmica do espetáculo: a auralidade (aurality) zado. Se a dimensão sonora tinha seu lugar, qua non do teatro, não são mais, às vezes, tradicionais entre as diferentes artes cênicas
torna-se o par e o complemento da "visua- este estava sempre a serviço de um dispo- visíveis; não estão fisicamente presentes na e performativas. Ela outorga ao espetáculo
lidade' (visuality). Pode-se de bom grado sitivo visual e narrativo. Mas era sem levar cena, são apenas contactáveis por telefone, uma profundeza sonora e rítmica que a escri-
jogar em inglês com a oposição orality/aura- eln conta a inesperada e ~~"""""""':hH;'~,L <.~ ... por câmara de vídeo, ou por vídeo pré-gra- tura cênica reservava outrora à visualidade.
líty (oralidadc/auralidadc), que corresponde cia do mundo elo som e COlTI uma fenome- vado. A linguagem quase imaterial do som Se a música permanece em mim, o som
à dualidade voz/audição. nologia da escuta. Ora, este Inundo sonoro, tem, desse modo, tanto mais facilidade de associado à visualidade e à gestualidade
Emface das imagens: as imagens se erguem redesenhado e recomposto pelos artistas se integrar na parte visual da representação. cênica entra em mim, para melhor tornar a
em nosso caminho, elas nos guiam e nos da cena, desborda e submerge não apenas Essa desmaterialização, miniaturizaçâo, vir- sair em seguida e circular naquilo que eu per-
absorvem. Porém, vivemos imersos na esfera o dispositivo visual, lTIaS também a música tualização dos elementos visuais ou gestuais cebo na cena e no mundo, para me fazer via-
sonora: essa nos sorri e sobretudo nos nutre de con cer to, quando ela é somente tocada facilita as núpcias dos sons e das imagens: jar nesses espaços musicais, nesses lugares ao
COIn o som, com o sentido e - poderíamos sem nenhum efeito de jogo de desempenho, "união livre'), dever-se -ia dizer, sem con- mesmo tempo imaginários e concretos. Cabe
dizer - com o seio, pois jamais escapamos Quando, ao contrário)o mundo sonoro se vê . . ,.,.. ,..,',. ,....,_. . ,''''''_.. .
_ . ",1 ... ". "......".."..," ._".." __ ,, trato definitivo, sem hierarquia absoluta, a mim compreender o que contam essa via -
da voz maternal. Graças a essa voz, graças confrontado com o visual, o SOIr1 e porquanto cada um dos parceiros ameaça a gem, essa matéria e essa dramaturgia sonora,
aos ruídos e aos sons, nós nos localizamos a música jogam C0111 esta visualidade, como todo momento fazer-se ao largo. muito além da dramaturgia clássica textual
em um mundo estendido ao infinito e asso - se a não tivesse mais limites. Os sons de todas as espécies - dos ruídos tradicional, Essa nova dramaturgia do som
ciarnosesses referenciais sonoros às coisas, No teatro, o som não é jamais o da música mais desagradáveis às melodias mais refina- nós ajuda a melhorrepensar a organização
aos lugares, às que se apresentam a pura. seria antes, e para suamaior gló- das - constituem nossos referenciais cotidia- doespetáculo em seu-conjunto, a apreender
nós todos ao longo da vida. Ora, esse uni- ria, música-impura e ruído informe. No tea - nos. Eles nos permitem circular pelo mundo a maneira como nós o sentimos e o experi-
verso sonoro construído COIU paciência, a tro, o S0111 está senlpre impregnado daquilo e apreciar suas belezas, seus perigos e seus mentamos: escutando, vendo, encarnando
arte pode expressá-lo mimeticamente, mas que sua manifestação pública procura jus- consolos. Penetram nossa vida interior, mar- o espetáculo, sem estar sempre em condi-
pode também se divertir em desconstruí-10, tamente escamotear: a corporalidade dos cam nossa existência social. Desaparecem ções de fazer a diferença entre essas percep-
em dissociar a imagem e a sonoridade: UIYl intérpretes, as circunstâncias imnrevtstvets !r3;ÇO ou então, ao contrário, nos ções. Milagre dessa dramaturgia do som: a
copo que se quebra miando; lábios que dão da performance, a atenção mais ou menos conduzem a outros sons, no s introduzem em escritura sonora não cessa de se desenvol-
um beijo que provoca um estalo de trovão (e ruid.osa física dos ouvintes. A esse disposi- outros Inundas imaginários. Nós não cessa.. ver; as sonoridades, as palavras, os ruídos, as
de raio); uma pessoa cuja voz familiar range tivo· sonoro se acrescenta todo o dispositivo mos de lhes associar imagens, atitudes cor- imagens e os gestos se reúnem, se associam,
como uma porta, tudo é doravante possível visual: o jogo dos atores, o bailado de seus porais, gestos. A fortiori, a arte da cena ou como que para nos dar a sentir e a realizar
em nossas cenas! Ficarnos então mais per- corpos em movimento. Essa coreografia dos o teatro musical poderão combinar visua- a experiência das obras em devir e de nosso
turbados agora do que diante de uma ima- corpos, das formas, das cores confere ao som lidade e auralidade, não como uma acurnu- mundo em marcha.
ge1n surrealista. sua cor e sua identidade. Ela acolhe todas as lação e uma integração de signos ern um
Essas possibilidades do som no teatro sonoridades, todos os ruídos. Ela lhes dá um volume espacial ou sonorocomum, porém NOTRS
Cf. Lynne Kendrick e David Roesner (eds.), Theatre
constituem urna descobertainaudita, ines- feitio, um ar que não eram previstos, que os como urna confrontação de duas instâncias, Noise: The Sound of Performance, Newcastle upon
perada, visto que era até então entendido que nutrem e os fazem penetrar como por efra- um encorajamento pelo som ou pela ima- Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2011.
o teatro é visual corno a encenação, consi- ção no universo privado de cada espectador. geln para ver ou ouvir o outro diferente- 2 Cf. Pourune écriture du son, Paris: Klincksieck, 2006.
derada o remate da teatralidade ocidental. D esmaterialização: a presença cada vez mente. Tudo depende então das interações 3 Eric Vautrin, Hear and Now : How Technologies
Have Changed Sound Practices, em L. Kendrick; D.
Por que então, na virada deste novo milê- mais sensível do som e das paisagens sonoras midiáticas e artísticas que a encenação pre- Roesner (eds.), op. cit., p. 141. "In a sound manner"
nio, o S011.1. ergue-se de súbito até a orelha, na representação teatral coincide com outro viu ou "pré-ouviu". A arte do sound design diz o inglês: isto é, ao mesmo tempo como som e
de maneira estável, segura (sound como adjetivo) .
qual um cavalo ern repouso prestes a par- fen ômeno recente da encenação: sua relativa é a de não separar os sons de sua situação
4 Dramaturgyof Sound in the Avant-Garde and Postdra-
tir a galope?Além da esperança de lllna desmaterialização espacial e visuaL Muitas espacial, de não os dissociar do gestual dos matic Theatre, MontreallKingston: McGill-Queen's
orientação semiológica do espetáculo, de vezes, com efeito, a cena contemporânea não atores. University Press, 201 3, p. 5.

306 307
Superfície Superfície

L. Kendrick; D. Roesner, op. cit., p. 4. deve, supõe-se, revelar o sentido profundo uma superfície neutra. Elfride [elinek fala, a enquanto portadores de discursos, manipu-
Cf. lVI. Ovadija, op. cito da peça, além das palavras banais. Como propósito de sua dramaturgia, não mais de Iam e friccionam, na esperança de produzir
7 Em L. Kendrick; D. Roesner, op. cit., p. 1-13.
para a conversação da vida cotidiana, per- diálogos em conflitos, mas de Textflãchen, de algumas faíscas. (Carícia-).
gunta-se sempre o que oculta a superfície das superfícies textuais em contato.
palavras. Eis por que se considera às vezes a A superfície tornou-se a pele do texto ou NOTAS

encenação como a explicitação do subtexto. do espetáculo, de rnateriais sem profundi- Elisabeth LeCompte e1n Iosette Féral (éd.), Mise en
scên e et j eu de lacteur, entretiens. Tome 2: Le C01pS
Em reação a essa concepção mimética e da de, e até sem significação, que os atores, en scéne, Montréal: Jeu/LanS111an, 2001, p. 157- 158.
Superfície psicologizante, a escritura e a encenação ou
performance contempor âneas insistem, ao
Fr.: surface; Ingl.:surface; AI.: Oberfldche.
contrário, na do texto (ou da repre-
Em narratologia, distingue-se, segundo o sentação), rejeitando a ideia de profundeza,
modelo da linguística gerativa, a estrutura
de sentido oculto ou de nlensageln implícita.
profunda e a estrutura superficial. Um jogo de atuação em superfície não será
A primeira é constituída por esquemas
mais sinônimo de . a madorismo. O ator não
narrativos gerais; a segunda é produzida fará mais cara de que está encarnando sua
por unia sequência de transformações personagem com todos os truques da inte-
a partir da matriz profunda/ traduz-se rioridade e da identificação, ele se esforçará,
por gêneros, por formas e por discursos. ao invés, em sublinhar as nervuras do texto,
Um texto pode ser abordado por suas sua matcrialidade-, excluindo muitas vezes
manifestações de superfície ou por suas as pausas ou os efeitos de real e de persona-
estruturas profundas. Interessar -nos- gern. Assim, por exemplo, o Wooster Group
emas, pois: 1. Ern estrutura profunda, pelos fará o elogio da superfície, recusando-se a
modelos actanciais e narrativos; 2. Em entrar na profundeza da interpretação ou do
estrutura' superficial, pelas figuras textuais, jogo de atuação, buscando efeitos de super-
pelos pormenores da textualidade, aquilo fície: "Nós não estudamos, nós não imita-
que foi chamado por contraste com o mo,.s. Nada fazemos senão imitar a superfície.
texto de "superfície textual': Com respeito Como não ternos a intenção de nos tornar
ao texto dramático, essa textualidade artistas orientais, jamais irei estudar, por-
constituirá o objeto de' um estudo tanto, em profundidade asartes do Oriente,
estilístico da musicalidade da matéria mas presto atenção a isso para imitar a sua
das palavras, dos tipos de falas, do léxico e superfície.": Jogar em superfície não é mais,
das marcas de literalidade. por conseguinte, jogar com superficialidade
sem crer na personagen1, 111as é, na estética
pós-moderna-, imitar ciente e voluntaria-
Aplicado ao teatro, a análise do texto drarná- mente as formas emprestadas.
tico ou da representação pode igualmente O elogio da se generaliza na esté-
escolher entre permanecer na superfície ou tica pós-moderna, precisamente para recu-
então interrogar as estruturas profundas, sar a ideia de um centro, de um enigma e de
A análise estilística e a análise dramatúr- um sentido oculto a descobrir. Durante muito
gica se completam. tempo, com o logo centrismo, considerou-se
No teatro, quer se trate do texto ou da que o texto dram ático era a parte profunda e
representação, procura -se amiúde, ao rnenos essencial do teatro, enquanto a representação
para a estética realista ou naturalista, ver e era superficial, quase inútil.Atualmente, com a
entender para além da superficie do texto. reversão pós-moderna, texto e espetáculo são
O subtexto, noção introduzida por Stanis- tratados com uma distância idêntica, corno se
lávski para suas encenações de Tchékhov, eles 'n ão fossem senão uma construção vazia,

308
309
T
Tatllldade Efeitos tatilidade: apresenta
materiais suscetíveis para ativar a sensoria-
Fr.: tactilit é: Ingl.: tactility; AI.: Tastsinn. lidade do observador - a areia, o fogo, a água
em certas encenações de Peter Brook (Car·e-
No teatro, assim corno na realidade, men, O Mahabharatai, a terra para mode-
também vemos com as mãos: o sentido lar a lama no vvoyzeck de Nadj. O trabalho
do toque, a tatilidade são indispensáveis do ator-encenador-plástico consiste, neste
para apreciar a realidade: não somente últ im o caso e na maior parte dos outros, em
sua forma, sua distância ou seu fornecer ao espectador uma espécie de massa
movimento, mas também sua textura·, sua imaginária que ele pode rnanipular e pela
materialidade·, sua corporalidade-. "Ver qual ele se deixa manipular, Bachelard nos
tocar" nos diz psicologia lembrava, La Terre et rêveries de la
cognitiva -"tal é a experiência primária: volont é(A Terra e os Devaneios da Vontade):
uma correlação entre a exploração visual e "N a imaginação de cada UHl de nós existe a
tátil dos objetos". imagem material de U111a massa ideal, uma
perfeita sín tese de resistência e de maleabi-
o teatro sempre foi consciente de suas pos- lidade, um maravilhoso equilíbrio das for -
sibilidades táteis, mas a cada dia ele era tri- ças que aceitam e das forças que recusam. "
butário dos códigos do toque na sociedade O ator e o espectador trabalham essa pasta
em que evoluía. 1\ cena, esse lugar, escre - imaginária. Todas as experiências cênicas não
veu Racine, cuja "principal regra é agradar conseguenl, entretanto, tocar de maneira tão
e tocar" pôde experimentar C0111 o toque profunda os observadores. Paradoxalmente,
no sentido físico, mas não é senão recen- essas são tentativas para invadir o espaço
temente, nos anos 1960, nos Estados Uni- ficcional e dos atores, a vontade de
dos e na Europa, que o teatro, a dança e a fazer participar, de "imergir" os espectado -
performance de vanguarda ousam desafiar res que têm a maior dificuldade em conven-
as convenções táteis, ao mesmo tempo nos
cer sobre a possibilidade de aproximar todos
espetáculos propostos e no modo de recep-
os participantes corno se a passagem ao ato
cãopelos espectadores·. (que assinala o fim da representação teatral
Teatro Rplicado Teatro-Dança

ocidental) acentuasse no fundo a distância o teatro aplicado é nômade, ele se situa 2 Cf. Helen Gilbert; Iaqueline Lo; Ianelle Reinelt; Brian dá uma resposta emocional ao seu ambiente,
entre os seres. Na cultura ocidental, o toque quase selnpre à margem do teatro oficial ou Singleton, Cosmopolitics: Transcultural Transactions
in Australasia , Basingstoke: Palgrave Macmillan, diferente da do espectador sentado e imo-
foi como que neutralizado: a gente não se dominante irnaínstream-). Ele persegue um 2007- bilizado da tradição ocidental. Se ele ver-
toca mais a não ser com os olhos. Somente objetivo utilitário, pedagógico, político no 3 Cf. Dan Rebellato, Theater and Globalizatton, Bas- baliza Iivremente suas impressões, se ele
a arte , a pintura, a escultura e o teatro ousam sentido amplo. Ele reagrupa um grande leque ing stoke: Palgrave Macmillan, 2009, p. 71.
comenta seu percurso, sua experiência inte-
ainda quebrar o tabu do toque. A pintura, de práticas teatrais. Trata-se sempre, obser- rior se transformará bem como sua relação
após um período abstrato ou conceitual, faz a vam Prentki e Preston, de um teatro «para com o espetáculo. A caminhada/marcha'. a
apologia da sen sação, do toque, da carícia ou uma comunidade, com uma comunidade, atividade física, segundo a teoria do "espí-
da pele. A dança põe à vista os corpos os mais por uma comunidade?'. É muitas vezes um rito encarnado" (embodied mind) de George
inesperados. A performance, aliada à escul - teatro de intervenção-, de enquete e eleinves-
Teatro Criado
em um Lugar Específico Lakoff e Mark Johnson, em Philosophy in the
tura , no trabalho de Miquel Barcelo e [osef tigação. Essa prática do teatro com fins não Flesh: The Embodied Mind and Its Challenge
Paso fisicamente os essencialmente artísticos encontra-se sobre- tb éatre a éé âansun lieu sp écitique;lngl.. to Vvestern Thought, tende a fazer desapare-
artistas na fabricação de seus corpos como tudo difundida no Reino Unido e nos paí- site-specitu:performance; AI.: ortsgebundene cer a fronteira entre recepção cognitiva e a
estátua viva. O body arte expõe o corpo do ses anglófonos e de tradição pragmática. Na Aurführung, recepção proprioceptiva, visível e invisível,
ha>1"'rn.,-yy, .c>1'" ao olhar ao tea- França, ela é ainda considerada corno um ficção e realidade.
tro, mais distante, trabalha a textu ra de seus projeto do futuro. François Florent vê aí uma Quando o teatro está "fora de si": saiu de A promoção da arte in situ (site-specific)
materiais provocando en tre os espec tadores tarefa do "teatro de investigação": «UIn dos seu lugar tradicional, fechado e institucio- se explica pela vontade de partir das realida-
urna 'visão e encarnada. tatilidade possíveis futuros do ator é o de vir ser ao nal, quando transborda para a rua ou não des concretas como deve fazer a etnologia,
gene r alizou-se, me smo se o t oque pe nna- mesmo tempo jornalista, o de ir para ver importa para qual quadro o não especifica- em vez de projetar ideias preconcebidas e de
nece submetido a regras estritas e interditos in loco, no terreno, o que se passa) tornar mente criado a fim de abrigá-lo, ele se torna impor teorias universais. Assim, todavia, é
persistentes- 2. transcrevê-lo e apresentá-lo ao público. " J LL.r, -':IUCl~LIL~. isto é) in situo Ele é então conce- grande o perigo de não se raciocinar mais
Tudo o que resta é aplicar: vamos aplicá-lo! bido não COIno um lugar a preencher, uma senão a partir de exemplos específicos, .de
NOTRS tarefa a cumprir, mas como uma experiência não se jurar mais senão por um local kno -
NOTAS qu e parte das condições concretas do lugar. wledge', um conhecimento local e empírico
Tim Prent ki; Sheila Prest on, lhe Applied Theater R ea-
der, Lon don : Routledge, 20 0 9 , p. 10.
Esse lugar não é apenas o quadro e a base e, portanto, de se recusar toda generaliza -o
Florent, obscure clarté, Paris: Galli- de partida da encenação, mas a matéria e o ção, toda simbolização e toda teoria- sob o
2008, p. 165. fim de sua arte. Não se trata simplesmente pretexto falacioso de que a arte não oferece
da ideia de qu e é preciso adaptar a encena- senão casos particulares.
ção ao em que ela se realiza, mas que o
espetáculo deve ser criado a partir das con- NOTR
diç ões específicas de sua produção. C f. Clifford Ge er tz [1983], Local Knowledge. Further
Cosmopolita Urna in situ não é transpo-
in Interpretaiive A nthropology, New York: Basic

Fr.: théôtrecosmopo /ite; Ingl.: cosmopo/itan theatre;


nível, ela renuncia a toda universalidade, se
AI.: kosmopo/itisches Theater. concentra nas condições locais, utiliza os
Rpl talentos locais, o gênio do lugar, as expec-
o teatro cosm op olita, assim chamado em tativas do público. O sítio, seu contexto
Fr.: tb éàtreoopiicue; Ingl.: opplied tbeaue. preciso, con fere à situação, aos textos even -
decorrência dos trabalhos de Appadurai', de Teatro-Dança
Al: anqewandtesTh eater. tuais, uma força intima) imediata e sensível
Rein elt' ou Rebellato, pretende se diferenciar
do teatro mais globalizado- que intercultu- que passaria desapercebida em um espaço Fr.: th éàtre-dcnse; lng l.: Dance-tneaue;
A expressão inglesa é muito mais banalizado. Às vezes, mas não necessaria- AI.:Tanztheater.
ral-. O cosmopolita, com efeito, "se distingue
corrente do que sua t radução francesa. mente, o público é convidado a deslocar-se
da ética governante ela globalizaç ão'". Resta
Pode-se aplicar o teatro em numerosos segundo um percurso- mais ou menos tra- Muitos espetáculos de teatro-dança
saber no que exatamente!
contextos: na escola, em comunidades, çado' a seguir os caminhos de um "passeio continuam a ocupar a frente da cena,
em prisões, hospitais, em países "em NOTAS performance', ele é levado a seguir os artistas mesmo que o termo pareça já um pouco
desenvolvimento" (daí o norne de Theater Cf. Arjun Appadurai, Moderni ty at Large: Cultural datado e muito ligado ao contexto dos
Dimensions of Globalization, Minneapolis: Univer-
pelas ruas e pelos lugares os mais insólitos.
for Development). anos 1970 e singularmente à obra de Pina
sity of Minnesota Press, 1996. Caminhando, o espectadorjlãneur, passeante,

312
313
Teatro das Minorias
Teatro-O ança

Bausch (1940-2009), cujo Tanztheater Essa convergência de duas práticas resulta com a dança senão em frações de gravado ele transmitido live ou de modo
(termo que mais valeria traduzir por numa troca de bons procedimentos: o teatro segundo em uma sequência gestual. indireto) e corpo vivo.
"teatro dançado" do que por "teatro- como a dança solicitam do espectador- urna A literatura, seja ela poesia ou relato, As culturas urbanas, especialmente as de
dança") conheceu um sucesso mund ial, percepção sinestésica de corpos em movi- retoma seus direitos: ela volta a ser audível, jovens, fornecem outra fonte a esse bloco
inspirando numerosas pessoas do mento, sem renunciar por isso ao prazer de compreensível; resiste à tendência da ence- teatro-dança-mídias. A prática do hip-hop,
teatro e da dança. O termo Tanztheater contar uma história. Assim acontece nas nação para reduzir tudo, mesmo a literatura, da break dance e da capoeira, bem como
remonta a Laban e a Jooss nos anos criações de Ian Lauwers Chambre d'Isa- a materiais visuais ou fônicos. A escuta do aquela das artes marciais, molda e reavalia
1920, antes de sua utilização a respeito belle, 2004), de Win Vandekeybus (Blush) , texto , e não mais apenas o texto corno música a corporeidade dos intérpretes por ocasião
de Pina Bausch. A expansão fe no me na l de Alain Platel (Tous des Indiens, 2000; V\TolJ, ou como argumento narrativo da fábula, tor- de novas criações. A gestualidade fragmen -
da dança, a hibridação constante das 2005) e de [an Fabre (Orgie de la tolérance, na -se de novo relevante, como se acabassem tada da breakdance, automatizada como uma
artes, as experiências interartísticas e 2009). Que ela seja dançada ou representada, de descobrir as virtudes da poesia e da lite- máquina, confere à gestualidade humana a
rnulticultu rais- explicam o êxito d a a cada vez mais unla per- ratura. En1 Fleurs de cimetiêre, 4
rr.Y"D I'",-íT1 -':l r ! -:l funcionalidade amiúde rebelde e irônica de
teatro e sua manutenção sob outras cepção física, ou até háptica· do espectador. de Myriam Herv é-Gil, o texto de Domini: um movimento maquinal, que se diverte em
formas e denominações. como a de teatro Quanto à palavra, não a entendemos mais que Wittorski é dito por uma narradora no disciplinar o corpo após tê-lo "liberado" nos
do gesto ou de physical theatre. corno a fonte de todo o restante, ela se insere proscênio, enquanto no palco evoluem os anos 1960.
em diversos momentos epor diversas razões dançarinos que confirmam ou comentam à As ciências sociais e seus desenvolvimen-
1. CONVERG ÊNCI A D O T EATRO DA DA N Ç A em todo o espetáculo, ela é percebida em eco sua maneira o relato verbal. O espectador é tos recentes no curso dos anos posteriores a
COln o da mise en scéne. assim levado a uma "estereofônica", 1.9 80 exercem urna influência marcante sobre
Mais do qu e nunca, evitar-se-á opor dan ça combinando texto e gesto. a dança-teatro. Nós no s damos conta disso
e teatro corno du as essê n cias ou d uas espe- No caso do grupo Dv 8, a reportagem ou o ao comparar May B. (1982) de Maguy Marin,
cificidadesirreconciliáveis, 111eSn1ü se, intui- 2 . PARA ALÉIVI DA DAN.Çi\.-,TEA TRO document ário são os de gravações transcritas Café Mull er (1.978), Keuscheitslegende (1979 )
tivamente, se tenha a imp ressão de que a depois rep resentadas, ou então diretamente de Pina Bausch, com as produções recentes
dança-teatro prov ém antes da do fl::ln r::l -l"p::lrrn tem o seu futuro atrás de si? retransmitidas por alto-falante. Os desse (as de Lloyd Newson ou
movimento- do que do teatro e do drama, de Sob a forma de obras-faróis de Fina Bausch, rinos executam figuras correspondentes à de Myriam por exemplo),
que ela é, emsuma, dança pr oduzindo o efeito Iohan Kresnik, Maguy .Ma rin ou [ean-Claude temática (assim em To Be Straight With You, No continuum teatro-dança-mídias, for-
de teatro e 'oteatro sendo im plicitame nte sinó- Gallota, segu r am en te! Mas com o novo 2008), que trata da homofobia no mundo. mas e fórmulas novas e brilhantes não cessam
nimo de ação mimética, de pe rsonagen1 e de alen to que lhe trouxeram novas alianças, de O devised th eatre (teatro elaborado cole- de emergir, atest ando assim a rica fertilidade
narrativa. Deve-se lembrar que aquil o modo algum! Corn efeito, o teatro como a tivamente), que cria o texto e a fábula no e a espantosa posteridade da dança-teatro.
que se corno se asso ciam para o de outras prá- curso de no decorrer dos ensaios,
dança não o é, de modo algum , na maioria das ticas artísticas e sociais, o que lhes dá uma presta-se beln a esse 1110do de produção da
culturas n ão ocidentais, em q ue da nça, tea - nova juventude: nova dança-teatro. Tous deslndiens, ou vVolf,
tro , mas tamb ém cant o, po esia , artes plásticas, O circo, para o qual coreógrafos (Phil- de Alain Platel, partem assim não de impro- Teatro das Minorias
festa s, cerim ônias ou rituais são conce bidos lipe Decoufl é, Iosef Nadj, Kitsou Dubois) visações dançadas e verbais, que produzem
e vivenciados C01110 manifestações estreita- são cada vez mais levados a trabalhar a fim os materiais em inc essante evolução, sendo théâtre des minorités; Ingl.: theatre for minorities;
rnente ligadas} até . . ,'-l--'u;.,·u.y \~.j,,).
.LJ. ..
de realizar UIYl espetáculo completo, traz o a única coisa fixa e intangível, no segundo AI.: Theater fOrMinderheiten.
Após os anos 1.970, a tendência da da nç a feérico, o maravilhoso, o virtuosismo e a caso, a m úsica de Mo zart.
e do teatro para conver gir em novas prá ticas ligeireza de que o teatro dramático e a dança As novas mídias tendem a desmaterializar o teatro das minorias não é necessariamente
se confirmou. O teatro "se 111exe;' cada vez acadê m ica são às vezes desprovidos. O corpo a dança, a afastá-la da realidade, a decorri- intercultural'. Ele se dirige a minorias étni-
mais, renuncia muitas vezes à pal avra, ele é aí utilizado com um outro virtuosismo, por o movimento, Assim desmaterializado, o cas ou linguísticas, sem poder nem querer se
não impele as personagens a se encarnarem uma outra tensão do que dos dançarinos, corpo um novo estatuto. De maneira isolar da sociedade muitas vezes multicultu-
eru uma ação mimética ou eU1 person agen s. se m os refinamentos psicológicos e Iinguís- análoga, a intermidialidade- não estuda mais ralo em que se desenvolve. Numerosos dra-
i\ dança, por sua vez, relata e fala , ern vez de ticos do teatro falado. A cordagem, o trapé- as pretensas trocas entre as mídias, ela se maturgos provieram das minorias negras ou
propor um balé de figuras coreográficas ou zio e as cordas dão ao corpo uma facilidade interessa pela transfonnação de mídias, sua asiáticas da Gr ã-Bretanha (é o caso de Roy
mesmo de se mexer (é o caso de Jér órne Bel feérica com a qual o teatro só pode sonhar. remidiação-, ela contribui para modificar Willlams com sua peça [oe Guy, 2007) ou
ou Maguy Marin na Description d'un com- A arte acrobática no espaço· (aerial art) faz nossa percepção da dança. A oposição não dos Estados Unidos (é o caso de Sung Rno
bat, 200 9 ). esquecer a gravidade, o que não acontece é mais entre dança e teatro, mas entre corpo com w(A)ve).

314 315
Teatro do Murro
Teatro de Empresa

•I·.• :~-::~:d~:P~:~I~::~e
business meeting; AI.: Bettiebstheatet.
performedin
qual é concebido e recebido em toda a parte
da mesma maneira, fabricado ao menor
custo. O teatro intercultural- seria o gênero
mais próximo dessa tentativa de mundializar
o teatro apelando para culturas e tradições
;:.:'~::~~co:o:e:~~~:L: in-yer-facetheatre;
I
:- AI.: tn-ver-tace tbeatte.

Teatro do murro: tal é um dos equivalen-


se habituaram, por certo, através das mass
media, mas que em cena os tocam muito
de perto fisicamente, com o fito de tornar
sua posição extremamente desconfortável,
de rOlnper todos os tabus imagináveis. Ao
Uma elnpresa emprega atores por ocasião de do mundo inteiro. Ele conhece seu apogeu mostrar as coisas a uma luz crua, ao adicio-
urn para em 1110do cômico tes da eX1JreSSalO 1l1gle~( :ll1't-Y't;;f ·-IUI(...t;; nar pormenores sórdidos, tanto com
nos anos 1980, assim COIT10 a world musico
(clownan álise) os problemas e os bloqueios theatre. Esta locução, na origem urna excla- uma linguagem obscena quanto com reali -
Encontramos às vezes a expressão teatro do
dessa instituição. O espetáculo sem i-impro- mação de derrisão na gíria esportiva norte- dades abjetas, esse teatro do murro põe o
rnundo para designar o caráter internacio-
visado apresentado aos participantes deve, -americana dos anos 1970, veio bem depressa público em estado de choque ou o repele para
nal do teatro, em sua temática e dramaturgia,
supõe-se, fortalecer a identidade da empresa, designar uma conduta agressiva, provoca- sempre, pois o espectador é sempre capaz de
quaisquer que sejam os países e as línguas.
aproximando o pessoal pelo riso, notada- clara, insultante. Ela foi retomada pela crítica tomar distância e recusar o mau tratamento
D~ mesma maneira, certos escritores pós-
mente o riso sobre si mesmo e a sátira ao s inglesa nos anos 1990 a propósito de autores que se lhe inflige. Segundo Aleks Sierz, o
-colon iais" invocam seu laço com uma lite-
superiores. A intervenção dos clowns-atores como Sarah Kane ou Mark Ravenhill, os quais melhor historiador dessa estética, «o ponto
ratura mundial: "Não sei se sou um escritor
'p ar ticip a dos debates no seio da ernpresa, foram rapidamente traduzidos, sobretudo na essencial é que este ln-yer-face theater nos diz
do mundo, mas escrevo sobre o mundo [... ]
naquele mesmo momento e ulteriormente, Alemanha, em que esse teatro hiper- realista mais daquilo que somos de fato. Diferente-
Sou, eITI primeiro lugar, um leitor do mun-
conheceu grande êxito 2. mente do de teatro que nos permite nos
do'", declara Dany Laferriêre, que nasceu no
Françoise Forma tion Por ousadas e recolher poltrona contemplar
Haiti, Montreal membro da Aca-
dramaturzia e seu estilo o que vemos com desprendirnento, o melhor
demia Francesa.
eles são precedidos de .exp eri ên cias que em In-yer-face theater nos arrasta em uma via-
r\ diferença com a world music é sem-
seu tempo ti veram o mesmo efeito e susci- genl em ocion al, e penetra em nosso corpo.
pre considerável: os diversos tipos de per-
taram.rejei ção comparáveis. No século XIX, Em outros termos, ele é experiencial, e não
forrnances, de gên eros, de gestualidades, de
o "brutalismo" era uma escola que pregava especulativo'" . Resta, entretanto, avaliar esse
dramaturgias não se deixam tão facilmente
um realisrno muito cru. Outras experiên- tratarnento: que efeitos produz ele sobre nós,
retrabalhar quanto à m aneira musical, sub-
Teatro-do Mundo cias: o naturalisrno e a tranche de vie (fatia além do choque e da aversão? Quais emoç ões
m etida, por sua 'vez, a todos os efeitos do
de vida) de Zola ou de Antoine no fim do extremas e viscerais· ele suscita? Atinge ele
Fr.: tneatreõiim onoe; Ingl.: world theatre. digital, efeitos às vezes destruidores sobre
as m úsicas do mundo. A noção de auten- século XIX, o Kitchen-Sink: Drama inglês dos realmente o objetivo em geral consignado
AI.: vvelttb ea tet.
ticidade parece bem arcaica n essa estética anos 1950, a geração dos Young Men a esta técnica do horror, da violência e da
Se de world fez fortuna híbrida música rermxada. anos 1950, ° abjeção?
tir dos anos 1980, a de world theatre, S0111ente o teatro musical tira proveito de
naturalismo alemão Kroetz) e francês Permanece muito .difícil incluir essas
utilizada, nunca se imp ôs por motivos que uma tecnologia que lhe permite abeberar-se dos anos 1970, sem falar da tradição inglesa experiências nas categorias gen éricas ou est é-
esclarecem bem a evolução dessas práticas do filme document ário. Quanto à arquitetura ticasexistentes, mesmo a do teatro neonatu-
em todos os repertórios e en1. todos os gêne-
artísticas, muitas vezes paralelas, mas tarn - ros. A.ssim se explica SelTI nenhuma dúvida "brutalista" dos anos 1950 na Inglaterra, ela ra.lista. Trata-se de um teatro político, de um
bém divergentes. o sucesso mundial do musical e do teatro rejeita todo esteticismo e reivindica a valori- teatro do real·? Nem sempre, pois a mensa-
A. world mu sic: desde os anos 196o ~ fala-se musical entre os públicos do mundo in teiro,
zação dos materiais brutos como o concreto genl é amiúde inaudível. Um teatro psicodra-
na França de m úsicas do mundo, depois, nos quer se trate do musical township ou do cros- não retrabalhado (Le Corbusier) e procedi- mático? Não no sentido em que o espectador
anos 1980, após o sucesso do disco Graceland sover theatre na Áfri ca do Sul, do musical mentos técnicos. Esta estética "bruta" ou se tornaria um atuante em UU1 desernpenho
(1987) de Paul Simon e de seus músicos sul - ou do Kvpop coreanos, da comédia musical brutalista está bastante próxima, em seu pro- de papel. Valeria mai s falar de teatro "psico -
-africanos, de worldrnusic. Graças às técnicas nova-iorquina. jeto, do teatro "in-your-face', () qual recusa patológico': na acepção de Freud': um teatro
computacionais, à à rnA'.....r"'.rAr. todo e atira os fatos e os gestos que mostra em relação com
à tantas que nem NOTR cabeça do espectador-. .m u itas a violência insânia Iôarah Kane). O ele-
Le Monde, sept. 2013. vezes crueldade e brutalidade' Equivale dizer,
se pode distinguir -- a world rnusic recorre mento comum parece ser uma violência,
às mais diferentes tradições musicais e cor- Antonin Artaud e Sarah Kane. física ou psicológica, sem mediação, quase
'rentes, ela as mixa e as modifica à vontade. Texto e jogo de atuaç ão rivalizam na corno em um filme de horror) mas também o
O wo rld theatre não deve ser confundido provocação) na transgressão") no excesso-: sofrimento, padecido ou infligido aos outros.
co.m o teatro mundializado, globalizado, o são tantas atitudes às quais os espectadores Essas experimentações se definem mais pela

315 317
Teatro do Real Teatro do Real

experiência, pela sensação, pela transgressão, sem a distância, SelTI. o processo din âmico e Cheesernan), praticantes do devised que seja. O teatro então não jura senão pelo
do que pelo reconhecimento de um desen- a reelaboração artística da representação tea - theatre (Simon McBurney), coreógrafos verdadeiro e pelo verossímil. COIn a chegada
lace ou de uma moral (aarzagnorisis grega). tral. Se nos mostram diretamente a violência (L1oyd Newson e seu grupo DV8), ou concomitante da mise en scêne e do moder-
É uma categoria da recepção; bas eada na dor ou a neurose personagens analisada de modo ainda defensores do teatro documentário nismo, ao contrário, o teatro, por exemplo
e na passividade do público. Essa dor não preciso, a mediação da dramaturgia, da tea- Verbatim (Alecky Blythe). o teatro simbolista, insiste na constituição
é, entretanto, catártica, não está tralidade não opera mais: temos, por certo, formal da ele recolhe em
a um prazer que o busca diante de nós casos ou fatos 1. A ,n. '''''lr",r"., DO DO REAL si mesmo, remeter diretamente ao reaL
mente por meio de uma purgação de suas brutos (econômicos ou psicológicos, pouco Da m esma maneira, o pós-modernismo dos
próprias paixões, em especial o terror e a importa), porém não vemos mais conlO se anos 1950 e 1960 e depois o p ós-dramáti-
a. Rumo a um Teatro do Real?
piedade. Aí r eside toda a diferença com a chegou lá e a ficção teatral não opera mais co· dos anos 1970 desconfiam da referência
tragédia clá ssica ou neoclássica. As regras como aquilo que deveria mostrar ao mesmo Todas essas experiências muito diferentes à realidade. D esde os anos 1990, assiste-
da tragéd ia grega clássica ou da dramatur- tem p o o recalcamento do espectad or e seu nos ajudam a conhecer melhor o real. Não -se, nas artes e no teatr o, a um retorno do
gia europeia desde a Renascença imp õem a levantamento catártico graças à denegação. são mais os efeitos de real- e o realismo que real, sem uma volta, nClTI por isso, à totali-
determinação de não mostrar a violência e a qualificam esses teatros do real, mas a possi- dade da representação, como podiam recla-
rnorte diretamente no palco: não apenas por NOTAS bilidade de construir e explicar o real a par- mar outrora Hegel, Marx ou Lukács. Esse
Patrice Pavís, Ravenhill and Durringer 01' the tir de dispositivos artísticos de obras. Graças
questões de decência, de resp eito pelo sofri - "Enten te Cordiale" Mi sunderstood, Con temp orary
retorno vigoroso da realidade nas artes plás-
mento do outro, mas porque, a fim de Th eater Review, v. 14, n . 2, p.
ao olhar distanciado do autor, uma nova face ticas não se por acaso. É um ponco
ciar catarseso deve nnazinar do teatro nos aparece, face oculta, o retorno recalcado. Um virtuoso
i dentificar-secom os terríveis eventos, Patrick Marber, [oe Wallace, apaixonante. O anverso do teatro, não é então e brilhante, centrado nas da mise
Na França, os exem plos são men os nume-
reconhecer-se e tomar distância segundo um Durringer,
a ilus ão, a ficção, a teatralidade, mas é a vida en scéne, reinou até os anos 19 80 , sem refletir
processo de denegação o • Ora, no teatro do Cf. Ar nau d Rykne r, Cruaut é-brutalit é, Les Mots du social, a política, a luta de classes, a sobrevi- rnuito sobre seu afastarnento progressivo do
th éãtre, 'Ioulou se: Pre sses Un iversitai res d u M irail, vência econômica e o cotidiano.
murro, nesta anticarícia, não temos o tempo mundo social. O adv ento do culturalismo e
2010 , p. 27.
d e ver o golpe chegar, nós o recebemos de O tea tro do real e o teatro do doeu- do "todo-cultural', a ~ s cens ão vigorosa dos
4 Ale ks Sierz, In -Yer-Fa ce Thea te r: Br itish Drama
pronto, eUl plena face, em um tratamento de Today , London: Faber and Pabe r, 20 0 0, p. 4. mento conhecem, não somente no Reino performa nce stúdies: encarr egados de abor-
choque, apenas preparado pela disposição de Cf. Sigmund Freud, Personnages psy cho pat hiq ues 'Un id o, mas no mundo inteiro, uma reno- dar todas as espécies de cultural performan-
sur la scene [ 19 0 5 ], Digraphe, n . 3, 19 7 4 . vação de interesse. Eles inventam um teatro
urna fábulana qual poderemos compreender
6 Fran çois Regnault, . Th éãtre-Equi nox es: Écrits SU l" le
ces", tudo isso precipitou o fim do político
como a personageln se torna psicopata. Com th éãtre-i , Arle s: ActesSud , 2 001, p. 108-1 09 . que reatacom o real e a política. Os artis- em proveito do cultural, do humanitário e do
efeito, nos lernbra oportunamente tas agora não têm medo de meter a 111ão na compassivo, Ora, nos dias de assiste-se
l.'-C::·~l1dUH na sua análise do texto de graxa dos mecanismos sociais, da econo- à volta do social a
e que o herói torne ~vJl""'-)'I/U.I..l""'-' mia da miséria do mundo, Eles contar e de ouvir
diante de nós, que a situação abale o recalc á- põem também o dedo lá onde isso faz mal: na histórias, de o senti do dramático de
rnento, que o impulso recalcado ressalt e, ma s engrenageln. Se eles criam um teatro pobre, urna fábula b em con stru ída e de um relato
desviado, a fim de que não O reconheçamos. não é no sentido estético ou antropológico expeditamente conduzido, de reconhecer, um
Ao passo que se o herói já é p sicopático, não de um Kantor ou de um Grotowski, rnas no universo farn ili ar. Prazer tanto mais mani-
nos identificamos com ele (é um d oe nte), sentido de um teatro que tr abalha em con- festo quanto o público estava um pouco des-
e não nos preocupamos com. sua doenca'". dições precárias, à imagern das pessoas cujas concertado e fat igado com os fonnalismos
Tais são os limites do teatro do murro (e, Em um livro sobre o teatro britânico, na vidas cotidianas ele evoca. p ós-modernos- ou o virtuosism o vazio pós-
d e um I110do mais amplo, de toda represen - Inglaterra e na Escócia dos anos 1950 Segundo a teoria clássica da mimesis, o -dram ático. Assim, pois , com esse retorno da
ta ção naturalista): a representação teatral, sua até nossos dias, Danielle Merahi' forjou o teatro deve mostrar a realidade direta e exa- realidade sociopolítica, esse público podia se
teatralidade, a consciência de assistir a termo Teatro do Real, uma noção que lhe tamente. Essa mimesis, soltar a olhos vistos, porquanto os ternas, as
uma história fabricada, são permite redefinir o teatro documentário e vez por Aristóteles, muita coisa: a programações, da política cul-
s árias para a identificação, para o retorno político centrado em uma observação da representação, a imitação, a semelhança, a tural abriam o teatro à comunidade de ama-
do recalcado, para o prazer ambivalente da realidade, associando-o a autores (Caryl verossimilhança. Por volta do fim do século dores, de escolares e estudantes, de cidadãos
catarse. Na falta disso, permaneceríamos no Churchill, David Greig), encenadores do XIX, justo antes do modernismo, o rea- comuns: e outros ta ntos grupos diretamente
estado pré-simbólico de coisas reai s, que não teatro político (Ewan Macc.all), popular lismo pretende reconstruir o real, registrar preocupados com qu estões socioculturais
chegaram ainda à nossa consciência, dadas (John McGrath) ou comunitário (Peter o mundo tal como ele é, por mais feio e cru que eles desejavam ver tratados na cena,

318 319
Real Teatro do Real

narticrpando de ou de de

b. O o Social

321
Teatro Sincrético
Teatro Multilíngue

NOTAS temas ecléticos ou de teses heterogêneas e


colar-se ao real, decifrando sua complexi- é representado em francês, inglês e espanhol, Ver o estudo de Marguerita Laera e seu livro, Rea -
dade. A condição para o sucesso, e até para conforme a lógica das cenas e de suas perso- ching Athens: Community, Democracy and Other pouco compatíveis.
a sobrevivência, do teatro documentário é, nagens. Quando os atores precisam represen- Mithologies in Adaptations of Greek Tragedy, Berna: A palavra perde essa nuance negativa
Peter Lang, 2003. quando se aplica .ao sincretismo cultural: a
pois, a de ser combinado com uma pesquisa tar' pelas mesmas razões de coprodução e de Ver os exemplos dados por Christopher Balme em
formal e estética, com UUl conceito drama- tournée internacional, mudando de idioma, Decolonizinglhe Stage:TheatricalSyncretism and Pos- recepção, transformação de elementos pro-
túrgico e uma encenação. Ao fim, doeu- ° começam as dificuldades sérias. Os atores da t-Colonial Drama, Oxford: Clarendon, 1999, p. 106 -
145·
venientes de culturas diferentes, produção
mente terá necessidade de ser reescrito por encenação de Derek Walcott, The Odissey: de um sistema novo que funciona segundo
um autor, portanto conforme um certo ponto A Stage version, passaram por essa dolorosa suas próprias leis. O sincretismo permite
de vista, depois ser "traduzido" ern uma Iin- experiência, tendo de aprender seus papéis seguir o encontro de culturas diaspóricas,
guagen1 cênica original, ela também orien- em quatro línguas diferentes', segundo uma contact zone: entre as cultu-
tada por escolhas artísticas claras e explícitas.
É a esse preço que o teatro documentário terá
Quando o público é bi- ou trilíngue, por
exemplo no case dê espetáculos "pós-colo-
I Teatro Para Turistas
ras' o que insiste não mais na dominância
única de um.a cultura sob re 2.S outras, mas
sobre o [ront de contato entre sistemas que
um efeito ao mesmo tempo político, ético, niais", por autores-atores-narradores de his- [~':l
I.... Fr.: théâtre pour lestoutistes; IngL: Theatrefor
se influenciam uns aos outros. Um con-
mas também estético sobre e que tórias escrevendo na língua do colonizador I tourists; AI.: Tounstentbeat er.
tato que o antropólogo U. Bitterli- designa
se tornará, talvez, um dos mais belos florões (inglês, francês etc.) ou em uma ou várias lín-
como Kulturbegegnung (encontro cultural), o
de teatros do real. guas "locais': o jogo do espetáculo se realiza o teatro para turistas, por certo não anun-
em vários níveis, reservando ao público local qual torna diversas formas: Kulturberiihrung
ciado como tal, está muito presente nos
Cf. Danielle Merah í, Th éã tre du Réel, Montpelli er:
alusões ou °
que grosso do público países do turismo e
(roçadura cultural), Kuliurkontact (contato
cultural), Kulturzusammenstoss (choque de
Entreternps, 2016.
não entende, o que provoca o riso redobrado porcionar, de sua cultura, aos turistas oci-
dos espectadores" "indígenas". Um narrador culturas), Kulturverflechtung (interpenetra-
dentais, uma imagem acessível, exótica e
franco-argelino corno Fellag introduziu em "apresentável?'. ção cultural) e Akkulturation (aculturação).
seus monólogos em francês algumas pala- Um teatro sincrético não é uma forma
vras ou chistes enl árabe ou em berbere, o NOTAS
fabricada globalmente para todos os públi-
Ver a respeito desse assunto o livro de Dennis Ken- cos e todos os lugares do mundo inteiro, é UlTI
"r eaí ro~\11 u i t ii ín 9 ue que produziu o mesmo efeito .
O público monolíngue mostra-se muitas
The Spectator and the Audiences in encontro ("unlàmescla aculturada de mate-
Postmodernitv, ,,--,aIIlu'rlU.~e: Cam-
vezes reticente à ideia de receber um espetá- o riais e de práticas de espetáculos que proce-
Fr: tbéàtremu lútinque. Ingl.: multilinguol tbeatre; l - " u.\..L .... U.LU,.L,

Al. m ehrsp ractüqes Theater. culo em um ou diversos idiomas que ele não
capítulo 5, lhe Spectator as Tourist. igualmente dem de duas ou mais tradições culturais, que
Christopher B. Balme, Pacific Performances: Theatri-
domina. Não som.ente por medo de perder cality and Cross-Cultural Encounters in the Soutn Scas,
produzem.formas qualitativamente novas") '.
Não se deve confundir: O teatro multilín- nuances porque legendas tornam. Basingstoke: Palgrave Macmillan, A maior parte do tempo, os exemplos do tea-
gue, que escreve e atua ern várias línguas; 2. logo fastidiosas se forem malfeitas, porém, lar, o capítulo 7: "As You Always tro sincrético são tomados de peças ou de
Pacific as Tourist Spect acle"
() teatro rnulticultural-, que confronta várias sobretudo, conquanto nem sempre o espec- representações no quadro de culturas diaspó-
culturas na temática ou no estilo de atuação; tador seja consciente disso, porque a drama- ricas em contato ou de situações coloniais ou
3. teatro intercultural-, que relaciona ou turgia, a percepção da fábula e das sutilezas neocoloniais. O sincretismo resulta da con-
unifica diferentes culturas. tendem a padecer com a multiplicação das frontação de práticas cênicas) de temas orais
O teatro rnultilíngue, em que os intérpretes línguas e as faltas que ela acarreta. A dificul-
falam cada qual na sua língua, é relativamente dade para um público unilíngue é sentir o
raro a das 'nU111erosas /·r"........
/"r1.,r"'/ -v ,"'"
I Teatro Sincrético
ou escritos, de formas literárias, dramáticas
ou cênicas. No contexto colonial ou pós-co-
lonial-, a mescla é a das formas tra -
valor afetivo de outra língua além da sua, é Fr: Théôtre syncrétique; Ingl.: synchretictheatte, AI.:
int ernacionais presentes. A escolha das lín- não se ver ultrapassado e posto de lado. Se já syncretisches Theater. dicionais e de gêneros ou técnicas europ éias,
guas é, eviden tem en te, guiada pelo público é problemático compreender as conotações a problemática mais frequente é a da questão
ao qual o espetáculo se dirige: ele é unilín- culturais e de uma língua traduzida, Esta noção não é idêntica à de hibridez·, política do (neo)colonialismo. Se o texto ou
gue, bilíngue, fala urna língua local e urna é ainda mais delicado, para o espectador de mas não é fácil distingui-Ias. o espetáculo não envolve uma confrontação
pr oveniente da colon ização ou da hegerno- uma representação multicultural, captar as e umamistura de formas, não sepoderá falar
nia do 'inglês ou do espanhol? A distribuição nuances, as diferenças de verbo-corpo- de o terrno "sincretismo» vem dos estudos reli- stricto sensu de teatro sincrético.
atores que falam línguas diferentes em contato, semântica ele não giosos e depois dos filosóficos. Ele reveste
NOTAS
facilitará as tournées do espetáculo. Assim, leu apreende, embora sofra seus deslocamentos uma conotação bastante negativa, pois que Mary-Louise Pratt, Arts of the Contact Zone, Pro-
de cartes, espetáculo de Robert Lepage (2 0 13), e suas defasagens. descreve uma justaposição desordenada de [ession, 1991, p. 33-40.

322 323
Texto
Técnicas do Corpo

2 Cf. Urs Bitterli, A lte Welt-Neue Welt: Form en des euro- técnicas e das codificações sobre os corpos Mesmo um texto p ós-dramático- dispensa o nome de pós -dramática. l\ única catego-
piiisch-überseeischen Kulturkontak tes vom 15. bis z um raramente uma referência m.ínima a ações, ria nova, além do pós-dramático, seria, por-
dos perforrners.
18. [ahrhundert, München: Beck, 1986.
3 David Coplan, In Township Tonight! South Africas Nos espetáculos contemporâneos, amiúde actantes ou comportamentos humanos. E o tanto, o que recentemente se anunciou como
Citv Music and Th eater , London: Longm an, 1985, marcados pelo selo da globalização· e da texto das peças clássicas, que Brecht consi- a escritura neodramática-, sem que se possa
p. ~II , citado por Christopher Balrne, D ecoloniz ing internacionalização das produções, o traço derava' no entanto, corno simples material dizer com facilidade se esta última constitui
the Th eatrical and Post -Colonial
1999, p. 13- 14.
'-.J 1< lLJ. .... LLUVLJ.,
de técnicas corporais tende a esfumar-se. de utilizável para um retorno peça bem-feita do século XIX,
É uma das razões do sucesso da noção de novas peças em contextos diferentes, não ou se é uma saída real do movimento "pós':
encarnação· (embodiment): o corpo aparece era malaxado a ponto de ser irreconhecível, Alguns anos mais tarde, uma problemá-
em todos os seus determinismos identitá - mas e isso é talvez o essencial - seu sen- tica "síntese prematura ou fechamento pro-
rios, e não unicamente em suas técnicas do tido e sua interpretação política eram com- visório por causa do inventário de fim de
I Técnicas do Corpo corpo no processo de trabalho e de lazeres.
Daí tamb ém p or que o conhecim.ento dessas
pletamente transformados em função das
necessidades. Esta fórmula do desvio pela
século" devia limitar-se a distinguir, a partir
de uma dezena de autores fr anceses cont em -

II Fr.: techn iqu es du co rps; Ingl.: body technique; AI.:


Kôtpe rtec lnuk:
técnicas não é mais suficiente para a análise
dos espetáculos e das performances.
dramaturgia radical não é mais quase apli-
cada agora, pois o tratamento dos textos s'e
porâneos, alguns princípios muito gerais de
sua escritura. Essa síntese levantava assim
tornou, por exemplo para o p ós-dramático, "uma escritura poeticamente literal': "uma
NOTRS amiúde rnais pragmático, menos preocupado visão do Inundo sem ilusão': "a criação de
A de Marcel M.auss introdu- M arcel Mauss, Sociologie et Anthropologie, Paris: PUF,
com a pertinência e mais UITIa discursiva , "uma
1950 , p.
ziu 1936 a técnica do da formal, Reciclando os entrada de uma nova
2 Claude I r rauss. Introduction
P\i'I- ..... Ioeuvre
"as maneiras pelas os homens, Mauss, M. Mauss, op. cit., p. XIII. os estilos, os materiais as mídias; o relação da cena com o texto"; Confirmava-
dade por sociedade, de UID a forma tradicio- transforma a natureza e a composiç ão dos -se assim, além de urna imposs ível tipologia
nal, Sab eITI servir-se de seu s corp os':', Mauss textos, os quais tendem então a reduzir-se ou de uma síntese tem ática, a import ância
de screveu essas técnicas. C01TIOno ta Claude a UHl cenário sonoro o u a UJ11a paisagem· de uma perspectiva pragmática, "performa-
L évi-Strauss ern sua introdu ção à ob ra d e textual. tiva', sobre a escritura, a partir daquilo que
Mauss, re cen seando essas técnicas do corpo ~ Texto a prática cênica pode concretamente real i-
e "levantando o inventário de todas as possi-
bilidades do corpo humano e dos métodos de
aprendizagem e de exerc ícios'", poder -se-ia
I
~~ Fr.: texte; Ingl.: text; Ai.: Text. 2. VIviA TIPOLOGIA D E T EXTOS?
zar com diversos textos ou out ros materiais.
Em 2007, Clyde Chabot propôs U1TI "pano-
rama das escrituras teatrais contempor âneas"
"contrapor os preconceitos de raça, visto que, Em vez de se perguntar o que é um Urna torna-se cada vez mais pro- em que ela distinguia "escritura textual e
em q~ texto dramático e quais os tipos de blemática à medida distanciamos escritura Ela todavia,
ver no U1TI de seu textos dramáticos existentes (pergunta para sempre de toda dos gên eros que a escritura e um
mostrar-se-ia, ao contrário, que é o homem tão vã quanto desesperada), mais valeria entramos na era elo pós.:.(dram ático, épico, oximoro um tanto d esorí entadores) conti-
que~ em toda parte, soube fazer de seu corpo observar aquilo que se faz com os textos, moderno). Toda tipologia não poderia ser nuava a estender seu imp ério sobre a cria-
um produ to de suas técnicas e de suas repre- como a encenação ou a performance os senão parcial ou provisória. ção teatral (ela não falav a de performances,
sentaçõe s" (XIV) . tratam na prática teatral ou performativa·. Até os anos 1980, podia-se ainda distin- notadamente culturais, de tod as as espécies,
O al argamento do teatro a todas l1S esp é- guir três grandes tipos de texto s dramáticos: corno teri a feito um espe cialista dos p erfor-
cie s de cu ltural perform ances- no último 1. Os textos à antiga, isto é, as peças- bem-fei- mance studies-i. J>Jo int erior das "obras literá-
terço d o séc ulo x x abriu os olh os dos cria- tas; 2 . O teatro épico; 3. Os textos em estilha- rias': Clyde Chabot distinguia : 1. A escritura
dores e dos teóricos para as técnica s do 1. A DRAIvlATURGIA OU PÓS -
ços, dispersos, fragrnentários . Desde os anos corno enigma, a "aventura da língua" (p. 6); 2.
corpo específicas em cada área cultural e D RA M AT U R G IA ?
1990, o teatro épico se tornou As ficções Cp. 17)) nas quais "se pode
para o das tradições tea trais COl11 raro. Somente as peças se mantêm, seguir, no da peça, história, um
técnicas. dificuldade de se estabele- A análise dramatúrgica clássica continua
não unicamente no setor comercial. Quanto caminho, evolução», ou entra tam-
cer bern a diferen ça entre o corp o moldado sen d o o método utilizado com mais fre-
aos textos em estilhaços, fragmentários, eles bém em uma língua Singular que, embora
p elas técnicas cotidianas de UIn grupo e as quência para ao mesmo tempo construir e
se converteram, vinte anos mais tarde, na forjando U111 relato definível, se inscreveem
codificações estéticas de UlTI gênero coreo - com preen d er textos que funcionam ainda
outra norma, ao lado da norma das peças uma estrutura ao mesmo tempo fragmentá -
gráfico ou performativo. É preciso também muitas vezes com as categorias da ação,
"bem-postas" (bem preparadas para a cena) . ria e progressiva, amiúde composta de qua-
saber avaliar, e diferenciar, o impacto das das personagens, da fábula e dos diálogos.
Esta terceira categoria assume muitas vezes dros, cenas, estrofes': Cp. 17); 3. As peças que,

32~ 325
Textura Traço

"longe de se apoiarem sobre ficções, asserne- dos raros autores -encenadores que montam em um mesmo espaço e no interior de um espectadores e pelos analistas, através dos
lham-se a relatórios diretos do real" (p. 23). apenas seus próprios textos, mas que, sobre- quadro temporal. O trabalho dos artistas dados mensuráveis ou observáveis como o
Assim, a prática dramático-teatro- perfor- tudo, não separam o processo da escritura e tem consistido em "tricotar" esse tecido, o comprimento e a retórica das frases. A tex -
Inativa não cessa de abrir as peças a lanços o da encenação: "Eu não escrevo peças, eu dos espectadores· é o de destricotar fio a fio, tualidade não é somente o ritmo com o qual
do real. Ela se emancipa pouco a pouco da escrevo espetáculos, é assim. Eu não disse não para destruí-lo, mas para apropriar-se produzimos, proferimos e recebemos as pala-
ficção e d e uma fábula encarnada ou encer- a mim mesmo: vou escrever teatro. Eu não dele "com tato" e, portanto, COIU tatilidade e vras ou os sons no espaço. Nela se incluem
rada em UU1 texto. por conse- penso 'texto: O texto é o que vem depois, destreza, dele, tocando também espaços e as pausas que dispo-
guinte, a dificuldade de se encontrar os bons o que resta depois do teatro." fabric: seu tecido tanto quanto sua fabricação. mos entre esses sons e entre essas palavras.
instrumentos para a análise desses textos e Na produção teatral desse início de milê- De fato, a textura é uma expressão teatral: O ator (ou o cantor) dirige a construção da
dessas experiências. (Pavis, Le Théâtre C011- nio, o texto se marginalizou, se se considera é a ligação das cenas, das réplicas e, pode- frase, ele controla a abstração dos espaços' e
temporain: Analyse de textes, de Sarraute à que ele não é mais quase lido como obra lite- ríamos acrescentar, dos materiais convoca- das linhas de fuga, ele assinala a sintaxe, a rede
Vinaver). r ária autônom a, porém ao mesmo tempo ele dos no espaço- tempo de uma representação/ de imagens ede tem as, ele domina o esp aça-
se tornou mais amplo e mais complexo, se performance. mente- da linguagem (Derrida), vê e faz ver
o examinarmos como ele se magnífica sob a linguagem (Barthes), ele dobra e desdo-
3. o TEXTO E SUA ENUNCIAÇÃO CÊNICA o domínio do jogo cênico e sob o olhar do bra, vinca e desvinca os parágrafos, as frases,
espectador. 2. O TOQUE) A VISTA, A AUDIÇÃO as palavras (Deleuze). "Perceber a textura é
A cênica, e111 outras palavras, a sempre, irnediatamente e ser imerso
encenação, dá sua sua atmosfera NOTAS Percebemos a textura mesmo tempo ern Ulll de quanto
Patr ice 20 0 0 , p . 1l-23.
e, finalmente, seu sentido ao texto enunciado vista e toque: podemos ver urna coisa, narração, testar e compreender de novo
2 Ibid em.
(ao objeto estético fabricado pelos artistas). mas será que a conhecemos realmente antes corno propriedades físicas agelT1 e são leva -
Th éãtre/Public, 11. 18 4 , jan . 2007, p. 4 . (Th éâtre
Assim, a cena não é a ilustração, a encarna- cont emporain: écriture tex tuelle, écriture scénique.) de tê-la tocado COln nossas m ãos ou COITI das a agir na duração:'}
çãodo texto ,que ela se contentaria em efe- -1 Cf. Ar iane Mnou chkine, em Iosette F éral, Traj ectoi- nossas faces? A vista e o toque nos dese-
tuar. A enunciação cênica (e, portanto, o res du Solei! auto ur d'Arian e Mn ouchkine, Paris: Éd i- nham sua estrutura "absorvível": verifica- NDTRS
tions Th éâtrales, 199 8. Eve Kosofsk y Sedgwick, To uching Feeling: Affe ct,
corpo do ator ou do espectador) vem pri- 5 Pierr e Voltz, Th éátr e et éd uc atio n : L'En ieu fo rm a- n10S uma pela outra; nós não cremos na Ped agogy, Perform a tivi ty, Durh am : Duke Univer -
meiro, ela confere ao texto seu sabor e seu teu r, Th éãtre, education et société, A rles: JActes Sud, forma e na materialidade· do espetáculo ou sity Press, p. 13.
sentido. O texto é "corno um humor", «a 1991 , p. l18 .
do texto senão depois de ter verificado sua
6 Ioél Pommerat; [o élle Gayot, loêl Pomm erat, troubl es,
secreção do corpo'", Arles: Actes Sud , 2009 , p. 19. estrutura tátil e disposição espaço-temporaL
Lamentar-se-á, talvez, ver o texto redu- Os sons de uma música, de um ruído ou de
zido a coisa de un1 texto nos ajudarão a
secundário. Cumpre seu valor lite- cer este objeto tátil e visual. O aspecto Traço
rário intrínseco e sua força de expressão no mentado, granuloso ou compacto do objeto,
palco. É isso que Pierre Volt z, ao avaliar a
I Textura o ruído que ele faz sob os dedos, o suporte Fr.: troce; Ingl.: tro ce; AI.:5pu r.
função do trabalho teatral, sublinhava ela-
ramente a propósito do texto no teatro: "não
basta mostrar que a gente compreendeu su a
I Fr.: texture; Ingl.: textute. Ai.: Textur.
que oferece à escuta da melodia textual, nós
os perceb erem os e os deixaremos agir sobre
nó s, contribuindo assim para a experiência
No sentido de Derrida, o traço da escri-
tura o lugar onde a presença de um ele -
é

significação e sua força; é preciso inventar- 1. A TEXTURA C O M O DISPOSI T IVO" estética e para a formação do sentido. mente é marcada por uma série de ausências.
-lhe uma consistência material que o livro Para subsistir, o signo tem necessidade de
não possui, "ap oiada na física do corpo e da Na origem, a textura era a "disp osi ção de fios um traço, de uma impressão. O traço traz
voz, pois o texto é, sem dúvida, literariamente de uma coisa tecida" (C;rand Robert). Poder- 3. TEXTURA E TEXTUALIDADE TEATRAIS a marca do sistema de diferenças da língua,
uma 'forma estética: mas teatralmente é ape- -se-ia retomar diretarnente elementos do segundo Saussure. Ao analisar uma repre-
nas um material">, tecido e fazê-los corresponder de forma bas- No teatro, somos convidados a desfrutar da sentação teatral, poder-se-á, por analogia,
Poucos encenadores tiram as consequên- tante exata aos elementos de um texto ou de qualidade tátil-, cinest ésica-, háptica-, visual, observar como cada elemento, cada signo,
cias dessa revirada de perspectiva, ao menos uma performance: as componentes do texto, rítmica de um texto e de sua textura. A tex - cada matéria visível é no fundo apenas um
na França, pois na Grã-Bretanha o devised COIno do espetáculo, constituem, com efeito, tualidade é a maneira como a matéria verbal, traço. Este só assume seu sentido em um sis-
theater tornou-se o modo de trabalho dos engastes ou tecidos em um dispositivo, mas sonora, musical e rítmica é utilizada pelos terna. Esse sistema aparece pouco a pouco,
grupos experirnentais. Joél Pommerat é um eles continuam ligados de modo permanente autores e pelos atores, depois levantada pelos mas nunca totalmente.

326 327
Tradição Trajetória

Walter Benjamin utiliza o termo traço os artistas os observadores constituem a No entanto, na prática, tudo ocorre de outro 3. ESCOLHER SUA TRADIÇÃO
(Spur) em contraste com o de aura-o O traço finalidade da arte, mas podemos e devemos modo, pois mesmo em suas recusas, suas cita-
é aquilo que resta da passagem ou da pre- segui -los pelos traços? ções irônicas, as piscadas de olhos dirigidas Talvez não escapemos de certa tradição. Mais
sença de uma coisa, por mais afastada que a seus especialistas, o teatro situa -se necessa- do que negá -la ou suportá -la, determinados
esta coisa esteja no presente. O traço aparece NOTAS
riarnente em uma história, ele mobiliza uma encenadores decidem escolhê-la. Segundo
Das Passagen - W erk, Fr an kfu rt: Suh rkarnp, 1982.
corno próximo, enquanto a aura faz aparecer fran.: Pari s, du xtx e siêcl e: Le Li vr e memória, ele cria sua própria tradição, que Eugenio Barba, "n ão são as tradições que
urna distância. COIn o traço, tornamos posse Paris: 1989). nunca está completamente divorciada das tra - nos escolhem; somos nós que escolhemos
da coisa, ao passo que COIn a aura, é ela que 2 Roland Barthes, Sur un albun de photographies de
dições históricas ou culturais. as tradições [... ]. As tradições salvaguardam
Lucien Clergue [1980], Oeuvres completes, t. 3, Paris:
torna posse de n ós', e uma forma e não o sentido que a
Seuil,1995,
Confrontado C0111 a cena, o especta- Idem, L'Em pire des signes [1970], Oeuvr es complé- anima. Esse sentido, cada qual deve defini-
dor- parece um caçador, espécie de serni ó- tes, t. 2 , p. 800 .
2. AQUILO QUE TENTA SUBSTITUí-LA -lo e reinventá-lo por si. E é através dessa
logo arcaico, eIn busca de traços na areia: 4 Cf. Mike Pearson; 1VlichaelShanks, Theat er/ Ar cheo-
logíe, London: Routledge, 20 01. reinvenção que a identidade
((C) traço é UlTI signo intermediário, ou inac- cultural e profissional [... ]. Somos nós que
Ao que se opõe, aberta ou implicitamente, Q
co mp li (incompleto) ou suraccompli (super- teatro que pretende ignorar a tradição? Antes decidimos, profissionalmente, a qual histó-
completo), um índice transitório de não se de tudo às regras e às limitações dramatúrgi- ria pertencemos, queIn são nossos ancestrais
sabe o quê. O fotógrafo é aqui semelhante a cas ou estilísticas do teatro clássico. Assim, cujos valores reconhecemos corno nossos".
UITI ca çador ou a UH1 arqueólogo que rastreia Tradição por exemplo, a escritura dramática contem- A tradição continua a interrogar o pre-
qualquer coisa porânea na Françatoma distância do drama, sente. A produção, bem corno a análise das
Toda encenação porta o traço de nume- Fr.: tradition; Ingl.: uad ition , pJ: Trodition.
do dramático e do diálogo, mas também do formas contemporâneas ganham ao conhe-
rosas in tervenções, volun tárias ou involun- ép ico, em suma, de tudo o que já foi expe - cer a linhagem na qual as obras se inscrevem,
tárias, de e técnicos implicados em Se a tradição se define corno um saber,
ri.mentado em certo momento, em todas as voluntária ou involuntariarnente.
su a cons tru\~ ão . · Esse traço é compar ável urna manei ra de pensar, uma técnica! um
formas e experiências antes do pós-drama-
ao do ancinh o no jardim Zen: "N en hu m a gênero ou um estilo, herdados do passado
tico-, Quanto à contemporânea, NorR
flor, nenhum .passo londe est á o homem? I e transmitidos de urna geração a outra, Eug enio Barba, Trz éâtre: Solitude, m étier, revo lte,
ela tenta distinguir-se a todo custo da tradi- Montpellier: I'E ntreternps, 1999, p. 282-1.83·
No tr ansp orte derochas, / n o traço do anci- é evidente por si que o teatro, clássico
ção, menos a dos grandes ancestrais (de Cou -
nho, /no tr abalho da escritura. " Este traço do ou moderno, depende no mais alto grau
peau a do que a dos encenadores da
homem na escritura nada tem de um sistema detradições seculares. Mas o que dizer
geração precedente (de Chéreau a Françon,
fechado, de um m etatexto legível de entrada. da performance e do teatro do "extremo
de Stein a Zadek). O mais difícil parece ser a
É uma trabalho de escritura, da contemporâneo"? ReCUSalTI eies toda
herança?
tentativa de se distinguir de uma vanguarda) Trajetória
composiç ão artesanal e ja rdineira que pode ela própria habituada à transgressão sistema-
a todo momento se apagar e se reescrever na tica, ou de um método radical de encenação Fr.: trajectoire; Ingl.: trajectory; ,1\1.: Laufbohn.
areia. Os traços são marcas de enunciaç ão, 1. RECUSA DA .e , ~" .<~Ã"~Ã'-,.."'.l..'-".
com o se conheceu por volta de 1968. A esse
mas tamb ém índices para os arq ueólogost respeito, a nova tradição pós-moderna- ou
que tratam o espe tá culo corno U111a arquite- Desde as vanguardas históricas do primeiro pós-dramática, que não receia mixar técni- A trajetória é o desenho dos deslocamentos do
tura ou uma cidade submersa. terço do século até as performances cas e estilos variados e contraditórios, parece ator e, de um modo mais geral, o traço" visí-
Os traços são índices que o artista e mais -dramáticas- do início do século XXI, tudo ser a mais difícil de ultrapassar, tanto ela se velou imaginável deixado por um ou vário s
tarde o espectador se esforçam por levantar, parece ter sido dito e feito para rejeitar a tornou, ela mesma, uma tradição antitradi- elementos da representação, traço perceptí-
sabendo muito bem , ao mesmo tempo, que menor herança de urna tradição qualquer. cionaI que se acomoda a todos os arranjos. vel pelo espectador-. Todo elemento cênico
seu levantamento se rá selnpre inc ompleto, Estamos ainda mais afastados da tradição 110 As experiên cias as mais provocadoras, como tem sua traj etória, inclusive a s palavras do
subj etivo e m od ific ável, () analista recolhe sentido clássico de UI11 jogo de cena inven- o Acionismo Víenense ou as performances ator, como bem notou Brecht: ((O comediante
signos que ele integra em um esquenla hipo- tado por um ator, observado pelo produtor radicais de uma Marina Abramovic ou de deve igualmente saber que a impress ão pro -
tético em cons tante evolução. ou pelo editor e retornado pelas novas ence- um Chris Burden, são, por sua vez, atual- duzida por seu jogo de atuação se manifesta
O traço é, enfim, aquele rastro do evento nações como é o caso de certos achados do mente, referências quase clássicas, a ponto em um lugar totalmente outro e em outro
estético na realidade psíquica e social de ator da Comédie Française. A vanguarda des- momento diferente daquele em que ele repre -
de parecer às gerações atuais como o sem-
cada espectador, a marca que o espetáculo confia e rejeita o peso das tradições, ao menos senta. Quando as palavras que ele pronuncia
blante tradicional da arte corporal dos anos
deixa em nós. Esses efeitos exercidos sobre em seus manifestos e em suas proclamações. franqueiam seus lábios, elas percorrem uma
sessenta ou setenta do século xx.
328 329
Transgressão
Trajetória

,em
'-.Lu.,'-''-.VJ. .Lu.......

os deslocamentos
tra.jetios inconscientes fornecem . . . . . . . . . . ,~. . . . . . . ~'. . .
.J..J.

.1.V.L,.1.J.~U.lcu., do esnetaculo. Os espetacutos


'-'.l'l..l.'-'.L

nrovenientes da arte da t-f1"",~,""""r~"'"


",",L:>,

dem muitas vezes a T ........." .....4-A. " o teatro connece


a ideia de um gUlanaeIlto tos do que outrora: lnto......"'....
<::>,... ".,'1"

esnectadores, Eles enceraram os espectadores outro sexo não coloca mais problemas,

330
Transgressão Transmissão

porém representar outra identidade racial ou Uma obra de Heiner Goebbels como Erari- belos dias ainda à sua frente, principalmente coador, filtrando um delgado fio d'água, mas
étnica será COIU frequência mal interpretado tjaritjaka confronta, por exemplo, concerto se não a limitam à promoção da violência ou assegurando a fertilidade do território irri-
como uma transgressão racista inaceitável. de música de câmera, vídeo live e gravado) do mau gosto. gado?
Representar em lugares não teatrais tornou- jogo cênico e leitura de text~s literários.
-sebanal, mas deslocar o lugar da ação para A separação dos savoir-faire. das habilida- NOTA
Freud, Le Malaise dans la culture [1929],
outro terreno como a realidade social ou a des) das expectativas do público, dos comen- 0UJ.l\.1l1 -U'al1Jl.l::l l ."\.l!-,Ulau, Transgression, em
2. QUEM TRANSMITE O QUE, E QUEM?
arena do político parecerá ousado. Assim, as tários feitos com propósito de uma pequena Alain Mijolla ( éd.), tnternational de
ações militantes de U111 Schlingensief ou as provocação. Tudo corno a mistura de esté- la psychanalyse, Paris: Calmann-L évy, 2002, p. 1765. Em numerosas tradições teatrais e culturais
intervenções- de rua preocupadas em alertar ticas destinadas a públicos muito diferentes. do Oriente) o mestre transmite seu savoir-
o público sobre os perigos políticos ou ecoló- Os grupos de espectadores se consideram -faire artístico e profissional aos membros de

I
gicos embaraçarão as autoridades políticas, amiúde munidos de valores sagrados que sua linhagem. Se há uma transmissão, nem
sindicais, associativas. nudez total ern cena não se trata de nem, muito menos, seInpre é no sentido místico de um segredo,
tornou-se quase UOl must de toda vanguarda de ridicularizar. Talvez haja mais corageln e porém no de uma técnica corporal. Mesmo
Transmissão
que se respeita, mas a nudez de crianças ou transgressão ao propor aos aficionados da des- Zeami, o inventor eo protetor do Nô japonês
de velhos não será admitida censura, construção- ou do pós-dramático uma histó- ttansmissior , Ingl.. tronsmission; AI.. Übertraqunc. que nos chegou de geração em geração desde
nem mesmo pela autocensura. ria bem amarrada COIn personagens atuantes, o século XIV; nada faz, segundo seu tradutor
A transgressão reflete evidentemente os do que épater le bourgeois (embasbacar o bur- i. POR QUE TRANSlVIlTIR? e exegeta francês, René Siffert, senão trans-
códigos sociais do momento, ela varia de guês) da Ópera de Paris com unla encenação mitir os truques do ofício. N enhurn segredo
forma considerável de uma área cultural ou iconoclasta e "atualizada" de Verdi ou Mozart! Hoje em dia se fala com mais frequência de família) pois) como assegura o próprio
religiosa a outra. Mesmo o teatro de rua res - A mescla de culturas, sem complexo, sem de transmissão do que de herança) a qual Zearni, «não é pelos laços de parentesco, 111as
peita certos.h ábitos e convenções de jogo de medo de ser acusado de imperialismo cultu- refere a um património inalienável ou a tra- pela sucessão nas tradições que se constitui
atuação. Ele está senlpre sob alta vigilância. ral ocidental, a ironia mordaz (de um Górnez- dições imernoriais. Cabe distinguir também uma linhagem?' ,
Afora quaisquer ações extremas, bastante ..Pena, por exemplo) sobre os defeitos étnicos a transmiss ão do ensinamento do teatro) No século xx, COIU os grandes reformado-
raras e poucp recomendáveis (por exemplo, de uns e de outros) a alegre mistura das expec - que depende da escola, da formação e da res do teatro (como Staníslávski, Meierhold,
aquela do performer chinês Zhu Yu que ern tativas e das pretensões culturais, tudo isso pedagogia. Copeau, Iouvet ou Vilar) a transmissão deve)
2000 comeu, parece) fetos assados de crian- aparece como uma conquista de um intercul- Não se trata mais de transmissão de eIU lugar, passar por uma reforma
ças) pode-se observar transgressões muito turalismo crítico decidido a passar além das lnensagens no sentido da cibernética ou da radical da empresa teatral. Mas com aquilo
mais doces, quase imperceptíveis, tanto mais críticas e reparos dos puristas e dos censores. primeira serniologia, mas da passagerrl de que Hannah Arendt chamou de crise da
efetivas. Os tabus não são mais o que eram e Tudo o que pode perturbar ordem do técnicas) de conhecimentos e de experiên- autoridade, tradição e transmissão estão
os escândalos não dão medo senão po r causa "politicamente correto» -=. o temor de cho- cias a partir dos artistas para os espectadores· ameaçadas: ((A crise da autoridade na edu-
dos processos que arriscam- acar retar. car as sensibilidades culturais ou religiosas, ou de urna geração a outra. Essa transmis- cação está estreitamente ligada à crise da tra-
de passar por homofóbico, racista, machista, são não se processa sem determinado grau dição' quer dizer, à crise de nossa atitude em
islarnófobo etc. - torna-se o objeto dessa sub- de ambival ência. De um lado) artistas corno relação a tudo o que toca ao passado. "
3. ONDE SE ANINHA A SUBVERSÃO? versão de artistas, de cômicos ou de perfor- consumidores nutrem certo ceticismo para No século XXI, as autoridades aparente-
mers, lVIas com sérios limites quer a seus COlTI a possibilidade de transferir ou de rece- mente recuaram muito) salvo se se conside-
Por definição, esta subversão é oculta; ela não riscos-, quer a seus perigos! ·b er uma experiência tão difusa e imaterial; rar a autoridade corno autor-idade, a saber)
afronta diretamente a sociedade em seus fun- Experiências mais provocadoras) como as de outro) eles ainda t êm fé nos benefícios de como a série em cadeia dos diversos auto-
damentos e em seus interditos, ela avança na de Romeo Castellucci, dePippo Delbono ou turra educação artística) de uma partilha do res que intervêm em cada etapa do processo
contracorrente das provocações visíveis, mas do Théâtre du Cristal, consistem em recor- conhecimento sensível, qualquer que seja a criador e em todos os níveis da encenação.
às vezes infantis, dos perforrners ou dos orga - rer a pessoas deficientes, doentes ou em difi- incerteza sobre a maneira de transmiti-los. O que doravante transmitido, ainda
nizadores de happenings« dos anos sessenta e culdade social, para misturá-las coru atores Trata-se de uma passagem, de uma transfe- que de maneira insuficiente segundo mui-
oito do século xx. A transgressão soft versa profissionais, desafiando assim o interdito rência de poderes artísticos? De um "passe", tos jovens criadores) seria mais a arte da mise
sobre interditos que não teriam tais sobre a manipulação de pessoas em posição no sentido de Lacan: uma transmissão quase en scéne, o conhecimento das leis da drama-
nos anos 1960 ou 1970. de fraqueza. impossível? De uma passagem como essas turgia) do porquê do teatro e da preocupa-
Além da mistura de gêneros, certos artis - A transgressão, como a nostalgia, não é galerias cobertas) tão caras a Benjamin? Ou ção político-estética dos antigos (de Brecht
tas desafiam as fronteiras- entre as disciplinas. mais o que era) mas ela tem mesmo assim pura e simplesmente de um passador, um ou Artaud a Vitez ou Chéreau). Mas) apesar

332 333
Transmissão

dos grandes mestres da ao menos que todas as outras artes, o teatro e a arte da
aqueles que se costuma apresentar como tais, performance- remetem o espectador a uma
por exemplo, na escola russa, essa arte não experiência individual do tempo e do evento,
é fácil de se transmitir, o que não é necessa- o que torna a conservação, a teorização e a
riamente uma coisa ruim. transmissão quase inúteis. Assim, se passou
sem transição do arcaico ao pós-moderno·
ou ao pós-dramático-.
3. o INTRANSMIss íVEL "Como ensinar aquilo que não se

v
aprende?': pergunta-se com razão Daniel
Na medida em que um encenador não deixa Mesguich, antigo diretor do Conservatoire
mais hoje em dia uma obra completa, um National Supérieur d'Art Drarnatique em
repertório homogêneo marcado por uma Paris. O conservatório e com ele toda ten-
assinatura ou um estilo reconhecível, mas tativa de fundamentar uma transmissão do
em que ele trabalha cada vez mais caso a saber teatral em uma escola ou em uma téc-
caso e em insegurança permanente, a ence- nica repetível chocam-se com uma impossi-
nação como sistema e totalidade não pode bilidade de transmitir um corpo de doutrinas
mais quase ser transmitida em seu conjunto. ou de experiências: "O Conservatório é bem
Existe, aliás, uma em face da mais do que uma escola, urna fábrica de
Vanguarda de de 1953), que a escritura moderna
ideia de Inensagem a passar e a[ortiori a pre - auroras, uma máquina de fazer nascer os toma o lugar da escritura clássica. Os dife-
servar para as futuras ger açõ es. O teatro pri- sóis" (placa do Conservatoire National Supé-
Fr.: ovant-qarde, Ing l.: avont-qarae; rentes movimentos artísticos do século XIX
vilegia mais e mais a exp eri ência ind ividual rieur d'Art Dramatique). AI.: Avantgorde. utilizam esse termo muito combativo de van-
de cada espectador, ele não conta mais C01n
guarda: o romantismo (1820-1830), o realismo
Uln que J.\-L/.l'-'' ' .... LLLL1L.IL.. L .. U . L U J . '..U . v .... NOTRS
A vanguarda teatral deveria ser estudada
Zeami, La Tradition secrête du Nõ, Paris: Gallimard, o (1860-1870),
política de o que torna cad uca toda em relação com a mise en scêne e sua
1960, p. 54 e p. 112. o simbolis.mo e o naturalismo (1880 -1890).
vontade de .transmitir UIU m étodo ou uma Hannah Are nd t, La Cr ise de la cultu re, Pari s: Gal - emergência progressiva no curso da Depois, corn a sistematização 'da mise en
conclusão. Muitos artistas re jeitam a pró - limard, 1972 , p. 247. (Trad. bras. do a rti go em : H.
seg und a metade do século XIX• .A. noção
A rendt, Entre o Passad o e o Futuro, 7. ed., São Paulo : sc êne, por volta do fim dos anos 1880 e até o
pria idéia de transmissão e ele com unicação de vanguarda concerne à arte em geral,
Perspectiva, 2014, p. 244.) fascismo dos anos 1930, o termo é cada vez
da arte COIIlO "noções exóticas": "o vocábulo Boris Charmatz, Une Adresse in cert ain e, Mouve me nt. e não somente à literatura dramática ou mais aplicado às vanguardas históricas: cons -
'transmiss ão' talvez" estima 2009. //www.mollvement.
à encenação. Nem sempre é claro se esta
net>. Acesso em: 3 jul. 2017. tamb ém: idem, [e trutivisrno, agit-prop,.fonualismo, dadaísmo,
matz - "o sésamo demasiado fácil de todo noção é ernpregada de um ponto de vista
Sui s une école: cxpé rimen tatio n, art, pédagogie,Paris: futurismo, surrealismo, expressionismo. De
debate sobre a pedagogia">, Mais ainda do Les Prairies Ordi n aires, 2009, p. 13 0. histórico ou então como urna categoria militar, o termo torna-se militante, associado
estética . a um projeto político subversivo e até revo-
lucionário.
1. ORIGENS DO TERMO No que diz ao teatro, a vanguarda
E LIIYlITES DA NOÇÃO tem ligação com o movimento de reforma
teatral do fim do século XIX até os anos 1920
Esse termo militar designa um grupo que (Stanislávski, Meierhold, A.ntoine, Gordon
precede o grosso do exército, pronto a sacri- Craig, Cop eau notadamente, entre outros).
ficar-se por ele e que lhe mostra o caminho Esse movimento promoveu o encenador à
a na batalha. Ele empregado desde responsável estético e político
cerca de 1820 no sentido de vanguarda artís- da mise en sc éne, redefinindo suas tarefas.
tica. Em 1850, Baudelaire, em Mon coeur mis Essa nova maneira de ler e montar o tea-
à nu (Meu Coração Posto a Nu), qualifica "a tro permanece, todavia, confidencial, como
imprensa militante': "a literatura militante" de sucede com uma vanguarda confinada, qual
"literatos de vanguarda" É por volta de 1850, um autoteatro·, a uma elite de especialistas e
segundo Roland Barthes (em Le Degré zéro amadores esclarecidos.
33~
Vanguarda
Vanguarda

abordagem da vanguarda fundada na repre- estamos, segundo Boltanski, em uma "fase


Convén1 distinguir as vanguardas histó- muda forçosamente conforme a situação his-
sentação'". Os artistas e os teóricos colocaram de quase desaparec~mentodo espaço público,
ricas (ou modernistas) até os anos 1930 e as tórica." Daí a dificuldade de se prever as pró-
justamente em questão o caráter literário do não porque formas autoritárias do secreto, do
vanguardas após 1945, ligadas ao pós-moder- ximas etapas da vanguarda. A única coisa que
teatro, tomando como eixos a mise en scêne selado, prevaleceriam, mas porque a fronteira
nismo (nos Estados Unidos, com a pintura, a se pode observar é uma tendência do teatro
e a perforrnance-' para a sua perspectiva. entre o interior das instituições e seu exterior
arquitetura, a dança, a arte da performance-) à autonomia (em relação à literatura), uma
"Nosso objetivo, os dois autores, tende a apagar-se, de modo que a operação
ou vinculadas ao movimento do Absurdo, teatrauzacao ou da represen-
é o de passar de uma eurocên- de perde, ela sua contun-
"toda uma renascença das atitudes da van- tação' uma do ator, UlTI
trica a uma concepção transnacional de van- dência ou torna-se imoossível'?
guarda, muito consciente de sua imagem, gosto pela montagem de sequências e sua
guarda, uma concepção que reconheça que Essa atenuação da fronteira" entre público
nos anos 1960 e 1970, e que de novo tiraram presentação simultânea, o todo culminando
os lugares de inovação artística associados à e privado explica que a forma de um grupo
proveito da tradição". Após o fim dos anos no Regietheater3 (teatro do encenador) dos
vanguarda tendem a uma hibridez cultural homogêneo e combativo perde seus contor-
197 0 (por exemplo, depois da experiência anos 1960 e 1970. e a uma negociaçã 0:'8 Ora, não é a mudança nos. ,.A. vanguarda não tem mais necessidade
na França das revistas TeZ Quel ou Change), Corno se define a vanguarda? Ela é, pre-
de uma concepção eurocêntrica para uma de provocar, mostrar o caminho, construir
o termo e a noção de vanguarda tendem a cisa Roland Barthes em um artigo de 19 61,
concepção transnacional que vai relançar' e uma identidade de grupo. A ideia de espetá-
desaparecer. No caso do teatro francês, não "uma noção essencialmente relativa, ambí-
historicizar os estudos da vanguarda trans- culos participativos ou imersivos é antes de
se fala mais quase de vanguarda após o Nou- gua: toda obra de ruptura pôde ser em seu
nacional (revista, aliás, pelo filtro ameri- propor a cada qual uma experiência pessoal:
veau Théãtre dos anos 1950 -1960. Entramos tempo uma obra de vanguarda, mesmo se
cano dos performance A hibridez- o hedonismo e o individualismo substituern
numa que funciona menos por ela nos parece hoje fora de rnoda'". A van-
ea estiveram sempre, aliás, em sem barulho, a combatividade
manifestos e movimentos estruturados-Com das vanguardas históricas e de guerreira arte em revolta.
o recuo histórico, circunscrevem -se melhor modernidade do momento não é urna garan-
teorizações. Essa querela descabida se explica A classe dos intelectuais e dos amadores
as questões ligadas à vanguarda. tia para o futuro.
por uma percepção muito marcada por vie - afortunados, que compunha as vanguar-
ses dos estudos europeus de vanguarda. Essa das e as sustentava no fim do século XIX na
pretendida nova teorização dos dois autores Europa, não existe mais sob essa forma. Ela
3. DIFICULDADES
2. UMA DE FINIÇAo? não é nova: -<ia teorização cultural da van- se tornou uma classe dê trabalhadores pre-
DE UMA TEORIA DA VANGUARDA
guarda no sentido amplo" (p. 2) já ocorrera cários, que não dispõe mais de tempo para
Como se vê a vanguarda? Antes de tudo, errl na Europa, e isso desde o aparecimento das se consagrar à arte; ou então ela se juntou
ruptura com a sociedade e o academicismo, Dois pontos de vista coincidem nessa busca
diferentes vanguardas e de seus estudos pelos à classe superior que não se interessa mais
em transgressão com as normas e os códigos de uma ou mais teorias de diferentes vanguar-
pesquisadores europeus. pelas artes plásticas, a não ser sob forma de
éticos, estéticos e sociais. Ela se em das. De um ponto de vista filosófico, dir-se-á,
investimento, ou pelos sob
conflito permanente forma e no conteudo com Derrida, que não é decifrá-
forma da ópera ou dos concertos
COIn ' as obras existentes e com a sociedade vele, portanto, definível, não ser quando
4. DESAPARECUvIENTO DA VANGUARDA? prestigiosos, que esta mesma classe patro-
que as produz: Ela parte do princípio de que ela está a ponto de desaparecer: "O efeito da
ci na: e outras tantas manifestações que não
suas próprias ideias transtornadoras serão, vanguarda é, pois, se houver, o inapresentá-
Se a ideia e o termo vanguarda não desapa- t êm nada a ver corn o teatro pobre ou expe-
um dia, adotadas e aceitas, a ponto de virem vel." Assim como o contemporâneo· não é
receram totalmente do discurso crítico dos rirnental. Os artistas ficam, pois, diante da
a ser, por sua vez, a nova norma. Coloca de apreensível a não ser que esteja a ponto de
anos 2000, eles estão muito menos em u so. escolha entre o comércio artístico de luxo,
forma implícita que o combate estético é ao eclipsar-se, a vanguarda, portanto, julga-se,
Deve-se dizer então que a vanguarda desapa- lTIaS sem envergadura estética, e a proletari-
mesmo tempo um combate político, que os faz a teoria do já desaparecido. O outro ponto
receu por completoj Em parte somente: ela zação de sua profissão, qualquer que seja a
artistas de vanguarda estão necessariamente de vista, mais pragmático, consiste em his-
assume novas formas de organização. Corno qualidade artística de sua obra.
na primeira linha de um movimento polí- toricizar os diferentes momentos da expe-
explicar, por conseguinte, a desafeição Essa polarização da vanguarda -
tico, a através de urna rimentação, em dar à noção de vanguarda
~U."""'I.íCfllln na vida teatral? luxo ou lhe perder subs-
arte comercial. uma plasticidade relatividade his-
A e o teatro não mais necessidade tância se encontra
Como se renova l\., ,'r1'..,r'I-/~n
r'I-.... tórica, e cultural. Contrariarnente
de chocar o público, de épater le bourgeois reboque da nova moda, tornou-se UHl post
é permanente, Não se poderia reduzi-Ia a ao que afirmavam Harding e House, os estu-
(embasbacar o burguês): não só o público i t, um adesivo colado ao moderno, ao dra-
conteúdos ou a ternas. "Pois a vanguarda é dos sobre as inumeráveis vanguardas euro-
pode engolir tudo, mas a burguesia não tem mático' ao humano etc. Ela se baseia no
mais uma estrutura do que um objeto, uma peias examinaram o obj eto performativo (a
mais medo do escândalo, ela precisa dele pós-moderno- ou no pós-dramático- que a
disposição antes de ser uma posição: é uma representação cênica ou social das obras)
por questões de estratégia comercial. Nós acolhe corno um acessório a mais em um
forma de trabalho de criação, cujo conteúdo e os dois autores não inventaram, pois, "a

337
336
Verbo-Corpo Visual Theatre. Teatro Visual

magazine estético mundializado, sem fron- no corpo, no sentido de uma relação entre amiúde empregado por contraste, e até espectador·, levam em conta a maneira com
teiras. A relatividade dessas categorias do o som das palavras e sua inscrição no corpo em oposição, a intelectual ou cerebral. a qual ele olha, viu e reviu o teatro . Os visual
pós terá sido fatal à vanguarda. A obsessão do locutor, revela-se útil por examinar COlno Essa expressão bastante aberta remete à studies se interrogam a respeito dos modos
participativa e a exigência hedonista dos as palavras são levadas, coloridas, constituí- maneira com a qual o espectador· recebe a de ver, aqueles que o espectador já mobilizou
espectadores contemporâneos conduziram das pelos corpos. representação: com uma distância crítica e e aqueles que a encenação fez-lhe descobrir.
a para bem longe da máquina de Essa do verbo e do corpo não cerebral ou como "em plena face'; a deve, corn efeito, "se colocar
guerra que ela fora outrora. naturalmente, fixa. Ela da como dizem os ingleses, no do outro, ao cinestesica-
ciação, dos afetos· e do sentido que o locu- como um soco, como uma experiência mente o movimento, pôr prova os corpos
Peter Bürger. Theorie derAvantgorde.
tor faz passar em sua mensagem, voluntária extremamente física que "pega as em sua relatividade cultural, em sua identi-
ou involuntária. Para o ator, "encontrar sua entranhas" dade' em seu condicionamento sociocultural.
Fra nkfurt: Suhrkarnp, 1974 .
personagem", como diria um Stanislávski,
"Avant- Garde" in: Jacq ues Dernoug in
é sempre imaginar como "trans-portar" ou Essa designação, pouco científica e pouco NOTR
(éd). Oictionnoiredeslltetatures. Paris: Maaike Bleeker, Visuality in the Theater: lh e Locus
(trance-portar? [transe-portar?]) seu texto precisa, não implica necessariamente urna 1

Larousse, 19 8 5. ojLooking, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 20 0S ,


em uma enunciação vocal, física e cênica. ostentação física (nudez, gritos, excessos-, p.162.
Bert Cardu llo; Robert Knopf Theatre af histeria na expressão das emoções). A voz do
Para o tradutor, sobretudo de textos dra-
theAvant-Gorde (1890 "í 950) : A Critica! máticos destinados à cena, o verbo -corpo ator será sentida como visceral se nela sen-
Anthology. New Haven: Ya!e University pode revelar-se útil "para efetuar a tradu- te-se a materialidade, o "grão" (Barthes), o
200'1 encantatório. .A escritura será descrita
ção do dramático, ao se fazer
imagem visual e gestual desse corno se ternos intuição de que o
NOTRS Visual Th.e atre,
Dennis Kennedy, The Spectator and th e Spectacle:
da língua-fonte e da cultura-fonte para ten- autor não censurou seu primeiro impulso, ele
I
I.·..
TeatruVlsual
A udiences.in Modernity and Postmodcrnity, Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2009, p. 136.
Nathalie Heinich, Avant-Garde, Encyclopédte th é-
matique, Paris: Universalis/Le Figaro, 2004, p'. 50S.
tar apropriar-se dela a partir do verbo-corpo
da língua-alvo e cultura-alvo . . ."1
Traduzir teatro é sempre imaginar essa
que deixou falar suas pulsões e seu incons-
ciente, de que o resultado parece bruto, des-
controlado, não censurado. Se é problemático
I Fr.: théâtre visuel; AI.: visuelles Theater.

Cf. Hans ':'D1ies Lehmann, Postdramatisches T/-z ea- metáfora linguística (semântica), mas tam- fazer do visceral uma categoria estética, pres- Visual Theatre (não se encontra com fre-
ter, p. SO-9 3. bém gestual e cultural, de um texto e de uma sente-se, no entanto, que ele corresponde a quência o termo francês th éãtre visuel [teatro
Cf. RolandBarthes, Le Théâtre français d'avant-garde, cultura na outra. Resta, entretanto, estabele- toda uma vertente do teatro contemporâneo-, visual]) se opõe a teatro textual ou literário.
Le Prançaisdans le monde,jun. -jul.1961. Reimpresso
nas Oeuvres completes, t. 1, Paris: Seuil, 1993, p. 915· cer corno a representaçãoc ênica e a·tradução de Sarah Kane a Mark Ravenhill ou Xavier É o teatro em que a parte visual, a cenografia
Cf. [acques Derrida, Digraph, n. 7, 1976. podem transitar nesse intercârnbio verbo- Durringer. e a encenação predominam, a ponto de por
Not -corpo: tarefa eterna do do .L.L.L ...... .L\.' ... '" ..."" vezes o texto. conservando, e
e do tradutor... mesmo a parte e musical
2006, p. do espetáculo. Até o início dos anos 1990, o
7

8
9
Basta ler Lehmann (op, cit.) e outros, inclusive his -
toriadores, para se convencer disso.
J. Harding; J. Rouse (eds.), op. cit., p. 2.
Em Luc Boltanski et al., l'Assembt éc th éàtrale, p. 13·
NOTR
Patrice Pavis, Le Th éãtre au croisement des cultu res,
Paris: Corti, 1990, p. 151. A respeito do verbo-corp o,
p. 135-170 . (Trad. bras .: por Nanei Fernandes, O Tea-
tro no Cru zament o de Culturas, São Paulo: Perspec -
I Visual Studies
teatro visual domina a cena internacional,
ele não se dá mais pela missão de ilustrar
nem de explicitar um texto prévio, ambiciona
criar um. universo aut ônomo no qual poderá
tiva, 2015, p. 140. Acerca do verbo-corpo, p. 123-154.) I eventualmente introduzir-se urna colagem
Os visual studies (estudos do visual) não são textual ou musical.
um domínio novo, um aspecto da representa- O teatro visual se manifesta sob diver-
Verbo-Corpo ção que a semiologia tenha esquecido. É um sas formas, em função de sua concepçã.o do
Vísceral novo modo de ver. É o que constata Maaike visual e do visível:
Ingl.: mnanaae-rxvtv: AI.: VVo/tkalcoer. Bleeker, que, ao os trabalhos de Quando a encenação centrada na
Fr.: viscérat, Ingl.: viscera/; AI.: tiefsitzend. Mieke Bal e de outros pesquisadores, intro- visualidade, ela produz um "teatro de ima-
Poder-se-ia lançar a hipótese de uma rela- duziu os visual studies nos estudos teatrais: gens" (Bonnie 1Vlarranca et al., 1977), do
ção específica entre uma língua e a maneira Esse adjetivo aplicado com frequência "Estamos sempre implicados no que vemos, qual Robert Wilson é, desde os anos 1970,
COIn a qual ela é pronunciada vocalmente, ao jogo do ator, mas tarnbém a um mesmo ver parece ser 'somente' olhar''<Os o mestre incontestável. "Teatro de imagens"
portanto fisicamente, pelo locutor. O verbo tipo de dramaturgia, a uma estética! é visual studies descobrem a corporeidade do é cada vez menos empregado, como se esse

338 339
afetiva. Para o teatro, está aí o seu valor
estético. Não trata, portanto, da voz
enquanto portadora de sentido da
linguagem articulada, mas, sim, da voz
enquanto material musical físico
artistas podem utilizar para o canto,
dicção, expressividade
em suma, para tudo o que pode

z
Zapping

3. o ESPECTADOR-ZAPEADOR submetida a uma estética que leva em conta


tanto hábitos de recepção do público futuro
Esse borboletear, termo por certo mais sim- como escolhas artísticas pessoais. O zapping
pático que o de zapping (ou de pitonnage é uma antimontagem: na montagem, fílmica
[cravação]'), tornou-se um modo compul- por exemplo, a decisão da interpretação obe-
sivo de consumo de imagens, de ideias, de dece a escolhas dramatúrgicas e estéticas, por
raciocínios. Ele é ao mesmo tempo a causa e cuidado de contraste e de não conclusão, por
o efeito de um déficit de atenção provocado exemplo; no zapping, a interrupção se faz
pelo uso excessivo de mídias, de seu ritmo em função de manifestações de impaciência
e dos hábitos motrizes que eles induzem, para "virar a página" o mais depressa possí-
como no uso frenético c contínuo do SMS. vel. Corta-se, sem razão fundamentada, "por
O espectador de teatro tem a possibilidade [eeling", ao acaso. A dramaturgia é mais do
(que o telespectador não tem) de efetuar sua que retalhada, ela é pulverizada, como um
escolha na massa de signos, de conjuntos de videoclipe, lacerada como em um cut-up·.
sistemas significantes, de ações simultâneas A poesia na escritura automática surrealista,
ou, eventualmente, de estações de percur- mais raramente adramaturgia contemporâ-
sos. O zapping é então uma necessidade, o nea, recorreram a esta técnica recortando e
resultado de uma escolha de leitura, de uma rearranjando ·textos ao acaso. As noções de
preferência por uma maneira de ver ou de fábula, de relato, de personagem, de conti-
contar. Esta liberdade é, entretanto, entra- nuidade espaço -temporal são definitiva-
vada pelos zapping da produção. mente postas fora de jogo, em proveito de
uma colagem espontânea e sem lógica per-
ceptível. Podemos então falar de UID a esté-
4. UMA ESTÉTICA DO ZAPPING? tica do zapping? Mas o que resta para zapear?

A. fabricação do espetáculo pelo encenador NOTR


1 M.-I. Mondzain, Area, n .14, 2.007, p. 2.2..
e todos os seus colaboradores· é ela própria

31..12

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