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oedi

A filosofia do século xx pode ser dividida en-

e
tre antes e depois de Martin Heidegger
(1889-

O
-1976). Sua obra é uma das mais complexas e
OSWALDO GIACOIA JR.

dAO
fundas meditações sobre o destino do homem,
após terem sido jogados por terra tanto os

o
E
alicerces da religião e da metafísica quanto
os do próprio humanismo. Como Heidegger
pode, entretanto, nos ajudar a pensar a nossa
época? É sobre essa questão que o filósofo e
professor Oswaldo Giacoia Jr. se detém nes-
te livro - ao mesmo tempo uma introdução à
filosofia do pensador alemão e uma reflexão
sobre a atualidade de suas ideias. Em face da
expansão desmesurada das tecnociências e
da crise que atinge todos os domínios da vida
espiritual, faz-se urgente, segundo Giacoia,
um “Ele é, para nós, um
retorno a Heidegger:
companheiro de viagem indispensável no atra-
vessamento do século xxI”.

| Tl
| SBN 978-85-65339-11-7
=Srrécas

9'788565 33
O leitor tem em mãos uma ins-
tigante introdução à obra de
Martin Heidegger, um dos maio-
res filósofos do nosso tempo.
Oswaldo Giacoia Jr. expõe, de
maneira cuidadosa, cada um
dos conceitos de Heidegger,
sem medo de adentrar as mais
espinhosas esferas da sua medi-
tação: o sentido do Ser, a angús-
tia, O ser-para-a-morte, a crítica
da metafísica e sua superação, O
lugar crucial da linguagem etc.

Já seria uma proeza colocar um


livro tão curto à altura de um pen-
samento tão denso. Giacoia, no
entanto, não se furta ao mais difícil:
Heidegger urgente
enfrentar o aberrante envolvimen-
to de Heidegger com o nazismo.
Como trazer à luz a natureza e
o tamanho de tal equívoco? E o
que dele se pode aprender hoje?
Com essas perguntas sulfurosas,
chegamos às portas de nosso
tempo: a vontade desenfreada
de presença, a dominação pla-
netária da técnica, os limites do
humanismo para enfrentá-las.

Pois
é isso o que está em jogo em
Heidegger urgente: em que me-
dida Heidegger ajuda a pensar
a galopante captura tecnocien-
tífica da vida, a reconfiguração
antropotécnica atual e o con-
trole biopolítico? Ao convocar
Agamben, Lyotard, Sloterdijk e
Hans Jonas, este livro tenta mos-
trar como eles enfrentaram o fi-
lósofo da Floresta Negra.
Oswaldo Giacoia Jr.

Heidegger
urgente
Introdução a um novo pensar

TRÊS
ESTRELAS
Copyright O 2013 Três Estrelas — selo editorial da Empresa Folha da Manhã S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou
Sumário
transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por escrito
da Empresa Folha da Manhã S.A., detentora do selo editorial Três Estrelas.

EDITOR Alcino Leite Neto


EDITORA-ASSISTENTE Rita Palmeira
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO GRÁFICA Mariana Metidieri
PRODUÇÃO GRÁFICA Iris Polachini
CAPA E PROJETO GRÁFICO DO MIOLO Mayumi Okuyama
Introdução Por que é urgente pensar com Heidegger
IMAGEM DA CAPA bpk/Abisag Tillmann
PREPARAÇÃO Ana Maria Barbosa
REVISÃO Carmen T.sS. Costa 14 O pensador do fim da metafísica
O trajeto biográfico 15
O contexto filosófico 25
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (crP)
(Câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil)
40 O primeiro Heidegger
Giacoia Junior, Oswaldo
Heidegger urgente : introdução a um novo pensar| Oswaldo Giacoia Jr. — As intuições iniciais 41
São Paulo : Três Estrelas, 2013.
A linguagem e o caminho do novo pensar 45
1º reimpr. da 1º ed. de 2013.
Bibliografia Ser e tempo: conceitos e temas 50
ISBN 978-85-65339-11-7

1. Filósofos alemães 2. Heidegger, Martin, 1889-1976 1. Título. 84 A viravolta e a história da verdade do Ser
13-01477 CDD-193 De Ser e tempo a Tempo e Ser 85
Índice para catálogo sistemático: Abertura do ser-o-aí e abertura do Ser 88
1. Filosofia alemã 193
Pensar a história da verdade do Ser gr
Pensar a essência da técnica 96
Destinamento e perigo 98
Este livro segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990),
em vigor desde 1º de janeiro de 2009.
E 106 Como ler Heidegger

TRÊS 116 Conclusão Em busca de um pensamento por vir


| ESTRELAS

Al. Barão de Limeira, 401, 6º andar


CEP 01202-900, São Paulo, sp Bibliografia
Tel.: (11) 3224-2186/2187/2197
editorazestrelasWeditorazestrelas.com.br 143 Sobre o autor
Para Rachel e Fellipe Leal,

“Sollen nicht endlich uns diese áltesten Schmerzen


fruchtbarer werden? Ist es nicht Zeit, dass wir liebend
uns vom Geliebten befrein und es bebend bestehn:
wie der Pfeil die Sehne besteht, um gesammelt im Absprung
mehr zu sein als er selbst. Denn Bleiben ist nirgends.”

“Não devem, por fim, essas antiquíssimas dores


tornar-se mais fecundas para nós? Não é tempo de que, amando,
nos libertemos do ser amado e, trêmulos, suportemos isso
como a flecha suporta a corda tensionada para, recolhida no ímpeto,
ser mais do que ela mesma. Pois em nenhuma parte existe o permanecer.”

RAINER MARIA RILKE, “DUINESER ELEGIEN. DIE ERSTE ELEGIE”.


Introdução Por que é urgente pensar com Heidegger

Este livro se empenha em apresentar ao leitor as linhas de força


do pensamento de Martin Heidegger, a fim de ensejar uma com-
preensão satisfatória do núcleo e dos principais desdobramentos
e consequências de suas ideias.
Optamos por acompanhar uma interpretação, reconhecida
nos estudos acadêmicos, que divide esquematicamente o con-
junto da extensa e multifacetada produção teórica do filósofo
alemão em dois grandes períodos, denominados “primeiro” e
“segundo” Heidegger.
Os escritos inseridos na primeira fase fazem parte de um proje-
to caracterizado como fenomenologia ontológica da existência, ontologia
fundamental ou analítica da finitude. Trata-se de um programa para O
qual Heidegger mobiliza seu trabalho hermenêutico, que tem como
objeto a tradição da filosofia ocidental, com vistas a empreender
uma destruição da metafísica. Ser e tempo (1927) e os escritos contem-
porâneos a esse livro são característicos de tal programa filosófico.
O pensamento contemporâneo, por buscar seu caminho
em um campo que ainda lhe é desconhecido, tentando livrar-se
das sombras do Deus metafísico, enreda-se inescapavelmente
a
em aporias, paradoxos, contradições, que se anunciam como
crise da razão — uma variante desse nada desertificador que Nietzsche
prenunciara com seu conceito de niilismo.
Essa crise se abate sobre todos os domínios da vida espiri-
tual: nas ciências, nas artes, na moralidade, na política e mesmo
na religião. Como enfrentar tal agrura, quando, após a anun- para colonizar e tornar dependentes de si as diversas formas de
ciada morte do Deus, todos os deuses se puseram em fuga, organização da sociedade. Como toda reprodução coercitiva,
ameaçando o âmbito do sagrado e, assim, insinuando tam- também esta é sintoma de perda de controle e revela-se um
bém a morte do homem, como o conhecemos até o presente? delírio de onipotência, essencialmente moderno.
A esperança parece hoje inteiramente depositada no poder Desse modo, somos confrontados com a necessidade de
das tecnociências. despertar dessa hybris, conquistando, pelo pensamento, uma
O pensamento pós-metafísico de Heidegger assume a potência de segundo grau: a capacidade de nos subtrair à com-
tarefa de refletir sobre a essência do homem, tal como esta se pulsão de percorrer sempre os mesmos caminhos, que, em
determina em relação à verdade do Ser, em um tempo histó- vez de salvação, potencializam o perigo, enredando-nos mais
rico no qual a expansão planetária da tecnologia parece fazer profundamente na alienação. Esse despertamento só pode ser
periclitar tal essência. Essa tarefa se realiza tanto no plano de feito por meio de outro pensar, que ousa tomar a seu encargo a
sua primeira filosofia, como analítica existencial do ser-o-aí, reflexão sobre o pensar calculatório, operacional e instrumental
quanto em seu pensamento a respeito da história da verdade que predomina nas ciências contemporâneas.
do Ser, que se abre para uma crítica profunda, de incontornável Para Heidegger, o pensar não se separa originariamente
atualidade, à tecnologia moderna e para a qual tanto contribui do agir — ele age enquanto se exerce como pensar. Nesse sen-
sua confrontação com Nietzsche. tido, o pensamento não se transmuda em ação por causa do
Heidegger se pergunta se o desenvolvimento tecnológico efeito que pode resultar de sua aplicação. O pensar é um agir
não se encontra enredado em uma escalada compulsiva, em em sentido especialmente elevado, não estando separado da
uma espiral infinita, que, em vez de resolver nossos impasses, ação por nenhum abismo a ser recoberto ou transposto pelas
nos impele, cada vez mais, para a beira da catástrofe — por exem- formas diversas de aplicação ou emprego.
plo, ecológica, o que coloca em risco as possibilidades de uma Somente a um pensamento já capturado pelos dispositivos
autêntica vida humana na Terra. Por isso, é urgente, hoje, pensar da racionalidade técnica — e que, por causa disso, se especializa
com Heidegger, mesmo que seja contra Heidegger, assim como em divisões rigidamente compartimentadas, como a que seg-
ele pensou com Nietzsche e, sobretudo, contra Nietzsche. menta o trabalho filosófico em disciplinas como ética, estética,
Até porque a dinâmica das tecnociências sugere que estas lógica etc. — faria sentido exigir de Heidegger uma filosofia
não se deixem submeter ao controle e ao planejamento por prática como gênero filosófico separado, nos moldes de uma
parte das modalidades tradicionais de poder social, econô- ética pura ou aplicada (uma filosofia moral dos deveres ou da
mico e político, o que evidencia, antes, um imenso potencial felicidade, por exemplo). Para Heidegger, ao contrário, o pensar

10 nb!
é ele próprio ético, no sentido não prescritivo de modo de ser 1» A sobriedade, como resgate prudencial da lucidez, alcan-
ou de uma correspondência originária entre a essência lingua- çada a partir de um exercício permanente de autorreflexão
geira do homem e a verdade do Ser. e autocrítica, zelosa das circunstâncias e condições nas
Os desenvolvimentos mais recentes das tecnociências, quais se desenrola a vida dos seres intramundanos — com
que subvertem nossa autocompreensão como seres no mun- os quais o homem, como ser no mundo, mantém-se per-
do, ainda não foram conduzidos à consciência de sua própria manentemente em relação.
historicidade. Uma ética efetivamente concernida por eles tem 2» A liberdade em relação às ilusões de onipotência em
de assumir como tarefa trazer ao plano do pensamento uma que estamos enredados, a qual só pode ser alcançada com
apreensão adequada da essência da tecnologia. Nem a conde- a retomada da modéstia em relação à nossa capacidade de
nação reacionária e maniqueista da tecnologia, nem o ingênuo prever as consequências de ações possibilitadas por nosso
deslumbramento com as virtualidades do trans-humanismo, saber-poder — o que implica refletir sobre nossa posição
do pós-humanismo ou do sobre-humanismo permitem um subjetiva nesse processo: se seremos agentes ou “agidos”
discernimento essencial da técnica, pois não brotam de uma na dinâmica da configuração técnica do mundo.
meditação sobre o homem como ser pensante, menos ainda 3» A capacidade de renunciar à tentação do uso compul-
de um compromisso com seu destino. sivo do poder tecnológico e a abertura para dimensões de
O horizonte desse compromisso só pode ser o pensamento responsabilidade que ultrapassam o âmbito das relações
—e só pode ser divisado a partir de uma relação pensante entre inter-humanas — o que só pode ser entrevisto a partir de uma
o ser do homem e a essência da técnica. É um pensamento retomada do pensar como correspondência à verdade do Ser.
irredutível à divisão compartimentada da racionalidade, um
pensar refratário ao ativismo político, ao falatório estéril dos Enfrentar esses desafios, projetados para além dos humanis-
saberes insulares, e que resgata as ligações entre o conhecer, o mos tradicionais, pode ser de grande utilidade para a colocação
sentir, o imaginar, o lembrar, o cuidar e o esperar. do problema filosófico que, mais do que nunca, nos concerne:
Trata-se de um exercício permanente de reflexão, de uma afinal, o que estamos fazendo de nós mesmos, em um tempo
postura de recolhimento meditativo, a ser caracterizada pelos em que só as mutações são permanentes?
seguintes elementos, que marcam a distância da filosofia de Hei- Por causa dessas tarefas, Heidegger é para nós um compa-
degger dos ativismos teórico e prático dominantes nas ciências nheiro indispensável de viagem no atravessamento do século XXI.
e na filosofia atuais:

12 3
O pensador do fim
da metafísica

O TRAJETO BIOGRÁFICO

Martin Heidegger nasceu em Messkirch, na Alemanha, em


26 de setembro de 1889. Iniciou o noviciado na Companhia
de Jesus, da qual se desligou em 1909, em virtude de proble-
mas de saúde. Estudou teologia e filosofia na Universidade de
Freiburg, em preparação para o sacerdócio católico. Em 1913,
abandonou a teologia e passou a se dedicar apenas à filosofia.
No mesmo ano, doutorou-se com a tese A doutrina do juízo no
psicologismo e, dois anos mais tarde, fez também em Freiburg
sua livre-docência, com o trabalho A doutrina das categorias e da
significação em Duns Scoto.
Em 1916, com a chegada de Edmund Husserl (1859-1938) à
universidade, desenvolveu-se um fértil diálogo entre o catedrá-
tico e o promissor Heidegger. Este logo assumiria o cargo de
assistente de Husserl. A convivência despertou o jovem profes-
sor para a fenomenologia, que será determinante aos rumos ini-
ciais e futuros do seu pensamento. Com ela, Heidegger também
aguçou a consciência da originalidade de seu próprio filosofar,
como reconheceu em Meu caminho para a fenomenologia.

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Heidegger trabalhou ao lado de Husserl entre 1918 e 1923, autor de O mito do século xx e conselheiro de Hitler, condenado
quando se tornou catedrático de filosofia da Universidade de à morte pelo Tribunal de Nuremberg, em 1946. Ainda em 1933,
Marburg. Em 1927, publicou Ser e tempo. Heidegger foi eleito reitor da Universidade de Freiburg, engajan-
Nessa obra, desenvolve sua própria concepção de fenome- do-se no projeto de reforma da universidade alemã, mediante a
nologia, que deixa de consistir em um método de investigação introdução ali do princípio do líder (Fiihrerprinzip). Esse princípio
filosófico e se torna um modo de chegar às estruturas elementares filosófico, cuja origem remonta a Hermann Alexander Keyser-
originárias que suportam a existência humana, com todas as ling (1880-1946), institui a autoridade do líder (Fiihrer) sobre a lei
suas disposições, faculdades e funções. e a ordem constitucional, uma vez que na pessoa do dirigente
Ser e tempo foi um acontecimento ambíguo no relacionamento supremo se unificaria, totalizaria e organizaria a vontade geral,
entre Heidegger e Husserl. O livro, de um lado, demonstra a dívida soberana e identitária de um povo. Associado à doutrina nazista
do jovem filósofo para com o seu mestre, quanto à abertura para da autoridade, tal princípio passou a orientar as diretrizes da
a fenomenologia; de outro, institui um limiar de separação radi- política nazista para todos os setores da sociedade.
cal entre o entendimento de fenomenologia dos dois pensadores. O envolvimento político de Heidegger se reflete no Discurso
Como resultado de seu crescente prestígio acadêmico, Hei- da reitoria? proferido na solenidade de sua posse. Nele, o filósofo
degger foi convidado, em 1928,a suceder Husserl na cátedra de coloca em estreita relação a missão da universidade, da ciência e da
filosofia em Freiburg. Ali, entre 1929 e 1930, ministrou preleções cultura e o destino político e histórico do povo alemão. Em abril
sobre “os conceitos fundamentais da metafísica”, que seriam de 1934, Heidegger demitiu-se do cargo de reitor, em virtude de
posteriormente publicadas no livro do mesmo nome." desentendimentos com colegas acadêmicos e divergências com
Em 1933, ligou-se oficialmente ao Partido Nacional Socialista as autoridades governamentais. Já nessa época, nota-se em seus
dos Trabalhadores Alemães (NsDAP), de Adolf Hitler. Nos basti- escritos o afastamento crítico do nazismo, como em Superação da
dores da política cultural nazista, teve que enfrentar a hostilidade metafísica, coletânea de textos redigidos entre 1934 e 1946.
de personalidades duvidosas tanto do ponto de vista intelectual Entre 1936 € 1940, fez preleções sobre Nietzsche, nas quais
quanto ético, como a do pedagogo E. Krieck (1882-1947), seu ini- amadureceu sua crítica da metafísica e, em particular, aprofun-
migo declarado, além da concorrência de filósofos, como Alfred dou sua reflexão sobre o niilismo europeu. Nesse período, a ati-
Báumler (1887-1968) — cuja interpretação da obra de Nietzsche foi vidade acadêmica de Heidegger tornou-se objeto de vigilância
” sempre apreciada por Heidegger — e Alfred Rosenberg (1893-1946), por parte da polícia secreta nazista.

1 Cf. Heidegger, M. Os conceitos fundamentais da metafísica. 2 Idem, Discurso da reitoria.

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Os estudos intensivos sobre Nietzsche e o enfrentamento Em 1946, com base em um parecer subscrito pelo filósofo
(Auseinandersetzung *) com o escritor, filósofo e entomologista Karl Jaspers (de quem Heidegger se tornara amigo em 1920 e
alemão Ernst Júnger (1895-1998) a respeito do niilismo, suas se afastara depois da adesão ao nazismo), o comitê de desnazi-
causas, evolução, consequências e a possibilidade de superá- ficação recomendou a cassação de sua venia docendi, proibindo-o
“lo, constituíram um fator decisivo para a viravolta (Kehre) — o de lecionar. A interdição perdurou até 1949, quando o conselho
momento de viragem na obra de Heidegger, em que seu pensa- universitário de Freiburg enviou ao Ministério da Educação um
mento experimenta uma mudança de perspectiva, abandonan- pedido de reintegração de Heidegger. Porém, o efetivo reinício
do a analítica da existência de Ser e tempo para assumir a forma de suas atividades só ocorreria em 1951. Convém salientar que,

de uma meditação sobre a história da verdade (alétheia) do Ser. a despeito de ser instado a fazê-lo por vários de seus colegas
Encerrada a Segunda Guerra, Heidegger foi convocado, de profissão e amigos, Heidegger nunca se justificou ou pediu
em meados de 1945, para depor perante o comitê de desnazi- desculpas publicamente por seu envolvimento com o nazismo.
ficação organizado pelos exércitos aliados. O processo movido Entre 1949 € 1950, proferiu importantes conferências em

contra o filósofo deveu-se, além do seu envolvimento com o diversas cidades alemãs, como Bremen e Munique, nas quais
Partido Nazista, a denúncias de que teria tido comportamento divulgou os resultados de sua meditação sobre a história da
antissemita durante o período do reitorado, discriminando e verdade do Ser: “A coisa” (Das Ding), “A armação” (Das Gestell),
perseguindo colegas judeus. “O perigo” (Die Gefahr), “A viravolta” (Die Kehre). Publicadas
Sua saúde sofreu, então, grande abalo, cujo resultado foi mais tarde, as conferências constituem peças fundamentais
um esgotamento nervoso e uma profunda depressão. Toda- no programa de superação da metafísica do assim chamado
via, data dessa época tanto a correspondência com o filósofo “segundo Heidegger”.
Jean-Paul Sartre quanto sua amizade com Jean Beaufret, que Em 1953, publicou A pergunta pela técnica, em que apresenta
traduzirá para o francês a célebre carta “Sobre o humanismo”, as linhas fundamentais de sua filosofia da técnica moderna,
escrita em 1946. interpretando-a a partir da tradição metafísica ocidental. Dois
Í anos mais tarde, pronunciou a conferência “Serenidade”, na
qual aprofunda sua reflexão sobre a cibernética como a metafí-
3 Aus (preposição que indica movimento para fora); -cinander (um e outro);
-setzung (do verbo setzen: pôr, colocar, assentar, pôr em pé); Auseinandersetzung sica do nosso tempo e descreve a postura existencial de silêncio
tem o sentido literal de colocar algo ou alguma coisa fora e diante de outra meditativo sobre os perigos da tecnologia moderna.
e é habitualmente traduzido em português por “discussão”. Uma tradução
Em 1966, Heidegger concordou em conceder à revista Der
mais próxima de sua literalidade e sentido original é “confrontação” ou “en-
frentamento”. . Spiegel um importante depoimento, que ficou conhecido como

18 19
entrevista-testamento, pois ele só aceitou o convite com a con- e sobre a situação, em parte sem perspectivas, dos estudantes. Meu

dição de que fosse publicada postumamente. Na entrevista, O julgamento, na ocasião, era o seguinte: tanto quanto posso avaliar

filósofo discorre sobre fatos importantes relacionados a sua as coisas, resta apenas a possibilidade de tentar realizar [a tarefa de

vida e sua obra, em particular as circunstâncias e o sentido de autoafirmação da universidade alemã] e dar início a ela, com as

sua aproximação e seu posterior afastamento crítico do nazis- forças construtivas que efetivamente ainda estavam vivas.
mo, como ilustra a seguinte passagem: Ds: O senhor via, portanto, uma conexão entre a situação da univer-
sidade alemã e a situação política da Alemanha, em geral?

DER SPIEGEL: Senhor professor Heidegger, temos constatado repeti- H: Com efeito, eu acompanhava os acontecimentos políticos entre

das vezes que a sua obra filosófica é um pouco ensombrecida por janeiro e março de 1933, e ocasionalmente conversava sobre isso

acontecimentos não muito duradouros da sua vida, que nunca com colegas mais jovens. Mas o meu trabalho era dedicado a uma
foram esclarecidos. interpretação mais abrangente do pensamento pré-socrático. No

HEIDEGGER: O senhor pensa em 1933? começo do semestre de verão, retornei a Freiburg. Entrementes,

Ds: Sim, antes e depois. Gostaríamos de colocar isso em um contexto em 16 de abril, o professor Von Môllendorf tinha tomado posse

maior e, daí, chegar a algumas perguntas que parecem importan- do cargo de reitor. Menos de duas semanas depois, foi destituído
tes, como: que possibilidades há, a partir da filosofia, de agir sobre pelo então ministro da Cultura de Baden. O supostamente dese-
a realidade — inclusive, sobre a realidade política? jado ensejo para essa decisão do ministro foi dado pelo fato de

H: Essas já são questões importantes e quem sabe eu possa responder que o reitor tinha proibido fixar na universidade o assim chamado

a todas elas. Mas tenho que dizer, em primeiro lugar, que não tinha cartaz dos judeus.
atuado politicamente, de modo algum, antes de meu reitorado. No Ds: O senhor Von Móllendorf era social-democrata. O que ele fez

semestre de inverno de 1932-33, eu estava de férias e passei a maior depois da deposição?


parte do tempo em minha cabana. H: No mesmo dia de sua deposição, veio ter comigo e disse-me: “Hei-

ps: Como ocorreu que o senhor tenha se tornado reito?da Univer- degger, agora o senhor tem de assumir o reitorado”. Dei a enten-
sidade de Freiburg? der que a mim faltava experiência em atividades administrativas.

H: Em dezembro de 1932, meu vizinho Von Móllendorf, catedrático O então vice-reitor Sauer (de teologia) também pressionou para

de anatomia, foi eleito reitor. Na universidade local, a tomada de


posse do novo reitór realiza-se a 15 de abril. Durante o semestre
4 Heidegger refere-se ao cartaz antissemita “Contra o espírito alemão”, que
do inverno de 1932-33, conversávamos frequentemente acerca da estudantes nazistas haviam tentado afixar na Universidade de Freiburg. A ação
situação, não apenas política, mas, em particular, da universidade, foi obstada por ele, então reitor daquela instituição.

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que eu me candidatasse às novas eleições para o reitorado, pois Procurei ganhar o apoio do ministro da Cultura de Baden para
haveria o risco, se isso não ocorresse, de que um funcionário fosse o meu indeferimento. Ele me esclareceu que nada poderia fazer
nomeado reitor. Colegas mais jovens com quem havia vários anos contra as SA. Todavia, não recuei de minha proibição.
vinha comentando problemas da configuração da universidade Ds: Até hoje isso não era conhecido desse modo.
também acorreram a mim para que aceitasse o reitorado. Durante H: O motivo que, em geral, me levou a assumir o reitorado está já
muito tempo, hesitei. Por fim, declarei-me disposto a assumir o explicado na minha preleção inaugural, proferida em Freiburg,
cargo unicamente no interesse da universidade, caso pudesse estar em 1929, “O que é a metafísica?”: “Os domínios das ciências estão

seguro acerca do assentimento unânime do plenário. Enquanto muito afastados uns dos outros. O modo de tratamento de seus
isso, contudo, permaneciam as dúvidas quanto à minha aptidão objetos é fundamentalmente distinto. Hoje, esse desdobramento
para o reitorado, de modo que, ainda na manhã do dia estabele- confuso de disciplinas só se mantém reunido em uma significação
cido para a eleição, apresentei-me na reitoria e declarei ao colega pela organização técnica das universidades e faculdades e pela
destituído Von Móllendorf, ali presente, e ao professor Sauer que finalidade prática dos campos de especialidade. Em contrapartida,
não podia aceitar o cargo. Ao que ambos me responderam que eu o enraizamento das ciências no seu solo essencial extinguiu-se”.
já não poderia retirar a candidatura. Aquilo que eu tentei, em relação a esse estado da universidade
Ds: Em face disso, o senhor declarou-se definitivamente disposto [a — que nesse meio-tempo degenerou-se a um ponto extremo -,
aceitar o cargo]. Como se configurava na época a sua relação com durante o tempo de meu exercício do cargo, está exposto no meu
os nacional-socialistas? discurso de reitorado.
H: No segundo dia depois da minha posse, apareceu na reitoria o Ds: Tentamos averiguar como e se essa declaração de 1929 coincide

“dirigente dos estudantes” (Studentenfiihrer), com dois acompa- com o que o senhor disse no discurso inaugural como reitor,
nhantes, e exigiu de novo a colocação do “cartaz dos judeus”. em 1933. Desse contexto, extraímos a seguinte frase: “A tão can-

Recusei. Os três estudantes afastaram-se com a observação de tada liberdade acadêmica” é expulsa da universidade alemã,
que a proibição seria notificada à Direção de Estudantes do Reich pois essa liberdade era inautêntica, porque apenas negativa”.
(Reichsstudentenfiihrung). Alguns dias depois houve uma chamada Acreditamos poder suspeitar que essa sentença exprime pelo
telefônica dos Serviços Universitários das SA, que integravam a menos uma parte das concepções das quais o senhor ainda hoje
Direção Suprema das SA, da parte do doutor Baumann, chefe do não se distanciou.
grupo. Ele exigia afixação do mencionado cartaz, assim como já se H: Sim, ainda sustento isso, pois essa “liberdade acadêmica” era
fizera em outras universidades. Em caso de recusa, deveria contar muito frequentemente apenas negativa: liberdade em relação ao
com a demissão, senão mesmo com o fechamento da universidade. esforço por ingressar naquilo que o estudo científico exige de

22 23
meditação e reflexão. Ademais, a sentença extraída pelo senhor não O CONTEXTO FILOSÓFICO
deveria ser lida de forma isolada, mas no seu contexto, pois então
se torna plenamente claro o que eu queria que fosse compreendido O contexto histórico e cultural do início da carreira filosófica de
como “liberdade negativa”. Heidegger é marcado pela crise que afeta os fundamentos das
ciências e da filosofia, e, portanto, a própria relação entre esses
O extrato dessa entrevista torna possível entrever algu- domínios do saber. O impacto do positivismo de Augusto Comte
mas dificuldades daquele período em que Heidegger exerceu (1798-1857) levava à negação de legitimidade à metafísica como
a função de reitor da Universidade de Freiburg. Para complicar forma de conhecimento, à transformação da metodologia das
ainda mais o quadro, basta recordar que, entre seus alunos e ciências naturais em paradigmas de racionalidade e à dissolução
orientandos mais célebres, contavam-se os filósofos Herbert da lógica em psicologia, da filosofia em sociologia e antropologia.
Marcuse, Hans Jonas e Karl Lówith, todos de ascendência judai- Ademais, o desenvolvimento crescente, desde a segunda
ca. O relacionamento de Heidegger com sua ex-aluna Hannah metade do século XIX, de disciplinas empíricas como a história,
Arendt, interrompido por causa do enredamento político do a sociologia, a psicologia e a economia induzia a interpretar
filósofo e do exílio de Arendt da Alemanha, foi retomado em todo saber como resultante de condicionamentos psicológicos,
1952 e mantido ininterruptamente, a partir de 1967, até a morte sociais e históricos, o que acabava por afetar os fundamentos
de Heidegger. Em 1975, iniciou-se a publicação de suas obras de todas as ciências.
completas, trabalho editorial ainda em curso. Como escreveu Merleau-Ponty (1908-1961):
Heidegger morreu em 26 de maio de 1976 e foi sepultado
dois dias depois em Messkirch, sua cidade natal, da qual havia Se os pensamentos, os princípios orientadores do espírito, nada mais

sido nomeado cidadão honorário em 1959. são do que o resultado momentâneo da atuação de causas exteriores,
í então as razões pelas quais afirmo qualquer coisa não constituem,
na realidade, as verdadeiras razões de minha afirmação. Esta possui
menos razões do que causas determináveis do exterior.

5 Nesse caso, Heidegger se refere à liberdade que permite dispensar-se do Embora a frase de Merleau-Ponty tenha sido publicada tem-
esforço de meditação e reflexão exigido pela disciplina de estudo científico. pos mais tarde que o período relatado, ela rememora e caracteriza
A entrevista “Só um deus pode ainda nos salvar” foi concedida por Martin
Heidegger à Der Spiegel em 23/9/1966 e publicada no n. 23/1976 da revista alemã
(tradução do autor). 6 Merleau-Ponty, M. Ciências do homem e fenomenologia, p. 16.

24 à 25
com precisão o impacto que o desenvolvimento das ciências as teses reducionistas do psicologismo reinante a partir do final
empíricas exercerá sobre a filosofia a partir de então. do século XIX, inspirado nos sucessos da psicologia experi-
Na Alemanha, um dos efeitos principais da filosofia crí- mental então nascente, bem como de um relativismo ético
tica de Kant (1724-1804) foi investigar a extensão e os limites decorrente dos avanços das ciências humanas, em especial da
do conhecimento válido, destituir a metafísica de suas anti- história, da sociologia e da antropologia.
gas pretensões ao estatuto de ciência e fundamentar a moral Se Kant concebia o filósofo como o gestor dos interes-
em bases racionais e formais. Kant criticou tanto o realismo ses supremos da razão, a crise de fundamentos que abalou a
quanto o idealismo dogmáticos, negando seja a tese que afir- filosofia e as ciências na passagem do século XIX para o XX o
ma — sem a necessária crítica — a realidade objetiva dos objetos destitui desse papel, na medida em que se torna problemática
do conhecimento, cuja existência independeria do sujeito, seja a ideia de participação de toda humanidade em uma verdade
a que sustenta a idealidade desses objetos, concebendo-os universal, de cuja gestão o filósofo se incumbiria.
— também acriticamente — como condicionados por elemen- O neokantismo é um fenômeno típico dessa conjuntu-
tos inerentes ao sujeito. ra histórica. Em linhas gerais, ele consiste em uma retomada
Para Kant, a forma de todo conhecimento depende de ele- do programa crítico de Kant, desdobrado em dois segmentos
mentos a priori, cuja “sede” é a razão pura — nesse sentido, sua principais. Por um lado, é um esforço de mitigar o subjetivismo
filosofia é uma forma de subjetivismo transcendental. Porém, transcendental, recorrendo à objetividade das ciências mate-
ele tem em vista estruturas lógicas do aparelho cognitivo huma- máticas e físicas. Essa é a característica da Escola de Marburg,
no, as formas puras da sensibilidade — o espaço e o tempo, cujo fundador, Hermann Cohen (1842-1918), tentou superar a
as categorias do entendimento e as ideias da razão —, e não cisão entre o conhecimento e seu objeto por meio de esquemas
faculdades psíquicas. Do mesmo modo, o formalismo prático lógicos formatadores do pensamento e também da fundamen-
de Kant pretendia fundamentar a moralidade em princípios tação científica da ética e da reflexão sobre os valores, com
universais e necessários, deduzidos das formas da racionalidade apoio nas ciências humanas e na biologia.
humana, em vez de dissolver a reflexão sobre os valores, os Por outro lado, é a tentativa de ultrapassar a tendência a
deveres e as virtudes em psicologismo, historicismo, sociolo- limitar o campo da ciência ao domínio de aplicação possí-
gismo e antropologismo. vel de procedimentos lógicos de formalização e matemati-
No entanto, a posteridade que herda o programa crítico de zação de objetos. Na Escolá de Baden, podemos identificar,
Kant deu ensejo ao desenvolvimento de uma interpretação sub- como exemplo desse primeiro segmento, o filósofo Heinrich
jetivista da filosofia transcendental, que não deixou de reforçar Rickert (1863-1936), que desenvolveu uma teoria dos valores

26 27
que separava as ciências naturais das do espírito e cuja meto- metafísicos, como aqueles do idealismo alemão, resgatando a
dologia é essencialmente hermenêutica e inclui valores como tentativa de propor uma doutrina ético-filosófica não apenas
princípios explicativos. baseada em princípios formais, mas também dotada de um
Contudo, uma vez que as ciências humanas não com- conteúdo material de valores substantivos, em um esforço para
portam a matematização de seus objetos, elas não podem sustentar uma interpretação original da doutrina das categorias
aspirar ao regime de certeza e objetividade que há nas ciên- de Aristóteles e Kant.
cias formais e físicas. A cientificidade das ciências humanas A influência de Hartmann também se fez sentir no campo
exige a instituição de critérios e metodologia de pesquisa pró- da filosofia da religião. Com apoio na filosofia prática de Kant, o
prios, sob pena de tornar inviáveis seus corpos teóricos como conceito de Deus torna-se um postulado, afirmado como uma
conhecimento objetivo. Uma filosofia em crise profunda não necessidade interna da moralidade humana, analogamente ao
podia, então, prover esse tipo de reflexão epistemológica, em uso de postulados em matemática, como medida necessária à
substituição à teoria tradicional da ciência, cuja base metafi- resolução de problemas.
sica tornara-se perempta. Outro nome importante na filosofia dos valores, igual-
É nesse cenário histórico que se explica a consolidação e mente ligado ao neokantismo, é Max Scheler (1874-1928). Para
o impacto de três vertentes filosóficas que tiveram papel rele- superar o formalismo ético de Kant, ele pretendia fundamentar
vante para o pensamento de Heidegger: a filosofia dos valores, a ética em um sentimento de valor, em uma apreensão vivida de
as filosofias da vida e a filosofia existencial. Seu traço comum valores morais e estéticos, alheia à compreensão conceitual,
consiste na valorização de elementos ligados à dimensão do também não incluída entre as categorias do Ser. Scheler consi-
sentido, à condição paradoxal da existência humana em um derava a metafísica como ciência, baseando-a na metodologia
mundo desprovido de finalidade e de valores transcendentes da antropologia cultural e da filosofia social. Em obra intitu-
— enfim, na tomada de consciência da contingência e da facti- lada Cosmovisão filosófica (Philosophische Weltanschauung), tentou
cidade da vida. elucidar os fundamentos da sociedade e da história. Vemos
Nessa direção, avulta o nome de Nikolai Hartmann (1882- aparecer aqui uma palavra que constituirá um topos conceitual
-1950). Inicialmente próximo ao neokantismo idealista da Escola da filosofia da época: “cosmovisão” (Weltanschauung), de que
de Marburg, ele transitou daí para uma postura teórica realis- Heidegger se ocupará profusamente.
ta, promovendo uma revisão crítica da ontologia tradicional. Em complemento à filosofia dos valores, a rubrica “filoso-
Baseando-se principalmente em Aristóteles e Christian Wolff fias da vida” denota o questionamento a respeito do sentido,
(1679-1754), Hartmann retoma a tradição dos grandes sistemas do valor e do propósito da vida, sublinhando a experiência

28 29
concreta, vivida em sua plenitude, em detrimento de um tipo A distinção conceitual entre explicar (Erklúren) e compreen-
de conhecimento intelectual e puramente teorético. Enfatiza der (Verstehen), ou explicação e compreensão, coloca em destaque
o aspecto subjetivo do conhecimento em oposição a seu com- os procedimentos essenciais da hermenêutica e torna-se um
ponente objetivo, impessoal, axiologicamente neutro. Nelas, o operador importante da metodologia científica. De modo
conceito vida assume um papel de categoria totalizante e prin- geral, explicar consiste em identificar relações constantes entre
cípio último de explicação. Intuição e sentimentos, as vivências fenômenos ou séries de eventos, cuja regra geral tem a forma
concretas (Erlebnisse) — não conceitos abstratos — liberam o aces- lógica da ligação entre causa e efeito. Consiste em enquadrar
so à vida, entendida como totalidade abrangente da existência fenômenos nesse esquema formal, de modo que, para as ciên-
humana no mundo, que só pode ser compreendida a partir de cias naturais, a natureza é concebida como um sistema de rela-
uma perspectiva que lhe seja interna. ções entre fatos, ligados entre si de acordo com certas regras
Outro filósofo importante na época foi Wilhelm Dilthey invariáveis, fundadas em princípios universais. No caso das
(1833-1911), que sistematizou um método de investigação base- ciências formais, explicar consiste em deduzir propriedades a
ado em vivência (Erlebnis) e intuição (Einfiihlung). Seu pensamento partir de definições prévias, de acordo com axiomas ou pro-
exerceu considerável influência sobre diferentes correntes da posições evidentes.
filosofia da vida, do final do“século xIX até meados do século As Geisteswissenchaften (ciências do espírito, da cultura, ou
passado, assim como sobre a ciência hermenêutica, além de ciências humanas), por sua vez, têm na compreensão sua cate-
dar ensejo a um relativismo histórico dos valores. goria fundamental e não procedem por explicação nem por
Uma de suas categorias centrais é a de compreensão, que lhe dedução de consequências a partir de princípios ou definições.
permitia apreender e interpretar, da única maneira adequada, A compreensão é um processo hermenêutico visando ao senti-
as formações socioculturais, historicamente determinadas, do dos eventos do mundo histórico-cultural, especificamen-
que adquirem forma e duração relativa no interior da vida te humano. Na interpretação do sentido, o próprio cientista
entendida como totalidade abrangente. A ênfase na experiên- (sujeito), com seu lastro subjetivo de estimativas de valor, nunca
cia vivida, na diversidade das manifestações da vida social e pode ser separado inteiramente do objeto a ser interpretado, de
cultural, em detrimento das abstrações, resultou na importante modo que um teor de subjetividade não pode ser retirado das
distinção metodológica entre explicação (Erklárung) e compreensão ciências da cultura, ao contrário do que ocorre com as ciências
(Verstehen), que cindiu a unidade do saber científico entre, de um formais (matemática) e as ciências da natureza, cujas explica-
lado, as ciências formais e da natureza e, de outro, as ciências ções se pretendem fundadas apenas na objetividade dos fatos,
do espírito ou da cultura. sem interferência subjetiva (valorativa) por parte do cientista.

30 31
A relevância teórica dessa distinção permite entender filosofias da vida, assim como das filosofias existenciais ateias,
o interesse do jovem Heidegger por Max Weber (1864-1920), como a de Jean-Paul Sartre (1905-1980), e cristãs, como a de Karl
fundador da sociologia compreensiva e professor em Frei- Jaspers (1883-1969), com as quais dialoga a respeito da condição
burg entre 1894 e 1895. Também Weber estava essencialmente humana, tal como pensada por eles. Essa integração, essencial-
preocupado com a fundamentação das ciências sociais, sem mente crítica, foi inevitável em decorrência de sua inserção no
desprezar, no entanto, os conteúdos não redutíveis a procedi- circuito universitário de Marburg e Freiburg.
mentos matemáticos ou mecânicos. Para ele, os fenômenos A filosofia de Heidegger recebe também o influxo de outra
humanos nos quais estão implicadas referências a valores são corrente intelectual, decisiva para o seu pensamento: a fenome-
constituintes fundamentais das ciências sociais, pois o sentido nologia de Edmund Husserl. Este sistematizou a fenomenologia
pleno de fatos sociais dessa espécie só pode ser reconstituído a em uma concepção densa, consistente, original, assimilando
partir da sua relação sob o ponto de vista dos valores. coordenadas desenvolvidas por Bolzano (1781-1848) e Brentano
Weber, no entanto, não excluía inteiramente das ciências (1838-1917), com vistas a estabelecer novos fundamentos tanto
humanas a categoria de causalidade, em especial em sua apli- para a filosofia quanto para as ciências de seu tempo.
cação à teoria da deliberação e atribuição de responsabilidades De tal programa faz parte a concepção da filosofia como
como recurso explicativo dos processos constitutivos da vida ciência rigorosa, desprovida de pressupostos dogmáticos, cuja
social. Sendo assim, embora valorizasse a compreensão como meta consiste em determinar a possibilidade do conhecimento.
princípio metodológico, propunha também a integração de Embora esta tenha sido a pretensão da filosofia desde seu sur-
compreensão e explicação, em uma visão unitária da ciência, na gimento, ela “nunca teria sido um desvelamento consequente
qual ele distinguia conceitualmente conhecimento científico e coeso dos verdadeiros primórdios" do conhecimento; até
e juízos de valor. então, ela nunca teria encontrado a 'decisiva formulação do
Ele reconhecia, com os defensores da teoria compreen- à problema, o método correto”. Só a fenomenologia seria ciência
siva, que toda ciência contém um elemento subjetivo e axioló- rigorosa”, nas palavras do prestigioso intérprete da filosofia
gico. Contudo, não renunciava à objetividade da ciência, que heideggeriana, o professor alemão G. Figal.?
depende fundamentalmente do controle e direcionamento da Uma das pretensões de Heidegger consistiu na tentati-
pesquisa por métodos sistemáticos e procedimentos de inves- va de descrever os fenômenos, tais como estes se mostram,
tigação universalizáveis. de acordo com as estruturas fundamentais de seus modos de
Heidegger incorporou ao seu pensamento elementos teó-
ricos e recursos metodológicos da filosofia dos valores e das 7 Figal, G. Zu Heidegger. Antworten und Fragen, p. 32 (tradução do autor).

32 33

aparecimento e suas modalidades de exibição. Nesse sentido, a proposições significativas seriam as sentenças protocolares
noção de intencionalidade desempenha um papel fundamen- ou os registros de enunciados capazes de ser levados à veri-
tal. Heidegger a apreende a partir do pensamento de Husserl, ficação experimental ou à demonstração, em estrita relação
que considera a intencionalidade uma dimensão constitu- biunívoca com os dados e elementos resultantes de tais pro-
tiva estrutural da consciência, de modo que esta não pode cedimentos. À análise epistemológica caberia um exame dos
ser pensada de maneira insular, como se fosse uma mônada conteúdos das experiências, ou melhor, do conteúdo teórico
fechada sobre si própria, contraposta ao mundo dos objetos das experiências, para revelar o possível conhecimento desde
que ela mesma representa. Consciência (cogito) não existe a sempre nela contido.
não ser na duplicidade e na abertura para um objeto pensado Heidegger, por sua vez, retoma nesse contexto o mote
(cogitatur), que se mostra como fenômeno, tanto segundo con- filosófico do programa fenomenológico husserliano: “Retor-
dições empíricas e sensíveis quanto em conformidade com nar às próprias coisas” (auf die Sachen selbst zuriickzugehen), o que
elementos estruturantes formais, de natureza transcendental. significava, já para Husserl, perguntar-se, sem amparo em con-
Para Husserl, portanto, a fenomenologia implica uma vicções prévias e pressupostos teóricos, pelas condições verda-
ontologia fundamental — esta deve ser compreendida como deiramente iniciais do conhecimento, uma vez que a crise das
uma descrição dos modos de estruturação e apresentação dos ciências é, antes de tudo, uma crise da racionalidade. Em face
fenômenos, em conformidade com os diferentes contextos de dessa crise que afeta as ciências em geral, mas particularmente
realidade nos quais desde sempre nos encontramos. A exigên- as humanas (ciências da compreensão), é elucidativo o diag-
cia de cientificidade, tal como formulada pela corrente cienti- nóstico de Merleau-Ponty:
ficista, então dominante, do positivismo lógico do Círculo de
Viena, não seria capaz de satisfazer as exigências teóricas da A crise das ciências, das ciências do homem e da filosofia tende
fenomenologia husserliana, as mesmas que serão retomadas para o irracionalismo. O próprio racionalismo surge como um
e reformuladas por Heidegger. contingente produto histórico de certas condições exteriores. Des-
Com efeito, o ideal de positivistas lógicos como Moritz de o início de sua carreira, Husserl sentiu profundamente que o
Schlick (1882-1936) e Rudolph Carnap (1891-1970), ambos problema consistia em tornar novamente possíveis, ao mesmo
integrantes do Círculo de Viena, era conjurar definitivamen- tempo, a filosofia, as ciências e as ciências do homem, repensar
te as especulações metafísicas e identificar a racionalidade seus fundamentos e os da racionalidade. Compreendeu que essas
científica com os requisitos teóricos e metodológicos das diferentes disciplinas haviam penetrado em um estado de crise per-
ciências formais e experimentais. De modo que o'ideal de manente, do qual não escapariam se, por uma nova elucidação de

34 35
suas relações e de seus processos de conhecimento, não se chegasse da consciência pura — ou seja, a análise do vivido concreto,
a tornar possível cada uma delas, assim como sua coexistência.* juntamente com as estruturas formais da consciência, sobretudo a
intencionalidade, pela qual toda consciência é sempre consciência
Os conceitos de cada ciência particular remetem a um de alguma coisa, todo cogito (eu penso) é sempre também cogitatur
domínio de objetos investigados de acordo com princípios e (conteúdo pensado), e pela qual a experiência pode adquirir
métodos que dão lugar a um regime próprio de verdade. A tais uma dimensão de sentido para a consciência.
domínios corresponde determinada organização ideativa da A redução eidética parte da simples percepção sensível e,
consciência, estruturas formais que condicionam a intuição por meio de sua descrição metódica, desvenda também suas
e os modos de aparecimento de seus conteúdos. A fenome- estruturas formais ou ideais, que não são de natureza psicoló-
nologia seria então uma ciência filosófica das estruturas fun- gica ou subjetiva, mas lógicas e universais. Tais estruturas são
damentais da consciência pura em geral, cuja fundamentação essências ideais, porém diferentes das ideias platônicas, cuja
é exclusivamente lógica e completamente independente da existência real é admitida em um mundo inteligível. As essências
psicologia e da antropologia. de Husserl são formas de a consciência visar e exibir seus objetos.
Seu procedimento, inspirado na epoché (suspensão do juízo) Para entender tal procedimento, deve-se partir da expe-
dos céticos antigos, reduz a experiência vivida a seus elemen- riência cotidiana: por exemplo, a percepção desse prosaico
tos constituintes para identificação e descrição dos modos de “inteiro sobre minha mesa. Existem no mundo inumeráveis tin-
apresentação dos objetos na consciência. Essa postura meto- teiros individualmente semelhantes ou individualmente dife-
dológica rompe com a “atitude natural” que considera a cons- rentes. Entretanto, todos mantêm a mesma unidade genérica:
ciência parte da realidade, de um mundo dado previamente, são tinteiros, e não cinzeiros.
representado em conformidade com as regras e os princípios Essa “tinteiridade” é apreendida com a percepção sensível
lógicos do pensamento. do meu tinteiro, mas é completamente diferente dela. Husserl
Com a suspensão do juízo, a realidade dos objetos da denomina intuição categorial o modo de apreensão das essências
consciência deixa de se constituir como pretexto para a dúvi- pela consciência. Embora as duas formas de intuição possam
da metódica ou a negação dogmática, sem ter como implica- ser tomadas separadamente, a categorial é baseada na intuição
ção que os objetos sejam tomados como criações ideais da de objetos sensíveis ou imaginários. Meu tinteiro, portanto,
consciência. Essa-suspensão possibilita uma redução eidética apreendido como conteúdo de uma simples percepção sensível,
dá lugar a novos atos de consciência visando a seus elementos
8 Merleau-Ponty, M., op. cit., p. 16. e sua coerência interna, sua categoria essencial: a “tinteiridade”,

36 37
que não existe separada da intuição sensível e que só pode ser erro corruptor do puro sentido da filosofia, que quer fundar
adequadamente compreendida em conexão com outros objetos, a filosofia sobre a antropologia ou a psicologia, sobre a ciên-
como a pena, o papel, a caneta, a escrivaninha etc. Nem ideias cia positiva do homem, sobre a vida anímica do homem”, nas
platônicas, nem nomes ou ficções, mas seres ideais, dados de palavras de G. Figal.!º
maneira similar à dos objetos sensíveis (seres reais). Seja como for, Ser e tempo, ressalta Figal:
À “intuição das essências” (Wesensschau) está ligada a “aper-
cepção compreensiva” (komprehensive Apperzeption), expressão É o ponto para o qual convergem as primeiras propostas de
que designa os modos como a consciência percebe os obje- Heidegger, é o ponto de partida para tudo o que ele pensou depois
tos na vida cotidiana, nos diferentes contextos do Lebenswelt de sua publicação. O seu pensamento após Ser e tempo é sempre
(mundo da vida). Por meio dela, apreendemos a unidade da per- uma retomada das questões fundamentais deste livro; extensas
cepção e do percebido, entre a expressão e o que nela é expresso. Essas anotações do filósofo provarão isso, de maneira impressionante,
unidades compreensivas são pessoas ou objetos culturais; é tão logo publicadas."
assim que apreendemos os outros homens como pessoas, ao
tomar consciência deles como unidades anímico-corporais,
nas quais o corpo torna-se corpo expressivo, e os objetos culturais
não são meras coisas físicas, mas devem ser compreendidos
como elementos dotados de identidade e sentido no contexto
intersubjetivo de uma cultura.
Esse ideário é fundamental para Heidegger, razão pela
qual foi integrado em Ser e tempo, livro dedicado a Husserl. Mas
essa obra foi também a razão principal do distanciamento de
Heidegger de seu mestre. A decepção de Husserl com o livro
foi imensa, por considerar que seu discípulo reconvertia a
fenomenologia em psicologia e em antropologia, ao transfor-
má-la em analítica fenomenológica das estruturas do ser-o-aí
(o Dasein?). “Em texto publicado em 1930, [Husserl] fala de um
10 Figal, G., Op. cit., p. 33.

9 Todos esses conceitos e noções serão definidos e explicados a seguir. mn Idem, ibidem, p. 83.

28+ 39
O primeiro
Heidegger

AS INTUIÇÕES INICIAIS

A originalidade e a radicalidade da contribuição de Heidegger


à filosofia contemporânea não precisam ser enfatizadas, uma
vez que nela se encontra tanto uma reapropriação sui generis da
tradição quanto uma nova determinação dos rumos futuros
da filosofia, cuja frase-guia é “superação da metafísica”.
Se a filosofia, dos gregos aos nossos dias, pode ser conside-
rada um sinônimo de metafísica, então a pretensão de Heideg-
ger consiste em nada menos do que retornar, pela meditação,
em diálogo produtivo com os grandes pensadores, aos mais
recuados primórdios do pensar filosófico. Ou seja, retornar
a uma experiência de pensamento iniciada com os pré-socrá-
ticos, prosseguida e depois soterrada pela hegemonia da meta-
física desde Sócrates, Platão e Aristóteles.
Neste capítulo, serão explicitadas as intuições iniciais que
estão na base da filosofia do primeiro Heidegger e que ganham
expressão literária nas obras compostas nesse período. Delas,
a mais relevante é, por certo, Ser e tempo, mas a produção está
longe de limitar-se a esse livro, uma vez que vários textos de

41
Heidegger, como sua Fenomenologia da vida religiosa, Que é meta- afrontar-se e defrontar-se), com os grandes pensadores, eles
física, A doutrina das categorias e da significação em Duns Scoto, próprios herdeiros e transmissores do legado espiritual da tra-
A doutrina do juízo no psicologismo, assim como outros trabalhos dição, considerados por Heidegger como “grandes”, na acep-
de fenomenologia e hermenêutica, que só postumamente foram ção de seminais, pois no pensar deles se articula uma dicção a
publicados, pertencem a esse mesmo período, que se encerra em respeito da verdade? do Ser.
torno de 1935, com a assim chamada viravolta. As distinções empreendidas acima facilitam a compreen-
O aporte heideggeriano para a filosofia deve ser indicado são das duas grandes configurações que cristalizam a produção
por dois termos de inesgotável riqueza expressiva: superação de Heidegger: 1) como analítica da finitude, característica da
(Uberwindung) e torção (ou distorção, Verwindung) da metafísica. ontologia fundamental levada a cabo em Ser e tempo como feno-
Quanto ao primeiro termo, ele não oferece problemas, menologia da Ex-sistência, também conhecida como filosofia do
uma vez que Heidegger explicita com frequência que seu pen- primeiro Heidegger; e 2) como história da verdade do Ser, que
samento empreende um esforço para superar a metafísica, marca o pensamento do assim chamado segundo Heidegger,
assumindo a tarefa de destruição de suas categorias e pressu- sua filosofia tardia, à qual pertence a reflexão sobre a essência
posições fundamentais. Já com respeito ao segundo, as coi- da técnica moderna.
sas não são tão fáceis. O filósofo italiano Gianni Vattimo faz Em ambas encontramos o traçado geral de um mesmo per-
uma elucidação suficiente do sentido dessa palavra alemã. Ao curso: aquele do esforço para retornar às primeiras intuições,
verter Verwindung para o italiano, ele recorre ao verbo rimet- ao início primevo do filosofar, fazendo-o, porém, de modo
tersi, ou seja, “convalescer”, “restabelecer-se”, “curar-se”, para ainda mais radical e originário do que o fizeram os próprios

cem
denotar um “ultrapassamento que, na realidade, é reconheci- gregos. Trata-se de uma monumental tentativa de retomar, em
toda sua plenitude e gravidade, a pergunta eterna pelo sentido

=
mento de vínculo, convalescença de uma doença, assunção de
responsabilidade”. do Ser: por que existem os entes em seu ser, e não antes o Nada?
Trata-se, portanto, de uma superação que só pode ser feita Para tal empreendimento, concorre o conceito fundamen-
de dentro da história da metafísica, pelo diálogo agonístico tal de diferença ontológica entre ente e Ser, assim como o conceito
(Gesprich, mas também Streit), na forma de Auseinandersetzung de ser-o-aí, o ente que entende ser.
(discussão, porém, no sentido de colocar-se um fora do outro, 3

2 A palavra “verdade” é a tradução do termo grego alétheia, formado pelo pre-


1 Vattimo, Gianni. “Dialettica, differenza, pensiero debole”, p. 28 (tradução fixo de negação “a” e a palavra lethéin (véu, velar, ocultar). Significa, portanto,
do autor). em sentido literal: desvelado, desocultado, sem véus.

42, 43
Esses conceitos são mobilizados com o intuito de resgatar Se a filosofia do século XX e seus caminhos futuros não
do esquecimento a pergunta pela verdade e pelo sentido do podem ser compreendidos sem Heidegger, também não podem
Ser, relegada na história da metafísica em prol de uma reflexão sê-lo outras esferas determinantes da cultura ocidental, pois as
que concerne apenas ao ser do ente em sua totalidade — ou contribuições do filósofo espraiam seus efeitos em domínios tão
seja, da filosofia metafísica interpretada por Heidegger como diversos quanto os da epistemologia, da teoria da ciência, da lógica,
onto-teo-logia, característica do pensamento ocidental desde da filosofia da linguagem, das ciências da natureza, das ciências
Platão e Aristóteles, que atravessa a Idade Média e mantém humanas, da psicanálise e da estética, poderosamente estimuladas,
sua vigência, quanto ao essencial, ainda no mundo moderno desafiadas e fecundadas pelos questionamentos de Heidegger.
e contemporâneo. Até mesmo a reflexão sobre a extensão e os limites de nos-
Por certo, a filosofia contemporânea seria inteiramente outra so próprio horizonte cultural — assim como a abertura para
sem Heidegger, e entendê-la constitui uma tarefa que não pode um diálogo possível com o Outro, com culturas diferentes da
prescindir, em absoluto, de uma leitura cuidadosa de sua obra. Eis nossa — precisa ser empreendida a partir de Heidegger, com
por que a literatura secundária sobre Heidegger tem dimensões Heidegger, ainda que deva sê-lo, em determinados aspectos,
inusitadas. A compreensão adequada do mundo atual, com suas também contra Heidegger. Esse mesmo “contra” faz parte do
crises e seus dilemas, bem como a reflexão sobre o seu futuro diálogo conflitivo, Streit (embate) e Gesprách (conversação), que
problemático, simplesmente não devem abrir mão de um sério animam a atividade autenticamente filosófica.
enfrentamento com Heidegger.
Nesse sentido, até mesmo o funesto envolvimento do
filósofo com o nazismo assume uma função importante no A LINGUAGEM E O CAMINHO DO NOVO PENSAR

diagnóstico de nosso presente. Trata-se, por certo, de um erro


deplorável de avaliação política, mas que só pode ser produ- Com Heidegger, a linguagem filosófica é explorada nos limites
tivamente enfrentado em patamar crítico compatível com o extremos de suas possibilidades e de seus recursos expressivos.
conjunto do pensamento de Heidegger e só pode ser suficien- Para ele, a linguagem é tanto a “morada do Ser” quanto o âmbito
temente compreendido a partir de sua filosofia da técnica. É em que o homem habita o mundo. Portanto, levar a linguagem
um erro que mostra até onde pode conduzir a tentativa de aos seus limites últimos constitui exigência de um pensamento
compreender a essência da moderna tecnologia, sem limitar- em busca de articulação, uma experiência radical de recupe-
-se aos quadros explicativos marcados por uma concepção ração pensante das autênticas e originárias precondições do
instrumental e antropocêntrica. logos filosófico.

44. 45
Por causa disso, este livro, em várias passagens, terá que Por isso mesmo, (reJaprender a pensar, tal como Heidegger
seguir de perto as pegadas de Heidegger, em um percurso em se propõe a fazer, ao responder à pergunta “o que significa pen-
que o filósofo põe o pensar a serviço da linguagem. Nesse sar?”, é um propósito que só se atinge em diálogo com a poesia,
caminho, deverá retomar, também terminologicamente, as em uma recuperação da essência da linguagem, ofuscada pela
considerações de Heidegger sobre a linguagem, suas transições hegemonia metafísica na história do pensamento.
entre o grego e o alemão, às quais nosso trabalho aduzirá ainda A despeito da obsessão atual pela filosofia da linguagem
o português. Contudo, tais passagens limitar-se-ão ao impres- (Sprachphilosophie), Heidegger considera que ainda não estamos
cindível para a compreensão adequada das posições filosóficas familiarizados com a atmosfera vital do pensamento autên-
do pensador da Floresta Negra. tico, ainda não aprendemos (ou desaprendemos) a pensar,
Assim é que a questão da linguagem tem status privile- porque não habitamos a essência po(ijética da linguagem,
giado nas reflexões de Ser e tempo, tanto naquelas que dizem como clareira do Ser.
respeito a logos e legein, como também à dimensão Existenzial da O logos, essa habitação que a linguagem oferta ao pensa-
Rede (palavra). Além disso, grande parte do pensamento da his- mento, constitui o elemento que reúne o filosofar e o poetar.
tória do Ser constitui-se como uma retomada da proximidade Reunir é coligar, vincular, também corresponder: são verbos
e da distância entre filosofia e poesia, entre o logos poético e o que evocam Eros, mas também lembram a atividade de reco-
logos filosófico, e em seu interior há um papel essencial reser- lher, a ação de legein (coligir, coligar), própria do logos (verbo,
vado à tematização da linguagem. Sendo assim, uma introdu- palavra, razão). Mesmo a doutrina do pensamento como lógica,
ção à filosofia de Heidegger não poderia deixar de considerar ou racionalidade lógica, deriva dessa acepção originária de
o paradoxo da distância próxima entre o pensar e o poetar, legein como ligar, coligir, de modo que a síntese do pensamento
essencialmente lastreado na experiência da linguagem, como no juízo é subsidiária da ligação essencial operada pelo logos,
um de seus estágios necessários. como elemento linguageiro do pensamento.
Uma correspondência entre filosofia e poesia foi experi- O monopólio do pensar exercido pela racionalidade lógica
mentada historicamente na era pré-socrática e da tragédia ática, é um confisco; da mesma maneira, a theoria não é o monopó-
experiência com a qual Heidegger pretende reatar, tornando-a lio da filosofia. Pelo contrário, o pensar da lógica é um modo
ainda mais radical e originária do que aquela que foi vivenciada derivado do pensamento produzido na história da metafísica,
na Grécia. Pensar e poetar são duas modalidades de dispor o a partir do esquecimento da verdade do Ser e da essência do
pensamento a serviço da linguagem, duas maneiras de habitar pensar como correspondência:
po(ieticamente a linguagem.

46
47
A caracterização do pensar como theoria e a determinação do essência, a fuga da correspondência ao chamamento do Ser em
conhecer como postura “teórica” já ocorrem no seio da interpre- seu desvelar-se pelo discurso humano éo sinal de que, a despei-
tação “técnica” do pensar. É uma tentativa reacional, visando salvar to de toda ciência e filosofia, ainda não aprendemos a pensar.
também o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do A obliteração dessa ausência pela agitação no domínio da
agir e do operar. Desde então a “filosofia” está constantemente na práxis e pelo palavrório no setor da cultura, pela preocupante
contingência de justificar sua existência em face das “ciências”. hegemonia anônima da opinião pública e do politicamente cor-
Ela crê que isso se realizaria da maneira mais segura, elevando-se reto constituem, por outro lado, a necessidade constringente,
ela mesma à condição de uma ciência. Esse empenho, porém, é a penúria que suscita o thaumatsein (espantar-se, admirar-se),
o abandono da essência do pensar. A filosofia é perseguida pelo no qual germina o autêntico perguntar filosófico: como ocorre
temor de perder em prestígio e importância, se não for ciência. que, na era da onipotência da tecnociência, ainda não sejamos
O não ser ciência é considerado uma deficiência, que é identificada capazes de pensar o que é mais digno de ser pensado, a saber,
com a falta de cientificidade. Na interpretação técnica do pen- o Ser dos entes em sua verdade?
sar, abandona-se o Ser como o elemento do pensar. A “lógica” é a
sanção desta interpretação que começa com a sofística e Platão.” Se, todavia, a verdade do Ser tornou-se digna de ser pensada para
o pensar, deve também a reflexão sobre a essência da linguagem
Com isso, também a linguagem retraiu-se de seu elemento, alcançar um outro nível. Ela não pode continuar sendo apenas
desgarrou-se da experiência originária do logos e legein. Nessa pura filosofia da linguagem. É somente por isso que Ser e tempo
retração, o pensar quedou-se fora de sua atmosfera vital, aliena- contém uma indicação para a dimensão essencial da linguagem e
do dela, desalojado de seu âmbito originário: a linguagem, que toca a simples questão que pergunta em que modo de ser, afinal,
é a morada do Ser, recusa-nos o acesso pensante à sua essência, a linguagem como linguagem é, em cada situação.!
na medida em que não mais correspondemos à verdade do
Ser como desvelamento (alétheia), ao qual pertence constitu- Se, nessas condições, o pensamento se esquiva à corres-
tivamente a linguagem como desocultamento dos entes no e pondência com a essência da linguagem, ele está fadado a
pelo discurso. corresponder à transformação técnica da natureza em fun-
Nesse sentido, pensar é corresponder pela palavra à ver- do de reserva, a reportar-se sempre unicamente à essência
dade do Ser. Mas a subtração da linguagem em relação à sua metafísica do ser dos entes como vontade de poder e à infinita

3 Heidegger, M. “Sobre o humanismo”, p. 348. 4 Idem, ibidem, p. 350.

48 49
reprodutibilidade do cálculo como versão contemporânea do a filosofia tardia de Heidegger — em que o sentido de sua refle-
“eterno retorno do mesmo”, antecipado por Nietzsche. xão seria profundamente alterado, invertendo-se de Ser e tempo
Uma vez que a cibernética tornou-se a figura contemporá- para Tempo e Ser e deslocando o vetor inicialmente dado pela
nea da metafísica, a interpretação técnica do pensar sequestra análise existencial do ser-o-aí para a temporalidade própria
a linguagem no âmbito do querer e do fazer humanos, como do sentido do Ser.
instrumento dócil para garantir o domínio integral sobre a Por esse motivo, elucidar o significado dos conceitos,
totalidade dos entes. A destruição e a superação da metafí- temas e problemas de Ser e tempo é relevante não apenas para
sica têm como condição uma retomada da experiência viva da uma compreensão interna da analítica existencial, mas tam-
essência da linguagem, como o lugar da verdade, bem como bém do pensamento de Heidegger em seu conjunto. A seguir,

do misterioso relacionamento entre esses parentes próximos, a apresentamos uma explicitação de elementos principais desse
filosofia e a poesia, que, contudo, habitam as montanhas espi- livro, já com vistas ao desenvolvimento ulterior da filosofia
rituais mais distantes uma da outra. Daí por que a abertura de heideggeriana.
Heidegger para um novo pensar passa necessariamente pelo
caminho da linguagem, tal como sugere o título de uma de suas Ontologia fundamental
obras: Unterwegs zur Sprache (A caminho da linguagem). Ontologia fundamental nomeia a principal característica
de Ser e tempo: é a tentativa de desconstrução da metafísica
e de elaboração da analítica da finitude, tendo como ponto
SER E TEMPO: CONCEITOS E TEMAS de partida uma fenomenologia hermenêutica das estruturas
fundamentais do ser-o-aí.
Ser e tempo, publicado em 1927, é a obra capital do período O ponto de confluência dessas tarefas é enunciado já na
conhecido como a filosofia da juventude de Heidegger. O livro, epígrafe do livro — tão incisiva quanto o título e que indica, de
todavia, ocupa um papel bem mais central do que esse em sua modo conciso, o centro nevrálgico do pensamento de Hei-
trajetória, uma vez que é retomado por ele em todos os momen- degger: a pergunta pelo sentido do Ser. A raiz dessa pergunta
tos posteriores de seu pensamento. está plantada no solo do pensamento grego. Heidegger recorre
Pode-se mesmo considerar que o programa completo de a uma citação de O sofista, de Platão, para enunciá-la de modo
. Ser e tempo já contemplava, em seu interior, a necessidade paradigmático: “Uma vez, pois, que nos encontramos em difi-
de determinada inflexão em seu percurso, de uma viravolta, culdade, caberá a vós explicar-nos o que entendeis por este
que abriria caminho para o esforço de meditação que constitui vocábulo “ser”. Evidentemente essas coisas vos são, de há muito,

So.
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familiares. Nós mesmos, até aqui, acreditamos compreendê-las, adequadamente formulada. Daí a suspeita de que nem Platão,
e agora nos sentimos perplexos”.” nem a história da filosofia inteira ofereceram uma resposta
Ao longo de sua história, a filosofia ocidental preocupou-se pertinente à pergunta pelo sentido do Ser. E isso ocorre porque
sempre com o Ser, de modo que seria razoável esperar que, de a pergunta não foi propriamente formulada, o questionamento
há muito, estivéssemos familiarizados com o significado desse não foi suficientemente pensado.
termo. Perguntas concernentes aos predicados mais gerais do Essa perplexidade oferece a Ser e tempo o seu ponto de par-
ser (categorias) ou à distinção entre o ser e o devir, a realidade e tida e a sua ocasião: é preciso perguntar novamente pelo sentido
a aparência, sempre constituíram o foco de atenção e meditação do Ser, e a elaboração concreta dessa questão é o propósito da
da filosofia. obra de Heidegger. Para tanto, é imprescindível despertar de
Como se explicaria, então, que Platão, um dos maiores íco- novo a compreensão prévia para o sentido da pergunta — isto
nes da filosofia, tenha delegado à voz de um sofista a constata- é: que sentido tem a pergunta pelo sentido do Ser?
ção perplexa de que não estamos familiarizados com aquilo que Ontologia é a disciplina filosófica que estuda o ser dos
pensamos quando empregamos a palavra “ser”? Embaraçoso é entes. A palavra “ente” traduz o termo grego onta, que designa
constatar que até agora acreditávamos sabê-lo, mas, em verdade, entidades, aquilo que é ou que existe. Ontologia, portanto, é
carecemos de uma explicação que nos livre da dificuldade de não ciência ou estudo metódico (logia) daquilo que é — o ente —,
compreender o que propriamente pensamos quando dizemos “ser”. visando determinar sua essência ou seu ser. A busca pelo sen-
Assim, já estaria em Platão a suspeita de que a filosofia des- tido da pergunta constitui já uma modalidade de questiona-
conhece o que é pensado sob o termo “ser” — ainda que seja o mento ontológico, pois o que se tornou problemático não é
mais empregado ao longo de sua história. Escândalo e pasmo, outra coisa senão o sentido do Ser.
portanto, uma pedra de tropeço. Ser e tempo é uma das tenta- A meta seguinte consiste em interpretar o tempo como
tivas mais radicais da filosofia contemporânea para retomar possível horizonte para toda e qualquer compreensão do Ser.
essa pergunta em toda sua envergadura. Saberíamos nós o que Consiste, então, em retomar a pergunta pelo sentido do Ser com
Platão confessava desconhecer? A resposta de Heidegger é: não, plena consciência da relevância da própria pergunta, tendo o
de modo algum. tempo como possível limiar de compreensão e resposta. Como
Ora, qualquer resposta pertinente só pode ser dada e, sobre- o próprio enunciado demonstra, a pergunta faz sentido.
tudo, compreendida quando a pergunta a que ela responde é A próxima questão diz respeito à necessidade da pergun-
ta. Por que suscitá-la, sobretudo por que retomá-la no ápice
5 Platão. “Sofista”, p. 163, 244 a. da modernidade? Responder a ela implica, ao mesmo tempo,

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elucidar a razão pela qual a ontologia de Ser e tempo é designada ciência se ocupa), ou revolução científica, enquanto as problema-
como fundamental. A justaposição dos dois termos (ontologia tizações periféricas são aquelas que surgem em períodos de
fundamental) remete às afinidades eletivas entre o empreendi- vigência normal de certo paradigma.
mento filosófico de Heidegger e a crise das ciências europeias. Não se pode negar que, desde o início do século passado,
Urge retomar essa pergunta pela óbvia razão de que falta vivemos uma prolongada crise de paradigmas nas ciências for-
para ela uma resposta — o que talvez seja um indício de que, mais, naturais e humanas. Tanto nas ciências quanto na filosofia
antes de tudo, a própria pergunta tenha faltado. Formulá-la ade- o horizonte de compreensão para o sentido do Ser encontra-
quadamente é a tarefa assumida por Heidegger em Ser e tempo. -se nublado. Para esse ofuscamento, não encontraremos saída
A questão se impõe, sobretudo, em função da crise das enquanto não respondermos às questões ontológicas fundamen-
ciências no século XX, tal como fora diagnosticada por Hus- tais, incidentes sobre o estrato teórico dos conceitos básicos das
serl, e que não cessou de se aprofundar ao longo da história. ciências e da filosofia modernas. Esse é um dos legados mais
Toda ciência tem como base uma “infraestrutura” conceitual, importantes recebidos por Heidegger de seu mestre Husserl.
referida a um domínio de objetos dos quais extrai um saber Ninguém discute a importância das ciências em nosso mun-
sistemático, por meio de uma metodologia de investigação que do, mas não há dúvida, também, que nenhuma ciência particular
inclui pautas de observação, controle e experimentos, discri- — empírica ou formal — pode dar uma resposta para a pergunta
minando assim um regime de verdade. pelo ser dos entes com os quais se ocupa porque toda normali-
Uma crise científica pode afetar, por exemplo, a periferia do dade científica assume como dado um determinado domínio de
conjunto teórico ou então a metodologia e seus procedimentos. entidades que constitui seu objeto de investigação. As ciências
Mas pode afetar também o “núcleo duro” de uma ciência, aque- ocupam-se dos entes que correspondem a seus conceitos — e
la base de conceitos fundamentais que designam as entidades mais nada. Elas diferem do senso comum ou de um mero saber
(onta) ou o campo de objetos de investigação. Exemplos disso do provável porque suas teorias são formadas por juízos com
”» » é ”» é
são conceitos como “extensão”, “matéria”, “movimento”, “força”, pretensão de universalidade e de necessidade objetiva.
“massa » “espaço”, “tempo”, número”, “quantidade”, “grandeza”,
”» » é » “é » ”»
À ciência se ocupa com os entes; não se pergunta pelo
“átomo”, “genes”, “instintos” e “pulsões”. Questionar tais concei- estatuto de ser das entidades com as quais opera, mas assume
tos é algo que afeta o substrato ontológico e desestabiliza a com- tacitamente um sentido para seus conceitos, objetos e rela-
preensão de ser vigente em determinada disciplina científica. ções — um sentido que pressupõe um entendimento irrefletido
Esse tipo de problema chama-se crise de paradigmas (modelo de Ser como presença (Vorhandenheit, ou presentidade, no léxico
ou campo conceitual que determina o ser dos entes de que uma heideggeriano).

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O fenômeno mais importante na crise das ciências con- representáveis, só que inacessíveis ao olhar, sendo apreensíveis
temporâneas é que ela afeta a infraestrutura ontológica destas, apenas pela especulação ou a contemplação teórica.
o que evidencia a necessidade e a urgência de uma retomada Com Platão, por exemplo, podemos dizer que a essência
da pergunta pelo sentido do Ser. Essa pergunta foi silenciada (o conceito) de cão nada tem a ver com qualquer cão deter-
pela ontologia metafísica, na medida em que esta sempre se minado, nem com nenhuma raça canina existente no mundo
dedicou às condições do ser dos entes, em sua totalidade, e não ou na imaginação. Ela consiste no elemento ideal (eidos, em
aos sentidos do Ser como tal: razão pela qual sempre se man- grego; idea, em latim), presente em todo cão empírico e que
teve em um patamar meramente ôntico, ignorando a diferença o caracteriza como tal — e não como um gato —, mas que não
ontológica, mais originária, entre ente e Ser. é perceptível aos sentidos, apenas discernido pelo intelecto.
A essência dos entes não pode ser percebida pelos senti- Platão deu a isso o nome de ideia — entidade de um mundo
dos, tampouco ser identificada com nenhum fenômeno físico. (metafísico) puramente inteligível.
Essências são entidades ideais, apreensíveis por intuição ou A essa diferença entre os entes e o ser dos entes em sua
conceito e, em contraste com o universo físico, são de natureza totalidade, Heidegger acrescenta outra, cuja função é axial no
metafísica (meta ta physika: além da física). Embora não presen- contexto de Ser e tempo: a distinção entre ôntico e ontológico, na
tes no âmbito natural, intramundano, as essências ainda são qual o termo ontológico remete à pergunta pelo sentido do Ser
entes. Alguns exemplos são as ideias de Platão, as causas de enquanto Ser, e não ao ser dos entes em geral. A essa diferença
Aristóteles, Deus como ens supremum na filosofia medieval, a ontológica corresponde, no léxico de Ser e tempo, a diferencia-
substância pensante na metafísica de Descartes ou as môna- ção conceitual entre Existenziel (existencial-ôntico) e Existenzial
das em Leibniz. A metafísica constitui, portanto, um tipo de (existencial-ontológico).
ontologia que se pergunta pelo ser dos entes, por sua essência, Existencial-ôntico é um predicado dos entes como tais.
e responde a essa pergunta com a identificação de um ente ou O gênero mais elevado desse tipo de atribuição são os conceitos
um gênero supremo de entes metafísicos, cujo estatuto cabe gerais, que podem ser predicados de todos os entes que figuram
à filosofia explicitar. em um discurso e para os quais Aristóteles cunhou o nome
Sem dúvida, temos aqui uma diferença entre o plano das de categorias. A substância e os atributos essenciais podem ser
entidades naturais ou físicas e o âmbito próprio — também ele considerados, com outros conceitos do mesmo grau de gene-
ôntico — de entes cujo modo de existência difere dos naturais. ralidade, gêneros supremos do Ser.
Essa diferença circunscreve a região da metafísica — também Diferentemente do existencial ôntico, limitado ao plano
as entidades intelectuais (metafísicas) existem como entes dos entes, o existencial-ontológico remete ao plano do Ser, em

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sua diferença para com os entes. O termo ontológico não diz renovada para a relevância desse questionamento. Como em
respeito às características particulares dos entes existentes ou toda crise, há uma pressão difusa por julgamento e decisão.
possíveis, mas designa o fundamento originário que os torna Ela se apresenta, então, como urgência de decisão quanto ao
o que eles essencialmente são, ou seja, que os constitui em seu sentido da própria crise, já que não temos a menor dúvida a
ser próprio. respeito da necessidade constringente com que as ciências se
Ea partir dessas noções que se explicita a temática da diferen- impõem em nosso mundo. Uma problematização dessa crise,
ça ontológica tal como a pensa Heidegger. Os diferentes campos porém, não pode ser levada a cabo em outra parte e de outra
de objetos investigados pelas ciências particulares, com suas maneira senão como recolocação da pergunta pelo sentido do Ser,
metodologias próprias e seus específicos regimes de verdade, na medida em que a desestabilização da base ontológica das
são domínios ônticos (de entidades). São formados, por exem- ciências contemporâneas atesta o esgotamento das virtualida-
plo, pelo número e pelas figuras, pela matéria e o movimento, des teóricas da metafísica tradicional.
pelos astros, a natureza e a composição dos elementos quími- Trata-se de carência que afeta os fundamentos e que, por
cos, as forças e energias, a vida em suas diferentes formas, a isso, exige uma ontologia fundamental, não ligada apenas aos cam-
sociedade, a política, a psique, as pulsões, para nos limitarmos pos especiais de entidades assumidas como objetos das ciên-
a algumas indicações gerais. cias particulares (posto que elas se tornaram insubsistentes em
Essas regiões de entes formam o conjunto que denomi- razão da crise e seu estatuto se encontra permanentemente
namos efetividade (Wirklichkeit), ou seja, o mundo dos objetos em questão), mas ao âmbito geral das próprias modalidades
realmente existentes ou possíveis. Eles seriam, no sentido de de Ser dessas entidades.
Heidegger, entes intramundanos. As questões que os tomam por Em resposta a essa urgência, a ontologia de Ser e tempo está
objeto são, portanto, perguntas ônticas, as quais se limitam ao voltada para a meditação filosófica a respeito do sentido do Ser,
domínio dos entes em sua efetividade. Nesse sentido, o homem visando não apenas ao ser dos entes, tais como se apresentam
é um ente intramundano, como os outros animais, as plantas, enquanto fenômenos, mas ao Ser enquanto tal. Ora, essa tarefa
os minerais, os números, as figuras e os seres fictícios. exige um ponto de partida absolutamente novo, uma vez que, na
A pergunta sobre o sentido do Ser transcende esse plano história da filosofia ocidental, o Ser sempre foi pensado apenas
ântico (relativo aos entes), pois é da resposta a ela que depende a em relação aos entes, sempre a partir da presença das coisas que
resolução das dificuldades epistemológicas que afetam as ciências. são, nunca sendo levadas em conta as diversas modalidades em
A crise contemporânea das ciências torna urgente uma que os entes se dão e se mostram, nunca sendo considerados a
recolocação da pergunta ontológica, com uma sensibilidade instância ou o limiar originário desse dar-se e mostrar-se.

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A pergunta pelo sentido do Ser não pode partir aleatoria- originária e faz sentido. É também o único que tem interesse
mente de qualquer ente, uma vez que neles o dar-se e o mostrar- na pergunta pelo Ser (e primeiramente pelo sentido de seu
-se, como tais, não são problematizados. Ela deve partir de um próprio ser).
ente especial, no qual e a partir do qual seja possível um acesso Daí resulta que o ser-o-aí é um ente de natureza essencial-
ao Ser e ao seu sentido, ao limiar e à clareira de onde provêm mente ontológica, aberta e voltada para o Ser. É dessa instância
o dar-se e o mostrar-se. que deve nascer o impulso para uma retomada da preocupação
Essa ontologia tem de ser orientada por um vetor, em uma filosófica com o Ser — e não apenas sobre o ser dos entes —,
determinada direção, a saber: por um entendimento prévio capaz de liberar novamente o acesso às intuições fundamentais
do Ser como tal (para designá-lo, Heidegger recorre à for- que inspiraram a compreensão originária de logos e, com isso,
ma arcaica de sein, ser, em alemão: seyn), do qual procedem constituíram nossa identidade cultural.
os entes. Ela tem de abrir-se às suas diferentes modalidades, É esse o sentido mais próprio da expressão destruição
descerradas pela pergunta por seu sentido. A partir de onde, da metafísica. A ontologia fundamental heideggeriana não
ou de que, seria possível obter esse acesso privilegiado aos perfaz um salto para fora da filosofia, tal como a conhece-
modos de Ser (Seyn)? mos e a praticamos, nem constitui uma recusa da tradição
Para o resgate das intuições e experiências originárias filosófica ocidental. Ao contrário, trata-se de prosseguir no
nas quais o logos (em grego: “verbo”,
”»
“pensamento”,
»
“razão”; caminho dessa tradição, que também determina o futuro,
ratio, em latim), pela primeira vez no Ocidente, enunciou-se já que se trata ainda e sempre de perguntar-se pelo sentido
como linguagem, é necessário destruir as bases em que do Ser:
se consolidou a ontologia metafísica tradicional. Esta, ao tra-
tar do Ser e de seu sentido, privilegiou à categoria de essência Este caminho para a resposta à nossa questão não representa

à de existência, orientou o pensamento para a revelação do uma ruptura com a história, nem uma negação da história, mas

que são os entes, em seus atributos e predicamentos essen- uma apropriação e transformação do que foi transmitido. Tal
ciais, mas esqueceu-se da diferença entre o ser dos entes e apropriação da história é designada com a expressão “destrui-
o próprio Ser. ção”. O sentido dessa palavra é claramente determinado em Ser
Invertendo o sentido vetorial, Heidegger mostra que e tempo. Destruição não significa ruína, mas desmontar, demo-
a reflexão filosófica sobre o ser dos entes deve necessaria- lir e pôr de lado - a saber, as afirmações puramente históricas
mente partir do ser-o-aí, na medida em que, entre todos sobre a história da filosofia. Destruição significa: abrir nosso
os entes, este é o único para o qual a compreensão de ser é ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente

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nos inspira. Mantendo nossos ouvidos dóceis a essa inspiração, ente que, em seu modo de existir (em sua constituição ôntica),
conseguimos situar-nos na correspondência. mantém uma relação essencial com o Ser. De nós mesmos parte
a ontologia fundamental, na medida em que existimos tanto
Ser-o-aí como Da quanto como sein.
Para Heidegger, ser-o-aí (Dasein) deve ser descrito em suas Dasein é uma palavra composta pelo verbo “ser” (sein) e pelo
estruturas ontológicas, e essa descrição constitui a tarefa de advérbio “aí” (da). Em acepção existencial-ontológica, o Dasein é
uma fenomenologia que parte do atributo essencial desse ente: ente a cuja essência pertence o ser; que existe (é) enquanto aí — no
sua essência consiste em ex-sistere: existir, subsistir, suster-se, aberto, em abertura para o Ser. Essa é a condição ontológica do
colocar-se de pé, manter-se na exterioridade, na abertura. homem como Dasein, como ser-o-aí. Nesse sintagma, “da” não
Escreve Heidegger, em Ser e tempo: deve ser tomado em acepção espacial, como se indicasse uma
localização, um “aqui” contraposto a “lá” ou “acolá”. Em Ser e
A palavra grega phainomenon, à qual remete o termo “fenômeno”, tempo, o “aí” significa uma dimensão de exterioridade, como a
deriva do verbo phainestai, que significa: aquilo que se mostra, expressa pelo prefixo latino ex — em “expelir” ou “extirpar”.
o manifesto. Phainestai é o infinitivo de phaino: trazer ao dia, colocar O Seréa contrapartida ontológica do “da” na fórmula Dasein.
à luz. Phaino pertence à raiz pha — como phos, a luz, a claridade, isto é, Como Dasein, o homem é essa abertura (o homem é, essencial-
aquilo em que algo pode tornar-se manifesto, visível em si mesmo. mente, também esse aí), uma ex-stase: um estar fora de si, junto ao
Devemos reter a significação da palavra “fenômeno”: aquilo que se Ser. Se a ontologia geral concede privilégio teórico à essência em
mostra em si mesmo, o manifesto. Os phainomena, “fenômenos”, relação à existência, Heidegger, ao contrário, pensa o Dasein como
são, portanto, o conjunto daquilo que está ou pode ser trazido à luz ente cuja ex-sistência é ontologicamente fundamental, ou seja, é
e que os gregos, por vezes, identificavam simplesmente com ta onta constitutiva da essência: uma existência contingente, temporal,
(os entes, o ente). O ente, portanto, pode mostrar-se, a partir de si mundana, finita, cujo sentido é ser-para-a-morte.
mesmo, de diversas maneiras, conforme o modo de acesso a ele.? O ponto de partida da ontologia fundamental é um ente a
cuja existência o Ser pertence como elemento, o que explica o
A fenomenologia do ser-o-aí descreve a essencial remissão interesse coetâneo do Dasein pelo Ser, já a partir de seu próprio
ao Ser constitutiva desse ente singular, o homem. Este é um ex-sistere: subsistir, persistir na abertura para o Ser, estar fora
de si. Como Dasein, o homem é ontológica e originariamente
6 Heidegger, M. “Que é isto — a filosofia?”, p. 218. ex-sistência ex-tática. Êxtase é a essência da existência humana:
7 Idem, Sein und Zeit, p. 28, 8 7 (tradução do autor).

62 fa
O homem desdobra-se assim em seu ser de tal maneira que ele é A primazia ontológica do ser-o-aí como existência está
o “aí”, isto é, a clareira do Ser. Este “ser” do aí, e somente ele, possui o fundada no seu interesse na pergunta pelo sentido do Ser.
traço fundamental da ec-sistência, isto significa o traço fundamental A elaboração sistemática dessa pergunta tem a forma de uma
da in-sistência ec-stática na verdade do Ser. A essência ec-stática do análise fenomenológica do Dasein — e não do homem, tal como este
homem reside em sua ec-sistência, que permanece distinta da exis- é geralmente considerado, como sujeito de conhecimento
tentia pensada metafisicamente.* e, ao mesmo tempo, objeto de disciplinas científicas, como
a antropologia, a psicologia, a sociologia ou a biologia. Essa
Por isso Heidegger sugeriu que, em francês, se traduzisse análise fenomenológica considera o ente que compreende sua
Dasein não por être-là (ser-aí), como usualmente era feito, mas relação com o Ser, para quem o Ser importa e dá a pensar, pois
por être-le-lã (ser-o-aí): o homem é o único ente que pode liberar um acesso para o
entendimento do próprio Ser, na diversidade de seus sentidos:'º
A palavra “Dasein” significa, segundo a tradição, ser estar presente,
diante da mão (Vorhandensein), existência. Nesse sentido, fala-se, O título fenomenologia, considerado em seu sentido, é distinto de
por exemplo, das provas para a existência de Deus. Em Sere tempo, designações como teologia e outras desse tipo. Estas nomeiam os
todavia, Dasein é entendido de outro modo. Os franceses também objetos de uma ciência que lhes corresponde, em seu respectivo
não observaram isso inicialmente, razão pela qual eles traduzem teor de coisa (Sachhaltigkeit). “Fenomenologia” nem nomeia o obje-
Dasein em Ser e tempo como être-lã, o que significa: ser/ estar aí e não to de suas investigações, nem é um título que dá nome ao teor da
lá. Em Ser e tempo, o da não significa uma indicação de localização coisa sob investigação. A palavra apenas dá abertura para o como
para um ente, mas deve nomear a abertura na qual o ente pode ser/ da apresentação e tratamento daquilo que deve ser tratado nessa
estar presente para o homem, também ele mesmo, para si mesmo. ciência. Ciência dos fenômenos diz: uma apreensão de seus objetos
O aí (da) para o ser distingue o ser-homem. A adequada tradução de tal modo que tudo aquilo que sobre eles está em discussão tem de
francesa para Dasein teria de soar: être-le-lã.” ser tratado em demonstração e exibição patente direta. Fenome-
nologia é o modo de acesso e determinação exibitório-atestatória

8 Idem, “Sobre o humanismo”, p. 353. Sem dúvida, trata-se de um texto


“tardio”, datado de 1947, mas que, para nossos propósitos, é de importância
10 É importante lembrar que Heidegger diferencia conceitualmente Existenzial,
capital, pois retoma, do ponto de vista da autorreflexão e da autocrítica, todo
que designa o constituinte ontológico essencial do ser-o-aí, e Existenziel, que de-
o programa filosófico de Ser e tempo.
nota o significado usual do existir, seja como predicado distinto da essência, seja
9 Idem, Zollikoner Seminare, pp. 156 s. (tradução do autor). no sentido dos existencialismos ateus ou cristãos contemporâneos de Heidegger.

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do que deve tornar-se tema da ontologia. A ontologia só é possível que ela se coloca diante do problema cardinal: a pergunta pelo
como fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno sentido do Ser em geral. Da própria investigação resultará que
pensa aquilo que se mostra do ser do ente, seu sentido, suas modi- o sentido metódico da descrição fenomenológica é interpre-
ficações e derivados." tação. O logos da fenomenologia do ser-o-aí tem o caráter do
ermeneúein, por meio do qual são anunciados (kundgegeben) para
A fenomenologia é uma analítica do ser-o-aí, tal como a compreensão de ser pertencente ao próprio ser-o-aí o autên-

este se manifesta em sua estrutura ontológica. Por isso é indis- tico sentido de Ser e as estruturas fundamentais de seu próprio

pensável descrevê-lo em seus modos próprios de existência, ser. A fenomenologia do ser-o-aí é hermenêutica, na acepção

sobretudo como se apresenta no cotidiano de seu mundo, originária da palavra, segundo a qual ela designa aquilo de que

para revelar aquelas determinações que não são mostradas se ocupa a interpretação.!?

pela definição tradicional de sua essência — esta é uma deter-


minação metafísica, que deve ser destruída, removida, para Ser-o-aí é o que nos é mais próximo, já que somos nós
que a análise fenomenológica de sua existência possa trazer à mesmos que existimos como tal. Porém, do ponto de vista
luz os elementos ontológicos determinantes de sua estrutura ontológico é também o que há de mais estranho e distante
como ser-o-aí. para nós, quanto ao conhecimento de nossa essência. Para nos
Essa fenomenologia é também hermenêutica, em um sentido aproximarmos reflexivamente desse conhecimento, temos de
muito preciso, que difere do método interpretativo das ciências perguntar pelo modo de ser da existência que somos. Esta é,
da compreensão: em Heidegger, a hermenêutica é uma analí- fundamentalmente, contingência, temporalidade, facticidade
tica da condição Existenzial de um ente que compreende ser, que, (Faktizitát), finitude.
em sentido rigoroso, é compreensão; a fenomenologia deve Ser-o-aí existe no tempo, e a temporalidade (Zeitlichkeit) é
tornar manifesta a dimensão compreensiva como constituinte um componente fundamental de sua estrutura. Isso implica
ontológica do ser-o-aí: que toda compreensão possível de Ser, a partir do Dasein, é uma
compreensão temporal. Por outro lado, se a temporalidade
Na explicitação dada das tarefas da ontologia, surge a necessi- constitui um predicado ontológico originário da sua essência,
dade de uma ontologia fundamental, que tem por tema o ente então o ser-o-aí deve ser mostrado pela análise fenomenoló-
especialmente distinguido, o ser-o-aí, a saber, de tal maneira gica como sendo finito e mortal.

11 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 35,87. 12 Idem, ibidem, p. 37.

66 67
Na terminologia de Ser e tempo, o ser-o-aí é aberto a pos- autêntico, o que é dito se deve haurir daquilo sobre o que se
fala, de
sibilidades indeterminadas de ser, como projeto (Entwurf) lançado tal modo que a comunicação discursiva torne manifesto,
e assim
(geworfen) no mundo, e tem de assumir-se, inclusive em sua possibi- acessível aos outros, aquilo de que se fala naquilo que é
dito. Tal é
lidade mais radical, como ser-para-a-morte. O tempo é o horizonte de a estrutura do logos como apophansis.'
compreensão do Ser pelo ser-o-aí. Correlativamente, todos os elementos
constitutivos deste dão-se como modi da temporalidade originária. Fenômeno significa, em Ser e tempo, “aquilo que em si mesmo
O que Heidegger quer dizer com “análise fenomenológica”? se mostra”, tal como aparece. Phúnomen, em sentido heideggeria-
A palavra “análise” se refere à decomposição do ser-o-aí em suas no, não é sinônimo de “aparência” (Erscheinung), porque esta se
estruturas ontológicas, que ele denomina existenciais-ontológicas, diz em relação ao que nela justamente não se mostra, não aparece.
para diferenciar de todo predicado ôntico, referido unicamente Essa diferença é compreensível para nós, em diversas formul
a-
aos entes. Análise fenomenológica, no sentido originário tanto ções habituais em língua portuguesa, como, por exemplo: parece,
de phainomenon quanto de logos, que, como o traduz Heidegger, mas não é; o que verdadeiramente é, não aparece; as aparências
enga-
é fundamentalmente verbo, discurso. Para ele, todas as outras nam... À ontologia fenomenológica rompe com essa dualid
ade
significações do termo, como lógica, juízo, verdade, razão, fun- metafísica para descrever os modos de ser dos fenômenos que
damento, relação, são derivadas da acepção originária de fala se apresentam como objetos, com suas respectivas estruturas.
(em alemão, Rede). Ligado ao verbo legein, logos é a palavra ou a No léxico metafísico, aparência é a contrapartida de rea-
enunciação que reúne e mostra, no sentido de fazer ver, aquilo de lidade, efetividade. Uma dor de dente é aparência, existe ao
que fala o discurso. O próprio Heiddegger, em Sere tempo, explora modo de sintoma de uma inflamação nervosa: esta, sim, é a reali-
filologicamente essa exegese e autoriza a derivação etimológica dade ou a efetividade, que apenas aparece como dor de
dente.
de “mostrar” e “fazer aparecer” com apoio em logos e legein: Inflamação é a realidade da dor de dente, que, relativamente
a ela, é mera aparência (Schein). Verdadeiro é o discurso
que
Logos, no sentido de discurso, significa deloun, tornar manifesto
manifesta, desvela aquilo de que fala, ou seja, traz à luz,
retira
aquilo sobre o que se discorre no discurso. Aristóteles explicitou
de seu ocultamento aquilo de que se fala.
mais precisamente essa função como apophainestai. [...] O logos
Como legein, o logos é ajuntar, coligar. Nele se colhe e colige
. faz ver (phainestai) alguma coisa, a saber, aquilo sobre o que se dis-
um ente que o discurso manifesta em sua verdade. Desvelar-se
correu; ele o faz ver àquele que discorre (forma média) ou aqueles
do ente em seu ser pelo discurso é o significado originário
ig

de
Eos

que discorrem entre si. O discurso “faz ver” (apo) a partir daquilo
sobre o que se discorre. No discurso (apophansis), enquanto ele é
13 Idem, ibidem, p. 32.

68
verdade como alétheia, o que exibe a ligação essencial entre o Ser-o-aí é esse ponto extremo de onde surge o fio de pru-
ser-o-aí e a verdade do Ser: mo do questionamento filosófico e para o qual este regressa.
Retornar às coisas mesmas é, para Heidegger, a diretriz para
O pôr que recolhe, enquanto logos, pôs tudo, isto é, as coisas pre- uma descrição do Dasein em seu modo de ser, tal como este se
sentes, em seu desvelamento. Pôr é um abrigar. Todas as coisas mostra em sua facticidade, partindo de suas predeterminações
presentes são, assim, abrigadas na sua própria presença, lá onde é ontológicas.
possível ao legein humano ir sempre procurar, especialmente, para
as produzir como coisas presentes. O logos coloca na presença e Predeterminações ontológicas do ser-o-aí
dispõe, isto é, repõe a coisa presente na presença. Presentar-se, entre- Predeterminação denota um elemento mais originário do que
tanto, significa: uma vez manifestado, durar no desvelamento. Ora, um princípio lógico. É um limiar aquém do qual nenhuma
o desvelamento é a alétheia. Esta e o logos são a mesma coisa. O legein análise pode remontar, pois é uma instância ontológica do
deixa a alétheia, o desvelado enquanto tal, ficar disposta-diante-de.!* ser-o-aí no qual radica a própria lógica. Predeterminação é a
anterioridade da existência em relação à essência. A metafísica
Desse modo, Ser e tempo pode ser compreendido a partir da sempre priorizou a essência e a substância em relação aos atri-
tarefa a que se destina: uma fenomenologia das estruturas ontoló- butos acidentais, que são modalidades das primeiras. Ser-o-aí
gicas do ser-o-aí. Para Heidegger, nem a ontologia é uma parte da é ex-sistência contingente, fática.
filosofia, nem a fenomenologia é apenas um método. Ontologia Porque o ser-o-aí existe lançado no Ser, ele carece de defi-
e fenomenologia são a mesma coisa — são a própria filosofia: nição essencial que conferiria finalidade ou necessidade à sua
existência. Porque essa condição consiste em existir no mundo
Os dois títulos caracterizam a própria filosofia, segundo o objeto como um fato irremissível, ela não pode ser explicada ou repor-
e seu modo de tratamento. Filosofia é ontologia fenomenológica tada a nenhuma razão ou fundamento, pois o ser-o-aí é o grau
universal, partindo da hermenêutica do Dasein, que, como analítica zero (infundado) de toda compreensão e explicação possível.
da Existenz, fixou a extremidade do fio condutor de todo questiona- Essa contingência é também originária, é a facticidade do ser-
mento filosófico no ponto a partir de onde este questionar irrompe -O-aí, decorrente de sua condição de projeto lançado (geworfener
(entspringt) e em direção ao qual ele reverbera (zuriickschlágt).! Enwurf) no ser como ec-sistência. Sua essência consiste em inde-
finidas possibilidades de ser. Como poder-ser, ele é essas mes-
14 Stein, E. Compreensão e finitude, p. 12; citação ligeiramente modificada. mas possibilidades (Heidegger dá a isso o nome de Zu-Sein: para
15 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 38, g Ze ser), inclusive a mais extrema de todas elas: a possibilidade da

70
7
impossibilidade, de não atender seu poder-ser, também de deixar da condição Ôntica de Zuhandenheit, os entes vêm ao nosso
de ser, ser-para-a-morte, outra determinação originária do ser-o-aí. encontro como entes geradores, coisas das quais nos servimos
O mundo não é a totalidade dos objetos de representação, para criar outras coisas e, por causa disso, estas são denomina-
atuais ou possíveis; o mundo constitui o ser-o-aí, como das Zeug: trata-se do dispor de um instrumento útil para fazer
a ambiência no interior do qual transcorre sua existência coisas, ferramenta com que fazemos, produzimos, geramos
irremissível, em diferentes planos de relação. É no mundo que outras coisas. Portanto, nessa acepção, o termo Zeug significa
o ser-o-aí pode ser como um si próprio ou não ser como um si tanto “coisa” como “gerar” (nesse caso, na forma verbal: zeugen).
próprio, permanecendo na inautenticidade. Assim, em Werkzeug (ferramenta) temos uma coisa, que, ao lidar
com ela, geramos ou produzimos outras coisas. Já no caso de
Ser-no-mundo e ser-com Spielzeug, defrontamo-nos com uma coisa com a qual brincamos.
Intramundano, o ser-o-aí existe desde sempre em comércio Não se trata aqui de relação teórica, objetivante, mas de
com os outros entes, em um relacionamento que pode ser: lida pragmática. Produzir é, etimologicamente, producere: con-
a» Objetivo: é o plano da relação entre sujeito e objeto, duzir diante de, trazer à frente — como téchne (técnica), em sua
no qual o mundo é disposto ou coloca-se diante de nós como significação originária, está ligada à poiésis (produzir, criar),
universo re-presentado. Nesse sentido, o mundo é a totalidade dos pois é também uma modalidade de desocultar, trazer à luz,
objetos presentes (Vorhanden) para um sujeito do conhecimento. revelar. Nosso comportamento com os utensílios é trato, não
Representar é reapresentar: dispor objetivamente os entes para a cognição. Eles exigem um saber próprio do lidar, são de trato
apreensão teórica, de modo a extrair deles um saber científico, relativamente mais fácil ou mais difícil. Tocar um violão, por
que enseja controle e disponibilização para operações técnicas. exemplo, não exige um conhecimento do processo de cons-
b» Trato ou lida (Umgang): diferentemente dos objetos do tituição do instrumento, nem de sua história, nem necessa-
conhecimento, lidamos com coisas que nos defrontam — como riamente de teoria musical; brincamos com brinquedos, ou
os utensílios — e suscitam perguntas como: “Para quê?”, “Com voamos em aeronaves, sem manter com essas coisas nenhum
que finalidade?”. relacionamento cognitivo aprofundado.
Seu modo de existir não é o da presentidade (Vorhandenheit). c» Relação ética: engajamo-nos com certos entes em um
Essas coisas se dão a nós no vetor de sentido da Zuhandenheit relacionamento que não é nem o de cognição nem o de lida
— termo que designa aquilo que está à mão, não simples- prático-instrumental, mas uma relação pessoal, ética. Essa
mente como objeto presente, mas como entidade que tem relação não se limita à que estabelecemos com os outros, mas
a condição de utensílio. No modo de desvelamento próprio está também ontologicamente vinculada à relação que criamos

72 73
R A
o

conosco, a um tipo originário de cuidado de si, de préstimo e modalidades intramundanas do ser-o-aí - ou seja, o plano do
cura das possibilidades sempre abertas que constituem nossa existên- trato com os outros entes. Sua contrapartida fenomenológica
cia. Existir significa, em sentido radical, cuidar de poder ser
destaca o ser-em (Sein-in), com o acento deslocado do polo “no
no mundo, que é também (e não menos essencialmente) ser-
mundo” para o modo do “ser-no” — para analisar de forma feno-
-com-os-outros. menológica como esse ente se instala originariamente em sua
Ser-no-mundo é, antes de tudo, abertura (Erschlossenheit),
condição de ser-no-mundo.
estar aberto para a mundanidade (Weltlichkeit), nos planos da
Ser-o-aí é essencialmente temporalidade (Zeitlichkeit). Mas
relação cognitiva, tecnocientífica, é lidar com as coisas, manter também é ser ao modo da abertura — abertura para seu próprio
um relacionamento com elas enquanto utensílios (Zuhandenheit)
ser e para os demais entes que, como ele, habitam o mundo.
ou, enfim, relacionar-se com os outros como pessoas, em um Ser-em se mostra como transparência a si, como aí (da).
modo de ser-com, de compartilhar (mit-sein).
Três são as modalidades originárias dessa abertura — ou
Cabe à fenomenologia a tarefa de descrever a mundani- Os existenciais, que denotam as estruturas fundamentais do
dade como elemento constitutivo do ser-lançado no mun-
ser-o-aí como ser-em:
do. O poder-ser é indefinido, mas não infinito. Temporal, ele
a» Estar disposto, afinação (Befindlichkeit): O ser-o-aí se encon-
implica finitude e possibilidade da impossibilidade, de não tra no mundo em determinadas disposições e estados: ins-
ser. Por isso, o ser-o-aí é pré-ocupação, cuidado com
os entes talado em um lugar (em São Paulo, por exemplo); afinado
intramundanos, cura do mundo. Não há ser-o-aí sem mundo, nessa ou naquela modulação do afeto (alegre ou triste, por
nem mundo sem ser-o-aí. É nesse sentido que a fenomeno- exemplo). A abertura para o mundo implica sempre um esta-
logia existencial de Ser e tempo é também uma ética originária
do de ânimo, não um tipo particular de sentimento, como
do cuidado de si e do cuidado do mundo. É nessa condição
estado psicológico determinado, mas um tônus afetivo geral,
que se ancoram as duas possibilidades de ser que mais profun- um modo de viver o relacionamento com o mundo em suas
damente penetram na raiz da facticidade: o existir autêntico,
diferentes modalidades.
como ser si-próprio (das Selbst), e a existência inautêntica: o
Angústia (Angst) é a mais fundamental dessas disposições
impessoal (das Man, “a gente”.
basais do afeto, na medida em que concerne não aos entes
intramundanos, mas ao ser do ser-o-aí no mundo. Não se tra-
Aberturas existenciais do ser-o-aí
ta de temor ou ansiedade pela perda de um objeto presente ou
À analítica existencial compete tornar manifesta a parte
virtual, pela cessação de um estado de coisas, mas um ânimo
correlativa de ser-no-mundo (Iri-der-Welt-Sein). Este denota
as que abrange todas as possibilidades de ser do ser-o-aí em sua

74
7&
raiz: a tensão entre ser-si-próprio e perder-se, desgarrar-se, a A compreensão heideggeriana tem um lado cognitivo:
possibilidade sempre presente de faltar a si. entender, apreender o sentido de, inteirar-se de, tomar cons-
b» Compreensão, compreender (Verstehen): o ser-o-aí sempre ciência de. No entanto, a acepção fundamental de Verstehen
toma pé em uma compreensão prévia e tácita, inarticulada, da em Ser e tempo é outra: compreender como “entender de” (sich
condição existencial em que sempre — e a cada vez — se encon- verstehen auf etwas). Nessa fórmula, compreender evoca, sobre-
tra; compreensão e abertura para as possibilidades de ser nela tudo, um poder, um dom ou uma capacitação. “Entender de”
existentes. Esse compreender, como dimensão ontológica do equivale, em português coloquial, a expressões como: “fula-
ser-o-aí, funda a hermenêutica de Ser e tempo, e com isso nota-se no entende do negócio, entende das coisas”. Compreender é
como Heidegger reelabora e dá nova fundamentação à cate- entender de ser, prima facie, saber de si, cuidar de seu próprio
goria de compreensão, presente na filosofia dos valores, nas ser, cuidar de existir, de si como existência. Ser-o-aí, nesse
filosofias da vida e na ciência hermenêutica, transformando-a sentido, é poder-ser, ser-possível, entender de ser.
em elemento existencial-ontológico estruturante do ser-o-aí. c»Fala, discurso, palavra, linguagem (Rede): entender de ser,
Compreensão é um limiar aquém do qual não é possível poder ser, compreender em sentido ontológico é encontrar-se
recuar em termos explicativos. Toda compreensão particular em uma disposição básica de abertura compreensiva, prévia e
— de alguma coisa, por exemplo, um texto ou um signo — tácita, de preocupação com o ser. Nesse sentido, compreende-
tem como pressuposto o próprio ato de compreender, que mos o que significa ser, sabemos mais ou menos o que queremos
é dado como um âmbito prévio e irrefletido no interior do dizer quando empregamos a palavra “ser”.
qual está inserido, desde sempre, quem compreende algo. A articulação desse sentido, ou dos diferentes sentidos de ser,
Não se pode compreender a própria compreensão, pois dá-se sempre no logos — na palavra, na linguagem, no verbo, no
para tanto já seria necessário poder compreender, e assim ao discurso. Essa articulação é o modo como o ser-o-aí enuncia seu
infinito. Trata-se de uma circularidade inevitável, porém não entendimento de Ser - como manifesta, pelo verbo, o que vem-
viciosa, e sim virtuosa: quem compreende algo dispõe tam- -a-ser, dando com isso as condições para o desvelamento do Ser
bém previamente de um senso de compreensão. Esse círcu- em sua verdade. Por isso, a linguagem é a articulação que coliga e
lo é essencialmente hermenêutico, pois a hermenêutica é a manifesta, é o âmbito de desvelamento ou verdade do Ser. É assim
ciência da interpretação e da compreensão. Assim, a abertura que se pode entender o que Heidegger pensa quando afirma que
existencial-ontológica do ser-o-aí como compreensão torna a a linguagem é a clareira, ou a morada, do Ser.
hermenêutica parte constitutiva da ontologia fundamental e Na condição de ser-o-aí, o homem habita a morada do Ser,
da analítica existencial de Ser e tempo. a linguagem. Ao falar, ele traz à luz, manifesta o que os entes

76
PA
são em suas respectivas essências; assim, ele exibe, desvela os pessoa. O que foi dito contém, ao contrário, a indicação, pensada
entes em seu ser. Todavia, essa dimensão do habitar humano a partir da questão da verdade do Ser, para o pertencer originário
no cotidiano de sua existência natural é marcada pela dimensão da palavra ao Ser. Essa relação permanece oculta sob o domínio
pública do falar, pelo linguajar característico do existir coletivo, da subjetividade que se apresenta como a opinião pública.!º
genérico, impessoal.
Heidegger denomina Offentlichkeit (esfera pública) essa con- Existir no modo da autenticidade é um tornar-se, porque o
dição do ser-no-mundo. Trata-se aqui de uma existência decaí- ser-o-aí, desde sempre, advém na linha temporal de um passado
da em relação às suas possibilidades mais próprias e autênticas. histórico que o precede, como membro de uma dada família e
Essa é a situação ontológica da queda (Verfallenheit), que não é sociedade, em um ponto do espaço prévio a toda deliberação ou
o pecado original teológico, mas um perder-se no anonimato escolha. Isso condiciona, em grande medida, seu presente, a par-
que afasta de ser-si-próprio — condição para a qual o ser-o- tir do qual se abrem as possibilidades futuras, às quais ele pode
-aí sempre pode ascender ao voltar-se para uma modalidade também permanecer alheio, alienado nas malhas do impessoal.
autêntica de existência.

Cura e preocupação
Modos de ser-no-mundo Com isso, a analítica existencial do ser-o-aí atinge um de seus
O ser-o-aí é também singular, existência irremissível, respectiva- resultados mais importantes: a sua descrição fenomenológica
mente adstrita a cada pessoa. A isso Heidegger denomina Jemeinig- como Sorge (cura ou preocupação). Ex-sistência é ser-no-mundo
keit (ser-a-cada-vez-meu, respectividade, ser singularmente temporalmente como cura ou preocupação. Esse cuidado, por sua
adstrito a mim). Cada um de nós é a própria e respectiva exis- vez, desdobra-se em Besorgen (o cuidado com alguma coisa,
tência singularíssima, na vida como na morte, na autenticidade com providenciar alguma coisa) e Fiirsorgen (a cura como tomar
como na inautenticidade. Os possíveis mais abrangentes do ser- cuidado de algo, ou de alguém; e como preocupação, ocupar-se
-O-aí são: ser si-próprio, ou perder-se, extraviar-se, desgarrar-se, de algo ou alguém, tratar dele e com ele).
dissipar-se no elemento genérico e impessoal (das Man, a gente): Ser-no-mundo é existir como cura: seja ao modo do pro-
videnciar utilitário, no trato com objetos e utensílios, seja ao
Aquilo que se diz em Ser e tempo sobre “a gente” não quer fornecer, modo da pré-ocupação como encargo, que se pré-ocupa e toma
de maneira alguma, apenas uma contribuição incidental para a sob seus préstimos. Como ec-sistência, o ser-o-aí é no mundo
sociologia. Tampouco “a gente” significa apenas a figura oposta,
compreendida de modo ético-existencialista, ao ser-si-mesmo da 16 Idem, “Sobre o humanismo”, Pp. 349.

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79
como cura, preocupação e cuidado com o mundo, que é tam- falatório impessoal, da fala inautêntica. Trata-se, então, de uma
bém uma dimensão essencial dele. curiosidade dispersiva, alienada na distração do falatório.
A cada uma das modalidades de abertura do ser-o-aí como
ser-no-mundo corresponde um modo de existir como projeto O ser-para-a-morte
lançado na esfera pública da inautenticidade: à afinação/ estar Decaimento (Verfallenheit) não deve ser tomado em chave
disposto (Befindlichkeit) correspondem possibilidades ou moda- moralista. Ainda que evoque representações religiosas e morais
lidades diversas de estados afetivos gerais, humores (Stimmung) (como o pecado original), designa a condição originária de
do ser-o-aí em sua existência cotidiana: alegre, triste, calmo, ser lançado no mundo impessoal da esfera pública. É por essa
irritado, simpático, indiferente etc. À compreensão (Verstehen) razão — e unicamente em virtude dela — que o ser-o-aí pode
corresponde a curiosidade (Neugier), e à fala (Rede) corresponde também abrir-se para sua possibilidade mais autêntica: voltar-
o falatório (Gerede). -a-si, OU ser-si-próprio.
Afinação/ estar disposto, compreensão e fala são cons- Ser-o-aí, desde sempre, é projeto, poder ser, possibilidade
tituintes ontológicos do ser-o-aí. Disposição, curiosidade e de ser. Por isso mesmo, é também possibilidade de não ser,
falatório são o correspondente ôntico dessas estruturas na em dois sentidos. Primeiro, o de não ser si-próprio, de existir
cotidianidade intramundana do ser-o-aí — em sua condição anonimamente sob a capa e o manto da publicidade, de fugir
de decaimento (Verfallenheit). As modalidades diversas de dis- de si, aderindo ao modo inautêntico e impróprio (uneigentlich)
posição afetiva são formas de obliteração da afinação/ disposi- de ser ou existir — ao que corresponde o faltar a si mesmo.
ção originária da angústia, como preocupar-se com o próprio Segundo, em uma acepção ainda mais radical de não ser, como
poder-ser. realização da possibilidade da impossibilidade de ser, ou seja,
A curiosidade é um desgarramento que consiste em alienar- da morte. Como ser-no-mundo temporal e finito, o ser-o-aí é
-se na bisbilhotice do que interessa a todo mundo, no que distrai, constitutivamente (isto é, ontologicamente) ser-para-a-morte:
ao cativar a atenção de todo mundo. É estar à cata de novida- abertura existencial para a possibilidade de não ser, ente que
de — o que, por definição, significa estar condenado à infinita se compreende como tal.
reposição, sob pena de deixar de ser o que é. O falatório domina Do decaimento, o ser-o-aí é resgatado para a autenticidade
a existência mundana do ser-o-aí no cotidiano, com o tagarelar pela culpa (Schuld) e a consciência moral (Gewissen). A culpa é
e o opinar sobre tudo sem hada dizer, o discurso que não com- um faltar a si, é ser-em-falta; estar em dívida com as possibili-
promete, nada afirma nem nega quanto ao essencial. A retórica dades de ser si-próprio. Uma falta ontológica forma o conteúdo
da opinião pública e o politicamente correto são exemplos de da consciência moral, não como tribunal interior, como voz da

80
81
consciência moral que acusa o sujeito de estar em débito com
a lei por desobedecer a Deus. Ser culpado é sentir-se em falta
para consigo mesmo, como poder-ser originário.
Ninguém existe no lugar de outra pessoa, ninguém morre
anão sera própria morte. A condição de ser-para-a-morte é o
chamado do Dasein para a sua mais radical autenticidade. Por isso, a
culpa e a morte são os chamamentos inapeláveis da consciência
moral, que é a voz de nossa culpa originária, de nossa condição
de estar sempre em falta com relação ao nosso poder-ser, a cada
momento de nossa existência.
A consciência de culpa não é má consciência, mas o cor-
respondente ontológico da disposição angustiada. Trata-se
também de uma ética fundamental, como cuidado de si e do
mundo, na temporalidade própria à finitude humana. Ser e tem-
po não tem necessidade de um capítulo dedicado à ética como
disciplina filosófica. A fenomenologia analítica da ex-sistência
desdobra-se em um ethos originário.

82
A viravolta e a
história da
verdade do Ser
DE SER E TEMPO A TEMPO E SER

O programa filosófico completo de Ser e tempo incluía uma parte


em que a perspectiva de análise seria deslocada da temporali-
dade própria à existência do ser-o-aí (sua Zeitlichkeit), para um
vetor tomado a partir da temporalidade do próprio Ser, para a
qual Heidegger reservara o termo Temporalitit (temporaneidade).
No entanto, sua reflexão a partir de meados de 1930 começa
a demonstrar, de maneira crescentemente clara, que a inflexão
pensada no horizonte de Ser e tempo, com as categorias feno-

Ae
menológicas específicas dessa obra, não seria suficiente para
dar conta de toda envergadura e magnitude do novo empre-

di
am
endimento, a saber: pensar uma história da verdade do Ser, o
que só seria possível no horizonte de Tempo e Ser.!
eins Made et apa so Em relação ao programa de Ser e tempo, a principal modifi-
cação consiste em que o ser-o-aí passa a ser tematizado não no
horizonte transcendental de sua própria finitude, mas tendo
como referência a temporalidade própria do Ser.

1 Heidegger, M. “Protocolo do seminário sobre a conferência Tempo e Ser”.


a

85
Essa mudança é a marca filosófica da viravolta, que atua Tempo e Ser. Essa viravolta não é uma mudança do ponto de vista
como a transição do primeiro para o segundo Heidegger. Essa de Ser e tempo; mas, nessa viravolta, o pensar ousado alcança o
metáfora designa, para alguns, uma ruptura com a ontologia lugar do âmbito a partir do qual Ser e tempo foi compreendido e,
fundamental de Ser e tempo. Para outros, porém, não seria uma na verdade, compreendido a partir da experiência fundamental
descontinuidade, mas uma complementação e um aprofun- do esquecimento do Ser.?
damento, uma mudança de sentido no mesmo caminho da
reflexão inicial. Nesse sentido, importa caracterizar a viravolta em conso-
Com a viravolta, o pensamento de Heidegger deixa o apoio nância com o modo como procedemos em relação a Ser e tempo,
do ser-o-aí (sem, no entanto, abandoná-lo completamente) para a saber, acompanhando algumas linhas de força que são fun-
remeter ao Ser, invertendo seu sentido: parte do próprio Ser, damentais para a compreensão do pensamento do segundo
em sua verdade ou desvelamento na história, para incluir uma Heidegger e da necessidade teórica que engendrou a mudança
reflexão sobre a essência do ser-o-aí humano, pensada como cor- de perspectiva filosófica. Para fazê-lo, vamos tematizar a essên-
respondência ao apelo do Ser e abertura para essa convocação. cia da técnica e a tarefa do pensamento no fim da metafísica.
A temporalidade do Ser é ainda mais originária do que a do O fio vermelho que entretece as reflexões de Heidegger sobre
ser-o-aí; ela é temporaneidade. Em seu curso, a história (Geschichte) os temas indicados é o conceito de história da verdade do Ser,
é pensada como o âmbito do acontecer do Ser (Geschichte des que atualiza a destruição interna da metafísica, para retomar
Seins), que se desoculta nos entes. As épocas que escandem a a pergunta originária pelo sentido do Ser.
história do mundo são desvelamentos do Ser, em sua verdade, A reflexão sobre a técnica moderna oferece um caminho
que o ser-o-aí recebe e medita, à qual corresponde no elemento adequado, uma vez que esta é incompreensível em sua essência
da linguagem. De todo modo, mais importante do que a deci- se não for considerada no horizonte da história da metafísica.
são sobre essa questão, é determinar as motivações “internas Pois a moderna tecnociência foi gestada e nutrida pela meta-
e externas” para a viravolta. física (sinônimo de filosofia para Heidegger), já que sempre
Sobre esse ponto, Heidegger se manifesta em um texto de isaa mp raia 1
se voltou para os entes em sua presentidade, obliterada para a
1936, em que reflete sobre a tarefa de Ser e tempo: diferença ontológica entre os planos do ente e do Ser. Pode-se,
com base nessa indicação, interpretar a passagem do primeiro
A conferência “Sobre a essência da verdade”, pensada e levada para o segundo Heidegger em correspondência com a maneira
nd RARE =s ado

a público em 1930, mas apenas impressa em 1943, oferece certa


perspectiva sobre o pensamento da viravolta de Ser e tempo para 2 Idem, “Sobre o humanismo”, p. 354.

86 i 87
de compreender a anunciada viravolta: como ruptura ou pro- Nos Seminários de Zollikon, ao sugerir uma tradução fran-
longamento, ambos devidos a razões filosóficas internas. cesa adequada para o termo Dasein como être-le-là, Heidegger
Pode-se, no entanto, considerar também um relevante fator acrescenta um complemento de enorme importância:
“externo”: o enfrentamento entre Heidegger e Ernst Jinger, que
teve por fundamento interpretações divergentes do fenômeno O aí (da) para o ser distingue o ser-homem. A expressão ser-aí
do niilismo, hauridas em uma intensa ocupação reflexiva, tanto humano é, de acordo com isso, um pleonasmo. A adequada tra-
no caso de Jinger quanto no de Heidegger, com a filosofia de dução francesa para Dasein teria de soar être-le-là (ser-o-aí), e o
Nietzsche. destaque em alemão, adequado ao sentido, ser-o-aí (da-sein), em
Dessa ótica, a viravolta estaria ligada à reflexão sobre o vez de ser-o-aí (da-sein).?
niilismo, que exige pensar a essência da técnica com as cate-
gorias e os conceitos diferentes da analítica existencial de Ser e Ao esclarecer que a ênfase deveria ser colocada no verbo
tempo. Seria, portanto, no bojo de sua confrontação filosófica sein, em vez de no advérbio da, Heidegger explicita, com cirúrgi-
(Auseinandersetzung) com a “metafísica de Nietzsche” — vonta- ca precisão, a viravolta de Ser e tempo para a história da verdade
de de poder, eterno retorno do mesmo e perspectivismo -, do Ser. A indicação põe em destaque que a abertura deixa de
ligada à confrontação com as posições de Jinger a respeito ser considerada (embora não deixe de sê-lo também) como um
do ultrapassamento do niilismo no mundo contemporâneo, atributo existencial-ontológico do ser-o-aí humano e passa a
que Heidegger teria se posto a caminho de uma compreensão ser referida ao Ser, entendida como clareira do Ser, abertura, um

lang
apropriada da essência da técnica. âmbito no qual os entes são desvelados para e pelo homem, para

dor
trato e cuidado, inclusive o próprio homem, para si mesmo.
O próprio Ser é simbolizado pela clareira que desvela ao ho-
ABERTURA DO SER-O-AÍ E ABERTURA DO SER mem os entes em sua essência, de modo que a essência do
homem (como Dasein) não se define pelo gênero próximo e
A partir da análise fenomenológica das estruturas fundamen- a diferença específica — como animal racional -, mas como o
tais do ser-o-aí, toda compreensão do Ser só pode se dar no estar-aí que corresponde à abertura do Ser.
horizonte temporal da finitude humana. Não pode haver, a É nesse sentido que a essência do homem é apreendida na
partir do ser-o-aí, nenhuma possibilidade de entendimento e correspondência com a verdade (desvelamento) do Ser. Desse
abertura para o Ser que não seja o tempo, tematizado com base
na ex-sistência do ser-o-aí. 3 Idem, Zollikoner Seminare, pp. 156 s. (tradução do autor).

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modo, o Ser, os homens e os entes intramundanos formam um suficientemente elevada. A dignidade humana não se deve à
circuito hermenêutico, no qual abertura e fechamento, doação sua condição de “sujeito”, de res cogitans (substância pensante)
e subtração são as marcas dessa mútua recorrência. “O pensar
ou consciência transcendental. Ao contrário, essa dignidade
consuma a relação do Ser com a essência do homem. O pen-
consiste em ser “jogado” na clareira do Ser, para que, ec-sistindo,
sar não produz nem efetua essa relação. Ele apenas a oferece vele pela verdade do Ser, de forma que, no logos humano, o ente
ao ser, como aquilo que a ele próprio foi confiado pelo Ser. se manifeste como o ente em sua essência. Heidegger se refere,
Essa oferta consiste no fato de, no pensar, o ser ter acesso à com esses termos, à acepção latina de ex-sistere: manter-se, pos-
linguagem.” É assim que Heidegger concebe a dignidade da tar-se, persistir em uma dimensão de abertura, exterioridade.
condição humana.
A temporalidade que transcende a ex-sistência do ser-o-aí,
Afirmar que a substância do homem é sua existência sig- no sentido de que não se limita a ela, é a temporaneidade origi-
nifica que “o modo como o homem se presenta em sua própria nária do Ser. Esse tempo do Ser assume a forma do acontecer
essência ao Ser é a ec-stática in-sistência na verdade do Ser”:
(geschehen, Geschehnis); do acontecimento apropriador (Ereignis)
que é também destinação. A palavra adequada para essa tem-
Através dessa determinação essencial do homem, as interpretações
poralidade destinamental é história (Geschichte).
humanísticas do homem como animal rationale, como “pessoa”,
como ser espiritual-anímico-corporal, não são declaradas falsas,
nem rejeitadas. Ao contrário, o único pensamento que se quer
PENSAR A HISTÓRIA DA VERDADE DO SER
impor é que as mais altas determinações humanísticas da essência
do homem ainda não experimentaram a dignidade propriamente
“História da verdade do Ser” é uma expressão que se aplica
dita do homem. Nesta medida, o pensar em Ser e tempo é contra
com tanto acerto ao Heidegger de Tempo e Ser como analítica
o humanismo.
existencial ou ontologia fundamental aplicam-se a Ser e tempo.
Convém atentar, porém, que a palavra “história” traduz tanto
Essa oposição não significa tomar partido pelo irracio- Historie, derivação germanizada do latim, quanto Geschichte — do
nal, pelo inumano ou pela desumanidade. O humanismo é
verbo geschehen, acontecer, que remete aos aparentados Schicht
confrontado porque não situa a humanitas em uma posição
(camada, extrato) e Schickung (envio, destinamento).
Historie é a história como disciplina científica, como his-
4 Idem, “Sobre o humanismo”, p. 347; citação ligeiramente modificada.
toriografia — registro cronológico objetivo de séries de acon-
5 Idem, ibidem, pp. 355 s.
tecimentos, ordenados pelas suas circunstâncias, condições

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determinantes, causas e consequências de ordens variadas essa ressonância, traduz-se Ereignis por acontecimento apropria-
(econômicas, políticas, sociais e culturais, por exemplo). dor, designando um advento que vinca uma época da história,
Geschchite designa o acontecer adventício, os acontecimen- confere a ela uma propriedade essencial (Eigenschaft) e um sen-
tos singulares que impregnam a configuração e determinam o tido para o modo como os entes, em sua totalidade, existem no
sentido de uma era do mundo. Com apoio no termo Geschick mundo. O acontecimento apropriador confere sentido a uma era
(o que é enviado, destinado, concluído com êxito e propriedade), do mundo (Weligeschick) pensada como um destinamento, um
Heidegger denomina tais eventos destinação ou acontecimento des- desocultamento da essência dos entes em sua verdade. É nessa
tinamental, que os franceses traduzem com o termo événementiel: acepção que Heidegger interpreta a metafísica como história do
o que ocorre e tem importância para os homens. Ser ou, antes, como história do esquecimento da verdade do Ser
Ele tem em mente aqui as acepções de destinamento como Desde Platão, por exemplo, a precedência da ideia (essência
envio, remessa, nelas incluindo o destino (Schicksal) como algo inteligível) sobre os entes sensíveis traz consigo, na forma do
que nos é remetido, enviado. Assim, história, como Geschichte, eidos, O ti estin (o que é) em lugar do Ser. De modo que, antes de
remete tanto a acontecimento, destinação, quanto ao conceito tudo, Ser é Ser-algo (Was-sein). Ser como Ser-algo (a idea como
de Ereignis, que traduzimos como acontecimento apropriador, que ontós ón) proporciona aos entes mais espaço que ao próprio
confere um sentido próprio a uma era do mundo, imprime Ser. “O privilégio do Ser-algo traz consigo a precedência do
a ela a marca de sua figura. O signo desse acontecer não é o próprio ente a cada vez naquilo que ele é. A precedência
tempo cronológico dos relógios e calendários, nem é a fini- do ente fixa o Ser como o koinón (liga, coligação, comunhão) a
tude própria à existência do ser-o-aí, mas um tempo ao qual partir do én (em). Está decidido o caráter distintivo da metafísica.

ar pt
Heidegger denomina temporaneidade do Ser. É nela que o Ser se O Uno como a unidade unificadora torna-se determinante para
dá e se mostra no horizonte da história, sua verdade (alétheia) a destinação posterior do ser.”

rica
vige como acontecimento apropriador. Na filosofia moderna, a verdade do Ser dos entes passa se
A palavra Ereignis remete a um extrato profundo da língua identificar como a certeza da representação, de modo que o
alemã. Deriva do gótico áugan e do médio alto alemão“ ougen hypokeimenon (substrato) se transforma em subjectum (sujeito),
(ouge, Auge), de onde provêm ereugen, er-úugen, er-blicken, im Blicken
zu sich rufen, an-eignen (trazer à vista, apropriar-se). Para manter
7 Heidegger, M. “Die Metaphysik als Geschichte des Seins”. In: Nietzsche,
PP. 399-457.
6 Mittelhochdeutsch: médio alto alemão, ou seja, o idioma alemão não diale- 8 Idem, “Entwiirfe zur Geschichte des Seins als Metaphysik”. In: Nietzsche,
tal (Hochdeutsch) entre o período antigo e contemporâneo de sua história. pp. 458-80 (tradução do autor).

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e a verdade, de correspondência entre o intelecto e as coisas, da técnica moderna, por exemplo. Um aberto, uma clareira, na
torna-se a clareza e a distinção das percepções. A representação qual os entes vêm à luz em sua verdade. A técnica é, essencial-
é a unidade unificadora dos entes em sua verdade. Descartes é mente, um modo de trazer à luz, de produzir; e sua origem,
pensador que preconiza a transformação metafísica na essência essência e destinação estão ligadas a producere, hervorbringen,
da verdade, cabendo a Kant a reconstrução da ontologia em poiésis, que são camadas ou extratos na temporalidade em que
seu programa de filosofia transcendental. se inscreve a história da verdade do Ser.
Leibniz, no caminho entre Descartes e Kant, ao conceber
o Ser dos entes como mônada, pensada como perceptio (pensa- O que diz Heidegger, finalmente, “sobre” o Ser? Na medida em que
mento) e apetitus (vontade), prepara a transição para o conceito Ereignis (acontecimento apropriador) é, desde 1936, sua “palavra-
de absoluto em Schelling, Hegel e, finalmente, a identificação -chave”, essa pergunta tem de ser precisada: como compreende
da vontade de poder em Nietzsche como essência do mundo. ele o acontecimento apropriador? Heidegger destaca, com toda
A metafísica, como história do esquecimento da pergunta clareza, que, como palavra-chave de seu pensamento, Ereignis não
pelo sentido do Ser, ingressa com Nietzsche na era de seu compreende mais aquilo que se costuma denominar acontecer
acabamento: a vontade de poder torna-se essência metafísica (acontecimento, diz Heidegger), evento e termos que tais. Ele apon-
“ do mundo, e o eterno retorno é o modo de existência que lhe ta para o que essa palavra originalmente significa: er-úugen significa
é próprio. mirar, trazer a si diante da vista, apropriar-se. Depreende-se de
A relevância atribuída por Heidegger à expressão colo- seus ulteriores esclarecimentos que ele interpreta acontecimento
quial “es gibt” (“existe”, “há”; literalmente: “isso dá”, “isso doa”) apropriador apenas a partir da palavra eigen (próprio). Mais adiante,
explicita-se nesse contexto. Na linguagem cotidiana, é corrente ele compreende acontecimento apropriador unicamente como

md
a associação entre existir/ acontecer e dar/ doar. O pronome singulare tantum (singular como tal).º

PU
impessoal “es” remete ao Ser como sujeito da ação verbal: isso E

(es) dá (gibt); isso é o Ser; aquilo que ele doa é ele mesmo, na Esse é o sentido das imagens poéticas às quais Heidegger
medida em que ele dá existência. Esse dar é, portanto, um dar- liga tais noções: linguagem (logos), em sua determinação (Be-
-se do Ser, um abrir-se possibilitador do desvelamento dos stimmung), é desvelamento. Metaforicamente, ela pode figurar
entes em sua verdade, no vigor da essência que lhes é própria. como a clareira em que se mostra a essência dos entes, que se
O Ser é abertura e vazio. Os entes são, existem (es gibt Seiendes), tornam fenômenos para o ser-o-aí, seu curador. A linguagem é,
são ao modo de envios do Ser, sempre no horizonte temporal
de um acontecimento apropriador, como a essência metafísica 9 Puntel, L. Sein und Gott, p. 85 (tradução do autor).
eres

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Adi — cc]

portanto, a “morada do Ser”, e o homem é o ente que habita comutação, consumo, desgaste, em uma circularidade sem
po(ijeticamente essa casa. começo nem fim:
Ex-sistir é corresponder linguageiramente a esse chamamento
do Ser, ao descerrar-se do Ser aos entes em seu desocultar. O Ser O ar é posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo para o for-
acontece em seus adventos, mas não se confunde com eles. Para necimento de minérios, o minério, por exemplo, para a produção
que haja um desvelar — uma alétheia — é primeiro necessário um de energia atômica, que pode ser associada ao emprego pacífico
estar oculto, não há desvelo sem velamento anterior. Nada é ou à destruição... A central hidrelétrica está posta no rio Reno. Ela
doado que antes não se tenha subtraído. Nesse sentido, há que se põe o Reno em função da pressão de suas águas, fazendo com que,
pensar uma interpenetração entre Ser e Nada — Ser é nada de ente, desse modo, girem as turbinas, cujo girar faz com que funcionem as
nenhuma entidade da qual se possa predicar uma propriedade máquinas que geram energia elétrica para a qual estão preparadas as
qualquer; é antes um vazio, o imponderável a partir do qual se dá centrais interurbanas e sua rede de energia demandada para a trans-
mesmo o gesto mais fugaz. O Ser desvela os entes no modo de missão de energia. No âmbito das consequências interconectadas da

SD
ser que é próprio deles, ao mesmo tempo que se subtrai, furta-se demanda de energia elétrica, o rio Reno também aparece como algo
tanto ao desvelamento quanto ao que neste é desvelado. demandado. A central elétrica não está construída no rio Reno, como
a antiga ponte de madeira, que há séculos une uma margem à outra.
Antes e pelo contrário, é o rio que está construído na hidrelétrica.
PENSAR A ESSÊNCIA DA TÉCNICA O desocultar que domina a técnica moderna tem o caráter de requi-
sitar o ente no sentido do desafio. Este acontece pelo fato de a energia
A técnica moderna é desvelamento e produção. Trata-se de um

set
oculta na natureza ser explorada, do explorado ser transformado,
trazer à luz, um pôr e dispor, um tornar manifesto, que tem a do transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente

a
“forma do desafio (Herausforderung), que estabelece para a natu- distribuído e do distribuído ser renovadamente comutado. Explorar,
ut Dieta arte 2
reza a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída transformar, armazenar e distribuir são modos do desocultar."!
e armazenada como tal”.!º
Como modo da poiesis, a técnica moderna dispõe os entes A essência da técnica mostra-se na instalação dos entes
como objetos em um processo reiterativo formado por extra- como variáveis de cálculo no processo circular acima descrito.
ção, transformação, preparação, armazenamento, distribuição, A esse conjunto Heidegger denomina de Gestell - armação ou

10 Heidegger, M. A questão da técnica, p. 57. 1 Idem, ibidem, pp. 57-9; citação ligeiramente modificada.

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dispositivo. A essência da técnica moderna consiste na subsis- Se, portanto, o homem, pesquisando e observando, persegue a
tência assegurada das condições de reiteração permanente do natureza como uma região de seu representar, então ele mesmo
dispositivo de produção, armazenamento, distribuição e desgas- já é convocado por um modo de desocultação que o desafia a ir
te. “A palavra 'subsistente-estoque” (Bestand) ingressa agora na ao encontro da natureza como um objeto de pesquisa, até que
posição de um título. Designa nada menos do que o modo como também o objeto desapareça na condição de estoque subsisten-
vige tudo aquilo que é tocado pelo desocultar desafiador.” te, desprovido de objeto. Assim, a técnica moderna, enquanto
A novidade da técnica moderna consiste em um desafiar desabrigar que requer, não é um mero fazer humano. Por isso,
que instala a natureza na condição de manancial de energia devemos tomar também, tal como este se mostra, aquele desa-
suscetível de ser extraída, armazenada e distribuída, de modo fiar que dispõe o homem para requerer o real enquanto estoque
que o essencial não é o resultado objetivo determinado desse subsistente. Aquele desafiar reúne o homem no requerer. Esse
processo, mas antes a dinâmica e a lógica imanentes do próprio reunir concentra o homem para requerer o real enquanto esto-
processo de conversão da natureza em estoque armazenável e que subsistente [...]. Denominamos, agora, armação (Ge-stell)
permanentemente comutável. A configuração atual de nossas aquela convocação desafiadora, que reúne também o homem
sociedades depende essencialmente da atualização do potencial no requerer como estoque subsistente, aquilo que se descobre."
tecnológico. Este constitui a mais determinante força produtiva
na sociedade. A verdade da metafísica moderna é o domínio Para Heidegger, a técnica não é meio, nem instrumento
planetário da cibernética, a exploração tecnológica das galáxias. que o homem coloca a seu serviço. Pelo contrário, o próprio
homem moderno é determinado e requisitado pela técnica,
pelo modo de desabrigar que constitui a essência desta. Ele
DESTINAMENTO E PERIGO é convocado para o desafiar que é característico da técni-
ca — desafiar no sentido de explorar a natureza, utilizando-
Em sua acepção originária, a técnica é uma modalidade de pro- -a e transformando-a como reserva de energia estocável
ducere, de hervorbringen — de trazer à luz, desvelar, desocultar —, e permutável.
acepções que não correspondem às noções correntes da técnica A respeito da essência da técnica, observa Heidegger,
como meio para um fim (concepção instrumental) ou como “muito se escreve, mas pouco se pensa”:
incremento do poder-fazer humano (concepção antropológica):

12 Idem, Die Frage nach der Technik, p. 16 (tradução do autor). 13 Idem, ibidem, pp. 18 s. (tradução do autor).
E

98 oo
A técnica é, em sua essência, um destino ontológico-historial da ver- Em condições tais, o humanismo não seria uma alternativa
dade do Ser, que resta no esquecimento. A técnica não remonta, na para a metafísica, na medida em que concebe a natureza huma-
verdade, apenas com seu nome, até a tékne dos gregos, mas ela se origina na a partir das categorias metafísicas de substância e acidente,
ontológico-historialmente da tékne como um modo do aletheúein, isto é, gênero próximo (animal) e diferença específica (racional). Daí
do tornar manifesto o ente. Como uma forma da verdade, a técnica se decorre que, para Heidegger, “todo humanismo ou funda-se em
funda na história da metafísica. Esta é uma fase privilegiada da história uma metafísica, ou ele mesmo se postula como fundamento
do Ser e a única da qual, até agora, podemos ter uma visão de conjunto.!* de uma metafísica”:

Ora, se história da metafísica é também a do esquecimento Toda determinação da essência do homem que já pressupõe a inter-
do Ser e de sua substituição pelo ente, só um pensamento que pretação do ente, sem a questão da verdade do Ser, e o faz sabendo
ultrapassou a metafísica pode abrir-se para a rememoração do ou não sabendo, é metafísica. Por isso, mostra-se, e isto no tocante
sentido do Ser e, portanto, pensar originariamente a essência ao modo como é determinada a essência do homem, o elemento
da técnica como uma destinação (Geschick) na história da verda- mais próprio de toda metafísica, no fato de ser “humanística”. De
de do Ser. O humanismo, em qualquer de suas modalidades, é acordo com isso, qualquer humanismo permanece metafísico.!é
justamente incapaz disso, pois ele é essencialmente metafísico
e, portanto, só compreende a técnica em chave antropológica Ora, contando com seus próprios recursos categoriais,
e instrumental, ou, dito de forma moderna, como vontade de nenhuma metafísica, seja ela idealista, cristã, ateísta ou mate-
poder, como potencialização da capacidade humana de produzir. rialista, pode “atingir e reunir, através do pensar, o que agora
Consuma-se com Nietzsche o acabamento da metafísica; é do Ser, em um sentido pleno”. E assim, a despeito de suas
esta se realiza historicamente como inistalação de todos os entes “boas intenções”, o humanismo contemporâneo dá seguimento
nos circuitos tecnológicos de produção, consumo e desgaste: à completa objetivação da natureza, transmudando a essência e a
“Agricultura é agora indústria alimentar motorizada; em essên- destinação do homem que, de “pastor do Ser”, preocupado com
cia, o mesmo que a fabricação de cadáveres em câmaras de gás o cuidado dos entes, tornou-se a “mais importante matéria-pri-
[...] o mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio”. ma” a ser consumida no desgaste (Vernutzung) universal do ente:

14 Idem, “Sobre o humanismo”, p. 361; citação ligeiramente modificada. 16 Heidegger, M. “Sobre o humanismo”, p. 351; citação ligeiramente mo-
15 Apud Maurer, R. O que existe de propriamente escandaloso na filosofia da técnica dificada.
de Heidegger, p. 406. 17 Idem, ibidem.

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Quando tiver êxito o domínio da energia atômica, e este êxi- determinante, nem se esgota em reverência ao fato; a palavra
to ocorrerá, então se iniciará um desenvolvimento totalmente serenidade não é sinônimo de resignação. Com ela, o filósofo
novo do mundo técnico. O que conhecemos hoje como técnica pensa um agir amadurecido, liberado da insânia compulsiva
cinematográfica e televisiva, como técnica de transportes, das do ativismo, do falatório vazio e pomposo vigente na esfera
comunicações, como técnica médica e de nutrição, representa, pública contemporânea:
supostamente, apenas um estágio inicial e grosseiro. Ninguém

pode saber as reviravoltas que estão por vir. Enquanto isso, o Não é por ele irradiar um efeito ou por ser aplicado que o pensar se
desenvolvimento da técnica se dará em um curso cada vez mais transforma em ação. O pensar age enquanto se exerce como pen-
rápido e não poderá ser detido em parte alguma.'º sar. Este agir é provavelmente o mais singelo e, ao mesmo tempo,
o mais elevado, porque interessa à relação do Ser com o homem.
O credo antropocêntrico e humanista é uma ilusão ingê- Toda eficácia, porém, funda-se no Ser e se espraia sobre o ente.
nua e perigosa, pois concebe a tecnologia como instrumento O pensar, pelo contrário, deixa-se requisitar pelo Ser para dizer a
à disposição e controle da racionalidade humana. Porém: verdade do Ser. O pensar consuma este deixar.”

Nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nenhuma comissão Com a hegemonia do sentido instrumental e antropocên-
de relevantes estadistas, pesquisadores ou técnicos, nenhuma con- trico da técnica, o progresso tecnológico compulsivo subverte
ferência de dirigentes da economia e da indústria consegue frear a lógica da ética humanista. As pesquisas biogenéticas instru-
ou direcionar o curso histórico da época atômica. Tudo se passa mentalizam a base somática da personalidade, tornando-a
como se o homem de hoje, em face do pensamento meramente disponível para fins incompatíveis com o ethos que, até aqui,
calculatório, renunciasse a inserir o pensamento meditativo em um constituiria o espaço de habitação do homem no mundo, o
papel determinante.!º horizonte de sua autocompreensão.
Fantasias estéticas narcisistas sobre o consumo mercantil
Heidegger confia na potência silenciosa da meditação. do homem seriam uma réplica cínica do desgaste (Vernutzung)
Embora não tenha a mesma eficácia instrumental do pen- do “material humano”. Como afirma Heidegger, em um tempo
sar calculatório, a meditação preocupada não deixa de ser em que a tecnologia, cuja essência é armação (Ge-stell), exerce um
domínio planetário, aí também espreita um perigo (Ge-fahr). Mas
18 Idem, Gelassenheit, p. 19 (tradução do autor).
19 Idem, ibidem, pp. 20s. 20 Idem, “Sobre o humanismo”, p. 347; citação ligeiramente modificada.

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é justamente à sombra do perigo que urge retomar as palavras
dos poetas e pensadores, da arte e da filosofia. Nesse caso espe-
cífico, a poesia de Hólderlin: “Lá onde há perigo, cresce também
aquilo que salva” (“Wo aber Gefahr ist, wáchst das Rettende auch”)?!
À dicção do poeta, Heidegger acrescenta uma palavra de
filósofo: serenidade. Não um lamento, uma demonização da
tecnologia. Ao contrário, ele prenuncia uma relação pensante
com o segredo até hoje velado na essência da técnica. A palavra
de Heidegger diz: serenidade para com as coisas, cuidado preo-
cupado com o mundo, deixar ser, abertura para o segredo —
ethos de meditação sobre os destinamentos do Ser, nascidos de
um pensamento que é, em si mesmo, ação:

Se crescem em nós a serenidade para com as coisas e a abertura


para o segredo, então nos é lícito chegar a um caminho que conduz
a um novo fundamento (Grund) e solo. Nesse solo, o criar de obras
que permanecem pode fincar novas raízes.”

21 Idem, Die Frage nach der Technik, p. 28 (tradução do autor).


22 Idem, Gelassenheit, p. 26 (tradução do autor).

104
Como ler Heidegger

Este capítulo tem o propósito de apresentar um conjunto de


sugestões a respeito de como ler Heidegger e, para tanto, ofere-
cer algumas indicações tanto práticas como teóricas. De início,
é imprescindível o contato direto com os próprios livros do
autor, se possível em seu idioma original, ou então em traduções
histórico-crítico-filológicas credenciadas, que existem em diver-
sos idiomas, inclusive em português (vide a bibliografia ao final).
A despeito de todos os esforços que se possa fazer para
facilitar o acesso à obra de Heidegger, fornecendo ao leitor indi-
cações e comentários, mesmo a tentativa mais bem-sucedida
a esse respeito não o dispensa do empenho pessoal na leitura
dos textos principais, com a dedicação própria de cada pessoa
singular que se dispõe a frequentá-los.
A trajetória pode ser feita tanto do segundo para o pri-
meiro Heidegger, como vice-versa, sem contar que cada passo
adiante, quando verdadeiramente realizado, conduzirá o cami-
nhante a uma série de retomadas, recuos e desvios aparentes.
O fundamental é que, uma vez iniciada a caminhada, ela
seja levada adiante com paciência e método, com zelo e empe-
nho, acompanhando todos os passos e desdobramentos de um

107
pensamento ou de um conjunto de questões. É assim que se própria conta e risco, nos concita ao exercício da responsabili-
aprende o essencial: a perguntar, a acompanhar a dinâmica do dade pessoal e intransferível no plano de nossos pensamentos e
pensar que questiona, em sua busca por respostas. No fundo, opiniões. E esse aspecto nos conduz às indicações de natureza
todas as questões irão se revelar como estreitamente aparen- mais geral e teórica acerca de como ler Heidegger.
tadas e imbricadas, e suas respostas, como interdependentes; Em conferência preparada para um simpósio de filosofia na
nisso, nos caminhos do pensamento e da linguagem, Heidegger cidade francesa de Cerisy-la-Salle, proferida em agosto de 1955,
é um professor e um guia completo. Heidegger propôs-se a responder à seguinte pergunta: “Que é
Contudo, uma indicação plausível consiste em iniciar pela isto —a filosofia?”.! Nesse escrito, encontramos preciosas indi-
leitura de Ser e tempo, que, de algum modo, se bem compreen- cações não somente a respeito do que Heidegger entende por
dido, ilumina prospectivamente tanto a viravolta heidegge- filosofia, mas como considera que devam ser lidas suas obras.
riana, como também auxilia na compreensão das questões e Para ele, responder a essa pergunta significa, antes de tudo,
dos assuntos de que tratam os escritos mais tardios. Muitas pensar a essência da filosofia, e não abstrair as notas comuns
vezes uma reflexão que se desdobrará na obra dos anos finais de encontráveis em todos os sistemas filosóficos. Se assim proce-
Heidegger é retomada, sob novas perspectivas e à luz de dife- demos, se nos colocamos à cata das primeiras e das definições
rentes experiências de pensamento, de indagações que foram de filosofia até hoje, “só alcançaremos uma fórmula vazia, que
trazidas à luz mesmo antes da publicação de Ser e tempo. serve para qualquer tipo de filosofia”.
Sendo assim, a literatura de apoio, fornecida por comenta-
dores, é de grande auxílio para o esclarecimento de dificuldades E então? Então estaremos o mais longe possível de uma resposta
de várias ordens que podem causar algum entrave ao iniciante. à nossa questão. Por que se chega a isso? Porque, pelo processo há
É impressionante a quantidade e a variedade de material que pouco referido, somente reunimos historicamente as definições
pode ser encontrado sobre Heidegger na internet, mesmo com que estão aí prontas e as dissolvemos em uma fórmula geral. Isto
toda sua crítica da tecnologia moderna. De todo modo, o ines- se pode realmente fazer quando se dispõe de grande erudição e
timável prazer da leitura direta compensa tanto a necessidade auxiliado por verificações certas. Nesta empresa não precisamos,
de recorrer às introduções e biografias quanto a dificuldade de nem em grau mínimo, penetrar na filosofia de tal modo que medi-
algums percursos labirínticos de seus próprios escritos. Pois, 4

como sugere com toda razão Riidiger Safranski, um de seus


biógrafos mais bem-sucedidos, Heidegger é, antes de tudo, 1 O texto foi publicado como Was ist das? Die Philosophie. Em português, com
tradução de Ernildo Stein, “Que é isto — a filosofia?” saiu pela coleção Os
um mestre do pensamento que, ao nos ensinar a pensar por nossa Pensadores.

108
190
temos sobre a essência da filosofia. Procedendo daquela maneira que foi extraído das palavras de Nietzsche e aquilo que foi a elas
nos enriquecemos com conhecimentos muito mais variados e acrescentado: “Com efeito, toda interpretação tem de poder
sólidos e até mais úteis sobre as formas como a filosofia foi repre- não apenas retirar a coisa do texto; ela tem também — sem se
sentada no curso de sua história. Mas por essa via nunca chega- prevalecer disso — de poder doar a ele, inadvertidamente, algo
remos a uma resposta autêntica, isto é, legítima, para a questão: próprio de sua própria coisa”.
que é isto — a filosofia? Essa estratégia hermenêutica pertence, pois, essencialmen-
te à maneira heideggeriana de fazer filosofia, dialogando com
Só podemos chegar a uma resposta legítima se e quan- o logos explícito de todo pensador essencial.
do nós mesmos filosofamos; e só o fazemos em conversa Heidegger, respondendo a certas acusações de infidelidade
(im Gesprách) com os filósofos fundamentais, pela retomada ao texto de Nietzsche, esclarece o horizonte de interesse em
e rememoração das palavras essenciais que exprimem seu que se situa para uma fecunda interlocução com a filosofia
pensamento. Esse é o sentido da conversa, do diálogo sem- nietzschiana:
pre tenso de Heidegger com a tradição da filosofia ocidental,
com Platão e Aristóteles, com os.medievais e os moder- A crítica pode considerar incorretas e “violentas” muitas coisas em
nos, com os contemporâneos e, entre eles, especialmente minhas interpretações; entretanto, enquanto não houver nenhuma
Leibniz, Kant, Hegel e Nietzsche. confrontação (Auseinandersetzung) positiva e de princípios com
Não faz nenhum sentido insistir na discussão sobre se a meus escritos a respeito da determinação da metafísica, que é de
interpretação heideggeriana é fiel à letra de Nietzsche, se ela onde parte minha exposição de Nietzsche, a crítica vai se movi-
é filologicamente ou histórico-filosoficamente correta, ou mentar em um plano insuficiente. Para o historiador, presume-se,
se produz uma violentação hermenêutica, omissão, distor- as asserções de Aristóteles sobre Platão e os pensadores pré-socrá-
ção ou ainda equívocos em relação aos textos de Nietzsche. ticos são, em geral, falsas e violentas.
Importante, para Heidegger, é pensar com Nietzsche, entrar em
conversa com ele e, nesse espaço de diálogo, buscar uma posi- Tendo isso em vista, Heidegger desenvolve este insight em
ção hermenêutica na qual a explicação e a exposição seriam Caminhos de floresta:
reciprocamente elaboradas, de modo a não mais se distinguir
inequivocamente, ao mesmo tempo, e em toda parte, aquilo
3 Idem, Nietzsche, pp. 262 s. (tradução do autor).
4 Apud Miiller-Lauter, W. “Das Willesesen und der Ubermensch”, p.74, nota
2 Heidegger, M. “Que é isto — a filosofia?”, p. 217., 35 (tradução do autor).

10 E 111
Todo comentário precisa não só captar o assunto do texto Quando é que a resposta à questão “que é isto — a filosofia?” é uma
comentado; tem também de, sem chamar atenção, e a partir do resposta filosofante? Quando é que nós filosofamos? É manifesto
seu assunto, acrescentar-lhe imperceptivelmente, a partir do seu que o fazemos apenas quando entramos em diálogo com os filóso-
tema, algo de próprio. Esse acréscimo é aquilo que o leigo sem- fos. Disso faz parte discutir com eles sobre aquilo e por intermédio
pre sente, de acordo com aquilo que tem como conteúdo do daquilo que eles próprios falam. Essa discussão uns com os outros
texto, como uma interpretação excessiva, que ele, no uso de sobre aquilo que, sempre de novo, enquanto o mesmo, interessa
seu direito, censura como arbítrio. Contudo, um comentador propriamente aos filósofos é o falar, o légein, no sentido do dialé-
genuíno nunca compreende o texto melhor do que o seu autor gesthai, o falar como diálogo. Uma coisa é estabelecer as opiniões
o compreendeu, mas sim de outro modo. Só que esse outro dos filósofos e descrevê-las. Outra coisa bem diferente é discutir
modo tem de ser de tal maneira que encontre o mesmo que o com eles aquilo que eles falam, e isto quer dizer aquilo de que eles
texto comentado reflete.” falam. Supondo, portanto, que os filósofos são interpelados pelo
ser dos entes para que digam o que o ente é, enquanto é um ente,
É, portanto, em vista desse “mesmo” que se pode depre- então também nosso diálogo com os filósofos deve ser interpelado
ender uma diretriz essencial sobre o modo de ler Heidegger. pelo ser do ente. Com nosso pensamento, devemos nós mesmos
Como poderíamos responder, por exemplo, à pergunta “que caminhar ao encontro daquilo que a filosofia busca. Nosso falar
éisto —a filosofia?”, em uma conversa filosófica com Heideg- deve co-responder àquilo por que os filósofos são interpelados. Se
ger? Como devemos ler o seu texto, em sua própria lingua- formos bem-sucedidos neste co-responder, então res-pondemos
gem, em seu próprio logos? Relembremos que ele responde em sentido autêntico à pergunta: que é isto — a filosofia?
âquela pergunta sobre a essência da filosofia indicando que
esta só será legítima quando for uma “resposta filosofante”, Ou seja, assim como só podemos responder legitimamente
que seja ela própria um exercício de filosofia. Para Heideg- a essa pergunta filosofando — portanto, entrando no diálogo com
ger, isso só acontece quando nos defrontamos com uma os grandes pensadores da tradição histórica da filosofia —, tam-
res-posta (Ant-wort — literalmente: palavra diante de, perante bém não podemos ler produtivamente Heidegger permanecendo
algo ou alguém): passivos, sem uma confrontação com suas palavras essenciais
a respeito da metafísica e de sua superação. Com nossa leitura e
nosso diálogo, devemos não apenas dar conta do assunto tratado,
5 Heidegger, M. “A palavra de Nietzsche, Deus morreu”. In: Caminhos de flo-
resta, p. 248. 6 Idem, Was ist das?— die Philosophie, p. 20 (tradução do autor).

112
112
mas também, inadvertidamente e a partir do tema da conversa,
acrescentar-lhe algo de próprio, alguma coisa que provém de
nossa própria indagação e inquietação.

Se lemos Heidegger assim, então abandonamos toda pos-


tura servil, para pensar com ele, a partir dele, mesmo contra
ele — o que significa corresponder à sua interpelação e, assim,
à interpelação da filosofia e de seus pensadores, cujo legado
nos foi historicamente transmitido:

A palavra alemã Antworten (responder) significa propriamente a


mesma coisa que ent-sprechen (co-responder). A resposta à nossa
questão não se esgota numa afirmação que res-ponde à questão
com uma verificação sobre o que se deve representar quando se
ouve o conceito “filosofia”. A resposta não é uma afirmação que
replica (n'est pas une réponse), a resposta é muito mais a co-respon-
dência (la correspondance), que corresponde ao ser do ente. Ime-
diatamente, porém, quiséramos saber o que constitui o elemento
característico da resposta, no sentido da correspondência.”

Ler Heidegger adequadamente é pensar com Heidegger,


o que também significa perguntar com Heidegger — o que
implica, ao mesmo tempo, veneração e rebeldia, pois, para
ele, “o questionar é a devoção do pensamento”.

7 Idem, ibidem, pp. 217 s.


8 Idem, A questão da técnica, p. 93.

n4 .
Conclusão Em busca de um pensamento por vir

Na história do Ocidente, o Esclarecimento constituiu um marco


filosófico, social e político. Nele ganharam expressão as espe-
ranças mais fortes de emancipação humana, cultivadas desde os
primórdios da racionalidade lógica. Anseios foram depositados
no lumen naturalis (na luz natural da razão) e nos recursos da
ciência e da tecnologia, vistos como capazes de solucionar os
enigmas do Universo, de garantir o domínio humano sobre as
forças da natureza e de realizar a justiça e a transparência nas
relações políticas nas sociedades modernas.
Para Immanuel Kant, por exemplo, o progresso do conheci-
mento teórico, acompanhado pela apropriação técnico-pragmáti-
ca da natureza, bem como sua utilização em benefício da dimensão
ético-política de uma humanidade concebida em referência a valo-
res como autonomia, dignidade e justiça, fornecem a chancela para
uma interpretação da história universal como plano de realização
de um milenarismo filosófico. A história seria a execução de um
plano oculto da natureza que conduz a um progressivo aperfei-
çoamento moral e político da humanidade: “Vê-se que a filosofia
também pode ter o seu quiliasmo; mas será um quiliasmo tal que,
para a sua emergência, a sua ideia pode, embora apenas de longe,
ser igualmente estimulante, portanto, nada fantasiosa”!

1 Kant, 1. “Oitava proposição”. In: Ideia de uma história universal com um propósito
cosmopolita (1784), p. 15.

LIZ
A respeito desse milenarismo filosófico, a lição de Karl Contudo, esses sonhos da razão esclarecida também pro-
Lôwith, aluno de Heidegger, é ilustrativa: duziram monstros e nutriram fantasias perigosas, e Heidegger
foi um dos primeiros a detectá-los em seus perigos. Nesse sen-
O futuro é o verdadeiro ponto nuclear da história, pressuposto que tido, mesmo seus ferrenhos opositores político-filosóficos
a verdade assente no fundamento religioso do Ocidente cristão, Theodor Adorno e Max Horkheimer, na Dialética do esclareci-
cuja consciência histórica é determinada pelo motivo escatológico: mento, expuseram os compromissos espúrios entre a razão
de Isaías até Marx, de Santo Agostinho até Hegel, e de Joaquim até completamente esclarecida e a barbárie mítica, a dominação
Schelling. A significação dessa direção do olhar voltada para um integral da natureza levada a efeito pela razão instrumental.
fim último, como finis e como télos consiste em que ela proporciona A promessa de livrar o homem do medo e instalá-lo na Terra
um esquema de ordem progressiva e de dotação de sentido que como senhor e possuidor desandou em administração global
pôde superar o antigo temor diante do fatum e da fortuna.” e totalitária da vida.
O problema pode ser assim enunciado: teríamos alcan-
Humanizar a natureza e naturalizar as relações humanas çado, com o progresso, também o perigoso limiar em que a
em sociedade: o progresso da ciência está atrelado aos supre- autodeterminação da razão converte-se em seu contrário, se
mos interesses da razão, que são de ordem ético-política. considerada sob o ponto de vista ético? Ao assimilarmos os
Se a física nuclear e a química transformaram o homem no processos naturais a artefatos construídos, não teríamos per-
“senhor dos elementos” — para empregar um termo de Heidegger dido o sentido tradicional de natureza, já que o natural sempre
que faz alusão aos progressos da química no início do século foi compreendido como o que cresce por si mesmo (physis),
XX, os avanços atuais da tecnociência na área da bioquímica diferindo dos produtos do fazer humano (téchne)? Seria esse o
e da biologia molecular permitem falar em superação da era limiar de uma era pós-humanista, que rompe a aliança entre o
atômica e na decifração dos mapas genéticos responsáveis pela progresso da ciência e a elevação ético-moral do gênero huma-
estruturação dos organismos, mesmo superiores. Realizando- no, aliança que foi um dos apanágios do Esclarecimento, de
-se a sonhada supremacia humana sobre as demais criaturas Bacon e Descartes, de Diderot e Kant?
do Universo, o homem poderia doravante tomar nas próprias Heidegger não é apenas um interlocutor obrigatório nesse
mãos a planificação e o controle das condições de existência no debate. É o eixo e o pivô em torno do qual esse debate se sus-
planeta, tornando-se como que um parceiro da criação. tenta e se move. Isso pode ser medido, por exemplo, em um
acontecimento impregnado de inquietante sentido filosófico.
2 Lówith, K. Weltgeschihte und Heilgeschehen, pp. 125 s. (tradução do autor). Em julho de 1999, o filósofo alemão Peter Sloterdijk publicou

118 119
um panfleto que deveria ser uma resposta à carta de Martin as forças selvagens e domesticar o homem pela via da escola e
Heidegger “Sobre o humanismo”, colocando a discussão a da leitura; para ele, a antropologia se complementa à clareira
respeito do futuro da natureza humana em patamares intei- heideggeriana, entendida como abertura para a transformação
ramente novos. Nesse pequeno texto, Sloterdijk esforçou-se do homem em animal doméstico (Haustier).
por mostrar os limites da destruição heideggeriana das éticas A clareira é mobilizada aqui como metáfora da criação e
humanistas herdeiras espirituais da Aufklárung. regulação da vida humana em casas e cidades:
Para Sloterdijk, o fundamental consiste nas insuficiências
práticas e teóricas da crítica heideggeriana, seu bucolismo quie- A clareira é, ao mesmo tempo, uma praça de combate e um lugar de
tista não permitindo ir além da meditação, do silêncio reve- decisão e seleção. Em relação a isso nada mais se pode reparar com
rencial em face das urgências de um tempo que se apresenta formulações de uma pastoral filosófica. Onde se erguem casas, aí
como pós-humanista e pós-moderno. Ele questiona como os tem que ser decidido o que deve ser dos homens que as habitam;
proferimentos iniciáticos de Heidegger poderiam contribuir para decide-se, de fato e pelo fato, que espécies de construtores de casas
a formação de uma “sociedade de vizinhos do Ser”, de uma comu- vêm a prevalecer.
nidade eclesial invisível de indivíduos isolados e bem-dispostos.
Sloterdijk conduz a reflexão não para a pastoral ontológi- Como o apóstolo São Paulo é Charles Darwin já o teriam
ca de Heidegger como alternativa ética contra o humanismo, feito, Nietzsche teria pressentido, por detrás do pacífico hori-
mas para o domínio concreto da história e da política, reinter- zonte escolar de formação, um cenário mais sombrio:
pretando em chave antropológica a clareira heideggeriana.
Para fazê-lo, recorre ao léxico suspeito do famigerado binômio Ele fareja um espaço no qual terão início combates inevitáveis sobre
domesticação e seleção — essa bifurcação decisiva no processo as vias da seleção humana — e esse espaço é aquele no qual se mostra
de autoconfiguração antropotécnica da humanidade. a outra face da clareira, a face oculta. Quando Zaratustra caminha
Para Sloterdijk, a história cultural do Ocidente foi marcada pela cidade na qual tudo se tornou menor, ele observa o resultado
pela tensão entre as técnicas de cultura seletiva (Ziichtung) e as de uma política de seleção até então exitosa e indisputada.*
forças civilizatórias de amansamento e domesticação (Zihmung)
do “bicho homem”. Na sua reflexão, o humanismo — insufi-
cientemente fulminado pela desconstrução heideggeriana da 3 Sloterdijk, P. Regeln fiir den Menschenpark. Ein Antwortschreiben zum Brief iiber
metafísica — constitui, na verdade, um longo e importante capí- . de Humanismus, pp. 11s. (tradução do autor).

tulo dessa história; com ele se empreende a tarefa de amansar 4 Idem, ibidem, p. 13.

120 121
Percebe-se a importância estratégica que a crítica nietz-
epocal, limiar em que se diferenciam os novos selecionadores e
schiana do humanismo adquire no ataque de Sloterdijk tanto a
os selecionados — os programadores e os programados:
Heidegger quanto à tradição humanista. Segundo ele, Nietzsche
denunciou a falsa inocência dissimulada na pedagogia huma-
Esse é o conflito fundamental de todo futuro, postulado por
nitária, a autoedulcoração de uma vontade coletiva de poder,
Nietzsche: o combate entre os cultivadores seletivos do homem
responsável pela seleção de determinada figura do humano
para o pequeno e para o grande — poder-se-ia também dizer entre
como normativa no Ocidente: a do homem bom, como animal
humanistas e trans-humanistas, filantropos e transfilantropos.
doméstico e virtuoso. Com isso, dissimula-se, sob a capa de
ensino e disciplina, uma “antropotécnica”, a cultura seletiva
É nesse contexto que gostaria de recuperar uma importan-
de um tipo humano. te passagem da entrevista-testamento de Heidegger à revista Der
É com essa forma de (auto)mistificação que somos con-
Spiegel, na qual ele se refere a seu equívoco filosófico-político
citados a romper. O desenvolvimento técnico-científico nos
a respeito do nazismo. Ao fazê-lo, mostra, porém, o contexto
habilita a planificar a tarefa cultural da seleção e, dessa manei-
em que o erro pode e deve ser adequadamente tematizado, e
ra — assim o pretende Sloterdijk —, a reescrever as regras do
esse contexto tem importância fundamental para uma reflexão
parque humano: sobre a respósta de Sloterdijk à carta “Sobre o humanismo”.
O contexto especialmente tematizado por Heidegger é o de
É a marca da era tecnológica e antropológica que os homens sejam
sua reflexão filosófica sobre a essência da técnica; é aqui que
mais e mais colocados no lado ativo e subjetivo da seleção, mesmo
se torna útil o tratamento de questões de antropologia, antro-
sem terem voluntariamente ingressado no papel do selecionador.
potécnica e política:
Devemos constatar: existe um mal-estar no poder da seleção, e
em breve será uma opção pela inocência, se os homens explici-
DER SPIEGEL: Talvez possamos resumir: em 1933, o senhor, como
tamente se recusarem a exercer o poder de seleção que eles de
uma pessoa apolítica, em sentido estrito, não em sentido lato, vai se
fato alcançaram.”
deixar levar pela política dessa suposta insurreição [o nazismo)...
HEIDEGGER: Pelo caminho da universidade...
Com a possibilidade técnica de decifrar e recombinar códi-
Ds: Pelo caminho da universidade vai se deixar levar pela política
gos e cadeias de genes, estaria aberta também uma nova clareira
dessa suposta insurreição. Aproximadamente um ano depois,

5 Idem, ibidem, p. 14.


6 Idem, ibidem, p. 13.

122
122
renuncia à função que então aceitara. Todavia, em 1935, em uma
não tem necessidade de ser ainda supervalorizada. Hoje, é para
preleção, que foi publicada em 1953, como “Introdução à meta- mim uma questão decisiva saber como um sistema político — e
física”, o senhor disse: “Aquilo que hoje” - ou seja, em 1935 — “se qual — pode ser adido à era técnica em geral. Não sei de nenhu-
oferece por aí como filosofia do nacional-socialismo, mas que não ma resposta para tal pergunta. Não estou convencido que seja
tem a ver nem um pouco com a verdade interna e a grandeza desse a democracia.
movimento (a saber: com o encontro da técnica planetariamente
determinada e o homem moderno), faz sua pesca nas águas turvas A vertiginosa escalada do progresso tecnológico tornou
dos “valores” e das 'totalidades””. O senhor acrescentou as pala- o debate hoje ainda mais radical e mais acirrado, de modo
vras entre parênteses só em 1953, portanto durante os trabalhos que falar de uma filosofia que sobreviva ao fim da metafísi-
de impressão — como que para explicitar ao leitor de 1953 onde O ca exige uma retomada crítica desses pressupostos em jogo.
senhor vira a “verdade íntima e a grandeza desse movimento”, ou A crítica e a sugestão presentes na resposta de Sloterdijk à
seja, do nacional-socialismo — ou esse parêntese esclarecedor já carta “Sobre o humanismo” deixam na sombra que o erro
fora inserido em 1935? de Heidegger, por certo monstruoso, nos ensina, a partir de
H: Isso estava no manuscrito e corresponde exatamente à compre- tais pressupostos, uma lição de prudência e moderação, ter-
ensão que eu então tinha da técnica, e não ainda à minha inter- rivelmente amarga e tragicamente dolorosa, mas de extrema
pretação posterior da técnica como Ge-Stell (armação). Se não importância e atualidade.
o pronunciei, foi porque estava convicto da correta compreen- O nazismo com certeza não encerrava nenhuma “verda-
são de meus ouvintes; os estúpidos, os provocadores e os espias de interna e grandeza”, muito menos consistiu em tentativa
compreenderam-no de outra maneira — também puderam fazê-lo de promover “o encontro da técnica planetariamente deter-
como queriam. minada e do homem moderno”. O que a imensa tecnologia
Ds: Seguramente, o senhor incluiria nessa mesma ordem também nazista produziu foi a destruição violenta e planificada do
o movimento comunista? humano — e isso constitui um fenômeno genuinamente bio-
H: Sim, incondicionalmente, como determinado pela técnica pla- político sem precedentes na história ocidental. Aquilo com
netária. que temos que nos medir é com um esforço metódico e bem-
Ds:E o americanismo também? -sucedido de destruir tecnologicamente o humano. É nesse sentido
H: Diria também isso. Entrementes, de trinta anos para cá, ter-se-ia que os campos de concentração constituíram o modelo de
tornado mais claro que o movimento planetário da técnica moder- implementação de um programa sistemático, levado a efeito
na constitui um poder cuja grandeza historicamente determinada por meio de todos os recursos e requintes da racionalidade

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125
lógico-instrumental, para a produção industrial da vida des- todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é fami-
cartável, indigna de ser vivida. liar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em
Como lucidamente entreviu o filósofo italiano Giorgio cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento.”
Agamben, ex-aluno de Heidegger, os campos de concentra-
ção são laboratórios biopolíticos, equipados com todos os É esse significado radicalmente antropológico-político da
dispositivos tecnológicos de poder — disciplinar, gerencial tecnologia do biopoder que é necessário destacar, para aprender
e previdenciário. Seu funcionamento tem em vista a ilus- com o erro heideggeriano. Na era da escalada planetária
tração paradigmática do exercício integral do poder, cuja da técnica, o pensamento ainda não se colocou à altura de
decisão soberana incide sobre uma matéria viva que habita meditar em profundidade com sua essência, mas a história
um limiar de indiferenciação entre o humano e o inumano. já multiplicou e acumulou os escombros deixados pelos
Eles são o não lugar no qual vigoram as regras de um parque resultados monstruosos dos experimentos antropotécnicos.
in-humano. Como observa Primo Levi, destruir o homem é uma tarefa tão
A figura do muçulmano [judeu], tal como descrita por Primo difícil quanto criá-lo; a experiência do muçulmano é a demons-
Levi, é a reprodução contemporânea do Homo sacer, a outra face tração dessa possibilidade, na medida em que nele não se dis-
da soberania biopolítica, própria da modernidade tecnológica: tinguem mais o humano e o não humano.
Com todo peso de sua inequívoca autoridade, escreve
A história — ou melhor, a não história — de todos os muçulmanos Wolfgang Sofsky:
que vão para o gás é sempre a mesma: simplesmente, acompanha-
ram a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. A sua O muçulmano é o homem destruído, jazendo entre a vida e a
vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os “muçulmanos”, morte. Ele é a vítima de uma aniquilação passo a passo do homem.
os submersos, são eles a força do campo: a multidão anônima, Antes de matar com violência corporal imediata, o poder total
continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que promove uma propositada política de miserabilização, de trans-
marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a cente- formação da conditio humana. Já a figura aparente do muçulmano
lha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. fala de uma desumanização que atinge as profundezas.
Hesita-se em chamá-los de vivos; hesita-se em chamar “morte” à
sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais 7 Levi, P. É isto um homem?, p. 91.
para poder compreendê-la. Eles povoam minha memória com sua 8 Idem, ibidem, p. 152.
presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar em uma imagem 9 Sofsky, W. Die Ordnung des Terrors, p. 229 (tradução do autor).

126 127
Perscrutar essa profundidade implica abismar-se nos labi- “testemunha integral” — como a que chegou ao mais fundo
rintos da moderna biopolítica, como aquilo que, com assusta- do poço — suprimiu com isso a própria possibilidade de dis-
dora urgência, dá a pensar. Agamben, por sua vez, considera tinguir entre o homem e o não homem. Olimiar entre ambos
“um fato singular que o muçulmano, embora todos os testemu- é a figura do morto-vivo que os campos produziram; não é
nhos falem a respeito dele como de uma experiência central, possível testemunhar a respeito dessa fronteira do indizível e
mal seja nomeado nos estudos históricos sobre a destruição do incomunicável: quem viu a Górgona não pode mais falar
dos judeus da Europa”: sobre sua própria visão, nada mais pode declarar ou comunicar.
Em face dessa descoberta e dessas experiências, seria
Somente agora, quase cinquenta anos depois, ele [o muçulma- necessário e urgente repensar com muito cuidado os progra-
no) começa a tornar-se plenamente visível, e apenas agora talvez mas biopolíticos de antropotécnica que se apresentam emba-
possamos extrair as consequências dessa visibilidade. Já que esta lados pelo delírio tecnológico de onipotência — bem como a
implica que o paradigma do extermínio que até este momento compulsão à repetição que dela se nutre. E, se assim for, então
orientou de modo exclusivo a interpretação dos campos tenha os rumos da filosofia do futuro podem ser divisados no espaço
sido não substituído, mas seja agora ladeado por outro paradigma, aberto entre as opções de superação tecnológica do humano,
o qual lança uma luz nova sobre o mesmo extermínio, tornando- por um lado, e o apelo preservacionista à responsabilidade, por
-0, de algum modo, ainda mais atroz. Antes de ser o campo da outro, mesmo no esgotamento dos humanismos tradicionais.
morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda impensa- Enquanto, em uma de suas vertentes, o fim da história se
do, no qual, além da vida e da morte, o judeu transforma-se em realiza na forma da superação do humano no trans-humanis-
muçulmano, e o homem em não homem. E não compreendere- mo e no pós-humano, na outra, a aposta em jogo é a respon-
mos que coisa foi Auschwitz, se não tiverros compreendido pri- sabilidade pela iminente catástrofe ecológica e por um novo
meiramente que coisa é o muçulmano, se não tivermos aprendido empreendimento sistemático de destruição do humano.
a olhar, com ele, a Górgona.!º A vertente da superação do humano pode ser ilustrada
pelo pós-modernismo de Jean-François Lyotard; Hans Jonas
Essa impossibilidade constitui, propriamente, a nova maté- ilustra a recuperação da phronesis aristotélica como autarqueia
ria étiça que nos foi legada pelos campos de concentração e por meio de uma heurística do medo, ou a crítica da utopia
extermínio: a macabra realidade de acordo com a qual uma irresponsável. Em ambos os casos, a importância da contribui-
ção de Heidegger, de sua filosofia da técnica e de sua reflexão
10 Agamben, G. Quel che resta di Auusiliovita, p. 47 (tradução do autor). sobre o humanismo mal pode ser exagerada.

128
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Tanto em A condição pós-moderna quanto em Le différend,
potencialmente imortal o corpo orgânico. A isso poderia se
Lyotard, profundamente influenciado pelo diagnóstico hei-
aliar uma reconfiguração da consciência, descentrada de sua
deggeriano da técnica, alveja o poder de legitimação das meta-
identificação com a unidade subjetiva, ultrapassando o atrela-
narrativas históricas, comprometidas com a emancipação
mento aos cinco sentidos, e conectada em redes neurais, simul-
humana. A esse tipo de crítica acrescentou depois um com-
taneamente com a miríade de centros virtuais de registro e
plemento: se a pós-modernidade é, para ele, o fim das repre-
processamento de informações. Para os membros do Extropy
sentações românticas do homem como soberano da história,
Institut, fundado pelo filósofo e cientista Max More no Vale
é também o princípio de uma superação da condição humana
do Silício, nos Estados Unidos, a atual base somática da per-
nelas representada:
sonalidade pode ser considerada um hardware em processo de
obsolescência, que deve ser substituído por um equipamento
A tecnociência atual realiza o projeto moderno: o homem se con-
de tipo Homo roboticus, imune a panes e disfunções orgânicas,
verte em amo e senhor da natureza. Mas, ao mesmo tempo, a
capaz de desenvolver autoconsciência e ultrapassar e substituir
desestabiliza profundamente, já que sob o nome de “a natureza” é
o Homo sapiens, como este fez com o Homo australopitecus na
preciso contar também todos os constituintes do sujeito humano:
trajetória ascendente da escala evolutiva.
seu sistema nervoso, seu código genético, seu computer cortical,
No plano da filosofia da história, no final do século XX,
seus captadores visuais, auditivos, seus sistemas de comunicação,
passou-se a cogitar outra vez uma coerência no desenvolvi-
especialmente os linguísticos, suas organizações de vida em grupo
mento, que conduziria a maior parte da humanidade para a
etc. Finalmente, sua ciência, sua tecnociência também fazem parte
meta da democracia liberal. Para Francis Fukuyama, a história
da natureza. Podemos fazer, fazemos ciência da ciência, como
tem um sentido, como tivera para Santo Agostinho, Voltaire,
fazemos ciência da natureza. O homem talvez seja tão somen-
Hegel ou Marx. Nela, a humanidade é, metaforicamente, como
te um nó muito sofisticado na interação geral das radiações que
uma longa caravana de carroças que avançam por um cami-
constitui o Universo.!!
nho: algumas entrarão na Meca prometida, enquanto outras
permanecerão no deserto."
E nesse horizonte que se inscrevem as perspectivas pós
Hans Jonas, por sua vez, ousa dar um passo fundamental
e transumanas, a troca de carbono por silício, que tornaria
em um caminho que leva de Heidegger à filosofia prática e
à ética. Nas sociedades contemporâneas investidas de um
m Lyotard, Jean-François. La posmodernidad (explicada a los nifios), pp. 29-32.
(tradução do autor).
12 Cf. Fukuyama, F. The End of the History and the Last Man.

130
131
potencial tecnológico em permanente desenvolvimento, a
com a verdade do Ser. Sob pena de, ao tentarmos fazer uma
razão mais forte pela qual a autoafirmação da vida deve ter
filosofia do futuro, permanecermos aquém de nossas próprias
caráter normativo para o ser humano é o poder alcançado
exigências, aquém daquilo que a destruição heideggeriana da
pelo homem por meio da moderna tecnociência. Essa potên-
metafísica já operou, e, desse modo, continuarmos ofuscados
cia prometeica desencadeada é o fundamento do dever de
e embotados para as possibilidades catastróficas de uma má
reconhecer à natureza aquele direito que lhe é próprio. Trata-se
realização do eterno retorno do mesmo.
de uma ética da responsabilidade com vistas a preservar um
A sobrevivência e o futuro das sociedades ocidentais pare-
ser portador de valor intrínseco, que pode ser efetivamente
cem depender da atualização de seu potencial tecnológico. Por
destruído pelo poder tecnológico adquirido e desenvolvido
outro lado, a dialética entre a aquisição de novos poderes e capa-
pelo homem:
cidades (vantagem técnica) e a possibilidade de sua utilização
assumem a forma do aproveitamento coercitivo, em escala indus-
O potencial apocalíptico da técnica — sua capacidade de pôr em
trial, dos avanços tecnológicos.
perigo a sobrevivência do gênero humano ou corromper sua inte-
Como em toda coerção, a dinâmica do progresso técnico
gridade genética, ou alterá-la discricionariamente, ou até mesmo
subtrai-se ao controle ético e subverte em dependência a promes-
destruir as condições de uma vida mais elevada sobre a Terra —
sa originária de emancipação. Compreender a essência da técnica
coloca a questão metafísica, com a qual a ética nunca fora antes
em um horizonte pós-metafísico poderia talvez ensejar tanto
confrontada, qual seja: se e por que deve haver uma humanidade;
uma reapropriação dessa potência quanto uma desalienação do
por que, portanto, o homem deve ser mantido tal como a evolução
homem moderno. Permitiria apreender a imbricação entre a téc-
o produziu; por que deve ser respeitada sua herança genética; sim,
nica e a metafísica, inscritas como destino na história da verdade
por que, em geral, deve haver vida.”
do Ser, a que o homem deve corresponder pelo pensamento.
Essa meditação ilumina os perigos ínsitos à dinâmica
Futuristas exaltados e preservacionistas, transumanos
autônoma da tecnologia, em marcha para colonizar e tornar
e neo-humanistas não podem, porém, responsavelmente,
dependentes de si as diversas formas de organização da socie-
elidir e deixar de levar em conta uma séria confrontação com
dade, colocando em risco a possibilidade futura de existência
o pensamento de Heidegger, de seu apelo à escuta da voz do
autenticamente humana na Terra.
Ser, de retomada da essência do homem em correspondência
Toda compulsão é sintoma de morbidez, de perda de
controle — um diagnóstico a que deve ser submetida a crença
13 Jonas, H. “Por que a técnica moderna é um objeto para a ética”,
p. 414. incondicional na resolução de todos os macroproblemas humanos pela

132
intensificação coercitiva do progresso tecnológico. Talvez ela seja signo
de um delírio de onipotência, que pode converter-se em seu
contrário, isto é, em impotência e extravio, como perda, difi-
cilmente reversível de autarcheia (autodomínio).
Heidegger nos confronta, pois, com a necessidade de des-
pertar de uma hybris e alcançar uma potência de segundo grau:
subtrair-se à compulsão que nos impele a percorrer sempre os
mesmos caminhos, que, em vez de salvação, potencializam
o perigo, enredando-nos mais profundamente na alienação.
O pensamento de Heidegger pode ser visto como um
humanismo distinto do tradicional. Se este sempre considerou
a humanidade do Homo humanus a partir da animalidade, Hei-
degger pensa a essência do homem como abertura para o Ser,
como obediência (gchorchen) ao apelo do Ser: uma dignidade que
Os sistemas éticos tradicionais não foram capazes de conceber.
Se a tradição limitava a esfera do ethos às relações do homem
consigo mesmo e com os outros homens, a ética heideggeriana
da finitude confere significação própria ao mundo e aos entes
intramundanos, cuja cura compete ao homem — não como
mestre dos entes, mas como pastor do Ser.

B4
Bibliografia OBRAS DE HEIDEGGER

EM ALEMÃO
Die Frage nach der Technik. 5. ed. Pfullingen: Giinther Neske Verlag, 1982.
Die Phânomelogie des religiósen Lebens. In: Gesamtausgane. 11. Abteilung.
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“Die Uberwindung der Metaphysik”. In: Vortráge und Aufsiitze. 5. ed.
Pfullingen: Giinther Neske Verlag, 1985, pp. 66-97.
Gelassenheit. Pfullingen: Giinther Neske Verlag, 1992.
Gesamtausgabe. Frankfurt: Vittorio Klostermann Verlag (em curso).
Nietzsche. Pfullingen: Giinther Neske Verlag, 1961, v. II.
Sein und Zeit. Túbingen: Max Niemeyer Verlag, 1986.
Was ist das? Die Philosophie. 4. ed. Pfullingen: Giinther Neske Verlag, 1966.
Zollikoner Seminare. Ed. Medard Boss. Frankfurt: Vittorio Klostermann
Verlag, 1994.

EM PORTUGUÊS
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Ernildo Stein. Coleção Os Pensadores, 1. ed. São Paulo: Abril Cul-
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A questão da técnica. Trad. Marco Aurélio Werle. Cadernos de Tradução
n.2. São Paulo: Departamento de Filosofia da Universidade de São
Paulo, 1997.
“A tese de Kant sobre o Ser”. In: Heidegger.Trad. Ernildo Stein. Co-
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Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, s. d.
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Fausto Castilho. Curitiba: Secretaria de Estado e Cultura, 1997.

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Fenomenologia da vida religiosa. Trad. Enio Paulo Giachini et alii. Petrópolis: “Sobre o humanismo”. In: Heidegger. Trad. Ernildo Stein. Coleção Os
Vozes, 2010. Pensadores, 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 345-73.

“Hegel e os gregos”. In: Heidegger. Trad. Ernildo Stein. Coleção Os Pen- “Tempo e Ser”. In: Heidegger. Trad. Ernildo Stein. Coleção Os Pensado-
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Heráclito. Fragmentos. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. São Paulo: Mar-
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“Identidade e diferença”. In: Heidegger. Trad. Ernildo Stein. Coleção SOBRE HEIDEGGER
Os Pensadores, 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, PP. 375-400.
“Meu caminho para a fenomenologia”. In: Heidegger.Trad. Ernildo ALTWEGG, ]. (ed.). Die Heidegger Kontroverse. Frankfurt: Athenâum, 1988.
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2. ed., coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.
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- Sobre a verdade. Lições preliminares ao 844 de Ser e tempo. Ijuí: Ed.
sOFSsky, W. Die Ordnung des Terrors. Frankfurt: Fischer Verlag, 1993.
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phi, 1998.

* Heidegger em periódicos brasileiros: Natureza Humana. Revista de Fi-


losofia e Práticas Psicoterápticas, assim como em sites veiculados pelo
mesmo periódico.

140 141
Sobre o autor

Oswaldo Giacoia Jr. é professor titular do departamento de


filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Doutorou-se em filosofia pela Universidade Livre de Berlim
(Alemanha), onde fez também pós-doutorado. É pós-doutor
ainda pela Universidade de Viena (Áustria) e pela Universidade
de Lecce (Itália). É autor de, entre outros, Nietzsche x Kant: uma
disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever (Casa da
Palavra, 2012), Pequeno dicionário de filosofia contemporânea (Publi-
folha, 2006), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a
modernidade (UPF editora, 2005); Nietzsche como psicólogo (Editora
Unisinos, 2004) e Nietzsche (Publifolha, 2000). Organizou, junto
com Antonio Florentino Neto, Heidegger e o pensamento oriental
(Edufu, 2012).

143
O leitor tem todo o direito de se
perguntar, ao cabo desse trajeto:
será Heidegger o pensador ca-
paz de liberar nossa imaginação
filosófica e política para a com-
plexidade do presente 'ou será
que sua inflexão aurática nos
deixa por demais atrelados ao
homem como “pastor do Ser”?

Se é impossível pensar nosso


tempo sem Heidegger, pensar
com ele significa, como insinua
Giacoia, pensar também contra
ele, tal como outrora Heidegger
fez com Nietzsche, que tanto
O inspirara.

PETER PÁL PELBART


professor titular de filosofia da
PUC-SP e autor de, entre outros,
O tempo não-reconciliado.

OSWALDO GIACOIA JR. é pro-


fessor titular do departamento de
filosofia da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e autor
de Nietzsche (2000), Nietzsche
como psicólogo (2004), Peque-
Este livro foi composto na fonte Albertina no dicionário de filosofia contem-
e impresso em maio de 2013 pela Corprint,
porânea (2006), Nietzsche x Kant
sobre papel pólen soft 80 g/m”.
(2012), entre outros, e coorgani-
zador de Heidegger e o pensa-
mento oriental (2012).

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