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31º Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Maranhão. Imperatriz - MA. 06 a 10 de junho de 2022.
Resumo: A música de viola brasileira contemporânea pensada como cena musical na sociedade
midiatizada, em articulações entre comunicação e experiência estética, em um
contexto de hibridismos e transculturação. O estudo assume a noção de experiência
estética em sua dimensão relacional, enquanto percepção sensível partilhada em
uma sociedade que tem na mídia um elemento estruturante. Desde que foi introduzida
no Brasil pelos portugueses, no século XVI, a viola se difundiu por várias regiões do
país e passou por uma série de transformações ao longo da história, principalmente
no século XX. A cena musical aqui chamada de “nova viola brasileira” se estabelece,
na transição para o século XXI, a partir práticas de produção, consumo e circulação
musical em um ambiente de desterritorialização e de referências cruzadas, em
movimento, no qual experiências poéticas musicais se desdobram em novas
experiências estéticas, em um reiterado ciclo criativo.
Abstract: Contemporary Brazilian viola music thought of as a musical scene in mediatized society,
in articulations between communication and aesthetic experience, in a context of
hybridism and transculturation. The study assumes the notion of aesthetic experience
in its relational dimension, as a sensitive perception shared in a society that has the
media as a structuring element. Since it was introduced in Brazil by the Portuguese,
in the 16th century, the viola has spread through several regions of the country and
has undergone a series of transformations throughout history, especially in the 20th
century. The musical scene here called the “new Brazilian viola” is established, in
the transition to the 21st century, from practices of production, consumption and
musical circulation in an environment of deterritorialization and cross-references, in
movement, in which musical poetic experiences are unfold in new aesthetic
experiences, in a reiterated creative cycle.
Keywords: Brazilian viola. Aesthetic experience. Musical scene. Sound territories. Cultural
hybrids.
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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Som e Música do 31º Encontro Anual da Compós,
Universidade Federal do Maranhão, Imperatriz - MA. 06 a 10 de junho de 2022.
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Docente da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista – FAAC-
UNESP – e coordenador do Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade. Doutor em Ciências da
Comunicação, pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), com pós-doutorado pela Université Stendhal
Grenoble 3. E-mail: laan.m.barros@unesp.br . ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2429-9716.
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Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes,
Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista – FAAC-UNESP –-Bauru. Mestre em TV Digital –
Informação e Conhecimento, pela mesma instituição. Contatos: ricardo.polettini@unesp.br . ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8201-0613.
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1. Introdução
A cultura popular tem sido alimentada pelos sistemas midiáticos, ao mesmo tempo que
é por eles apropriada, desde meados do século XX. Não é sem razão que ainda em 1947
Theodor Adorno e Max Horkheimer propuseram, na obra Dialética do Conhecimento, o termo
“indústria cultural” para denominar o que se identificava, de maneira um tanto generosa, como
“cultura de massa” quando se falava dos meios de comunicação na sociedade de consumo. O
conceito proposto pelos pensadores frankfurtianos, que já carregava em si uma conotação
crítica, foi questionado por alguns e problematizado por outros. Muitos até hoje o tomam como
ideia central em estudos de crítica da mídia. De toda maneira, a ideia de que a reprodução
técnica e tecnológica de bens culturais e a sua circulação com base em dinâmicas
mercadológicas aproximam mídia e cultura, mais do que um binômio, em uma perspectiva de
concentração estrutural.
A ideia de midiatização da cultura, presente nos estudos de Eliseo Verón, José Luiz
Braga, Fausto Neto e Stig Hjarvard, nos traz para um debate atualizado e dá ainda mais ênfase
à dimensão superestrutural da mídia na sociedade. A dicotomia entre mídia e sociedade é,
então, superada e a discussão sobre cultura se assenta, de vez, no plano da superestrutura. E
nessa visada teórico-epistemológica as percepções de tempo e espaço passam a ser balizadas
pelo aparato midiático que nos envolve de maneira intensa, em um “sistema de circulação
diferida e difusa”, para usar as palavras de José Luiz Braga (2006, p. 27) ao detalhar a interação
social sobre a mídia.
Neste artigo, trazemos para o contexto da cultura midiatizada a música de viola brasileira
autoral contemporânea, inserida no ambiente comunicacional ao ser observada na perspectiva
de uma cena musical, onde se dão novas práticas de produção, execução, circulação e consumo.
Uma cena marcada por experiências estéticas híbridas e processos de desterritorialização, por
encontros entre matrizes tradicionais e elementos globalizados, por adaptações, traduções, e
reinvenções, que expressam o contexto mundial de “transculturação”, conforme define Octávio
Ianni (2003) o ciclo permanente de transformações decorrentes de encontros e confrontos entre
diferentes culturas, choques, disputas, assimilações e dominações. Relações estas que, na
sociedade contemporânea, se dão essencialmente pelas interações midiáticas de uma sociedade
cada vez mais midiatizada.
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2. Percursos da viola
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promoverem encontros entre linguagens e culturas e que acabam por traduzir uma complexa
trama de relações e interações, característica de uma sociedade em acelerado processo de
midiatização.
A música de viola abrange matrizes culturais ligadas às diferentes regiões por onde o
instrumento se difundiu desde que chegou ao país nas mãos dos portugueses, ainda no século
XVI, especialmente, como nos lembra o violeiro e pesquisador Ivan Vilela (2018), nas regiões
Centro-oeste e Sudeste, onde teve seu maior desenvolvimento em relação à rítmica e gêneros.
Do encontro entre colonizador e populações originárias no século XVI, quando a viola
era utilizada pelos jesuítas como ferramenta de catequização de indígenas, surgem os primeiros
desses ritmos, como o cururu, cateretê, catira e querumana, entre outros, que vão compor o rico
universo sonoro da música caipira. No século XIX, a então capital do Brasil vive um momento
de efervescência cultural de inspiração europeia e a recém-chegada guitarra francesa (violão)
aos poucos substitui a viola nos choros, modinhas e sambas na zona urbana do Rio de Janeiro
(CASTRO, 2005). A viola passa, então, a ser associada à música de regiões rurais, onde era
utilizada tanto em momentos de lazer quanto em festejos de cunho religioso, como as folias de
reis. Nas folias de reis, acompanhados da viola, mestre e contramestre entoam versos e
vocalizações em intervalos de terça, sendo esta a origem mais provável do formato das duplas
caipiras que foi consagrado a partir das primeiras gravações, em 1929.
Nessa época, entusiasta da cultura do interior, o jornalista Cornélio Pires, natural de Tietê
(SP), excursionava por cidades paulistas levando cantores e violeiros para se apresentar em
circos e praças. O rádio começava a se consolidar como meio de comunicação de massa no
país, porém, a escassa produção fonográfica nacional favorecia a presença estrangeira nas
programações musicais. Atento a essa situação e confiante no potencial de sucesso das duplas
caipiras, Cornélio Pires fez um empréstimo e convenceu a gravadora Columbia a lançar uma
série de 53 discos de 78 rotações, gravados entre 1929 e 1930, que ficou conhecida como a
Série do selo vermelho, com mais de 100 músicas, piadas e causos, e que se tornou um sucesso
comercial para a época. (ALONSO, 2015).
Os antigos discos de acetato de dez polegadas comportavam gravações de cerca de três
minutos de duração. A limitação física acabou determinando a duração padrão das
composições feitas para tocar no rádio. Na década de 1930, a sonoridade da música das duplas
ainda não estava definida. Nos discos dessa época, as terças vocais das duplas se misturam a
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grupos regionais de choro, com violão, percussão e flautas. A sonoridade das duplas se
consolidou nas décadas de 1940 e 1950, quando se consagram artistas como Tonico e Tinoco
e Vieira e Vieirinha, entre outros, com o canto em dueto de terças e sextas, acompanhado
apenas de viola e violão. Tal sonoridade, que hoje é chamada de música caipira “de raiz”,
tornou-se uma das principais matrizes da música de viola na atualidade. (VILELA, 2011).
E como um produto de mídia, a música caipira foi incorporada pela indústria do
entretenimento, indo para o cinema e a televisão. A popularização de filmes e programas
musicais suscitaram mudanças estéticas na música das duplas, que incorporam cada vez mais
elementos musicais estrangeiros. Na década de 1960, composições como Disparada, de
Geraldo Vandré e Théo de Barros, e Ponteio, de Edu Lobo, nos festivais de 1966 e 1967,
abriram caminhos para a viola na MPB. Nessa mesma época, o sucesso do programa de TV
Jovem Guarda (1965 a 1968) traz a influência do rock para as duplas, que passam a gravar com
arranjos típico das bandas de rock: bateria, guitarras, contrabaixos elétricos e teclados, como é
o caso de Léo Canhoto e Robertinho (ALONSO, 2015).
Já nos anos 1970, Milionário e José Rico vão apostar na sonoridade das guarânias
paraguaias e rancheiras mexicanas, anteriormente exploradas por duplas como Pedro Bento e
Zé da Estrada, porém repaginadas, com arranjos modernos e letras mais urbanas e românticas.
Essa mistura será a base para as gerações de duplas sertanejas que viriam nas décadas seguintes.
Românticos e com aproximações ao country norte-americano, Chitãozinho e Xororó
inauguram a era dos mega shows sertanejos nos anos 1980, que vão desembocar,
posteriormente, no fenômeno comercial chamado de sertanejo pop, ou sertanejo universitário.
Embora a viola tenha deixado de ser o instrumento principal das duplas sertanejas no
final dos anos 1960, a década reúne, por outro lado, acontecimentos que vão consolidar a
presença da do instrumento na música popular brasileira nas décadas seguintes, num processo
denominado por Corrêa (2014) como “avivamento” da viola caipira no Brasil. Um desses
eventos é a invenção do pagode caipira por Tião Carreiro, um ritmo sincopado introduzido por
temas melódicos que exigem destreza do violeiro em sua execução. Até hoje, as introduções
de pagode de Tião Carreiro são uma coleção de estudos para os violeiros.
Outro momento importante nessa época, de acordo com Corrêa (2014), foi a escrita das
primeiras partituras com notações para viola caipira, entre 1962 e 1963, pelo compositor
Theodoro Nogueira. Surge também nessa época, a primeira orquestra de viola caipira, em
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Podemos, assim, considerar a música de viola brasileira uma grande categoria musical,
identificar em parte de sua produção relações que possam evidenciar uma cena musical, que
neste caso não se articularia em torno de um só gênero musical, mas em torno de uma certa
diversidade de gêneros, subgêneros, ritmos e outras manifestações (sonoras, visuais,
comportamentais), que fluem em múltiplos espaços e tempos. “A concepção fluida de cena
possibilita notar que os gêneros musicais antes de serem simples rótulos são modos de tentar
nomear experiências sonoras em seus aspectos econômicos, sociais e estéticos.” (JANOTTI
JR., 2014, p.8)
O movimento em torno de uma viola autoral no Brasil, embora sem uma denominação
específica, já é discutido em estudos acadêmicos, inclusive de violeiros, como Roberto Corrêa
(2014), no campo da Musicologia, e Ivan Vilela (2011), na Psicologia Social. Já na tese Mestres
de ontem e hoje - uma sociologia da viola caipira, de Luiz Antonio Guerra (2021), numa
abordagem sociológica, é utilizado o termo “nova viola brasileira” para designar o segmento
dessa viola mais experimental. Essa vertente, no entanto, está abrangida na tese como uma das
expressões da “viola caipira contempor nea”, categoria que também incluiu a viola dos
folguedos, ou seja, dos grupos tradicionais ainda em atividade, como as folias de reis, e também
a “viola caipira no mercado fonográfico contemporâneo”, ao qual associam-se artistas que
reestilizam a música de viola caipira tradicional, principalmente o pagode caipira de Tião
Carreiro, numa roupagem mais próxima às performances das duplas dos megashows do
sertanejo universitário.
O que denomino como nova viola brasileira não é propriamente uma vertente da
prática do instrumento, mas um amplo e difuso movimento constitu do por violeiros
e violeiras que se utilizam da viola para explorar variadas vertentes musicais, como
a música instrumental e a canção, tocando e/ou cantando sozinhos, em forma o de
duos, trios, bandas, câmaras ou orquestras, trazendo influências plurais, como a
música erudita, as manifesta es folclóricas e diversos ritmos da música popular
brasileira, latino-americana e mundial. (GUERRA, 2021, p. 169).
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Essas reinvenções estéticas nas apropriações da viola, que operam em uma chave de
mesclas e hibridações, promovem, sim, intercâmbios culturais. Mas essas composições se dão
tanto na busca de harmonias como de dissonâncias, de tensões e contrastes entre o campo e a
cidade, entre as lembranças do passado e a realidade do presente. Talvez o termo já citado de
“transculturação”, proposto por Octavio Ianni (2003) em Enigmas da modernidade-mundo,
seja mais apropriado para nos referirmos a esses processos ao mesmo sincréticos e conflitantes,
de pluralidade “polifônica e cacofônica”. Como problematiza Ianni (2003, p. 107), “A
transculturação pode ser o resultado da conquista e dominação, mas também da
interdependência e acomodação, sempre compreendendo tensões, mutilações e
transfigurações”.
E é nesse contexto de tensionamentos que a cena da nova viola brasileira ocupa o seu
espaço na sociedade midiatizada. Em meio a tantos estímulos sonoros e tanta mesmice musical
determinada pelas mídias mercantilizadas, as experiências e experimentações de violeiros e
violeiras aqui analisadas parecem criar um território sonoro estético em meio aos barulhos da
cidade e aos silêncios da solidão e do isolamento. Assim nós nos transportamos para outros
“territórios sonoros”, termo usado por Giuliano Obici (2008, p.99) para pensar os “percursos
do sensível e da escuta”. Diz ele: “talvez a música seja, por excelência, o TS que produz
potências audíveis, que institui qualidades expressivas, modos de existência para os sons, a
partir dos movimentos de desterritorialização e territorialização que ela nos ensina”. Para ele,
O fato é que, nessa atitude e de fugir de um território sonoro, nesse movimento de
desterritorialização da escuta, para servir a um gosto ou retroalimentar uma opinião,
ocorre uma produção, ou melhor, surge outro estado de escuta, diretamente
relacionado ao desejo de ouvir outra coisa que não aquela paisagem sonora, aquela
palavra de ordem. (OBICI, 2008, p. 126)
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território de origem. Transitando entre referências das mais rústicas às mais complexas, sendo
estas processadas em um sistema simbólico permeado de mediações culturais e
comunicacionais, os violeiros constroem sua própria identidade musical, cada um à sua
maneira, uns mais próximos às tradições, outros mais abertos a sonoridades experimentais,
testando equipamentos, formas de captação, efeitos dinâmicos, modulações e overdrives, e sua
musicalidade o insere em circuitos diversos, que vão compor a cena musical atrelada àquele
subgênero. E as transformações dessas territorialidades e temporalidades decorrentes da
midiatização da sociedade dão um sentido de contínua renovação estética à cena aqui estudada.
Essas reapropriações da viola resultam em novas experiências estéticas e acabam por
constituir novos públicos, atraídos pelas novas sonoridades, que saem de suas zonas de
conforto para experenciar novas sensibilidades. É verdade que elas também criam e alimentam
novos nichos de mercado, atentos a novidades. Mas no caso da nova viola brasileira, cena
musical que se tornou nosso objeto de estudo, essas novas poéticas musicais se afirmar como
experiências estéticas, que se oferecem a percepções sensíveis de espectadores abertos a novas
“paisagens sonoras” – termo proposto por Murray Schafer (2011) ao descrever as paisagens
sonoras natural, rural e pós-industrial. Mais que uma escuta passiva e contemplativa,
experiências estéticas musicais como as da viola brasileira contemporânea propõem um
deslocamento do espectador para fora de sua zona de acomodação, uma experiência sensível
rica em produção de sentidos. Esse movimento deve ser discutido na perspectiva de uma escuta
sensível, ou uma escuta “sem anestesia”, como temos discutido noutros texto sobre
comunicação e experiência estética (BARROS, 2017).
Como forma de ilustrar a sonoridade da cena musical da nova viola brasileira, elencamos
alguns de seus atores para uma breve análise interpretativa de sua música. Uma produção que
é marcada por experiências estéticas híbridas, que recombina as tradições com elementos da
música global, traduzindo-se em diferentes temporalidades e espacialidades. As formas
musicais refletem como novas poéticas se desdobram a partir de experiências estéticas, num
continuum criativo e reiterado de transformações.
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configurar como uma espécie de rap - ritmo e poesia - não fossem as referências calcadas nos
saberes, lendas e causos do sertão. O violeiro chama o estilo de “causos musicados”.
Nessas suas narrativas violadas, ou causos musicados, a viola de Paulo Freire, mais que
um acompanhamento, conduz o nível de tensão e alívio nas histórias, acompanhando em
dissonâncias o suspense trazido pelas letras. No citado álbum Alto Grande (2013), a faixa
Ferveu! conta a história de um relacionamento conturbado entre um homem cego de paixão e
uma moça que o deixava “cismado”. A viola faz um tema circular, acompanhada de bateria,
retornando de tempos em tempos a um clima de tensão, conforme a história se desenrola na
mesma toada. Poética parecida, Paulo Freire já experimentava em seu primeiro álbum
instrumental, Rio abaixo (1995), como na faixa Receita de pacto, na qual acompanha o parceiro
Wandi Doratiotto ensinando o passo a passo de como fazer um pacto com o diabo para aprender
a tocar a viola. À medida que a trama vai se desenvolvendo, a viola em rio abaixo costura os
versos, fluindo e trazendo tensões, até que ao final, deságua em ritmo frenético representando
o sucesso da empreitada do violeiro na encruzilhada no encontro com o “cão”.
O terceiro exemplo que trazemos dessa cena musical da nova viola brasileira é a violeira,
cantora e compositora Letícia Leal. Musicista da novíssima geração da viola brasileira, ao
longo de seu desenvolvimento musical, descobriu que o timbre de voz, de tessitura contralto,
mais grave e rara entre as mulheres, não se encaixava nas tonalidades das afinações tradicionais
da viola. A situação levou a violeira a se redescobrir como artista, por um lado, desmistificando
a ideia de que a viola só se toca no tom em que ela está afinada e, por outro, se aproximando
cada vez mais da música instrumental. Ao lado do violeiro Caio de Souza, lançou seu primeiro
álbum, Urutu (2019). Produzido por Fernando Sodré, numa ruptura com a linguagem
tradicional do instrumento, em dueto de violas, Letícia e Caio criaram arranjos e contrapontos
para músicas escritas originalmente para outros instrumentos, resultando num trabalho de
sonoridade bastante urbana, em tonalidades e arranjos improváveis dentro do que se pode
chamar de viola convencional.
A sintonia de Letícia Leal e Caio de Souza nos duetos e costuras com as violas é
impressionante. Em Caçada, faixa assinada por Fernando Sodré e Rafa Duarte, enquanto uma
viola faz um trançado de base juntamente com um violoncelo, a outra passeia pelo tema
principal, mesclando melodias intrigantes e tensionamentos, assim como numa perseguição,
numa caçada. O conjunto dos três instrumentos reforça a versatilidade da viola de dez cordas
em diálogo com diferentes vertentes da música. Dessa forma, a música de Letícia Leal abre-se
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às referências mais diversas, além das presentes no tradicional universo da viola. Teve início
no folk e no rock rural de Almir Sater, depois, enveredou-se para o choro e a MPB. E o domínio
que a violeira tem da linguagem musical hoje permite que ela insira elementos diversos em
suas composições, que pode ser um fraseado de choro ou um ponteio em dueto. Só que a viola
caipira, neste caso, soa totalmente urbana.
6. Considerações Finais
A cena que vem se constituindo como tal desde o “avivamento” apontado por Corrêa
(2014), cuja gênese se dá nos anos 1960, perpassa os 1970 e 1980 se constituindo, desponta
nos 1990 e 2000 e chega na atualidade nesse contexto de diversificadas variações e usos da
viola, em um movimento essencialmente híbrido e transcultural. O que temos em um
movimento mais recente e bem característico da viola de dez cordas são experiências estéticas
experimentais, que ao mesmo tempo que renovam, tensionam os gêneros musicais tradicionais,
misturando matrizes com elementos globalizados, numa fusão entre tradição e modernidade, o
velho e o novo, que se cruzam em um ambiente de compartilhamento de sensibilidades e de
reinterpretações. Nessa cena musical é possível encontrar, até mesmo, proposições que
reelaboram formas e formatos pré-existentes que dão origem a novas e reiteradas experiências
estéticas, ou conforme nos traz Bourriaud (2009), numa lógica do sampleamento, da mixagem.
Trata-se, portanto, de um fenômeno próprio da cultura midiatizada, em que as lógicas do
mercado não são as únicas determinantes de sua produção. Tais transformações, manifestadas
em experiências estéticas híbridas, são inerentes à sociedade em processo cada vez mais
acelerado de midiatização, em que tais práticas são regidas por mediações culturais da
comunicação e por mediações comunicacionais da cultura.
A cena musical identificada na pesquisa que deu origem a este artigo também pode ser
pensada no contexto histórico brasileiro na atualidade, que tem seus reflexos na cultura. Ela
estabelece um contraponto com a indústria da música no Brasil, ao manejar a mesma
simbologia, ligada à viola, porém o faz desde um ponto de vista da criação artística e da
experimentação musical, da experiência estética. A nova cena está menos atrelada às lógicas
da cultura de massa, das celebridades, dos megashows, das festas do peão e dos rodeios, uma
lógica de produção que se sustenta com apoio das grandes empresas de mídia, que explora esse
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mercado com a venda de produtos articulados, que cria ambientes espetaculares para gravação
de shows. A música pop chamada de sertaneja se constitui em uma linha de produção própria
do mercado e do show business, que se vale de toda a tecnologia disponível na atualidade para
os grandes eventos da música pop internacional, que merece ser questionada na perspectiva de
tradição frankfurtiana, da crítica à “indústria cultural” (ADORNO & HORKHEIMER, 2006),
já mencionada na introdução deste texto. A música sertaneja pop revela o fascínio que o grande
público do estilo nutre pela sociedade globalizada, em que a produção agrícola foi mecanizada,
a colheita é guiada por GPS, o caipira nessa estética mercantilizada virou o cowboy do asfalto,
nas colocações de Gustavo Alonso (2015). Na sociedade em que o “agro é pop”, o cenário do
espetáculo sertanejo pode ser uma fantástica marina repleta de iates de luxo, luzes, fogos,
bailarinos, vôos sobre o público. Alegorias muitas vezes presentes, também, em outros gêneros
– ou nichos de mercado – da música pop no Brasil, como o funk, o tecnobrega, o forró
eletrônico, o arrocha e a pisadinha, que adotam a ostentação financeira como elemento de
construção de imagem de poder e de sucesso.
É verdade que a cena da nova viola brasileira, aqui analisada, também se apropria de
elementos da cultura globalizada. Mas ela lida com outros gêneros musicais, que trabalham
com outras temporalidades e territorialidades, contrapondo-se à chave mais comercial mantida
pela indústria do entretenimento. Isso não quer dizer que os violeiros desta cena não queiram
vender seus discos e tocar para plateias numerosas, o que, afinal, são metas inerentes à
atividade musical profissional, que como qualquer profissão tem a sua dimensão econômico-
financeira. Ocorre é que, nesta cena, da nova viola brasileira, as aproximações com a cultura
global seguem uma lógica artística, de poéticas que tanto se apropriam de tradições da cultura
caipira e sertaneja quanto dialogam com outras linguagens contemporâneas, o que resulta em
novas experiências poéticas musicais, que se oferecem a novas experiências estéticas, com
potência de se renovar a cada nova geração.
Esta nova cena musical se configura em dinâmicas de produção, criação e consumo
menos institucionalizadas que as estabelecidas pelas lógicas do mercado. Há, na verdade, um
rompimento com essas lógicas. É pequena a intermediação institucional entre produção
artística e público da nova viola brasileira. São interações que movimentam outras estruturas
midiatizadas, mais próximas das lógicas das redes sociais digitais, onde o local e o regional
encontram espaço diante do global, e com ele se embaralham a partir de suas próprias lógicas,
que não as da grande indústria da música da atualidade. Nesse contraponto entre instituição e
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movimento, entre a “indústria cultural” e a cultura artística, a cena da nova viola brasileira
assume um caráter de movimento, marcado por experiências estéticas híbridas, relacionais,
interacionais. Em direção distinta às lógicas industriais do mercado, a cena da nova viola
brasileira tem mais a ver com a “partilha do sensível”, proposta por Rancière (2009), em uma
perspectiva de colaboração e compartilhamento, de experiência estética que se dá no plano
comum da cultura e enseja identificação e reconhecimento. Mais que um segmento de mercado,
ela se caracteriza como movimento. Um movimento estético, que merece ser chamado de cena
musical.
Referências
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: Música sertaneja e modernização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização
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