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Música Pop

Bilhete de Identidade Sonoro e afetivo

Por Letícia Pinheiro


(Aluna 0000042604)

Mestrado em Antropologia: Culturas em Cena e Turismo


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa

Seminário: Usos da Cultura


Docente: Filomena Silvano
Resumo

Partindo de uma breve contextualização histórica do aparecimento da internet, o


objetivo deste pequeno ensaio é, em primeiro lugar, perceber qual o papel e o lugar da
antropologia no espaço virtual dentro de um contexto global. Seguindo uma análise das
teorias e metodologias antropológicas parto deste ponto para 4 capítulos: Capitalismo
frenético ; Do pacífico ao espaço planetário; A viagem de ida do local ao global com
retorno ao lugar único; A Exposição do fracasso global. Daqui partirei para a exploração
das questões em torno do indivíduo e delas tentarei tirar algumas ideias antropológicas
para a relação do individuo com os outros e consigo mesmo, num mundo virtual em que
ainda tudo, está quase por entender.

Palavras-chave: Música; Meios de Comunicação de Massas, Rádio, Consumo,


Ciberespaço, Cultura de Massas, Cultura Popular, Identidade singular e coletiva,
Memória; Globalização.
Música Pop
Uma coletânea de Identidades e memórias
Bilhete de Identidade Sonoro e Afetivo
“ A Música oferece à alma uma verdadeira cultura íntima e deve fazer parte da educação do
povo”

François Guizot
(Político Francês)

“Quis saber quem sou/ O que faço aqui/ Quem me abandonou/ De quem me
esqueci/Perguntei por mim/ Quis saber de nós (…)”

As questões são poeticamente colocadas por José Niza na letra da música “E depois do
Adeus, composta por José Calvário e cantada por Paulo de Carvalho, canção vencedora
da 12ª edição do Festival RTP1 da Canção em 1974.
No entanto, estas são questões que podem ser colocadas por qualquer individuo e que
numa pequena parte encontram resposta na própria Música Popular, como um dos
muitos elementos diferenciadores de uma identidade.
Corria o ano da revolução de Abril em Portugal e esta música tocava nas rádios de todo
o país, como reflexo da popularidade atingida pela vitória no Festival da Canção de
1974. Era uma música que falava de amor, separação e saudade. Uma música que pode,
por isso, ter sido apropriada por muitos como um objeto pessoal com ligações à sua
própria história de vida na identificação que dela possam ter feito, particularmente da
letra.
No entanto, na noite de 24 de Abril de 1974, depois de tocada pelos Emissores
Associados de Lisboa às 22h55 esta música passou a ser outra coisa.

O que é a Música ao longo da sua vida social em si mesma, o que ela é e representa
para os diferentes indivíduos, para os grupos, para a sociedade de consumo, para os
meios de comunicação de massas? Qual a sua relação com a memória dos indivíduos e a
memória coletiva, neste caso de um país? Que função de uso é que ela ocupa na
cultura?

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Rádio Televisão Portuguesa – Empresa estatal de Rádio e Televisão que agrega a antiga Emissora
Nacional ( com emissões desde 1 de Agosto de 1935 ) e a Televisão Pública (com emissões regulares
desde 7 de Março de 1957). Marcelo caetano foi um dos grandes impulsionadores da criação da Rede de
Televisão Nacional aconselhando Salazar nesse sentido ainda em pleno Estado Novo.
São algumas das questões que aqui me proponho tentar responder, discutir e refletir, na
esperança desenvolver algumas ideias úteis (nomeadamente para uma futura tese) sobre
os fenómenos sociais, culturais, comunicacionais e económicos (todos eles, obviamente
intercruzados) em volta do consumo da Música no mundo moderno.

Na conceção Ocidental o som sempre teve algo de misterioso, algo que não se
rende de forma clara a um raciocínio de configurações estáveis. A inserção da música
nas várias atividades sociais e os significados múltiplos que decorrem desta interação
constituem importante plano de análise antropologia da música.

Não é, no entanto, antropologia da música que aqui se pretende fazer, mas a esta
hiperespecialização da antropologia ir buscar os conteúdos necessários para entender a
Música e as suas dinâmicas em volta da relação com os indivíduos e as suas
apropriações da mesma, num mundo moderno e globalizado, onde a música é entre
muitas coisas, um produto que se adquire na sociedade de consumo e um dos muitos
elementos de diferenciação de estilos de vida no mundo moderno.

O surgimento e crescimento da Classe Média

Não podemos, no entanto, falar de música como elemento diferenciador dos estilos de
vida, sem olharmos para trás e percorrermos uns quilómetros até meados do Séc. XVIII.
Na obra “Consumer Culture” Celia Lury traça-nos um retrato de uma Inglaterra com
uma sociedade que estava a ficar menos hierarquizada e que cujos elementos
começaram a desenvolver aspirações de “status”. A sociedade de consumo, é
normalmente tida como decorrente da Revolução Industrial, mas nesta obra, Celia Lury
não sublinha a cem por cento esta tese. Citando McKendrick, Brewer e Plum (1982), a
propósito do nascimento da indústria da moda, a autora apresenta-nos uma outra
revolução: A Revolução do Consumo paralela à revolução Industrial e não dela
decorrente, embora não exclua a importância que os modos de produção do capitalismo
para ela tiveram.
Celia Lury, citando os três autores apresentados diz-nos “(…)But, importantly, they also
propose that the spread of fashion was dependente upon a new consumer sensibility, a
kind of progressive emulation among the lower middle class and a new fondness for
novelty (…)” (1996: 81)
Assim, não poderíamos falar desta revolução do consumo sem este crescimento da
classe média, não só em Inglaterra, mas em vários lugares através das trocas entre países
e das relações dinâmicas da economia transnacional. Crescimento este que começou a
dar os primeiros passos com as trocas coloniais, uma vez que para além de bens de
primeira necessidade, das colónias chegavam também bens de luxo. As mudanças na
produção introduzidas pelo Fordismo com as devidas interações entre produção e
consumo, acompanham a ascensão da classe média baixa que passa agora a
desempenhar trabalhos burocratizados num ambiente de escritório, que tem algum
tempo para o lazer e interage com o ambiente2 criando novas necessidades de produção.
A classe média ganha voz, em setores particulares como a moda, o design e os Média. E
ao ganhar uma identidade própria através de um consumo partilhado a classe média
estimula deste modo a produção em massa.
Há um novo estilo de vida comum ditado pelas vozes sonantes da classe média ao
mesmo tempo que há uma libertação das regras religiosas, (principalmente as veiculadas
pelo protestantismo que valorizava o trabalho como algo nobre e via o consumo e o
lazer como algo indigno e superficial) são criadas as conceções de beleza, e nascem
novas relações entre os géneros criando elas também novas necessidades de produção.
Toda esta viagem no tempo feita por Celia Lury e por outras obras dos anos 90 3, é
importante para percebermos como é que se chega ao consumo da música como
definição de estilo de vida e narrativa identitária. São as classes médias, portadoras de
uma formação longa e com alguma folga económica que investem na diferenciação
através consumo. É a classe média que cria esta necessidade e é ela, que ao mesmo
tempo, a tem. Mas como é que se passa da música enquanto som organizado
humanamente, para a música como objeto e motivo de consumo?

Do consumo à vida social da música

Os anos 70 do século XX estão na génese da Antropologia do consumo. Mas revista


esta história desde meados do século XVIII impõe-se a pergunta: Porquê um
desenvolvimento tão tardio desta especialização da antropologia? Alice Duarte no seu
artigo para a revista “Etnográfica” intitulado “A Antropologia e o estudo do consumo:

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Estes trabalhos burocratizados permitiram a criação de espaços distintos, espaços de partilha de estilos
de vida que criaram necessidades de produção pela sensibilidade destes novos consumidores ávidos de
corresponder a este novo ambiente de estilo comum.
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Quando já é óbvia a criação de estilos de vida através das novas classes médias.
revisão crítica das suas relações e possibilidades” responde primeiro com a opção
estruturante da antropologia por colocar o foco nas sociedades pré industriais4 e em
segundo lugar com os “(…) constrangimentos ideológicos que se fazem sentir graças à
forte influência do modelo marxista, cujos efeitos se desdobram quer no centrar da
atenção sobre a produção e o trabalho em detrimento do consumo (…) quer no conceber
necessariamente como um mal a mercadorização da sociedade (…)” (2010: 368)
Em Marx encontramos a construção da identidade dos indivíduos pelo seu trabalho,
encontramos os trabalhadores alienados pelo trabalho não personalizado e pelo produto
que servia única e exclusivamente o lucro. Para Marx o valor da mercadoria deixa de
estar dependente do seu valor de uso e, a partir daí, ele considera que as relações
pessoais entre os indivíduos se transformam em relações entre coisas. Ora “(…) este
ênfase na produção faz com que o consumo apareça desvalorizado e percebido como
mero resultado dos interesses capitalistas, que criam necessidades e desejos,
aumentando a procura segundo os objetivos da produção. O consumo aparece reduzido
à venda de mercadorias e obtenção das respetivas «mais valias» (…)” (2010:369)
Para além disso, eleger o trabalho como único local de auto-realização humana parece-
me conter uma contradição com o percurso feito pela classe média, a classe que criou
estilos de vida baseados no conjunto bi-partido trabalho/lazer e que ao lazer foi buscar,
também, auto-realização como disso é prova o crescimento do Turismo de Massas e a
evolução das industrias culturais, em que a música, objeto deste ensaio, se insere.
Poder-se-ia dizer, que o entretenimento não contém realização pessoal por ser isso
mesmo: entretenimento e escape ao trabalho de todos os dias. Mas, para além de muitos
indivíduos terem feito do entretenimento o seu espaço de realização profissional, é ao
entretenimento que devemos muitas vezes os nossos espaços de sociabilização, relação
indispensável à auto-realização dos indivíduos.

No entanto, gostaria, neste ponto de abordar o trabalho de Richard Sennett sobre o


fracasso, onde o autor nos apresenta um mundo moderno em que se liga muito a ideia
de sucesso à ideia de carreira, sendo que, diria até que o próprio discurso identitário está
muito ligado, também, a esta ideia de carreira entendida como “(…) um esforço
organizado a longo prazo (…)” (Sennett, 2000[1998]: 187)

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Responsabilizando Marcel Mauss pela conceção dos sistemas de prestações totais tendo subjacentes
uma moral e um direito. Para Mauss só nas sociedades primitivas as transações não são nunca simples
trocas de bens ou riquezas, de coisas meramente úteis.(2001:55)
Não podemos assim rejeitar toda a teoria elaborada por Marx no que à produção e às
mercadorias diz respeito, mas temos que saber olhar também para outras teorias que nos
lançam novos olhares sobre a produção e instaurando definitivamente a pesquisa sobre o
consumo.
É neste ponto que importa falar de Daniel Miller, mas também sucintamente de outros
autores que com ele fizeram a história dos estudos do consumo. É o caso de Bourdieu
que pensa os indivíduos como capazes de atribuir simbolismo aos bens e às coisas
atribuindo-lhes um papel ativo enquanto consumidores. Nomes como T.Veblen,
Sahlins, M.Douglas e B.Isherwood Baudrillard ou Certeau têm também que ser
mencionados neste caminho. No entanto é a Miller que devemos a grande tomada de
posição séria da cultura de massas. Em “Material Culture and the Mass Consumption”,
desdobrando as ideias dos pós-modernistas que rejeitam as ideias de consumo ligadas à
mera necessidade e utilidade, Miller desenvolve a teoria da apropriação cultural dos
objetos. Interessante o caso das cozinhas em apartamento Londrinos estudado por
Miller. Neste caso vemos como mesmo em apartamentos alugados os indivíduos
sentiram necessidade de fazer alterações às cozinhas, mais ou menos profundas de
acordo com o seu grau de sociabilidade, o que prova que a apropriação é relacional e
contextual. Com Miller percebemos que nos tornamos naquilo que compramos ou
adquirimos e definitivamente atribui um papel ativo e criativo ao consumidor fazendo
com que o consumo apareça sempre ligado à produção.
E é aqui que a música se torna mais do que um som humanamente organizado. A
música, passa a ser materializada para ser comercializada, assume-se no mundo dos
indivíduos como um objeto-mercadoria que se compra, mas que quando entra na casa
das pessoas sob a forma de CD ou Mp3 é apropriado por elas. A música deixa de ser o
objeto produzido em massa, numa repetição multipartida por milhões de suportes
dirigidos a milhões de leitores de CD, Mp3 ou computadores, para neles ser consumida.
Uma vez aí chegada a música não mais é uma. Uma mesma música multiplica-se em
milhões de músicas com diferentes significados consoante o individuo que dela se
apropria em relação com a sua história de vida, com a sociedade, o momento e o espaço
que se encontra. Nesta música os indivíduos encerram memórias pessoais, coletivas,
acontecimentos, cheiros que ligam a momentos. Os Indivíduos dão, por fim, uma
dimensão pessoal à música que lhes chegou a casa. A música passa a ser parte deles, da
sua história e do seu discurso identitário.
Música e Identidade

“Qual é a música da tua vida?”. Esta é uma pergunta recorrente nas relações sociais
entre indivíduos na sociedade moderna. Quando dois indivíduos se encontram pela
primeira vez é frequente as preferências musicais serem objeto de conversa e de
descoberta inter-pessoal, o que atesta as competências do objeto musical para a
construção do discurso identitário, sendo que “(…) não há identidade em si, nem sequer
unicamente para si. A identidade é sempre uma relação com o outro. Por outras
palavras, identidade e alteridade articulam-se uma na outra e mantêm uma relação
dialética. A Identificação caminha a par da diferenciação. Na medida em que a
identidade é sempre um processo de identificação no interior de uma situação relacional
(…)” (Cuche, 1999: 141 - citando Galissot [1987]). Assim sendo a música constitui
sempre uma procura por identificação consigo mesmo, com o outro ou uma
diferenciação com o outro, conforme o contexto relacional. Por outras palavras,
conforme os indivíduos queiram encontrar pontos em comum com o outro, ou queiram
fazer valer a sua identidade, por diferença com o outro, a música pode aqui, ser muitas
músicas. Podemos chamar para esta conversa diferentes músicas numa negociação de
interesses relacionais.
Desta natureza relacional e identitária, nascem também os grupos de indivíduos à volta
de diferentes estilos musicais que muitas vezes se vão inserir em tribos urbanas, cuja
diferenciação vai depois muito além da música. Assim são os amantes do estílo “Metal”
que muitas vezes se organizam depois em comunidades restritas com hábitos restritos e
comuns ao nível da literatura, religião ou crenças e rituais. Estes grupos vão definir a
sua auto-identidade de acordo com a sua situação relacional. A esta auto-identidade
opõe-se a hétero-identidade, que será a maneira como o grupo é definido externamente e
que desemboca muitas vezes numa “identidade negativa” vinda de fora em direção ao
centro de um grupo minoritário, como é aqui o caso apresentado dos indivíduos que se
organizam relacionalmente em comunidades à volta do estílo de música “Metal”.

Os estilos de música, servem também para a criação de ambientes de consumo de


que são exemplo os Festivais de música.
A criação e o desenvolvimento da Classe Média incorporou uma nova consciência
social em que a distinção entre trabalho e lazer, tão cara a esta classe5, está estilizada.
Celia Lury dá-nos o exemplo do “Blackberry”, um dispositivo móvel onde se pode
combinar trabalho e lazer num mesmo equipamento. O “Blackberry” faz parte da
estilização de vida da classe média. A mesma função têm os festivais de música, ainda
que mais voltados para a vertente do lazer, assumem-se como um estilo de vida no seio
das camadas mais jovens da classe média, ao qual não se pode escapar, se se quer estar
no grupo, se os indivíduos se querem conhecer a si mesmo e desenvolver relações com
os outros indivíduos. É aqui que o conceito de “habitus” de Bourdieu nos é mais caro.
Bourdieu “mapeia as diferenças de gosto como forma de aceder às diferenças entre
grupos sociais; o padrão de bens consumidos e a constituição da ordem social aparecem
estreitamente relacionados” (Alice Duarte, 2010:373)

É assim, que nos últimos anos têm proliferado Festivais dos mais diversos estilos de
música, quer em Portugal, como um pouco por todo o mundo moderno. Os Festivais de
música, por si só, dariam um interessante estudo antropológico tendo por base os
sentimentos de pertença a grupos sociais e os respetivos marcadores da diferença co-
relacionados e aproveitados pelas marcas e pela comunicação social com vista a uma
maior número de receitas dos festivais, devolvendo-os ao estatuto de mercadoria, muito
mais perto do conceito de Marx. No entanto, neste pequeno ensaio, não é disso que se
trata.

De qualquer forma os festivais de música são um bom exemplo da materialização da


apropriação que os indivíduos fazem de uma música, quando esta lhes chega a casa.
“(…) O Gosto desdobra-se em múltiplos domínios do consumo de massa, onde toda a
manifestação de uma diferença pode ser olhada como um marcador social que tem
subjacentes certas condições de existência. Enquanto expressão de pertença a um
determinado grupo social, os gostos funcionam como traços de união e como fatores de
exclusão: unem num mesmo estilo de vida os agentes que partilham as mesmas
condições objetivas de existência, distinguindo-se de todos os outros (…)” (Duarte,
2010: 373)

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Distinção no sentido em que já não temos só trabalho, mas no sentido em que a Classe Média valoriza
muito o trabalho, mas também o lazer e foi responsável pela criação das 8 horas de trabalho, 8 horas de
descanso, 8 horas de lazer. Uma distinção que incorpora estas duas realidades, que fazem parte do
estilo de vida da classe média num só “pacote”.
Vale a pena, dizer ainda que um interesse similar à evasão turística, encontramos neste
tipo de acontecimentos musicais em que o individuo procura ambientes em que estejam
criadas situações excecionais ao quotidiano.

Voltando à noção de habitus criada por Bourdieu há uma outra forma de habitus em
volta da música que desde a sua génese vive de mãos dadas com ela: A Rádio.

Rádio: da música às marcas

Desde a sua criação por Guglielmo Marconi que milhões de indivíduos se ligam todos
os dias à Rádio para ouvirem as suas músicas. Aquelas das quais já se apropriaram, as
que ainda se vão apropriar e aquelas que nunca chegarão a fazer parte do seu mundo.
Desde cedo que a rádio mostrou aos indíviduos um maravilhoso mundo de acesso à
música, mesmo aquela que não podiam comprar. A Rádio é deste modo, um suporte
alternativo ( e neste sentido, se calhar mais democrático ao disco), ao Cd, ou ao Mp3
para a apropriação do bem de consumo que é a música.
Edgar Morin (1962), chamou a atenção para o desenvolvimentos dos meios de
comunicação de massa obedecerem cada vez mais a critérios de rendimento e de
rentabilidade em tudo o que se refere à produção cultural. “A produção tende a
suplantar a criação” (Cuche, 1999: 122)
Poderíamos voltar aqui às teses propostas por Marx, no entanto, tal como Denys Cuche
adverte na sua obra “A Noção de cultura nas ciências sociais” “(…) a noção de massa
sofre uma imprecisão uma vez que segundo as análises, o termo massa ora remete para
o conjunto da população, ora para a sua componente popular (…)” No que a este
segundo caso diz respeito muito autores falaram em embrutecimento das massas, mas
Cuche corrije “(…) tais conclusões confundem cultura para massas e cultura de massas.
Não é pelo facto de uma massa de indivíduos receber a mesma mensagem que essa
massa passa a constituir um conjunto homog+eneo. É evidente que h+a uma certa
uniformização da mensagem mediática, mas isso não autoriza q que dela deduzamos a
uniformização da recepção da mensagem (…)”

Assim, com vista a um maior rendimento a rádio de hoje em dia praticamente deixou de
mostrar músicas novas na rádio. São desenvolvidos testes de música para reduzir o nível
de risco do ouvinte desligar. O que levou a uma homogeinização dos estilos de música
em grande parte das estações emissoras. Ainda assim, os indivíduos parecem
desenvolver um habitus que os faz ouvir mais umas rádios mais do que outras. Isto
acontece, porque a rádio reconhece a apropriação que os indivíduos fazem dos produtos
ao reintreperta-los de acordo com as suas próprias lógicas culturais (A este exemplo
temos o caso, apontado por Miller da Coca-Cola em Trinidad. Um produto global que é
consumido de diferentes formas por africanos ou indianos).
Desta forma a rádio acaba por se voltar de costas para a música e construir a sua
narrativa identitária à volta do discurso, do estilo de vida que apresenta aos indivíduos,
do branding, assumindo-se hoje como um produto distanciado da música e autónomo
que os indivíduos podem consumir em deterimento de outra estações de rádio com um
discurso e um estilo de vida com que não se identifiquem tanto.

Devolver a música aos indivíduos

Se a rádio já não é o suporte principal onde os indivíduos consomem a música


( Passando o testemunho talvez à Internet nas suas variadas e diferentes formas de
consumo global da música), ela continua, no seu âmago, a ser o que sempre foi:
Um conjunto de sons organizados humanamente.
No momento em que o músico a compõe dá início a toda uma vida social da música.
Arjun Appadurai na sua obra “A vida social das coisas” dá-nos uma prespectiva
impressionante dos objetos e dos bens. Enquanto em Miller encontramos um bem
dotado de significado e símbolos atribuídos em apropriação que criam um mundo
pessoal de bens que reflete as suas experiencias, os conceitos de si e do mundo,
Appadurai impressiona pela sua teoria de que as coisas têm uma própria vida social.
Aqui a capacidade performativa de bens torna-se visível através de objetos de
desempenho que expressam certos aspetos da identidade dos indivíduos. Appadurai olha
ara a circulação de mercadorias como um movimento de significados. ( a escolha de um
presente é uma atribuição de significado ao objeto).
Appadurai surpreende pela técnica metodológica ao tratar os objetos como seres vivos
com uma vida social.
E a verdade é que encarar a música como tendo também ela uma vida social podemos
encontrar novos aspetos da cultura material revelados por esta animação metodológica.
Voltando ao exemplo com que se iniciou este ensaio, em 1974, José Cálvário compunha
“ E depois do Adeus”. Uma música que falava de amor e saudade envolvendo uma
rutura sentimental. Podemos questionar o que queria José Cálvário contar ao mundo
com esta m+uisca. De que forma queria ele interrogar o mundo com a sua arte
devolvendo o produto final aos indivíduos, tornando-se assim, sem o saber uma espécie
de antropólogo. Porque é isto que os artistas fazem, muitas vezes sem disso terem
consciência. Filomena Silvano no seu artigo “Um Antropólogo Fazedor de objetos”
expõe-nos d que forma Fernando Brízido (…) pensa o mundo através dos objetos que
faz, ou dito de outra forma, pensa a vida ao mesmo tempo que constrói um pouco da
materialidade do mundo. Ele interreta a cultura material – interroga-a e depois devolve a
interpretação ao mundo em forma de objetos (…)” (Silvano, 2011:2)
A música sai depois das mãos de Cálvário, materializa-se para entrar no circuito de
mercado e entra depois na casa das pessoas e cada individuo apropria-se dela à sua
maneira. Nela encerrará memórias, acontecimentos

E passa também a ser um elemento de diferenciação social.

Com a transmissão de "E Depois do Adeus", pelos Emissores Associados de Lisboa às


22h55m do dia 24 de Abril de 1974, era dada a ordem para as tropas se prepararem e
estarem a postos. O efectivo sinal de saída dos quartéis, posterior a este, seria a emissão,
pela Rádio Renascença, de "Grândola, Vila Morena" de Zeca Afonso.

O passado é um país distante 


que distante é a sombra da voz 
o passado é a verdade contada 
por outro de nós
(Sérgio Godinho)as,

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