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A Hipátia de Gilles Ménage

Tradução de Janyne Sattler

O nome ‘Hipátia’ encontra-se no capítulo “As platônicas” da coletânea de


mulheres filósofas de Gilles Ménage (Histoire des femmes philosophes, ou no
original, Mulierum philosopharum historia), publicado em 1690. Trata-se de uma das
únicas obras modernas que recupera, ainda que apenas no intuito de um inventário, os
nomes das filósofas da Antiguidade. Tem, por isso, um significado particular em
plenos séculos de crescente reclusão e explícita propaganda contra a intelectualidade
das mulheres - em especial na filosofia. Não parece ser à toa, portanto, que a própria
obra de Gilles Ménage tenha ficado por tanto tempo esquecida e sem tradução, e que
nosso acesso a ela também se dê apenas pelas vias de outros idiomas.
Junto de Hipátia, Ménage coloca as platônicas Lastênia de Mantineia, Asioteia
de Filos, Arria, Gemina (mãe e filha) e Anficleia. E, novamente, não nos surpreende
que talvez jamais tenhamos ouvido falar sobre algumas delas.

Ménage, Gilles. Histoire des femmes philosophes. Traduit du latin par Manuella
Vaney. Présenté par Claude Tarrène. Paris: Arléa, 2003. Tradução das p.41-46.

Hipátia
Nascida em Alexandria, ela gostava muito de filosofia e de matemática. Ao
mesmo tempo filha e discípula de Téon de Alexandria, filósofa, geômetra e
matemática, ela superou seu pai e mestre. Eunápio, em seu Jônico, conta que à época
de Jônico de Sárdis, um célebre médico, de nome Téon, havia adquirido um grande
renome na Gália. Alguns o identificam com nosso Téon, mas, em minha opinião,
trata-se de um outro. Henri Savile considera que o nosso Téon é provavelmente
aquele que havia traduzido Ptolomeu. É o que nos faz saber Henri de Valois em sua
História eclesiástica de Sócrates, no capítulo 15 do livro VII. Isto também parecia
provável à Ismaël Boulliaud, o francês mais versado em astronomia, capaz de contar a
multidão de estrelas e de dar um nome a cada uma delas.
Que Hipátia tenha igualmente pertencido à seita dos platônicos, é o que nos
ensina esta mesma História de Sócrates, no capítulo 15 do livro VII. Eis aqui as
palavras do próprio Sócrates na tradução de Valesiano, que valem absolutamente a
pena serem lidas:
Havia em Alexandria uma mulher de nome Hipátia, que era filha do filósofo
Téon. Ela alcançou tal erudição que ultrapassou em muito todos os filósofos de
seu tempo e foi admitida na escola de Platão para suceder a Plotino, e expor
aos ouvintes as disciplinas da filosofia. Aqueles que amavam a filosofia afluíam
de todas as partes para ouvi-la. Além da confiança e da autoridade que ela
havia adquirido através de sua erudição, ela comparecia algumas vezes diante
dos juízes demonstrando uma grande modéstia. Ela não experimentava
qualquer vergonha de se mostrar frequentemente entre os homens.

Nicéforo, no capítulo 16 de seu livro XIV, faz comentários semelhantes, mas


não hesitarei em transcrever suas palavras porque elas nos ensinam também outras
coisas:

Havia em Alexandria uma mulher de nome Hipátia, cujo pai era o filósofo
Téon. Ele a educou tão bem, e ela se destacou em tantas disciplinas, que
ultrapassou em muito todos os filósofos; não somente aqueles de seu tempo,
mas também aqueles que há muito a haviam precedido. Ela foi admitida na
escola de Platão para aí suceder a Plotino. Ela foi capaz de fazer conhecer as
ciências a todos aqueles que o desejassem. Além disso, qualquer um que
possuísse a paixão pela filosofia vinha até ela, atraído não somente por sua
honestidade e pela seriedade que ela demonstrava em seus discursos, mas
também porque ela abordava os homens com pudor e decência, não parecendo
indecente a ninguém o vê-la entre eles. Todos a respeitavam e reverenciavam
em razão de sua notável conduta. Todos estavam em admiração, quando o
ciúme ergueu contra ela o seu braço vingador. O fato de ela estar
frequentemente em companhia de Orestes, prefeito de Alexandria, inspirou
contra ela uma conspiração junto ao clero de Cirilo, bispo de Alexandria, que
impediu a reconciliação de Cirilo com o prefeito. Por isso, alguns apoiadores
de Cirilo - entre os quais figurava um certo Pedro, da ordem dos Leitores -
postaram-se para a vigiar e, enquanto ela voltava de algum lugar, eles a
tiraram da carruagem e a arrastaram para a igreja que leva o nome de César,
onde a despiram antes de a matar com cacos de azulejos. Então, depois de ter
arrancado seus membros, eles a levaram a um lugar chamado Cinaron, e aí a
queimaram.

2
Sócrates conta de maneira semelhante a morte de Hipátia no capítulo 15 do
livro VII de sua História eclesiástica, e é dele que Nicéforo recebe seu relato. Mas
Filostórgio, em Fócio, diz que foram os Homoousianos1 que mataram Hipátia - nome
que Fócio condena, além disso, como uma impiedade - e que tudo isso, explica
Hésico o Ilustre, aconteceu por causa do ciúme nascido de sua incrível habilidade nas
ciências, sobretudo astronômicas.
Sinésio de Cirene tinha grande estima por ela e escreveu-lhe muitas cartas,
todas voltadas à filosofia. Na carta XVI, ele a chama de mãe, irmã, mestra da
eloquência e benfeitora, sem contar outros títulos honoráveis. Nesta mesma carta, ele
pede que ela se dedique à fabricação de um hidrômetro (é assim que chamamos o
instrumento que permite mensurar a pureza das águas; veja o que dissemos sobre esta
palavra em nosso Amenidades do direito, no capítulo 41). A carta XXIV de Sinésio
começa assim: “Mesmo se ao chegar ao Érebo a vida se esvair, eu pelo menos aí
guardarei a memória de minha querida Hipátia”.
Gregoras faz com deferência menção a ela no capítulo V do livro VIII de suas
Histórias. Nós relatamos suas observações acima ao falar de Eudóxia, esposa do
déspota Constantino Paleólogo.
Hipátia era muito bonita, diz o Suda (ou, mais exatamente, o anônimo que fala
no Suda). Ele acrescenta que a um de seus ouvintes, que estava morrendo de amor por
ela, ela mostrou suas vestes manchadas do sangue de suas regras e disse-lhe: “Eis pelo
quê estás apaixonado, meu amigo”, curando assim o seu espírito. Ele diz também que,
apesar de ela ter esposado o filósofo Isidoro, ela permaneceu virgem. Damáscio, em
sua Vida de Isidoro, em Fócio, também fala dela como esposa de Isidoro e afirma
igualmente que ela consagrou-se à geometria. (Sobre o filósofo Isidoro, ver Damáscio
na Biblioteca de Fócio).
Ela escreveu um Comentário sobre Diofanto, uma coletânea de regras de
astronomia, e um livro sobre as Cônicas de Apolônio, atestado pelo Suda. Existe em
Étienne Baluze, no tomo primeiro de seus Concílios, em um texto sinódico contra a
tragédia de Irineu, no capítulo 216, uma carta assinada pelo nome de Hipátia e
endereçada a Cirilo o Abençoado, arcebispo de Alexandria:

1
Nome de um grupo de cristãos que se opunha a outros no uso do conceito de substância.
Para os homoousianos (de homoousios que significa “consubstancial”), o Filho é da mesma
natureza que o Pai, ele é Deus como o Pai. Concílio de Nicéia de 325.

3
Lendo as histórias do tempo, descobri que o Cristo viveu antes do ano 140, e
que ele teve discípulos que, em seguida, foram chamados de apóstolos. Foram
eles que, após sua subida ao Céu, espalharam a doutrina cristã. Eles o faziam
de maneira simples, sem se preocupar muito com o conhecimento. Chegando
um dia, com sua inteligência e seu saber mal estabelecidos, em um lugar
repleto de pagãos, estes minaram a sua doutrina ao mostrar-lhes o quanto ela
estava mal fundamentada. “Já que, de fato, segundo o Evangelho, ninguém
pode ver Deus, como podeis afirmar que Deus morreu sobre a cruz?” E
acrescente-se: “Como aquele que não pode ser visto, poderia ser fixado sobre a
cruz? Como ele morreu? Como ele foi enterrado?” Então Nestório, que acabou
de partir para o exílio, expôs a eles a pregação dos apóstolos. Ao aprender
também eu, há já algum tempo, que o próprio Cristo havia dito possuir duas
naturezas, expliquei àquele que me ensinou que as questões dos pagãos
estavam resolvidas. Afirmo, portanto, que Vossa Santidade errou ao ir de
encontro ao seu saber, de reunir um sínodo e de trabalhar por sua deposição.
Quanto a mim, relendo agora há pouco as explicações deste homem e
relacionando-as às pregações dos apóstolos, disse a mim mesma, ao refletir a
respeito, que seria um grande bem para mim fazer-me cristã, e espero ser digna
da regeneração conferida pelo batismo do Senhor.

Como é um fato estabelecido por Sócrates que Hipátia morreu no quarto ano do
episcopado de Cirilo, sob o consulado de Onório X e de Teodósio VI, ou seja, no ano
415 da era cristã, e que, por outro lado, esta mesma carta menciona o exílio de
Nestório no curso do ano 436, como o estabelece Évagrio, Stéphane Baluze considera
que esta carta seja apócrifa, opinião à qual eu me alinho de bom grado.
Há, no livro I da Antologia Palatina, um epigrama intitulado Sobre a sabedoria,
traduzido em latim por Grócio, e no qual trata-se da filósofa Hipátia:

Ao te ver, admiro tua pessoa e teus discursos, crendo ver o palácio estrelado da
Virgem, porque tuas obras, augusta Hipátia, chegam até o Céu. Tu és o
ornamento da eloquência, e um astro incomparável na arte da sabedoria.

4
Um antigo epigrama, escrito em grego em louvor de Hipátia, que ainda não
tinha sido publicado, foi editado por Jacob Godefroy em atenção a Filostórgio. Claude
Saumaise, em sua “Carta à Madame du Puy”, no começo de suas Observações sobre
os direitos ático e romano, a respeito de Mademoiselle Schurmann, moça batava
muito culta, comete um erro tipográfico, ou um lapso, ao chamar nossa Hipátia de
Hippia.

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