Você está na página 1de 5

Neste cerne temático selecionado, Fílon, o único locutor, expõe algumas

considerações sobre a tese de Cleantes. No primeiro momento, reconstrói os


fundamentos conceituais deste argumento - a saber, suas premissa epistemológica
e sua concepção de inferência causal - para, em seguida, estabelecer uma crítica
interna - isto é, tenta refutá-lo através daquilo que considera ser a escora de sua
opinião
Fílon inicia sua exposição tecendo algumas considerações de ordem
epistemológica. Mesmo que alguém pudesse se abstrair de toda a experiência
sensível, ser-lhe-ia impossível determinar o caráter que o universo deve ter, com
base somente em suas especulações e fantasias. Pois estas, se concebidas
claramente e tomadas em si mesmas, não implicam qualquer contradição ou
impossibilidade; não há, portanto, nenhum meio seguro de optar justificadamente
por alguma delas - todas estão em pé de igualdade. E tampouco poderia este
alguém indicar a causa de qualquer acontecimento e, em específico, da totalidade
das coisas ou do universo, caso viesse a ter alguma experiência efetiva do mundo
tal qual ele é. Todas suas fantasias continuariam a ser igualmente possíveis e
plausíveis: só é possível indicar a verdadeira gênese dos fenômenos com base na
experiência - porquanto esta é a matriz do(s) conhecimento(s) válido(s) sobre o
mundo: “Só a experiência pode apontar a verdadeira causa de qualquer fenômeno
(p.33)”.
A racionalidade (a ordem, arranjo ou ajustamento) das causas finais, assim,
não constitui uma prova de desígnio, por si mesma: aprioristicamente, é razoável
considerar que a matéria contenha a fonte ou origem da ordem e que por estas
dinâmicas materiais as coisas sejam arranjadas racionalmente. Pois na medida em
que a mera experiência da economia das causas finais - ou melhor, da finalidade da
natureza - não é o suficiente para que se possa conhecer, precisa e
justificadamente, as suas causas, tais juízos continuam calcados apenas na mera
especulação, a menos que se tenha verificado-os por meio de experiências
originadas nesses mesmos princípios - ou melhor, na própria causa desta economia
Fílon afirma que, para Cleantes, haveria, todavia, alguma diferença entre as
suposições de que a ordem do mundo escoraria-se na matéria ou em um desígnio
mental - dada não pela fantasia, mas pela própria experiência ordinária. Ora, os
objetos da técnica não possuem qualquer ordenação senão por dinâmicas da
mente, e a matéria, por si mesma, não adquire qualquer racionalidade ou finalidade
tecnológica. Observa-se que somente mediante uma economia desconhecida e
inexplicável das ideias é que estas se associam na mente e produzem artefatos
técnicos - pela própria experiência prova-se, portanto, que a mente possui um
princípio original de ordem, do qual a matéria carece. Se de efeitos semelhantes
inferimos causas semelhantes (axioma), e se a adaptação dos meios aos fins é
igual tanto na Natureza quanto nos objetos tecnológicos, então as causas de ambas
têm de ser semelhantes - isto é, a ordem da natureza teria sua gênese em algo
mental cujas feições são assemelhadas às dos humanos.
Exposto aquilo que se considera a posição de Cleantes, Fílon prossegue à
sua crítica. Os ataques centram-se no uso do conceito de inferência habitual da
argumentação adversária: se a experiência é a matriz dos conhecimentos válidos e
precisos, não obstante, apenas em casos semelhantes - senão iguais - as
inferências causais poderiam ser transpostas ou comparadas. Elas estão, de certo
modo, ancoradas em solo natural, isto é, na experiência específica que lhes dá
origem.
No plano argumentativo, ela (a crítica) procede por graus: começa num
primeiro nível epidérmico e, aceitando momentaneamente aquilo que acabou de
refutar, prossegue a níveis mais abrangentes, sempre utilizando-se de exemplos e
conjecturas concretas. Fílon reproduz tal procedimento até desconstruir, por
completo, as noções e conceitos que tacitamente sustentavam a tese de Cleantes.
Ao final, retoma o cerne da crítica - apresentado, inclusive, em momentos
antecedentes - e, a partir de toda erosão causada, desfere o “ataque final” - isto é,
aquilo que considera ser necessário para que tal argumento fosse sequer possível
segundo suas próprias premissas.
Inicialmente, defende que aqueles casos os quais não são completamente
semelhantes não oferecem uma confiança absoluta à possível transposição de
casos passados à fenômenos particulares, porquanto cada alteração nas
circunstâncias - ou melhor, nas condições de determinado evento - pode provocar
abruptas mudanças no domínio dos desdobramentos, gerando novas dúvidas e
exigindo novas observações para provar que tais alterações não são nem
importantes nem significativas:
Uma mudança de tamanho, situação, arranjo, duração, condição atmosférica ou corpos
circundantes, pode ser seguida das consequências mais inesperadas e, a menos que os
objectos nos sejam muito familiares, é de uma grande temeridade esperar com
segurança, após uma destas mudanças, um acontecimento semelhante ao que
observámos anteriormente. Os passos lentos e reflectidos dos filósofos distinguem-se
aqui, mais do que em qualquer outro lado, da marcha precipitada do vulgo que, instigado
pelas semelhanças mais triviais, é incapaz de todo o discernimento ou ponderação.
(p.35)

Em seguida, o princípio de ordenação mental é tomado enquanto apenas


uma das diversas origens e princípios do universo - como, por exemplo, outras
dinâmicas e leis naturais diariamente observadas. Admite: é, de facto, uma das
causas ativas pelas quais algumas partes específicas da natureza produzem
alterações noutras, mas aquilo observado num domínio particular não pode ser
comparado irrefletidamente à totalidade das coisas - afinal, a desproporção entre a
parte e o todo o impede: não há fundamentos para que se defenda racionalmente tal
realocação conceitual infundada de observações restritas à domínios particulares às
coisas de domínios mais gerais e até mesmo totais. “A visão acanhada de um
camponês, que faz da sua economia doméstica a regra para o governo de reinos, é,
em comparação, um sofisma perdoável (p.36)”
E mesmo se pudéssemos fazê-lo legitimamente, por quais motivos escolher
algo tão débil e limitado como a razão - essa espécie de pequeno agitamento do
cérebro tomado indevidamente, aqui, como causa da totalidade do mundo?
Ademais, seria possível pensar a Natureza enquanto algo contínuo e homogêneo,
de tal modo que ela se replicaria igualmente por todo universo? Ou, até mesmo,
tomar o pensamento humano - o qual, até onde sabemos, está confinado em
condições restritas e particulares como o planeta terra - enquanto princípio gerador
de todas as coisas?
E que se aceitasse que existe em todo o universo uma mesma forma de
pensamento e de razão, não obstante, mesmo assim não haveria porquê alastrar
considerações e observações de um mundo pronto à um mundo por vir cujo estado
é embrionário. Pois mesmo a nossa restrita experiência nos mostra a complexidade
da natureza, seu “número infinito de causas e princípios que se manifestam
incessantemente a cada mudança da sua posição e situação” . Como possivelmente
uma dinâmica válida para um local e tempo circunscrito poderia valer para situações
totalmente diferentes e desconhecidas, se, ainda mais, a nossa experiência - a
própria matriz do conhecimento - está circunscrita a uma parte e tempo muito
pequenos desse grande sistema?
Em suma, como lograr êxito numa empreitada tão incerta como esta? Como
analisar, rigorosa e precisamente, um assunto tão afastado da “esfera da nossa
observação”, se as próprias premissas da argumentação adversária - ao menos,tal
qual Fílon as reconstrói - aceitam tacitamente que a nossa capacidade de
conhecimento causal calca-se na empiria? Ora, quando observam-se dois objetos
sempre juntos, o hábito possibilita inferir-lhes uma existência conjunta, mas como
aplicá-lo (essa forma de conhecimento) a objetos cujas realidades são singulares,
individuais e sem paralelo ou semelhança específica - e, portanto, sem laço
concreto dado pela própria sensibilidade? Afinal, precisariamos, para isto, ter
alguma experiência da origem dos mundos, e não simplesmente a do nosso:

“Quando duas espécies de objectos foram sempre vistas juntas, o costume permite-me
inferir a existência de uma delas onde quer que veja a outra; e a isto chamo um
argumento a partir da experiência. Mas é difícil explicar como este argumento se pode
aplicar quando os objectos, como acontece neste caso, são singulares, individuais, sem
paralelo ou semelhança específica. E dir-me-á alguém, com semblante sério, que um
universo ordenado tem de provir de um pensamento e arte como os humanos, porque
temos disso experiência? Para verificar este raciocínio seria necessário que tivéssemos
experiência da origem dos mundos e não é seguramente suficiente que tenhamos visto
navios e cidades resultarem da arte e invenção humanas…”(p.38)

Fílon encerra aqui sua crítica ao argumento do desígnio. Nela, como


pudemos ver, há um movimento de refutação interna na qual certos aspectos de seu
ceticismo reverberam e tomam corpo: ele parte das premissas eclipsadas pelo
adversário e que, não obstante, são-lhe necessárias, extremando-as através de
suas próprias concepções lógico-conceituais. Não obstante, a forma diálogo insere
o eixo narrativo no movimento conceitual, isto é, a argumentação e os artifícios
retóricos das personagens são indissociáveis das teses expostas e debatidas. Daí a
própria dubiedade quanto à fidelidade da reconstrução proposta por Fílon - se, de
fato, exprime efetivamente ou não as premissas necessárias à tese de Cleantes. É
sabido que este as assente, mas o quanto ela atinge um grau de fidelidade é, no
mínimo, dubitável - visto os recursos argumentativos até então utilizados pelas
personagens

Você também pode gostar