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Digamos porque nem mesmo Maurice Merleau-Ponty parece dar esse passo:
por que não ratificar o fato de que a teoria da percepção não diz
mais respeito à estrutura da realidade à qual a ciência nos deu acesso
na física? Nada é mais discutível, tanto na história da ciência quanto
em seu produto acabado, do que esta razão pela qual ele passa a
autorizar suas pesquisas de que a partir da percepção, a construção
científica deve sempre retornar a ela. Ao contrário, tudo nos mostra
que foi recusando as intuições percebidas de ponderalidade e ímpeto
que a dinâmica galileana anexou os céus à terra, mas à custa de
introduzir nela o que hoje tocamos na experiência do cosmonauta: um
corpo que pode abrir e fechar sem pesar nada nem nada.
Mil outros fatos são de natureza a nos impor a questão do que regula
as mutações muitas vezes marcantes que observamos pela adição de um
novo elemento no equilíbrio desses fatores experimentalmente
distintos que são a iluminação, as condições de fundo, a forma do
objeto, nosso conhecimento sobre ela, e terceiro elemento, aqui o
vivo, uma pluralidade de gradações que o termo cor é insuficiente
para designar, pois além da constância que tende a restabelecer em
certas condições uma identidade, percebida com o alcance nominável
sob diferentes comprimentos de onda, há os efeitos combinados de
reflexão, de radiação, de transparência cuja correlação nem sequer é
inteiramente redutível do achado da arte ao artifício do laboratório.
Como se sente que o fenômeno visual da cor local de um objeto nada
tem a ver com o da gama colorida do espectro.
Porque para além deste jogo, o que articula, sim, só aí o meu gesto,
é o eu evanescente do sujeito da enunciação verdadeira. Basta, com
efeito, que o jogo se repita para constituir esse eu que, ao repeti-
lo, diz esse eu que se faz ali. Mas isso não sei que o diga, rejeitado
como está como se estivesse atrás, pelo gesto, no ser que o jato
substitui o objeto que rejeita. Assim, eu que digo só posso estar
inconsciente do que estou fazendo, quando não sei o que estou dizendo
fazendo.
Porque o uso do irreal desses elementos em tal arte (da qual notamos
de passagem que ele os discerniu claramente por visão e não por
ciência) não exclui de forma alguma sua função de verdade, pois a
realidade, a das tábuas da ciência não precisa mais ter certeza de
meteoros.
É por isso que o fim da ilusão que a mais ardilosa das artes propõe,
não deve ser repudiado, mesmo em suas obras ditas abstratas, em nome
do equívoco que a ética da antiguidade nutria sob essa imputação, da
idealidade de onde partiu no problema da ciência.
Digamos, sem poder fazer mais do que prometer aqui comentá-lo, que a
marcada vacilação em todo este texto do objeto ao ser, o passo dado
para almejar o invisível, mostram suficientemente que ele está em
outro lugar, apenas no campo de percepção que Maurice Merleau-Ponty
avança aqui.
Que aqui meu luto, do véu tirado da intolerável Pietà a quem o destino
me obriga a devolver a cariátide de um mortal, barra minha fala, deve
ser quebrado.
Jacques Lacan
[1]
. Em Arte da França, 1961, pp. 187-208. Reproduzido aqui pág. 193.
[2]
. Veja aqui.
[3]
. Fenomenologia da percepção, in-8, 531 páginas, Gallimard, 1945.
[4]
. Em Psicanálise, vol. 4, pág. 1-5 e assim por diante. PUF.
[5]
. Fenomenologia da percepção, Gallimard, 1945, pp. 180-202.
[6]
. Id., 202-232.
[7]
. Em Sartre JP. O Ser e o Nada, pp. 451-477.
[8]
. Ver livro citado, p. 475.
1959-1960.
[10]
. Cf. Fenomenologia da percepção, p. 357.
MAURICE MERLEAU-PONTY
Digamos porque nem mesmo Maurice Merleau-Ponty parece dar esse passo:
por que não ratificar o fato de que a teoria da percepção não diz
mais respeito à estrutura da realidade à qual a ciência nos deu acesso
na física? Nada é mais discutível, tanto na história da ciência quanto
em seu produto acabado, do que esta razão pela qual ele passa a
autorizar suas pesquisas de que a partir da percepção, a construção
científica deve sempre retornar a ela. Pelo contrário, tudo nos mostra
que é recusando as intuições percebidas de peso e ímpeto que a
dinâmica galileia anexou os céus à terra, mas à custa de introduzir
ali o que hoje tocamos na experiência do cosmonauta: um corpo que
pode abrir e fechar sem pesar nada nem nada.
Mil outros fatos são de natureza a nos impor a questão do que regula
as mutações muitas vezes marcantes que observamos pela adição de um
novo elemento no equilíbrio desses fatores experimentalmente
distintos que são a iluminação, as condições de fundo, a forma do
objeto, nosso conhecimento dela, e um terceiro elemento, aqui o vivo,
uma pluralidade de gradações que o termo cor é insuficiente para
designar, pois além da constância que tende a restabelecer em certas
condições uma identidade percebida com a gama nominável sob
diferentes comprimentos de onda, há os efeitos combinados de
reflexão, de radiação, de transparência cuja correlação nem sequer é
inteiramente redutível do achado da arte ao artifício do laboratório.
Como se sente que o fenômeno visual da cor local de um objeto nada
tem a ver com o da gama colorida do espectro.
Porque o uso do irreal desses elementos em tal arte (da qual notamos
de passagem que ele os discerniu claramente por visão e não por
ciência) não exclui de forma alguma sua função de verdade, pois a
realidade, a das tábuas da ciência não precisa mais ter certeza de
meteoros.
É por isso que o fim da ilusão que a mais ardilosa das artes propõe,
não deve ser repudiado, mesmo em suas obras ditas abstratas, em nome
do equívoco que a ética da antiguidade nutria sob essa imputação, da
idealidade de onde partiu no problema da ciência.
Que aqui meu luto, do véu tirado da intolerável Pietà a quem o destino
me obriga a devolver a cariátide de um mortal, barra minha fala, deve
ser quebrado.
4.p. 202.232.