Você está na página 1de 18

MAURICE MERLEAU-PONTY

por Jacques Lacan

Tempos Modernos, 1961

(245)

1. Pode-se exalar o grito que nega que a amizade possa deixar de


existir. Não se pode dizer que a morte chegou sem ferir novamente.
Renuncio a isso, tendo-o experimentado, para, contra a minha vontade,
levar mais longe a minha homenagem.

Reunindo-me, porém, na memória do que senti do homem em um momento


de amarga paciência.

2. O que mais podemos fazer senão questionar o ponto que a hora


repentina coloca em um discurso onde todos nós entramos?

E seu último artigo, aqui reproduzido, título: o olho e a mente [1],


para falar sobre onde é feito, se eu acreditar no aceno de uma cabeça
auspiciosa, para que eu ouça: do meu lugar.

3. É de fato o dominante e o sensível de toda a obra que aqui dão a


sua nota. Se o tomarmos pelo que é de um filósofo, no sentido de que
uma escolha que aos dezesseis anos vê aí o seu futuro (ele atestou),
exige um profissional ali. Ou seja, o vínculo estritamente
universitário cobre e retém sua intenção, mesmo testado
impacientemente, mesmo estendido até a luta pública.

4. Não é isso, porém, que insere este artigo no sentimento, apontado


duas vezes em seu início e em sua queda, de uma mudança muito atual
a tornar-se patente na ciência. O que ele evoca como vento da moda
para os registros de comunicação, complacência para versatilidade
operacional[2], é notado apenas como uma aparência que deve levar à
sua razão.

É o mesmo para o qual procuramos contribuir desde o campo privilegiado


para revelar aquilo que é nosso (psicanálise freudiana):(246) a razão
pela qual o significante se torna primário em qualquer constituição
de um sujeito.
5. O olho, tomado aqui como centro de uma revisão do estatuto da
mente, inclui, no entanto, todas as ressonâncias possíveis da
tradição na qual o pensamento permanece engajado.

É assim que Maurice Merleau-Ponty, como qualquer um neste caminho,


só pode se referir mais uma vez ao olho abstrato que supõe o conceito
cartesiano de extensão, com seu correlativo de sujeito, módulo divino
de uma percepção universal.

Fazer uma crítica propriamente fenomenológica da estética que resulta


dessa rarefação da fé feita ao olhar não é nos reconduzir às virtudes
do saber da contemplação propostas ao nosso ascetismo pela antiga
teoria.

Também não é para se debruçar sobre o problema das ilusões de ótica


e se o bastão quebrado pela superfície da água na bacia, a lua maior
se aproximando do horizonte, nos mostram a realidade ou não.: Alain
em sua nuvem de giz é suficiente.

Digamos porque nem mesmo Maurice Merleau-Ponty parece dar esse passo:
por que não ratificar o fato de que a teoria da percepção não diz
mais respeito à estrutura da realidade à qual a ciência nos deu acesso
na física? Nada é mais discutível, tanto na história da ciência quanto
em seu produto acabado, do que esta razão pela qual ele passa a
autorizar suas pesquisas de que a partir da percepção, a construção
científica deve sempre retornar a ela. Ao contrário, tudo nos mostra
que foi recusando as intuições percebidas de ponderalidade e ímpeto
que a dinâmica galileana anexou os céus à terra, mas à custa de
introduzir nela o que hoje tocamos na experiência do cosmonauta: um
corpo que pode abrir e fechar sem pesar nada nem nada.

6. A fenomenologia da percepção é, portanto, muito mais do que um


codicilo de uma teoria do conhecimento, cujos detritos constituem a
parafernália de uma psicologia precária.

Não é mais situável no objetivo, que agora só habita o logicismo, de


um saber absoluto.
(247)

É o que é: ou seja, um agrupamento de experiências das quais se deve


ler a obra inaugural de Maurice Merleau-Ponty [3] para medir a pesquisa
positiva que ali se acumulou, e seu estímulo para o pensamento, senão
o escárnio em que fazem aparecer o absurdo secular sobre a ilusão de
Aristóteles, até mesmo o exame clínico médio do oftalmologista.

Para capturar seu interesse, escolhamos um pequeno fato na imensa


teia de covariâncias do mesmo estilo que são comentadas nesta obra,
por exemplo, na página 360 da iluminação violenta que aparece na
forma de um cone esbranquiçado para isso sustentado por um disco,
pouco visível por ser preto e sobretudo por ser o único objeto que o
detém. Basta interpor ali um pequeno quadrado de papel branco para
que o aspecto leitoso se dissipe imediatamente e o disco preto se
destaque como distinto de ser iluminado em seu contraste.

Mil outros fatos são de natureza a nos impor a questão do que regula
as mutações muitas vezes marcantes que observamos pela adição de um
novo elemento no equilíbrio desses fatores experimentalmente
distintos que são a iluminação, as condições de fundo, a forma do
objeto, nosso conhecimento sobre ela, e terceiro elemento, aqui o
vivo, uma pluralidade de gradações que o termo cor é insuficiente
para designar, pois além da constância que tende a restabelecer em
certas condições uma identidade, percebida com o alcance nominável
sob diferentes comprimentos de onda, há os efeitos combinados de
reflexão, de radiação, de transparência cuja correlação nem sequer é
inteiramente redutível do achado da arte ao artifício do laboratório.
Como se sente que o fenômeno visual da cor local de um objeto nada
tem a ver com o da gama colorida do espectro.

Basta indicar em que direção o filósofo tenta articular esses fatos,


na medida em que tem razão em dar-lhes asilo, ou pelo menos no fato
de que toda uma arte da criação humana está ligada a isso que a
realidade física refuta ainda menos. à medida que se afasta dela,
mas isso não significa que essa arte tenha valor apenas para o prazer
e que não esconda algum outro acesso a um ser, portanto talvez mais
essencial.

7. Essa direção necessária para o que ordena as covariâncias


fenomenalmente definidas da percepção, o filósofo de nosso tempo irá
procurá-la, como sabemos, na noção de presença, ou para traduzir
melhor o termo do alemão literalmente, de Ser-aí, ao qual se deve
acrescentar presença (ou Ser-aí) - em-por-através-de-um-corpo. (248)
Posição chamada existência, na medida em que tenta apreender-se no
momento anterior à reflexão que, em sua experiência, introduz sua
distinção decisiva do mundo ao despertá-lo para a consciência-de-si.

Mesmo restaurada de forma demasiado óbvia da reflexão redobrada que


constitui a pesquisa fenomenológica, esta posição se orgulhará de
restaurar a pureza desta presença na raiz do fenômeno, naquilo que
ele pode antecipar globalmente de seu movimento no mundo. Porque
naturalmente se acrescentam complexidades homólogas ao movimento, ao
tato ou mesmo à audição, como omitir a vertigem, que não se justapõem,
mas se compõem com os fenômenos da visão.

É essa pressuposição de que existe em algum lugar um lugar de unidade,


que é adequado para suspender nosso consentimento. Não que não seja
óbvio que esse lugar esteja afastado de qualquer atribuição
fisiológica, e que não nos satisfaçamos em seguir detalhadamente uma
subjetividade constituinte onde ela é tecida fio a fio, mas não
reduzida a ser seu avesso, com o que se chama aqui total objetividade.

O que nos surpreende é que não aproveitemos de imediato a estrutura


tão manifesta no fenômeno, e pela qual devemos fazer justiça a Maurice
Merleau-Ponty por não mais fazer referência a nenhuma Gestalt
Naturalista – não para se opor, mas para harmonizar o próprio assunto.

O que objetar a dizer sobre o exemplo citado acima, - onde a


iluminação é manifestamente homóloga ao tônus muscular em
experimentos sobre a constância da percepção do peso, mas não pode
esconder sua localidade de Outro -, que o sujeito na medida em que o
reveste de sua consistência leitosa na primeira vez, na segunda vez
só é reprimido lá. E isso, pelo fato do contraste objetificante do
disco preto com o quadrado branco que opera a partir da entrada
significativa da figura deste último no fundo do outro. Mas o sujeito
que aí se afirma em formas iluminadas é a rejeição do Outro que se
corporificou numa opacidade de luz.

Mas onde está o primum, e por que prejulgar que é apenas um


percipiens, quando aqui podemos ver que é sua elisão que restitui
transparência ao perceptum da própria luz.
(249)

A bem dizer, parece-nos que o “eu penso” a que pretendemos reduzir a


presença, não deixa de implicar, por mais indeterminado que o
forcemos, todos os poderes de reflexão pelos quais se confundem
sujeito e consciência. a miragem que a experiência psicanalítica põe
no princípio do desconhecimento do sujeito e que nós mesmos tentamos
definir no palco do espelho, resumindo-o ali.

Seja como for, reivindicamos em outro lugar, a saber, sobre o tema


da alucinação verbal[4] , o privilégio que pertence ao perceptum do
significante na conversão a ser feita da relação do percipiens ao
sujeito.

8. A fenomenologia da percepção, ao querer resolver-se na presença-


pelo-corpo, evita esta conversão, mas condena-se ao mesmo tempo a
transbordar o seu campo e a tornar inacessível uma experiência que
lhe é estranha. Isso é ilustrado pelos dois capítulos da obra de
Maurice Merleau-Ponty sobre o corpo como ser sexual[5] e no corpo como
expressão na fala[6] .

A primeira não cede na sedução à sedução, à qual se admite ceder ali


à análise existencial, de fabulosa elegância, à qual JP Sartre se
entrega na relação de desejo [7] . Do atolamento da consciência na
carne à busca no outro de um sujeito impossível de apreender porque
retê-lo na própria liberdade é extingui-lo, dessa patética elevação
de um jogo que se vai dissipando com o golpe, que não mesmo atravessá-
lo, prazer, não é apenas o acidente mas o desenlace que impõe ao
autor a sua virada, na sua duplicação do impasse, num sadismo, do
qual não tem outra saída senão o masoquismo.

Maurice Merleau-Ponty, para inverter seu movimento, parece evitar seu


desvio fatal, ao descrever o processo de uma revelação direta de
corpo a corpo. Para dizer a verdade, depende apenas da evocação de
uma situação pensada em outro lugar como humilhante, que como
pensamento da situação complementa o terceiro, cuja análise mostrou
ser inerente ao inconsciente à situação amorosa.
(250)

Digamos que isso não é para tornar a reconstrução de Sartre mais


válida para um freudiano. Sua crítica exigiria uma precisão, ainda
não bem reconhecida na psicanálise, da função da fantasia. Nenhuma
restituição imaginária dos efeitos da crueldade pode compensá-la, e
não é verdade que o caminho para a satisfação normal do desejo se
encontre no fracasso inerente à preparação da tortura.[8] Sua descrição
inadequada do sadismo como uma estrutura inconsciente não é menos do
que o mito sadianista. Porque a sua passagem pela redução do corpo
do outro ao obsceno esbarra no paradoxo, tanto mais enigmático ao
vê-lo irradiar em Sade, quanto mais sugestivo no registo existencial,
da beleza como insensível ao ultraje. [9] O acesso erotológico poderia,
portanto, ser melhor aqui, mesmo fora de qualquer experiência do
inconsciente.

Mas é claro que nada na fenomenologia da extrapolação perceptiva, por


mais articulada que seja no impulso obscuro ou lúcido do corpo, pode
dar conta nem do privilégio do fetiche numa experiência milenar, nem
do complexo de castração na descoberta freudiana. Os dois conspiram,
porém, para nos convocar a enfrentar a função de significante do
órgão sempre assinalada como tal por sua ocultação no simulacro
humano, e a incidência que resulta do falo nesta função no acesso ao
desejo tanto da mulher do que do homem, para ser vulgarizado agora,
não pode ser negligenciado como desviando o que se pode chamar de
ser sexual do corpo.

9. Se o significante do ser sexual pode assim ser incompreendido no


fenômeno, é por sua posição duplamente oculta na fantasia, seja por
indicar-se apenas onde não atua, seja por atuar apenas por sua falta.
É assim que a psicanálise deve demonstrar seu avanço no acesso ao
significante, para que possa retornar à sua própria fenomenologia.
(251)
Perdoemo-nos a minha audácia no modo a que aqui invocarei para
testemunhar o segundo artigo mencionado por Maurice Merleau-Ponty
sobre o corpo como expressão na fala.

Porque quem me segue reconhecerá, quanto melhor fiado, o mesmo tema


que lhes falo sobre a primazia do significante no efeito de
significar. E me lembro do apoio que ali pude encontrar nas primeiras
férias do pós-guerra, quando meu constrangimento por ter que reviver
em grupo disperso ainda uma comunicação até então reduzida a ponto
de ser quase quase analfabeta, fala freudiana que se entende, porque
ali se conservava a dobra de álibis para o uso de enfeitar uma práxis
sem certeza de si mesma.

Mas aqueles que se sentirem à vontade neste discurso sobre a fala (e


mesmo que isso seja para reservar para ele o que aproxima um pouco
demais do novo discurso e da fala completa), saberão, no entanto,
que estou dizendo outra coisa, e especificamente:

▪ que não é o pensamento, mas o sujeito, que eu suborno ao


significante,

▪ e que é o inconsciente cujo estatuto eu demonstro quando tento


fazer o sujeito conceber ali como rejeitado da cadeia
significante, que ao mesmo tempo constitui como repressão
primordial.

A partir daí, não poderão consentir na dupla referência a idealidades,


ambas incompatíveis, pelo que aqui a função do significante converge
para a nomeação, e a sua matéria para um gesto em que se especificaria
uma significação essencial.

Gesto impossível de encontrar, e do qual aquele que aqui traz a sua


palavra à dignidade de paradigma do seu discurso, teria podido admitir
que nada igual oferecia à sua audiência para perceber.

Ignorava ele, aliás, que só há um gesto, conhecido desde Santo


Agostinho, que responde à nomeação: o do dedo indicador que aponta,
mas que por si só esse gesto não chega sequer para designar o que se
nomeia no indicado? objeto.

E se fosse o gesto que eu gostaria de imitar, de rejeição por exemplo,


inaugurar ali o significante: jogar fora, não implica já a verdadeira
essência do significante na sintaxe que estabelece em série os objetos
a serem submetidos? no jogo de arremesso.
(252)

Porque para além deste jogo, o que articula, sim, só aí o meu gesto,
é o eu evanescente do sujeito da enunciação verdadeira. Basta, com
efeito, que o jogo se repita para constituir esse eu que, ao repeti-
lo, diz esse eu que se faz ali. Mas isso não sei que o diga, rejeitado
como está como se estivesse atrás, pelo gesto, no ser que o jato
substitui o objeto que rejeita. Assim, eu que digo só posso estar
inconsciente do que estou fazendo, quando não sei o que estou dizendo
fazendo.

Mas se o significante é requerido como sintaxe antes do sujeito para


o advento deste sujeito não apenas enquanto fala, mas naquilo que
diz, são possíveis efeitos de metáfora e metonímia não apenas sem
este sujeito, mas sua própria presença constituindo nele mais do
significante do que do corpo, como afinal se poderia dizer que faz
no discurso do próprio Maurice Merleau-Ponty, e literalmente.

Tais efeitos são, eu ensino, os efeitos do inconsciente, encontrando


aí depois do fato, o rigor que retorna à estrutura da linguagem, a
confirmação da validade de tê-los extraído.

10. Aqui minha homenagem reencontra o artigo sobre o Olho e o


Espírito, que, ao questionar a pintura, traz de volta a questão real
da fenomenologia, tácita para além dos elementos que sua experiência
articula.

Porque o uso do irreal desses elementos em tal arte (da qual notamos
de passagem que ele os discerniu claramente por visão e não por
ciência) não exclui de forma alguma sua função de verdade, pois a
realidade, a das tábuas da ciência não precisa mais ter certeza de
meteoros.

É por isso que o fim da ilusão que a mais ardilosa das artes propõe,
não deve ser repudiado, mesmo em suas obras ditas abstratas, em nome
do equívoco que a ética da antiguidade nutria sob essa imputação, da
idealidade de onde partiu no problema da ciência.

A ilusão aqui adquire seu valor ao se combinar com a função de


significante que descobrimos no avesso de sua operação.

Todas as dificuldades demonstradas pela crítica sobre o ponto não


apenas do como faz, mas do que a pintura faz, sugerem que a
inconsciência em que o pintor parece subsistir em sua relação com o
que de sua arte, seria útil relatar como profissional forma à
estrutura radical do inconsciente que deduzimos de sua individuação
comum.
(253)

Aqui o filósofo que é Maurice Merleau-Ponty envergonha os


psicanalistas por terem negligenciado o que aqui pode aparecer como
essencial ao alcance de uma melhor resolução.
E aqui novamente da natureza do significante, pois também devemos
atentar para o fato de que, se há avanço nas pesquisas de Maurice
Merleau-Ponty, a pintura já intervém na fenomenologia da percepção,
entendamos no livro, e justamente neste capítulo em que retomamos a
problemática da função da presença na linguagem.

11. Assim, somos convidados a nos questionar sobre o que vem do


significante a ser articulado na mancha, nesses "pequenos azuis" e
"pequenos marrons" com os quais Maurice Merleau-Ponty se delicia sob
a pena de Cézanne para descobrir o que pintor pretendia fazer com
sua pintura falada.

Digamos, sem poder fazer mais do que prometer aqui comentá-lo, que a
marcada vacilação em todo este texto do objeto ao ser, o passo dado
para almejar o invisível, mostram suficientemente que ele está em
outro lugar, apenas no campo de percepção que Maurice Merleau-Ponty
avança aqui.

12. Não se pode deixar de reconhecer que é interessando o campo do


desejo que o terreno da arte adquire aqui esse efeito. Exceto por
não ouvir, como costuma acontecer com os próprios psicanalistas, o
que Freud articula sobre a presença mantida do desejo na sublimação.

Como igualar a subtil ponderação que aqui se prolonga com um eros do


olhar, uma corporeidade de luz onde a sua primazia teológica é apenas
evocada nostalgicamente?

Pois o órgão, com seu deslizamento quase imperceptível de sujeito a


objeto, é necessário, para dar conta dele, armar-se com a insolência
das boas novas que, a partir de suas parábolas declarando forjá-las
expressamente para que não sejam inaudíveis, nos cruza com esta
verdade ainda a ser tomada literalmente de que o olho é feito para
não ver?

Precisamos do robô completo da futura Eva, para ver o desejo


empalidecer em seu aspecto, não que ela seja cega, como se acredita,
mas que ela não pode deixar de ver tudo?
(254)

Ao contrário, o que o artista nos dá acesso é o lugar do que não se


vê: ainda seria necessário nomeá-lo.

Quanto à luz, recordando a linha delicada com que Maurice Merleau-


Ponty modela o fenómeno ao dizer-nos que nos conduz para o objeto
iluminado[10], reconheceremos nela o material homónimo para esculpir o
monumento desde a sua criação.
Se me detenho na ética implícita nesta criação, negligenciando assim
o que a completa numa obra empenhada, será para dar um sentido
terminal a esta frase, a última que ficou publicada para nós, na qual
parece designar-se ela própria, nomeadamente que "se as criações não
são um fato adquirido, não é só que, como todas as coisas, passam, é
também que têm quase toda a vida pela frente".

Que aqui meu luto, do véu tirado da intolerável Pietà a quem o destino
me obriga a devolver a cariátide de um mortal, barra minha fala, deve
ser quebrado.

Jacques Lacan

[1]
. Em Arte da França, 1961, pp. 187-208. Reproduzido aqui pág. 193.

[2]
. Veja aqui.

[3]
. Fenomenologia da percepção, in-8, 531 páginas, Gallimard, 1945.

[4]
. Em Psicanálise, vol. 4, pág. 1-5 e assim por diante. PUF.

[5]
. Fenomenologia da percepção, Gallimard, 1945, pp. 180-202.

[6]
. Id., 202-232.

[7]
. Em Sartre JP. O Ser e o Nada, pp. 451-477.

[8]
. Ver livro citado, p. 475.

. Lugar analisado em meu seminário sobre a Ética da Psicanálise,


[9]

1959-1960.

[10]
. Cf. Fenomenologia da percepção, p. 357.
MAURICE MERLEAU-PONTY

por Jacques Lacan

Tempos Modernos, 1961

1. Pode-se exalar o grito que nega que a amizade possa deixar de


existir. Não se pode dizer que a morte chegou sem ferir novamente.
Renuncio a isso, tendo-o experimentado, para, contra a minha vontade,
levar mais longe a minha homenagem.

Reunindo-me, porém, na memória do que senti do homem em um momento


de amarga paciência.

2. O que mais podemos fazer senão questionar o ponto que a hora


repentina coloca em um discurso onde todos nós entramos?

E seu último artigo que aqui se reproduz, intitulado o Olho e o


Espírito, - para falar dele onde é feito, se eu acreditar no aceno
de uma cabeça auspiciosa, para que eu o ouça: meu lugar.

3. Na verdade, é o dominante e o sensível de toda a obra que dão aqui


sua nota. Se o tomarmos pelo que é: um filósofo, no sentido de que
uma escolha que aos dezesseis anos vê ali o seu futuro (ele atestava),
requer ali um profissional. Ou seja, o vínculo estritamente
universitário cobre e retém sua intenção, mesmo testado
impacientemente, mesmo estendido até a luta pública.

4. Não é isso, porém, que insere este artigo no sentimento, apontado


duas vezes em seu início e em sua queda, de uma mudança muito atual
a tornar-se patente na ciência. O que ele evoca como vento da moda
para os registros da comunicação, complacência para a versatilidade
operacional, é apenas notado como uma aparência que deve conduzir à
sua razão.

É o mesmo para o qual tentamos contribuir desde o campo privilegiado


para revelar aquilo que é nosso (psicanálise freudiana ): a razão
pela qual o significante passa a ser primordial em qualquer
constituição de um sujeito.
5. O olho tomado aqui como centro de uma revisão do estatuto da mente
inclui, no entanto, todas as ressonâncias possíveis da tradição na
qual o pensamento permanece engajado.

É assim que Maurice Merleau-Ponty, como qualquer um neste caminho,


só pode se referir mais uma vez ao olho abstrato que supõe o conceito
cartesiano de extensão, com seu correlativo de sujeito, módulo divino
de uma percepção universal.

Fazer uma crítica propriamente fenomenológica da estética que resulta


dessa rarefação da fé feita ao olhar não é nos trazer de volta às
virtudes do conhecimento da contemplação propostas ao nosso ascetismo
pela antiga teoria.

Também não é para se debruçar sobre o problema das ilusões de ótica


e se o bastão quebrado pela superfície da água na bacia, a lua maior
se aproximando do horizonte, nos mostram a realidade ou não.: Alain
em sua nuvem de giz é suficiente.

Digamos porque nem mesmo Maurice Merleau-Ponty parece dar esse passo:
por que não ratificar o fato de que a teoria da percepção não diz
mais respeito à estrutura da realidade à qual a ciência nos deu acesso
na física? Nada é mais discutível, tanto na história da ciência quanto
em seu produto acabado, do que esta razão pela qual ele passa a
autorizar suas pesquisas de que a partir da percepção, a construção
científica deve sempre retornar a ela. Pelo contrário, tudo nos mostra
que é recusando as intuições percebidas de peso e ímpeto que a
dinâmica galileia anexou os céus à terra, mas à custa de introduzir
ali o que hoje tocamos na experiência do cosmonauta: um corpo que
pode abrir e fechar sem pesar nada nem nada.

6. A fenomenologia da percepção é, portanto, muito mais do que um


codicilo de uma teoria do conhecimento, cujos detritos constituem a
parafernália de uma psicologia precária.

Não é mais situável no objetivo, que agora só habita o logicismo, de


um saber absoluto.

É o que é: ou seja, uma compilação de experiências das quais é preciso


ler a obra inaugural de Maurice Merleau-Ponty 1 para medir a pesquisa
positiva que ali se acumulou e seu estímulo ao pensamento, senão o
escárnio onde fazem aparecer as estupidez seculares na ilusão de
Aristóteles, até mesmo o exame clínico médio do oftalmologista.

Para capturar seu interesse, escolhamos um pequeno fato na imensa


teia de covariâncias do mesmo estilo que são comentadas nesta obra,
por exemplo, na página 360 da iluminação violenta que aparece na
forma de um cone esbranquiçado para isso sustentado por um disco,
pouco visível por ser preto e sobretudo por ser o único objeto que o
detém. Basta interpor ali um pequeno quadrado de papel branco para
que o aspecto leitoso se dissipe imediatamente e o disco preto se
destaque como distinto de ser iluminado em seu contraste.

Mil outros fatos são de natureza a nos impor a questão do que regula
as mutações muitas vezes marcantes que observamos pela adição de um
novo elemento no equilíbrio desses fatores experimentalmente
distintos que são a iluminação, as condições de fundo, a forma do
objeto, nosso conhecimento dela, e um terceiro elemento, aqui o vivo,
uma pluralidade de gradações que o termo cor é insuficiente para
designar, pois além da constância que tende a restabelecer em certas
condições uma identidade percebida com a gama nominável sob
diferentes comprimentos de onda, há os efeitos combinados de
reflexão, de radiação, de transparência cuja correlação nem sequer é
inteiramente redutível do achado da arte ao artifício do laboratório.
Como se sente que o fenômeno visual da cor local de um objeto nada
tem a ver com o da gama colorida do espectro.

Basta indicar em que direção o filósofo tenta articular esses fatos,


na medida em que tem razão em dar-lhes asilo, ou pelo menos no fato
de que toda uma arte da criação humana está ligada a isso que a
realidade física refuta ainda menos. à medida que se afasta dela,
mas isso não significa que essa arte tenha valor apenas para o prazer
e que não esconda algum outro acesso a um ser, portanto talvez mais
essencial.

7. Esta direção necessária para o que ordena as covariâncias


fenomenalmente definidas da percepção, o filósofo de nosso tempo irá
procurá-la, como sabemos, na noção de presença, ou para melhor
traduzir o termo do alemão literalmente, de Ser-aí, para que deve
ser adicionada presença (ou Ser-aí)-em-por-através-de-um-corpo. A
chamada posição de existência, na medida em que tenta apreender-se
no momento anterior à reflexão que, em sua experiência, introduz sua
distinção decisiva do mundo ao despertá-lo para a autoconsciência.

Mesmo restaurada de forma demasiado óbvia da reflexão redobrada que


constitui a investigação fenomenológica, esta posição orgulhar-se-á
de restituir a pureza desta presença na raiz do fenómeno, naquilo
que ele pode antecipar globalmente a partir do seu movimento no mundo.
Porque naturalmente se acrescentam complexidades homólogas ao
movimento, ao tato ou mesmo à audição, como omitir a vertigem, que
não se justapõem, mas se compõem com os fenômenos da visão.

É essa pressuposição de que existe em algum lugar um lugar de unidade,


que é adequado para suspender nosso consentimento. Não que não seja
óbvio que esse lugar esteja afastado de qualquer atribuição
fisiológica, e que não nos satisfaçamos em seguir detalhadamente uma
subjetividade constituinte onde ela é tecida fio a fio, mas não
reduzida a ser seu avesso, com o que se chama aqui total objetividade.

O que nos surpreende é que não aproveitemos imediatamente a estrutura


tão manifesta no fenômeno - e da qual devemos fazer justiça a Maurice
Merleau-Ponty por não mais fazer referência a nenhuma Gestalt
naturalista - não para opor, mas para atribuir-lhe o próprio sujeito.

O que se objeta a dizer do exemplo citado acima, - onde a iluminação


é claramente homóloga ao tônus muscular em experimentos sobre a
constância da percepção do peso, mas não pode mascarar sua localidade
de Outro -, que o sujeito enquanto na primeira vez investe ele com
sua consistência leitosa, no segundo tempo só fica ali reprimido. E
isso, pelo fato do contraste objetificante do disco preto com o
quadrado branco que opera a partir da entrada significativa da figura
deste último no fundo do outro. Mas o sujeito que aí se afirma em
formas iluminadas é a rejeição do Outro que se corporificou numa
opacidade de luz.

Mas onde está o primum, e por que prejulgar que é apenas um


percipiens? quando toma forma, é sua elisão que devolve ao perceptum
da própria luz sua transparência.

A bem da verdade, parece-nos que o "eu penso" a que pretendemos


reduzir a presença, não deixa de implicar, por qualquer indeterminação
que se force, todas as potências de reflexão pelas quais se confundem
sujeito e consciência, a saber, a miragem que a experiência
psicanalítica coloca no princípio do desconhecimento do sujeito e que
nós mesmos tentamos cercar no palco do espelho, resumindo-o ali.

alucinação verbal 2 , o privilégio que pertence ao perceptum do


significante na conversão em operar da relação do percipiens sobre.

8. A fenomenologia da percepção, ao querer resolver-se na presença


através do corpo, evita esta conversão, mas condena-se ao mesmo tempo
a transbordar o seu campo e a tornar inacessível uma experiência que
lhe é estranha. Isso é ilustrado pelos dois capítulos da obra de
Maurice Merleau-Ponty sobre o corpo como ser sexual 3 e no corpo como
expressão na fala 4 .

A primeira não cede na sedução à sedução, à qual se admite ceder ali


à análise existencial, de fabulosa elegância, à qual J.-P. Sartre se
entrega na relação de desejo 5 . Do atolamento da consciência na carne
à busca no outro de um sujeito impossível de apreender porque retê-
lo na própria liberdade é extingui-lo, dessa patética elevação de um
jogo que se vai dissipando com o golpe, que não mesmo atravessá-lo,
prazer, não é apenas o acidente mas o desenlace que impõe ao autor a
sua virada, na sua duplicação do impasse, num sadismo, do qual não
tem outra saída senão o masoquismo.

Maurice Merleau-Ponty, para inverter seu movimento, parece evitar seu


desvio fatal, ao descrever o processo de uma revelação direta de
corpo a corpo. Para dizer a verdade, depende apenas da evocação de
uma situação pensada em outro lugar como humilhante, que como
pensamento da situação complementa o terceiro, cuja análise mostrou
ser inerente ao inconsciente à situação amorosa.

Digamos que não é para tornar a reconstrução de Sartre mais válida


para um freudiano. Sua crítica exigiria uma precisão, ainda não bem
reconhecida na psicanálise, da função da fantasia. Nenhuma
restituição imaginária dos efeitos da crueldade pode compensar isso,
e não é verdade que o caminho para a satisfação normal do desejo se
encontre na falha inerente à preparação da tortura 6 . Sua descrição
inadequada do sadismo como uma estrutura inconsciente não é menos do
que o mito sadianista. Porque sua passagem pela redução do corpo do
outro ao obsceno esbarra no paradoxo, tanto mais enigmático ao vê-lo
irradiar em Sade, quanto mais sugestivo no registro existencial, da
beleza como insensível ao ultraje 7 . O acesso erotológico poderia,
portanto, ser melhor aqui, mesmo fora de qualquer experiência do
inconsciente.

Mas é claro que nada na fenomenologia da extrapolação perceptiva, por


mais articulada que seja no impulso obscuro ou lúcido do corpo, pode
dar conta nem do privilégio do fetiche numa experiência milenar, nem
do complexo de castração na descoberta freudiana. Os dois conspiram,
porém, para nos convocar a enfrentar a função de significante do
órgão sempre assinalada como tal por sua ocultação no simulacro
humano, - e a incidência que resulta do falo nesta função no acesso
ao desejo. a mulher e o homem, a ser popularizado agora, não podem
ser negligenciados como desviantes do que podemos chamar de ser sexual
do corpo.

9. Se o significante do ser sexual pode assim ser incompreendido no


fenômeno, é por sua posição duplamente oculta na fantasia, seja por
indicar-se apenas onde não atua, seja por atuar apenas por sua falta.
É assim que a psicanálise deve demonstrar seu avanço no acesso ao
significante, para que possa retornar à sua própria fenomenologia.
Perdoemo-nos a minha audácia no modo a que chamarei aqui para atestá-
la o segundo artigo mencionado por Maurice Merleau-Ponty sobre o
corpo como expressão na fala.

Porque quem me segue reconhecerá, quanto melhor fiado, o mesmo tema


que lhes falo sobre a primazia do significante no efeito de
significar. E me lembro do apoio que ali pude encontrar nas primeiras
férias do pós-guerra, quando meu constrangimento por ter que reviver
em grupo disperso ainda uma comunicação até então reduzida a ponto
de ser quase quase analfabeta, fala freudiana que se entende, porque
ali se conservava a dobra de álibis para o uso de enfeitar uma práxis
sem certeza de si mesma.

Mas aqueles que se sentirem à vontade neste discurso sobre a fala (e


mesmo que isso seja para reservar para ele o que aproxima um pouco
demais do novo discurso e da fala completa), saberão, no entanto,
que estou dizendo outra coisa, e especificamente:

- que não é o pensamento, mas o sujeito, que eu suborno ao


significante, - e que é o inconsciente cujo estatuto eu demonstro
quando tento fazer o sujeito conceber aí como uma rejeição da cadeia
significante, que ao mesmo tempo mesmo tempo se constitui como
primordial recalcado.

A partir daí, não poderão consentir na dupla referência a idealidades,


ambas incompatíveis, pelo que aqui a função do significante converge
para a nomeação, e a sua matéria para um gesto em que se especificaria
uma significação essencial.

Gesto impossível de encontrar, e do qual aquele que aqui traz a sua


palavra à dignidade de paradigma do seu discurso, teria podido admitir
que nada igual oferecia à sua audiência para perceber. Ignorava ele,
aliás, que só há um gesto, conhecido desde Santo Agostinho, que
responde à nomeação: o do dedo indicador que aponta, mas que por si
só esse gesto não chega sequer para designar o que se nomeia no
indicado? objeto.

E se fosse o gesto que eu gostaria de imitar, de rejeição por exemplo,


inaugurar ali o significante: jogar fora, não implica já a verdadeira
essência do significante na sintaxe que estabelece em série os objetos
a serem submetidos? no jogo de arremesso. Porque para além deste
jogo, o que articula, sim, só aí o meu gesto, é o eu evanescente do
sujeito da enunciação verdadeira. Basta, com efeito, que o jogo se
repita para constituir esse eu que, ao repeti-lo, diz esse eu que se
faz ali. Mas isso não sei o que ele diz, rejeitado como está como se
estivesse atrás, pelo gesto, no ser que o jato substitui o objeto
que rejeita. Assim, eu que digo só posso estar inconsciente do que
estou fazendo, quando não sei o que estou dizendo fazendo.

Mas se o significante é requerido como sintaxe antes do sujeito para


o advento deste sujeito não apenas enquanto fala, mas naquilo que
diz, são possíveis efeitos de metáfora e metonímia não apenas sem
este sujeito, mas sua própria presença constituindo nele mais do
significante do que do corpo, como afinal se poderia dizer que faz
no discurso do próprio Maurice Merleau-Ponty, e literalmente.
Tais efeitos são, eu ensino, os efeitos do inconsciente, encontrando
aí depois do fato, o rigor que retorna à estrutura da linguagem, a
confirmação da validade de tê-los extraído.

10. Aqui minha homenagem encontra o artigo sobre o Olho e a mente,


que, ao questionar a pintura, traz de volta a verdadeira questão da
fenomenologia, tácita para além dos elementos que sua experiência
articula.

Porque o uso do irreal desses elementos em tal arte (da qual notamos
de passagem que ele os discerniu claramente por visão e não por
ciência) não exclui de forma alguma sua função de verdade, pois a
realidade, a das tábuas da ciência não precisa mais ter certeza de
meteoros.

É por isso que o fim da ilusão que a mais ardilosa das artes propõe,
não deve ser repudiado, mesmo em suas obras ditas abstratas, em nome
do equívoco que a ética da antiguidade nutria sob essa imputação, da
idealidade de onde partiu no problema da ciência.

A ilusão aqui adquire seu valor ao se combinar com a função de


significante que descobrimos no avesso de sua operação.

Todas as dificuldades demonstradas pela crítica sobre o ponto não


apenas do como faz, mas do que a pintura faz, sugerem que a
inconsciência em que o pintor parece subsistir em sua relação com o
que de sua arte, seria útil relatar como profissional forma à
estrutura radical do inconsciente que deduzimos de sua individuação
comum.

Aqui o filósofo que é Maurice Merleau-Ponty envergonha os


psicanalistas por terem negligenciado o que aqui pode aparecer como
essencial ao alcance de uma melhor resolução.

E aqui novamente da natureza do significante, - pois devemos também


atentar para o fato de que, se há avanço nas pesquisas de Maurice
Merleau-Ponty, a pintura já intervém na fenomenologia da percepção,
entendamos no livro, e precisamente neste capítulo em que assumimos
a problemática da função da presença na linguagem.

11. Assim, somos convidados a nos questionar sobre o que vem do


significante a ser articulado na mancha, nesses "pequenos azuis" e
"pequenos marrons" com os quais Maurice Merleau-Ponty se delicia sob
a pena de Cézanne para encontrar o que o pintor pretendia fazer com
sua pintura falada.

Digamos, sem podermos fazer mais do que prometer [...] comentá-lo,


que a marcada vacilação em todo este texto do objeto ao ser, o passo
dado para almejar o invisível, mostram bastante que ele está em outro
lugar do que no campo da percepção que aqui avança Maurice Merleau-
Ponty.

12. Não se pode deixar de reconhecer que é interessando o campo do


desejo que o terreno da arte adquire aqui esse efeito. Exceto por
não ouvir, como costuma acontecer com os próprios psicanalistas, o
que Freud articula sobre a presença mantida do desejo na sublimação.

Como igualar a subtil ponderação que aqui continua de um eros do


olhar, de uma corporeidade de luz onde o seu primado teológico já
não é evocado senão nostalgicamente?

Pois o órgão, com seu deslizamento quase imperceptível de sujeito a


objeto, é preciso, para dar conta dele, armar-se da insolência das
boas novas que, a partir de suas parábolas declarando forjá-las
expressamente para que não sejam ouvidas, nos afasta dessa verdade
ainda a ser tomada literalmente de que o olho é feito para não ver?

Precisamos do robô completo da futura Eva, para ver o desejo


empalidecer em seu aspecto, não que ela seja cega, como se acredita,
mas que ela não pode deixar de ver tudo?

Inversamente, o que o artista nos dá acesso é o lugar do que não se


vê: ainda seria necessário nomeá-lo.

Quanto à luz, recordando a linha delicada com que Maurice Merleau-


Ponty modela o fenómeno ao dizer-nos que nos conduz ao objeto
iluminado 8 , reconheceremos nela o material homónimo para esculpir o
monumento desde a sua criação.

Se me detenho na ética implícita nesta criação, negligenciando assim


o que a completa numa obra empenhada, será para dar um sentido
terminal a esta frase, a última a ficar publicada para nós, onde
parece designar-se a si própria, a saibam que “se as criações não
são um fato adquirido, não é só que, como todas as coisas que passam,
é também que têm quase toda a sua vida pela frente”.

Que aqui meu luto, do véu tirado da intolerável Pietà a quem o destino
me obriga a devolver a cariátide de um mortal, barra minha fala, deve
ser quebrado.

Les Temps Modernes 1961 (edição especial sobre Maurice Merleau-Ponty)

1. Fenomenologia da percepção, in-8, 531 páginas. Galard, 1945.


2. Em Psicanálise. voo. 4, pp.1-5 e seguintes. PUF.

3. Fenomenologia da percepção, Gallimard, 1945, pp.180 -202.

4.p. 202.232.

5. Em J.-P. Sartre. O ser e o nada, pp. 451-477.

6. Ver o livro citado, p. 475.

7. Lugar analisado em meu seminário sobre a Ética da Psicanálise,


1959-1960.

8. Cf. Fenomenologia da percepção. p.357.

Você também pode gostar