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Tales de Mileto, Hegel e a Teoria de Tudo

Alfredo de Oliveira Moraes

Resumo
O autor toma como foco de sua reflexão a não realização da Teoria de Tudo no Todo, indicando
como causa a base de construção do pensamento usado para as tentativas frustradas, enfatiza a insuficiência
do pensamento apoiado na Metafísica de base material com raízes em Tales de Mileto e ainda vigente, e
apresenta a Metafísica de base relacional protoenunciada no pensamento de Hegel, como um possível
fundamento de um pensar capaz de apreender a realidade efetiva na fluidez de seu acontecer, tanto no
âmbito da existência dos fenômenos infra nanos, bem como, nos hiper macros acontecimentos.
Palavras-chave: Metafísica, Teoria de Tudo, Dialética Hegeliana.
Abstract
The author takes how focus of your reflection the no achievement of the Theory of Everything in the
Whole, he indicates that the cause of that frustrated attempts it is the basis of construction of the thought
used to, lay emphasis on the inadequacy of the thought supported in the metaphysical from material basis,
with roots in Tales de Miletus, in ruling to find a solution, and he presents the metaphysical from relational
basis, proto-enunciated in the Hegel’s thought, like a possible foundation to think what can be capable to
apprehend the effectiveness reality in the flow of its happen, so in the scope of the existence of phenomena
infra nanos, so well, in the hyper macros events.
Key words: Metaphysical, Theory of Everything, Hegelian Dialectic.

A Teoria de Tudo ou, como prefiro, do Todo tem sido um sonho alimentado pelos
físicos desde inícios do século passado, com a eclosão de novas teorias físicas que
subtraíram da teoria newtoniana a sua universalidade, no entanto, para alguns e cada vez
mais parece apenas um sonho impossível, para os teimosos é preciso morrer tentando e
para mim já temos uma potencial solução conceitual, restando, no meu entender, tão
somente a sua tradução na linguagem dos físicos, o que obviamente tem de ser feito por
eles. Mas, qual é a solução que proponho?

Antes de anunciar a resposta, primeiramente, cabe dissolver as incongruências


presente nas tentativas até agora malsucedidas. Meu ponto de partida será uma frase
atribuída ao físico Albert Einstein – “O pensamento que nos conduziu até aqui é incapaz

 Texto originalmente apresentado no I Congresso Internacional de Ciências do Estado, publicado


numa versão em inglês no periódico Philosophy Study, (January 2023, Vol. 13, No. 1, doi: 10.17265/2159-
5313/2023.01.004.

Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em
Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do sul, autor entre outros de A Metafísica do Conceito
– Sobre o problema do conhecimento de Deus na Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel, Porto
Alegre, EDIPUCRS, 2003.
de nos tirar daqui.” Qual o pensamento que subjaz a toda construção conceitual da ciência
ocidental? A resposta a essa pergunta pode nos levar a compreensão da insuficiência
indicada na assertiva de Einstein. Minha estratégia será dar alguns passos para trás para
poder avançar.

O início de tudo ou do pensamento do todo

A origem do pensamento Ocidental ou o seu filtro unificador primordial é atribuído


à viragem epistemológica realizada por Tales de Mileto, na antiga Grécia. Aquele nosso
antepassado cultural propõe em franco antagonismo com o pensamento mitológico e
paradoxalmente se apoiando neste, então o modo de pensar dominante, que a fonte
originária de tudo que existe é um princípio material incriado, eterno – a água. A palavra
princípio (ἀρχή) aqui deve ser compreendida no duplo sentido tanto no de origem quanto
no de substância essencial.

Ora, acontece que ignorando as causas que levaram Tales ao anúncio dessa verdade,
os sábios e filósofos que lhe sucedem se comprazem em apenas transubstanciar esse
princípio, sem lhe opor resistência à sua materialidade e tampouco à eternidade incriada do
princípio. As mentes mais brilhantes da história do pensamento ocidental desde os
contemporâneos de Tales aos dias atuais tão somente refinam, sutilizam a natureza dessa
matéria originária, lhes atribuem outras denominações (ápeirón, fogo, terra, ar, átomo, ser,
nous, Deus, energia, éter, universo...), mas no fundo a própria descrição de cada um desses
princípios ou variações do princípio material aponta para algo figurativo ou entitativo,
coisificado. Ainda que em alguns casos a sofisticação argumentativa pareça tratar de
entidades metafísicas, estrito senso.

A crítica e a continuidade

Com efeito, mesmo 25 séculos depois de Tales quando se operam as críticas ao


pensamento metafísico ou à Metafísica que dele se originou, ainda se faz não somente
partindo e na continuidade desse pensamento originante, mas circunscrevendo-se a esse
modo de pensar; essa crítica que muitas vezes se pretendeu mais do que esclarecer, refutar
o que se desenvolveu na história de nosso pensamento nesse lapso de tempo, nada
acrescentou, algumas vezes se perguntou o que não podia responder e outras perguntou
pelo que já havia sido respondido.

Para não dar margens às interpretações distorcidas, esclareço que não estou
apequenando com isso a relevância desses grandes pensadores que fizeram a história que
está viva em nós, muito menos negando a enorme contribuição desse modo de pensar na
construção da ciência e de seus produtos na elevação do bem-estar da humanidade ou na
elevação da dignidade da condição humana. Também, não se trata de um apontar o dedo
para os efeitos colaterais negativos do desenvolvimento científico-tecnológico, nem do
descompasso entre esse desenvolvimento e a elevação ético-moral das relações humanas.

Desde meu ponto de vista, trata-se de suprassumir (negar, conservar e elevar) o


pensamento que nos conduziu até aqui no âmbito de uma razão ampliada, capaz de
responder às exigências do saber mesmo que esse antigo modo de pensar em seus
desdobramentos nos propiciou alcançar. Numa analogia, trata-se de processo semelhante
àquele que a Física contemporânea operou em relação à Física de Newton, ou seja,
reconhecer a importância e circunscrever seu valor verdade à realidade que ela é capaz de
abranger. Grosseiramente, para fazer um automóvel andar é suficiente os ensinamentos de
Newton, mas para fazer o Hubble chegar aonde se espera esses ricos ensinamentos já não
são suficientes.

Considero, portanto, que a metafísica que se origina em Tales não é a Metafísica,


mas apenas uma das infinitas possibilidades de pensar metafisicamente, proponho que se
pense a metafísica em outra base ou fundamento. Significa que para os aspectos da realidade
pertinentes ao âmbito de abrangência até agora compreendidos e oriundos desse modo de
pensar seu valor verdade permanece em vigor, mas para a realidade que começamos a
desvelar ou mesmo vislumbrar a partir dos produtos desse pensamento, teremos de
encontrar uma outra base de construção conceitual que atenda à hipercomplexidade
crescente tanto no nível infra nano quanto no nível hiper macro.

A Metafísica de base relacional como uma solução potencial


Neste ponto e neste sentido, proponho uma metafísica de base relacional, como
possibilidade de não permanecer na incongruência mais forte, seja, aquela de querer pensar
uma Teoria de Tudo ou do Todo dentro de um pensamento dualista. O dualismo no
pensamento Ocidental está presente desde Tales até hoje, com raríssimas exceções (Hegel,
por exemplo), perpassa todos os domínios da existência humana na Terra e não apenas o
pensamento científico. E nos acostumamos ao dualismo como se fosse absolutamente
inescapável dele, tanto que a assertiva de Heráclito de Éfeso de que o bem e o mal são uma
única coisa, ressoa como um sacrilégio, um devaneio filosófico ou um enigma de um
homem obscuro. Mesmo para aqueles que acreditam num único Deus como fonte de toda
a realidade.

Em consequência, no pensamento ainda vigente entre nós, a solução do problema


da natureza da luz, o debate se é partícula ou onda, foi ‘resolvido’ aceitando-se que a luz é
partícula e onda ao mesmo tempo e se manifesta na realidade efetiva atendendo à
perspectiva ou à expectativa do observador. Assim, se mantém o dualismo tanto na
manifestação – partícula e onda – quanto na separação do observador e sua influência na
experiência (ponto este já um avanço para uns ou uma quebra de paradigma inaceitável para
outros). Aqui, a contribuição Hegeliana na qual se dissolve a separação entre o sujeito e o
objeto ainda não é conhecida ou reconhecida.

Com efeito, na abordagem de uma metafísica de base relacional o dualismo se dissipa


na medida em que a realidade se aprofunda e se consuma mais além da aparência luminosa,
não se trata mais de um objeto de conhecimento que se hipostasia – nem partícula nem
onda – a luz é uma totalidade dinâmica de relações de relações, como manifestação
perceptível aos nossos sentidos a luz é tudo o que vemos, em sua natureza íntima a luz é
expressão de tudo o que não vemos, que nossos sentidos não estão aptos a apreender. De
que é constituída a luz? Como tudo que é perceptível, por instrumentos ou não, pelos
nossos sentidos, a luz tem em sua constituição um jogo de forças, força eletromagnética,
força gravitacional e as duas forças internas ao que chamamos preguiçosamente de átomo.

Ora, o que é uma força? Uma força é algo que somente pode ser apreendido através
de algo outro que ela, é uma totalidade dinâmica de relações, não um relacionar entre dois
ou mais objetos, entendidos como compactações, coisas no sentido de entidades separadas
umas das outras, mas totalidades conectivas e conectadas de relações, tornando tudo
instável, epifenomênico.

A relação ou o relacionar seria, então, a menor unidade de compreensão possível e


que substancialmente está presente em todas as dimensões existenciais da humanidade, e
de tal modo, que se queremos numa teoria unificar essas dimensões em sua infinitude, isto
é, se buscamos uma teoria coerente para compreender juntos desde os superaglomerados
de galáxias até aos eventos infra nanos, não podemos permanecer no pensamento
dualístico, urge pensar o Uno da multiplicidade e a multiplicidade do Uno. É preciso
ressaltar que o conjunto das quatro forças citadas não correspondem a quatro princípios de
onde se originam as coisas existentes, mas cada uma dessas forças é apenas um modo de
ser da força única que é o Todo, não se esgota nelas as possibilidades de manifestações do
Todo, sendo bem possível que venhamos a descobrir mais modos de ser no futuro.

Se até agora a dificuldade principal de uma Teoria de Tudo ou, como prefiro, do
Todo era compatibilizar os eventos descritos na mecânica quântica com as explicações da
Relatividade para os movimentos astrofísicos, penso que o ponto de unificação pode estar
na apreensão da realidade efetiva como um jogo de relações (conectivos, relacionamentos),
reservemos o linguajar de partículas e ondas para o âmbito de abrangência do pensamento
newtoniano e seus desdobramentos, penso que agora há de se pensar como descrever numa
nova linguagem um universo infinito constituído substantivamente de relações (conectivos,
conexões, relacionamentos, unidades relacionais da realidade efetiva).

Neste ponto se entra no reino das dificuldades, ora, se mudar um simples hábito
requer um esforço descomunal, o que se pode dizer de mudar o próprio modo de pensar
e, em consequência, operar a metamorfose do sentido da linguagem? Apenas de modo
ilustrativo pergunto: há quanto tempo sabemos que aquilo a que chamamos átomo não é
indivisível e ainda assim continuamos a dizer átomo no lugar de simplesmente tomo ou
criamos uma denominação mais adequada? Ou, ainda pior, há quanto tempo sabemos que
é a Terra que gira em torno do Sol e não o contrário, e seguimos dizendo ‘que belo pôr do
sol’? Bem, isso soa para muitos como algo de somenos importância, mas, vale lembrar que
a linguagem opera o ‘milagre’ de permitir o indivíduo sair de si e permanecer em si mesmo,
na linguagem eu me expresso, sou para outro, compartilho a mim mesmo, informo e
reciprocamente me formo, isso me diz que as expressões linguísticas não são vazias de
consequências. Mas, como nos ensinou Hegel a linguagem é o mais verdadeiro.

Mas, aqui também, me recordo de Husserl ou mais precisamente do ponto de


discórdia entre ele e um de seus discípulos – a redução eidética transcendental; no dizer
daquele discípulo, colocar em suspenso o pensamento para pensar corresponderia a saltar
sobre a própria sombra, contudo, parece ser exatamente o que se tem a fazer para ir além
do pensamento que nos conduziu até aqui. Se não posso simplesmente apagar dentro de
mim os pensamentos que até agora me constituem, posso mudar a base de construção desse
pensamento? Sim é o que defendo, e isso equivale a mudar a qualidade do pensamento.
Portanto, não se trata de suspender o pensamento oriundo da metafísica de base material e
pensar a partir do nada, do vazio ou ausência de fundamentação, mas, de reconhecer as
insuficiências desse pensar e substitui-lo enquanto fundamento e diretriz por um pensar
que se assente na base relacional (relações, conectivos, conexões, relacionamentos, unidades
relacionais da realidade efetiva).

Não estou descurando de que isso implica, necessariamente, em ressignificar todo o


nosso vocabulário, esse outro passo é possível? Fácil, sabemos que não é, mas impossível
também não, talvez, possamos começar (não de imediato, até porque cada um de nós é um
ente de mediações - porquanto somos constituídos de relações) no e pelo espírito do tempo
(o pensamento científico de vanguarda) para com o tempo ‘contaminar’ o espírito do
mundo (o pensamento assimilado pelo povo e dominante em cada momento histórico).

Como não estou pensando abstratamente, o que acabo de dizer dependente


exclusivamente da ação de cada um de nós como um Eu, fazer essa referência exige um
esclarecimento acerca do que entendo por Eu, assim, creio que antes de prosseguir tenho
de explicitar o que é para mim o Eu; nisso como em tantas outras conceituações
compartilho da compreensão hegeliana: o Eu é o conteúdo da relação, o relacionar-se e o
relacionar-se consigo mesmo. Em outras palavras: uma totalidade dinâmica autocentrada
de expressão epifenomenal de relações (conectivos em conexão, relacionamentos
entrelaçados, unidade relacional autocentrada da realidade efetiva).

À guisa de exemplo, e para que fique claro mais uma vez de que não estou falando
em abstrato, lembremo-nos de algumas das relações que estão presentes na construção de
nossa existência: além das que fazem parte das determinações originárias, temos as relações
entre o óvulo e o espermatozoide que nos geraram fisicamente, que se deram num contexto
de relacionamento entrelaçado entre os progenitores; as relações intrauterinas (alimentícias,
energéticas, emotivas, culturais); as relações de aprendizado após o nascimento
(intensificação da aquisição da linguagem, as relações polissemânticas com o mundo
mediadas pelos outros indivíduos, o uso das mãos – em relação ao polegar opositor, as
experiências agradáveis e as desagradáveis e suas impressões neuronais, o desenvolvimento
da psique); enfim, são verdadeiramente inumeráveis as relações (conexões, conectivos,
relacionamentos, entrelaçamentos de relações) nas quais nos constituímos como um Eu.

Voltando à questão da linguagem, tendo como pano de fundo as suas implicações e


consequências, à primeira vista parece que o que proponho é absurdo; sobretudo, se
considerarmos que o mundo no qual vivemos é, essencialmente, uma totalidade dinâmica
de significados, construída na tensão dialético-existencial e recíproca entre o indivíduo e o
todo (não o todo abstrato, mas o todo concreto – todo o outro em sua diversidade e
multiplicidade infinita). O que de maneira geral nos faz permanecer na teia do pensamento
pensado, sem quase nunca ousar existir como pensamento pensante.

Não obstante, já usamos algumas expressões que semanticamente já exprimem algo


dessa e nessa base metafísica relacional, é que às vezes não estamos muito atentos ao que
dizemos, por exemplo, quando afirmamos que a teoria quântica de campo é um conjunto
de ideias e técnicas matemáticas usadas para descrever sistemas físicos que dispõem de um
número infinito de graus de liberdade, as palavras ‘sistemas físicos’ se tomadas no sentido
que empregamos a partir de Norbert Wiener implica, necessariamente, que se trata de
realidades físicas relacionais (relações, conectivos em conexão, relacionamentos
entrelaçados).

Do que precisamos é saber o que dizemos quando isso dizemos, e não falar em
sistemas físicos e ter em mente coisas compactas de maior ou menor densidade ou até
mesmo num refinamento sofístico partículas sem massa. Bem como, devemos evitar
permanecer numa falsa ou incipiente pré-compreensão da realidade efetiva, como costuma
ocorrer quando, no senso comum, lemos notícias astronômicas nos periódicos, tais como:
a estrela x está a uma distância de 2,5 bilhões de anos luz da Terra, e parece que o
entendimento ordinário compreendeu essa distância expressa na unidade astronômica,
quando na verdade o uso habitual do metro como unidade de medida, não permite a
apreensão exata dessa distância, prevalecendo uma pré-compreensão um tanto nebulosa.

Quando começo a pensar esses sistemas físicos, como unidades físicas relacionais
da realidade efetiva, abro efetivamente a possibilidade de tirar o entrelaçamento quântico
do seu status de quimera ou coisa de crentes, de um saber que não pode ser devidamente
explicado pela ciência, pertencente ao domínio dos mistérios e passo a compreender esse
fenômeno como algo presente no cotidiano da teia de conectivos conectados que tecem a
nossa realidade efetiva. Pois, se tudo está num emaranhado infinito de teias de conectivos
conectados há de se convir que uma ação qualquer em qualquer ponto desencadeia
interações de maior ou menor magnitude no todo sistêmico.

Ainda que as soluções simples e belas sejam as mais apreciadas pela comunidade
científica, ninguém desconhece a sua contumaz face reacionária ante o novo, afinal essa
comunidade há muito ocupa o lugar da comunidade dos padres da inquisição medieval.
Assim, se o novo for simples é simples demais para ser considerado, se muito complexo é
obscuro demais para ser levado à sério. Mas, o óbvio é muitas vezes o que está tão à vista
que não se vê.

Com efeito, há coisas triviais ou óbvias que por vezes parecemos negligenciar o
significado e, em consequência, tornamos de difícil compreensão outras que delas
dependem para a sua elucidação ou apreensão de sua verdade. Sabemos, e não é de hoje,
que o universo é infinito, nem adianta falar em multiversos ou multi-universos porque aí já
há uma compreensão equivocada da infinitude. Pois o infinito não é um amontoado de
coisas postas numa fila infinda, o infinito não se contrapõe ao finito, antes tem no finito
sua realidade efetiva. O Todo somente é todo porque constituído de partes, me encanta ver
as simulações das grandezas astronômicas em vídeo, a Terra dentro do sistema solar, o Sol
dentro da Via Láctea com seus bilhões de estrelas e uns tantos buracos negros, a Via Láctea
dentro de um aglomerado de galáxias ...; claro que isso é apenas uma visão unilateral, desde
Andrômeda talvez essa visão seja muito diversa. Mas, o que importa é perceber que na
unilateralidade relativa das visões cada parte é uma unidade física relacional do Todo.

Assim, o Todo não pode ser pensado como algo à parte ou como uma abstração do
Entendimento humano, o finito só existe como momento da infinitude. Pois é aí que o
universal é como existência singular (universal concreto como diria Hegel), por essa razão,
quando se diz que Deus ou o Absoluto é incognoscível à inteligência humana, não se faz
justiça a Deus e nem à humanidade. Jamais conheceremos a Deus em sua totalidade,
obviamente que não, pois essa totalidade é um Si movente, cuja perfeição reside justamente
em sua liberdade de fazer a si mesmo eternamente, e esse fazer, que é a Vida do Absoluto
bem que se poderia expressar como um jogo de amor consigo mesmo. Nem é preciso alimentar a
presunção de conhecer o Todo abarcando-O, porquanto o Todo se dá a conhecer às suas
manifestações em suas manifestações. Nisso somos imagem e semelhança ou um fractal
holográfico do Todo, pois nenhum de nós é capaz de conhecer inteiramente se quer a si
mesmo, pois ainda estamos e sempre estaremos em construção da nossa essência,
absolutamente única, singular; não obstante, o torvelinho de manipulações alienantes em
que nos encontramos.

Se tomarmos um fenômeno qualquer, por exemplo, um buraco negro ou um


neutrino– o que sabemos dele não é fruto de uma relação experiencial com ele, mas em boa
medida esse saber é mediado por ilações, suposições, analogias, numa palavra: construções
teóricas edificadas a partir de uma metafísica de base material que orienta o sistema de
crenças vigente. Daí que a interpretação desse fenômeno ou, o que é o mesmo, o saber
científico sobre ele construído a partir de um subsistema do sistema de crenças pode entrar
em contradição inconciliável com o saber de outro subsistema, posto que ambos pensam
esse objeto como uma partícula ou coisa compacta, ou ainda, na melhor das hipóteses, esse
objeto como um processo de modo hipostasiado e não como uma unidade relacional da
realidade efetiva.

Por conseguinte, não é difícil que saberes inferencialmente construídos pelos


subsistemas do sistema de crenças (teoria quântica e teoria da relatividade, por exemplo)
entrem em conflito na descrição de um fenômeno, tomado como objeto de conhecimento,
pensado na abstração da totalidade na qual se encontra, mesmo que às vezes tentem
apreende-lo a partir de suas relações com outros fenômenos, mas sem apreende-lo, ele
mesmo, como uma totalidade dinâmica de relações, cuja delimitação ou fronteira de padrão
discernível depende do limite perceptual ou do corte epistemológico realizado pelo sujeito
que conhece no ato de apreensão do fenômeno. Segue-se que a incompatibilidade daí
decorrente inviabiliza pensar de forma unificada uma teoria que especule, sem
incongruências e numa unidade compreensiva uma descrição conceitual, capaz de expor
num discurso coerente, simultaneamente e em conjunto, fenômenos das dimensões infra
nano e hiper macrocósmica.

Com efeito, aqui também entra em jogo a perspectiva lógica desde a qual estou
situado, de modo geral os acadêmicos afeitos a pensar cientificamente postados no
horizonte dos sistemas lógicos formais, em suas diversas variantes, raramente percebem
que essa lógica subjacente se apresenta como uma camisa de força na qual forçam a
realidade efetiva a caber. A dificuldade maior tem sido que a maioria não vislumbra uma
alternativa lógica para o pensar, pois quando se tenta sistematizar em fórmulas as lógicas
dialéticas na linguagem subordinada ao pensamento de base material, estas lógicas dialéticas
se convertem em fantasias retóricas ou se enrijecem em formalismos ou se tornam
devaneios filosóficos incoerentes.

Para mim esse é um ponto de extrema relevância e delicadeza, assim como para
pensar uma outra base metafísica diferente da base material vigente fui buscar insumos ou
a sua protoenunciação no pensamento hegeliano, também no que concerne à lógica faço
opção por Hegel, pois a sua lógica engendra no pensar uma nova condição de apreensão
da realidade efetiva: primeiro, a necessidade de compreender a simultaneidade como
constante universal, seja, a linearidade passado – presente – futuro é uma condição
existencial local que não se sustenta nos eventos infra nanos nem nas dimensões hiper mega
astronômicas; em segundo lugar (não na ordem de importância, mas apenas expositiva) a
lógica de Hegel suporta a contradição na qual cada fenômeno é e não é simultaneamente,
não pretende resolver ou abolir a contradição, mas nela o conceito apreende cada fenômeno
da realidade efetiva na contradição que lhe é própria; terceiro, a suprassunção (die
Aufhebung) ou o suprassumir (das Aufheben, substantivando o verbo como Hegel) é o
movimento espiral ínsito que permeia toda a realidade efetiva.

Destarte, essa é a lógica que, segundo me parece, é adequada a pensar a partir de


uma metafísica de base relacional, retomo aqui o exemplo já clássico da lógica hegeliana,
como exposta por Hegel mesmo nos começos da Fenomenologia do Espírito:

“O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta;


do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como
sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem
como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas
momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são
igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do
todo.”1

Nessa famosa passagem Hegel, não apenas reprova radicalmente aquelas


interpretações reducionistas de sua lógica dialética, mas descreve de forma quase poética a
realidade efetiva num de seus mais belos momentos e exalta a imprescindibilidade de aceitar
a contradição como inerente a tudo que é existente. Botão, flor e fruto na totalidade da
planta são efetividades entrelaçadas, no entanto, quem vê o botão somente por exercício
de imaginação verá a flor, quem vê a flor já não vê o botão que nela está contido e
consumado, elevado a plenitude de si mesmo. Assim, a menina, a jovem mulher e a anciã;
a nebulosa, a galáxia e a poeira estelar de que é feito cada planeta ou ente cósmico. Enfim,
tudo é só um relacionar infinito de totalidades ou unidades relacionais mutantes em
interação constante e entrelaçadas por movimentos perenes.

Tudo é um entrelaçamento infinito de possibilidades relacionais, por isso mesmo


pode ser pensado numa unidade relacional capaz de se colapsar em cortes epistemológicos
efetivados pelo sujeito que conhece. Mas, é preciso insistir que do mesmo modo que aquilo
que é fenômeno para nós não tem em si nenhuma objetividade independente de nós, do
mesmo modo não é o arbítrio de uma consciência individual que cria a realidade fenomênica
como variável dependente do sujeito cognoscente.

Urge expandir a compreensão para a complexidade das realidades multilaterais e


polissêmicas que permeiam as relações de reciprocidade entre sujeito (uma parte que é
momento do todo e não pedaço ou fragmento) e universo (o todo que se manifesta em
suas infinitas singularidades) na geração do mundo (totalidade dinâmica de significados) e
na compreensão do si mesmo humano (totalidade dinâmica e autocentrada de relações,
conectivos conexos e relacionamentos entrelaçados em busca de sentido).

Há ainda um ponto que não posso deixar à parte, alguns apressadamente dizem que
não se pode mais se quer falar em fundamento na época em que vivemos e se perguntam
qual o fundamento de uma rede? A metáfora do edifício para expressar o conhecimento
emergindo de uma base sólida não pode ser usada quando se trata de uma rede, como a
internet por exemplo, mas isso não passa de mais um equívoco gerado pela falta do

1
Hegel, G. W. F. – 2002, p.26, §2.
exercício da paciência do conceito. Pois, assim como uma corrente é somente tão forte
quanto o seu elo mais fraco, uma rede somente existe ou se sustém na força da
interatividade que entrelaça as suas unidades relacionais na constituição da fronteira de
padrão discernível que a define na multiplicidade infinita do Todo.

Com efeito, o fundamento não pode ser pensado como algo sólido que se oculta na
sustentação daquilo que aparece, como a base de um edifício sob o chão, ou menos ainda
como um ser indizível que fora dos entes os mantêm na existência; não, na perspectiva da
Metafísica de base relacional o fundamento nem é abolido e nem é um mistério, mas é na
própria manifestação ou no fenômeno, não estando nem além nem por trás da
manifestação, mas no fenômeno ou na coisa mesma como diria Hegel.

Em linhas gerais esse é o conjunto de desafios que desejo trazer neste texto, e que
decorre da necessária, assim entendo, mudança de base ou fundamento da Metafísica, para
que não permaneçamos no que alguns apressadamente já chamam de ‘novo normal’,
mesmo alimentando e vivendo sob velhos ‘pré-conceitos’. Jamais podemos esquecer a
grandiosa contribuição de Tales de Mileto, sem a sua metafísica de base material não
teríamos chegado aonde estamos, talvez, não tivéssemos nem mesmo o sistema educacional
que temos se todo o conhecimento aceito como verdadeiro e válido ainda tivesse exclusiva
origem nos deuses e fosse expresso nas vozes dos oráculos, mensageiros e iluminados.

Mas, não podemos continuar a ressaltar a importância de Hegel para a história da


Filosofia e, paradoxalmente, não fazer o esforço de pensar com ele, não podemos continuar
a fazê-lo passar pelo Heráclito dos tempos modernos, o obscuro a quem se deve deixar à
parte. Não podemos, sob pena de estagnação e morte da Filosofia, nos conformar com o
pensamento pensado que nos tem reduzido a comentadores afeitos a reflexões algumas
vezes medíocres, outras eivadas de anacronismo, outras pletóricas de reverência
dogmatizante assentada em argumentos de autoridade, outras simplesmente falaciosas e
outras também honestas, mas que nada acrescentam aos textos dos filósofos comentados.

No nosso texto sagrado encontramos expressões como, por exemplo: não se pode
por vinho novo em odres velhos; pois, então, não podemos abordar a nossa realidade atual
com os velhos instrumentos conceituais, sem suprassumi-los na metamorfose que os
ressignifique, tornando-os pontos de emergência para novas significações que deem conta
da nossa realidade efetiva, é preciso pensar as descobertas e inovações científicas à luz da
nova compreensão que elas exigem, mas lembremos que nesse entrelaçamento, também
não podemos mais continuar a interpretar a realidade política, econômica e social com
paradigmas assentados no reducionismo imposto pela metafísica de base material, muito
menos a Sociedade Civil e o Estado.

Após compartilhar essas minhas inquietações, silencio e espero. No silêncio desejo


viver o exercício da escuta do outro, ter ouvidos para ouvir é desde há muito a condição do
caminhar, do pôr a si mesmo na busca da verdade; Na espera desejo viver a esperança de
ser ouvido, de viver a experiência do Eu que é um Nós e do Nós que é um Eu, no universal
concreto que se expressa nas singularidades autocentradas das unidades mutantes e
relacionais (conectivos em conexão, relações de interação e relacionamentos entrelaçados),
que se movem na existência pelo anelo que nos constitui vindo da certeza de que nosso
acabamento é algo irrealizável, porque a essência de todas as essências é a liberdade.

Ao fim e ao cabo, em tudo subjaz a meta que jamais poderemos alcançar e que jamais
poderemos abandonar, o desejo ontológico que mantém cada um de nós na existência: ser
si mesmo e experienciar a vida em plenitude.

Referências

HEGEL, G. W. F. – Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses; 7. ed. rev. –


Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002.

MORAES, A. de O. – A Metafísica do Conceito: sobre o problema do conhecimento de


Deus na Enciclopédia das ciências filosófica de Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

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