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LIBERDADE OU DETERMINISMO ?

UM QUESTIONAMENTO ÉTICO
DIRECIONADO À PSICANÁLISE

Nelson Coelho Junior


Psicanalista,
Professor Doutor do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo (USP)

RESUMO

O objetivo principal deste ensaio é incluir no debate psicanalítico contemporâneo um


questionamento ético sobre a liberdade e o determinismo no contexto do trabalho
terapêutico. Para isso recorre- se à teoria do filósofo francês Merleau-Ponty e às suas
concepções de liberdade e determinismo. Apresenta- se a proposição de que liberdade e
determinismo mutuamente se constituem.

PALAVRAS CHAVE: Liberdade, Determinismo, Ética, Merleau-Ponty e Psicanálise.

Freedom or determinism? An ethical interrogation towards psychoanalysis


SUMMARY

The main objective of this essay is to include in the contemporary psychoanalytical


debate an ethical discussion about freedom and determinism in the therapeutic context.
For this the theory of the French philosopher Merleau-Ponty is used and also his
conceptions about freedom and determinism. It is proposed that freedom and
determinism mutually build each other.

KEY- WORDS : Freedom, Determinism, Ethics, Merleau-Ponty and Psychoanalysis.

Cientistas e filósofos têm debatido o problema colocado pela proposição paradoxal


que concebe o ser humano ao mesmo tempo como uma parte do mundo natural
(sujeito, portanto, às determinações próprias dessa condição) e como um ser
2

dotado de liberdade; nesse contexto a oposição entre liberdade e determinismo


pode ser considerada uma das mais centrais entre as que opõem as diferentes
concepções apresentadas por teorias e discursos sobre o ser humano. Na esteira
dos postulados de Galileu e Newton construiu-se um modelo de ciência moderna
caracterizado por um saber verificável e objetivo que permitisse a previsibilidade.
Os conceitos centrais dessa forma de conhecimento reconhecido como
positivismo científico são causa e determinação. Apoiados nesta perspectiva, os
saberes sobre o psiquismo humano que se desenvolveram a partir do primado da
determinação são, em seu limite, um ramo da biologia. Por outro lado, aqueles
que podem ser reunidos a partir de uma defesa intransigente da liberdade como
marca essencial do que é humano procuram diferenciar-se das ciências ditas
“duras” e, em última instância, questionam a possibilidade de serem considerados
ciência nos moldes do modelo positivista. Resta, assim, a questão se é possível
conceber os saberes sobre o psiquismo humano como uma ciência ou ainda mais
como uma ciência natural e ao mesmo tempo pensar o homem como um ser livre.
Ou ainda, se em meio a um materialismo determinista existe lugar para o
idealismo representado pela noção de liberdade absoluta ? Mas, ao que tudo
indica, o psiquismo humano parece escapar do determinismo dominante no
mundo físico: cada ato humano realizado permite com que se perceba vários
determinantes, sendo assim, há liberdade e não só determinismo. Para os
objetivos deste texto, seria interessante estabelecer como a psicanálise se situa
neste contexto e se, de fato, a oposição entre liberdade e determinismo chega a
se constituir como uma questão para nós analistas.

A psicanálise promove a liberdade? A finalidade do trabalho clínico em psicanálise


é gerar liberdade onde antes havia aprisionamento? Considero que a psicanálise é
fundamentalmente o ato de dar palavra ao outro e que sua ética pode ser
compreendida como um “modo de escutar e de falar ao e do outro em sua
alteridade” 1. Mas a psicanálise considera o outro como um ser livre ou como um

1
Cf. Figueiredo, L.C. e Coelho Junior, N. (2000) Ética e Técnica em Psicanálise, p.7.
3

ser determinado? Que implicações éticas existem em um trabalho terapêutico


fundado na crença de um determinismo absoluto ? E, por outro lado, como não
colocar em debate o idealismo de concepções terapêuticas apoiadas na idéia de
que a liberdade deve ser a meta a ser alcançada? Não é o caso de pretender
formular neste texto novas regras prescritivas sobre o fazer analítico e muito
menos supor que há um “lugar” em que o trabalho analítico estará seguro a partir
de seu sólido apoio em um pensamento filosófico. Trata-se, isso sim, de trazer
para a discussão um tema de primeira ordem que tende a ser considerado
ultrapassado diante de certezas teóricas já instaladas sobre o lugar
epistemológico do saber psicanalítico. Mais do que um tema epistemológico,
entendo que a oposição liberdade e determinismo coloca em foco a ética de todo
trabalho analítico.
Há pelo menos quinze anos venho trabalhando com a filosofia de Merleau-Ponty
(filósofo francês que viveu entre 1908 e 1961) como principal elemento crítico para
sustentar uma reflexão sobre questões suscitadas pela prática psicanalítica. A
partir de sua filosofia venho buscando formas de compreensão do fazer analítico
que coloquem a vida e os sofrimentos tanto para além de uma perspectiva
fatalista, quanto para além da perspectiva de um otimismo cor de rosa.
As relações entre um pensamento filosófico e a reflexão sobre o trabalho clínico
são sempre delicadas, para dizer o mínimo. O principal risco presente na relação
entre filosofia e psicanálise, risco que já foi apontado por vários autores, entre eles
Monzani (1991) e Figueiredo (1994), perece estar na tentação quase irresistível de
aplicar as "soluções" filosóficas aos impasses recorrentes nas teorias e nas
práticas psicanalíticas.
Com o que proponho neste texto, pode parecer que acredito que o apoio na
filosofia de Merleau-Ponty resolveria uma difícil questão que surge para todos que
se arriscam a expressar idéias e tentam produzir conhecimento, que é a questão:
em que se funda nosso discurso, nosso pensar? Como escapar tanto de uma
prática idealista que pressuponha condições de liberdade absoluta, como de uma
prática que se apresente como resultado da crença em um determinismo
absoluto? São questões delicadas, porque de fato, mesmo com a aparência de
4

estar solidamente estruturado em algum pensamento já previamente organizado,


cada discurso se funda como pode, segundo seus próprios recursos, o que acaba
significando renunciar a fundar-se absolutamente, em uma base que pudesse ser,
entre todas, a de alicerce mais seguro. No entanto, é inegável, há sempre alguma
busca nesse sentido quando vamos em direção a um pensamento filosófico que,
acreditamos, possa dar conta das dificuldades de fundamentação de uma prática
em psicanálise. É a crença de que uma filosofia, ou a filosofia, dê o fundamento
absoluto, único, verdadeiro, que a prática cotidiana reclama. E nesse caso,
estamos então em um terreno muito escorregadio, principalmente se a filosofia
escolhida for a de Merleau-Ponty. Filosofia que constitui-se a partir de um
pensamento aberto para a pluralidade, que faz da dialética uma dialética sem
síntese, instalando-se constantemente no espaço da interrogação que faz,
portanto, com que a produção do conhecimento não tenha como meta verdades
ideais.2 Sempre enredada no plano da existência, é a multiplicidade de
significados que se impõe a partir desta posição filosófica. Colocado dessa forma
no interior do redemoinho das idéias de Merleau-Ponty, sinto-me atirado a uma
forma de interrogação que implica em um contínuo recomeçar, fruto de uma
filosofia que é a experiência renovada de seu próprio começo, como Husserl
descrevia a fenomenologia e que parece ser também a descrição mais fiel da
filosofia de Merleau-Ponty (1960 a): “A filosofia não é um certo saber, ela é a
vigilância que não nos deixa esquecer a origem de todo saber”.(p.138)
Pretendo sempre me situar a partir desse contexto, em que a filosofia de Merleau-
Ponty não é pensada como uma filosofia que fundamente uma prática, como
filosofia a ser “aplicada”, mas sim como um pensamento que possibilite certa
elaboração e compreensão de experiências vividas. Um pensamento que faça
"trabalhar" nossa reflexão sobre a prática psicanalítica, para além das limitadas
amarras das teorias que em geral fundamentam nossos trabalhos terapêuticos.

Concordâncias ou aproximações entre a fenomenologia de Merleau-Ponty e a


psicanálise foram consideradas por vários autores, entre eles Paul Ricoeur (1977):
2
Para maiores desenvolvimentos sobre esse tema,Cf. Coelho Junior, N. e Carmo, P.S. (1992) Merleau-Ponty.
Filosofia como Corpo e Existência.
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"Nenhuma filosofia reflexiva, com efeito, se aproximou tanto do inconsciente


freudiano como a fenomenologia de Husserl e de alguns de seus discípulos,
principalmente Merleau-Ponty e de Waelhens." (p. 304). Mas, para Merleau-Ponty
(1960 b), esta aproximação ainda que verdadeira, e alguns momentos de sua obra
mostram isto claramente3, não deve ser motivo para encontros apressados: "A
concordância da fenomenologia e da psicanálise não deve ser compreendida
como se “fenômeno” dissesse de forma clara o que a psicanálise o disse de forma
confusa. É ao contrário, pelo que ela sub-entende ou desvela até seu limite - por
seu conteúdo latente ou seu inconsciente -, que a fenomenologia está em
consonância com a psicanálise."( p.9)

Nesta perspectiva, não há como pretender “criar” mais um discurso em


psicanálise, nessa latência, para a qual, segundo Merleau-Ponty, tanto a
fenomenologia como a psicanálise se dirigem. Acredito, por outro lado, que a
psicanálise contemporânea só tem a ganhar ao se deixar penetrar pelas
construções críticas e inovadoras introduzidas pelo pensamento filosófico de
Merleau-Ponty.

Considerando mais diretamente o tema que me proponho a desenvolver aqui,


liberdade ou determinismo, talvez possa ser interessante começar com a visão
que Merleau-Ponty ([1948] 1966) tem a respeito das relações entre vida e obra,
em sua análise sobre a liberdade na vida do fascinante pintor francês Paul
Cézanne. A passagem citada é bastante longa, mas acho que merece ser citada
integralmente, por sua riqueza e pertinência ao tema em questão:

"Assim, as "hereditariedades", as "influências"- os acidentes de Cézanne- , são o


texto que, de sua parte, a natureza e a história lhe doaram para decifrar.
Proporcionaram apenas o sentido literal da obra. As criações do artista, como aliás
as decisões livres do homem, impõem a este dado um sentido figurado que antes
delas não existia. Se nos parece que a vida de Cézanne trazia em germe sua
obra, é porque conhecemos sua obra antes e vemos através delas as
3
Cf. Coelho Junior, N. (1991) O Inconsciente em Merleau-Ponty.
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circunstâncias da vida, carregando-as de um sentido que tomamos à obra. Os


dados de Cézanne que enumeramos e de que falamos como condições
prementes, se devessem figurar no tecido de projetos, só o poderiam se lhe
fossem propostos como o que tinha a viver, deixando indeterminada a maneira de
o viver. Tema de início obrigatório, eles são, recolocados na existência que os
envolve, apenas monograma e emblema de uma vida que se interpreta a si
mesma livremente.
Compreendamos bem, todavia, esta liberdade. Evitemos imaginar alguma força
abstrata que superpusesse seus efeitos aos "dados" da vida ou decompusesse
em partes o desenvolvimento. É certo que a vida não explica a obra, porém certo
é também que se comunicam. A verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida.
Desde o início, a vida de Cézanne só encontrava equilíbrio apoiando-se na obra
ainda futura, era seu projeto e a obra nela se anunciava por signos premonitórios
que erraríamos se os considerássemos causas, mas que fazem da obra e da vida
uma única aventura. Aqui não há mais causas ou efeitos, unem-se na
simultaneidade de um Cézanne eterno que é a fórmula ao mesmo tempo do que
quis ser e do que quis fazer. (...) é o mesmo que dizer que nossa vida é
inteiramente construída ou inteiramente dada. Se há uma verdadeira liberdade, só
pode existir no percurso da vida, pela superação da situação de partida e sem que
deixemos, contudo, de ser o mesmo- eis o problema. Duas coisas são certas a
respeito da liberdade: que nós nunca somos determinados e que não mudamos
nunca, que, retrospectivamente, poderemos sempre encontrar em nosso passado
o prenúncio do que nos tornamos. Cabe-nos entender as duas coisas ao mesmo
tempo e como a liberdade irrompe em nós sem romper nossos elos com o
mundo." (pp.34-37)
Em todas estas idéias vemos expressa tanto a recusa das explicações
psicologistas, que fazem a obra de um artista derivar de sua vida, como a recusa
de uma visão "mística" que faria a obra (e o talento) derivarem de uma força
transcendental. O central nestas idéias é a noção de simultaneidade que sempre
acompanha a filosofia de Merleau-Ponty, que é também uma filosofia da
ambigüidade e do paradoxo. Liberdade e determinismo mutuamente se
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constituem. Não resta dúvida que sua concepção de liberdade é bastante


particular e exige um cuidadoso detalhamento para que seja possível apreendê -la
em toda sua radicalidade.
"O que é então a liberdade? Nascer é ao mesmo tempo nascer do mundo e
nascer no mundo. O mundo está já constituído, mas também não está nunca
completamente constituído. Sob o primeiro aspecto, somos solicitados, sob o
segundo somos abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta análise ainda é
abstrata, pois existimos sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Portanto, nunca
há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou
consciência nua." ( Merleau-Ponty, 1945, p.517)
Somos o tempo inteiro, simultaneamente, determinados e livres. Constituídos pelo
que já existe e nos determina, e abertos a uma infinidade de possíveis, em que a
liberdade de constituição de nós mesmos e do mundo se apresenta a todo
instante. Mas esta situação paradoxal não seria apenas uma forma delicada de
afirmar que não somos plenamente livres? Mas será que alguém ainda possui a
crença de que é plenamente livre?
A noção de liberdade é sem dúvida problemática. Quando concebida como
liberdade absoluta pertence ao grupo de noções que precisamos considerar como
"ficcionais", ao lado das noções de verdade e felicidade. Quando concebida de
forma relativa parece perder o sentido: soa no mínimo estranho falar em meia-
liberdade ou quase liberdade.
É neste contexto que é preciso situar a reflexão de Merleau-Ponty. Seu
pensamento caracteriza-se pela tensão afirmativa e permanente entre os pólos
constituintes de um campo existencial, o que exclui a possibilidade de soluções
fáceis, em que pela mágica do desejo eliminamos o pólo indesejável.
Se pensamos o sofrimento como conseqüência da falta de liberdade é natural que
nosso desejo seja sempre o de uma liberdade absoluta. Mas qual seria a ética da
liberdade absoluta? Desejar tudo e poder tudo, a qualquer preço? As soluções
recorrentes para esta questão em nossa cultura se traduzem na máxima "a minha
liberdade termina quando começa a do outro". Estranha solução que a todos
empurra para um campo de batalhas em que parece inevitável que o próximo
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passo seja a criação de instâncias de julgamento e do comércio rentável do


cumprimento e do não cumprimento das leis. Assim, não é raro que apareçam, de
tempos em tempos, aqueles que sonham com a volta do mundo mítico (ou de
seus sucedâneos menos gloriosos), onde o destino comandado pelos deuses
desencumbia os homens do drama da liberdade.
Não existe liberdade fora de um campo existencial. A liberdade nos lembra a cada
instante que estamos no mundo, com obstáculos e passagens livres. Ao lado
disto, precisamos considerar o plano das determinações, que vão da genética
(nossa mais nova denominação para o destino) à história, tanto a que nos
antecede, como a de nossa própria vida. As determinações do passado, se não
são uma fatalidade, pelo menos têm um peso específico, "que não é uma soma de
acontecimentos ali adiante, bem longe de mim, mas atmosfera de meu presente. "
(idem, p.505) Liberdade e determinismo constituem sempre a tensão de meu
momento presente. Conflito sem solução e por isso mesmo abertura a uma
infinidade de possíveis. Desafio de enormes proporções e ainda maior para todos
nós que fazemos de nosso trabalho o confronto diário com as exigências das
forças pulsionais e as demandas da cultura.

Quando esta discussão é passada mais efetivamente para o âmbito da prática


clínica reencontramos a tensão entre liberdade e determinismo com toda sua
força. Trabalhamos efetivamente em psicanálise com uma concepção
mutuamente excludente, onde determinismo exclui liberdade, ou estes pólos
podem conviver em nossas teorias e práticas sem maiores problemas? A partir de
uma tradição cientificista da qual boa parte da psicanálise é tributária parece difícil
escapar da rígida oposição entre liberdade e determinismo. Nossa prática
cotidiana tende a confirmar a experiência do determinismo psíquico. Mas confirma,
também, que a experiência de liberdade não está ausente. É o caso, por exemplo,
das transformações reconhecíveis na clínica com relação às determinações
temporais: o presente pode resignificar o passado e fazer com que determinações
do passado sobre o presente se modifiquem e às vezes até desapareçam. Nessas
situações há a clara sensação da experiência de conquista de liberdade diante de
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um aprisionamento afetivo que acaba por ser desfeito a partir da relação


transferencial. Com isso, será que é possível afirmar que o trabalho clínico busca
possibilitar mais liberdade? Em caso positivo, liberdade do quê? Trata- se,
realmente, de tornar o passado menos determinante, libertar alguém de seus
ressentimentos, de seu aprisionamento em lembranças de sentimentos, situações
e experiências vividas que se repetem infinitamente? De fato, do que queremos
ficar livres? Para quê queremos ficar livres?

Em se tratando da psicanálise, é obrigatória a constatação de pelo menos dois


planos de determinação com relação aos quais, à princípio, não se possui
liberdade. Descrevo estes planos de forma sumária, para colocá-los em termos
claros didáticos:
a) determinações inconscientes de uma forma geral ( Exemplo: não sou senhor
nem em minha própria casa.)
b) determinações do passado- sou como sou em função das minhas relações
com meus pais ( especialmente com minha mãe), na minha tenra infância.
(Exemplo: também com esta mãe tão pouco afetiva, só poderia sair do jeito
que saiu.)

É claro que o determinismo (ou o causalismo) em Freud não é tão simples, nem
tão mecanicista.4 Basta lembrar a noção de sobredeterminação e o próprio espírito
que dirige o projeto de transformação implicado na situação analítica. Mas,
entendo, que de forma geral nós analistas acreditamos sim no determinismo
(psíquico), embora, ao mesmo tempo, também acreditemos na liberdade ( fruto do
próprio processo analítico). Neste contexto, vale a pena apresentar a visão de
Merleau-Ponty sobre a liberdade no trabalho terapêutico psicanalítico.

Merleau-Ponty (1988), em uma das poucas passagens em que apresenta


referências ao trabalho clínico, faz uma afirmação que merece alguns
comentários. Esta afirmação está no texto "Relações com o outro na criança" que
4
Cf. Stoppel de Guelar, A . J. (1997) “A psicanálise no debate da epistemologia contemporânea:
determinismo ou indeterminação?”
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reproduz um curso oferecido na Sorbonne no começo da década de 50, em que o


autor define o trabalho da análise proposto por Freud como sendo o de "fazer
aparecer no sujeito uma situação de liberdade que lhe torna possível a
coexistência com o outro." (p.331) Neste sentido, estar livre é estar livre a partir de
uma "modificação de nossa própria atitude em relação a nós mesmos, que nos
tornará capazes de relações com o outro." (idem) É claro que esta é a
apresentação por Merleau-Ponty das idéias de Freud e não necessariamente a
posição de Merleau-Ponty (se é que ele a teve) quanto à finalidade de uma
análise. De qualquer forma trata-se da sua interpretação das propostas de Freud.
A se destacar a idéia de que uma transformação no "interior" do próprio sujeito
viabilizará uma "situação de liberdade que lhe torna possível a coexistência com o
outro". Ou seja, para estar com o outro em uma desejada relação de coexistência,
é preciso fazer aparecer uma situação de liberdade, que depende de uma
modificação de nossa própria atitude com relação a nós mesmos. Seria uma
descrição individualista demais para um pensador da fenomenologia existencial,
que desde o início pensa o homem como um ser no mundo com os outros, onde
indivíduo e grupo, eu e outro, interno e externo já não se colocam como
polaridades externas uma a outra ? Não creio. Nesta definição de Merleau-Ponty,
a partir de Freud, o importante parece ser justamente estar livre para coexistir. Em
a Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1945) afirma que "o tratamento
psicanalítico não cura provocando uma tomada de consciência do passado, mas
em primeiro lugar ligando o paciente ao analista por novas relações de existência.
Não se trata de dar um assentimento científico à interpretação psicanalítica e de
descobrir um sentido nocional do passado, trata-se de revivê-lo como significando
isto ou aquilo, e o paciente só chega a isso vendo seu passado na perspectiva de
sua coexistência com o analista." (p.519) Mais uma vez o foco está na idéia de
coexistência como possibilitadora da emergência de sentido.
A concepção linear do tempo e a simples determinação do presente e do futuro
pelo passado se transformam em uma concepção onde a experiência vivida na
coexistência com outros passa a expressar a origem do sentido de nossas ações,
colocando em outros termos o problema do determinismo temporal. É claro, que a
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própria noção de Nachträglichkeit (o a posteriori) em Freud já modificava


radicalmente a concepção de um determinismo temporal linear e é essa noção,
seguramente, que inspira as formulações de Merleau-Ponty. Mas a ênfase na
relação analítica e nos efeitos promovidos por essa forma de “convivência” fazem
com que uma noção particular de liberdade e a uma noção específica de nossa
relação no mundo com os outros possa ser valorizada. "Estamos misturados ao
mundo e aos outros em uma confusão inextrincável. A idéia de situação exclui a
liberdade absoluta na origem de nossos envolvimentos." (Merleau-Ponty, 1945,
p.518) Nem liberdade absoluta, nem determinismo absoluto. É nesta tensão que
para Merleau-Ponty se desenvolve nossa existência e, eu entendo, que é nessa
tensão também que se desenvolve o trabalho analítico.

Vem de uma colega psicanalista da Argentina, Silvia Bleichmar (1998), a


historinha com a qual termino este texto: "...sessão de análise de uma menina de
sete anos, que insistentemente me pedia que lhe dissesse o que desenhar. Entre
minha negativa em responder e sua queixa, surgiu em minha mente a reflexão
que, em tom mais confidencial, expressei nos seguintes termos: ‘Você já se deu
conta de que este é o único lugar no mundo no qual nunca, nunca, ninguém te dirá
o que fazer? No qual podes escolher, decidir livremente?' e já excitada, eu
mesma, com esta ocasião que se abriu para compartilhar uma reflexão que supus
de alcance filosófico, acrescentei: 'O que te parece, nesta possibilidade de
escolher está a liberdade..., você se dá conta?' E ela, resumindo com estilo a
questão que é tão complicada para nós, responde me pegando desprevenida:
'Sim ... que porcaria...! Eu quero a liberdade para não ir à escola, mas não para
não saber o que desenhar...!'" (, p.11)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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de psicoanalisis, sociedad y cultura, ano VIII, # XXIII, Buenos Aires.
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____________________(1992) e CARMO, P. S. Merleau-Ponty : Filosofia como


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FIGUEIREDO , L.C. e COELHO JUNIOR, N. (2000) Ética e Técnica em


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(1960a) Signes, Paris: Gallimard

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(1968) Résumés de Cours, Paris: Gallimard.

___________________ (1988) Merleau-Ponty à la Sorbonne 1949-1952, Paris:


Cynara.

MONZANI, L. R. (1991) Discurso Filosófico e Discurso Psicanalítico: balanço e


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Brasiliense.
13

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Janeiro: Imago Editora.

STOPPEL DE GUELLER, A . J. (1997) “A psicanálise no debate da epistemologia


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da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, # 4, maio 1997, pp.27-36, São Paulo:
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