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19/01/2023 20:31 “Nossos corpos por nós mesmas”: um projeto de tradução feminista

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FEMINISMOS TRANSNACIONAIS

“Nossos corpos por nós


mesmas”: um projeto de
tradução feminista
Feminismos transnacionais | Brasil
por Érica Lima, Janine Pimentel e Giselle Botelho - arte de Gisele Braga
16 de julho de 2020

O que é isso no meu corpo? Tenho 35 anos, meu cabelo está


caindo e minha menstruação começou a falhar. Será que já
estou na menopausa? Não consigo engravidar: será que
preciso de algum tratamento? Por que quando me masturbo
tenho orgasmo, mas nunca quando faço sexo com alguém?
Por que mulheres brancas com qualificação igual à minha
ocupam lugares que eu poderia ocupar, enquanto eu estou
na equipe de serviços gerais? Tá bom, as mulheres têm
caminhado e conquistado direitos, mas e eu, que sou queer,
lésbica, trans, negra, deficiente, onde posso achar
informações sobre meu corpo, saúde e sexualidade?

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Essas e muitas outras questões nos afligem todos os dias. De algumas


delas temos até medo de falar em voz alta. Por isso, ao nos depararmos
com um livro que discute a saúde e sexualidade da mulher e, mais ainda,
dá visibilidade àquelas de nós que são marginalizadas e estigmatizadas,
como as negras, pobres, deficientes, gordas, lésbicas, trans, mais velhas,
dentre outras, ficamos maravilhosamente surpresas com a qualidade e
relevância do Our Bodies, Ourselves (popularmente conhecido como
OBOS) e com a forma como ele foi feito: por mulheres e para mulheres. 

O OBOS surgiu como resultado do trabalho de um coletivo feminista


conhecido como The Boston Women’s Health Book Collective. Publicado
pela primeira vez na década de 1970 nos Estados Unidos, tornou-se um
best seller traduzido para mais de trinta países e discute assuntos como
aborto, gravidez, imagem corporal, menopausa, parto, racismo,
contracepção, reprodução, sexo seguro, violência, questões LGBTQIA+,
além de muitos outros temas. A combinação de informações práticas – a
partir de relatos honestos de mulheres reais e de posicionamentos
científicos e políticos claros, que visam ao conhecimento necessário
para o  empoderamento feminino e para a visibilidade de todas nós – faz
com que o livro continue famoso e seja tão inspirador, um verdadeiro
legado de e para os movimentos feministas.

Além do livro, cuja última edição inclui mais de 900 páginas, o OBOS
também é uma organização não-governamental que tem por objetivo
auxiliar mulheres para que nós possamos exercer o direito de fazer as
nossas próprias escolhas a respeito de nossos corpos e vidas. Por vezes,
um movimento que começa apenas com uma pessoa, ou, nesse caso, um
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grupo de mulheres em um workshop em Boston, em 1969,


compartilhando suas frustrações com algumas médicas, por saberem tão
pouco sobre seu corpo, torna-se um catalisador. 

A partir desse evento, criou-se o Doctor’s Group (antecessor do coletivo


The Boston Women’s Health Book Collective) e conteúdos relevantes
sobre saúde, sexualidade e aborto (ainda ilegal naquela época — e ilegal
até hoje no Brasil, salvo raras exceções) começaram a ser produzidos e
distribuídos de forma acessível, a baixo custo. A parceria com a New
England Free Press levou à criação do livro Women and Their Bodies,
que em 1971 teve seu título alterado para Our Bodies, Ourselves, a fim de
enfatizar o poder que as mulheres exercem sobre seus corpos. Desde
1974, o livro tem passado por sucessivas traduções e adaptações e muitas
outras publicações foram feitas, inspiradas nele. 

A globalização e o acesso à internet trouxeram, então, maior facilidade


de contato com outras mulheres e grupos ativistas, criando uma rede de
comunidades que nos ajudam a dar visibilidade às nossas vozes e
histórias. O livro que chegou a nós através dessa conexão internacional
levou-nos à constatação da não existência de um material informativo,
confiável, inclusivo, com linguagem acessível e livre de preconceitos no
Brasil, país ainda marginalizado e estigmatizado, onde a educação sofre
constantes boicotes e questões sobre saúde e sexualidade ainda são
tabus não só nos lares, mas nas próprias instituições de ensino. Assim,
decidimos nos unir a esse conjunto de mulheres com o objetivo de não
apenas traduzir o livro para o português, mas também de apresentar a
nossa realidade, como o funcionamento do nosso sistema de saúde, a
forma como a mídia nos afeta, as políticas ou a ausência de agendas
políticas inclusivas etc.

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Arte de Gisele Braga

Tradução e Feminismo
A relação entre tradução e feminismo não é, de todo, nova. Ela está
presente em analogias que refletem a forma como nossa sociedade
machista se estrutura tradicionalmente. É o caso de verdadeiros bordões
como “o original é homem e a tradução é mulher” (e, por isso,
subalterna); traduções são “belles infidèles” (só são bonitas quando
infiéis), que perduram mesmo com os movimentos de valorização da
mulher que aparecem em obras e traduções feministas ao longo do
tempo. Segundo Marie Dépêche, em 1832, uma das tradutoras mais
lembradas quando se fala em tradução feminista, Nísia Floresta, ao
traduzir A vindication of the rights of woman: with strictures on political
and moral subjects, de Mary Godwin Wollstonecraft, por “Direitos das

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mulheres e injustiça dos homens”, incluiu trechos de De l´égalité des


deux sexes e Woman not inferior to man, textos pelos direitos das
mulheres que causaram grandes impactos nas sociedades da época.

Em 1996, Sherry Simon, estudiosa da tradução canadense, escreveu que


um dos resultados da globalização da cultura é que todas nós vivemos
em mundos traduzidos. Os movimentos feministas e ativistas não
ficaram de fora desse fenômeno e se beneficiaram, direta ou
indiretamente, de diversos projetos de tradução liderados por
tradutoras feministas ativistas, como é o caso das quebequenses Barbara
Godard, Carol Maier e Susanne de Lotbinière-Harwood, que valorizaram
a escrita de autoras feministas usando estratégias de tradução bastante
ousadas e subversivas.

Paralelamente, campos disciplinares como os Estudos de Tradução, a


Linguística Aplicada e, mais recentemente, a Linguística Queer têm
conseguido mostrar que linguagem e tradução exercem uma influência
determinante na construção da nossa realidade e identidade, uma vez
que, através de nossas práticas discursivas, podemos aderir ou não às
relações de poder intra e interculturais que regem nossas sociedades e,
assim, contribuir para a manutenção ou contestação do status quo
(desigualdades sociais, racismo, preconceitos, violações de direitos,
etc.). 

Como a atividade de tradução envolve pelo menos duas culturas


distintas, tradutoras precisam assumir aquilo que teóricas e teóricos da
tradução têm caracterizado como “responsabilidade dupla”, ou seja,
somos responsáveis não só pelo trabalho da autora do texto em língua
estrangeira, mas também pelos anseios e expectativas das novas
interlocutoras e interlocutores da cultura para a qual traduzem. No caso
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específico do nosso projeto de tradução do livro Our Bodies, Ourselves,


isso significa que, de um lado, traduzir para o português é passar a fazer
parte de um coletivo mundial que já traduziu o livro, disponibilizando
informações essenciais de maneira significativa para as mulheres e, de
outro, adaptar o conteúdo é fazer com que o livro responda às
necessidades específicas das mulheres brasileiras. 

Essa até poderia parecer uma tarefa relativamente fácil, se não


tivéssemos consciência de que a atividade de tradução é, como sugerido
acima, um ato ideológico de mediação intercultural envolvendo um
amplo leque de escolhas e decisões. Uma delas exige um posicionamento
teórico e pragmático em relação a questões de identidade de gênero,
uma vez que temos aqui a oportunidade de traduzir de um idioma sem
marcação morfológica de gênero (o inglês) para um idioma com uma
marcação geralmente binária (o português). Nesse sentido, é nossa
intenção usar estratégias que contestem e contrariem a binaridade da
língua portuguesa e adotar uma linguagem que seja a mais inclusiva
possível, reconhecendo que isso, às vezes, poderá criar um certo
estranhamento na leitura. 

A tradução está sendo feita por alunas e alunos do Instituto de Estudos


da Linguagem da Unicamp e da Faculdade de Letras da UFRJ, que fazem
parte de uma ação coletiva e voluntária de pesquisa e extensão, cujo
objetivo é traduzir e adaptar o livro para a realidade brasileira com a
ajuda de equipes médicas especializadas, para então ser publicado, em
três volumes, pelo Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, de São Paulo,
responsável pelo convênio com a OBOS. 

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O poder do masculino na linguagem e os desafios da tradução


feminista
Já nas primeiras discussões foram traçadas estratégias para dar
visibilidade ao feminino, de forma que se percebesse uma intervenção
na tradução, ou sejam, foram estabelecidos critérios pontuais a fim de
mostrar que temos consciência do poder do masculino na linguagem
(reflexo do falocentrismo estrutural de nossa sociedade) e nos
posicionamos contra ele. Uma decisão foi a de não empregar “x” ou “@”
(como médic@ ou médicx) por questões de acessibilidade e exclusão,
nem usar uma linguagem sexista, assumindo simplesmente a
concordância no masculino quando o gênero não é marcado no inglês.
Assim, traduzimos doctor por “classe” ou “equipe médica”, ou, em casos
em que a relação era explicitamente estabelecida com uma pessoa,
optamos por “médica ou médico” (com o feminino vindo primeiro). 

Em caso de palavras em que a especificação do gênero não era relevante


tentamos não usar artigo, evitando a concordância no masculino, muitas
vezes assumida como natural e “neutra”, o que pode ser ilustrado com o
uso de  “bebês” e não “os bebês”; “pacientes” e não “os pacientes”; “falar
sobre contracepção com a pessoa com quem você está” (e não “com sua
parceira ou seu parceiro”). Essas posições mostram a compreensão de
que a linguagem é, como mencionado anteriormente, um espaço em que
aparecem as relações de poder, e, como afirma a estudiosa de tradução
Mona Baker, quando alimentamos uma “narrativa de neutralidade” cabe
perguntar “contra quem” estamos sendo neutros.

Além de trazer o contexto de mulheres estadunidenses, a versão do livro


que está sendo traduzida, inclui relatos das adaptações feitas para
outros países ao longo dos anos, proporcionando tanto o conhecimento
de identidades culturais distintas quanto mostrando que vários
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problemas que nos assolam estão entrelaçados e são mundiais. Esses


problemas são muitas vezes decorrentes da sociedade capitalista
altamente industrializada em que nos inserimos, tais como fatores
ambientais que afetam nossa saúde, controvérsias médicas em relação a
tratamentos ou ainda demandas sociais aos órgãos governamentais.

Por exemplo, no primeiro capítulo do livro, que trata de anatomia, há um


relato de que em japonês, até a década de 1990, usavam-se termos que
traziam o sentido de “vergonha” ou “obscuridade” para nomear os pelos
pubianos e que, com a tradução, foram propostos termos mais
assertivos, como “seimo”, significando “pelo sexual” ou “pelo púbico”.
Essa pequena mudança fortaleceu a ideia de que falar de nosso corpo
não deve ser motivo de vergonha. Outro relato veio das traduções para
hebraico e árabe, que optaram por usar palavras mais respeitosas e que
celebram o corpo para fazer referência a fases pelas quais as mulheres
passam. Tradicionalmente, as palavras relacionadas à menopausa
traziam a ideia de estar “desgastada” ou “usada”, em hebraico; e de “anos
de desespero”, em árabe. Nas traduções, optou-se por um termo com os
sentidos, respectivamente, de “meia-idade” e “anos de segurança”. 

O nosso projeto de tradução, iniciado na segunda metade de 2019,


assume uma atitude feminista condizente com a própria postura da Ong
OBOS durante seus 50 anos de ativismo: uma postura multidirecional, de
respeito à diversidade, de luta pelos direitos reprodutivos e pela
igualdade de salários, ou seja, uma postura engajada social, cultural e
politicamente. Esperamos que a publicação do livro em português, com
informações médicas atualizadas, nos auxilie no conhecimento de nós
mesmas, de nossa saúde, de nossas opções de tratamentos, e nos
encoraje a lutarmos contra agressões, assédios, salários mais baixos, e a

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favor de direitos reprodutivos e de direitos lésbicos, rumo a uma


sociedade com equidade de gênero. Esperamos que nossa tradução
consiga mostrar que já passou da hora de assumirmos “Nossos corpos,
por nós mesmas”.   

Referências:

BAKER, Mona. Translation and Activism: Emerging Patterns of Narrative


Community. The Massachusetts Review, vol. 47, no. 3, p. 462–484, 2006. 

BOSTON WOMEN’S HEALTH BOOK COLLECTIVE. Our Bodies,


Ourselves. New York: Simon & Schuster, 2011.

DÉPÊCHE, Marie-France. A tradução feminista: teorias e práticas


subversivas de Nísia Floresta e a escola de tradução canadense. Textos
de História, v.8, n.1/2, p.157-188, 2000. 

OBOS. Our Story. 2020. Disponível em:


https://www.ourbodiesourselves.org/our-story/

SIMON, Sherry. Gender in Translation: Cultural Identity and the Politics


of Transmission. New York: Routledge, 1996.

Érica Lima é docente do Instituto de Estudos da Linguagem na


Unicamp, mestre em Linguística Aplicada também pela Unicamp e
doutora em Letras pela Unesp. Atua na área de interpretação de textos e
tradução, e faz pesquisa sobre a interface entre estudos de tradução e

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tendências do pensamento contemporâneo, abrangendo temas como:


questões de identidade, gênero, ideologia, subjetividade e tradução
voluntária. 

Janine Pimentel é PhD em Estudos da Tradução pela Universidade de


Montreal e Professora Adjunta da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Leciona disciplinas de tradução, teorias da
tradução e linguística de corpus na graduação e pós-graduação. Os seus
interesses de pesquisa mais recentes incluem: tradução feminista,
tradução e ativismo, tecnologias da tradução e tradução especializada.

Giselle Botelho é professora e pesquisadora. Possui bacharelado em


Letras (Português-Inglês) pela UFRJ e seus interesses de pesquisa são
processos tradutórios e ensino de línguas. Atualmente, suas atividades
concentram-se na tradução de textos técnicos e no ensino nas
instituições Maple Bear Canadian School e BRASAS English Course.

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