Você está na página 1de 1

AGENDA EDITORIAL N O S S A PA L AV R A S  PODCAST PUBLIQUE  SOBRE      

S E X UA L I DA DE

A COR PÚRPURA: O AMOR SEGUNDO


ALICE WALKER
A L I N E DJO K I C N O C O MME NTS 2 4 DE S E TE MBRO DE 2 015

No romance “A Cor Púrpura“, de Alice Walker, a autora não deixa dúvidas de que o
relacionamento entre Celie e Shug, as duas principais personagens do livro, seja amoroso. Essa
informação se perde, porém, na adaptação do livro para o cinema e que foi dirigido por Steven
Spielberg.

Para alguns, o fato de o diretor ter sido um homem e branco foi decisivo para o apagamento do
caráter lésbico-bissexual do lme e que determinaria a categoria a que pertence a obra, para
outros, muito provavelmente a censura de Hollywood tenha sido o fator decisivo.

De qualquer modo, a maneira mais comum de se inserir personagens LGBT em Hollywood é


produzindo um lme que conta a história de discriminações e di culdades, assim como a
negação de direitos dessas pessoas. Por um lado isso é importante, mas por outro as pessoas
LGBT continuam a ser retratadas como “a exceção“ na sociedade heterocisnormativa. Para ser
mais explícita, os lmes reforçam a ideia de que ser lésbica, gay, bissexual ou
transgênero/travesti exclui essas pessoas de uma sociedade e não o contrário. Isso é o que
acontece, quando essas pessoas somente são retratadas dentro do contexto de exclusão de
que são vítimas. Mesmo que não intencionalmente a denúncia perde com o tempo sua força e o
que ca na memória são as “consequências“ de se pertencer ao grupo marginalizado.

Assim sendo, os lmes sobre pessoas LGBT de Hollywood parecem se encontrar num círculo
vicioso de coming out e divergências que se seguem. Os lmes “Carol“ e “Freeheld“, que
estreiam esse ano e que contam a história de mulheres lésbicas, seguem essa linha.

Todas essas informações ajudam talvez a entender melhor, porque Alice Walker nunca a rmou
ser “A Cor Púrpura“ um romance lésbico ou bissexual. Fazê-lo faria com que o romance
perdesse a descrição “romance histórico“ que a própria autora deu a ele. Já que para a nossa
sociedade, a história de duas mulheres negras que se amam não faz parte da “História“, ela é
uma história à parte da o cial.

No livro ‘In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose, de 1983, Alice Walker descreve
todo o processo de escrita do livro “A Cor Púrpura“ e fala do tom admoestador com o qual críticos
comentavam a possibilidade de a autora conseguir escrever um “romance histórico“, como ela já
tinha declarado. Um crítico negro temia, e não sem razão, que o romance não tratasse de
batalhas sangrentas, de revoltas, de homens marchando e falando a um público sedento de um
novo messias. “A Cor Púrpura“ é História sendo contada por aquela(s) que não deveria(m)
contá-la, é a História de seres invisíveis tanto na comunidade negra quanto na comunidade
LGBT.

Para enfatizar a invisibilidade de toda a existência das personagens principais e do amor que as
une, Alice Walker escolheu a cor púrpura. Mas, se a autora queria falar do amor entre mulheres
porque ela não escolheu a cor violeta, símbolo desse amor?

Não resta dúvidas que a autora sabia e bem, qual cor simbolizava o amor entre mulheres,
contudo, ela também sabia que, por muito tempo, para não dizer até hoje, quando se fala de
“mulheres“ somente as mulheres brancas são consideradas. Daí a necessidade de enfatizar que
o amor de Celie e Shug é púrpura e não violeta.

Na física, dentro do espectro visível ou espectro óptico, as cores que a luz branca torna visível
são: o vermelho, o laranja, o amarelo, o verde, o azul, o anil e o violeta. A cor púrpura não se
encontra nesse espectro, pois se encontra entre o vermelho e o violeta, para visibilizá-la é
preciso usar um diagrama que une os dois extremos do espectro, que una o violeta ao vermelho.

Num mundo regido pela heteronormatividade e pelo racismo, o relacionamento amoroso entra
duas mulheres negras é como a cor púrpura, e ca fora do diagrama “usual“ com o qual as
diversas formas de amor, podem e “devem“ ser representadas.

Nas produções cinematográ cas todas as formas de amor heteronormativo são exploradas, em
todas as suas complexidades, di culdades e alegrias. E apesar do amor entre mulheres brancas
também só ser representado esparsamente, e em sua maioria com foco nas suas adversidades,
sua minúscula visibilidade é, ainda assim, signi cante se comparado com a quase inexistência
de grandes produções que abordem o amor entre mulheres negras.

Nesse sentido o livro e o lme homônimo “A Cor Púrpura“ é multiplamente especial, pois aborda
o amor sexual entre duas mulheres negras, assim como o amor não-sexual entre elas e que elas
compartilham com as outras personagens/mulheres negras.

O amor púrpura de Alice Walker é o amor que une duas mulheres negras que se amam, porque
sentem-se adultas para amarem a si mesmas, pois não sentem medo das mulheres que são e
não têm medo das mulheres que reconhecem uma na outra.

Quando Celie viu Shug pela primeira vez, Shug foi extremamente franca e comentou como ela
era feia. A a rmação não fez com que Celie se afastasse, ao contrário a maneira direta como
Shug se expressava naquela e em outras ocasiões, a deixou intrigada, curiosa. Por sua vez,
quando Celie contou a Shug as suas dores mais profundas e seus traumas, Shug não mudou a
sua maneira de vê-la, a relação das duas permaneceu inabalada. Sobre essa conduta Alice
Walker a rmou ao explicar o termo womanist (mulherista):

“Womanista: uma feminista negra ou de cor.

1. De womanish (com atitude de mulher): em oposição a girlish (que age como uma menina,
infantil), ou seja frívola, sem seriedade, irresponsável. Termo usado na comunidade negra por
mães que falam para as crianças “você está agindo como uma mulher“. Palavra comumente
usado para referir-se a uma atitude ultrajante, audaciosa, corajosa ou destemida. Aquela que
quer saber mais e mais profundamente e que decide o que é bom para si mesma (…)

2. Mas também: Uma mulher que ama outras mulheres, sexualmente e/ou não sexualmente.
Aprecia e prefere a cultura da mulher, a exibilidade emocional da mulher (valoriza as lágrimas
como um contra–peso natural do riso) e a força da mulher. Às vezes ama homens
individualmente, sexualmente e/ou não sexualmente. (…)

3. (…) ama a si mesma: sem limitações.

4. O  womanismo está para o feminismo como o púrpura está para o lavanda.”

Sob a ótica da teoria womanista de Alice Walker, o amor púrpura entre as mulheres negras é um
amor que é capaz de preencher todos os âmbitos e que não precisa, mas pode perfeitamente
incluir o envolvimento sexual de ambas. E a inclusão é para Walker tão natural, que não carece
ser explicitada, não precisa de introdução, nem de esclarecimentos.

Seria importante frisar que Alice Walker não quer, nem tenta velar a relação amorosa entre Celie
e Shug, ela apenas a trata e retrata como algo natural, como algo que sempre esteve lá e que
esteve à espera das duas.

Sim, o amor entre Celie e Shug é o amor que não é visível, porque não pode ser usado pelo
prisma que a heteronormatividade branca costuma usar para se rea rmar como a única forma
de amar aceitável.

Ao reivindicar a cor púrpura e assim o não-lugar do amor entre mulheres negras, Alice Walker,
afronta a sociedade racista e heterocentrista da melhor maneira, ao negar-se a dialogar e a
aceitar qualquer nuance dentro do espectro de cores que essa sociedade costuma usar para
retratar-se.

A cor púrpura pode não estar no espectro visível, mas ela existe e  está nas pétalas da malva,
uma or silvestre, que tem, assim como o amor entre mulheres negras, um efeito curativo.

Textos de apoio:

Walker, Alice. A cor púrpura, 1982.

Walker, Alice. In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose, 1983.

Imagem destacada: Musical The Color Purple

    

A COR PÚRPURA ALICE WALKER BISSEXUALIDADE VISIBILIDADE

    

WR I TTE N BY

ALINE DJOKIC

Meu nome é Aline Djokic, sou escritora, mestra em Língua e Literatura Portuguesa
e bacharelanda em Biblioteconomia.

 

ESCREVA UM COMENTÁRIO

PO S T A N TER I O R PRÓX I MO PO S T

O NÃO-LUGAR, O APAGAMENTO, A BIFOBIA E O DÓRIS É BI


RACISMO: PRECISAMOS FALAR SOBRE A MULHER
NEGRA BISSEXUAL

    
Com apoio de Instituto Ibirapitanga e AGENDA EDITORIAL N O S S A PA L AV R A S PODCAST
Baobá - Fundo para Equidade Racial.
© Obra publicada sob Licença Creative Commons PUBLIQUE SOBRE

Atribuição - Não Comercial - Sem Derivações 4.0 Internacional.

Você também pode gostar