Você está na página 1de 6

A afetividade da mulher negra

Parte – 1
27/12/2014

A afetividade da mulher negra

TEXTO: Maitê Freitas | FOTOS: Sangoma | Adaptação web: David Pereira

Matéria aborda o cotidiano afetivo da mulher negra.


Vira e mexe dizem por aí que “tem muita mulher solteira”. O que não se
diz é que a maior parte das mulheres solteiras no Brasil são negras. De acordo
com o Censo 2010, 52,89% das mulheres negras estão solteiras, ante 24,88%
negras casadas e 2,60% divorciadas. Os números assustam, mas viver essa
estatística no cotidiano e saber que isso é uma herança histórica é muito pior.
Autora do livro “Virou Regra?” (2010/Scortecci), a pesquisadora, ex-
vereadora e presidente do SEDIN – Sindicato de Educação Infantil, Claudete
Alves, explica: “A mulher negra enfrenta a solidão independente do extrato
social. Não se trata de uma exceção, é a regra, um sintoma histórico que indica
um comportamento real, as mulheres negras não têm (em sua grande maioria)
a experiência do amor”.
Na mesma linha, a pesquisadora Ana Claudia Lemos Pacheco, autora
do recém-lançado “Mulher Negra: Afetividade e Solidão” (2013/EDUFBA),
reitera: “A solidão tem origem na estrutura familiar, o que as mulheres negras
solteiras têm em comum? A origem social e a família. Já nascem e crescem
com o racismo e o sexismo como sistemas cruzados de opressão. Muitas
nunca vivenciaram relacionamento fixos, duradouros e saudáveis. A mulher
negra, além de sozinha, é a maior vítima da violência doméstica”.
Pautados nesse debate, dois coletivos negros de teatro de São Paulo, a
Cia Capulana de Arte Negra e Os Crespos, montaram os espetáculos
“Sangoma” e “Pari Cavalos e Aprendi a Voar Sem Asas”, respectivamente.
Para o ator Sidney Santiago (Os Crespos), tratar do tema nos palcos faz do
“teatro um espaço de reunião, debate e cura. A arte tem como dever do
presente inserir temáticas caras à nossa sociabilidade negra e pensar que
nossa saúde emocional é tão importante quando todas as outras inserções”.

As dramaturgias assinadas pela pesquisadora Cidinha Silva têm em


comum o uso de relatos reais e a própria experiência das atrizes, que em cena
dão voz às solitárias mulheres negras. “Sangoma e Pari Cavalos têm em
comum o abandono e a solidão pelos quais passam as mulheres negras e a
busca do amor como forma de curar, principalmente de curar a elas mesmas à
medida em que aprendem a se amar mais”, explica Cidinha.
Os textos, feitos a partir das próprias histórias das atrizes, mexiam com
o público. “Muitos homens se incomodaram com o espetáculo, outros
reconheceram a história da mãe, da avó… Não tenho como não falar das
nossas experiências. A solidão, o silêncio, a dificuldade de reconhecer quando
o amor chega, já que nos foi tirada a experiência do amor e de se gostar”,
relata a atriz e bailarina Débora Marçal (Cia Capulanas).
O sonho do príncipe encantado, do casamento de véu e grinalda incutido
no inconsciente feminino ao longo dos séculos, não faz parte da realidade da
mulher negra, a educadora e atriz Adriana Paixão (Cia Capulanas) explica:
“Seguimos modelos postos, grande parte das mulheres negras não vivem e
nunca viveram esse modelo ocidental de relacionamento. Discute-se outras
liberdades, outros temas, sequer olhamos para mulher negra”.
De acordo com a atriz Flavia Rosa (Cia Capulanas), “o racismo atinge
todos os campos, muitas vezes a primeira referência de amor já vem com
racismo, dentro de casa na relação com a mãe, com o pai (quando este está
presente) e irmãos. A partir do momento em que esse desprezo é naturalizado,
os demais segmentos e espaços de relacionamento também naturalizam esse
descuido. Você não sabe o que é ser bem tratada, isso se estende às relações
afetivas e institucionais”.
Os grupos, que tiveram como ponto de partida e inspiração para
pesquisa o artigo da ativista e feminista norte-americana bell hooks (seu nome
é grafado em letras minúsculas), cujo o artigo “Vivendo de Amor” coloca o dedo
na ferida e leva o público a refletir sobre o papel afetivo e a construção de
identidade da mulher negra. Segundo a dramaturga, “a autoestima de hoje é o
velho amor próprio de nossas avós e bisavós. O enfrentamento ao racismo
cotidiano que afeta as mulheres negras e suas famílias, pelas quais elas são
responsáveis, rouba-lhes o tempo e o espaço do cuidado consigo mesmas,
enfraquecendo o amor próprio”.

Disponível em:
https://www.geledes.org.br/afetividade-da-mulher-negra-parte-1/

A afetividade da mulher negra –


Parte 2
27/12/2014

TEXTO: Maitê Freitas | FOTOS: Sangoma | Adaptação web: David Pereira

Confira a segunda parte da matéria especial sobre a afetividade da


mulher negra
Lucélia Sérgio, atriz e diretora do espetáculo “Pari Cavalos…”, acredita
que a solidão não afeta apenas as mulheres negras e pobres, mas é uma
constante entre mulheres cuja formação intelectual e cultural é acima da média.
Além disso, temos muitos estereótipos sexuais, temos mulheres que precisam
ser fortes para não sucumbirem e isso também é um problema no amor. Não
somos o ideal de beleza, não estamos em bons empregos para ajudar o
companheiro a crescer, somos duras demais, ou cultas de menos, entre muitas
outras coisas. Não estamos nem nas novelas! Uma negra bonita é vista como
exceção para a maioria dos brasileiros, culta e inteligente, mãe de família e
companheira, então… Damos barraco, somos gostosas e cozinhamos bem, é
pra isso que servimos. Nossa luta é conquistar alteridade, dignidade e
integridade. Isso só é possível através do amor. Começa por nossas escolhas
e nossos limites, mas passa por uma consciência coletiva de brancos, pretos,
amarelos, azuis, vermelhos, todos. É isso que queremos ao falar de nossos
afetos e desafetos”.
Trazendo à tona questionamentos, críticas e reflexões sobre a
afetividade da mulher negra, a Cia Capulanas tratou do tema avaliando o
histórico da saúde e das doenças que atingem a mulher afrodescendente.
“Dentro dessa construção histórica, não temos o direito de ser frágil. Mesmo
sendo a base da pirâmide, a mulher negra cuida de tudo. Vivemos o arquétipo
da guerreira, da mulher forte, por isso implodimos e nascem os calos, tumores
e miomas. Somos essa grande teta que amamenta tudo e todos, mas quem
cuida da gente? Isso não significa que queremos uma relação de submissão, o
que queremos é uma relação de troca. Se ninguém olha para a gente, vamos a
gente se olhar. Estamos sempre com o outro, olhando para o outro, que horas
nós olhamos para nós mesmas?”, completa a atriz, poetisa e arte-educadora
Priscila Preta (Cia Capulanas).“A nossa afetividade vai sendo sepultada
diariamente por conta das agressões cotidianas. Sempre precisamos cerrar os
punhos, engolir o choro, secar as lágrimas e silenciar, sempre saímos
perdendo nesta matemática da barbárie. Estamos enquadrados em recortes
que falam dos nossos atributos físicos, da nossa temperatura, da nossa
musicalidade, ou seja, sempre sendo objeto do outro”, reitera o ator Sidney
Santiago.
Para uns, falar de amor tornou-se piegas; para outros, pensar e falar
sobre afetividade e experiência do amor dentro do segmento afrofeminino
ganha conotação “rancorosa” e vitimizada. Contudo, são anos de silêncio,
submissão e incompreensão das relações. “Quanto mais quebramos o silêncio,
mais vamos nos empoderando e mudando o que está posto historicamente”,
afirma Flavia Rosa.
À medida que essa mulher se empodera e encontra histórias iguais à
dela, a solidão perde a conotação de dor e passa a ser sinônimo de liberdade,
ou, no caso dos espetáculos, um ato político e curativo. “O corpo ressignifica
esse processo com a autoestima. A corporalidade pode ser revista e traz uma
reconstrução da autoimagem. São mulheres que têm algo em comum, mas não
são todas iguais”, explica Ana Claudia Lemos Pacheco. “A saída é um
empoderamento da mulher negra, lembremos que somos nós que educamos
esses homens e que alguns estereótipos precisam deixar de ser reafirmados
por nós, mulheres negras. É a nossa verdade, quando a mulher negra fala,
incomoda e gera o inconformismo”, reitera Claudete Alves.
O que esses dois grupos debatem extrapola a dimensão sexual e erótica
do estereótipo da mulher afrodescendente. “Não estamos falando de sexo, mas
de saúde emocional. Uma família saudável e pessoas equilibradas é o mínimo
que podemos desejar para nossa sociedade. Uma das personagens do
espetáculo diria ‘imaginem só o que pode fazer uma mulher fortalecida, quando
resolve reagir contra toda a opressão?’. O amor é político, nossas escolhas
também. O importante é aprendermos a olhar para além desse espelho
distorcido que nos afasta de nós mesmos. Não falamos de nos forçarmos a nos
relacionar somente entre negros, estamos falando do porquê as mulheres
negras sentem que não são amadas e muitas delas não têm companheiros,
além dos filhos. Citando bell hooks, ‘a nossa cura está no ato e na arte de
amar’”, afirma Lucélia Sérgio.
Disponivel em:
https://www.geledes.org.br/afetividade-da-mulher-negra-parte-2/
#axzz3ND1Ogqg2

Você também pode gostar