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PERSPECTIVAS DO DIREITO À SAÚDE

PEMBROKE COLLINS
CONSELHO EDITORIAL

PRESIDÊNCIA Felipe Dutra Asensi

CONSELHEIROS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, São Paulo)


Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Rio de Janeiro)
Adriano Rosa (USU, Rio de Janeiro)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Rio de Janeiro)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, São Paulo)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colômbia)
Carlos Mourão (PGM, São Paulo)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, São Paulo)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Juiz de Fora)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Porto Seguro)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Niterói)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Juiz de Fora)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, Estados Unidos)
Elaine Teixeira Rabello (UERJ, Rio de Janeiro)
Glaucia Ribeiro (UEA, Manaus)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Campo Grande)
Jonathan Regis (UNIVALI, Itajaí)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura. Espanha)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, São Paulo)
Luciano Nascimento (UEPB, João Pessoa)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Três Lagoas)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Niterói)
Marcia Cavalcanti (USU, Rio de Janeiro)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Porto Alegre)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Rio de Janeiro)
Rogério Borba (UVA, Rio de Janeiro)
Rosangela Tremel (UNISUL, Florianópolis)
Roseni Pinheiro (UERJ, Rio de Janeiro)
Sergio de Souza Salles (UCP, Petrópolis)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brasil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Rio de Janeiro)
ORGANIZADORES
ARTHUR BEZERRA ORGANIZADORES:
DE SOUZA JUNIOR, DANIEL GIOTTI DE
FELIPE ASENSI, GLAUCIA
PAULA, EDUARDO KLAUSNER, MARIA ROGERIO
DE ARAUJOBORBA
RIBEIRO, DA SILVA
KLEVER PAULO LEAL FILPO

DIREITOS HUMANOS
JURIDICIDADE E EFETIVIDADE
PERSPECTIVAS DO DIREITO À
SAÚDE

G RU PO M U LT I FO CO
Rio de Janeiro, 2019

PEMBROKE COLLINS
Rio de Janeiro, 2021
Copyright © 2021 Felipe Asensi, Glaucia Maria de Araujo Ribeiro, Klever Paulo Leal Filpo (org.)

DIREÇÃO EDITORIAL Felipe Asensi


EDIÇÃO E EDITORAÇÃO Felipe Asensi
REVISÃO Coordenação Editorial Pembroke Collins

PROJETO GRÁFICO E CAPA Diniz Gomes

DIAGRAMAÇÃO Diniz Gomes

DIREITOS RESERVADOS A

PEMBROKE COLLINS
Rua Pedro Primeiro, 07/606
20060-050 / Rio de Janeiro, RJ
info@pembrokecollins.com
www.pembrokecollins.com

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sem autorização por escrito da Editora.

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Este livro foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, pelo
Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), pelo Conselho Internacional de Altos
Estudos em Educação (CAEduca) e pela Pembroke Collins.

Todas as obras são submetidas ao processo de peer view em formato double blind pela Editora e, no caso
de Coletânea, também pelos Organizadores.

P467

Perspectivas do direito à saúde / Felipe Asensi, Glaucia Maria de


Araujo Ribeiro e Klever Paulo Leal Filpo (organizadores). – Rio de
Janeiro: Pembroke Collins, 2021.

408 p.

ISBN 978-65-87489-92-6

1. Direito. 2. Saúde. 3. Interdisciplinaridade. I. Asensi, Felipe (org.).


II. Ribeiro, Glaucia Maria de Araujo (org.). III. Filpo, Klever Paulo Leal
(org.). IV. Reis, Vanessa Velasco Hernandes Brito (org).

CDD 342.8

Bibliotecária: Aneli Beloni CRB7 075/19.


SUMÁRIO

ARTIGOS - SAÚDE 13

IGUALDADE DE QUE? EQUIDADE PARA QUE? JUSTIÇA PARA QUEM?


REFLEXÕES (BIO)ÉTICAS SOBRE A SAÚDE NO BRASIL 15
Ivone Laurentino dos Santos

PANDEMIA BARULHENTA DA COVID-19 X PANDEMIA SILENCIOSA DO


DIABETES MELLITUS TIPO 1: O QUE TEM CAUSADO MAIS SOFRIMENTO? 33
Vanessa Carvalho Barros de Castro

QUE TOQUEM OS SINOS: A QUESTÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DO


AUTISMO NO BRASIL NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE 45
Alcione do Socorro Andrade Costa

JUSTIÇA REPUBLICANA E BIOÉTICA NA TEORIA POLÍTICA DE PHILIP PETTIT 66


Vitória Valentini Marques

HISTORICIZAR PARA DEBATER: O SERVIÇO SOCIAL NOS PROGRAMAS DE


RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE 84
Desirre Vitória de Morais Mariano
Ângela Maria Pereira da Silva
Gehysa Guimarães Alves

A DEMANDA DE IDOSOS POR DIREITOS RELATIVOS À SAÚDE JUNTO A


DEFENSORIA PÚBLICA DA COMARCA DE SÃO CARLOS-SP 102
Luiz Eduardo dos Santos

A PARTICIPAÇÃO COMO DIFERENCIAL NA FORMA DE GESTÃO DE


POLÍTICAS SOCIAIS EM SAÚDE: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE
BRASIL E URUGUAI A PARTIR DE 1988 117
Cláudia Regina Paese
A PSICOPATOLOGIZAÇÃO DA VIDA  138
Carlos Henrique Barbosa Rozeira

POLARIZAÇÃO DA DOENÇA CÁRIE E DIREITOS HUMANOS - GRANDES


ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS DE 1986 A 2010 NO BRASIL E
PERSPECTIVAS PARA O CENÁRIO ATUAL 156
Ana Beatriz Fernandes da Silva Monteiro
Erick Oliveira Küchenmeister de Memória
Arilma Selma de Oliveira Carvalho
Marayana Delane Batista Melo

ARTIGOS – DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS E PANDEMIAS 169

O TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO E MERCADO DE


TRABALHO: UMA ANÁLISE PSICO-JURÍDICA NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DO COVID-19 171
Thaysa Bianca Velloso da Fonseca
Lívia de Souza Nunes

RESOLUÇÃO 329, DE 30 DE JULHO DE 2020 DO CNJ: AUDIÊNCIA DE


CUSTÓDIA NO PERÍODO DE PANDEMIA PROVOCADA PELO VIRUS
SARSCOV-2 189
Juliana Oliveira Eiró do Nascimento

O COMBANTE AO FEMINICÍDIO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DO


COVID-19 207
Beatriz Peixoto Nóbrega
Rayanny Sillvana Silva do Nascimento

MASCULINIDADE E PANDEMIA: UM VÍRUS E DUAS GUERRAS  226


Loyse Gabriela Moura da Silva

A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E A SUA (IN)EFICÁCIA DIANTE


OS POVOS DO IRAQUE E DA SÍRIA EM VIRTUDE DO GRUPO JIHADISTA
ESTADO ISLÂMICO NO LEVANTE E NO IRAQUE 239
Jéssica Pauline Pinheiro Salvi

SISTEMA PRISIONAL E “ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL”: DO


CASO CARANDIRU AO CORONAVÍRUS 249
Saulo Capelari Junior
Moacyr Miguel de Oliveira
Renato Alexandre da Silva Freitas
COVID-19 E MISTANÁSIA 268
Jaime Leônidas Miranda Alves

DIREITOS HUMANOS NA PANDEMIA: DESAFIOS FRENTE À VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA 282
Sérgio Augusto Pires dos Reis Madeira
Brenner Teodoro de Sousa
Washington Luiz Sudré Silva Junior

A DESPROTEÇÃO DO(A) TRABALHADOR(A) INFORMAL EM TEMPOS DE


PANDEMIA E A RESPONSABILIDADE ESTATAL 301
Brenner Teodoro de Sousa
Sérgio Augusto Pires dos Reis Madeira
Washington Luiz Sudré Silva Junior

SITES OFF-LINE: UMA INJUSTIÇA ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


DURANTE A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS 318
Álefer Aguiar de Oliveira

GESTÃO DE RISCO E GERENCIAMENTO DE CRISE NA COVID-19:


PERSPECTIVAS MULTIFOCAIS PARA A GOVERNANÇA NA ATUALIDADE 334
Leandro Belloc Nunes

RESUMOS 357

ABORDAGEM DOS DIREITOS HUMANOS INDIVIDUAIS EM RELAÇÃO A


PANDEMIA DO COVID-19 359
Carlos Roberto Tencarte
Cristina Lacerda Soares Petrorolha Silva

O ABUSO SEXUAL E O USO DO CONCEITO DE FANTASIA. 362


Silvania Lopes dos Santos

O USO DA MÁSCARA FACIAL NA PREVENÇÃO DA TRANSMISSÃO DO


VÍRUS RESPIRATÓRIO 367
Camila Faria dos Santos Dainez
Rosa Maria Ferreiro Pinto
OS EMBARGOS NA ADESÃO AOS TRATAMENTOS MEDICAMENTOSOS EM
DECORRÊNCIA DA BAIXA ESCOLARIDADE 371
John Victor Rocha
Anna Luiza Fragoso Guimarães Costa
Laura Alberto da Silva
Denise Mota Araripe Pereira

A OUVIDORIA HOSPITALAR: UMA ANÁLISE DA UTILIZAÇÃO DO


MECANISMO DE PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAL COMO
FERRAMENTA DE GESTÃO EM TRÊS HOSPITAIS PÚBLICOS 376
Flávia Aparecida Vaz Silva

CORONAVÍRUS E REFUGIADOS INDÍGENAS VENEZUELANOS  382


Thiago Augusto Lima Alves

FALSOS DILEMAS ENTRE SALUD Y ECONOMÍA. CONSECUENCIAS


NEGATIVAS DE UN DEBATE QUE AUMENTÓ LAS CONDUCTAS DE
DISEMINACIÓN EN LA PANDEMIA DE COVID-19: LECTURAS DESDE LAS
CIENCIAS CONDUCTUALES. 387
Luis Alberto Mellado Díaz

COVID-19 E FECHAMENTO DAS FRONTEIRAS: EFEITOS EM ESTUDANTES


INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO
LATINO-AMERICANA. 393
Luis Alberto Mellado Díaz

O “VÍRUS CHINÊS”: OS DISCURSOS XENOFÓBICOS DOS LÍDERES


MUNDIAIS A CHINA DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19 E A
PROLIFERAÇÃO DOS DISCURSOS DE ÓDIO NAS REDES SOCIAIS 398
Arthur Sonza Villanova
Gabriela Parode Buzetto

COVID-19 NO BRASIL: UM VÍRUS COMO INSTRUMENTO DE AMPLIAÇÃO


DA SELETIVIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO 403
Gabriel Maciel Barbosa
CONSELHO CIENTÍFICO DO CAED-JUS

Adriano Rosa (Universidade Santa Úrsula, Brasil)


Alexandre Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto,
Brasil)
Alfredo Freitas (Ambra College, Estados Unidos)
Antonio Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (Universidade Nove de Julho, Brasil)
Bruno Zanotti (PCES, Brasil)
Claudia Nunes (Universidade Veiga de Almeida, Brasil)
Daniel Giotti de Paula (PFN, Brasil)
Danielle Ferreira Medeiro da (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Silva de Araújo Brasil)
Denise Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Edgar Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano,
Colômbia)
Eduardo Val (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Felipe Asensi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil)
Fernando Bentes (Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Brasil)
Glaucia Ribeiro (Universidade do Estado do Amazonas,
Brasil)
Gunter Frankenberg (Johann Wolfgang Goethe-Universität -
Frankfurt am Main, Alemanha)

9
João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)
Jose Buzanello (Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil)
Klever Filpo (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Luciana Souza (Faculdade Milton Campos, Brasil)
Marcello Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Maria do Carmo Rebouças dos (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Santos Brasil)
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
Paula Arévalo Mutiz (Fundación Universitária Los Libertadores,
Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (Universidade Federal do Espírito Santo,
Brasil)
Santiago Polop (Universidad Nacional de Río Cuarto,
Argentina)
Siddharta Legale (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Saul Tourinho Leal (Instituto Brasiliense de Direito Público,
Brasil)
Sergio Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (Centro Universitário Lassale, Brasil)
Tiago Gagliano (Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, Brasil)
Walkyria Chagas da Silva Santos (Universidade de Brasília, Brasil)

10
APRESENTAÇÃO - SOBRE O CAED-Jus

O Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito (CAE-


D-Jus) é iniciativa consolidada e reconhecida de uma rede de acadêmicos
para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e reflexões interdisciplina-
res de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se via internet, sendo a tecnologia par-
te importante para o sucesso das discussões e para a interação entre os
participantes através de diversos recursos multimídia. O evento é um dos
principais congressos acadêmicos do mundo e conta com os seguintes di-
ferenciais:

• Abertura a uma visão multidisciplinar e multiprofissional sobre o


direito, sendo bem-vindos os trabalhos de acadêmicos de diversas
formações;
• Democratização da divulgação e produção científica;
• Publicação dos artigos em livro impresso no Brasil (com ISBN),
com envio da versão ebook aos participantes;
• Galeria com os selecionados do Prêmio CAED-Jus de cada edição;
• Interação efetiva entre os participantes através de ferramentas via
internet;
• Exposição permanente do trabalho e do vídeo do autor no site
para os participantes;
• Coordenadores de GTs são organizadores dos livros publicados.

O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadêmicos


de alta qualidade no campo do direito em nível nacional e internacional,

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

tendo membros do Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Portu-


gal, Reino Unido, Itália e Alemanha.
Em 2020, o CAED-Jus organizou o Congresso Interdisciplinar
de Direitos Humanos e Fundamentais (CDHF 2020), que ocorreu
entre os dias 02 a 04 de dezembro de 2020 e contou com 60 Áreas Te-
máticas e mais de 380 artigos e resumos expandidos de 62 universidades
e 34 programas de pós-graduação stricto sensu. A seleção dos trabalhos
apresentados ocorreu através do processo de peer review com double blind, o
que resultou na publicação dos livros do evento..
Esta publicação é financiada por recursos da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Educação (CAEduca) e da Editora Pembroke
Collins e cumpre os diversos critérios de avaliação de livros com excelên-
cia acadêmica nacionais e internacionais.

12
ARTIGOS - SAÚDE

13
IGUALDADE DE QUE? EQUIDADE
PARA QUE? JUSTIÇA PARA QUEM?
REFLEXÕES (BIO)ÉTICAS SOBRE A
SAÚDE NO BRASIL
Ivone Laurentino dos Santos1

"Art. 10: Igualdade, Justiça e Equidade: A igualdade fundamental


entre todos os seres humanos em termos de dignidade e de direitos
deve ser respeitada de modo que todos sejam tratados de forma
justa e equitativa".

INTRODUÇÃO

A ampliação conceitual e metodológica vivenciada pela bioética,


desde a promulgação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos (UNESCO, 2005),- doravante DUBDH - permite a discus-
são, na atualidade, de questões políticas relacionadas com o cotidiano das
pessoas, povos e nações, tais como exclusão, vulnerabilidade, pobreza,
guerra, paz e racismo (GARRAFA,2005a). Dito de outro modo, uma
bioética politizada, interventiva e inclusiva, presente na DUBDH, tem
possibilitado a reflexão sobre todas as formas de discriminação, seja na

1 Professora Aposentada de Filosofia, Sociologia e História da Secretaria de Educação do


Distrito Federal; mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília e Doutora em
Bioética pela Universidade de Brasília.

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saúde pública, seja nos demais setores, considerados estratégicos para o


desenvolvimento pleno de todos e todas (GARRAFA, 2005b).
Aqui, será aprofundada, especificamente, a reflexão sobre o Artigo 10
da DUBDH. Para tanto, será dado o devido destaque as ideias de dois gran-
des nomes da teoria política contemporânea: Rawls(2008) e Sen(2010), no
sentido de checar como os conceitos igualdade, justiça e equidade, que há
tempos vem sendo discutidos e analisados, se aplicam à problemática da saú-
de no Brasil, nos dias atuais. Assim sendo, este texto procura elucidar os
conceitos de justiça, igualdade e equidade - e suas relações com a bioética
- na tentativa de contribuir para que as populações de países periféricos,
como a brasileira, pensem e vejam os problemas sociais que atravessam as
suas vidas, com cérebros e olhos próprios (GARRAFA,2005a).
Trata-se da tarefa de pensar a justiça, a igualdade e a equidade, não de
forma apenas conceitual, mas no contexto das problemáticas sociais dis-
cutidas pela bioética, nos dias atuais. Enfim, quais as reais possibilidades de
assegurar o tratamento igualitário de indivíduos com inserções sociais tão
díspares, no sentido de contemplar os ditos excluídos ou marginalizados
sociais (FREIRE, 2005), cada vez mais, ignorados nos seus direitos bási-
cos? Afinal, como podemos garantir a equidade em países tão desiguais
como o Brasil? (BARATA, 2009). O que fazer, quando as desigualdades
se transformam em iniquidades, ou seja, desigualdades evitáveis e injus-
tas, (ALMEIDA-FILHO, 2010)? Teria a bioética potencial para desvelar
a determinação da opressão e da injustiça que promovem e perpetuam
as iniquidades em saúde? (GARRAFA & CORDON, 2006). E ainda:
Quais as possibilidades concretas de tratar desigualmente os desiguais, na
medida de suas necessidades, no sentido de amenizar as iniquidades no
Brasil (LORENZO, 2006)?
A perspectiva desse texto é, portanto, de contribuir para a continui-
dade do debate em questão, a partir do pressuposto de que a bioética,
como ramo da ética aplicada - que enfoca as questões relativas à saúde e a
vida humana - está ligada às ideias de justiça, igualdade e equidade. Pre-
tende-se, então, através desse estudo teórico, ampliar a reflexão sobre os
princípios acima referidos: igualdade, justiça e equidade, possibilitando o
trânsito dos estudantes de bioética - e dos demais interessados em saúde -
por diferentes disciplinas: filosofia, política, história, arte e saúde coletiva
etc. numa perspectiva inter e transdisciplinar (GARRAFA, KOTTOW
& SAADA, 2006).

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O fato é que, embora o Brasil esteja bem distante de garantir saúde


para todos - na totalidade dos Estados - como manda o texto constitu-
cional de 1988(BRASIL:CF, 1988) , não há porque ignorar os avanços
dados nesta direção, como por exemplo, a aprovação do Decreto nº 7.508
que regulamenta a Lei 8080(BRASIL, 2011). Trata-se de um marco legal
imprescindível à construção de um sistema da saúde, que realmente se
configure como direito de todos os cidadãos e cidadãs e dever do Estado;
sem dúvida, um passo importante na luta pela garantia da saúde como
direito humano, nos dias atuais.
Em outros países da região ibero-americana como Portugal(RA-
MOS, 2010), Colômbia(GOMEZ-ARIAS, 2011) e Chile(PALMA,
2011), por exemplo, o direito à saúde vêm retrocedendo, em função de
“receitas neoliberais”, especialmente na atenção e no cumprimento do
papel do Estado como garantidor desse e de outros direitos sociais. O con-
texto nos países citados, aos poucos, se volta para a implementação na saú-
de, de ideologias neoliberalistas, que impulsionam “o avanço das lógicas
de mercado”, em detrimento de pressupostos éticos importantes como a
solidariedade e a equidade (NEY; PIERANTONI; LAPÃO,2015).
No Brasil, as tentativas tem sido de redução do papel do Estado, o que
faz com que tal contexto seja amplamente discutido pelos Determinan-
tes Sociais de Saúde-DSS (NOGUEIRA, 2010). Na pauta do dia, temos
a necessidade urgente de pensar alternativas frente aos problemas sociais
negligenciados pelo Estado brasileiro, em função de regras impostas pelo
mercado. Uma situação recente, bem emblemática nesse sentido, foi o
Decreto 10.530 do presidente da República, cujo conteúdo liberava estu-
dos para avaliar a possibilidade de conceder iniciativa privada as Unidades
Básicas de Saúde (UBSs), que são porta de Entrada para o Sistema único
de Saúde (SUS). Tal medida - já revogada depois de grande repercussão
negativa nas redes sociais - daria grande margem para possíveis privatiza-
ções em todo o Sistema de Saúde Pública do país.
Refletir sobre a saúde pública no Brasil, portanto, nunca foi tão ur-
gente e necessário. Assim sendo, a perspectiva desse texto é de contribuir
para que se pense, com a devida radicalidade, as diversas nuances que en-
volvem as questões sociais já apontadas, na tentativa de demonstrar como
as noções contemporâneas de igualdade, equidade e justiça se aplicam ou
poderiam ser aplicadas na saúde brasileira. Vale ressaltar que não se trata
de esgotar o tema, mas de, a partir de um recorte epistemológico bem
específico, indicar aspectos importantes para um debate mais qualificado.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

1. VISÕES CONTEMPORÂNEAS DE IGUALDADE,


JUSTIÇA E EQUIDADE: RAWLS E SEN.

Um pensador imprescindível quando se trata de teoria política é o


John Rawls (2000/2008), com sua célebre obra “A Teoria de justiça”
(RAWLS, 2008). Rawls entende a justiça, não como o resultado dos inte-
resses de todos, ou da maioria, mas como pressuposto deontológico fun-
damental para a percepção totalizante dos anseios coletivos.
O pensamento democrático de Rawls (2008) tem como base, tanto
o que ele chama de posição original, situação hipotética na qual as pessoas
livres e iguais escolhem, sob um véu da ignorância, os princípios de justiça
que devem governar a estrutura básica da sociedade, quanto a existência
de um sociedade bem-ordenada, regulada por uma concepção política e
pública de justiça, aceita por todos os cidadãos, nos termos equitativos de
cooperação social (RAWLS, 2008). Nos termos de Rawls, os princípios
para a construção de uma sociedade democrática justa seriam,

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais


extenso de iguais liberdades fundamentais que se compatível com
um sistema similar de liberdades para as outras pessoas

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dis-


postas de tal modo que tanto(a) se possa razoavelmente esperar que
se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas
a cargos e posições acessíveis a todos (2008, p. 73).

Percebe-se, portanto, o esforço de Rawls (2008) no sentido de defen-


der, tanto as liberdades e direitos fundamentais que devem ser assegurados
igualmente a todos, quanto a defesa da igualdade equitativa de oportuni-
dades para aqueles que tem talentos similares e disposições semelhantes
para conquistá-los e praticá-los. Destaca-se na teoria rawlsiana, o princi-
pio da diferença ou critério “maximin” de justiça social, segundo o qual
as desigualdades socioeconômicas só são moralmente aceitáveis se tiverem
por objetivo maximizar a parte de recursos disponíveis à parcela mais des-
favorecida da sociedade.
Uma questão bem discutível em Rawls (2008) talvez seja a tentativa
do autor de conciliar o desejo de justiça social com a vontade de preser-

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var os princípios democráticos liberais e, por conseguinte, o sistema de


mercado capitalista. Para o cientista político, a equidade seria resultado
de uma “negociação” ou “compensação” capaz de atender aos interesses
consensuais da sociedade. Ora, o que pensar da problemática das iniqui-
dades produzidas pelo modo capitalista de igualdade, que atribui o sucesso
ou o fracasso à competência dos indivíduos em nome da plena garantia das
liberdades individuais?
O grande problema da justiça, na perspectiva do enfrentamento das
iniquidades seria, para Rawls (2008), prioritariamente, determinar os
princípios para regular as desigualdades e ajustar os efeitos profundos e de
longa duração das disparidades sociais, naturais e históricas. De fato tais
problemas, quando abandonados a si mesmos, se tornam bem destoan-
tes com relação à liberdade e a igualdade apropriadas para uma sociedade
bem-ordenada.
A perspectiva de Rawls (2008) de regular as desigualdades e ajustar
seus efeitos evidencia a pouca (ou nenhuma) disposição do pensador para
as mudanças estruturais necessárias ao estabelecimento de uma nova or-
dem social. Segundo ele, cada indivíduo é dono de uma inviolabilidade
fundada na justiça, a qual nem o bem comum da sociedade pode se sobre-
por. Nessa perspectiva, numa sociedade eminentemente justa, os direitos
assegurados pela justiça não são, de forma alguma, objetos de negociação
política nem, muito menos, podem ser computados no cálculo dos inte-
resses sociais.
Esse pressuposto adotado por Rawls (2008) dá visibilidade ao ca-
ráter particular de sua concepção de justiça e do impacto relativo que as
ações sociais provocam nos indivíduos. Nascem daí as possíveis críticas ao
suposto reducionismo da “determinação social da saúde” e as evidências
da epidemiologia, oriundas das análises dos contextos políticos, sociais e
econômicos como causadores mecânicos das desigualdades. Tais críticas
encontram eco, por exemplo, no documento divulgado pela Associação
Latino Americana de Medicina Social (ARELLANO et al. 2008), a ma-
nifestação de Navarro (2009), que refuta toda e qualquer denúncia, que
seja descontextualizada das desigualdades sociais caracterizadas como in-
justiças sociais, sem a devida análise e consideração dos processos sociais
e econômicos existentes nos diversos países.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Faz-se necessário, portanto, que as relações entre desigualdade, ini-


quidade e determinação social de modo algum sejam reduzidas à uma
simples análise circular de causa e consequência, evitando-se que proble-
mas complexos sejam reduzidos à fatores sociais isolados ou a fatores de
vulnerabilidade e risco (NAVARRO, 2009). Sem dúvida, uma análise
indiferente a complexidade dos contextos e das percepções dos seus pro-
tagonistas, além de dificultar ações voltadas para mudanças sociais mais
efetivas, desqualificaria os indivíduos como sujeitos capazes de reagir às
realidades sociais arbitrárias.
Frente à impossibilidade de indicar respostas fáceis quando se trata
do ser e fazer humanos - nas suas dimensões individual e social - resta
aqueles que anseiam por respostas e soluções para os diversos problemas
sociais, insistir em questões como: Justiça como igualdade ou justiça como
equidade? Quais as possibilidades efetivas de justiça social num mundo
cada vez mais desigual e injusto? Amartya Sem (2008), economista india-
no, tem demonstrado em sua obra um grande desconforto frente as desi-
gualdades e iniquidades sociais. Assim como Rawls (2008), Sen enfatiza
a importância de eliminar todas as privações de liberdade que limitam as
escolhas e as oportunidades das pessoas para exercerem suas condições de
cidadãos e cidadãs.
Mas em comparação com Rawls (2008), Sen (2008) vai bem mais
além. Enquanto Rawls (2008) afirma que a distribuição deve ser a mais
igualitária possível, Sen (2008) argumenta a insuficiência de tal política,
pois, segundo ele, não dá expressão ao déficit de liberdade efetiva dos in-
divíduos desfavorecidos. Em um dos capítulos da sua obra “Desigualdade
reexaminada”, Sen (2008) lança uma pergunta bem intrigante: Igualdade
de quê? Assim, o autor indiano consegue chamar atenção para o fato de
que a igualdade pode representar pura e simplesmente uma abstração des-
vinculada da pluralidade de comportamentos e necessidades das pessoas
em todo o mundo.
O Brasil, por exemplo, embora tenha uma democracia formal, com
“belas” leis e decretos, ainda transita entre os países com índices expressi-
vos de desigualdade social (IDH, 2018) o que significa que a pura e simples
garantia de direitos, do ponto de vista legal é insuficiente em contextos de
iniquidades. A questão é que os cidadãos e cidadãs não poderão fazer
valer os seus direitos à saúde, educação, salário justo etc., se as normas,

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F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

mesmo que hospedadas na Constituição, persistirem apenas no plano das


aspirações, das promessas ou das utopias. Para que os direitos “saiam do
papel” parece imprescindível que as pessoas empoderem-se, recuperando
suas capacidades de se indignarem frente as iniquidades.
Torna-se necessário, então, pensar a igualdade em termos comple-
xos, o que significa, para Sen (2008), considerar as diferenças sem perder
de vista as possibilidades de bem-estar social. Por conta disso, Sen (2008)
propõe uma igualdade de oportunidades, que se baseia fundamentalmente
na caracterização e delimitação das “capacidades e dos funcionamentos”;
tais capacidades se referem as liberdades efetivas que as pessoas têm para
fazer suas escolhas, a partir da realização de grupos de funcionamentos
distintos que as nortearão. Em suma, na perspectiva de Sen (2008), no de-
senvolvimento de certas capacidades residem a liberdade das pessoas para
escolher, dentre os diversos caminhos possíveis, aqueles que mais atende-
rem as suas próprias necessidades.
Dessa forma, Sen (2010) amplia bastante o debate sobre igualdade e
justiça, ao acrescentar elementos que transcendem a perspectiva consu-
mista imposta pelo capitalismo. O bem-estar vai além do ter na medida
que depende das capacidades dos sujeitos para ser e para fazer, de acordo
com as suas necessidades particulares. Os indivíduos, portanto, precisam
ser considerados protagonistas das suas existências, com a possibilidade
real de empoderamento frente aos diversos desafios que se apresentarem
no decorrer de suas trajetórias. Vale ressaltar que não se trata de negar
as barreiras que terão que ser removidas para possibilitar as escolhas da-
queles submetidos à situações de desigualdades e iniquidades, mas apenas
de reconhecer os obstáculos a serem superados, para que cada um e cada
uma tenha condições de fazer as escolhas, de acordo com suas próprias
prioridades.
Para Sen (2008), é contraditório, desumano e até uma distorção mo-
ral que as pessoas, pela falta da possibilidade de livre escolha, acabem por
ajustar os seus desejos à uma realidade escassa de oportunidades. À per-
gunta sobre como estimar o bem estar de uma pessoa, Sen (2008) res-
ponde: a partir do cálculo de satisfação versus frustração de seus desejos
e preferências, que são suas reais fontes de valor. Evidentemente que no
contexto das desigualdades e iniquidades, este cálculo é problemático, vis-
to que a interpretação do que é possível em cada situação e posição pode

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

ser crucial para a intensidade dos desejos, e pode afetar até mesmo o que
cada um ousa desejar.
O fato é que os desejos refletem compromissos com a realidade,
sendo esta bem mais implacável com uns do que com outros. No Brasil,
podemos até afirmar que o contexto social é bastante duro com uma gran-
de maioria, haja vista a relação existente entre a população negra no país
e o quadro de vulnerabilidades e violências (THEODORO, 2008). Em
suma, avaliar a vantagem individual de pessoas submetidas à negação de
seus direitos e à iniquidades profundas, considerando apenas seus desejos
e preferências efetivos, significa contribuir para a perpetuação da injustiça
de que são vítimas. Nesse sentido vale destacar quando Sen (2010) aponta,
dentre outras coisas, o fato que as pessoas, nas suas trajetórias, terão que
recorrer a escolhas ou preferências “contrafatuais”.
A questão fundamental seria: as pessoas escolheriam viver e fazer de-
terminadas escolhas, se não estivessem submetidas à certas circunstâncias
arbitrárias? Independente de qual seja a resposta a essa e a outras tantas
perguntas delas decorrentes, o que realmente importa, na perspectiva de
Sen (2010) não são os bens e recursos em si, mas os estados e atividades
que esses bens e recursos possibilitam que as pessoas tenham acesso. Além
disso, os funcionamentos valiosos são aqueles que permitem as pessoas
estarem adequadamente nutridos e vestidos, livres de doenças curáveis,
letrados, podendo aparecer em público, sem sentirem vergonha de si
próprios e, com isso, em condições de desenvolverem um senso de auto
respeito, que lhes possibilitem participarem, de forma ativa, das relações
políticas estabelecidas em suas próprias comunidades.

2. DESIGUALDADE, INIQUIDADE E EQUIDADE:


IMPACTO NA SAÚDE.

De acordo com o relatório de 2018 do Programa das Nações Unidas


para o Desenvolvimento, o Índice de Desenvolvimento Humano do Bra-
sil se manteve estagnado, e o país permanece na 79ª posição de um total de
188 países (IDH, 2018). Isso significa que muito provavelmente a doen-
ça que mais mata no Brasil chama-se pobreza, que transcende bastante
a escassez de recursos financeiros. Trata-se de uma pobreza nefasta, que
corresponde à falta de acesso a bens fundamentais para o desenvolvimen-

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to (UNICEF, 2018), como educação, liberdade, bem-estar ou felicidade,


qualidade de vida, emprego, segurança etc. enfim, itens imprescindíveis
para uma existência com um mínimo de dignidade.
A pobreza interfere nas saúdes das pessoas, não somente num sentido
de repercutir na falta de acesso à um atendimento médico-hospitalar, mas
também por restringir os mais carentes, limitando-os nas suas condições
de dignidade e bem-estar. O contexto de iniquidade social coloca o Brasil
como país que, apesar do grande potencial, ainda não conseguiu superar o
contexto de fome e de miséria que afeta uma grande parcela da sociedade
(UNESCO, 2018; AVENDAÑO, 2018), realidade que mantém relação
direta com as grandes desigualdades entre os diversos estratos sociais e
econômicos da população brasileira.
Para Berlinguer (2000), um dos maiores bioeticistas de todos os tem-
pos, são iníquas aquelas desigualdades decorrentes dos estilos de vida in-
salubres impostos pelas ideologias de mercado, bem como aquelas resul-
tantes de fatores socioeconômicos como: moradias sem higiene, nutrição
e educação insuficientes, contaminação do meio ambiente e condições de
trabalho inseguras etc. Ou seja, iníquas são as desigualdades geradas pelas
dificuldades de acesso à bens fundamentais, muitas das vezes, atravessadas
pela má qualidade dos sistemas operacionais, o que no caso da saúde pode
corresponder à uma atenção inadequada por parte dos serviços prestados.
O fato é que essa percepção da iniquidade como um fenômeno que
atravessa os direitos sociais e resulta em injustiças, provoca a retomada, no
mundo contemporâneo, do princípio de equidade, como um dos antí-
dotos capazes de fazer justiça social. No Brasil e em vários outros países
periféricos (GARRAFA, 2005a) tal princípio, largamente associado aos
direitos das minorias e às lutas dos diversos movimentos políticos, dá vi-
sibilidade à diferença e à diversidade de contextos e condições de vida. A
ideia de equidade acaba, desse modo, por ser incorporada ao conceito de
igualdade, chegando até mesmo a substituí-lo (BERLINGUER, 2000).
Nota-se, portanto, uma mudança conceitual bastante positiva, pois
se a igualdade remeteria à uma homogeneidade de ações, distribuindo a
cada pessoa uma mesma quantidade de bens ou serviços, em contrapartida
a equidade jamais deixaria de levar em consideração que as pessoas são
diferentes, com necessidades específicas. Neste caso, diferentemente de
uma igualdade homogeinizante, uma ação equitativa atenderia, sem dú-

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

vidas, ao segundo elemento do princípio marxista “de cada um segundo


suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades” (MARX, 1875:
p.26 ) ou, no dizer de Sen(2008), a cada um conforme suas capacidades,
potencialidades e funcionalidades.
Assim sendo, da mesma forma que Sen pergunta na sua obra De-
sigualdade reexaminada: “igualdade de quê?”, torna-se necessário então
também perguntar “equidade em relação a quê?” e “Justiça para quem?”
Para responder a essas e outras tantas questões, é preciso compreender que
o julgamento e a medida das desigualdades dependem também da escolha
da variável em torno da qual a comparação é feita(SEN, 2010). Isso impli-
ca no fato de que os valores intrínsecos às decisões devem ser explicitados,
coletivamente assumidos, avaliados e revistos, de acordo com as necessi-
dades específicas dos envolvidos.
Nessa perspectiva, a pergunta “equidade em relação a que?” jamais
terá uma resposta pronta e acabada, pois a realidade social, como um todo,
e a saúde, em particular, devem ser pensados como processos em constan-
te de transformação, que passam por mudanças, na tentativa de ampliar os
seus resultados. Ao mesmo tempo, a implementação de uma política forte
de combate às iniquidades em saúde se relaciona diretamente à necessida-
de de que cada um e de todos, ao mesmo tempo, assuma o compromisso
de estabelecer valores, além de descrever e analisar os problemas sociais,
se engajando na tarefa de erradicar as causas profundas das desigualdades
e iniquidades, a partir da redução ou eliminação dos efeitos negativos das
condições precárias de saúde (WHITEHEAD,2002) para parcelas signi-
ficativas das populações.
Dentre os problemas mais graves que afetam a saúde, destaca-se a
propagada escassez de recursos, que acaba por contrariar o artigo XXI - 2
da Declaração do Direitos Humanos, que diz que “Toda pessoa tem igual
direito de acesso ao serviço público do seu país” (ONU, 1948). [grifo da
autora]. Tal declaração, hoje com mais de 70 anos, evidencia neste arti-
go o direito inviolável a serviços públicos apropriados que garantam as
melhores condições à todos os cidadãos e cidadãs, de acordo com as suas
necessidades. Explicita-se, hoje mais do que nunca, que o direito a saúde
contém prerrogativas imprescindíveis para que cada pessoa possa controlar
sua própria saúde, contando com o apoio indispensável de um sistema de

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proteção, comprometido em oportunizar, para todos, a possibilidade de


usufruto de um alto nível de saúde sustentável(VANDERPLAAT, 2004).
A questão fundamental continua sendo: como fica o direito à saúde,
bem como as questões éticas frente a tão proclamada escassez de recursos,
materiais e/ou humanos? Não nos resta outro caminho além da exigên-
cia do cumprimento do direito à saúde, pois o que está em questão, em
última instância, é o direito mais fundamental e inegociável à vida. O
contexto da iniquidade em saúde, provocado por situações extremas de
pobreza e agravada pela escassez de recursos (SEN, 2010) é, sem dúvida,
um desrespeito ao direito de todas as pessoas à uma vida justa e feliz.
Mas, uma vez constatado o contexto de iniquidade ainda presente
nas vidas de tantos brasileiros, o que fazer? Como proceder? Como vimos,
para Sen (2008) na vida de qualquer pessoa, certas coisas são valiosas por
si mesmas como, por exemplo, estar livre de doenças evitáveis, poder es-
capar da morte prematura, estar bem alimentado, ser capaz de agir como
membro de uma comunidade, agir com liberdade e não dominado pelas
determinações sociais etc., o que implica na necessidade de cada pessoa
de ter garantidas as oportunidades para desenvolver suas potencialidades
e capacidades.
Dito de outro modo, à pergunta fundamental: “Justiça para quem?”
em países pobres ou em desenvolvimento, como o Brasil, a resposta deve
contemplar, necessariamente, os menos assistidos pela sociedade e pelo
Estado. As palavras de Berlinguer(2004: p. 86) são bastante esclarece-
doras sobre a necessidade de garantia dos direitos, pela luta social. Nas
palavras do autor: “mesmo sendo difícil fazer um balanço do bem e do mal
que existe na terra, é impossível negar que grande parte do bem conquis-
tado foi estimulado pala afirmação dos direitos; e que esse é o caminho a
seguir!”. O primeiro passo, portanto, seria jamais abrir mão dos direitos
conquistados, pois, embora saibamos que tais direitos apenas no papel são
insuficientes, sem tais mecanismos legais as dificuldades seriam ampliadas.
Além disso, teríamos que pensar tais direitos sempre numa perspec-
tiva de coletividade, daí a importância da atuação forte e incisiva dos mo-
vimentos sociais, de modo que torna-se imprescindível ampliar a mobili-
zação coletiva contra a corrupção em todas as instâncias, visto que se trata
de um mal que tende a prejudicar de forma corrosiva os interesses da co-
letividade(BERLINGUER, 2004). Assim sendo, faz-se necessário pensar

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

alternativas e estratégias que sejam capazes de fazer frente às iniquidades,


no que se refere ao fortalecimento das capacidades de reação daqueles
que as sofrem concretamente. Trata-se da tarefa de exigir do Estado que
se esforce ao máximo para combater as mazelas sociais provocadas pelas
iniquidades em saúde, jamais se acomodando com situações de desigual-
dades que são injustas e evitáveis.
Nesse sentido, a questão fundamental seria retomar o que propõe
Sen(2011) que é a garantia da equidade como igualdade de oportunidades,
o que exigirá dos gestores a sensibilidade para compensar as desigualda-
des de capacidades geradas pela extrema pobreza. Pode-se dizer, portanto,
que a equidade na saúde significa que cada cidadão deveria ter a oportuni-
dade de atingir, da forma mais justa possível, a própria expectativa de vida
e que ninguém deveria sofrer desvantagem ao tentar suprir as suas pró-
prias necessidades. A equidade, nesse sentido, coloca todos os cidadãos e
cidadãs, defensores da democracia, frente à um grande desafio: a decisão
ética de considerar o direito de cada um e cada uma, sem contudo, ignorar
suas singularidades ou necessidades particulares (BERLINGUER,2004).
Numa das suas mais recentes obras, em parceria com Kliksberg: “As
pessoas em primeiro lugar”, Sen (2010) retoma uma das suas perguntas
imprescindíveis: Para os autores,

equidade na saúde não pode se preocupar somente com a saúde,


isoladamente. Em vez disso, ela tem de estar em sintonia com a
questão mais ampla de justiça social, incluindo a distribuição eco-
nômica, dando a devida atenção ao papel da saúde na vida e na
liberdade humana (2010:p. 73-74).

A pergunta “Por que equidade em saúde?” remete, portanto, a uma


outra, já aqui mencionada, que a antecede: “Justiça para quem?” Seja no
contexto da saúde ou em qualquer outro campo vinculado às garantias
de direitos sociais, a justiça seria, na visão de Sen (2008), para aqueles e
aquelas que dela mais carecem. Nessa perspectiva, o importante papel da
bioética, seria o de assumir o compromisso de promover a reflexão per-
manente em torno das práticas sociais injustas, provocando em cada um e
em cada uma o desejo por desenvolver suas capacidades e recuperar suas
funcionalidades, no dizer de Sen(2008), no sentido de se indignar frente

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aos sucessivos descasos que marcam hoje o sistema de saúde no Brasil e em


vários outros países no mundo.
Nessa perspectiva, a justiça social se realiza quando permite a cada
um e a cada uma, cobrirem suas necessidades e manterem seus proje-
tos de vida; com acesso irrestrito a seus direitos fundamentais, dentre
eles, o direito à saúde, onde a atenção e o cuidado, que os contemplem
como sujeitos integrais, deveriam estar a disposição da cidadania(KO-
TTOW,2000). A equidade, assim compreendida, uma vez associada a
princípios como responsabilidade social, justiça e liberdade, torna-se um
instrumento imprescindível nas lutas para fazer valer o direito a saúde, e,
consequentemente, o direito à uma vida digna e com qualidade para todos
e todas.
Nota-se que o reconhecimento da diferença, inerente à equidade,
funciona como mecanismo ético fundamental para que aqueles e aquelas
que vivem na extrema pobreza possam ser compensados (SEN, 2010),
resultando daí um aumento da expectativa de vida de importantes par-
celas da população, seja no Brasil ou no mundo. Mas esse princípio ético
de defesa da vida não se garantirá no vazio, nos discursos abstratos. Faz-se
necessário e urgente o reconhecimento de que as perspectivas de vida das
pessoas são afetadas, tanto pela determinação social, para além dos aspec-
tos biológicos, quanto pela maneira que a estrutura básica deles se utiliza
para cumprir certas metas sociais, segundo a disposição das desigualdades.
Assim, se as iniquidades são ignoradas e suas manifestações são deixadas
ao acaso, sem as necessárias intervenções para preservar a justiça de fundo,
não se estará levando a sério a idéia de sociedade como um sistema equita-
tivo de cooperação entre cidadãos livres e iguais (BERLINGUER, 2004).
Nesse sentido, uma perspectiva de justiça como equidade é incom-
patível com a lógica do mercado capitalista. Talvez resida aí a explicação
para as várias dificuldades do Brasil, em garantir não somente o direito à
saúde, como os demais direitos humanos fundamentais, num contexto
onde há um predomínio da lógica que sobrepõe os interesses de mercado
aos interesses humanos. Ao mesmo tempo, se essa realidade diz respeito
as ações de cada cidadão e cidadã no Brasil e no mundo, haverá sempre a
possibilidade de mudança (SEN, 2011).
Em suma, o que Sen(2010) se propõe a demonstrar é que, para além
do fato de que vivemos em um mundo opulento, cujo desenvolvimento

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

científico e tecnológico é inegável, precisamos ter a consciência de que


lado a lado com este mundo, temos uma outra realidade, assustadora, in-
justa e inaceitável, onde milhares de pessoas são privadas dos seus direi-
tos mais fundamentais, tendo que lidar com a violação de suas liberdades
políticas, sem as quais, fatalmente, terão suas possibilidades de escolhas
reduzidas e o desenvolvimento de suas capacidades, funcionalidades e po-
tencialidades, bastante prejudicado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentre os dizeres mais conhecidos do senso comum, transita a afir-


mação de que “na teoria é uma coisa, na prática é outra”. Pode até ser,
mas teoria e prática, ou práxis, são indissociáveis, de modo que não faz
nenhum sentido pensar, sem a devida atenção à realidade mesma. A ex-
pectativa é que esse texto tenha cumprido a tarefa a qual se propôs de, a
partir da reflexão sobre igualdade, equidade e justiça - e suas relações com
a bioética - abordar os problemas sociais concretos que tanto prejudicam
as classes populares, diminuindo suas chances de vida e impedindo-as de
desenvolverem suas capacidades, funcionalidades e potencialidades. Os
graves problemas aqui mencionados, como pobreza, fome, falta de acesso
à saúde etc prejudicam o bem-estar e a qualidade de vida dos mais frágeis,
o que exige de cada cidadão e cidadã brasileiros que assuma, individual
e coletivamente, o compromisso com a transformação da sociedade, que
acaba por produzir e/ou reproduzir as várias excrescências sociais, produ-
toras e reprodutoras de injustiças.
A ética, em parceria com as políticas de saúde são imprescindíveis para se
obter bem-estar em um mundo mais igualitário, equânime e justo, mas, a julgar
pelos últimos acontecimentos, onde a humanidade está tentando sobreviver à uma
pandemia - que no Brasil, já resultou em mais de 175.000 mortes - há um longo
caminho a ser percorrido. Uma sociedade solidária, empática, que se guia pelo que
Paulo Freire chama de «Ética Universal do ser humano», não nos será dada de
presente, daí a necessidade de levar adiante o principio de equidade, bem como
a noção de diferença, que lhe é inerente, como instrumento com chan-
ces reais de contribuir nas lutas para fazer valer o direito à saúde e à vida
digna e com qualidade para todos.

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Defender um sistema equânime de saúde é o primeiro, dentre tan-


tos outros passos também importantes, para a construção de sociedades
mais justas e solidárias. Para que a equidade se concretize, é fundamental
o aprimoramento da cidadania, onde cada pessoa possa participar ativa-
mente das decisões, dando corpo e voz às políticas públicas de saúde. Se
esse texto despertar o interesse de cada leitor e de cada leitora para a tarefa
de reorganizar os espaços sociais, suas estruturas e relações, no sentido
de contribuir para a formulação de políticas públicas equânimes, o sonho
de eliminar toda e qualquer marginalização social, se tornará um pouco
menos distante.

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32
PANDEMIA BARULHENTA DA
COVID-19 X PANDEMIA SILENCIOSA
DO DIABETES MELLITUS TIPO
1: O QUE TEM CAUSADO MAIS
SOFRIMENTO?
Vanessa Carvalho Barros de Castro2

INTRODUÇÃO

A Diabetes Mellitus (DM) é uma comorbidade crônica caracterizada


pela insuficiência de produção de açúcar pelo pâncreas, sendo esta insu-
ficiência parcial ou total e que quando mal controlada, apresenta várias
complicações que podem levar a fatalidade. O diabetes é dividido em 02
tipos: diabetes tipo 1, conhecido como insulino-dependente e o diabético
tipo 2, conhecido como diabetes adquirida, ou diabetes do adulto, neste
artigo abordaremos o diabetes tipo 1. Como sabe-se que a atual pandemia
da COVID-19 está afetando principalmente de forma agressiva os indi-
víduos multimórbidos crônicos, ela tem sido preocupante para as pessoas
com diabetes mellitus em vários aspectos. Compreender o sofrimento
(prejuízos causados na saúde mental) gerado aos pacientes diabéticos com
a pandemia barulhenta da COVID-19 tem trazido vulnerabilidades de

2 Assistente Social, Especialista em Administração e Planejamento de Projetos Sociais, Es-


pecialista em Gestão Pública, Especialista em Auditoria em Serviços de Saúde; Bacharel em
Direito, Pós Graduanda em Direito de Família e Sucessões. Assistente Social com vínculo
efetivo da Secretaria Estadual de Saúde – Regional de Saúde Pireneus.

33
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

várias ordens. O objetivo é demonstrar que o grupo de risco (diabéticos)


tem enfrentado um grande desafio no combate ao contágio da pandemia
barulhenta em detrimento da pandemia silenciosa, o medo, a insegurança
e a apreensão têm feito parte do cotidiano dos diabéticos. Com esta pes-
quisa foi possível observar que diante da falta de humanização da popula-
ção em detrimento do grupo de risco, há uma crescente relativização da
vida humana, a ignorância alheia sobre o valor da vida, isso é repugnante
para uma população em pleno século XXI.

1. COVID-19 E SUAS IMPLICAÇÕES

O mundo enfrenta um dos maiores desafios em saúde pública dos


últimos tempos, a pandemia do “novo” coronavírus. Chamado
pandemia, por se tratar de um vírus que alcançou vários países de
forma significativa e simultânea, trazendo vários prejuízos a saúde
pública, e “novo”, já que a COVID-19, de acordo com o Minis-
tério da Saúde, “é uma doença causada por um tipo de vírus que
faz parte uma grande família de espécies diferentes de animais, in-
cluindo camelos, gado, gatos e morcegos. Raramente, os corona-
vírus que infectam animais podem infectar pessoas, como exem-
plo do MERS-CoV e SARS-CoV. Recentemente, em dezembro
de 2019, houve a transmissão de um novo coronavírus (SARS-
-CoV-2), o qual foi identificado em Wuhan na China e causou a
COVID-19, sendo em seguida disseminada e transmitida pessoa a
pessoa(BRASIL, 2020a, p. 35).

Vale destacar que o quadro clínico dos seres humanos contaminados


pode variar de estados assintomáticos a quadros graves, conforme o Mi-
nistério da Saúde,

(...) os sintomas da COVID-19 podem variar de um resfriado, a


uma Síndrome Gripal-SG (presença de um quadro respiratório
agudo, caracterizado por, pelo menos dois dos seguintes sintomas:
sensação febril ou febre associada a dor de garganta, dor de cabeça,
tosse, coriza) até uma pneumonia severa. Sendo os sintomas mais
comuns: Tosse, Febre, Coriza, Dor de garganta, Dificuldade para
respirar, Perda de olfato (anosmia), Alteração do paladar (ageusia),

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Distúrbios gastrintestinais (náuseas/vômitos/diarreia), Cansaço


(astenia), Diminuição do apetite (hiporexia), Dispnéia (falta de ar).
(BRASIL, 2013, p.112).

O diagnóstico da COVID-19 é realizado através de alguns exames,


sendo eles: testes rápidos, sorologia e RT-PCR. Conforme o Ministério
da Saúde (2020a), o RT-PCR detecta o RNA do SARS-CoV-2 presente
na secreção da nasofaringe, quando o indíviduo possui poucos dias de in-
fecção; já os teste rápidos são aqueles parecidos com os testes de gravidez,
uma vez que coleta uma pequena quantidade de sangue do dedo das mãos
para fazer a testagem em uma lâmina para detectar a presença do vírus,
este com uma eficácia relativa e por último o exame sorológico.
O exame sorológico é uma forma de análise mais completa, que se-
gundo o Ministério da Saúde (2020a), verifica a resposta imunológica do
paciente, feito mediante a detecção de anticorpos IgG, IgM, IgA em pes-
soas que já foram expostas anteriormente ao vírus. É recomendado para
que haja um resultado mais próximo a realidade apresentada que seja re-
alizado após 10 dias de sintomas da doença, isso porque o organismo leva
um tempo para a produção de anticorpos contra um vírus depois de sua
manifestação.
Caso venha a ser realizado o teste antes do periodo indicado pode
ocorrer um falso negativo, por esta razão é exigido o pedido médico para
a realização do mesmo. E em caso de resultados serem negativos pode ser
necessário um novo pedido médico, uma vez que existem pessoas que não
desenvolvem com a mesma proporção temporal a produção de anticorpos
detectáveis pelos métodos disponíveis.
A pandemia da COVID-19 trouxe para o mundo implicações de
natureza alarmante e com isso se tornou uma pandemia “barulhenta”, no
sentido de repercutir de forma negativa na vida das pessoas, onde vários
profissionais de saúde juntamente com a comunidade buscam alternativas
viáveis e possíveis para diminuir as formas de contágio de uma doença
que tem causado tantas mortes e tantas sequelas em pessoas extrema-
mente saudáveis e em pessoas com um ou vários tipos de comorbidades.
A COVID-19 ainda é uma incógnita a ser conhecida por nós e por todos
os cientistas do mundo inteiro.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Hoje o que se tem são inúmeras pessoas contaminadas, com uma po-
pulação mundial em risco eminente. Equipes de trabalhadores da saúde e
das demais políticas públicas vivendo em situação de isolamento e medo
do futuro e até mesmo das consequências de todos os medicamentos que
estão sendo testados e que ainda não foram comprovadas sua eficácia e
suas consequências no organismo humano.
Cientistas correm contra o tempo, estudiosos buscam a resposta, tra-
balhando de forma a atender a demanda alta e de certa forma “barulhen-
ta”, porém, desesperada pela cura, já que não suportam mais assistir o fim
da vida humana na mídia e na saúde pública. “É difícil deparar com a lista
das possíveis sequelas pós COVID-19, dentre elas: respiração compro-
metida, fibrose pulmonar, síndrome pós-UTI, “marco zero” – pulmão,
rins e coração, cérebro, sistema vascular” (BBC NEWS, 2020).
O grande desafio a ser superado além da descoberta da vacina e do
acesso a mesma está também em ampliar o atendimento as pessoas que
estão expostas de outras formas ao vírus. Neste sentido estamos falan-
do das comorbidades, daquelas pessoas que além do sofrimento ou do
temor da contaminação pelo vírus, possui doenças crônicas que geram
mais preocupação que as demais pessoas da comunidade, são eles: obesos,
hipertensos, cardiopatas, renais crônicos, pacientes oncológicos, pessoas
com doenças respiratórias e claro, os diabéticos, mais especificamente os
diabéticos mellitus tipo 1, objeto do nosso estudo.
Ao mencionar este público de risco, estamos falando de um gru-
po que se contaminados possui uma carga viral maior. Como o sistema
imunológico dessas pessoas enfrentaria novas doenças? Ainda não existem
respostas para esta pergunta, uma vez que o vírus ainda é pouco conhecido
para os pesquisadores e para os endocrinologistas, sobre seus reais efeitos e
complicações em pessoas com diabetes mellitus tipo 1. Mas vamos além,
e a saúde mental destes indivíduos está preparada para enfrentar a pan-
demia? A barulhenta do COVID-19 ou “apenas” a silenciosa do diabetes?
Qual destas tem trazido mais sofrimento?
Diante de todo esse contexto caótico vivido pelo mundo, o barulho
ou o silêncio muitas vezes não é o grande vilão de tudo mas o que pode ser
considerado sofrimento por muitos é a ausência de conhecimento técni-
co sobre o combate e o controle de um vírus que tem destruído muitas
famílias pelo seu efeito devastador e suas consequências inevitáveis que se

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instalam pós recuperação da doença ou em muitos casos levando muitas


pessoas a morte.
O medo aqui é pela ausência de informações concretas do que se
trata, de como manisfesta, das consequências reais ao organismo, de como
tratar, já que o que se tem de informações ainda são superficiais diante
dos resultados que serão deixados por esta pandemia a toda população
mundial.

2. DIABETES E SUAS COMPLICAÇÕES

Tenho diabetes e agora? Primeiro: Vamos conhecer a doença...


Diabetes é uma doença crônica caracterizada pela insuficiência de
produção de açúcar pelo pâncreas. Inicialmente esta doença foi dividida
em 02 grupos: tipo 1 e tipo 2. Aqui iremos abordar o Diabetes Mellitus
Tipo 1, que de acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes,

(...) é também conhecido como diabetes insulinodependente, dia-


betes infanto-juvenil e diabetes imunomediado. Neste tipo de dia-
betes a produção de insulina do pâncreas é insuficiente pois suas
células sofrem o que chamamos de destruição autoimune. Os por-
tadores de diabetes tipo 1 necessitam injeções diárias de insulina
para manterem a glicose no sangue em valores normais. Há risco
de vida se as doses de insulina não são dadas diariamente. O dia-
betes tipo 1 embora ocorra em qualquer idade é mais comum em
crianças, adolescentes ou adultos jovens. (SBD, 2020)

De acordo com Can J Diabetes, “a diabetes também tido como uma


doença silenciosa, por ser assintomática, e por não apresentar sinto-
matologia quando os pacientes descobrem que estão com a patolo-
gia, a situação já é considerada grave. Por ser uma doença crônica,
sem cura, apresenta várias complicações irreversíveis se não contro-
ladas de acordo com orientação médica. Essas complicações podem
ser micro ou macrovasculares, dependendo da lesão gerada ao or-
ganismo e de outros fatores biológicos. Quando microvasculares
(retinopatia, nefropatia e neuropatia diabética) e as macrovasculares
(acidente vascular cerebral e doença arterial periférica), e não menos
grave as hipoglicemias severas (CDA, 2013, p. 54)

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

As alterações macrovasculares, de acordo com o Caderno das Estra-


tégias para o cuidado da pessoa com doença crônica: diabetes mellitus do
Ministério da Saúde,

(...) a sintomatologia das três grandes manifestações cardiovascu-


lares – doença coronariana, doença cerebrovascular e doença vas-
cular periférica – é, em geral, semelhante em pacientes com e sem
diabetes. Contudo, alguns pontos merecem destaque: a angina de
peito e o infarto agudo do miocárdio podem ocorrer de forma atí-
pica na apresentação e na caracterização da dor (devido à presença
de neuropatia autonômica cardíaca do diabetes); as manifestações
cerebrais de hipoglicemia podem mimetizar ataques isquêmicos
transitórios e a evolução pós-infarto é pior nos pacientes com dia-
betes. (BRASIL, 2020a)

Já manifestações microvasculares são aquelas que podem manifestar


através de complicações relacionadas a visão, aos rins e ao sistema neuro-
lógico. De acordo com o Caderno das Estratégias para o cuidado da pes-
soa com doença crônica: diabetes mellitus do Ministério da Saúde,

(...) a retinopatia é assintomática nas suas fases iniciais, não sendo


possível detectá-la sem a realização de fundoscopia. Após 20 anos
do diagnóstico, quase todos os indivíduos com DM tipo 1 e mais
do que 60% daqueles com DM tipo 2 apresentam alguma forma
de retinopatia. Além da retinopatia e edema macular, outras doen-
ças oculares são encontradas com maior frequência no diabetes,
como a catarata e o glaucoma de ângulo aberto. (BRASIL, 2020a)

A nefropatia diabética, segundo Gross:

“trata de uma das complicações microvasculares do diabetes é ca-


racterizada pela morte por uremia ou ainda por demais problemas
cardiovasculares associados. A nefropatia pode ser dividida em três
fases, dentre elas: normoalbuminúria, microalbuminúria (ou ne-
fropatia incipiente) e macroalbuminúria (nefropatia clínica ou es-
tabelecida ou proteinúria clínica) de acordo com valores crescentes
de excreção urinária de albumina” (GROSS, 2003).

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E por último e não menos importante, a neuropatia diabética, carac-


teriza-se por uma complicação com sintomas e queixas variadas, dependen-
do das fibras nervosas acometidas, sejam elas: sensoriais, motoras ou ainda
autonômicas e por vezes associada a condição emocional do paciente.
Outro grande gargalo junto ao diabetes são as manifestações de
cunho emocional, relacionada as limitações de diversas ordens, as restri-
ções alimentares, a necessidade de monitoramento contínuo de glicemias
e de uso de medicamentos injetáveis, as frustrações pela complexidade
de alcançar as metas de hemoglobina glicada, a discriminação cotidiana
no ambiente social, no mercado de trabalho e até mesmo no ambiente
familiar extensivo, tudo isso faz com que a doença se torne ainda mais
“pesada” para o paciente.
A necessidade diária dos pacientes diabéticos em sua amplitude, além
do acesso aos medicamentos, aos insumos e até mesmo um tratamento
condigno é sobretudo o respeito pela pessoa antes do respeito pela doença.
Aliviar a dificuldade de lidar com a patologia não se trata de saber como
será aceito o tratamento ou será administrado pelo paciente, isso é insigni-
ficante, mas vai muito mais além da conduta médica e dos demais profis-
sionais de saúde, trata-se de compreender a complexidade e as limitações
do paciente com estratégias para promoção não somente do bem-estar
físico, mas o mental e o social. Isso que estamos falando é humanização,
é deixar de lado o egoísmo humano para enxergarmos o paciente como
SER HUMANO.
A diabetes não tem sido “pesada” no contexto de pandemia, o que
tem se mostrado assustador, temeroso, sofrido, é a ausência de bom senso,
de conhecimento crítico, de inteligência emocional, sobre a irrelevância
da vida, o descompromisso com as pessoas que não querem morrer, que
estão se esforçando para conter uma doença que tem sido catastrófica.

3. RELATO DE EXPERIÊNCIA: O QUE TEM CAUSADO


MAIOR SOFRIMENTO AS PESSOAS COM DIABETES
FRENTE AO RISCO DA CONTAMINAÇÃO AO
CORONAVÍRUS?

Em vários lugares do mundo foram estabelecidas várias medidas de


proteção sanitária para controle e diminuição da disseminação do corona-

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

vírus. Tudo iniciou em dezembro de 2019 em Wahan, na China, e depois


o aumento assustador da doença transformou algo que parecia pontual em
uma grande pandemia, que já sacrificou milhares de vidas pela ausência
de um tratamento, de uma medicação que pudesse impedir a proliferação
de tal vírus.
O mundo todo vivendo em um caos na saúde pública e privada, as
pessoas implorando para viver, os telejornais cheios de manchetes sobre o
mesmo assunto: o número de contaminados, o número de mortes e a tão
desejada imunização para a COVID-19.
Enquanto isso em vários municípios do Brasil foi decretado o toque
de recolher, com objetivo desesperador de reduzir a contaminação e o
número de mortes que dia a dia aumentava. Houve suspensão de voos,
de eventos, uso obrigatório de máscaras de proteção e álcool em gel, sus-
pensão de aulas e de todo tipo de aglomeração, uma verdadeira corrida
pela vida.
Mas foi exatamente isso que aconteceu com 100% da população
mundial? A resposta é terrível, mas infelizmente é NÃO.... Diante
desse “não” é que falaremos sobre o que tem causado maior sofri-
mento as pessoas com diabetes frente ao risco de contaminação ao
coronavírus.
Sou diabética mellitus tipo 1, há 33 anos, tenho a diabetes como uma
companhia de vida toda e por esta razão, no momento de grande reper-
cussão pandêmica em que estamos vivendo, não me preocupa as minhas
limitações de diversas ordens, as restrições alimentares, a necessidade de
um controle rigoroso ou até mesmo o uso de medicamentos injetáveis ou
de sistema de infusão contínuo; o que tem me preocupado, ou melhor,
trazido mais sofrimento frente ao risco de contaminação ao coronavírus
é a falta de humanidade das pessoas, a ausência de amor a vida, o desres-
peito ao grupo de risco de forma escancarada muitas vezes pelos próprios
integrantes familiares.
É lamentável a relativização da vida, isso tem matado muito mais do
que o descontrole do diabetes frente ao medo da contaminação do coro-
navírus. A saúde mental está apodrecida diante de tanto descaso sobre a
possibilidade de contágio eminente do grupo de risco, o temor eminente
é da ignorância alheia sobre o valor da vida.

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4. O GRANDE DESAFIO NO COMBATE AO CONTÁGIO


DA PANDEMIA BARULHENTA E A PREVENÇÃO A
PANDEMIA SILENCIOSA.

É preciso primeiramente compreender o motivo da diabetes estar in-


serida no grupo de risco para contaminação da COVID-19, uma vez que
esse grupo ao contrair o vírus, os sintomas e as complicações tendem a ser
mais severos em relação as demais pessoas que não tenham diabetes, ou
seja, a carga viral de quem tem diabetes é maior que a carga viral de um
paciente sem a doença, uma vez que, o controle glicêmico é o maior vilão.
O sistema imune do indivíduo combate uma infecção de acordo com
a quantidade de glicose sanguínea, já que a mesma em excesso compro-
mete os vasos sanguíneos, impedindo a chegada das células de defesa, e
facilitando a entrada de bactérias. Por isso a importância do diabético con-
trolar sua glicemia, quanto mais controlado maior a capacidade de defesa
do organismo humano.
Para manter uma glicemia adequada é primordial a realização con-
stante de atividade física e alimentação equilibrada, ocorre que com a che-
gada da pandemia, as atividades físicas acabaram ficando mais restritas,
havendo necessidade de criar outras alternativas para colocar o organismo
dos diabéticos em movimento, evitando o contato social e consequente-
mente a possibilidade de contaminação do vírus.
Com a pandemia surgiram vários problemas agregados que afetaram
indiretamente os diabéticos, tais como: a ansiedade diante do risco de
contaminação, o medo de não sobreviver a contaminação, o stress com a
consequente alteração no controle glicêmico, o isolamento social para se
proteger e para proteger seus contatos.
Como as pessoas com diabetes fazem parte do grupo de risco, foi de-
terminado pela maioria dos órgãos públicos e privados do mundo o isola-
mento deste grupo, para não haver riscos de contaminação. Diante disso,
várias pessoas foram isoladas em seus lares, colocadas em teletrabalho a
fim de protegê-las de complicações em sua saúde; porém o que ocorre
é que muitas pessoas que temem por suas vidas e que fazem parte deste
grupo não vivem sozinhas, residem com pais, irmãos, cônjuges, familiares
que não tiveram o isolamento assegurado por não ser grupo de risco.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

De que adianta o diabético realizar todas as formas de prevenção: la-


var as mãos com água e sabão; utilizar álcool em gel na impossibilidade
da primeira opção; usar máscaras de proteção; não sair de casa em cum-
primento ao isolamento social, se os seus contatos estão em atividades
laborativas em regime de trabalho normal?
Não se trata de isolar o paciente, mas protegê-lo de acordo com o
meio social em que está inserido. Diante disso, o que temos para o mo-
mento são diabéticos apreensivos e tementes a contaminação com risco
de descompensação glicêmica frente a preocupação do contexto em que
está inserido e contatos totalmente sem condições de contribuir para a
proteção de seus familiares, uma vez que dependem do emprego para con-
tribuir com a renda familiar.
De um lado diabéticos tentam controlar a glicemia mesmo diante de
todo contexto de adversidades mentais e de outro lado está o medo de
contaminação. A realidade deste diapasão está para uma pandemia baru-
lhenta que assusta todos os dias toda a população mundial que luta dia-
riamente pela sobrevivência e de outro lado uma pandemia silenciosa que
existe há anos no mundo todo e que atualmente tem sido vencida pelo
“barulho”. O fato é que não sabemos onde isso vai parar e muito menos
qual maior desafio a ser superado: do barulho ou do silêncio.

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Manter o controle de qualquer doença crônica exige muita disciplina,


e quando há influência direta do estado emocional diante do temor a con-
taminação de um vírus desconhecido para toda população mundial, como
é o caso do coronavírus, a situação é ainda pior.
Não se trata de uma epidemia emergente, mas de uma pandemia
instalada a nível mundial, com pesquisadores a procura de medicamen-
tos e imunização capaz de suprimir um vírus que já ceifou várias vidas.
Uma vez que essa situação caótica da pandemia tem incidido sobre a saúde
mental e social de toda a população e das pessoas com diabetes.
É notório o descaso, o desrespeito pelo próximo, a ausência de cuida-
do pela vida humana em se tratando de sobrevivência. As pessoas não tem
dado importância e gravidade em tal pandemia, estamos vivendo as ma-
zelas da saúde pública com pessoas politizadas desconsiderando a maligni-

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dade da COVID-19, enquanto outros tem lutado com todas as armas para
permanecer respirando, lutando por mais um dia de vida. A pandemia,
diante de todos as questões relevantes que nos trouxe, ela também pode
colaborar para que em um futuro próximo haja um aperfeiçoamento da
práxis profissional em situações de colapso e emergência de complexidade
mundial, é o que esperamos depois de tanta indiferença pelo princípio da
dignidade da pessoa humana.
É preciso termos mecanismos de combate tanto para a pandemia
barulhenta quanto para a pandemia silenciosa, uma vez que ambas causam
óbitos de várias pessoas que estiveram constantemente lutando de forma
intermitente pela vida. O Poder Público precisa exercer seu papel de ga-
rantidor do mínimo aos direitos humanos e aos direitos fundamentais, no
sentido de oferecer a população brasileira condições dignas de sobrevi-
vência, seja atravês de políticas públicas que atendam as necessidades po-
pulacionais, sejam através de estratégias de intervenção emergencias que
tragam resolutividade as questões que envolvem a manutenção da vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BBC News. Coronavírus: A longa lista de possíveis sequelas da Co-


vid-19. 12 ago. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemes-
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tamento de Atenção Básica. Estratégias para o cuidado da pes-
soa com doença crônica: diabetes mellitus / Ministério da Saúde,
Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica.
– Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

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VID-19). Ministério da Saúde, 2020b.

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GROSS, J.L; COESTER, A; SILVEIRO, S. Pinho; MURUSSI, M. Diabe-


tic nephropathy in type 2 diabetes mellitus: risk factors and prevention.
In: Arq Bras Endocrinol Metab. São Paulo, v. 47, n. 3, p. 207-219,
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SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA (SBD).


Tipos de Diabetes. São Paulo, SP. Disponível em: <https://www.
diabetes.org.br/publico/diabetes-tipo-1/66-tudo-sobre-diabetes/
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44
QUE TOQUEM OS SINOS: A
QUESTÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DO
AUTISMO NO BRASIL NO ÂMBITO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE
Alcione do Socorro Andrade Costa3

Introdução:

Em 2002, na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial


em Porto Alegre - RS, José Saramago enviou um texto intitulado “Da
Justiça à Democracia passando pelo sino”4. A narrativa inicia com um fato
acorrido em uma pequena aldeia no interior de Florença, há mais de 400
anos. Trata-se do tocar melancólico de finado que com pesar, atravessou
o cotidiano da aldeia e a vida dos aldeões, que perturbados com aquele
anúncio, dirigiram-se a pequena igreja no intuito de buscarem respos-
ta, pois não era conhecido que ninguém estivesse doente a ponto de ser
levado à óbito. Ao chegarem na igreja os aldeões depararam-se ao invés
do sineiro, com um camponês, que bradou: “Não morreu ninguém que
tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça, porque a Jus-
tiça está morta”. A fala, além da indignação, refletiu a vulnerabilidade do
camponês, que como tantos foi expropriado de suas terras e que mesmo

3 Bacharel em Ciências Sociais, licenciada plena em Sociologia, mestre em Antropologia e


Doutoranda em Políticas Públicas (UFMA), professora EBTT (IFMA).
4 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u29003.shtml>. Acesso
em: 03 de setembro de 2019.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

queixando-se as autoridades, se viu no desalento do silêncio, sendo o tocar


do sino, seu único recurso para tornar público e inteligível sua dor.
Na continuidade, chama atenção o caráter aberto da narrativa deixada
por Saramago, quando este afirma não saber o que sucedeu depois, se o
braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas no seu sitio ou
se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regres-
saram resignados, de cabeça baixa e sucumbida à triste vida de todos os
dias... E, é desse hiato, dessa suspeição narrativa que me aproprio para dis-
cutir a questão da esfera pública e privada no contexto de lutas por direitos
à saúde, a partir do fenômeno da Judicialização do autismo no Brasil no
âmbito das Políticas Públicas de Saúde. Trata-se nesse sentido de uma in-
vestigação de caráter dedutivo, a partir de pesquisa exploratória com base
em material bibliográfico e documental e tem por objetivo problematizar
o fenômeno da Judicialização, questionando-o no sentido de saber se o é a
materialização de um problema de base das Políticas Públicas de Saúde ou
um mecanismo de correção das mesmas.

1. A questão da esfera pública e privada como


categorias-chaves para a compreensão do fenômeno
da Judicialização da Saúde.

Início essa discussão com Hanna Arendt (1983) que viveu a experiên-
cia de duas grandes Guerras Mundiais e que a partir disso, analisou o de-
senvolvimento histórico da Democracia Ocidental, buscando compreen-
der o fenômeno do totalitarismo europeu, para tanto, voltou-se para o
estudo histórico da Polis Grega em contraponto a Polis Romana a fim de
compreender o comportamento dos cidadãos no exercício da vida públi-
ca. E, a partir do modelo grego, buscar a origem histórica do pensamento
Europeu sobre os conceitos de “público” e “privado”.
Para os gregos a esfera da vida privada e da vida pública era bem de-
limitado. A esfera privada era a representação do reino de violência, onde
o patriarca exercia poderes despóticos, a partir da relação de subordinação
construída pela necessidade de sobrevivência e a esfera pública, o reino da
liberdade, que se exercia a partir da ação e do discurso, pois era o espaço
em que o homem já tinha atravessado o reino das necessidades. Desta for-
ma, Arendt (1983), identifica a esfera pública como o espaço do convívio

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comunitário, onde os cidadãos livres se encontravam para compartilhar,


valorizar e transformar a cultura, os esportes, a guerra e as opiniões. Nesse
ambiente, a liberdade e a igualdade entre os integrantes eram os pressu-
postos básicos, condições para realização da política em seu sentido mais
amplo de discussão e de disputa. Diferente da Pólis Romana, onde essa
distinção era embotada, pois o espaço público era um espaço de domina-
ção do poder imperial sobre os cidadãos e restante dos súditos do Império
Romano.
Na continuidade do percurso histórico, na passagem da sociedade
feudal para a sociedade moderna, Arendt (IBDT), encontra o elemen-
to central, capaz de explicar a emergência do fenômeno do totalitarismo,
mas principalmente o problema que perpassa toda questão das sociedades
modernas - O surgimento da sociedade de massa, marcada pela absorção
dos diversos grupos em única sociedade. A sociedade de massa cria uma
série de problemas, onde cita-se como principais: a conquista da esfe-
ra pública reduzida as diferenças de questões privadas dos indivíduos e
o desenvolvimento de uma postura conformista em detrimento da ação
e do discurso. A modernidade de certa maneira, inaugura uma terceira
esfera, chamada de social por Arendt (1983), a qual caracteriza-se pela
impessoalidade, ausência de relação dialógica e predomínio da satisfação
econômica. Trata-se nesse sentido, descrito pela autora da falência do po-
lítico pelo social.
Dialogando com Arendt, mas a partir de um recorte interpretativo
diferente, Habermas (1997) descreve e identifica, que desde o período
feudal, tinha-se os embriões da Esfera Pública que se desenvolveram na
era moderna com a burguesia, visto que, a emergência da sociedade civil
está ligada à reunião de pessoas privadas para formar um público com o
objetivo de debater questões do Estado, dentre outros. Assim, pode dizer
que, o modo de vida da burguesia favoreceu o debate de ideias, pois valo-
rizava as capacidades intelectuais por oposição às condições de nascimen-
to. E, com o advento do Estado Absolutista e com o desenvolvimento do
capitalismo, a esfera pública burguesa se transformou em um ambiente de
resistência à autoridade pública estatal. Assim, a sociedade civil se fortale-
ceu e protagonizou uma tensão entre a cidade e a corte; o privado versus o
público. Os cidadãos buscavam esclarecimento sobre temas antes restritos
ao Estado e à Igreja e fizeram circular suas opiniões, criando meios de

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publicidade como folhetins e pequenos jornais. Um dos temas reivindi-


cados pela burguesia foi o acesso à política. Com o exercício da discussão
de ideias, a esfera pública adquiriu a função de legitimação da lei, ou seja,
estabeleceu o vínculo entre as normas ditadas pela autoridade estatal e a
opinião pública.
Habermas (1997) reconhece assim, a formação da esfera pública bur-
guesa como uma instância mantenedora dos interesses coletivos, mas que
só estava aberta à participação dos cidadãos que possuíam propriedades e
esclarecimento: Os burgueses. Por isso, esse ambiente se tornou sujeito
aos interesses dessa classe. Apesar das contradições no seio da Esfera Pú-
blica, Habermas (IBDT), compreende esse espaço como lugar onde a ex-
pressão e ação comunicativa podiam favorecer uma consciência coletiva,
capaz de possibilitar uma existência solidária, não coercitiva, libertadora
e igualitária entre os homens, por isso tomo-a como espaço de discussão,
fundamentado na capacidade de confrontar argumentos racionais com a
opinião baseada na razão.
No enquadramento habesiano, a soberania do povo em sociedades
complexas passa a ser compreendida como um processo prático de argu-
mentação, fruto da interceptação e sobreposição de discursos. No entan-
to, não pode se impor apenas por discursos públicos informais. Para gerar
poder político, a influência dos cidadãos teria que produzir efeitos nas
deliberações democráticas, assumindo uma forma autorizada. O público,
portanto, depende de garantias provindas pelo Estado para exercer sua li-
berdade comunicativa. Necessita de condições de participação igualitária
em processos legislativos democráticos (participação em partidos políti-
cos e a possibilidade de votações na tomada de decisões das instituições
parlamentares). As preferências dos cidadãos e a possibilidade de escolha
não são estáticas, mas constantemente modificadas pelo debate público ou
processo político, por isso Habermas defende que somente o poder gerado
comunicativamente é capaz de se legitimar.
Observamos que há tanto, em Habermas quanto em Arendt, uma vi-
são idealizada da participação política do cidadão na vida pública, pois am-
bos desconsideram os processos internos de luta e a exclusão da maioria da
população da esfera pública, assim como os recortes de classe. Entretanto,
o importante na teoria desses autores é a centralidade que o conceito de
sociedade civil assume na discussão. Em Hanna Arendt (apud AGUIAR,

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2004, p.13) a sociedade civil tem por característica ser o prolongamento


do Estado Natural, do Reino da sobrevivência. Ou seja, a sociedade civil
transforma-se em expressão da “opinião pública”, que na modernidade
assume o caráter de mudeza e anonimato, pois há uma clivagem entre po-
der e legitimação da política a partir de interesses privados. Já em Haber-
mas (1997), a sociedade civil compõe-se de “movimentos, organizações e
associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas
esferas privadas e os transmitem para a esfera pública política” (HABER-
MAS,1997, p.99).
Por uma perspectiva analítica diferente, Noberto Bobbio (1997), par-
te da analise marxista de que a sociedade civil deve ser compreendida sob
a ótica da economia política, pois não pode ser desvinculada da questão do
Estado e da forma de Estado que a fundou historicamente. Assim, trata-se
de situar a sociedade civil como produto artificial das transformações so-
ciais, cujas marcas históricas se dá na passagem da dissolução da concepção
individualista da sociedade e do Estado, para uma concepção Orgânica;
onde temos as seguintes etapas:1) o contratualismo; 2) o homo oeconomicus
(perseguindo seus próprios interesses) e 3) a ética objetivista (que coloca
a questão de resolver o problema tradicional do bem comum na soma
dos bens individuais). Esses processos de transformações sócio-políticas
criam uma relação no campo dos direitos, classificados por Bobbio (apud
HAMMEL, 2010, p.150) em quatro fases: Direitos civis ou negativos,
Direitos Políticos (sec. XIX), Direitos Econômicos e Sociais (sec. XX)
e Direitos de Solidariedade. E esse panorama da “geração de direitos”,
criaram um campo que colocam as constituições republicanas ora como
“lócus” da própria realização da cidadania, ora como arena.
Interpretamos que mesmo que por caminhos analíticos diferentes,
tanto Arendt, quanto Habermas e Bobbio, constroem uma leitura da
realidade social em que a questão das representações e das reivindicações
sociais frente ao Estado Moderno - a questão posta nesta introdução pelo
desalento do camponês ao ressoar o sino - está diretamente ligado a dis-
cussão dos direitos constitucionais. isto porque, o Estado Moderno na sua
forma Constitucional nasce com o compromisso com a lei, com o código,
com a necessidade de segurança Jurídica, com a soberania e a autonomia
da vontade, com a separação, a harmonia e o controle dos poderes.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

E, no que se refere a questão brasileira, a Constituição de 1988 é o


marco da expressão jurídica, política e social da esfera pública, que garante
os direitos e deveres dos cidadãos e eleva a sociedade civil a condição de
corresponsável e coparticipe nos processos de construção de uma atuação
efetiva e qualificada no desenvolvimento de Políticas Públicas, sendo essas
compreendidas como

[...]ação do Estado na mediação de interesses e do poder de dife-


rentes sujeitos, o que implica vontade política no sentido de dis-
tribuir ou não o poder e de estender os benefícios sociais. Através
dessas políticas ocorre a intervenção ou a abstenção de intervenção
do Estado na realidade. Sendo ações governamentais, as políticas
públicas se constituem em um processo social, histórico, inacaba-
do e complexo. Tal processo é composto de etapas, interdepen-
dentes e articuladas, distinguidas mais para efeito de compreen-
são e análise. É um processo político, no qual diferentes sujeitos
negociam, estabelecem ou desfazem coalizões e participam dele
de modo e em momentos diferenciados (Disponível em:<http://
www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/
viewFile/3696/1708>. Acessado em 02 de agosto de 2019.)

As Políticas Públicas marcam o surgimento do modelo Estado de


Bem Estar Social, que segundo Wacheleski (2007, p.37-40) retira o poder
público da passividade e passa a exigir sua atuação direta na promoção da
igualdade de oportunidade de todos no acesso a políticas sociais e eco-
nômicas em contraposição ao modelo do liberalismo ortodoxo e, gera a
necessidade de construção de mecanismos de garantia de sua efetividade
como aqueles existentes no projeto de Estado liberal. Na falha dessa efeti-
vidade o sistema jurídico inflaciona-se, no fenômeno de judicialização da
política (HAMMEL, 2010, p.151), pois “expectativas de direitos deslizam
para o interior do Poder Judiciário, que se torna o muro das lamentações
do mundo moderno” (VIANNA; BURGOS; SALLES, 2015, p. 40).
Na judicialização é objetiva e clara a manifestação do Poder Judiciário
no cumprimento da promessa da Democracia do Estado Constitucional e
a partir disso, insere-se essa esfera de Poder, no debate público e na agenda
de Politicas Públicas, criando um hiato complexo, pois assumi demandas

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de caráter politico e social, que estão na órbita da representação, da discus-


são na esfera pública e da agenda de Políticas Públicas, as quais se expres-
sam a partir de circuitos (SCCHI, 2010):

Figura 1: Circuito de Políticas Públicas

Fonte: Montagem da autora.

Na judicialização temos uma quebra desse ciclo, conforme pode ver


no quadro abaixo.

Figura 2. Quebra do Ciclo de Politicas Pública.

Fonte: BARREIRO; FURTADO, 2015, p. 302.

51
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

A implementação forçada se dá partir de uma relação entre a reserva


do possível confrontada diretamente com o mínimo existencial (o míni-
mo necessário a manutenção da dignidade da pessoa humana). Em ou-
tras palavras, entre uma relação de reserva orçamentaria que pressupõe
a racionalização de gastos do Estado com os direitos sociais e aquilo que
é exigido como o mínimo a dignidade humana (CANOTILHO,2010).
E nesse sentido, que questionamos: A judicialização é um problema
de base da própria Política Pública de Saúde, que desconsiderou os custos
da implementação do Direitos à Saúde expresso na Constituinte e seus
impactos na alocação de recursos no âmbito da seguridade socia ou é uma
correção? É possível que esse fenômeno a uma particularização de inte-
resses ou uma individualização do caráter público, na medida em que se
impõe “escolhas dramáticas” que têm de um lado a escassez ou ausência
de recursos e de outro lado a crescente demanda por serviços públicos que
ficará a cargo de decisões judiciais? Como se expressa nesse lócus a cons-
tituição de novos modos de pensar e elaborar a Política Pública, a partir da
consideração do contraditório e das diferenças?
Em torno desses questionamentos que buscaremos analisar a relação
da Esfera Pública e Privada tendo como objeto de análise o fenômeno da
Judicialização da Saúde, mais especificamente as discussões em torno da
questão do autismo.

2. Autismos: da Clínica à questão das Políticas Públicas


de Saúde:

Antes de abordarmos a especificidade do autismo, precisamos pensar


a cidadania na relação Estado/Sociedade, para tanto é relevante compreen-
der a constituição dos sujeitos coletivos, que se realiza a partir de movi-
mentos sociais. No caso do autismo, devemos considerá-lo vinculado ao
Movimento Sanitarista, que dá origem ao Direito a Saúde na Década de
70 e a própria criação do Sistema Único de Saúde-SUS, a Luta Antimani-
comial e o Movimento pelos Direitos das Pessoas com Deficiência.
É importante destacar a importância desses Movimentos Sociais,
como fundamentais para o processo de democratização do país, pois
introduziram segundo Marilena Chauí

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1.a ideia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos


direitos liberais e civis; 2. afirmação da capacidade auto-organiza-
tiva da sociedade; 3. introdução da prática da democracia partici-
pativa como condição da democracia representativa a ser efetivada
pelos partidos políticos, sindicatos, associações, etc. que ocupavam
a esfera de mediação entre a sociedade civil e o Estado

(Disponível em: < http://nupsi.org/wp-content/uploads/2013/08/


Marilena_Chaui-As_manifestacoes_paulistanas_de_2013-futu-
ro_da_invencao_democratica.pdf>. Acessado em 02 de agos.. de
2019).

Observamos, que a emergência de um Movimento Social marca uma


esfera de conflito e a presença de desigualdades, que no caso das pessoas
com deficiências não são produtos do mero acaso ou simples questão de
destino. São decorrentes, fundamentalmente, de outras desigualdades que
a sociedade brasileira foi incapaz de corrigir e que se perpetuaram no curso
do tempo por limitações históricas relacionadas ao preconceito e à into-
lerância.
Na deficiência mental, essa experiência é mais violenta, porque, por
trás, há uma engrenagem de destituição da condição de pessoa. O indexa-
dor “loucura” é ferramenta de eliminação do sujeito, conforme prova-se
em “Holocausto Brasileiro: Vida e Genocídio de 60 mil no maior hospí-
cio do Brasil” (ARBEX, 2013), que apresenta descrição documental de
toda ordem de violação de Direitos Humanos, com origem entre 1903 e
1980, no Manicômio da cidade de Barbacena-MG.
O holocausto de Barbacena inflacionou as críticas ao aparato manico-
mial, definido não apenas como a estrutura física do hospício,

mas como o conjunto de saberes e práticas, científicas, sociais, le-


gislativas e jurídicas, que fundamentam a existência de um lugar de
isolamento, segregação e patologização da experiência humana”
(BARBOSA, 2014 p.44 apud AMARANTE, 2007, p.56).

O resultado do acirramento dessa desaprovação foi traduzida no Mo-


vimento de Luta Antimanicomial, que compeliu ao Movimento de Re-
forma Psiquiátrica Brasileira (MRPB) em 1987, a idealização de teias de

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

atenção em saúde mental, aberta e competente para oferecer atendimento


aos problemas de saúde mental da população de todas as faixas etárias e
apoio às famílias, promovendo autonomia, descronificação e desinstitu-
cionalização, a partir de uma rede de cuidados, articuladas a serviços das
áreas de ação social, cidadania, cultura, educação, trabalho e renda.
A Luta Antimanicomial e o MRPB trouxeram a possibilidade de
ressignificação social da loucura e o desafio de rever os paradigmas das
Políticas Públicas que, até então, deram base às práticas assistenciais no
campo da Psiquiatria, introduzindo o modelo de atenção psicossocial
que pressupõe uma nova forma de conceituar seu objeto de intervenção,
de novas configurações da organização institucional, da composição das
equipes multiprofissionais e da relação com os usuários dos serviços de
Saúde Mental.
Segundo Ana Maria Pitta (2011), o ápice desse movimento foi a
criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dos Serviços Re-
sidenciais Terapêuticos (SRT) e do Auxílio de Reabilitação Psicossocial
“De volta pra casa”. Mas que, no entanto, pós-aprovação da Lei Federal
10.216/2001, que consolida a esfera do Estado como campo de pleito dos
Movimentos Sociais envolvidos na luta pela Reforma e a regulamenta-
ção para implantação de serviços substitutivos de assistência a pessoas com
transtornos mentais, se observou a fragmentação do movimento, em fun-
ção da absorção de lideranças de lutas em cargos públicos e o desgaste ge-
rado por grupos e facções que se anulam na ação política comum e a inser-
ção de demandas complexas como usuários de álcool e drogas no sistema.
Marcos Santos e Mônica Nunes (2011), a exemplo da realidade de
Salvador - BA, destacam em sua pesquisa a ausência de literatura e estudos
voltados para a análise dos aspectos sociológicos da experiência dos usuá-
rios em relação aos serviços oferecidos pelos CAPS. Nessa pesquisa, há
presente uma lógica dedutiva, em oposição a uma relação estruturada pe-
las relações e vivências do sujeito com o seu espaço. Trata-se da descrição
de uma estrutura que ainda não conseguiu realizar o ideário da reforma e
ainda reproduz de certa forma a lógica da destituição do deficiente mental
de sua condição de sujeito, na medida em que os CAPS/BA não dialogam
com o espaço e com a territorialidade em que estão inseridos. Há, ainda,
carência do desenvolvimento de uma prática que não aliene o sujeito em
relação ao meio em que vive, mas contribua para situá-lo, de maneira

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crítica e transformadora, construindo tecnologias de cuidados que façam


sentido dentro dos sistemas que os indivíduos estão inseridos.
Os dados dos CAPS de Salvador não são uma exclusividade, mas sim
de esfera comum no Brasil, pois como observa Ana Maria Pitta (2011) se
de um lado existe uma unidade discursiva contra o modelo hospitalocên-
trico, por outro observa-se a disputa pelo monopólio do campo da saúde
mental, que mantém suas tensões e dinâmica, que vão desde os problemas
estruturais dos espaços físicos de atendimentos até disputa de saberes, con-
flitos organizacionais, onde estão presentes a assimetria entre funcionários
terceirizados e concursados nessas redes de atendimento.
Em 2013, esse processo de ulceração pós-reforma psiquiátrica teve
suas feridas expostas com a publicação do manifesto do “Movimento Psi-
canálise, Autismo e Saúde Pública -MPASP” de 12 de abril de 20135, que
denunciou ações de exclusão de práticas psicanalíticas da esfera das políti-
cas públicas para o atendimento de pessoas com Transtorno do Espectro
Autista -TEA e seus familiares. O manifesto carrega uma carga simbólica
e reflexiva importante, pois o “marco inaugural” de cuidado foi o CAPS
Luiz Cerqueira, que nasce em 1987, baseado em uma clínica psicanalítica
e no uso racional dos psicofármacos e nas práticas de inclusão social.
Em linhas gerais, o MPASP denuncia o cerceamento das liberda-
des individuais e o achatamento do sujeito a partir da supervalorização
de práticas terapêuticas baseada na medicalização e nas terapias de base
comportamental, como caminho único e exclusivo. Trata-se nesse sen-
tido de ação de nulidade da perspectiva de “sofrimento psíquico” ou de
“pessoa com sofrimentos psíquico”. Esse processo de achatamento do
Sujeito, dentro da dinâmica dos CAPS e das Políticas Públicas do Siste-
ma Único de Saúde -SUS, está imbricado em um processo maior, uma
espécie de reengenharia social, desenhada pelo Manual Diagnóstico e Es-
tatístico de Transtorno Mentais (DSM), que a partir de 1980 introduziu
nova roupagem as doenças mentais, sob os auspícios de uma Psiquiatria
Biológica, altamente influenciada pela venda e descoberta dos ansiolíticos.
As doenças mentais passaram a ser transtornos mentais de base biológica,
especificamente, uma desordem em neurotransmissores. Nesse contexto,

5 Disponível em: <https://psicanaliseautismoesaudepublica.wordpress.com/manifesto/>.


Acessado em 14 de nov. 2017.

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destaca-se a retirada de termos psicanalíticos do DSM III e a consolidação


de sua exclusão com a publicação do DSM V, publicado em 2012.
Ter o diagnóstico de autismo atualmente implica inclusão em um
campo de disputa que Eric Laurent (2014) define como uma batalha, a
qual vai da clínica à política, e para tal cita a França, que em janeiro de
2012, elege-o como a “Grande causa Nacional”. A batalha do autismo re-
mete ao modo como partidários de uma linha cientificista querem instru-
mentalizar os resultados obtidos pela biologia e pela genética em estudos
sobre o autismo, para invalidar qualquer abordagem relacional inspiradas
na psicanálise e na dimensão de sofrimento psíquico.
A disputa biopolítica sobre o campo produz efeitos diretamente nas
Políticas Públicas, nos movimentos sociais, mas principalmente na vida
das pessoas e familiares que recebem o diagnóstico de autismo. Por exem-
plo, a edição do DSM IV para o DSM V, dada a sua nosologia aberta e
flexível, trouxe uma série de repercussões negativas, principalmente na
vida de crianças que passam a ser tachadas tendenciosamente por esses
critérios. “A psicanalista denuncia uma realidade, na qual o aumento de
supostos casos de TEA é alarmante, passando 4,4/10.000, entre 1966 e
1991, para 12,7/10.000, entre 1992 e 2001” (UNTOIGLICH, 2014,
p.14). Em São Luís - MA, os Movimentos de pais de pessoas portadoras
de TEA, dentre os quais cita-se: Pró-TEA, Autismo São Luís, AMA-MA
e Ilha Azul, baseados nesses números, falam de epidemia de autismo e
apresentaram em Audiência Pública em 2014, como principal reivindi-
cação ao Estado, um Centro Especializado e Exclusivo para portadores
de TEA com terapêuticas baseadas no Protocolo DAN e em psicoterapia
em Análise do Comportamento Aplicada (ABA sigla em inglês). O Pro-
tocolo DAN ou Defeat Autism Now (DAN)6, em português “Derrote o
Autismo Já”, é um protocolo de diversas ações para o tratamento do au-
tismo através de métodos diferentes dos abordados pela neurologia atual,
através da biomedicina. Esse movimento iniciou-se nos Estados Unidos,
pelo Instituto de Pesquisas sobre Autismo (ARI, na sigla em inglês), fun-
dado em 1967 pelo médico e cientista PhD Bernard Rimland, autoridade
no assunto e pai de um garoto com autismo. Uma das principais ações é
a  dieta  totalmente isenta de duas proteínas:  glúten  e  caseína, conhecida

6 Informações retiradas da reportagem disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Re-


vista/Epoca/0,,EDR77644-8055,00.html>. Acesso em: 17 nov. de 2017.

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como Dieta SGSC (sem glúten e sem caseína). Esse Movimento chega à


São Luís - MA em 2014, a partir das associações de pais PRÓ-TEA. Há
baseada nessa perspectiva processos judiciais contra o Estado para garantia
de fórmulas especiais a fim de oferecer alimentação sem o uso de leite,
soja e glúten. Isso é possível graças à Lei nº 12.764 de 27 de dezembro de
2012, conhecida como Lei “Berenice Piana” e às Diretrizes de Atenção à
Reabilitação da Pessoa com TEA, na rede SUS de 2013 e 2014.
A aprovação da Lei Berenice Piana, é resultado de uma articulação
nacional de familiares e amigos de pessoas com autismo e teve impactos
principalmente na área da educação e saúde. No âmbito do SUS, a criação
de uma dicotomia, expressa na orientação de cuidados e na fundamenta-
ção de diretrizes que orientam o atendimento de pessoas com autismo,
conforme analisa Lucas Silva (2016) em sua dissertação.

A principal dissonância constatada circula em torno da dicotomia


entre os documentos “Linha de cuidado para a atenção às pessoas
com Transtornos do Espectro do Autismo e suas famílias na Rede
de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde” (BRASIL,
2013) e “Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com
Transtornos do Espectro do Autismo (TEA)” (BRASIL, 2014a).
Para o primeiro documento o Autismo é tomado como um Trans-
torno Mental, devendo ser tratado na RAPS em constante articu-
lação com os demais pontos da Rede, incluindo nesse ínterim a
Estratégia Saúde da Família. O segundo filia o autismo às deficiên-
cias, em consonância à Lei 12.764 de 2012, onde o autista é con-
siderado pessoa com deficiência para fins de lei. Nesse sentido, pa-
rece se repetir um paradigma histórico em torno do autismo, pois
é reatualizado constantemente o antigo debate em torno da idiotia
versus loucura presente nos séculos XVIII e XIX. Constata o es-
tudo que o próprio Ministério da Saúde não possui uma postura
definitiva no que tange ao autismo, pois ora é uma mental disability,
ora é um transtorno mental. A investigação salienta que esse para-
digma paira sobre a Saúde Pública, pois os arranjos organizativos
da Rede SUS sofrem um impacto e dessa forma, o cuidado a essas
pessoas passa a se configurar no eixo de uma suposta reabilitação.
Questões subjetivas são impossibilitadas de emergirem na RAS,
culminando na impossibilidade de inserção do sujeito autista na

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rede, bem como a impossibilidade de garantia de direitos no cam-


po da Saúde Pública e Saúde Mental (SILVA, 2016, p.07).

Bruno de Oliveira (et al. 2017) desenvolvendo a mesma discussão, toma


essa dicotomia como materialização do enfrentamento tardio do autismo e
aponta para existência de dois grupos de disputas: o grupo de trabalhadores
do campo da Atenção Psicossocial e o grupo de pais, que pela via de asso-
ciações e pelo intercâmbio com modelos estrangeiros desenvolveram suas
próprias frentes e, as reivindicam na esfera pública pelo direito a saúde.
Assim os documentos “Linha de cuidado para a atenção às pessoas com
Transtornos do Espectro do Autismo e suas famílias na Rede de Atenção
Psicossocial do Sistema Único de Saúde” (BRASIL, 2013) e “Diretrizes de
Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo
(TEA)” (BRASIL, 2014), são expressões desse campo de disputa. Bruno
de Oliveira (et al. 2017) e em síntese apresentam as seguintes divergências.

Figura 3. Quadro de síntese de Divergência entre os documentos:


Diretriz Linha de cuidados
Rede de cuidados Rede de Cuidados à Pessoa Rede de Atenção
central com Deficiência Psicossocial
Abordagem das Abordagem direta e Abordagem ampla
diretrizes objetiva (foco nos critérios (aspectos éticos, políticos,
mais técnicos) teóricos, clínicos e etc.)
Consulta Pública Não Sim
Defesa de Direitos Legislação sobre Deficiência Legislação de Saúde
Mental e legislação sobre
Deficiência
Diretrizes Apresentação objetiva, de Apresentação ampliada;
diagnósticas caráter técnico apresentação dos vetores
culturais, éticos e políticos
envolvidos no processo
Diretrizes para o Ênfase nas estratégias de Ampliação dos laços sociais
Cuidado habilitação e reabilitação, possíveis a cada usuário;
visando ao desenvolvimento apresentação de diversas
de habilidades funcionais técnicas e métodos clínicos
Organização da Fluxo predefinido Rede ampliada
Rede
Fonte: OLIVEIRA (et al, 2017, p. 720).

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Observamos que tanto Oliveira (et al 2017), quanto Silva (2016) ao


analisarem os documentos, encontram neles o reconhecimento da ne-
cessidade de estimulo a autonomia e ao desenvolvimento da pessoa com
autismo, entretanto, não há critérios ou formas de aplicação, ao mesmo
tempo em que está ausente o caráter contextual de relação política e social
da pessoa com autismo em relação a esfera social e pública.
E no que se refere a luta empreendida pelos pais a partir de 2012,
em fóruns e audiências públicas, Clarisse Rios e Camargo Junior (2019),
observam o desenvolvimento de uma rede de expertise (à grosso modo,
especialista em autismos) em torno do autismo.

Essa rede de expertise, liderada especialmente por associações de


pais, vem mobilizando o conhecimento científico produzido em
outros países como bandeira política para a reivindicação de tra-
tamento especializado. Isso significa, paradoxalmente, desatrelar a
existência de uma extensa rede de tratamento especializado da-
quela de expertise e ainda assim afirmar a centralidade das deman-
das por esse tipo de tratamento para a consolidação dessa rede de
expertise e de uma identidade social e política para o autismo no
Brasil (RIOS; JUNIOR, 2019, p.113)

O desatrelamento buscado pelo movimento de pais, traz em seu bojo


um aspecto político do autismo que é a bioidentidade, a qual está sen-
do construída a partir de um conjunto de ações, “[...]que marca a passa-
gem de um processo de desinstitucionalização do transtorno mental para
uma produção em massa de “crianças atípicas” (RIOS;JUNIOR, 2019,
p.114). Assim o Transtorno do Espectro Autista, desde a edição do DSM
IV passou a ser um grande “guarda-chuva”, em que qualquer “desvio”
passa a ser autismo; ao mesmo tempo em que modelos específicos e espe-
cializados de terapêuticas passam a ser demandados. E desta, forma temos
a o risco de redução do sujeito ao seu diagnóstico e a sua exclusão social
e política, principalmente porque esses grupos são os que vão tensionar
o Estado de forma individualizada a partir do processo de Judicialização,
onde cito como exemplo a questão do acesso à medicações proveniente do
princípio ativo do Canabidiol, onde uma petição pública pode chegar no

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

valor de cem mil para paciente autista, portadora de epilepsia7. Esse não
é um processo isolado, faz parte de uma demanda que vem sendo cons-
truída por médicos especialista e pais que buscam qualidade de vida para
seus filhos. Entretanto, é importante notar que ainda não existem estudos
conclusivos sobre a medicação, pois não é possível avaliar dentre outras
coisas a eficácia e os efeitos colaterais do uso da medicação a longo prazo,
pois seu uso é recente e as pesquisas em torno do Canabidiol ainda não são
definitivas.
Além do caráter inconclusivo sobre os efeitos dessa medicação é pre-
ciso reconhecer a existência de indústrias farmacêuticas altamente espe-
cializadas que lucram com esses processos judiciais e os impactos que isso
tem na rede de cuidados, por exemplo:

O estado de São Paulo gasta mais de R$ 1 bilhão ao ano por força


de condenações judiciais em matéria de Saúde Pública, de acor-
do com dados da Procuradoria-Geral do Estado. União, estados
e municípios, somados, gastam R$ 7 bilhões ao ano para cumprir
decisões judiciais, segundo o Ministério da Saúde.

De acordo com análise do Tribunal de Contas da União, a judi-


cialização da saúde provoca a realocação emergencial de recursos,
descontinua o tratamento de pacientes regulares, ameaça os ges-
tores pelo eventual descumprimento das decisões judiciais e torna
possível que os laboratórios aumentem os preços de medicamentos
na hipótese de aquisição emergencial, sem licitação, para o cum-
primento das decisões judiciais. (Disponível em: <https://www.
conjur.com.br/2018-ago-15/judicializacao-saude-juizes-passam-
-ditar-politicas-publicas-setor>. Acessado em 04 de out. de 2019)

No caso do Canabidiol, o mesmo princípio ativo pode ser encontrado


em óleo fornecido gratuitamente ou por um baixo custo pela Associação
Brasileira de Apoio Cannabis Esperança.
Entretanto, como um juiz poderá negar o pedido de uma medicação
de cem mil se não tem condições técnicas para problematizar a questão?

7 Disponível em: <jota.info/wp-content/uploads/2019/03/d506c93e311138d23244476d972a-


4d0a.pdf>. Acessado em 02 de out. de 2019.

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E considerando a reserva do mínimo necessário, como avaliar os impactos


dessa decisão no contexto orçamentário geral da saúde?
Algumas resposta estão sendo construídas desde de 2017 em São Pau-
lo, e se trata de esforço de integrar informações e ações como da Secretaria
Estadual de Saúde, Tribunal de Justiça, Defensoria Pública e Ministério
Público para desjudicializar casos desnecessários a partir do programa
“Acessa SUS”, que tem “o objetivo de garantir a população, cobertura de
medicamentos e tratamentos antes que cheguem à mesa do juiz (Dispo-
nível em: < https://www.conjur.com.br/2018-ago-15/judicializacao-sau-
de-juizes-passam-ditar-politicas-publicas-setor>. Acessado em 04 de out.
de 2019). Essa experiência vem se mostrado bem-sucedida e aponta para
a questão que a judicialização da saúde, não dá conta de corrigir problemas
que estão no âmbito das Politicas Públicas de Saúde.

3. Que Toquem os Sinos: Considerações finais sobre a


questão da Judicialização do Autismo.

Antes de considerarmos o fenômeno da Judicialização da saúde é pre-


ciso compreender que a forma jurídica é uma expressão especifica de nor-
matização da vida social e que emerge de uma relação histórica, a partir
de uma relação de conflito, de um tipo especifico de capitalismo e de
sociabilidade burguesa. Essa compreensão, Pachukanis8, estabelece o vín-
culo interno entre direito e capitalismo, esboçada por Marx e Engels, que
apontaram que a superação do feudalismo e a consolidação da sociedade
burguesa havia implicado no processo de passagem de uma concepção
teológica de mundo para uma “concepção jurídica de mundo”. Isto por-
que, as relações de mercado que consolidam o capitalismo, assumem a
vida social a partir de um regime imperativo e revestido de uma relação de
fetiche em que o Estado aparece como “neutro” ou “autônomo” além de
ser ele que permite a existência de elementos essenciais do direito moder-
no como a igualdade jurídica, o que eficientemente dissimula a natureza
de classe do Estado.

8 Disponível em: <file:///C:/Users/user/Desktop/My%20Kindle%20Content/Mercado_de-


mocracia_e_fetichismo_juridico.pdf>. Acessado em 10 de agos. de 2019.

61
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Essa natureza de classe esta expressa no processo de judicializa-


ção do autismo, quando consideramos o trabalho de Clarisse Rios e
Camargo Junior (2019) ou quando fazemos uma busca sobre petições
em torno da questão do direito à saúde de pessoas com autismo e,
neles vamos encontrar demandas por tratamento especializado, en-
quanto temos uma população de rua, oriundas das classes populares e
trabalhadoras que sem acesso a saúde são abandonadas ou trancafiadas
em casa. À essa população a judicialização é quase inexistente (faze-
mos essa afirmação baseada em pesquisa preliminar e na experiência
com movimentos sociais de pais de pessoas com autismo em São Luís
-MA), porque esse fenômeno é oriundo de um nível de especialização
que supõe conhecimento e acesso à justiça.
Observamos que compreendemos tal qual Clarisse Rios e Camargo
Junior (2019), Eric Lauret (2014) a importância e a consolidação de uma
rede de expertise em torno do autismo no Brasil, mas isso não significa di-
zer que se trata de uma resposta ideal de atendimento para uma população
cronicamente desassistida, pois é preciso considerar e resgatar a partir da
esfera pública, a pluralidade e diversidade de olhares sobre a questão do
autismo no Brasil, pois
a expansão diagnóstica desordenada e a medicalização dessa popu-
lação, principalmente da criança autista, levou a criação do Movimento
pela Neurodiversidade, organizados por autistas de alta funcionalidade,
que consideram o autismo não como “uma doença” a ser tratada, mas
como uma forma de ser no mundo e que a política de diagnóstico cada
vez mais precoce e o uso de medicamentos experimentais poderiam levar
a quadro de eugenia sobre essa população.
Portanto, consideramos que a judicialização do autismo, resolve ape-
nas questões imediatas, da ordem do que na clínica psicanalítica se chama
de “sintoma” e na linguagem médica comorbidade associadas (epilepsia,
comportamento disruptivo etc.), mas não pode ser considerada uma cor-
reção do Circuito da Politica Pública, porque suprime a Esfera Pública
e as relações de conflitos societais e de classe subjacente na discussão, ao
mesmo tempo que ignora a produção de um modelo de bioidentidade e
biosociabilidade. Precisamos tocar o sino, recompor a narrativa da pessoa
autista, é preciso que o braço popular recomponha as estremas desse sujei-

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to e que coloque a questão esse seu devido lugar: No âmbito coletivo das
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65
JUSTIÇA REPUBLICANA E BIOÉTICA
NA TEORIA POLÍTICA DE PHILIP
PETTIT
Vitória Valentini Marques9

INTRODUÇÃO

O presente trabalho discorre sobre a bioética, saúde, justiça e suas


implicações dentro do sistema democrático brasileiro, abarcando os im-
pactos éticos-sociais e econômicos encontrados pela relação entre justiça e
bioética, assentada nas teorias de Phillip Petit, Engelhardt Jr., Peter Singer
e Beauchamp, T.L. & Childress, J.F.
Nesse diapasão, os direitos essenciais e necessários à sociedade, através
de uma ótica mais justa e igualitária, a fim de garantir o acesso à saúde e à
justiça social à toda população.
Ademais, ao estudar os autores supracitados, fora encontrado um elo
entre suas teorias, qual seja, a justiça. Essa, por sua vez, tem um papel
importante entre todas as discussões abordadas no presente trabalho, pois
sem ela as medidas sociais de implementação ao acesso à saúde, tornam-se
irrisórias e escusáveis à sociedade.
Posto isso, o trabalho abarcará a singularidade ética, a revolução tec-
nológica da medicina e as mudanças morais encontradas na sociedade atual

9 Acadêmica de direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná- Campus Londrina, bol-


sista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC 2019-2020 e 2020-
2021.

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relacionando-as à assistência à saúde minimamente decente. Desta forma,


os textos transpassam e discutem sob aspectos econômicos, éticos-sociais
e filosóficos complementando-se, a fim de encontrar um denominador
comum entre os setores sociais.
Por fim, analisará como inserir pessoas com deficiências –aparentes
ou não– na sociedade, com justiça e igualdade, sem que haja discrimina-
ção, garantindo-lhes acessibilidade, empatia e acesso à saúde, respaldado
nas diretrizes da Constituição Federal Brasileira de 1988. Relacionando,
assim, o tema da justiça com a bioética, para inquirir sobre a adoção de
política de distribuição de bens e saúde aos cidadãos.
A partir dessa análise, considerando o cenário político que vivencia-
mos, é de suma importância fomentar a discussão acerca dessa perspectiva
apresentada. Posto isso, se faz imprescindível o estudo sobre os conceitos
de justiça social, democracia e bioética, a fim de compreender como o
Estado deve prover mecanismos necessários para se obter de forma mais
ampla a justiça entre a sociedade.
A pesquisa realiza-se primariamente, pela análise das concepções de
liberdade e democracia defendidas por Philip Pettit nas obras On the peo-
ple’s terms e Just Freedom e a busca pelo referencial teórico nas obras
anteriores e elementares do desenvolvimento da perspectiva neorrepubli-
cana, realizando uma comparação entre as interpretações e as críticas ao
modelo republicano de democracia.
Ainda, de forma complementar, a pesquisa efetivou-se através de um
corpus diversas bibliografias: artigos, documentos, e livros. Realizam-se
encontros com o professor-orientador para a discussão da pesquisa, assim
como são usados meios virtuais de comunicação para supervisionar e agi-
lizar o andamento dos trabalhos.

1. ANÁLISE DAS CONCEPÇÕES DE LIBERDADE E


DEMOCRACIA

As desigualdades sociais afloram debates a respeito da justiça social


no mundo todo, dentre elas encontra-se a desigualdade no acesso à saúde.
Esta, por sua vez, se faz presente em discussões em todos os âmbitos so-
ciais, desde as comunidades menos capacitadas intelectualmente, como na
esfera mais intelectual da sociedade.

67
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Deste modo, o autor Philip Pettit aborda as questões da bioética atra-


vés da sua análise de justiça, tentando abarcar e solucionar, de certa forma,
as injustiças encontradas no mundo. Junto dele, encontram-se diversos
autores os quais discutem métodos para conseguir proporcionar o acesso
à saúde de forma digna e proporcional para todos. Contudo, encontram
diversas frustações no percurso, sejam eles de desigualdades éticas, morais,
religiosas ou de cunho econômico.
Á luz do exposto, pode-se perceber uma relação de proximidade
entre saúde, direito, bioética, economia e filosofia. A primeira, no Brasil,
vivenciou uma época marcante, na década de 80, e através do controle
social, criou conselhos de saúde enquanto representação popular no
controle do estado. Assim, a Constituição de 88 apresentou e defendeu os
direitos sociais até ali impostos. No entanto, ainda enfrentamos problemas
com a efetividade dessas leis, ou melhor, com a sua real aplicação
(SPOZATI & LOBO, 1992).
Já o tema direito, desde a promulgação da Constituição de 1988,
onde a democratização se fez mais latente, apresenta projetos de leis a fim
de proporcionar assistência à saúde digna a todos os cidadãos. Entretanto,
este esbarra no problema econômico, devido ao aumento das despesas pú-
blicas respectivo às implantações dos serviços sociais.
Desta feita, economistas e juristas, procuram maneiras mais equita-
tivas e distributivas que necessitam de um gasto menos elevado, ou seja,
procuram e estudam fenômenos sociais, através da ótica da justiça, ana-
lisando grupos economicamente diferentes buscando um denominador
comum quanto à distribuição de saúde.
John Rawls, em seu livro “A Theory of Justice”, sugere que a igual-
dade pode se fundamentar nas características naturais dos seres humanos,
desde que seja relacionada ao que ele chama de “propriedade de âmbito”,
ou seja, para John Rawls, uma pessoa moral deve ser constituída de um
senso de justiça. Sendo assim, para o autor, a moral constitui a base da
igualdade humana.
Ademais, no livro “Ética Prática”, Peter Singer discute sobre o juízo
ético, que diz respeito sobre analisar além de um ponto de vista pessoal
ou grupal, e levar em consideração os interesses de todos os que forem
por eles afetados. Desse modo, conclui-se que a igualdade é um princípio
ético básico e não uma assertiva factual. Feito esta abordagem, Peter Sin-

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ger discorre sobre o tema da justiça, igualdade e bioética baseando-se no


princípio da igual consideração dos interesses.
O princípio supracitado, exclui uma sociedade escravagista baseada
na inteligência, bem como as formas mais grosseiras de racismo e sexismo,
excluindo, também, a discriminação quanto a incapacidade, seja ela, inte-
lectual ou física. Desta feita, o autor, apresenta que a igual consideração é
um princípio mínimo ao passo que não impõe um tratamento igual.
Ademais, Engelhardt Jr., em seu livro, “Fundamentos da Bioética”
traz os impactos da saúde e economia, integrando a ideia do Estado so-
cial juntamente com a revolução tecnológica da medicina. Assim, diversos
países procuraram ofertar os diversos serviços sociais, como o da assistên-
cia à saúde, sendo este de mais fácil acesso e gratuito.
Contudo, a disponibilidade desses serviços sociais, alavancaram uma
série de despesas públicas, o que acabou por aguçar um “boom” econômi-
co. Junto a isso, a revolução tecnológica da medicina, trouxe uma neces-
sidade de utilização de equipamentos cada vez mais sofisticados. Tal fato,
fez com que os gastos estatais aumentassem radicalmente.
Postas estas premissas, o autor pondera, ainda, a intervenção pública
e o acesso à saúde, apresentando custos, benefícios e eficácias dentro da
sociedade, discutindo os recursos financeiros e seus gastos sobre a ótica da
responsabilidade individual e coletiva sobre a assistência à saúde.
Trouxe também, a visão de Horkheimer sobre a “sociedade adminis-
trada”, onde mostra que a saúde corre o risco de ficar submetida à econo-
mia, ou seja, tornando-se uma “indústria da saúde”.

A organização socioeconômica contemporânea tende cada vez


mais para o domínio técnico do mundo, para o controle da maté-
ria, a fim de satisfazer as necessidades e exigências de segurança do
homem, organizando a produção de modo férreo e introduzindo
uma disciplina cada vez maior nos movimentos do homem que
produz e do homem que consome. (BAUSOLA A., 1977, p. 290)

Conforme o exposto, os autores Peter Singer e Engelhardt Jr. cotejam


da mesma visão sobre a igualdade e suas implicações no âmbito da saúde e
economia, como dissertarei a posteriori.

69
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Isto posto, Engelhardt Jr em seu livro “Fundamentos da Bioética”, ca-


pítulo 8, correlaciona o direito à assistência médica e à justiça social apresen-
tando uma ideologia da assistência igual e ideal, apontando quatro objetivos,
os quais são difundidos, entretanto, divergentes entre si. Pois, para o autor o
sistema de assistência à saúde deverá reconhecer limitações morais e finan-
ceiras, ou seja, aceitar que há desigualdade no acesso e na distribuição dessa
assistência. Tendo, dessa maneira, que encontrar um denominador comum,
o qual racionará a assistência e incluirá o maior número de pessoas.
Apresenta, pois, que o direito à assistência à saúde, não é um direito
inato aos homens, sendo assim, necessita-se ser criado. Assim, analoga-
mente à promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual torna-se
expresso em seu artigo 196 o acesso à saúde como um direito de todos,
evidenciando a união entre os direitos sociais e os bioéticos.
Destarte, o autor discorre sobre a política de assistência à saúde, com
base na ideologia de que essa assistência deverá ser igual e ideal. Abarcan-
do em seu texto, as diferenças sociais de cunho econômico e diferindo as
macroalocações das microalocações, bem como a inevitabilidade moral de
um sistema de assistência à saúde de várias camadas.
Assim, resta evidente que os projetos sociais, por ele descritos, são
estabelecidos para aliviar alguns medos dos indivíduos relativos à incapa-
cidade e o sofrimento que as enfermidades possibilitam. Trazendo, pois, à
discussão uma prática médica sadia, a qual se baseia em princípios morais.
Concernente ao exposto, no capítulo 6 denominado “Justiça”, no li-
vro “Princípios da ética biomédica”, Beauchamp aborda a justiça, discu-
tindo ainda, o direito à assistência médica, comparando-o ao acesso rea-
lizado de forma igualitária e o direito a um mínimo digno dessa assistência.
Trouxe à luz da discussão o fato de a desigualdade ser considerado um
problema moral, sendo o princípio da justiça formal ser comum à todas
as teorias da justiça. Assim, citando Aristóteles estabeleceu a ideia de que
os iguais devem ser tratados de modo igual, e não iguais de modo não
igual, atravancando em um problema, uma ausência de conteúdo, qual
seja, como será definido a igualdade, quem é igual e quem, não é?
Por fim, abarcou o direito a um mínimo digno de assistência médica
trazendo à ótica da justiça distributiva, o qual recai sobre a distribuição
da saúde ao empasse da distribuição de equipamentos médicos, ou seja, o
impacto econômico que essa justiça distributiva acarretaria.

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Desse ponto de vista, o autor desenrolou sobre a abrangência do di-


reito dessa assistência médica, com base em duas premissas, a do direito ao
acesso igual à assistência médica e a do direito a um nível mínimo digno
de assistência médica, sendo ambas, igualitárias.
O direito a um nível mínimo digno sugere, entretanto, não obriga
que este venha por parte do governo, sendo assim, evidencia que a obriga-
ção social deverá ser cumprida em diversos níveis.
Por último, encontra-se em diversos textos disseminação desse di-
reito à saúde e suas maneiras e entraves encontrados na sociedade. Anali-
sa-se a Constituição de 1988 através de um olhar empático, humanitário
e igualitário, a fim de se encontrar saídas possíveis para a manutenção e
distribuição do direito.
Desta forma, ao estudar as bibliografias encontradas no decorrer do
presente trabalho, nota-se que o controle social é um dos campos que mais
proporcionou visibilidade aos movimentos de saúde, abarcando o direito
em si e a sua real distribuição. Portanto, na atual conjuntura democrática,
as leis amparam a participação da população nas políticas de saúde e são, a
princípio, defensoras dos direitos sociais.
Contudo, ainda há um entrave, qual seja, o momento e como fazer
com que as políticas públicas, leis e filosofias deixem de ser instrumentos
formais e passem a produzir efeitos, efetivamente, proporcionando uma
igual distribuição de saúde a população.
Nesse diapasão, todos os autores convergem para a necessidade de um
sistema abrangente e coerente. Trazem argumentos como a divisão e sele-
ção de grupos para analisar e entender como proceder com a distribuição,
procurando sanar todas as necessidades e anseios populacionais quanto à
assistência à saúde.
Por conseguinte, esbarramos no conceito basilar do presente trabalho,
a justiça republicana e a ótica bioética, atravessando discussões nos diversos
campos como o direito, a sociologia, a política, a economia e a filosofia, sem-
pre com o intuito de conseguir uma maior abrangência e melhores resultados.

2. A IDEIA DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E EQUITATIVA

A priori vale lembrar que Pettit conceitua a justiça republicana com


base na premissa da liberdade como não dominação. Nesse sentido, o Es-

71
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

tado precisa tratar os cidadãos como iguais, de forma que os benefícios


disponibilizados, segundo essa concepção de justiça, sejam respaldados no
igualitarismo. “Meu interesse na concepção republicana de liberdade de-
corre da esperança de que ela possa articular de forma persuasiva o que um
Estado deve tentar alcançar e que forma deve assumir no mundo contem-
porâneo.” (PETTIT, 1997, p.129)
De acordo com Pettit, o objeto da teoria da justiça procura qual valor
deve ser buscado do ponto de vista igualitário e como o Estado irá prover
esse tratamento igualitário.
Assim, Pettit e os demais autores já citados no decorrer deste trabalho,
convergem para um ideal de justiça distributiva e equitativa, buscando
maneiras igualitárias de se distribuir bens e assistência aos direitos garan-
tidos por lei aos cidadãos.
Desta feita, Pettit aborda a diferença entre a justiça horizontal e verti-
cal, as quais juntas formam a justiça republicana por ele estudada.

Justiça em um sentido estrito – isto é, justiça social – é a virtude


de uma estrutura nacional ou doméstica na qual as relações ente os
indivíduos estão submetidos a uma ordem social justa, que garanta
os recursos e proteções de cidadãos igualmente livres. Democracia
é a virtude de uma estrutura nacional na qual as relações entre os
indivíduos e o Estado que impõe uma ordem social são submetidas
a uma ordem política justa, na qual os indivíduos compartilham
um controle igualitário do Estado e gozam de igual liberdade na
qualidade de mestres. (PETTIT, 2014, p. xxiv-xxv,).

Conforme o supracitado, as desigualdades no acesso à assistência à


saúde e aos seguros-saúde geram discussões em todo o mundo, debaten-
do a respeito da justiça social. Trazem, também, à luz da discussão, o
conceito de Estado social e evidenciam as diferenças entre determinados
grupos e o efetivo aumento de gastos para se obter uma distribuição mais
equitativa possível.
Assim, correlacionam o tema de assistência à saúde com a justiça e a
bioética, explicando como a intervenção pública deveria ser feita e como
essa gestão encabeçaria o processo de distribuição.

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Peter Singer, em seu livro “Ética Prática”, mais precisamente no ca-


pítulo “2- A igualdade e suas implicações”, aborda o princípio da igual
consideração de interesses, comparando diversas formas de diferenças, se-
jam elas, raciais, econômicas, de inteligência – QI – ou sobre pessoas com
deficiências.
Através dessa perspectiva, o autor ressalta que em nossa sociedade
as grandes diferenças de renda e status social são vistas com naturalidade.
Explica essa perspectiva através de uma ótica meritocrática, ou seja, uma
pessoa X recebe duzentos mil reais enquanto a pessoa Y recebe vinte mil
reais. De fato, o autor explica que não seria injusto essa diferença salarial
desde que a pessoa Y tenha tido a possibilidade, de forma igual a de X,
para estar no mesmo patamar do que ele.
Contudo, ao observarmos rapidamente e superficialmente a socieda-
de democrática em que vivemos, resta evidente que as pessoas, por exem-
plo X e Y, não têm as mesmas oportunidades, não partindo assim de um
mesmo nível estrutural. E, consequentemente, não se faz possível atingi-
rem um mesmo resultado se sua estruturação e oportunidade são díspares.
Outrossim, o direito à assistência à saúde é considerado um direito
recente e criado pelo homem para o homem. Então, a sua distribuição
deverá ser pautada no avanço tecnológico da medicina, nos impactos eco-
nômicos e nas possíveis frustrações caso não haja a distribuição devida e
equitativa.
Posto isto, Pettit afirma que para usufruir dessa liberdade como não
dominação de forma igualitária, as pessoas necessitam ter acesso à nutri-
ção, abrigo, saúde, tratamento médico e apoio contra deficiências, bem
como a representação judicial. (PETTIT, 2014).
Deste modo, ao analisar o tema, notamos que para a sua real aplicação
a justiça republicana, deve ser unificada à bioética e ao direito. A filosofia,
por sua vez, tem um papel extremamente importante, qual seja, o de ex-
plicar as teorias da justiça, evidenciar, apontar e elucidar problemas sociais
implícitos na sociedade.
O acesso à saúde torna-se ainda mais distante e complexo quando se
refere às pessoas com deficiências, sejam elas visíveis – como deficiências fí-
sicas – ou invisíveis – como deficiências intelectuais, em diferentes níveis -.
Nesse vértice, a inclusão de pessoas deficientes vem se desenvolvendo em
passos curtos e lentos, entretanto, após a criação do ECA (Estatuto da Criança

73
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

e do Adolescente) e de instituições destinadas à pesquisa e auxílio aos mais


necessitados, como as Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) a
possibilidade de acesso mais adequado vem se tornando mais possível.
Assim, as questões subjacentes à justiça social apresentadas pela
bioética, fundamentam-se numa bioética não mais restrita à dimensão
biomédica, mas que assimila o mundo da vida em sua dimensão social,
econômica, política e cultural. Sendo assim, inserido na bioética social
(FULGÊNCIO, 2013).
Portanto, a inserção de pessoas deficientes no ambiente democrático
ainda se faz muito escassa. O direito e a humanização das leis e da socieda-
de sofre com a falta de informação e a disseminação das informações que
se têm. Desse modo, os autores apresentam uma visão de que os interesses
das pessoas com deficiências não devem ser tratados com menos conside-
ração do que os de quem quer que seja.
Como, em alguns aspectos, os deficientes são diferentes, deixamos
de ver o tratamento diferenciado como uma forma de discriminação. É
fato que negligenciamos o tratamento diferenciado, ou seja, tornou-se ir-
relevante a inaptidão do deficiente para se ter tratamentos divergentes,
tornando ainda mais desfavorável. (SINGER, 1998)
Posto isto, a discussão sobre a inserção dos deficientes, em todos
os âmbitos sociais, em específico na assistência à saúde se faz necessá-
rio, apontando as reais diferenças e dificuldades no acesso e distribuição,
apontando quais recursos deverão ser expandidos e mais desenvolvidos,
ocasionando um maior gasto econômico.
Sempre, analisando a sociedade sobre uma visão humanitária e bus-
cando a igualdade entre os cidadãos, a fim de encontrar um ponto de
equilíbrio o qual proporcionará uma estruturação social e de saúde signi-
ficativa e eficiente a todos.

3. A DISTRIBUIÇÃO DA SAÚDE PELA ÓTICA DA


JUSTIÇA

De toda sorte podemos conceituar a exclusão como uma realidade


dinâmica, que oscila entre a trajetória das pessoas bem como, com os pro-
cessos de construção social dos direitos e deveres.

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Assim, a título de elucidação colaciono trechos da Constituição Fe-


deral de 1988, a qual apresenta princípios fundamentais dignos e equita-
tivos, com o intuito de sanar a exclusão social, nos setores sociais, econô-
micos e legais.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federa-


tiva do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,


sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o


trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distri-


to Federal e dos Municípios:

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das


pessoas portadoras de deficiência;

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido


mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitá-
rio às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
(grifo nosso)

Dessa forma, o direito à saúde é resguardado pela Constituição Fe-


deral e deveria ser ofertado de forma igual e essencial a todos os cidadãos,
entretanto, como analisamos, a assistência à saúde vem sofrendo com a
dificuldade de distribuição devido ao aumento significativo nas despesas
estatais.
Assim, conforme já estudado, o aumento econômico gerou uma ideia
distributiva, baseando-se nas diferenças e igualdades encontradas entre so-
ciedades. Deste modo, a distribuição de recursos se tornou mais específica
e mais dividida, ou seja, estudiosos analisam sociedades e as possibilidades
de distribuição, observando os aspectos positivos e negativos e quais serão
os problemas e implicações dessa disposição.

75
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Engelhardt Jr analisou o impacto econômico sobre o estado social


devido a revolução tecnológica da medicina, e através de seu estudo, con-
cluímos que para que se tenha uma distribuição real e equitativa do direito
à saúde, os gastos e estudos deverão ser analisados em pequenos grupos,
convergindo direitos, deveres e necessidades desse grupo, a fim de enten-
der como deverá ser manipulado a estruturação e a futura distribuição.
Dentro da ótica estudada, notamos que os deficientes ainda se encon-
tram à mercê da sociedade, melhor dizendo, são colocados como segundo
plano, não sendo o foco das discussões, o que acaba por ocasionar pouco
subsídio para a disseminação desse direito.
Sabemos que o direito à saúde fora criado com a Constituição Federal
dentro do macrossistema denominado Seguridade Social. Caracterizado
como direito fundamental, o direito à saúde fora concretizado através do
Sistema Único de saúde (SUS), baseado no princípio da igualdade, do
acesso universal e da integralidade. (WERNER, 2017)
Ao se considerar saúde como direito social fundamental, o Estado se
obriga a prestações positivas e a formular políticas públicas sociais e eco-
nômicas destinadas a promoção do direito.
Nesse aspecto, o Estado torna-se o responsável por gerar acessibilida-
de à população o acesso à assistência à saúde. Esta, por sua vez, é caracteri-
zada não pela ausência de doença, mas sim, pelo bem-estar físico, mental
e social do homem.
Há, portanto, uma discussão quanto à roupagem adequada a ser pro-
duzida quanto à distribuição do direito à saúde. Esta deveria ser disse-
minada pelo Estado para todos, entretanto a ideia de justiça social se faz
muito distante de todos.
As desigualdades sociais assolam diversos países, em especial no Brasil,
encontramos um alto índice de discrepâncias sociais, econômicas, étnicas
e culturais, as quais complexam a formatação da necessidade do direito à
saúde de forma igualitária.
Devido às diferenças sociais, setores mais afortunados não se dispo-
nibilizam para sanar essas diferenças, ou seja, tendem-se a manterem-se
inertes à situação.
Assim, ao o direito a um mínimo digno de assistência médica deve ser
abarcado e destinado a receber recursos econômicos do governo. Sabe-se
que com o avanço tecnológico do mundo e em específico, da medicina,

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dificulta ainda mais a distribuição. Os subsídios governamentais tornam-


-se irrisórios perante a extrema necessidade social. Então, seria necessário
dividir a sociedade em camadas e grupos distintos para analisar quais gru-
pos necessitam de quais recursos e subsídios?
Ao ler as bibliografias, ficou evidente que estudiosos obtiveram uma
maior visão ao segregar, com fins de entendimento e de estudos, sobre as
reais necessidades de cada grupo. Dessa maneira, chegaram à conclusão
de que, sim, cada grupo necessita de algo em específico, e, também, con-
cluíram que alguns grupos demandavam de mais patrocínio econômico
que outros.
Deste modo, para proporcionar o direito à saúde, as sociedades devem
apontar suas reais necessidades aos seus governantes, apresentando difi-
culdades que encontram ao acesso desse direito, sejam eles econômicos,
infra-estruturais ou sociais.
A igualdade, vem ganhando força desde a Revolução Francesa, a qual
tinha por princípios a igualdade, fraternidade e liberdade. Imputaram a
este fato histórico o caráter de divisor entre a Idade Moderna e a Contem-
porânea, devido à radicalização política que o caracterizou.
Os três princípios base da Revolução Francesa, estão conectados
atualmente na disseminação dos direitos impostos por lei, assim o cerne
da discussão se encontra em como esses direitos deverão ser distribuídos.
Junto a isso, Pettit afirma que todos, com ênfase aos deficientes, têm direi-
to à saúde, educação, representação judicial, entre outros direitos.
Neste seguimento Peter Singer, busca solucionar a questão da distri-
buição criando um princípio de igualdade, qual seja, o princípio da igual
consideração dos interesses. Em fechamento, Peter aponta a dificuldade
da passagem de uma sociedade não tão desigual com uma redução nas
diferenças de renda, ou seja, propõe uma igualdade geral. Dessa forma,
garantiríamos que onde existam, diferenças gritantes, sejam elas raciais,
de gênero ou status, a parte menos favorecida não permaneça nesse polo.
Por fim, apresenta que a redução das desigualdades possa ser viole o
próprio princípio da igualdade, explicando, dar um tratamento preferen-
cial aos membros menos favorecidos.
Neste aspecto, a divisão social com objetivo de estudo, para entender
as reais necessidades, se faz muito pertinente, entretanto, seria justo fazer
essa distinção social?

77
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Partindo do pressuposto que a divisão de grupos e classes tem por


objetivo a diminuição da diferença entre eles, pode-se afirmas que sim,
seria justo, posto que o resultado proporcionaria uma diferença, um espa-
ço menor entre diferentes grupos, convergindo para um único patamar, o
patamar mais justo e igualitário.
Destarte, o direito à assistência à saúde deverá ser analisado dentro de
uma determinada roupagem social, analisando as necessidades do grupo
em estudo. Um olhar mais abrangente o qual, busca a não necessariedade
da divisão categórica, mas sim um ponto em comum para todas as neces-
sidades.
As necessidades de pessoas portadoras de deficiência são, sem
dúvida nenhuma, o ponto mais complicado de se encontrar um de-
nominador comum junto à pessoas sem necessidades especiais, posto
que há diversos tipos de deficiência e que cada uma delas demanda
de determinados atendimentos profissionais, desde educadores, as-
sistentes, à médicos e representantes judiciais, os quais buscam, ou
deveriam buscar, de forma associada a prevalência e execução dos
direitos por eles resguardados.
O ponto que gera uma discussão mais grosseira e dificultosa é o ponto
econômico. Este, por sua vez, esbarra em programas políticos, ao passo
que para proporcionar e disseminar o direito à saúde, o Estado deverá arcar
com boa parte, senão sua totalidade, de gastos e recursos financeiros.
Deste modo, o setor econômico sofrerá um grande impacto, a fim de
buscar o clímax da discussão que abranja todos e que necessite da menor
disponibilidade econômica possível.
O custo-benefício e a proporcionalidade de tratamento, deverá ser
analisada detalhadamente, levando em conta a possibilidade de surgimen-
to de problemas éticos, de conflito de valores. Nesse aspecto, a busca por
tratamentos mais humanitários e com maior relação humana gerará um
benefício econômico.
A medicina representa uma forma de solidariedade, sendo assim a
relação médico-paciente é vista como solidária quando vivida e sentida
por ambos os polos da relação. Por conseguinte, se faz necessário encon-
trar pontos de convergência entre valores éticos e metafísicos, conforme
afirma J. M. Domenach.

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Toda uma reflexão metafísica, que se desenvolverá longe das


moedas do tempo, enfrentará um dia a problemática científica.
Por isso, é necessário haver antes de mais nada uma filosofia, se se
deseja integrá-la um dia à ciência. Por isso é necessário vincular
a pesquisa social ao ser humano e não dissociar as duas coisas,
como foi feito até agora sobre o estímulo das ciências naturais. É
preciso pôr a ciência metafísica no meio do abismo constituído
pela consciência de si, único modo para ser decididamente mo-
derno, mesmo que se fuja a sedução da modernidade. (DOME-
NACH, 1983, p. 138-139)

Por fim, a distribuição do direito à saúde esbarra em um questiona-


mento social e econômico, o que traz diversos fatores sociais, culturais e
filosóficos para a discussão. A implementação desse direito em um deter-
minado nicho, depende não somente de sua política social, seja ela im-
plantada dentro de uma democracia ou não, depende também de fatores
econômicos e estruturais.
De toda sorte, estamos caminhando a alcançar a paridade de armas
entre interesses estatais e interesses sociais. Nesta vertente, fica claro que o
direito à saúde deveria ser um direito garantido e disponível para todos os
cidadãos, sejam eles economicamente mais favoráveis ou não, sejam eles
portadores de necessidades especiais ou não, sejam eles mulheres, crian-
ças, índios ou negros. O direito a saúde deveria, e espero que um dia seja,
um direito real, igual e de fácil acesso, sendo protegido independente de
sua condição social.
Dessa forma, conclui-se que ao se encontrar um correto procedimen-
to para a distribuição da assistência à saúde, sua aplicabilidade e posterior
execução, resultaria em uma sociedade democrática republicana, com os
ideais de liberdade conotada por Pettit, sobre a ligação entre o fato de ser
livre, e o fato de ser considerado responsável. Ainda não podem ser igno-
radas as dificuldades de sua implementação, a caminho de uma sociedade
mais consciente e igual, que repercute dentro da atual sociedade como um
coletivo.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante todo o exposto, se fez possível estabelecer de forma clara e ob-


jetiva que a liberdade dentro de uma justiça republicana e aplicação dessa,
no segmento da bioética, em específico no segmento da assistência à saúde
nos trouxe uma visão de que o direito à assistência médica é considerado
um direito de extrema necessidade mas de difícil acesso e disseminação.
A difusão desse direito esbarra em problemas éticos, sociais e estru-
turais da sociedade. Trazendo à luz pontos específicos de quedem ser es-
tudados. A assistência médica para pessoas com dificuldades especiais, se
mostra necessária e ainda mais, complexa, se comparada ao acesso à saúde
de forma geral.
O direito fundamental tratado no decorrer do presente trabalho, evi-
dencia que, de várias formas, a justiça e a bioética se correlacionam com
demais ciências, como a filosofia e a economia. Dessa forma, nos mostra
que para se encontrar um elo entre todos, se faz necessário uma análise
pontual e delicada, desde os princípios sociais presentes na sociedade em
que se deseja implantar o acesso, até a disponibilidade de gastos.
Em especial, no tratamento com pessoas com necessidades especiais,
o estudo da discriminação e da liberdade como forma de não dominação,
como Pettit aborda, é de extrema importância, devido ao fato de que a
divisão social baseada em aspectos físicos, étnicos, de gênero, são caracte-
rísticas discriminatórias. E dessa forma, procurar uma forma de se atender
todos de forma igual e ideal, é a longa luta dos governantes e da população.
Por fim, ficou evidenciado que estamos buscando a paridade de armas
entre os interesses sociais e estatais, em específico, se referido ao direito à
saúde, o qual deve ser garantido e resguardado pelo Estado, como expresso
em seu código superior, a Constituição Federal, e de igual disponibilida-
de, custo e qualidade para todos.
Conclui-se que o direito à saúde deve ser para todos e que se en-
contrarmos um correto procedimento para sua aplicabilidade e execução,
construiríamos sociedade sob a ótica da democracia republicana. Tendo
todos os cidadãos representantes dentro da esfera médica, ética, social e ju-
dicial. E, através desses representantes, as pessoas necessitadas, encontrem
espaço e voz para alcançarem seus direitos.

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83
HISTORICIZAR PARA DEBATER:
O SERVIÇO SOCIAL NOS
PROGRAMAS DE RESIDÊNCIA
MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE
Desirre Vitória de Morais Mariano10
Ângela Maria Pereira da Silva11
Gehysa Guimarães Alves12

INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma revisão de literatura sobre a atuação


de assistentes sociais nos programas de Residência Integrada em Saúde
(RIS) com ênfase na atenção básica em saúde no Rio Grande do Sul,
confrontados as vivências da autora que é residente do Serviço Social. A
motivação por este tema advém da experiência como residente na RIS da
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), desde março de 2019 a feve-
reiro de 2021. Ressalta-se a trajetória histórica dessas residências desde a
década de 1970; onde também serão contextualizados sobre o processo
de trabalho de assistentes sociais que estão inseridos/as como tutores/as de
núcleo, preceptores/as e residentes. Do objetivo geral se desdobram: 1-)

10 Assistente Social e Residente vinculada ao Programa de Residência Multiprofissional em


Saúde Coletiva da Universidade Luterana do Brasil.
11 Assistente Social, Mestre em Serviço Social, Doutoranda em Educação, Especialista em
Saúde Pública com ênfase Saúde da Família. Orientadora do Projeto de Pesquisa que culmi-
nou neste artigo.
12 Doutora em Educação. Coorientadora deste artigo científico.

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compreender os fenômenos atuais que contribuem para que os/as residen-


tes estejam no foco de atuação na saúde do Brasil; 2-) identificar nos edi-
tais das residências multiprofissionais do ano de 2019 o número de vagas
para ingresso de assistentes sociais na atenção básica em saúde em 2020/1.
Foram analisadas a dissertação de mestrado de Thaisa Teixeira Closs
intitulada como “O Serviço Social nas Residências Multiprofissionais em
Saúde na Atenção Básica: Formação para a Integralidade?”13 e o Ebook de
autoria da mesma em parceria com Maria Isabel Barros Bellini, intitulado
“Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação: a exce-
lência na formação do assistente social”14. Thaisa é doutora em Serviço
Social, especialista em Residência Integrada em Saúde/Atenção Básica,
atual professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
no curso de Serviço Social e no Programa de pós-graduação em Política
Social (ESCAVADOR, n.d, n.p)15.
Após a análise desses conteúdos, foi possível compreender como a
linha do tempo da saúde no Brasil foi marcada por (des)caminhos no que
se refere aos programas de residência até hoje, bem como as suas poten-
cialidades e fragilidades na atualidade. Haja vista, as experiências da autora
na condição de R1 e R2 em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e no
monitoramento da COVID-19 junto a Vigilância em Saúde.

1. A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL NO RIO GRANDE


DO SUL: HISTORICIDADE, REGULAMENTAÇÕES E
CONJUNTURA ATUAL

Os Programas de Residências em saúde abrangem diversas áreas de


conhecimento, sendo uma iniciativa dos Ministérios da Saúde e da Edu-
cação a fim de incentivar a inserção de profissionais qualificados para o
Sistema Único de Saúde (SUS). Foram instituídas a partir da Lei n° 11.129

13 Dissertação de mestrado, orientada pela docente Jane Cruz Prates, na Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2010, pelo Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social.
14 E-book em parceria com a docente Maria Isabel Barros Bellini, publicado pela EDIPUCRS
(Editora Universitária da PUCRS), em 2012.
15 Disponível em: <https://www.escavador.com/sobre/4681053/thaisa-teixeira-closs&gt;>.
Acesso em: Ago. 2020.

85
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de 2005, seguindo as diretrizes do SUS, consistindo em uma modalidade


de Pós-Graduação Lato Sensu perfazendo 5760 horas e após sua conclu-
são concede o título de especialistas em saúde, de acordo com a complexi-
dade de sua atuação (Ministério da Saúde, n.d, n.p)16. Até 2005, quando
ocorreu seu marco legal, as residências permaneceram sem uma legislação
vigente para instituir as responsabilidades e os direitos dos sujeitos envol-
vidos nos programas.
A inserção dos Programas de Residência em saúde na atenção básica
antecede, até mesmo, a organização do SUS que conhecemos na atualida-
de (CLOSS, 2010). Em meados dos anos 1970, “a primeira residência em
Medicina Comunitária do país” é instituída em uma Unidade Sanitária
(como se denominavam na época), em Porto Alegre/RS, e que no fim
desta mesma década, tornaria-se residência multiprofissional “contando
com a participação de enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutri-
cionistas e médicos veterinários” (CLOSS, p. 34, 2010).
Nesta década ocorreu a “reorganização da classe trabalhadora no Bra-
sil” (CFESS, 2017). Destaca-se o avanço da saúde coletiva advinda do
Movimento de Reforma Sanitária17, que no futuro culminou na criação
do SUS e dos espaços de participação e controle social, e também, a gê-
nese da construção do projeto ético-político profissional dos assistentes
sociais durante o III CBASS (Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais)
ou Congresso da Virada (CFESS, 2017), num movimento de ruptura
com o conservadorismo.
O movimento sanitarista ganhou ênfase por suas mobilizações em
favor de uma sociedade mais “inclusiva, solidária, tendo a saúde como
direito universal de cidadania” (SOUTO E OLIVEIRA, 2016, p. 205).
Nesta época, a saúde pública “ficava a cargo do Instituto Nacional de As-
sistência Médica da Previdência Social (INAMPS)”, que atendia em mé-
dia 45% da população, onde os trabalhadores “com carteira assinada, so-

16 Disponível em: <https://www.saude.gov.br/trabalho-educacao-e-qualificacao/provisao-


-de-profissionais/residencias-em-saude>. Acesso em: Jul. 2020.
17 A reforma sanitária nasceu no início dos anos de 1970, partindo de um movimento
contra a ditadura militar, onde se idealizava um conjunto de estratégias necessárias para
reformular os paradigmas da saúde na época.

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friam um desconto no salário, o que lhes dava acesso aos hospitais próprios
do INAMPS e aos conveniados” (SENADO FEDERAL, n.d, n.p)18.
Em 1984, foi criada a Especialização Multiprofissional em Saúde
Mental no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre (CLOSS,
2010). Logo após, o a Constituição Federal (CF/88) torna-se um marco,
e passa a representar o ápice do Estado Democrático de Direitos, também
pelo novo regime em relação à criação, implementação e ampliação de
políticas públicas e sociais, inclusive do SUS.
A partir disso, o sistema da Seguridade Social é composto por um
tripé que abrange as políticas de saúde, previdência e assistência social. A
CF/88 em seu capítulo II no artigo 196 consta:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação.
No transcorrer da década de 1990, surgem novos Programas de Resi-
dências Multiprofissionais em saúde no Rio Grande do Sul e nos demais
estados, que acompanharão ao longo do seu trajeto a construção e os avan-
ços da saúde pública nacional. Conforme CLOSS (2010, p.37):

O Programa de residência em Saúde Mental, do Instituto Philippe


Pinel, em 1994, e o Programa de Residência em Saúde Coletiva,
do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, em 1995. No final dessa década (1999), é cria-
do o programa de Residência Integrada em Saúde, da Escola de
Saúde Pública do Rio Grande do Sul (RIS/ESP), que revitaliza as
experiências de residências multiprofissionais já existentes desde a
década de 1970 nos serviços da Secretaria Estadual de Saúde.

Em 1990 também é sancionada a Lei n° 8.080, que regulamenta os


serviços de saúde, materializando o texto constitucional. A partir de 1991
inicia-se uma nova estruturação da atenção básica com a implementação
do Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS)19. Em 1994 com

18 Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/emdiscussao/edicoes/saude/contexto/


antes-do-sus-saude-era-para-poucos>. Acesso em: Jul. 2020.
19 Os agentes comunitários de saúde são profissionais que atuam diretamente em seus

87
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

a organização de equipes multidisciplinares na Saúde da Família, ambos


os acontecimentos contribuíram positivamente para que a população fos-
se assistida por diversos profissionais, considerando que a saúde está in-
trinsecamente afetada pelos determinantes sociais (acesso à alimentação,
educação, saneamento básico, habitação, trabalho e renda, relações sociais
e comunitárias, cultura, esporte e lazer, entre outros), possibilitando a ga-
rantia e efetivação de muitos direitos através da atenção básica em saúde
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2011).
Já no ano de 2003, os princípios e diretrizes para a Norma Opera-
cional Básica de Recursos Humanos para o SUS (NOB/RH-SUS) foram
atualizados, prevendo o desenvolvimento dos trabalhadores de saúde atra-
vés da ampliação das “residências já existentes na área da Saúde” e a cria-
ção “de novos programas adequados às necessidades do SUS e das equipes
multi e transdisciplinares de saúde” (Ministério da Saúde, 2003, p.61).
Em 2004, o Ministério da Saúde institui a Política Nacional de Edu-
cação Permanente em Saúde (PNEPS), como um meio de proporcionar
aos trabalhadores a articulação multidisciplinar, promovendo um ambien-
te de formação e desenvolvimento de conhecimento (Ministério da Saú-
de, n.d. n.p)20. Nessa perspectiva, através da atenção básica, assegura-se
uma reorientação do “modelo assistencial, por meio da prestação de servi-
ços e ações de saúde pautadas nos princípios da universalidade, equidade,
integralidade e participação social” (CARVALHO et al, 2017, p. 270 e
271). Desse modo transpondo os processos de diagnóstico, tratamento e
cura de doenças, como vinha sendo concebida a saúde no país.
Os profissionais passaram a manter um contato mais humanizado
com os usuários, e as estratégias de promoção e prevenção em saúde tor-
naram-se mais efetivas. Haja vista, a regionalização, a descentralização,
a territorialização, advindas disso. Já, em 2005, aconteceu o I Seminá-
rio Nacional de Residências Multiprofissionais, iniciando o processo de
reflexão entre os participantes, levantando questões quanto a multidisci-
plinaridade, as diretrizes nacionais e a criação de um sistema nacional.

territórios, auxiliando as equipes de ESF no fortalecimento de vínculos com os usuários, e na


orientação e promoção de saúde em domicílio.
20 Disponível em: <https://www.saude.gov.br/trabalho-educacao-e-qualificacao/gestao-da-
-educacao/qualificacao-profissional/40695-politica-nacional-de-educacao-permanente-p-
neps>. Acesso em: Jul. 2020.

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Dando continuidade aos ideais, no ano de 2006, o II Seminário Nacional


de Residências Multiprofissionais torna-se responsável pela Portaria que
daria origem a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em
Saúde (CFESS, 2017).
A Portaria Interministerial n° 45 de 2007, dispõe sobre a carga horária
semanal de 60 horas semanais21, as áreas abrangidas, e doze eixos nor-
teadores, dentre estes a inclusão do residente em “cenários de educação
em serviços representativos da realidade sócio epidemiológica do país” e
“abordagem pedagógica que considere os atores envolvidos como sujei-
tos do processo de ensino-aprendizagem-trabalho e protagonistas sociais”
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2007, n.p)22.
Os Encontros Nacionais subsequentes seguiram reivindicando direi-
tos, nos anos de 2015 e 2016, especificamente, buscando maior represen-
tatividade, em processos eleitorais justos, através da inserção de residentes,
tutores e preceptores na Comissão Nacional de Residência Multiprofis-
sional em Saúde (CNRMS), até hoje sem resposta.
Atualmente, a disseminação do novo Coronavírus (COVID - 19) no
Brasil e no mundo acabou suscitando o debate a importância dos pro-
fissionais de saúde e daqueles que estão inseridos neste contexto através
dos programas de residência, considerando a ação estratégica “O Brasil
Conta Comigo” do Ministério da Saúde. Essa estratégia foi estabelecida
por meio da Portaria n° 639 de 2020, que tem como objetivo capacitar e
cadastrar os profissionais em território nacional que estão aptos a atuarem
no combate à pandemia. Embora em algumas realidades a escassez de re-
cursos humanos incida diretamente nas demandas para que os residentes
assumam ações programáticas (monitoramento da COVID-19, teleaten-
dimento, educação permanente em Saúde (EPS), entre outros).
Nesse sentido, a atuação dos residentes, de um lado dá visibilidade às
suas reais condições e relações de trabalho e aos seus direitos como pro-
fissionais da saúde, por outro, legitima a importância da manutenção de
programas de residência conforme a PNEPS prevê (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2018).

21 Sendo 40 horas em cenário de prática e 20 horas de formação.


22 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/residencia/portaria_45_2007.
pdf>. Acesso em: agosto. 2020.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Os assistentes sociais, conforme a Resolução nº 287 de 1998, com-


põem uma das 14 categorias profissionais consideradas essenciais para
atuarem nas políticas de saúde23, por isso, também permanecem na linha
de frente garantindo e efetivando direitos, analisando a conjuntura dos
usuários e todos os prejuízos que a pandemia tem causado, principalmente
aos grupos mais vulneráveis. Consta no Código de Ética do/a Assistente
Social (Lei nº 8.662 de 1993), em seu artigo 3º, dentre seus deveres “par-
ticipar de programas de socorro à população em situação de calamidade
pública, no atendimento e defesa de seus interesses e necessidades” (1993,
p. 27).
Neste contexto, muitos residentes enfrentaram atrasos no pagamento
de suas bolsas, dificuldades na obtenção dos equipamentos de proteção
individual nos campos de atuação, precarização das relações e condições
de trabalho por suprirem a falta de profissionais realocados ou afastados
nos cenários de prática, além de assumirem equipes sem preceptoria de
núcleo, a compensação de horas à medida que também são suscetíveis a
adoecerem nesse processo. Dito isso, no próximo subitem será abordado,
especificamente, sobre o Serviço Social nos programas de residência com
ênfase na atenção básica.

1.1 A INSERÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL NA


ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE ATRAVÉS DAS
RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS: MAPEAMENTO
DOS EDITAIS NO RIO GRANDE DO SUL

No ano de 2019 no Rio Grande do Sul, ocorreu a abertura de alguns


editais para o ingresso de assistentes sociais nos Programas de Residências
Multiprofissionais com ênfase na atenção básica em saúde, com início das
suas atividades programadas para março de 2020. Foram levantados os
editais de oito instituições, totalizando dezoito vagas de acordo com os
critérios, anteriormente, descritos, sendo estas a Escola de Saúde Públi-
ca (ESP) com 4 vagas, a UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos

23 As 14 categorias profissionais de saúde de nível superior são: Assistentes Sociais, Bió-


logos, Biomédicos, Profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisiotera-
peutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos, Psi-
cólogos e Terapeutas Ocupacionais.

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Sinos) com 2 vagas, a ULBRA (Universidade Luterana do Brasil) com


2 vagas, o HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre) com 1 vaga, o
GHC (Grupo Hospitalar Conceição) com 6 vagas, a UFSM (Universida-
de Federal de Santa Maria) com 1 vaga, a UFRGS (Universidade Federal
do Rio Grande do Sul) com 1 vaga e a UNIJUI (Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul) com 1 vaga.

Tabela 1: Editais de 2019


INSTITUIÇÕES Nº DE VAGAS ASSISTENTES SOCIAIS NO
Edital 2019 Edital 2019 RS
ESP 4
UNISINOS 2
ULBRA 2
HCPA 1 10 mil Assistentes Sociais
registrados em 2013
GHC 6 Último dado divulgado no Site
do CRESS/RS
UFSM 1
UFRGS 1
UNIJUI 1
Fonte: Própria Autora, 2020.

Em 2013 o Conselho Regional de Serviço Social do Rio Grande do


Sul da 10º Região (CRESS/RS) estimou que houvesse cerca de dez mil
assistentes sociais registrados, número que vem aumentando a cada ano.
De acordo com Fabrício Tavares24 em seu vídeo sobre remuneração no
Serviço Social e gestão de carreira25, o Serviço Social oferece uma inser-
ção no mundo do trabalho com diversas possibilidades de atuação. Apesar
dessa amplitude, o contingente profissional está aumentando, e com isso,
amplia-se também a concorrência, já que os/as egressos/as almejam uma
boa colocação, também, o fato de não existir piso salarial para a profissão

24 Assistente Social, mentor em gestão de carreira, produtividade e alta performance. Pro-


fessor na empresa Grupo Educacional do Brasil.
25 Disponível em: <https://m.youtube.com/watch?feature=youtu.be&v=fF9B0TC78tk>.
Acesso em. Ago. 2020.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

faz com que muitos tenham que submeter-se a baixos salários, além das
precárias condições de trabalho.
Torna-se primordial ao assistente social gerir sua carreira, de forma
que, a residência em saúde representa uma oportunidade para adquirir
experiência profissional, formação continuada e rentabilidade. A conti-
nuidade da qualificação profissional é essencial para que possamos lidar
com as demandas cada vez mais complexificadas, além de contribuir para
que nossa atuação seja mais valorizada.
De um total de 18 vagas ofertadas por essas oito instituições de ensino
em 2019 para o ingresso de assistentes sociais como residentes na atenção
básica em saúde, podemos compreender como a inserção do assistente so-
cial na saúde tem sido defasada por outros meios, tais como: concursos
públicos, contratos de terceirização, entre outras formas.
Em reunião da ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa
em Serviço Social) denominada Ciclos de Debates da Residência em Saú-
de, realizada em 17 de agosto de 2020, foi perceptível a ausência de assis-
tentes sociais na atenção básica e em virtude disso alguns tutores passam a
assumir também o papel de preceptores.
Esse quadro tende a agravar-se à medida que há uma nova modalida-
de de financiamento para a atenção básica de saúde intitulada como Pre-
vine Brasil através da Portaria nº 2.979 de novembro de 2019, à medida
fazem parte da transferência mensal aos municípios o pagamento por de-
sempenho. Serão considerados os resultados alcançados em um conjunto
de indicadores que serão monitorados e avaliados no trabalho das equipes
da atenção básica de saúde.
O Previne Brasil traz repercussões nas Residências em Saúde, pois
envolve um processo de desregulamentação de políticas públicas que vem
se estabelecendo desde 2016 com a Emenda Constitucional 95 que “limita
por 20 anos os gastos públicos”. Essa situação atinge a “seguridade social
e para todos os órgãos e poderes da República” (SENADO FEDERAL,
2016, n.p)26. Neste processo, os/as residentes sentem-se tão cobrados/as
quanto os próprios trabalhadores dos serviços de saúde, mediante a falta
ou oferta insuficiente dos espaços de atuação, além das condições para a
correlação entre o ensino, formação e o trabalho.

26 Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/12/15/promul-


gada-emenda-constitucional-do-teto-de-gastos>. Acesso em: ago. 2020.

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Com o agravamento da questão social27 na atual conjuntura de uma


sociedade capitalista madura, suas expressões assolam a população que en-
contra cada vez menos acesso a bens e serviços sociais pelo sucateamento
das políticas públicas e sociais, e consequentemente, de seus equipamen-
tos e profissionais. Neste contexto, a presença de assistentes sociais nos es-
paços de saúde é fundamental, sendo estes qualificados para reivindicarem
a qualidade dos serviços ofertados à população usuária do SUS, além de
realizarem a análise de conjuntura de determinado território, compreen-
dendo suas necessidades e demandas.
Diante disso, os cenários de prática da Residência, requerem maior
interface entre as unidades de ensino e a gestão municipal de saúde, sendo
que cada sujeito implicado tem expectativas diferentes (residentes, gesto-
res, preceptores, tutores), além das questões político-partidárias que atra-
vessam as inter-relações entre os implicados. A disseminação constante
dos posicionamentos partidários de forma autoritária no país nos últimos
anos geram prejuízos sociais, causando, principalmente o adoecimento e
alienação no exercício profissional de assistentes sociais. À medida que, o
posicionamento ético-político é de defesa intransigente dos direitos das
coletividades e tem sua base nos direitos humanos.
Destacam-se as mais diversas formas de processos seletivos para in-
gresso nos Programas de Residência multiprofissional, em especial, desta-
ca-se a ULBRA Canoas/RS, que até o presente momento conta com um
processo unificado juntamente com outras universidades, organizado pela
FUNDATEC (Fundação Universidade Empresa de Tecnologia e Ciên-
cias), composto por uma prova objetiva, sendo o/a participante responsá-
vel por realizar cadastro de seu curriculum lattes no momento da inscrição,
sob pagamento da taxa. Ressalta-se que o incentivo ensino-pesquisa-ex-
tensão deve advir desde a Graduação, a fim de uma preparação prévia para
as vivências dos/as residentes.
No que se refere ao Programa de Residência da Ulbra consta no Re-
gimento Interno (2020) que pertence à modalidade de ensino de Pós-
-Graduação Lato Sensu28, voltado para a educação em serviço, com a pro-

27 A Questão Social é o objeto de intervenção genérico do Serviço Social, resultado no con-


flito entre capital e trabalho, e que origina as chamadas expressões da questão social que
são o conjunto de desigualdades (IAMAMOTO, 2005).
28 Os programas de pós-graduação Lato Sensu são especializações com duração mínima de

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

posição de formação de profissionais que integram as áreas da saúde. O


referido Programa teve início em 2011, contando com uma significativa
ampliação de vagas no ano de 2014. Os principais objetivos são:

Qualificar profissionais de diferentes áreas da saúde para uma atua-


ção norteada por uma concepção ampliada de saúde, sustentadas
nos Princípios e Diretrizes do SUS, a fim de que desenvolvam
ações de gestão e atenção comprometidas com o contexto loco-re-
gional da saúde, através da formação em serviço, com a finalidade
de atuar em equipe de maneira interdisciplinar (ULBRA, 2020,
p. 6).

Apesar de seu crescimento nos últimos nove anos, ainda existem as-
pectos a serem potencializados, tais como: a participação de seus atores
(residentes, preceptores/as e tutores/as) na elaboração de documentos ins-
titucionais, no projeto político pedagógico, no planejamento das rotinas
de atuação dos residentes nos campos e na contextualização às instituições
para que conheçam o Regimento e acolham os residentes compreenden-
do seu papel e suas reais atribuições.

1.1.1 UM RELATO DO PROCESSO DE TRABALHO DE


ASSISTENTES SOCIAIS NA ATENÇÃO BÁSICA ATRAVÉS
DA RESIDÊNCIA

O/a assistente social vinculado/a aos Programas de Residência Multi-


profissional com ênfase na atenção básica em saúde pode estar inserido/a
não só na condição de residente, mas também como preceptor/a e tutor/a
de núcleo. Ao assistente social/residente na atenção básica em saúde cabe
ter diploma de graduação no curso de Serviço Social em instituição re-
conhecida pelo Ministério da Educação, além de estar em conformidade

360 horas, sendo que ao final o aluno receberá certificado de conclusão e não diploma. Já os
programas de pós-graduação Stricto Senso abrangem os programas de mestrado e doutora-
do disponíveis para os diplomados em cursos de nível superior. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
n.d, n.p) Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=13072:-
qual-a-diferenca-entre-pos-graduacao-lato-sensu-e-stricto-sensu>. Acesso em. Set. 2020.

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com seu órgão de classe, inscrito e adimplente, apresentando seu registro


profissional no momento de sua matrícula no programa.
Consta no Regimento Interno do Programa de Residência Multi-
profissional da ULBRA, que o/a preceptor/a corresponde a inter-relação
com o residente no serviço de saúde, com titulação mínima de Especialis-
ta, sendo responsável pela “supervisão direta das atividades práticas reali-
zadas” (ULBRA, 2020, p.14). Este deverá apresentar o campo de atuação
aos residentes, bem como, esclarecê-los a respeito do processo de trabalho
desejado nesses serviços.
Conforme o artigo nº 35 do tal Regimento o/a tutor/a é representado
por um docente do curso de Serviço Social da instituição com titulação
mínima de mestre, que tem como principal atribuição “orientação acadê-
mica de preceptores e residentes” (2020, p. 13). As tutorias devem preco-
nizar as competências técnico-operativas (forma de trabalho adotado na
prática, ao colocar o conhecimento em ação), teórico-metodológico (pro-
cesso construído à partir do conhecimento) e ético-político (embasada
em valores e princípios éticos da profissão), essenciais para a formação do
assistente social, futuro Especialista em Saúde Coletiva. São constituídos
encontros semanais entre os residentes e tutores de núcleo para troca de
vivências a fim de refletirem sobre estratégias para atuação no cenário de
prática, além de voltarem-se ao trabalho de conclusão da residência.
Há que ressaltar que dentre os espaços de atuação da presente resi-
dente na Rede de Atenção à Saúde (RAS) de Canoas/RS, em 2019, a
sua preceptora de núcleo estava vinculada a atenção básica por meio do
Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), onde a equipe desempe-
nhava, principalmente, um papel de retaguarda assistencial às equipes de
Estratégia de Saúde da Família (ESF).
O NASF era constituído por profissionais de diversas áreas, como,
Psicologia, Serviço Social, Educação Física, Fonoaudiologia, Farmácia,
Nutrição, Terapia Ocupacional, além de médicos com outras especiali-
dades (Pediatra, Ginecologista/Obstetra, Psiquiatra ou Geriatra). Todos
esses profissionais corroboravam na ampliação da abrangência de capilari-
dade da atenção básica, qualificando as ações das ESF´s, fazendo uma aná-
lise de demandas que correspondiam às suas formações específicas junto
aos profissionais de referência nas reuniões de apoio matricial (Ministério
da Saúde, 2014).

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

No NASF, o assistente social atuava na reflexão sobre as demandas


sociais relacionadas às múltiplas formas de violência, vulnerabilidades so-
cioeconômicas, fragilidades de vínculos familiares e sociais dos usuários,
além de, articular a rede intersetorial, a fim de que a população acessasse
seus direitos. Dessa forma, o trabalho do NASF rompia com o viés clínico
e biomédico ainda arraigado.
Contudo, a Nota Técnica nº 3 do ano de 2020 do Ministério da Saú-
de, da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (APS) e do Departamento
de Saúde da Família, ficou instituído que os “recursos de financiamento
de custeio da atenção primária podem ser aplicados pelo gestor municipal
no custeio de equipes multiprofissionais no formato que for mais apro-
priado às necessidades locais” (2020, p. 2). Configurando um novo tipo
de financiamento, e contribuindo para que muitos municípios do Brasil
destituíssem as equipes de NASF, tal qual em Canoas ocorreu em 2020.
Feitas tais considerações, é importante constar a contribuição dos re-
sidentes nesse cenário, na medida em que os mesmos se implicavam no
acolhimento humanizado, e contribuíam no acesso do usuário à RAS,
além de suas demandas clínicas, fortalecendo o vínculo destes com o SUS.
Ao Serviço Social competia inserir-se na rotina da unidade de saúde,
como pré-natais, pré e pós-aconselhamento do teste rápido para detecção
de IST’S (infecções sexualmente transmissíveis) e gravidez, puericultu-
ra, visitas domiciliares, consultas compartilhadas, grupos de promoção à
saúde, entre outras. Junto aos profissionais de referência (normalmente,
médicos ou enfermeiros), os assistentes sociais acolhiam os usuários, com
viés de orientá-los em relação aos seus direitos (direito à paternidade e
alimentos, saúde sexual e reprodutiva, enfrentamento às violências e como
buscar proteção, prestavam esclarecimento sobre o acesso às políticas pú-
blicas, o incentivo à participação e controle social).
Nota-se a atuação multiprofissional e a troca de conhecimentos na
intervenção direta aos usuários e que estes desconheciam muitas informa-
ções. Por isso, uma das contribuições do assistente social para a ESF e na
respectiva UBS foi um portfólio de saberes para cada uma das sete equipes
apoiadas pelo NASF pudessem consultar as informações a respeito dos
serviços prestados na rede intersetorial.
A entrega dos Portfólios de saberes se deu nas reuniões de matricia-
mento, e isso as tornou mais independentes, além de entenderem que o

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profissional que atua na atenção básica em saúde necessita de muitos co-


nhecimentos que vão além da clínica, e que também precisam conhecer os
recursos do território em que trabalham e os determinantes sociais. Esses
conhecimentos são essenciais, pois a partir deles surgem novas estratégias
de promoção e prevenção à saúde baseados nas necessidades dos territó-
rios, visando à melhoria da saúde da população.
Já no segundo ano de residência, a inserção da residente se deu na Vi-
gilância Epidemiológica junto a Secretaria Municipal de Saúde de Canoas,
que durante boa parte do ano de 2020 girou em torno da COVID-19,
considerando que a pandemia trouxe ao mundo um aumento significati-
vo no trabalho de monitoramento e combate a disseminação. Apesar da
experiência trazida aos residentes em relação às atividades necessárias du-
rante as pandemias desse tipo de agravo, o período impossibilitou outras
vivências ou momentos que são essenciais para a formação

CONCLUSÕES

As Residências em Saúde são ótimas perspectivas para aperfeiçoa-


mento profissional e formação continuada, considerando o objetivo cen-
tral dos programas em garantir à RAS, especialistas, capazes de aprimora-
rem a política, efetivando aquilo que já está posto e desenvolvendo novas
estratégias para garantir a equidade, universalidade e integralidade do cui-
dado de saúde da população.
Infelizmente, esses Programas têm sido tidos como estratégias para
não ampliação de recursos humanos no âmbito da saúde pública. Isso abre
precedente para a imposição aos residentes para assumirem um papel que
não lhes compete, tais como: responsabilização pelo serviço e mão de
obra, que diversas vezes não lhes permitem participar do planejamento,
apenas da execução das atividades.
Nesse contexto, torna-se bastante perceptível a alienação no processo
de trabalho, que conceituado através de Karl Marx, pode ser representado
“quando o homem não se reconhece nas relações humanas do trabalho e
entra no processo de alienação” ou quando o “sujeito perde a consciência
de si e passa a conviver alienado ao processo de ato produtivo das forças de
trabalho” (SILVA, 2018, p.40).

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Assim, os processos tornam-se repetitivos, e no caso das demandas


de saúde, os profissionais passam a desconsiderar as particularidades dos
usuários, não se valendo do pensamento crítico e do planejamento que
envolve as famílias ou sujeitos nas suas subjetividades, apenas números a
serem atingidos, tais como a Emenda 95 dita. Percebe-se o risco eminente
da desqualificação do trabalho e do ensino, além da carga horária exaustiva
e das condições de trabalho incoerentes com as cobranças que são postas.
O residente permanece à margem desse sistema, com direitos mínimos, e
poucas oportunidades de participação efetiva na organização e implemen-
tação de novas propostas para os programas de residência.
Em decorrência disso, mostra-se cada vez mais necessário valorizar
estes processos de formação tão importantes quanto são os Programas de
Residência. A resistência em relação ao que é adoecedor vem da essência
real das residências em saúde, que é formar bons profissionais que atuem
com excelência na saúde pública do Brasil. Feitas tais considerações, os/
as residentes se tornam profissionais fundamentais nesse sistema, e, ape-
sar dos desafios enfrentados, devem permanecer comprometidos/as com
a defesa do SUS, exercendo a sua profissão com ética com relação aos
interesses da população usuária na garantia e efetivação de seus direitos.

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101
A DEMANDA DE IDOSOS POR
DIREITOS RELATIVOS À SAÚDE
JUNTO A DEFENSORIA PÚBLICA DA
COMARCA DE SÃO CARLOS-SP
Luiz Eduardo dos Santos29

INTRODUÇÃO

O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL E SUAS


ESPECIFICIDADES

Envelhecimento e tempo andam de mãos dadas, do nascer aos pri-


meiros passos, estudar, namorar, casar, constituir uma família, ter filhos,
ter netos, bisnetos, aposentar ou deixar o mundo do trabalho, são eventos
que, pelo menos alguns deles, as pessoas vivenciam, sem exceção. Atual-
mente, a sociedade e suas novas configurações familiares e modos de vida,
estabelece novas maneiras de viver esses momentos, porém diante da di-
versidade de relacionamentos, mudanças culturais e avanço tecnológico,
as pessoas idosas constituem um segmento social que necessita de dis-
cussões e aprofundamento teórico no universo acadêmico que abordem a
garantia de direitos e vivência da velhice com dignidade.
Envelhecer não estabelece limite para raça, sexo, grupo social, quem
viver um dia será idoso, e para Helman (2005), na sociedade atual as pes-

29 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Gerontologia (PPGGero) da Universidade


Federal de São Carlos (UFSCar).

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F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

soas idosas tendem a ter um status mais baixo, pois é o jovem que frequen-
temente tem maiores habilidades e um conhecimento mais amplo em de-
terminadas áreas da vida, são mais hábeis para absorver e compreender as
inovações tecnológicas de maneira mais rápida.
Na sociedade brasileira o critério de idade é utilizado para definir,
perante a lei a pessoa idosa, assim a partir dos 60 anos a pessoa passa a inte-
grar um contingente populacional no qual existem direitos relacionados à
velhice. Tal fato contribui também para o surgimento de tensões na rela-
ção da pessoa idosa com o conjunto de regras, valores, costumes, normas
decorrentes das necessidades de um grupo social que tem especificidades.
Conforme explica Heller (1985), o ponto maior dessa tensão é a relação
entre o genérico e o particular, as necessidades naturais e as surgidas his-
toricamente, não só dirigidas a sobrevivência onde os elementos culturais
e morais são decisivos na satisfação.

A PESSOA IDOSA E AS DEMANDAS POR SAÚDE

A pessoa idosa, faz parte de um grupo vulnerável na sociedade brasi-


leira, por diversos fatores, principalmente os socioeconômicos. O Brasil
conta em 2020 com aproximadamente 14,05% de pessoas idosas. A maio-
ria das pessoas idosas tem sua renda proveniente de pensões, aposentaria
ou benefícios sociais, 19,3% das pessoas idosas brasileiras são arrimos de
família. Quanto à escolaridade, 30% das pessoas idosas são analfabetos,
16% tem entre 1 a 3 anos de estudo e, apenas 5,8% conta com 11 anos ou
mais de escolaridade (NERI, 2020).
Estudo de Mapelli Junior (2015), sobre judicialização de saúde e polí-
ticas públicas, realizado no Estado de São Paulo, aponta o crescimento de
53% das ações judiciais cadastradas no sistema do SCODES (Sistema de
Coordenação de Demandas Estratégicas do SUS) da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo (SES/SP) durante o período que corresponde aos
anos de 2010 (9.385 ações), 2011 (11.633 ações), 2012 (12.031 ações),
2013 (14.080 ações) e 2014 (14.383 ações).
Alguns estudos científicos brasileiros sobre a judicialização da assis-
tência à saúde, constataram que o financiamento das demandas indivi-
duais de medicamentos por determinação do Poder Judiciário compro-
mete a equidade na saúde (Vieira & Zucchi, 2007; Vieira, 2008; Chieffi &

103
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Barata, 2010; Borges, 2010; Machado, et al., 2011; Ramos, 2013, Diniz,
Machado & Penalva, 2014), prejudicando o interesse coletivo.
A Constituição Federal (CF) de 1988, tem na dignidade humana o
fio condutor e na redução das desigualdades sociais seus objetivos e con-
forme Vizzotto & Prestes (2009), as cidades que integram o contexto fe-
derativo devem expressar o esforço do Estado para cumprir a Constitui-
ção, tendo compromissos com os aspectos de ser um espaço da cidadania;
promover políticas públicas inclusivas; ter função socioambiental; gestão
democrática.
Nesse contexto de direitos sociais, a CF/1988 deu proeminência a
relação entre o direito e a saúde, através do art. 196 que define: “A saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).
No âmbito do idoso, a Política Nacional do Idoso-PNI, Lei
8842/1994 estabelece a criação dos conselhos a nível municipal, estadual e
federal como forma de participação e controle social das políticas relativas
ao idoso, e posteriormente o Estatuto do Idoso - EI, Lei 10741/2003,
que consolida os direitos garantidos por outras legislações, amplia, apri-
mora e define medidas de proteção a população idosa. Estabelece como
obrigação da família, comunidade, sociedade e poder público a efetivação
com absoluta prioridade o direito à: vida, saúde, alimentação, educação,
cultura, esporte, lazer, trabalho, cidadania, liberdade, dignidade, respeito,
e a convivência familiar e comunitária. Estabelece também como respon-
sabilidade dos Conselhos Nacional, Estadual e Municipal o cumprimento
dos direitos dos idosos previstos em lei.
Como o crescimento da população de idosos brasileiros de 3,8% ao
ano (IBGE, 2016) é muito superior aos demais estratos populacionais,
esse fato torna-se um problema social com elevação dos custos com previ-
dência social e saúde, exigindo que o governo se coloque em ação através
da construção e gestão de políticas públicas de maneira e garantir direitos
para os idosos de hoje e os do futuro. A Constituição Federal na incorpo-
ração de direitos individuais e sociais, declara a sua universalidade e auto
aplicação, incorpora referências a conceitos abstratos, como a dignidade

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da pessoa humana, que favorece interpretações jurídicas baseadas mais em


princípios amplos do que no texto propriamente dito da legislação.
Quando o Estado é provocado a garantir os direitos individuais, tais
como medicamentos, tratamentos e internações, os magistrados frequen-
temente priorizam os princípios abstratos da Constituição em detrimento
das consequências administrativas de suas decisões (RAMOS, 2017).

A DEFENSORIA PUBLICA

Como instituição de proteção a cidadania, a Defensoria Pública (DP)


consiste como um dos órgãos denominados pela CF de 1988 como fun-
ções essenciais à Justiça, tem papel de defensora constitucional dos Direi-
tos Humanos, e instrumento do próprio regime democrático, garantindo
aos indivíduos que se encontram em situação de vulnerabilidade a efetiva
proteção de seus direitos, funcionando como termômetro social (ANA-
DEP, 2015). O art. 5º - LXXIV da Constituição Federal prevê a assistên-
cia jurídica integral e gratuita exercida aos que comprovarem insuficiência
de recursos.
De acordo com o IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil
Defensorias Públicas publicado no ano de 2015, no Brasil, durante o ano
de 2014, as Defensorias Públicas atenderam 10.380.167 pessoas e ajui-
zaram 2.078.606 ações, e no Estado de São Paulo 55,1% das DPs têm
participação em Conselhos de Políticas Públicas, Conferências,
Comissões, audiências públicas e 21,8% realizam campanhas de
divulgação de serviços junto à população (BRASIL, 2015).
A Lei complementar nº 988, de 9/01/2006, organizou a Defensoria
Pública do Estado de São Paulo (DPESP), e de acordo com seu Art. 3°:
“A Defensoria Pública do Estado, no desempenho de suas funções, terá
como fundamentos de atuação a prevenção dos conflitos e a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da mar-
ginalidade, e a redução das desigualdades sociais e regionais.”
A DPESP atualmente conta com 750 defensores públicos, que tra-
balham em 66 unidades espalhadas por 43 municípios paulistas. Os pro-
cessos de parte das cidades que integram as mesmas comarcas também
são atendidos, nas áreas de execução penal e de medidas socioeducativas

105
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

(DPESP, 2017). A Unidade São Carlos da DP conta atualmente com oito


defensores públicos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A pesquisa é retrospectiva, descritiva-exploratória de abordagem


quantiqualitativa, com coleta de dados referentes aos atendimentos reali-
zados no período de 2017. Foram selecionados os processos ajuizados re-
ferentes a questões de saúde e analisados aqueles relacionados a indivíduos
com idade igual ou maior de 60 anos.
Na análise dos atendimentos, foram apurados 15903 relativos à tria-
gem inicial. Desse total foram ajuizados 1397 processos e 128 referiam-se
a demandas de idosos (≥60 anos). Perfil atendido: 73% mulheres, idade
média 67,29 anos (dp=7,95), moram sozinhos 29% e 60% tem média de
renda de até R$ 1098,02 (dp=817,49), residentes em bairros com alta vul-
nerabilidade social. Ressalta-se na análise dos dados demográficos a alta
participação feminina no ajuizamento de processos (73%), em relação a
composição por gênero da população brasileira, visto que conforme dados
PNAD (2016) as mulheres respondem por 51,5% do total. Idosos separa-
dos ou divorciados representam 50% e casados 39%. Idosos que possuem
automóvel representam 26% da amostra e 77% possuem casa própria. A
maioria é constituída de aposentados 55%. Os dados sociodemográficos
são demonstrados na tabela 1 abaixo:

Tabela 1: Distribuição de variáveis sociodemográficas dos demandantes idosos


Variáveis Categorias N (%) Média (dp) Min. Máx.
realizados 15903 (100%)      
Atendimentos Idosos 128 (9%) *      
Judicializados 1397      
Possui 33 (26%)      
Carro próprio
Não possui 95 (74%)      
Possui 99 (77%)      
Casa própria
Não possui 29 (33%)      

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Variáveis Categorias N (%) Média (dp) Min. Máx.


Casado 51 (39%)      
Solteiro 6 (5%)      
Estado civil Viúvo 7 (6%)      
Separado/
64 (50%)      
divorciado
Masculino 35 (27%)      
Gênero
Feminino 93 (73%)      
Idade média   67,40(7,89) 59 91
60 a 69 anos 91 (71%)      
Idade
70 a 79 anos 27 (21%)      
>80 anos 10 (8%)      
Sozinhos 37 (29%)      
Moradia 2 moradores 54 (42%)      
>3 moradores 37 (29%)      
Aposentado 70 (55%)      
Autônomo/
31 (24%)      
Ocupação empregado
Pensionista 22 (17%)      
Outros 5 (4%)      
Média   1098,09(817,49) 0,00 3804,00
Até 01 salário
Renda 77 (60%)**      
mín.
> 01 salário mín. 51 (40%)**      
Fonte: Elaboração do Autor
*Número relativo aos processos judicializados por idosos ** salário mínimo em 2017(R$
937,00)

No trabalho de triagem inicial não se sabe quantos idosos faziam


parte do universo dos mais de 15,9 mil cidadãos que procuraram a DP
de São Carlos entre janeiro a outubro de 2017, sendo que a abertura de
processos por idosos representa 9% do total dos processos judicializados
no período pesquisado, número abaixo da composição etária desses indi-
víduos na cidade de São Carlos, que em 31 de dezembro de 2017 era de
15,45% da população (IBGE, 2018).
Na questão de gênero, constatações do estudo revelam que como no
acesso à saúde onde as mulheres são maioria, no acesso à justiça se mos-

107
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

tram mais prevalentes e corrobora com o fenômeno de feminização da


velhice. Com relação a idade média de 67,40 anos, revela idosos ainda na
primeira fase da velhice na busca por direitos violados.
Quanto aos dados de renda mensal, aferiu-se a média de até R$
1.098,09, ressalte-se os critérios eletivos da DP em atender cidadãos hi-
possuficientes economicamente (com renda até três salários mínimos).
A alta concentração de indivíduos com renda de até 01 salário mínimo
(60%), demonstra baixos rendimentos para aposentados e pensionistas
que representam 72% do total dos demandantes.
A análise das principais demandas solicitadas através da DP mostrou
a busca por Medicamentos como a principal (70%), sendo que o mais
solicitado é o Ranibizumabe 10mg/ml, injeção aplicada uma vez por mês
no paciente, que é indicada para várias doenças que comprometem a visão,
entre elas a degeneração macular relativa à idade (DMRI), prevalente em
idosos. O gráfico 1 abaixo demonstra as principais demandas apuradas na
análise quantitativa das demandas de idosos junto a DP:

Gráfico 1: Demandas por saúde mais apuradas

Fonte: elaboração Autor

Esses achados corroboram a diversos estudos realizados que apontam


medicamentos como a principal demanda judicial em diversos estados
(CHIEFFE & BARATA, 2010; NUNES & RAMOS JÚNIOR, 2016),
porém estudos apontam que as classes terapêuticas de medicamentos mais
judicializadas são para tratamento de: aparelho digestivo, metabolismo,

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sistema cardiovascular e sistema nervoso respectivamente (CHIEFFE &


BARATA, 2010), fato que não ocorre no presente estudo que aponta me-
dicamento para o sistema sensorial (visão) como o mais judicializados. A
tabela 2 abaixo demonstra os principais tipos de medicamentos demanda-
dos por junto a DP, na qual as doenças relacionadas a diabetes e hiperten-
são arterial aparecem como as mais solicitadas:

Tabela 2: Principais tipos de medicamentos demandados


Tipo do medicamento Frequência percentual
Cardiovascular 13%
Diabetes 13%
Déficit vitamina D 6%
Diabetes + hipertensão 22%
Degeneração macular 31%
Neurodegenerativo 9%
Outros 6%
Fonte: Elaboração Autor

Os achados da presente pesquisa corroboram estudos que cons-


tatam as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) como um dos
maiores e mais desafiadores problemas de saúde pública, com alto im-
pacto econômico para as sociedades e sistemas de saúde, além de exigi-
rem tratamento por tempo prolongado ou indeterminado (MAPELLI
JUNIOR, 2015).

ANÁLISE QUALITATIVA DA POPULAÇÃO ESTUDADA

As unidades de registro foram identificadas como o fato gerador


da demanda judicial, presentes na alegação processual do demandante
idoso e podem se relacionar com diversas subcategorias. As subcate-
gorias é o elemento desejado pelo demandante, podendo ser produto,
insumo ou serviço, estão presentes nas alegações processuais e se rela-
cionam com as unidades de registro. A reunião das subcategorias que
pertencem a áreas semelhantes forma a categoria temática que com-
põem o estudo.
A figura 1 abaixo, demonstra o fluxo de construção do processo:

109
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Elaboração: Autor

O quadro 1 representa a configuração detalhada das respectivas uni-


dades de registro, subcategorias e categoria, de acordo com o método de
análise proposto, conforme exposto:

Quadro 1: unidades de registro, subcategorias e categoria


Categorias Subcategorias Unidades de registro
temáticas
Direito à Medicamento Dependência medicamentosa
saúde Falta condições financeiras
Em falta na RAS*
Não fornecido na RAS
Prótese Dependência física
Falta de condições financeiras
Tecnologia assistiva Falta de condições financeiras
Dependência física
Tratamento médico Falta de condições financeiras
Internação Álcool/drogas
Cirurgia Dependência física
Fonte: Elaboração Autor * RAS – rede de atenção à saúde

Categoria Saúde

A redução de gastos com a seguridade social, o aumento do desem-


prego, as novas relações de trabalho, entre outros elementos, passaram a

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fazer parte mais intensamente do cenário social atual, contexto que inten-
sifica os desafios colocados a toda a sociedade, às famílias e aos idosos no
suprimento de suas necessidades. Impõe-se aos gestores públicos a pro-
cura por outras escolhas para a saída da falta de recursos, sem colocar em
risco a saúde da população, já que uma das principais medidas é a redução
de gastos geralmente com cortes orçamentários na área de saúde (STU-
CLER, 2014), fato que piora dos indicadores da saúde.
Nesta categoria temática foram identificadas cinco subcategorias,
sendo elas: medicamentos; prótese; tecnologia assistiva; cirurgia; trata-
mento médico e internação estão ligadas ao âmbito do Direito à Saúde,
área impactada pela ausência de recursos suficientes para atender a deman-
da da população e com resultados diretos na qualidade de vida dos idosos
demandantes. A alegação (AL) 1 revela condição de falta de medicamento
de alto custo na Rede de Atenção à Saúde (RAS) da cidade de São Carlos:
“Os funcionários do posto de atendimento do “Alto Custo” lhe informaram que
este medicamento não há na rede pública de São Carlos-SP, a autora foi orientada a
procurar o medicamento em Araraquara-SP ou procurar a DPE para fazer o pedido
de forma judicial.” (AL 1)
Na população idosa existe tendência a tomar mais medicamentos do
que as pessoas jovens, devido a prevalência de distúrbios médicos crôni-
cos, como hipertensão arterial, diabetes ou artrite, sendo que a maioria
dos medicamentos usados pelos idosos para disfunções crônicas são toma-
dos durante anos. O relato abaixo revela a dependência medicamentosa
inadiável do paciente para tratamento de doença crônica (diabetes), sob
pena de sequela física permanente:

“Assistida tem hemorragia vítrea parcial e edema macular com visão menor, e
possui capacidade de visão reduzida. Necessita da aplicação ocular de RANI-
BIZUMABE 10mg/ml. Necessita de 6 frascos, 1 frasco a ser aplicado por
mês, pelo período de 6 meses. Assistida procurou o medicamento na Farmácia
de Alto Custo por diversas vezes, no entanto, houve negativa em todos os
pedidos. Assistida já está com a capacidade de visão reduzida, e caso não haja
aplicação do medicamento, há alto risco de cegueira permanente.” (AL.2)

Condições crônicas de saúde decorrem em tratamento de longa duração,


nas pessoas idosas a afecção por doenças crónicas é frequente, assim como

111
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

também a necessidade de recursos financeiros para compra de serviços, pro-


dutos e insumos necessários à manutenção de sua saúde e qualidade de vida,
a maioria dos idosos da amostra tem renda insuficiente. O uso dos serviços
públicos de saúde pela população que vive no contexto social do presente
estudo é prevalente, e acontece por falta de condições financeiras para arcar
com os custos de tratamento privado e impacta a família que dá o suporte as
necessidades da pessoa idosa, conforme ilustrado na alegação abaixo:

“A Assistida sofre das seguintes doenças: hipertensão arterial, isquemia


cardíaca, infarto agudo miocárdio, insuficiência cardíaca, transtornos das
veias. Necessita dos seguintes medicamentos: cloridrato clonidina, cloridra-
to de hidrafazina, dipropionato de betametasona, sulfato de gentamicina,
trimetazidina. Os familiares buscaram os medicamentos em postos e locais
de dispensação, mas não foram atendidos, e a família não dispõe de recursos
para aquisição.” (AL 3)

A prescrição de tratamento ao paciente, nem sempre é contemplada


pela RAS, ou por falta ou por não ser fornecido e alguns serviços oferta-
dos são insuficientes para efetivo tratamento do agravo de saúde, levando
o idoso a procurar na justiça a garantia do tratamento médico adequado,
conforme alegação seguinte:“O remédio não se encontra em postos de saúde. É
fornecido pela farmácia de alto custo. Segundo o relato da autora, o município deixou
de fornecer o Mesacol por falta de verba [....].” (AL 4)
As pessoas com deficiência tem oportunidade de alcançarem indepen-
dência e autonomia com o uso da Tecnologia Assistiva (TA) , pois seu obje-
tivo é atender as necessidades individuais, e os produtos, ambientes e serviços
com tecnologia apropriada precisam de planejamento que eliminem possíveis
desconfortos na utilização pelas pessoas, visto que a resistência dessas dimi-
nuem com a idade, assim como a capacidade de adaptação (PEREIRA et al,
2008). A alegação seguinte demonstra a dependência física do demandante e
a necessidade da TA, bem como o quanto a demora no atendimento do pa-
ciente pode impactar na qualidade de vida do idosos e pessoas de seu convívio:

“O paciente sofreu acidente de bicicleta, tendo lesões na coluna, evoluiu para


tetraplegia, tendo hoje plegia MMII. Não possui condições de adquirir a cadei-
ra de rodas recomendada pelo fisioterapeuta responsável pelo tratamento. Hoje
é aposentado por invalidez. Só sai de casa para a realização do tratamento,

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que inclui fisioterapia, idas ao médico etc. Não tem condições de realizar as
atividades básicas que exijam locomoção autônoma. Sem a cadeira, precisa de
ajuda de terceiros para qualquer ato de deslocamento ou locomoção.” (AL 5)

A busca por internação no presente estudo, relaciona-se com a neces-


sidade de tratamento para filhos dependentes químicos, e os casos abor-
dados tratam-se de mães idosas buscando internar filhos dependentes de
álcool e drogas, conforme alegação abaixo:

“O filho da autora é dependente químico, apresenta transtornos mentais e


comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras subs-
tâncias psicoativas - síndrome de dependência[...]. O requerido necessita de
internação compulsória em clínica de tratamento para dependentes químicos,
pelo período de 180 dias.” (AL 6)

A combinação entre família, mercado e proteção social é necessária


para manutenção da proteção aos indivíduos, visto que a família só recor-
re ao Estado quando não resolve suas demandas e não tem condições de
recorrer ao mercado pela ausência de recursos, já que insumos e serviços
são caros, cabendo como última instância a judicialização.
A prevalência das questões relativas à medicamento, revela a neces-
sidade dos poderes públicos reverem a efetividade políticas públicas de
saúde e assistência social, tendo em vista a rápida transformação social que
vivemos, com destaque para: novas relações familiares; novas relações de
trabalho; envelhecimento populacional; redução do investimento público
na saúde e assistência social.
Conforme explica Cione (2018), a ampliação da atuação do Sistema
Judiciário reflete a dificuldade que os poderes Legislativo e Executivo têm
em vocalizar à vontade e necessidades da população, e o fenômeno da inter-
ferência do primeiro nos demais é uma realidade brasileira, e demonstrado
no estudo, alimentando o processo de judicialização. A categoria temáti-
ca apurada no presente trabalho, demonstradas percentualmente conforme
gráfico 1, demonstram questões relacionadas à medicamentos como pre-
valentes na busca pela garantia de direitos. Esses achados são preocupantes,
pois o contexto estudado é de indivíduos hipossuficientes economicamente
e prevalentemente vivendo em famílias com uma ou duas pessoas.

113
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi demonstrado pelo estudo, que a busca da justiça pelo idoso


homem é pequena se comparada a sua participação na composição etá-
ria da cidade de São Carlos - SP, predominantemente as mulheres
buscam pelos serviços de justiça relativos a questões de saúde. O es-
tudo mostrou ser preciso adequar a dispensação de medicamentos às
necessidades dos usuários dos serviços de saúde, através de ações de
planejamento, visto que as medicações que aparecem no estudo são
repetidas vezes demandadas.
A expressiva presença de lares unipessoais, composto principalmente
por mulheres, ou com mais uma pessoa e a baixa renda, revela necessidade
atual ou futura de suporte social especializado para manutenção da vida
cotidiana, tendo vista a diminuição das famílias, revelando a importância
de realização de estudos que contemplem os reflexos da dinâmica familiar
nos cuidados com os indivíduos que envelhecem.
Apesar da baixa renda e de morarem em bairros de alta e média vul-
nerabilidade social, o acesso à justiça pelos idosos para alcançar a garantia
de direitos a um mínimo existencial possível, de forma a efetivar a apli-
cabilidade dos direitos fundamentais, revela uma parcela da população
que reivindica, participa e exerce a cidadania, mostrando um contexto de
conscientização e evolução social dessa população, com tendência a incre-
mentar sua atividade com as novas coortes.
A importância da Defensoria Pública no contexto de reconstrução
da cidadania e democratização da Justiça, vêm favorecendo ao cidadão
economicamente hipossuficiente o acesso ao judiciário. O estudo revelou
expressiva procura dos cidadãos pelo atendimento da DP, indicador de
um contexto de exercício da cidadania, mas também de problemas com
questões que motivaram a busca pela justiça, que são estruturais, como:
falta de condições financeiras; não fornecido ou em falta na RAS; álcool
e drogas, entre outras.
Este estudo tem como limitação abranger apenas a cidade de São
Carlos-SP. Existe a necessidade da longitudinalidade do presente trabalho
para obtenção de dados que revelem novas tendências, incremento ou não
do processo de judicialização, e o impacto das medidas de austeridade
fiscal nas políticas de saúde e assistência social.

114
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

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116
A PARTICIPAÇÃO COMO
DIFERENCIAL NA FORMA DE
GESTÃO DE POLÍTICAS SOCIAIS EM
SAÚDE: UM ESTUDO COMPARADO
ENTRE BRASIL E URUGUAI A PARTIR
DE 1988
Cláudia Regina Paese30

INTRODUÇÃO: APRESENTANDO A POLÍTICA SOCIAL


DE SAÚDE DO BRASIL E DO URUGUAI

A Constituição Federal criou o SUS e a Lei Federal Nº 8.080 de


1990 o definiu como “[...] o conjunto de ações e serviços de saúde, pres-
tados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais,
da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder
Público.” (Lei 8080/90, TITULO II DO SUS, DISPOSIÇÃO PRELI-
MINAR, ART 4).
No caso brasileiro ainda, o SUS - enquanto sistema de saúde público,
via provedores públicos e privados - agregou dois tipos de princípios, os
chamados doutrinários e éticos:

30 Doutora em Política Social e Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pelotas


(UCPEL) /RS. Mestre em Política Social pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Pedagoga. Professora da Rede Municipal de Educação de Cuiabá.

117
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

i. A universalidade, a equidade no acesso e a integralidade da as-


sistência;

ii. Os chamados princípios operacionais de caráter pragmático,


em que a hierarquização e a municipalização estão presentes, cor-
respondendo à descentralização e a participação social. (BRASIL,
1988).

A partir de 1980, o novo discurso acerca da governança democrática


focalizava a descentralização das ações do Estado através da transparên-
cia, eficiência e qualidade. Essa nova esfera pública comporta um espaço
de “[...] interação entre grupos organizados da sociedade, originários das
mais diversas entidades, organizações, associações, movimentos sociais,
etc. A natureza desta esfera é essencialmente política e argumentativa.”
(GOHN, 2003, p. 36).
As democratizações das políticas de saúde contribuíram com o cha-
mado controle social, convertido em princípio doutrinário e estruturante
do SUS. A participação da população na formulação e execução das po-
líticas públicas de saúde foi uma luta advinda da chamada “[...] Reforma
Sanitária, a qual incorporaria os ideais de um sistema de saúde único, es-
tatal e descentralizado às estruturas das políticas de saúde vigentes [...].”
(PAIVA; TEIXEIRA, 2014, p. 21).
A política social de saúde no Uruguai, o equivalente ao SUS brasilei-
ro é “El Sistema Nacional Integrado de Salud (SNIS) ”. Trata-se de uma
organização mista, pública e privada, portanto. O setor público ou “las
fuentes públicas incluyen las contribuciones obligatorias de los trabajado-
res y empresas del sector formal de la economía, las contribuciones obli-
gatorias de los trabajadores del sector público y los impuestos generales. ”
(ARAN; LACA, 2011, p. 268).
No setor privado, por sua vez, “[...] la dominan las Instituciones de
Asistencia Médica Colectiva (IAMC), que son asociaciones de profesio-
nales privadas sin fines de lucro que ofrecen atención integral a 56% de
los uruguayos, los beneficiarios de la seguridad social. ” (ARAN; LACA,
2011, p. 269).
O sistema de saúde uruguaio é regulamentado de modo rigoroso,
assim organizado:

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i. Órgãos que ficam a cargo de atender informações sobre saúde


da população — estatísticas de doenças vitais e notificáveis;

ii. Fornecedores de informação:

a. Pública, a cargo da Administración de Servicios de Salud del


Estado (ASSE) e outros;

b. Privada, sob responsabilidade das Instituições Coletivas Assis-


tência Médica (CAMI). São associações de profissionais sem fins
lucrativos privadas que possuem seguros privados abrangentes,
parcial e de emergência. Estes devem trabalhar para manter a quali-
dade dos cuidados e deveram proporcionar as instalações públicas.

En Uruguay, la Constitución Nacional en vigor (1997) menciona


el deber del Estado de prestar asistencia a los carentes de recursos.
“Todos los habitantes tienen el deber de cuidar de su salud así como el de
asistirse en caso de enfermedad”. “El Estado proporcionará gratuitamente
los medios de prevención y asistencia tan sólo a los indigentes los carentes
de recursos suficientes. ” (Artículo 44 Constitución de la República
Oriental del Uruguay de 1997). (GIOVANELLA, 2013, p.30)

Ao analisarmos a cena social e política dos países em tela, observamos


que ocorreram inovações com relação à participação de cidadãos na for-
mulação e implementação de políticas sociais em saúde.

Brasil e Uruguai rumam em direção à mobilização por melhores


serviços públicos prestados na garantia do direito do cidadão ao
acesso universal e igualitário. Neste sentido o serviço de saúde em
ambos os países vem sofrendo constantes mudanças no processo de
gerenciar a atenção aos usuários conferindo aos profissionais destas
políticas novas possibilidades de prestar uma assistência mais inte-
gral e de forma resolutiva.31

A partir desta apresentação passaremos a analisar a gestão em saúde


e a presença do controle social efetivado através da participação. Como

31 Disponível em: <https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/9477/2/Politica_


de_salud_en_la_frontera_entre_Brasil_y_Uruguay_un_estudio_comparativo.pdf>. Acesso
em: 23/04/2016.

119
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

decorrência desse processo, foi possível observar a emergência de um novo


modo de prestação dos serviços em saúde.

1. GESTÃO EM SAÚDE, O CONTROLE SOCIAL:


APROXIMAÇÕES NA ORGANIZAÇÃO DA GESTÃO EM
SAÚDE DE BRASIL E URUGUAI

Podemos afirmar que em uma sociedade democrática o controle so-


cial — a participação assumida como estratégia política social em saúde
— é um dos seus fundamentos: “No Brasil a conquista da VIII confe-
rência de Saúde consolidada na Constituição Federal de 1988 delegou à
sociedade o poder de realizar o controle social de toda rede de serviços. ”32
Em vista disso, encontramos no Brasil e no Uruguai o controle social
como um dos novos mecanismos que surgiram a partir de 1988 - no caso
brasileiro - para a expressão e tratamento das novas demandas sociais, a
fim de se obter mais participação política e ação coletiva, fortalecendo,
assim, a democracia entre organizações da sociedade civil. Em nosso país,
a participação de cidadãos na gestão do sistema de saúde é garantida pelo
artigo 198,

As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regiona-


lizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado
de acordo com as seguintes diretrizes:

I - Descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - Atendimento integral, com prioridade para as atividades pre-


ventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade. (BRASIL,2013, p.34)

Ao longo dos anos que sucederam a implementação dos SUS a Lei nº


8.080, de 1990, e a Lei nº 8.142 do mesmo ano vieram para consolidar a
participação.

32 Disponível em: <https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/9477/2/Politica_


de_salud_en_la_frontera_entre_Brasil_y_Uruguay_un_estudio_comparativo.pdf>. Acesso
em: 23/04/2016.

120
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No caso Uruguaio, o grau de participação dos cidadãos está inserido


nas agendas “[...] do debate sobre a cidadania e incluem o problema das
novas dimensões da cidadania, dos direitos a ela associados [...]. ” (RA-
BOTNIKOF, 2005, apud NOGUEIRA, 2009, p. 87). A participação
pode ser mensurada pela intensidade em que os cidadãos acompanham o
funcionamento e a avaliação do sistema de saúde, pela utilização e coleta
das informações prestadas ao órgão público responsável.

A ANII ajuda a construir e articular atores envolvidos na criação


e utilização do conhecimento para fortalecer a colaboração e oti-
mizar o uso de recursos disponíveis. Além disso, conta-se com
um Plano Estratégico Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação
(PENCTI) no marco de um Gabinete Interministerial para Ino-
vação33.

Destaque-se que neste novo modo de gestão de serviços em saúde


encontramos a presença das Organizações Sociais em Saúde (OSS) — re-
presentantes do chamado “terceiro setor”. É de suma importância, nos
dias atuais, a discussão do papel desempenhado pelas Organizações Não-
-Governamentais (ONGs), Fundações, Associações etc., que compõem
o novo setor a que nos referimos (MONTÃNO, 2002). Observamos que
a criação e a implantação das Organizações Sociais em Saúde (OSS) se
apresenta como uma nova forma de gestão de serviços nesta área. Mas
como isso se realizou? É o que trataremos a seguir.

2. ORGANIZAÇÕES SOCIAIS EM SAÚDE: BRASIL


E URUGUAI E A PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS,
ALGUMAS APROXIMAÇÕES

2.1 O caso Brasileiro

As políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão de


proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, à re-
distribuição dos benefícios sociais, com o fito de diminuir as desigual-

33 Disponível em: <http://www.paho.org/saludenlasamericas/index.php?id=65%3Auru-


guay&option=com_content> Acesso em: 16/04/2016.

121
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

dades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico. Se-


gundo Marshall (1967, p. 7) política social é a “[...] política dos governos
relacionada à ação que exerça um impacto direto sobre o bem-estar dos
cidadãos, ao proporcionar-lhes serviços”.
Quando ao contexto das Políticas Sociais, as OSS, por sua vez, não
são um novo modo de constituição de pessoa jurídica, são um predica-
do atribuído a pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos,
dedicadas a finalidades específicas e que preencham os requisitos le-
gais. A celebração de “Contrato de Gestão” permite à entidade receber
recursos orçamentários e usar bens públicos necessários à consecução
de seus objetivos; neste último caso pela permissão de uso, conforme
os artigos 11 e 12 da Lei 9637/98. O governo poderá ceder servidor
seu para atuar nas OSS com a incumbência de pagar seus vencimentos,
de acordo com o artigo 14 da Lei 9637/98. Diante da possibilidade de
recebimento de recursos financeiros do Poder Público, a lei exige que
este fiscalize as atividades e proceda ao exame da prestação de contas
da entidade. As Organizações Sociais poderão sofrer desqualificação
de seu título quando forem descumpridas as disposições fixadas no
“Contrato de Gestão”.
As OSS constituem inovações institucionais com seu foco na relação
entre sociedade civil e o terceiro setor, em que a coordenação geral com-
pete ao Estado, no intuito de melhorar a gestão desta nova organização.
Para tanto, o controle social é decisivo.

Controle social significa o entendimento, a participação e a fis-


calização da sociedade sobre as ações do Estado. É uma forma de
realizar a democracia. Democracia é o sistema de governo no qual
as decisões políticas seguem as necessidades e as orientações dos
cidadãos, por meio de seus representantes (vereadores, deputados
e senadores) ou diretamente pelo povo. (BRASIL, 2010, p. 14).

Esta nova relação tem implicações sobre os processos de formulação


das políticas, com a participação dos diferentes atores sociais.

[...] esses atores ao atuarem em conjunto após o estabelecimento de


um projeto a ser desenvolvido onde estão claras as necessidades e

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obrigações das partes chegam a um estágio de harmonia que viabi-


liza a política pública. (TATAGIBA, 2002, p. 67-68).

Estas parcerias das OSS com o Estado são orientadas pelo modelo de
gestão tradicional de controle dos meios. Em alguns estados — São Paulo
e Mato Grosso, dentre eles — utiliza-se o controle por fins, em que o
sucesso do desempenho do contratado será avaliado principalmente em
função dos resultados atingidos. Duas leis no Brasil rezam que a Saúde
deve ser preferencialmente pública, depois filantrópica e, a seguir, de com-
petência da iniciativa privada — as leis n. 8.080 e n. 8.142.
Comparemos esta situação com a realidade uruguaia.

2.2 O caso do Uruguai

No caso Uruguaio percebe-se que são contratadas Organizações em


Saúde34, como podemos observar:

O Conselho Nacional de Saúde (JUNASA) assina contatos de de-


sempenho com as prestadoras públicas e privadas35, cujas cláusulas
fundamentais promovem os serviços de saúde baseados na atenção
primária, determinam as garantias explicitas do Plano Integral de
Atenção à Saúde e estabelecem metas de prestação de serviço para
avaliar o desempenho segundo as prioridades definidas pelo Mi-
nistério da Saúde Pública.36

As Organizações no sistema de saúde do Uruguai estão representadas


pelo principal fornecedor de serviços públicos — a Administração de Ser-
viços de Saúde (ASSE),

34 Não trataremos aqui o termo OSS no caso Uruguaio, pois não encontramos esta de-
terminação em nossa revisão de literatura, este termo é do Brasil “Os instrumentos legais,
vigentes desde 1997, já introduziram este modelo de gestão em vários estados brasileiros,
constituindo-se numa iniciativa paralela à implantação do próprio Sistema Único de Saúde/
SUS, definido na Constituição Federal de 1988. (MELO, TANAKA, 2001, p.1)
35 Uruguay, Ministerio de Salud Pública [Internet]. Decreto de contrato de gestión. Disponí-
vel em: <http://www.msp.gub.uy/ucjunasa_2207_1.html>. Acesso em: 18/06/2016.
36 Uruguai. Disponível em: <http://www.paho.org/saludenlasamericas/index.php?id=65%3Au-
ruguay&option=com_content>. Acesso em: 16/04/2016.

123
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

[...] que tem uma rede de estabelecimentos de cobertura nacional


que serve cerca de 37% da população, principalmente as pessoas
pobres sem cobertura segurança social. A Universidade da Repú-
blica, que oferece serviços nos três níveis de cuidados no Hospital
de Clínicas da ASSE suporta essa tarefa. Intervenções de alta com-
plexidade e alto custo são conduzidas no Instituto de Medicina
altamente especializados (IMAE) que são hospitais ou clínicas, que
podem ser fontes públicas ou privadas. (ARAN; LACA, 2011, p.
268).

Com referência ao Uruguai,

São assinados contratos de desempenho com prestadores públicos


e privados que regulam sua prestação de serviços e garantem a qua-
lidade da atenção. Esses acordos dispõem sobre sanções na even-
tualidade de os prestadores não cumprirem a entrega dos benefí-
cios contratuais, de modo a assegurar a integralidade e sustentação
das mudanças nos modelos de atenção e gestão. O monitoramento
está sob a responsabilidade de um órgão de inspeção exclusivo.37

As principais instituições públicas que trabalham na produção de co-


nhecimentos sobre saúde pública são

[...] 1. a Universidade da República, cuja Faculdade de Medicina


fornece espaços de discussão e aporta recursos para produção de
conhecimentos; 2. e a Agência Nacional de Pesquisa e Inovação
(ANII). Parceira importante da universidade, a ANII visa elaborar,
organizar e administrar planos, programas e instrumentos voltados
ao desenvolvimento científico-tecnológico e ao fortalecimento da
capacidade de inovação.38

37 Uruguai. Disponível em: <http://www.paho.org/SaludenlasAmericas/index.php?op-


tion=com_content&view=article&id=65%3Auruguay&catid=21%3Acountry-chapters&Ite-
mid=62&lang=pt>. Acesso em: 16/04/2016.
38 Uruguai. Disponível em: <http://www.paho.org/SaludenlasAmericas/index.php?op-
tion=com_content&view=article&id=65%3Auruguay&catid=21%3Acountry-chapters&Ite-
mid=62&lang=pt>. Acesso em: 16/04/2016.

1 24
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Foi criado em 2005 o ‘Consejo Nacional de Políticas Sociales’,

[...] por medio del Decreto 236/005 del 25 de julio de 2005 de la


Presidencia de la República, se crean el Gabinete Social y el Con-
sejo Nacional de Coordinación de Políticas Sociales (CNCPS). A
partir de ese momento se inicia una etapa nueva en la elaboración,
ejecución y seguimiento de las políticas sociales en el país, sen-
tando las bases de un trabajo articulado, con objetivos comunes y
sentido territorial. (MONTEVIDEO, 2009, p. 7).

As funções do Conselho Nacional de Política Social incluem:

Coordinar la planificación y ejecución del conjunto de las políticas


públicas sociales sectoriales que se desarrollan en todo el territorio
nacional de acuerdo a los principios de integralidad, eficacia, efi-
ciencia y transparencia de la gestión.

Instrumentar las resoluciones y acuerdos alcanzados en el Gabinete


Social. Elevar a consideración del Gabinete Social las propuestas,
proyectos e iniciativas acordadas a nivel del Consejo Nacional de
Coordinación de PPSS. Propender a la configuración de un siste-
ma de políticas sociales coherente con los propósitos y finalidades
del desarrollo y la participación social. Recomendar nuevos pro-
cedimientos, normativas y mecanismos que contribuyan a mejorar
las intervenciones sociales del Estado en materia de desarrollo so-
cial y políticas de bienestar social. (MONTEVIDEO,2009, p. 8)

Os uruguaios, desde 05 de dezembro de 2007,

[...] vivem a realidade da implementação do Sistema Nacional In-


tegrado de Saúde (SNIS) pela Lei 18.211, que “reglamenta el de-
recho a la protección de la salud que tienen todos los habitantes
residentes en el país y establece las modalidades para su acceso a
servicios integrales de salud”.39

39 Disponível em: <http://www.institut-gouvernance.org/bdf/es/experienca/fiche-expe-


rienca-7.html>. Acesso em: 23/07/2016.

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Em 2010

Un tercer nivel de gobierno y administración fue creado reciente-


mente (2010) con una autoridad local denominada Municipio, aún
en proceso de implementación. Como Estado Unitario las com-
petencias en salud, excepto algunas de vigilancia sanitaria, no están
delegadas a niveles locales. (GIOVANELLA, 2013, p.13).

A participação no sistema de saúde do Uruguai ocorre através dos

[...] conselhos de moradores atuam como porta-voz das necessi-


dades, demandas e propostas do bairro sendo estes reconhecidos
pela legislação municipal e integrados por organizações sociais,
culturais e desportivas que contribuem para o desenvolvimento do
bairro40

As experiências democráticas

[...] compartilhadas com a cidadania uruguaia ocorreram em 2006


e 2007, nos Fóruns Sociais Uruguaios de Saúde (FSUS), nas ci-
dades de Paysandú, Maldonado, Atlántida e Treinta y Tres e na
vigência do processo de reforma sanitária daquele país.41

O que se pode perceber com relação à participação dos cidadãos uru-


guaios com relação as Organizações Sociais é de uma participação onde
vários atores estão envolvidos, no controle social da gestão de saúde, e per-
cebemos também uma clara compreensão da existência de um Terceiro
setor, com características como “[...] responsabilidade social empresarial,
desenvolvimento local, reproduzindo tecido social e cidadania. ” (OLI-
VEIRA, 2005, p. 14)

40 Disponível em: <http://www.unavarra.es/digitalAssets/149/149677_1000001_Cha-


ves_Bellini_POLITICA-DE-SAUDE-NA-FRONTEIRA-ENTRE-BRASIL-E-URUGUAI--Agosto.pdf>.
Acesso em: 23/04/2016.
41 Disponível em: <http://www.institut-gouvernance.org/bdf/es/experienca/fiche-expe-
rienca-7.html>. Acesso em: 23/07/2016.

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Investigar experiências participativas torna-se um desafio quando se


fala em saúde. A tarefa de explorar os sistemas de saúde identificando a
forma como estão organizados, o modo como se estruturam, os processos
participativos, bem como compará-los, torna-se mais desafiador ainda,
como é o caso proposto por nós.

3. A PARTICIPAÇÃO COMO UM DOS MECANISMOS


DE MELHORA — MAIS EFICIÊNCIA, EFICÁCIA E
EFETIVIDADE — DO DESEMPENHO INSTITUCIONAL
DO SISTEMA DE SAÚDE DE BRASIL E URUGUAI

Pretendemos compreender a dinâmica e o processo em que se mani-


festa a participação política, a ação coletiva e a democracia entre organi-
zações da sociedade civil, como um dos mecanismos de melhora — mais
eficiência, eficácia e efetividade — do desempenho institucional do siste-
ma de saúde dos dois países em tela.

Ao considerar a política de saúde como uma política social, uma


das consequências imediatas é assumir que a saúde é um dos direi-
tos inerentes à condição de cidadania, pois a plena participação dos
indivíduos na sociedade política se realiza a partir de sua inserção
como cidadãos.42

No caso brasileiro a participação pode ser percebida sob a perspectiva


de seu potencial emancipador, quando a Lei 8142, de 28/12/90, Art. 198,
§ 3º, instituiu a participação da comunidade na gestão e controle do SUS.
Isto ocorre por dois mecanismos de controle social, potenciais geradores,
neste contexto, do aprofundamento da democracia, pois estão estrutural-
mente associados à prática participacionista em processos decisórios.
Percebe-se ainda que os vários espaços participativos têm contribuído
de forma significativa para o fortalecimento democrático das relações entre
Estado e sociedade civil. Um exemplo disso é o processo pelo qual passou
- e passa - a saúde, “[...] que resultaram em um sistema de controle social
cada vez mais qualificado, deliberativo, independente e representativo. ”

42 Disponível em: <http://www.escoladesaude.pr.gov.br/arquivos/File/TEXTO_1_POLITI-


CA_DE_SAUDE_POLITICA_SOCIAL.pdf> Acesso em: 28/07/2016.

127
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

(BRASIL, 2013, p. 12). Os resultados de estudos já mostrados apontam


para a relevância da participação da sociedade civil como um instrumento
de emancipação. Além disso, um fator como “[...] a igualdade entre todos
os cidadãos em relação ao acesso aos direitos garantidos pelo Estado via ins-
tituições é o fundamento da cidadania moderna”. (LOBATO, 2012, p. 16).
O estudo do funcionamento dos Conselhos de Saúde, no caso brasi-
leiro — dado seu objetivo de permitir a participação social na gestão das
políticas sociais de saúde — é um instrumento viável para identificar em
que medida o aprofundamento da democracia é prática efetiva. Para Boa-
ventura Santos (1987, p. 13), “o direito à saúde e às políticas de saúde são
parte integrante dos direitos sociais e das políticas sociais [...]”.
Quanto às OSS, o que percebemos em nossas reflexões iniciais é que
estas não possuem espaço para participação popular ou de movimentos
sociais. Seu funcionamento difere do mecanismo de “controle social”
democrático, quando comparado com a operacionalização do proces-
so decisório em conselhos de saúde, que “são instituições participativas
permanentes, definidas legalmente como parte da estrutura do Estado”.
(TATAGIBA, 2007, p. 62). O controle das OSS realizado pelo Estado é
condicionado às regras existentes em contrato fixado entre as partes. Esta
atuação preconiza prioritariamente a flexibilidade do parceiro privado.

O modelo contempla processo de seleção precedido de convoca-


tória pública e com exigência de experiência mínima das organi-
zações sociais interessadas em gerenciar equipamentos públicos de
saúde, garantindo a escolha de entidades sólidas, já experimentadas
e com boa reputação. As metas definidas nos contratos de gestão
mesclam indicadores de produção e qualidade que impactam di-
retamente no repasse dos recursos para as organizações sociais em
caso de não atingimento dos resultados previstos. Há acompanha-
mentos sistemáticos de resultados, que acarretam em eventuais re-
visões das metas dos contratos de gestão e permitem identificar o
quão realistas e desafiadoras foram as metas acordadas e realizar os
ajustes necessários. (CAMARGO et al., 2013, p. 4).

No caso das OSS, a participação - como um dos mecanismos de me-


lhora eficiência, eficácia e efetividade do desempenho institucional - pare-

128
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ce não se efetivar, pois percebe-se que o número de OSS criadas no início


de 2011 diminuíram bastante em relação a 2016, mostrando também o
acirramento das relações entre Estado, mercado e sociedade civil. No caso
uruguaio

Se concibe la Salud como un componente central de los derechos


humanos y el acceso a la atención de salud como parte de este de-
recho. El acceso a la atención a la salud de calidad es imprescin-
dible para disminuir el sufrimiento y permitir el disfrute de una
vida digna. A medida que la sociedad pueda garantizar a todos sus
miembros la atención frente a sus necesidades de salud individuales
y colectivas, se fortalece en la ciudadanía el sentimiento de mayor
protección y pertenencia, favoreciendo la cohesión social. (GIO-
VANELLA, 2013, p. 5).

Os cidadãos conquistaram as primeiras experiências de democracia


e cidadania à partir de 2006 e 2007, “nos Fóruns Sociais Uruguaios de
Saúde (FSUS) ”.43 as peculiaridades e complexidades da discussão sobre
a saúde como direito são originárias do processo de reforma sanitária da-
quele país e com participação ativa da sociedade civil organizada e de ges-
tores de saúde.
Pode-se afirmar que “[...] não há democracia sem seu ator principal,
que é o cidadão. ” (DEMO, 1988, p. 71). A democracia para os gregos
era uma forma de governo que visava o “bem comum” e está na gênese
da “doutrina clássica da democracia”, formulada a partir do século XVIII.
De acordo com Schumpeter (1984, p. 313), “o método democrático é
um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o
indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos
votos do eleitor” (SCHUMPETER, 1984, p. 328). Para Habermas, por
sua vez, a participação política

[...] além de ser um produto, é também um elemento propulsio-


nante do difícil e do incerto caminho da humanidade em direção
à sua própria emancipação. Com isto, evita-se o perigo de tratá-

43 Disponível em: <http://www.institut-gouvernance.org/bdf/es/experienca/fiche-expe-


rienca-7.html>. Acesso em: 23/07/2016.

129
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

-la como um fator que, ao lado de outros, garantem o equilíbrio


do sistema e de reduzir democracia a simples regras de um jogo.
(HABERMAS, 1983 apud CARDOSO; MARTINS, 1979, p.
376).

Entre as experiências consideradas inovadoras, conforme esta pers-


pectiva, pode-se identificar os espaços

[...] públicos participativos ou deliberativos que surgiram no Bra-


sil Pós-Constituição de 1988: os Conselhos de políticas públicas.
Estas experiências têm sido vista pelos autores como uma possibi-
lidade de aumentar a accountability no exercício do poder e exercer
o monitoramento da administração; de horizontalizar os processos
decisórios [...] ou de promover processos de “alfabetização políti-
ca” que se dão a partir de uma interação da sociedade com os es-
paços institucionalizados no plano local, que permitem a vivência
da noção de poder.44

Segundo Avelar (2004, p. 225), participação é um termo que “pro-


vém de uma palavra latina cuja origem remonta ao século XV. Vem de
participatio, participacionis, participatum. Significa ‘tomar parte em’, compar-
tilhar, associar-se pelo sentimento ou pensamento. ” Ao analisar a ques-
tão da participação popular nos conselhos de saúde, Bordanave (1994, p.
25) concebe-a como um “processo mediante o qual as diversas camadas
sociais têm parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma
sociedade historicamente determinada”.
De acordo com Pateman (1992), a democracia participativa tem como
objetivo transformar o cidadão em ator político. Somente se o indivíduo
desfrutar da oportunidade de participar de modo direto no processo de
decisão de seus representantes “[...] é que nas modernas circunstâncias,
ele pode esperar ter qualquer controle real sobre o curso de sua vida ou
sobre o desenvolvimento do ambiente em que vive. ” (PATEMAN, 1992,
p. 145-146).

44 Disponível em: <www.neic.iesp.uerj.br/textos2/Debora%20Resende%20de%20Almei-


da.pdf>. Acesso em: 25/04/2011.

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Em plena abertura democrática, após várias discussões ocorridas nos


Seminários e das Conferências de Saúde realizados em todo o país,

[...] resultaram no comprometimento de ambas as partes na


construção das seguintes diretrizes para o novo modelo nacio-
nal de saúde: “1) a afirmação do princípio da participação das
entidades representativas na formulação da política e no pla-
nejamento, gestão, execução e avaliação das ações de saúde;
2) a reformulação das Ações Integradas de Saúde, de modo a
possibilitar amplo e eficaz controle da sociedade organizada nas
instâncias de coordenação da época (CIS, CRIS E CIMS); 3)
a constituição de um novo Conselho Nacional de Saúde com-
posto por representantes de: ministérios da área social; gover-
nos estaduais e municipais; entidades civis de caráter nacional, a
exemplo de partidos políticos, centrais sindicais e movimentos
populares.” (BRASIL, 1987, p. 17-18).

A Comissão Constituinte de 1988, trouxe ao plenário a discussão so-


bre a reforma na saúde. Esse fato combinou dois processos políticos:

i. “[...] um processo de alargamento da democracia, que se


expressa na criação de espaços públicos e na crescente par-
ticipação da sociedade civil nos processos de discussão e de
tomada de decisão relacionados com as questões de políti-
cas públicas” (TEIXEIRA; DAGNINO; SILVA, 2002 apud
DAGNINO, 2002, p. 95);

ii. “[...] com a emergência de um projeto de Estado mínimo


que se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de
direitos, através do encolhimento de suas responsabilidades so-
ciais e sua transferência para a sociedade civil.” (DAGNINO,
2004, p. 95).

Associada à participação como fator constituinte e definidor de de-


mocracia está o controle social. Participação e controle convertem-se
em propulsores do processo de democratização, o que não se verifica nas
OSS, como se observa em conselhos de saúde no Brasil.

131
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo foi possível indicar que os conselhos são espaços de parti-
cipação e de democracia integrantes do novo arranjo político institucional
do Sistema Único de Saúde e do “Sistema Nacional Integrado de Salud”
(SNIS), de Brasil e Uruguai, respectivamente.
Percebe-se também que tanto no Brasil como no Uruguai os conse-
lhos são órgãos onde a participação mostra-se um canal importante, que
pode influenciar na agenda das políticas sociais em saúde. No caso das
Organizações Sociais em Saúde (OSS) os conselhos têm força participa-
tiva suficiente para inibir o avanço neoliberal que traz a precarização das
políticas sociais em saúde e que viola direitos já conquistados. Além de
mostrarem que estes conselhos possuem um histórico de lutas em favor da
qualidade e do acesso à saúde da população que representam.
Com isso, reforçamos nossa hipótese segundo a qual a participação
dos cidadãos na formulação e implementação de políticas sociais em saúde
é fundamental para a qualidade em sistemas de saúde, bem como para
assegurar os direitos de acesso a estes serviços.

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137
A PSICOPATOLOGIZAÇÃO DA VIDA
Carlos Henrique Barbosa Rozeira45

INTRODUÇÃO

Dentre as diversas preocupações humanas o fator “saúde” é sem dúvi-


das uma das mais relevantes. Embora haja um consenso popular em pen-
sar na saúde como ausência de doença, sua definição se expande segundo
a OMS (Organização Mundial de Saúde) como uma situação de perfeito
bem-estar físico, mental, social e espiritual. A saúde pode ser determinada
pela própria biologia humana, pelo ambiente físico, aspectos sociais e eco-
nômicos que permeiam o estilo de vida do sujeito, passando pelos hábitos
alimentares e atitudes que podem ser benéficos ou prejudiciais.
Consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no
artigo XXV, que todo ser humano tem direito a um padrão de vida com
saúde e bem-estar, para si e a sua família, incluindo alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. Ou seja,
o direito à saúde é indissociável do direito à vida, que tem por inspiração o
valor de igualdade entre as pessoas. Dentre os direitos fundamentais pre-
vistos na Constituição Federal do Brasil de 1988, o direito à saúde figura
entre os mais debatidos nos âmbitos acadêmico, doutrinário e judicial.
Após a inserção desse direito na Constituição Federal de 1988, a sociedade
brasileira tem se conscientizado que, efetivamente, é a destinatária final da
proteção conferida pelo Estado.

45 Acadêmico do Curso de Graduação em Psicologia da UniRedentor Itaperuna/RJ.

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A questão orgânica, fisiológica, sempre foi mais evidenciada no con-


texto da saúde, no entanto vivemos numa época que aspectos compor-
tamentais e mentais vêm nos proporcionando ampla angústia e forte so-
frimento psíquico, contribuindo para o declínio da qualidade de vida de
todos os atores da sociedade, sejam crianças, adolescentes, jovens, adultos
e idosos. A esse ato de atribuir ao psicológico uma doença ou anormalida-
de que, na verdade não existe, denominamos de psicopatologização.
É bastante perceptível que a criança é um ser rico em criatividade,
fato esse demonstrado nas atitudes que ela expressa no brincar. A forma da
criança se comunicar com o mundo se estabelece do uso de suas próprias
e íntimas verdades, constituídas com porções de fantasias como forma uti-
lizada para adaptar seus anos iniciais de vida na sua habitual rotina. Dessa
forma, surgem inúmeros tipos de comportamentos, os quais são ajustados
pela família enquanto perpassa pelas etapas do desenvolvimento humano
com o objetivo de tornar a criança numa espécie de produto “saudável”,
sem problemas físicos e psíquicos, ou seja, preparar a criança para que ela
seja no futuro um adulto funcional com seu corpo em perfeito estado
operacional e que respeite os valores, as regras morais e culturais de sua
sociedade. Assim, as porções de fantasias se dissolvem ao longo do tempo,
pois a permanência delas, somadas a outras constantes (temperamento,
comportamento, personalidade), pode ser interpretada como uma possí-
vel psicopatologia.
Com o avançar da idade, o cérebro sofre constantes transformações e
somente na idade adulta alcança a maturidade. Até alcançar esse patamar,
cada pessoa atravessa por algumas fases do desenvolvimento, possuindo
processamento psíquico e comportamentos singulares, os quais são re-
sultados de suas vivências. É claro que o fator biológico intervém neste
processo, vez que heranças genéticas ou aquisições de problemas fisiológi-
co-biológicos de qualquer natureza podem ser fruto de inúmeros fatos in-
terferindo na maneira de agir e pensar. A grande problemática se constitui
em justificar os problemas do homem descartando os processos psíquicos,
subjugando a importância da saúde mental.
Diante deste contexto, considerando os recentes padrões de compor-
tamentos delineados pelas famílias contemporâneas e a atual conjuntura
social influenciada pelo modelo biomédico de saúde, surge uma questão
que merece ser discutida: Por que estão tratando como doença ou como

139
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

grave alteração de um estado mental os comportamentos e as respostas


emocionais expostas pelas pessoas em sua rotina de vida?
Infere-se que existe um reducionismo biológico do sofrimento psí-
quico, herança da estereotipia psiquiátrica, a qual pressiona a acomodar
as manifestações de mal-estar e comportamentos ditos inadequados em
sinais e sintomas de alguma psicopatologia, utilizando-se, com critérios
questionáveis, de fármacos como tratamento em busca de adequar o su-
jeito aos padrões delineados por uma sociedade que prima pelo imedia-
tismo da resolução dos problemas da vida desconsiderando as possíveis
consequências negativas. Não se trata de rejeitar todo e qualquer uso dos
psicofármacos, pois são inegáveis alguns de seus positivos efeitos, princi-
palmente quando o comportamento da criança é atrelado a questões or-
gânicas.
Considerando a problemática em evidência, serão apresentadas neste
estudo relevantes questões sobre o aparecimento do fenômeno da pato-
logização e medicalização, bem como alguns aspectos que configuram o
cenário contemporâneo da saúde mental.

1. CONTEXTUALIZANDO A PSICOPATOLOGIZAÇÃO

A sociedade contemporânea apresenta insuficiências para reconhecer


e validar as diferentes variantes do sofrimento psíquico.
A infância e a adolescência são épocas de construção, de transfor-
mação, constituindo em essenciais etapas do desenvolvimento humano,
principalmente nos primeiros anos de vida. O bebê nasce e tão logo é es-
timulado a chorar, abrir os olhos, se alimentar, sendo preparado para “cair
na vida” tornando-se um ser que anda, corre, fala, pensa, se relaciona,
faz escolhas e se faz presente ocupando um lugar próprio no mundo. Ao
mesmo tempo em que ele é direcionado para a autonomia, há de se en-
caixar nos moldes da sociedade, muitas vezes sendo privado de viver suas
fantasias que são saudáveis para este período de vida.
Nos dias atuais, aquelas crianças que se comportam com atitudes vi-
vazes, direcionando sua atenção para determinados eventos que despertam
interesses são facilmente diagnosticadas com algum tipo de transtorno. É
querer tratar como doença os comportamentos que se assemelham com al-
guns sintomas. É arrumar estratégias paliativas para desmentir sofrimentos.

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Durante todo o período da vida, o homem atravessa por constantes


processos de mudanças, de forma que a soma de suas vivências - quais
sejam suas as relações com o meio político, cultural, econômico e moral,
juntamente com processamentos psicológicos que envolvem sentimen-
tos e emoções – forjam sua personalidade e comportamento. De acor-
do com Teixeira (2018), o desenvolvimento humano engloba diversos
fatores durante cada etapa da vida, sejam pelas circunstâncias culturais,
históricas e sociais, bem como as experiências singulares de cada ser.
Ainda, segundo a autora,

a cultura transforma o biológico, portanto, inclui-se a necessidade


de considerar o caráter histórico de emergência das formas cultu-
rais de ação humana. (...) O papel central atribuído às relações so-
ciais permite superar a ideia de um desenvolvimento preponderan-
temente biológico e enfatizar a ideia de desenvolvimento cultural
da mente humana. Podemos entender que o psiquismo humano
se constitui nas interações. Destarte, podemos entender que, nesse
processo, a base orgânica-biológica se transforma, se refina consti-
tuindo o funcionamento mental (TEIXEIRA, 2018, p.16).

Vale ressaltar que o desenvolvimento humano sofre algumas influên-


cias, sendo elas: a hereditariedade (que é sua carga genética), o crescimen-
to orgânico (trata-se do aspecto físico), maturação neurofisiológica (é o
que torna possível o desenvolvimento comportamental) e o meio (são to-
dos os ambientes que o indivíduo está inserido) (BOCK; FURTADO;
TEIXEIRA, 2009). Observa-se que todos esses fatores alicerçam a qua-
lidade de vida e costumam ser evidenciados e estudados quando surgem
problemas de ordem patológica. Evidenciamos então que “o homem é
geneticamente social” (WALLON, 1989, p. 12).
Diante deste contexto, evidencia-se que desde os iniciais instantes de
vida até o seu fim, o homem está sujeito a inúmeras transformações, no
entanto, conforme enfatiza Papalia e Feldman (2013), o período da in-
fância é considerado fundamentalmente essencial para o desenvolvimento
humano, pois ocorrem as primeiras experiências, vínculos, aprendizados
que afetam densamente o posterior desenvolvimento social, físico, cogni-
tivo e emocional. Mas, cronologicamente, quanto tempo engloba o pe-

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

ríodo da infância? Discursando sobre o ciclo da vida, Papalia e Feldman


(2013) observam que não há nenhum momento objetivamente definível
em que uma criança se torna adulta, apesar de alguns autores preverem
certos limites etários.
Independentemente de firmar um período quanto à duração da in-
fância, torna-se mais importante, neste momento, refletir sobre as viola-
ções, descasos e negligências, apontando implicações para com o processo
do desenvolvimento, com a proposta de identificar as possíveis questões
que contribuíram para o aparecimento do fenômeno da patologização e
medicalização.
É fato incontestável que a família exerce um fundamental papel na
mediação da relação sujeito-ambiente, facilitando o processo de adap-
tação e ajustamento no contato com seu meio social. Inúmeras ques-
tões representam preocupações quanto ao desafio de manter saudável
um ser humano por toda sua existência. A atual sociedade não possui
paciência para determinadas diligências, principalmente quando se ob-
serva que é necessário tempo, tolerância e equilíbrio emocional para
lidar com o forjamento de uma criança para seu encaixe no padrão de
normalidade estabelecido pela sociedade, que Goffman (2004) carac-
terizou como estigmatização, ou seja, uma pré-definição que insere o
sujeito dentro de um padrão normativo, relacionado diretamente com
construções sociais, constituindo o estigma como característica que
inscreve socialmente o sujeito fora deste padrão. Ao invés de um in-
vestimento de energia humana pelas famílias para essa adequação dos
comportamentos das crianças aos seus desejos e vontades, tornou-se
mais fácil torná-los dóceis com a psicopatologização e consequente
medicalização. É uma tentativa de acabar com o sofrimento. Mas o
sofrimento de quem, dos pais ou dos filhos?
Por muitas décadas, a correção do mau comportamento infantil era
realizada pela própria família através de diálogos, castigos, “palmadas, co-
ças” e olhares perversos que “doíam na alma”. Segundo Foucault (2010),
o olhar hierárquico, que estigmatizava e reprimia o que não era aceitável,
tinha como objetivo disciplinar o corpo dócil, mas o modelo biomédico
de certa forma se apossou desse poder, surgindo assim o modelo higie-
nista - manipulando, modelando, treinando - como detentores do poder
representados pela figura médica.

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Foucault (2006), ao analisar a questão da infância e sua anormalidade


no contexto europeu dos séculos XVIII e XIX, coloca que a infância foi
um dos alvos de difusão do poder psiquiátrico, uma espécie de "suporte"
do processo de psiquiatrização. Para o autor, a psiquiatrização da criança
não passou pela criança louca ou pela loucura da infância, mas antes pela
criança imbecil, a criança idiota, que será chamada em seguida de criança
retardada. É através da criança não-louca que a psiquiatrização da criança
se produziu, e logo, essa generalização do poder psiquiátrico.
Considerando a afirmação de Siqueira e Frosi (2018) que a com-
preensão da infância foi se modificando de forma gradual, percebemos
que atualmente, há uma ampla preocupação diante do comportamento.
Os pais, os educadores e outros profissionais, aproveitando do poder psi-
quiátrico elencado por Focault, acabam por buscar nos nomes de diagnós-
ticos e estigmas uma resposta para um comportamento inesperado ou até
mesmo um suposto mau comportamento.
De malvadas, irresponsáveis, preguiçosas ou elétricas, mal-educadas,
desatentas ou desinteressadas, as crianças e adolescentes passaram a ser
consideradas doentes, eximindo a família ou a si próprias da culpa por seu
comportamento.
Atualmente temos como fruto social, adolescentes que foram forjados
nas suas vivências a terem comportamentos marginalizados, cometendo
variados delitos e episódios violentos. Diante deste fato, surgem adoles-
centes em medidas protetivas ou socioeducativas - dispositivos jurídicos
a fim de promover um controle social. A interferência e a forma de olhar
para esses sujeitos não considera os contextos em que as delinquências são
produzidas. Há um silenciamento do indivíduo e das singularidades, e
uma captura da vida por processos biologizantes (CRPSP, 2019).
Segundo Vicentin et. al (2010),

essa composição do ato infracional com o transtorno mental vem


construindo argumentos tanto para modificações no Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) –seja no tempo de aplicação
da medida ou na proposição do tipo de medida – quanto para a
produção de práticas dirigidas ao autor de ato infracional que são
frontalmente contrárias aos paradigmas do ECA e às da atual po-
lítica nacional em Saúde Mental (VINCENTIN ET. AL, 2010).

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Mais do que modificações nos atos judiciais é preciso haver um com-


prometimento interdisciplinar. O campo da saúde mental tem contribui-
ções relevantes sobre a relação do sujeito com a lei ou sobre como um
sujeito faz laço social atravessado necessariamente pelo campo jurídico; e
que existem espaços para pensar as relações entre os sistemas assis-
tenciais, especialmente os psi, e os de justiça de modo que eles não se
coloquem um como fonte de legitimação do outro (VINCENTIN ET.
AL, 2010).
Independentemente da faixa etária, experiências como ansiedade,
tristeza, mau-humor, antes consideradas como traços da personalidade ou
como parte do cotidiano, hoje são caracterizados como algum tipo de
transtorno psiquiátrico, para o qual possivelmente há um medicamento
específico a ser prescrito para alcançar a felicidade (ANDRADE, CALA-
ZANS, 2014). Ainda, a concepção de estar bem psiquicamente parece
ser algo obrigatório gerando a premência de soluções encontradas mo-
mentaneamente nos psicofármacos, sendo que estes não anulam de fato
o sofrimento, mas por consequencia podem aumentar o vazio do existir
(AGUIAR, 2004).
Em relação ao sujeito idoso há questões que merecem ser discutidas.
A maneira de viver e sentir a vida são, muitas vezes, afetados pela forma
como eles são tratados pela sociedade, além de carregar as suas boas ou
más vivências. Entretanto, os sujeitos que constituem esse estágio da vida
tendem a não serem mais vistos como produtores de bens e lucros, co-
locando-os às margens da sociedade. São vistos como um peso, alguém
que vai depender dos familiares e ainda tendem a ser alvo direto de uso
abusivo de medicamentos (ANDRADE, CALAZANS, 2014). O cor-
po idoso já percorreu bastante tempo de vida, e obviamente merece uma
atenção, mas de igual modo a sua mente. É importante abranger a saúde
considerando tanto as queixas físicas do organismo quanto os conflitos da
subjetividade. Quando esse aspecto subjetivo não é tratado aparecem os
problemas mentais, principalmente a depressão que está tão evidenciada
nas últimas décadas, tratadas simplesmente com antidepressivos, sem o
devido acompanhamento psicológico.
Conforme Mucida (2004), os sentimentos da pessoa idosa conflitam
com sua realidade causando-lhe angústia, sofrimento, por vezes, desâni-

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mo, e essas características já o identificam logo como depressivo, tanto


pela sociedade como pela classe médica.
No campo do sofrimento psíquico o consumo de medicamentos não
é o exclusivo modo de tratamento. Há possibilidades que atravessam a
questão bioquímica, principalmente quando se dá voz ao sujeito trans-
mitir suas angústias através das palavras. Onde há palavra, há um sujeito
que pode se responsabilizar pelo seu sintoma e por seu tratamento, con-
tribuindo para uma efetiva evolução, rumo ao bem estar e melhorar a qua-
lidade de vida.

2. O SURGIMENTO DO FENÔMENO DA
PATOLOGIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO

Desde a primeira versão da série DSM (Manual Diagnóstico e Esta-


tístico de Transtornos Mentais) em 1952, ficou mais fácil enquadrar certos
comportamentos nos sintomas descritos. Engatou-se nesse processo um
maior investimento financeiro na psiquiatria e na indústria farmacêutica,
pois mostrou-se clara a oportunidade enriquecimento às custas do novo
modelo de ajustamento de comportamento (GUARIDO, 2007). A auto-
ra ainda completa dizendo que:

A ampla gama de sintomas presentes nos manuais bem como a


forma diagnóstica proposta por eles permitem que muitos acon-
tecimentos cotidianos, sofrimentos passageiros ou outros com-
portamentos, possam ser registrados como sintomas próprios de
transtornos mentais. A socialização do DSM-IV na formação
médica geral permite que clínicos de outras especialidades, que
não a psiquiátrica, possam medicar com facilidade seus pacientes.
Não se trata de sugerir a manutenção do domínio psiquiátrico
nesse caso, mas de revelar a banalização do diagnóstico e o uso ir-
restrito de medicações como intervenção diante da vida. (GUA-
RIDO, 2007, p. 158)

Fala-se em medicalização desde a década de 60 e no decorrer do tem-


po mais problemas foram sendo incorporados ao campo médico. A me-
dicalização é um processo que se compõe de duas etapas: a primeira é
considerar todo e qualquer problema uma questão de ordem médica e,

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

por conseguinte, com uma causa biológica; a segunda é a patologização de


problemas da ordem da existência, principalmente o sofrimento psíquico
(Calazans & Zetola, 2008). Assim, a medicalização se configura no pro-
cesso nos quais problemas que não eram considerados de ordem médica
passaram a ser vistos e tratados como problemas médicos. No entanto,
para Brzozowski e Caponi (2013, p. 210),

seria muita ilusão pensar que a medicalização traga consigo somen-


te aspectos negativos, já que a sociedade a aceita há muito tempo
(pelo menos desde o século XIX). Mas também não podemos ne-
gar que há uma supervalorização de determinados diagnósticos,
o que faz que muitas pessoas normais sejam diagnosticadas com
transtornos mentais, por exemplo.

Para Correa (2010), sujeitos que se diferenciam das normas são classi-
ficados, por profissionais, como portadores de distúrbios, o que os obriga
a fazer parte de um novo grupo, controlado por psicotrópicos, para fins de
contenção e adaptação social. Sem qualquer questionamento, esta forma
de abordagem vem se naturalizando e se fundamentando, mais especifica-
mente através das ciências neurológicas.
Os comportamentos, traduzidos às vezes de forma errônea em sinto-
mas, provavelmente revelam formas de resistência pelos sujeitos como re-
cursos para lidar contra o excesso de imposições, diante de uma infatigável
caça de espaços de liberdade e espontaneidade. Pessoas que se deprimem,
que sofrem, que se isolam, que fracassam na escola ou no trabalho, que não
rendem e não aprendem muitas vezes teme sair de casa ou resulta-se sen-
do agressivo com os outros, ou seja, o sujeito surge como um protagonista
perverso e estranho. Conforme Correa (2010), quem não se redime não se
adapta e, para ser aceito, precisa ser contido através de medicamentos.
Assim, segundo Ferrazza e Rocha (2011, p. 243),

a transformação do sofrimento psíquico em doença e seu enqua-


dramento no âmbito da variedade de rotulações diagnósticas pro-
duzida pela psiquiatria apresenta sinais de estender-se, atualmen-
te, a uma infância que ainda vinha sendo poupada dos veredictos
psicopatológicos e da prescrição de psicofármacos que costuma
acompanhá-los. As condutas da infância, por exemplo, que são

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consideradas inadequadas e/ou indesejáveis estão sendo transfor-


madas, pelo saber psiquiátrico, em manifestações sintomáticas de
psicopatologias.

O processo da psicopatologização da vida tornou-se fato comum no


atual momento da sociedade, principalmente quando se há nos bastidores
interesses econômicos e políticos. Há uma tendência geral da medicina
em transformar em questão médica aquilo que é da ordem do social, do
econômico, do político, do cultural (AMARANTE, 2007).
Apesar de todo esse discurso, se faz importante não rejeitar o uso de
todo e qualquer psicofármacos, pois comprova-se positivos determinados
efeitos, tanto na vida de alguns como na possibilidade de transformação
do sistema de cuidados e tratamento da loucura. E muitos casos, o medi-
camento é o tratamento mais recomendado, principalmente aqueles que
têm origens biológicas. Se há suspeita de algum transtorno mental e o su-
jeito é encaminhado a um profissional da saúde e se a suspeita for confir-
mada, a responsabilidade por aquele sujeito passa a não pertencer somente
à família, mas também aos profissionais da saúde que passarão a atendê-lo
(Brzozowski, 2009). 
Ainda lembra Brzozowski (2009, p. 210) que

as novas descobertas científicas aparecem como as explicações mais


aceitas para os diferentes comportamentos, sensações e sofrimen-
tos humanos. A ciência acaba aparecendo como portadora da ver-
dade, por meio de um discurso que ela mesma diz ser impessoal e
ateórico.

De acordo com Guarido (2010), a crítica à medicalização da vida não


nega os avanços das pesquisas biológicas e dos tratamentos de doenças,
mas procura refletir sobre as implicações que a biologização do ser huma-
no pode ter para a própria condição humana.
O cenário biomédico está se expandindo desde o século XVII, quan-
do o médico assume uma posição superior de saber dentro dos hospitais
e passaram a englobar na sua atuação problemas fora da ordem biológica,
processo que Ivan Illich (1975 apud FERRAZZA & ROCHA, 2011)
chamou de medicalização da vida. A medicalização pode ocorrer nos casos

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

de desvios de comportamento - alcoolismo, hiperatividade e dificuldades


de aprendizagem - e processos naturais da vida - sexualidade, desenvolvi-
mento infantil, envelhecimento e o processo de morrer (FERRAZZA &
ROCHA, 2011).
Paralelo a esse fato há um olhar de normal e patológico a ser discu-
tido. Um mesmo comportamento pode ser julgado diferentemente em
uma cultura ou em um período do tempo. As necessidade e normas da
vida se exprimem devido ao indivíduo estar inserido no social. Para Can-
guilhem (1966, p. 118) a “[...] ciência médica se contenta com o corpo
humano normal e procura apenas restaurá-lo”, pois a determinação do
mal pressupõe o normal. A isso o autor denominou de “erro médico”
a frequente propensão para determinar o estudo de mal social antes de
propor os remédios para esse mal. E ainda afirma que o “problema social
é exatamente o contrário do médico”. (CANGUILHEM, 1966, p. 118)
Foi observado por que há uma tendência a procurar as causas e as so-
luções de problemas sociais complexos nos indivíduos, em vez de buscá-
-los no próprio sistema social. Procura-se refletir sobre as implicações que
a biologização do ser humano pode ter para a própria condição humana
(GUARIDO, 2010).
Atrelada ao diagnostico, vem a medicação. Com a medicalização,
questões sociais tornam-se biológicas, o que naturaliza a vida e todos os
processos sociais nela envolvidos. Dessa forma, explica-se um quadro
complexo, que envolve questões psicológicas e sociais, apenas por meio do
desequilíbrio de um ou mais neurotransmissores no cérebro. A expansão
da rotulação psiquiátrica atinge também as problemáticas relacionadas à
infância que têm sido capturadas pelos discursos e práticas do saber mé-
dico-psiquiátrico e transformadas em psicopatologias que tendem a ser
tratadas com o principal recurso disponibilizado pela psiquiatria na con-
temporaneidade: os psicofármacos.
Um dos diagnósticos mais evidenciados neste tempo é o Transtor-
no do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) o qual tem de-
mandado a utilização de fármacos. Atualmente, existe uma higiene que
recorre ao medicamento (Cloridrato de Metilfenidato), sendo que a prio-
ridade é extirpar os sintomas de hiperatividade e desatenção referentes ao
TDAH por meio da medicalização, para que a criança possa atender um
ideal apresentado como o adequado.

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Para Ferrazza e Rocha (2011), o aumento dos diagnósticos de TDAH


e dos psicofármacos estão relacionadas a fatores, como: supervalorização
da concepção biológica do sofrimento psíquico e a distorção do que são
comportamentos considerados adequados. Fatores que, atualmente, sejam
motivos de encaminhamentos para a avaliação com especialistas em psi-
cologia ou em psiquiatria, mesmo sem queixas quanto à saúde mental,
porém com recusas e dificuldades de adaptação a normas sociais.
Sobre a questão dos psicofármacos, os psiquiatras da Associação Bra-
sileira de Déficit de Atenção (ABDA) alegam sobre as vantagens em me-
dicar as crianças e adolescentes diagnosticados com esse transtorno, pois,
“os sintomas do transtorno podem prejudicar o desenvolvimento emo-
cional e até levar ao consumo de substâncias químicas, como álcool e dro-
gas.”. Porém os argumentos de que esse medicamento poderia evitar que
essas crianças e adolescentes se tornassem, mais tarde, usuários de drogas
ilícitas não foram comprovados e costumam ser apresentados como meras
especulações (LEGNANI; ALMEIDA, 2008).
Até aqui foi dado o maior enfoque na criança, justifica-se por ser a
fase inicial do desenvolvimento humano que incidirá consequências para
as demais fases. No entanto, fica óbvio que os princípios ativos dos fár-
macos tendem a camuflar o comportamento de qualquer sujeito, inde-
pendentemente de sua faixa etária. Trata-se de medida paliativa que se
não for conjugado com um tratamento psicológico adequado não haverá
evolução focado no desenvolvimento da saúde mental do sujeito.
Por isso, Formigoni (2013) enfatiza que, o uso de medicamentos
carece ser revisto. As pessoas precisam ser analisadas em seus atos, para
que sejam realizados diagnósticos mais completos sobre as suas demons-
trações, consideradas, pelo padrão construído pela sociedade, como al-
terados, uma vez que, não corresponde o modelo considerado ideal de
desenvolvimento. Profissionais da saúde mental precisam sustentar um es-
paço para a palavra e escuta implicando o sujeito quanto à sua participação
naquilo que se queixa, de modo a criar um contraponto daquilo que já se
encontra pronto e embalado.
A medicalização da terceira idade se faz presente na sociedade como
uma perspectiva que generaliza como patológico toda e qualquer queixa
que o sujeito leva aos consultórios. Seus sofrimentos e angústias são diag-
nosticados muitas vezes, como depressão e são transformados em cifras

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

estatísticas a partir do ponto vista epidemiológico que se quer prevalentes


na psiquiatria atual (ANDRADE, CALAZANS, 2014).
Ainda, Andrade e Calazanz (2004) aduz que

o idoso ao se sentir desconfortável com a sua realidade, tende a


procurar exclusivamente um profissional da medicina. Tal proce-
dimento soma números ao processo medicalizante da sociedade,
uma vez que esse idoso não estaria sendo tratado no que lhe afeta
realmente, suas questões enquanto sujeito, desejos e aflições. (AN-
DRADE, CALAZANS, 2014, p.84).

Percebemos que um tratamento embasado no caráter biológico em


que o diagnóstico e o tratamento estão pautados exclusivamente no seu
corpo físico, considera as aflições como um defeito na sua estrutura or-
gânica, procurando correlacionar os sintomas com determinados grupos
descriminados em algum tipo de manual, garantindo um rápido diagnós-
tico, talvez incerto, mas certamente com a prescrição de medicamentos
para uma possível solução.
A definição do estado ótimo de desenvolvimento para certo indiví-
duo em comparação com seu desenvolvimento real requer tempo de ava-
liação e experiência profissional. A promoção de fatores de resiliên­cia e a
redução dos fatores de risco se com­plementam e ambos os temas merece­
dores de um olhar diferenciado na prática individual e na formulação de
políticas pú­blicas em prol dos direitos humanos nos aspecto da saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A psicopatologização e a consequente medicalização constituem peri-


gosos marcadores na constituição do ser humano. Infere-se que a amplia-
ção do número de categorias diagnósticas incluídas nos principais siste-
mas classificatórios (DSM e CID-10) tem trazido problematizações entre
as fronteiras do normal e do patológico. A esse crescimento do número
de diagnósticos e/ou classificações, que engloba comportamentos que no
momento são considerados “anormais” ou “atípicos”, se caracterizam no
fenômeno da psicopatologização.

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A normatização e padronização de comportamentos, muitas vezes


auxiliada pelo psicólogo, produzem a patologização da normalidade. As
condutas que são consideradas inadequadas e/ou indesejáveis estão sendo
transformadas, pelo saber psiquiátrico, biomédico, em manifestações sin-
tomáticas de psicopatologias.
Torna-se possível comprovar o fenômeno da psicopatologização e da
medicalização quando se trata com remédios a escolarização, a tristeza,
a oposição, o desafio, o desejo de domínio sobre o outro, a rebeldia, os
medos, a inquietude, as dificuldades da vida, elementos que compõem o
desenvolvimento e a história de cada sujeito.
O diagnóstico enquanto reconhecimento da patologia é construído
a partir da observação. A observação pressupõe a comparação de suas
manifestações com aquelas catalogadas, reencontrando a classe do trans-
torno que ela representa, explicando-a como uma categoria. Esse ideal
classificatório na busca pela garantia da objetividade afasta as manifesta-
ções subjetivas.
O cuidado com o sujeito tem implicado na análise dos múltiplos
processos que atravessam a sociedade e de que maneira a afeta. Ao ana-
lisarmos as transformações no campo do cuidado em saúde, princi-
palmente quando se aponta para o psíquico, somos movidos a refletir
sobre a produção histórica, apontando os saberes, discursos e práticas
instituídas em determinados períodos e produzindo verdades sobre o
sofrimento humano.
Consultar especialistas é, por certo, uma prudente e adequada ação.
No entanto ninguém pode se isentar quanto à responsabilidade de uma
cuidadosa ponderação sobre o enquadramento clínico dado ao proble-
ma e sobre as medidas terapêuticas recomendadas. Constitui apropriado
considerar o risco da comodidade enganosa de certa desresponsabilização
da família, que já teriam delegado aos especialistas a responsabilidade de
medicar e corrigir problemas cujo enfrentamento delicado e responsável
nem sempre é isento de dúvidas e inquietações. Dessa forma, ao invés
de oferecer cuidado, essa atitude de delegação de responsabilidade pode
constituir-se na permissão para que a subjetividade dos sujeitos possa ser
apropriada por discursos patologizantes e condutas de medicação, cujos
riscos devem ser considerados.

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POLARIZAÇÃO DA DOENÇA CÁRIE
E DIREITOS HUMANOS - GRANDES
ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS
DE 1986 A 2010 NO BRASIL E
PERSPECTIVAS PARA O CENÁRIO
ATUAL
Ana Beatriz Fernandes da Silva Monteiro
Erick Oliveira Küchenmeister de Memória
Arilma Selma de Oliveira Carvalho
Marayana Delane Batista Melo

INTRODUÇÃO

A doença cárie é a mais frequentemente tratada na odontologia brasi-


leira, sendo ainda a maior causa de perda dentária no país. Apesar de não
ser fatal ela é um importante indicador de bem estar geral de uma popula-
ção tendo em vista que trata-se de uma doença multifatorial, relacionada
a má alimentação, subnutrição, idade, hipossalivação, entre outros fatores
que podem gerar um desequilíbrio na microbiota bucal ocasionando o
acúmulo de biofilme da doença cárie. No Brasil ela tem maior incidência
em populações mais vulneráveis e acarreta consequências graves para o
psicológico, decorrentes não apenas dos problemas estéticos ou funcionais
que a perda dentária traz, mas também porque os dentes e a boca têm um
significado psicológico importante na formação do psiquismo humano,
problemas na vida diária de natureza funcional e social tais como: difi-

156
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

culdades para mastigar, falar, mudanças no comportamento, insatisfação


com a aparência, prejuízo na aceitação social e dificuldade de acesso ao
mercado de trabalho, causando forte impacto na qualidade de vida dos
indivíduos. (VARGAS, et al. 2005)
Entre os anos 1986 e 2010 aconteceu um declínio exponencial da in-
cidência da doença no país, devido a ações de assistência e conscientização
coletivas, a maior cobertura da fluoretação da água e o advento dos denti-
frícios fluoretados. Porém, apesar da melhora do cenário geral, percebeu-
-se que no Brasil alguns lugares haviam índices da doença ainda muito
altos, enquanto em outros locais a doença estava praticamente erradicada.
O presente estudo tem como objetivo estimar a polarização da cárie
em crianças e adolescentes no Brasil, ressaltando os fatores determinantes
para o declínio da doença e os desafios que precisam ser superados para
a erradicação da perda de dentes por cárie nessa faixa etária. Também
pretende fazer uma estimativa para o cenário atual, levando em conta os
avanços ou retrocessos nas políticas de promoção à saúde, tendo em vista
que não temos estudos amplos nessa área desde 2010. Para isso, foram pes-
quisados artigos nas bases de dados Scielo/LILACS e dados epidemioló-
gicos do ministério da saúde, sobre a história da doença no país e as atuais
condições dessa faixa etária no que tange a doença, de forma a integrar
essas informações, ter dados para a discussão da existência e como tem se
dado o processo de polarização.

1. GRANDES ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS DE 1986 A


2010 NO BRASIL

Em 1986 a doença cárie era considerada como tendo uma distribui-


ção homogênea no Brasil (Narvai et al.,2006). Em 2003, 20% da popu-
lação de escolares passou a concentrar cerca de 60% da carga de doença
(Narvai et al.,2006). Em 2010 as pesquisas mostraram que aos 12 anos,
idade-índice utilizada internacionalmente para fazer comparações, o ín-
dice CPO (soma dos dentes cariados, perdidos ou obturados) apresentou
uma média de 2,1, valor 25% menor do que o encontrado em 2003 2,8
(FREIRE,. 2013). No componente relativo aos dentes não tratados (ca-
riados), a redução foi de 1,7 para 1,2. O percentual de crianças “livres de
cárie” (CPO = 0) passou de 31% em 2003 para 44% em 2010, indicando

157
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

que, em crianças de 12 anos, ocorreu significativa redução na prevalência


e na gravidade da doença.
Essa importante tendência de declínio da cárie e o incremento no
acesso aos serviços se reproduzem também nos adolescentes (Frias AC,
et al. 2007). Isso chama atenção para o fato de que embora a prevalên-
cia e a severidade da cárie dentária tenham diminuído entre as crianças
e adolescentes brasileiros, persistem as dificuldades para ampliar o acesso
aos recursos de prevenção e para assegurar tratamento dentário às pessoas
afetadas, de forma que embora os índices de pessoas afetadas pela cárie seja
semelhante em todas as classes sociais, o prognóstico da doença é pior para
aqueles que se apresentam em vulnerabilidade social e residentes em área
rural o que ocasiona a muitos nessa situação a perda precoce do elemen-
to dentário, outro fato preocupante é que ainda é alto o índice da cárie
na dentição decídua, sendo que 80% dos dentes afetados continuam não
tratados (Narvai et al.,2006). As restaurações dentárias correspondem a
cerca de um terço dos cuidados ofertados, e as exodontias, expressão cruel
da mutilação dentária precoce, mantêm-se com percentagens superiores
a 6% dos dentes afetados por cárie. A elevação do acesso tanto à água
quanto ao creme dental fluorados têm resultado em expressiva diminui-
ção na prevalência geral da cárie dentária, principalmente nas regiões sul
e sudeste, infelizmente na região norte e nordeste os índices ainda são
muito preocupantes. Contudo, tais estratégias não têm sido suficientes
para reduzir as desigualdades entre as regiões e na população escolar como
um todo. Esses fatos indicam a necessidade de políticas voltadas para a
equidade na atenção.
Os resultados demonstraram que embora a prevalência e a severida-
de da cárie dentária tenham diminuído entre as crianças e adolescentes
brasileiros, persistem dificuldades para ampliar o acesso aos recursos de
prevenção e para assegurar tratamento igualitário às pessoas afetadas, de
forma que o prognóstico da doença é pior para aqueles que se apresentam
em vulnerabilidade social e residentes em área rural (ROMCALLI et al,
2011).
É papel do estado regular ações para provisão de bens coletivos através
de políticas públicas de saúde. essas políticas se relacionam com ações pú-
blicas que regulam e distribuem bens e serviços para a população baseado
em diretrizes e objetivos de saúde.

158
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A partir de 2015, a ONU estabeleceu a Agenda 2030, com os Objeti-


vos e metas para serem alcançados até o ano de 2030, como por exemplo,
garantir saúde e bem-estar. Junto a Agenda 2030, dois documentos são
fundamentais para a implementação da saúde bucal pública, preventiva
e universal, a Carta de Bangkok, de 11 de agosto de 2005, que promove
a saúde em um mundo globalizado e a Declaração de Liverpool, de 07 à
10 de setembro de 2005, que afirma o compromisso com a promoção da
saúde bucal no século XXI.

2. O PAPEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS


- ONU, NA IMPLEMENTAÇÃO DO DIREITO UNIVERSAL
DE ACESSO À ÁGUA E PROMOÇÃO DA SAÚDE E
PREVENÇÃO DE DOENÇAS BUCAIS.

A partir do ano 2000, a ONU estabeleceu, através da Declaração do


Milênio das Nações Unidas, os Objetivos de Desenvolvimento do Milê-
nio - ODM, para serem adotados pelos 191 Estados membros. Esta ini-
ciativa trata-se de um esforço internacional para o desenvolvimento de
políticas nas áreas dos direitos humanos e das mulheres, igualdade social e
racial e meio ambiente. Com o estabelecimento dos ODM providos até o
ano de 2015, surgiram debates que estabeleceram os Objetivos do Desen-
volvimento Sustentável - ODS, ou simplesmente Agenda 2030, com 169
metas organizadas em 17 Objetivos comuns entre 193 Estados membros
da ONU, ainda no mês de setembro de 2015. “Histórico ODM — Ob-
jetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS”.
O ODM 7, estabelece a meta de reduzir para metade a parcela da
população que não possui acesso à água potável e ao saneamento básico
até o ano de 2015. A Assembleia Geral da ONU através da Resolução A/
RES/64/292 de 28 de Julho de 2010, consolidou “a água limpa e segura e
o saneamento um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os
outros direitos humanos”. “International Decade for Action ‘Water for Life’
2005-2015”
Na prática significa dizer que:
• O acesso à água potável segura e ao saneamento básico é um di-
reito legal, e não um bem ou serviço providenciado a título de
caridade;

159
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

• Níveis básicos e melhorados de acesso devem ser alcançados cada


vez mais rapidamente;
• Os “pior servidos” são mais facilmente remediados e, por conse-
guinte, as desigualdades mais rapidamente diminuídas;
• As comunidades e os grupos vulneráveis serão capacitados para
participarem nos processos de tomada de decisão;
• Os meios e mecanismos disponíveis no sistema de direitos hu-
manos das Nações Unidas serão utilizados para acompanhar os
progressos das nações na concretização do direito à água e ao sa-
neamento, de forma a responsabilizar os governos. “International
Decade for Action ‘Water for Life’ 2005-2015”

A partir de Novembro de 2002, o Comitê das Nações Unidas para os


Direitos Econômicos, Sociais e Culturais proferiu o seu comentário geral
Nº 15, afirmando o direito à água: “O direito humano à água prevê que todos
tenham água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis
para usos pessoais e domésticos”. “International Decade for Action ‘Water for
Life’ 2005-2015”
Dentre os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU,
estabelecidos na Agenda 2030, vale à pena salientar a importância de al-
guns Objetivos e metas, que são os seguintes; Objetivo 3. Saúde e Bem-
-Estar: Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos,
em todas as idades; 3.8 atingir a cobertura universal de saúde, incluindo
a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de
qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes,
de qualidade e a preços acessíveis para todos; 3.d reforçar a capacidade
de todos os países, particularmente os países em desenvolvimento, para
o alerta precoce, redução de riscos e gerenciamento de riscos nacionais
e globais à saúde; Objetivo 4. Educação de Qualidade: Assegurar a edu-
cação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de
aprendizagem ao longo da vida para todos; 4.7 até 2030, garantir que to-
dos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para pro-
mover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da
educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis,
direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz
e não-violência, cidadania global, e valorização da diversidade cultural e

160
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável; 4.a cons-


truir e melhorar instalações físicas para educação, apropriadas para crian-
ças e sensíveis às deficiências e ao gênero e que proporcionem ambientes
de aprendizagem seguros, não violentos, inclusivos e eficazes para todos;
Objetivo 6. Água Potável e Saneamento: Assegurar a disponibilidade e a
gestão sustentável da água e saneamento para todos; 6.1 até 2030, alcan-
çar o acesso universal e equitativo à água potável, segura e acessível para
todos; 6.3 até 2030, melhorar a qualidade da água, reduzindo a poluição,
eliminando despejo e minimizando a liberação de produtos químicos e
materiais perigosos, reduzindo à metade a proporção de águas residuais
não tratadas, e aumentando substancialmente a reciclagem e reutilização
segura globalmente; 6.2 até 2030, alcançar o acesso a saneamento e hi-
giene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu
aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas
e daqueles em situação de vulnerabilidade; 6.a até 2030, ampliar a coope-
ração internacional e o apoio ao desenvolvimento de capacidades para os
países em desenvolvimento em atividades e programas relacionados à água
e ao saneamento, incluindo a coleta de água, a dessalinização, a eficiência
no uso da água, o tratamento de efluentes, a reciclagem e as tecnologias
de reuso; 6.b apoiar e fortalecer a participação das comunidades locais,
para melhorar a gestão da água e do saneamento; Objetivo 9. Indústria,
Inovação e Infraestrutura: Construir infraestruturas resilientes, promo-
ver a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação; 9.1
desenvolver infraestrutura de qualidade, confiável, sustentável e robusta,
incluindo infraestrutura regional e transfronteiriça, para apoiar o desen-
volvimento econômico e o bem-estar humano, com foco no acesso equi-
tativo e a preços acessíveis para todos; Objetivo 12. Consumo e Produção
Responsáveis: Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis;
12.4 até 2030, alcançar o manejo ambientalmente adequado dos produtos
químicos e de todos os resíduos, ao longo de todo o ciclo de vida destes,
de acordo com os marcos internacionalmente acordados, e reduzir signi-
ficativamente a liberação destes para o ar, água e solo, para minimizar seus
impactos negativos sobre a saúde humana e o meio ambiente; “Plataforma
Agenda 2030”.
As metas selecionadas entre as 169 dispostas, dentre os 17 Objetivos,
corroboram com a Carta de Bangkok que define a promoção da saúde em

161
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

um mundo globalizado (11 de agosto de 2005) e a Declaração de Liver-


pool que afirma o compromisso com a promoção da saúde bucal no século
XXI. Esses dois importantes documentos da Organização Mundial da
Saúde - OMS, que se complementam, são fundamentais para salvaguardar
a promoção da saúde e prevenção de doenças bucais.
A Carta de Bangkok identifica ações e compromissos necessários para
deliberar sobre a saúde em um mundo globalizado, promovendo-a e in-
dicando a necessidade de intervenções eficazes para o progresso em dire-
ção a um mundo mais saudável, mas que requer uma forte ação política,
ampla participação e advocacia sustentável. A promoção da saúde possui
um repertório estabelecido de estratégias comprovadamente eficazes que
precisam ser plenamente utilizadas.
Para avançar na implementação dessas estratégias, todos os setores e
configurações devem agir para defender a saúde, com base em direitos
humanos e solidariedade, investir em políticas, ações e infraestrutura sus-
tentáveis para enfrentar as determinantes da saúde, capacitar para o desen-
volvimento de políticas, liderança, práticas de promoção da saúde, trans-
ferência e pesquisa de conhecimento e alfabetização em saúde, regular e
legislar para garantir um alto nível de proteção contra danos e permitir a
igualdade de oportunidades de saúde e bem-estar para todas as pessoas,
formar parcerias e construir alianças com organizações públicas, priva-
das, não governamentais, internacionais e com sociedade civil para criar
ações sustentáveis. O documento ainda estabelece os quatro compromis-
sos fundamentais para a promoção da saúde que são: a centralidade no
desenvolvimento da agenda global; responsabilidade central para todos os
governos, foco primordial nas comunidades e na sociedade civil e reivin-
dicar boas práticas corporativas.
A Declaração de Liverpool parte do princípio da Carta de Promo-
ção da Saúde de Bangkok em um mundo globalizado, afirmando o seu
compromisso com a promoção da saúde e prevenção de doenças bucais.
Ficou estabelecido no 8º Congresso Mundial de Odontologia Preventiva
(WCPD), que ocorreu de 7 a 10 de setembro de 2005 em Liverpool,
Reino Unido, com a presença de participantes de 43 países que abordam
a prevenção de doenças bucais significativas para crianças e adultos em
todo o mundo que as doenças bucais são evitáveis e melhorias considerá-

162
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

veis podem ser feitas se forem estabelecidos programas de saúde pública


adequados.
Os participantes enfatizaram que a saúde bucal é parte integrante da
saúde e bem-estar geral e um direito humano básico. Os participantes se
basearam na "Carta de Bangkok para Promoção da Saúde em um Mundo
Globalizado" e afirmaram seu compromisso em apoiar o trabalho reali-
zado por autoridades nacionais e internacionais de saúde, instituições de
pesquisa, organizações não governamentais e sociedade civil para a pro-
moção da saúde e prevenção de doenças bucais. “WHO|The Bangkok
Charter for Health Promotion in a Globalized World (11 August 2005)”
A Declaração de Liverpool afirmou que as seguintes áreas de traba-
lho para a saúde bucal devem ser reforçadas nos países até o ano de 2020;
garantir que a população tenha acesso a água limpa, instalações sanitárias
adequadas, uma dieta saudável e uma boa nutrição; garantir programas
de flúor adequados e acessíveis para a prevenção da cárie dentária; forne-
cer programas baseados em evidências para a promoção de estilos de vida
saudáveis e a redução de fatores de risco modificáveis comuns às doenças
crônicas e em geral; garantir o acesso à atenção primária à saúde bucal com
ênfase na prevenção e promoção da saúde, fortalecer a promoção da saúde
bucal para o crescente número de idosos, visando melhorar sua qualidade de
vida; formular políticas de saúde bucal como parte integrante dos programas
nacionais de saúde; apoiar a pesquisa em saúde pública e considerar especi-
ficamente as recomendações da OMS, que recomenda que 10% do orça-
mento total do programa de promoção da saúde seja dedicado à avaliação do
programa; estabelecer sistemas de informação em saúde que avaliem a saúde
bucal e a implementação do programa e apoiem o desenvolvimento da base
de evidências na promoção da saúde e na prevenção de doenças por meio de
pesquisas, apoiem a disseminação internacional dos achados da pesquisa e a
escola deve ser utilizada como plataforma de promoção da saúde, qualidade
de vida e prevenção de doenças em crianças e jovens, envolvendo famílias e
comunidades.“WHO | The Liverpool Declaration”.

3. PERSPECTIVAS PARA A SITUAÇÃO ATUAL DO BRASIL

Em 1974, entrou em vigor a lei federal 6050, obrigando a fluo-


retação das águas de abastecimento. Porém, de acordo com o estudo

163
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

“Fluoretação da água no Brasil: distribuição regional e acurácia das


informações sobre vigilância em municípios com mais de 50 mil ha-
bitantes”. RONCALLI et. al 2019, até o ano de 2015 na região norte
88,9% da população, não tinha acesso a água fluoretada, e no nordeste
52,3% dos municípios não fluoretam a água e entre os que fluoretam
apenas 7,5 tem a manutenção adequada.
Em 2000, foi lançada a portaria 1.444 que fixou incentivo financeiro
para reorientação das ações de saúde bucal, inserindo o cirurgião dentista
na ESF. No ano de 2001, foi publicada a portaria 267 que considerou a
ampliação das ações de promoção e recuperação da saúde. Sendo que em
2004, no governo Lula, eleito em 2002, foi apresentado oficialmente uma
nova Plano Nacional de Saúde Bucal, o programa Brasil Sorridente. Essa
política passou a integrar o plano nacional de saúde. Uma das estratégias
desse programa foi o incentivo do Centro de Especialidades Odontológi-
cas (CEO). Assim, foram apontados critérios, normas e os requisitos para
implantação e rendimento do CEO por meio das portarias 1.570/GM e
estabelecida a forma de financiamento pela portaria 1571/GM, ambas pu-
blicadas em 2004.
Os CEOS servem de referência para as equipes de saúde bucal (ESB)
que atuam no ESF. Os procedimentos do CEO incluem periodontia, en-
dodontia, diagnóstico bucal e cirurgia oral menor, incluindo recentemen-
te procedimentos de ortodontia e implantodontia.
Segundo dados da pesquisa nacional por amostra domiciliar (PNAD)
2003, 15,9% de brasileiros nunca tinham ido a um dentista. Em 2010,
esse número diminuiu, chegando a 11,7% o número de pessoas que nunca
foram a um dentista.
O histórico da política brasileira na questão da saúde bucal é marcado
por avanços e retrocessos. Se considerarmos que o governo Lula represen-
ta um marco nas políticas públicas voltadas para a saúde bucal, com pro-
gramas como o “Brasil Sorridente”, um importante política de saúde bu-
cal, e o governo Dilma a continuidade dessas políticas, segundo Narvai:

“Entre 2003 e 2010 foram criados 853 Centros de Especialidades


Odontológicas (CEO), o que corresponde à instalação de apro-
ximadamente 2,22 unidades desse tipo por semana (8,89/mês),
criadas 16.163 novas Equipes de Saúde Bucal, correspondendo a

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F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

168,36 novas ESB/mês (10) e entre 2005 e 2008 foram instalados


sistemas de fluoretação em 503 municípios, em 11 estados, ISSN
1982-8829 Tempus, actas de saúde colet, Brasília, 14(1), 175-
187 mar, 2020. Epub Mai/2020 180 // beneficiando 7,6 milhões
de brasileiros, a um ritmo de expansão de 10,5 municípios/mês e
5.205 pessoas/dia”. (NARVAI 2020)

Ao término do ciclo de governos do Partido dos Trabalhadores - PT e


ascensão de Michel Temer à Presidência da República através do processo
de impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff, os recursos destina-
dos ao PNSB foram “substancialmente diminuído, registrando-se um notável re-
cuo para R$ 555.704.516,30 em 2018, 58,3% menor do que até mesmo a média
do período 1995-2002, pré- ‘Brasil Sorridente’”. (NARVAI 2020)
O Governo Temer ficou marcado por uma violenta política econô-
mica de austeridade fiscal e retração no financiamento do Sistema Único
de Saúde - SUS, através da Emenda Constitucional nº 95 - EC-95 de
2016 popularmente conhecida como “EC da Morte”, “a qual congela por
20 anos os recursos para o SUS, tomando como base o ano de 2016 e corrigindo-os
pela inflação do ano anterior. A EC-95/2016 agrava ainda mais o crônico subfi-
nanciamento do SUS” (Pág. 183)
Hoje em dia, na atual gestão iniciada em 2018, “prevalece, também no
governo de Jair Bolsonaro, a ascendência avassaladora da área econômica sobre a so-
cial”. (Pág. 184) Logo, se conclui que as condições políticas que tornaram
possível o avanço na política de saúde bucal chegaram ao fim, contudo,
“nos últimos anos, estudos têm produzido evidências consistentes sobre os efeitos da-
nosos da política de austeridade para as populações”. (Pág, 2307)

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aumento do acesso, tanto à água fluoretada quanto ao creme dental


fluorado, têm resultado em expressiva diminuição na prevalência geral da
doença cárie dentária. Contudo, tais estratégias não têm sido suficientes
para reduzir as desigualdades entre as regiões e na população escolar como
um todo, contribuindo para a ocorrência do fenômeno da polarização da
doença, que indicam a necessidade de políticas voltadas para a equidade na
atenção à saúde e diminuição das iniquidades.

165
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

A cárie dental continua sendo a doença bucal de maior prevalência


nas populações. O declínio da cárie que ocorreu no período de 1986-
2010 como apontado no estudo, não ocorreu de forma homogênea nas
populações, ocorrendo forte desigualdade na distribuição da doença, de-
sigualdade essa que obedece a critérios regionais e econômicos, fenômeno
conhecido como polarização da doença cárie, os fatores que desencadeiam
essa polarização não melhoraram entre os anos de 2010 a 2020, na verda-
de por mais que não se tenha estudos estatísticos que apontam essa piora,
nos últimos anos se viu a precarização dos serviços que possibilitaram essa
melhora, o que nos faz esperar um resultado pessimista para essa década.

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167
ARTIGOS – DIREITOS
HUMANOS E FUNDAMENTAIS E
PANDEMIAS

169
O TRANSTORNO DO ESPECTRO
DO AUTISMO E MERCADO DE
TRABALHO: UMA ANÁLISE PSICO-
JURÍDICA NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DO COVID-19
Thaysa Bianca Velloso da Fonseca46
Lívia de Souza Nunes47

INTRODUÇÃO

No contexto de uma pandemia, um momento histórico marcado


pelo medo e pela ansiedade, pessoas que rotineiramente encontram-se
marginalizadas tendem a se sentir ainda mais inseguras, de modo que o
bem-estar dessa parcela da população é um dever de todos, cidadãos e
demais instituições democráticas.
A presente pesquisa busca dar enfoque a um grupo que é constante-
mente marginalizado por conta do déficit de políticas públicas voltadas a
inserção das pessoas diagnosticadas com TEA (Transtorno do Espectro do
Autismo) em sociedade, seja através de uma educação inclusiva, seja pelo
estímulo à contratação formal no mercado. Prova disso é que no Brasil foi
somente a partir da Lei n. 13.861/2019 que a inclusão de perguntas sobre
autismo no censo do IBGE foi determinada, ou seja, até a promulgação do

46 Acadêmica de Psicologia na Faculdade Martha Falcão/Wyden.


47 Acadêmica de Direito na Universidade do Estado do Amazonas/UEA.

171
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

referido dispositivo não havia previsão legal para a coleta de dados oficiais
sobre o autismo.
No contexto em que medidas de distanciamento social são impostas
como forma de evitar a propagação da COVID-19, é de salutar relevância
que sejam avaliadas as medidas emergenciais voltadas para as pessoas com
deficiência e suas famílias. Ressalte-se ainda a importância de verificar
quais os meios de amparo previstos na legislação com o fito de promover
igualdade de condições e oportunidades a essa parcela da população.
Nesse sentido, a metodologia empregada nesta pesquisa primeira-
mente consiste numa revisão literária sobre o autismo do ponto de vista
psicológico. Em seguida, é feita a análise do aparato legislativo sobre a
matéria, além da revisão literária jurídica e, por fim, das medidas tomadas
pelo Governo Federal durante a pandemia, tendo em mente as pessoas
com deficiência como receptores dessas medidas.
A problemática das políticas públicas voltadas para as pessoas com
Transtorno de Espectro do Autismo é discutida frente ao arcabouço psico-
-jurídico colacionado, objetivando tecer uma avaliação crítica sobre como
as instituições democráticas têm se posicionado perante as demandas da
pessoa diagnosticada com autismo enquanto trabalhadora, num momento
tão instável quanto o de uma pandemia.

1. O TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO


O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) representa uma con-
dição neurobiológica e comportamental, que possui múltiplas etiologias,
combinadas com os fatores de caráter genético e ambiental. Os primei-
ros sinais são percebidos durante a infância, onde pode ser percebido um
comprometimento no desenvolvimento da criança, em relação à lingua-
gem, comunicação e interação social. Em um estudo piloto, estima-se que
uma em cada 370 crianças apresenta o TEA, o que representa 0,3% da
população brasileira. (LINHARES, 2012)
Segundo Zanon et al (2014) esse tipo de transtorno descreve uma
condição que tem seu início precocemente e possui dificuldades cuja ten-
dência é comprometer o desenvolvimento de um indivíduo ao longo de
sua vida, onde ocorre uma grande variabilidade na intensidade e na forma
de expressão dos sintomas, no que tange aos elementos que constituem
seu diagnóstico. Entende-se por TEA como um transtorno comporta-

172
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

mental de alta complexidade, que possui múltiplas etiologias, atrelada a


fatores genéticos e ambientais. A explicação das bases biológicas sobre o
TEA e suas complexidades referem-se apenas à dados conhecidos, visto
que ainda não se sabe as causas para a ocorrência do transtorno, por isso,
sua identificação e diagnóstico são baseados nos comportamentos apre-
sentados e na história do desenvolvimento de cada indivíduo.
Nos últimos anos houve uma mudança em relação aos critérios para o
diagnóstico do transtorno do espectro do autismo, apesar de sua comple-
xidade ainda representar um desafio para a comunidade científica, mesmo
com os avanços da ciência moderna. O Manual de Diagnóstico e Esta-
tístico de Transtornos Mentais (DSM-V) ainda é um dos instrumentos
mais utilizados, assim como a Escala de Observação para o Diagnóstico
do Autismo (ADOS-G), que consiste em uma avaliação semiestruturada
e padronizada sobre interação social, comunicação, brincadeiras imagi-
nativas e aplicação de materiais para crianças, adolescentes e adultos que
podem ter diagnóstico de TEA. Embora exista uma ampla quantidade
de testes e instrumentos, é importante não se limitar a apenas um único
diagnóstico e sempre procurar outras alternativas até a sua certificação.
(GONZÁLEZ, 2019)
À medida que se chega à fase adulta, alguns projetos de vida passam
a ter grande importância, como é o caso da busca pela profissionalização,
tendo especialmente por finalidade a independência financeira. A facul-
dade que irá frequentar, o curso a se escolher, onde trabalhar, que tipo de
emprego e que funções ou tarefas a se executar fazem parte do repertório
da vida de adulto e, não somente, necessitam de uma reflexão e autoco-
nhecimento sobre as competências que cada um consegue desenvolver,
com alguma maturidade. Entretanto, essa autodeterminação nem sempre
terá facilidades para ser alcançada; nos casos de pessoas com transtorno do
espectro do autismo (TEA), a própria condição cria barreiras, necessitan-
do que o indivíduo peça ajuda para fazer determinadas escolhas ou, em
alguns casos, não se acredita que o mesmo tenha capacidade para tomar
decisões conscientes e informadas e, o pior, acreditar que este nunca terá
um futuro promissor. Devido a isso, privá-las de refletir sobre sua própria
identidade não apenas significa limitá-las como também limitar sua ca-
pacidade em se tornarem autônomas e independentes. Sendo assim, é de
grande importância estimular o desenvolvimento das competências pes-

173
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

soais para a construção da autonomia, dentro das medidas possíveis. Isso


não significa que suas dificuldades e limitações sejam descartadas, no en-
tanto, os jovens com TEA tão logo se tornarão adultos e a necessidade de
lidar com os eventos cotidianos ressalta a importância de desenvolver au-
tonomia e independência. Familiares e cuidadores são figuras importantes
na vida do autista e é necessário que compreendam que este é um passo
importante em sua vida, mas que demanda tempo e comprometimen-
to, assim deverá ter envolvimento e apoio dos mais próximos, de modo
que as escolhas e interesses do indivíduo com TEA sejam resguardados,
mantendo a melhoria de sua qualidade de vida. (ASSOCIAÇÃO DAR
RESPOSTA, 2014; pp 22).

2. O STATUS LEGAL DA PESSOA COM TEA

As pessoas diagnosticadas com TEA apenas tiveram seu status equi-


parado legalmente ao de pessoa com deficiência por intermédio da Lei
nº 12.764, popularmente conhecida por Lei Berenice Piana, em home-
nagem à mãe de Daylan, que é diagnosticado com TEA. Berenice e seu
marido, Ulisses da Costa Batista, na busca por um diagnóstico confiável
para o caso de Daylan, procuraram programas governamentais que pos-
sibilitassem o atendimento por profissionais qualificados. Durante o pro-
cesso, Berenice contou com a participação do Senador Paulo Paim (PT)
e no fim conquistou a aprovação da Lei nº 12.764, promulgada em 27 de
dezembro de 2012.
Percebe-se, portanto, que até esse momento não havia amparo legal
em relação às pessoas diagnosticadas com autismo, o que muito se deu em
razão do déficit de conhecimentos científicos nesse aspecto: os familiares
destas pessoas conviviam com problemas sérios na patologia de suas crian-
ças, pois diversas vezes o comportamento demonstrado era considerado
como normal ou até mesmo equiparado a esquizofrenia ou outro distúr-
bio psiquiátrico (CAMINHA et al, 2016, p. 13).
Mesmo após a promulgação da Lei Berenice Piana, o cenário ainda se
mostrava pouco otimista, tendo em vista que, devido ao preconceito e de-
sinformação, muitos autistas ainda chegam à vida adulta sem diagnóstico
e, portanto, sem direitos. Ademais, a Associação Brasileira para a Ação por
Direitos das Pessoas com Autismo (Abraça) criticou alguns aspectos da

1 74
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norma que dizem respeito ao direito da pessoa com autismo a uma edu-
cação inclusiva, alegando que “no texto original da Lei nº 12.764/2012 há
apenas o reconhecimento dos direitos, mas não está claro como deve ser
organizado o fluxo da política para garantir esses direitos nem as fontes dos
recursos financeiros para tal fim [...]”.
Atualmente, o Projeto de Lei nº 1.712/2019, que aguarda apreciação
no Senado Federal, busca trazer alterações substanciais à Política Nacional
de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
Enquanto a matéria não é apreciada, o Art. 1º, §2º, da Lei nº 12.764/2012
dispõe que pessoas com autismo são consideradas pessoas com deficiência,
para todos os efeitos legais. Nesse sentido, o disposto na Lei Brasileira de
Inclusão (Lei nº 13.146/2015), bem como nos demais tratados e conven-
ções internacionais dos quais o Brasil é signatário que dispõem sobre a
matéria, passa a abranger os direitos da pessoa com autismo.

1.1. Direitos da pessoa com deficiência no brasil

No contexto de um Estado Democrático de Direito, o constitucio-


nalismo liberal cede espaço ao constitucionalismo social, o que coloca a
promoção de igualdade material entre os componentes dessa sociedade
como um dos deveres do ente estatal (BARROSO, 2016, p. 109). Nesse
sentido, reconhece-se como advinda do Estado a obrigação de atuar em
prol do interesse público, o que consiste não somente na atuação econô-
mica, mas também na consagração de direitos e garantias fundamentais
subjetivos.
A Constituição Federal versa, no Título II, sobre Direitos e Garan-
tias Fundamentais, gênero do qual decorrem três espécies normativas: a)
Direitos e deveres individuais e coletivos; b) Direitos sociais; c) Direitos
políticos (VASCONCELOS, 2018, p. 140). Nada obstante, a busca pela
promoção de igualdade em todos os seus sentidos é estimulada em diver-
sas passagens da Constituição. Ressalta-se o art. 3º como exemplo, onde
estão elencados os objetivos da República Federativa do Brasil, dentre os
quais o de promover o bem comum de todos sem qualquer descriminação
(inciso IV).
O princípio da isonomia é um dos principais pilares da Carta Magna,
de modo que a ideia de igualdade não se limita à igualdade formal (“Todos

175
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”, art. 5º, caput),
mas também leva em conta as particularidades de cada indivíduo enquanto
cidadão (VASCONCELOS, 2018, p. 152). Dá-se especial atenção ao art.
7º, inciso XXXI, em que se estabeleceu a proibição de discriminação quan-
to a salário e critérios de admissão do trabalhador pessoa com deficiência.
Apesar do determinado em lei, pouco foi feito pela inclusão da pes-
soa com deficiência na sociedade até a promulgação da Convenção Inter-
nacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, aprovada
com status de emenda constitucional.
A assinatura do Brasil na referida convenção abriu espaço para que
outras legislações, visando a materialização de garantias fundamentais da
pessoa com deficiência, entrassem em vigor, como se observou no Decre-
to 7.611, de 11 de novembro de 2011, que dispõe sobre a educação especial
e o atendimento educacional especializado.

1.2. O mercado de trabalho para a pessoa


diagnosticada com TEA

Por conta do crescente índice de desemprego, a dificuldade de re-


tornar ao mercado de trabalho é especialmente percebida pelas minorias
sociais, como as pessoas com deficiência.
No Brasil, a falta de dados oficiais torna impossível quantificar com
exatidão o número de pessoas que foram diagnosticadas com autismo, e
quantas dessas pessoas estão desempregadas.
Outro fator que dificulta a inserção da pessoa com autismo no mer-
cado de trabalho tem relação com seu desenvolvimento enquanto indi-
víduos: diagnóstico tardio, restrições de acesso à educação, negação de
terapias tradicionais e alternativas, e baixa renda familiar são exemplos
(TEIXEIRA, 2016).
Segundo Claudio Bezerra Leopoldino e Pedro Felipe da Costa Coe-
lho, em pesquisa publicada no periódico Economia & Gestão, da Pontifí-
cia Universidade Católica de Minas Gerais:

A preparação dos indivíduos com TEA para o trabalho deve con-


templar habilidades sociais, vocacionais e técnicas, permitindo

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maior empregabilidade e autonomia para os profissionais autistas


que procuram posições no mercado de trabalho (2018, p. 146).

Longe da plena efetivação de um direito social básico como o direi-


to a uma educação inclusiva e de qualidade, previsto no rol de garantias
fundamentais do art. 6º da Constituição Federal, pessoas com deficiência
contam com remédios legais como a Lei de Cotas (Lei nº 8.213/91).

3. MEDIDAS TOMADAS PELO GOVERNO FEDERAL EM


FAVOR DA PESSOA COM TEA DURANTE PANDEMIA DA
COVID-19

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é um benefício pago


mensalmente pelo INSS, no intuito de garantir a renda de idosos ou de pes-
soas com deficiência que apresentem limitações para se inserirem no merca-
do de trabalho. Seu valor equivale a 1 (um) salário-mínimo, o que em 2020
corresponde ao montante de R$ 1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais).
A Lei nº 13.982/2020, promulgada em 2 de abril de 2020, estabelece
medidas excepcionais de enfrentamento à COVID-19 e dispõe acerca dos
critérios adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social
para fins de elegibilidade ao BPC, ou seja, altera a organização da assis-
tência social, que é matéria versada pela Lei nº 8.742, a Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS).
O dispositivo legal sofreu alterações em vários pontos da redação por
conta da promulgação da Lei nº 13.982/2020, inclusive sobre o valor da
renda mensal per capita do beneficiário, que na antiga redação era igual ou
inferior a meio salário-mínimo (o que equivale atualmente a R$ 522,50).
Com a nova redação, fica determinado que o valor deve ser igual ou
inferior a ¼ do salário-mínimo (o que equivale atualmente a R$ 261,25)
até 31 de dezembro de 2020, conforme se observa ipsis litteris:

Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um


salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com
65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir
meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por
sua família.

177
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com


deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja:

I – igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, até 31 de


dezembro de 2020; (BRASIL, 2020).

A referida norma prevê ainda a possibilidade de ampliação do critério


financeiro durante a permanência do estado de calamidade causado pela
pandemia para ½ (meio) salário-mínimo. A ampliação se dará gradual-
mente, em escalas a serem definidas em regulamento do Poder Execu-
tivo:

Art. 20-A. Em razão do estado de calamidade pública reconhecido


pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emer-
gência de saúde pública de importância internacional decorrente
do coronavírus (Covid-19), o critério de aferição da renda familiar
mensal per capita previsto no inciso I do § 3º do art. 20 poderá ser
ampliado para até 1/2 (meio) salário-mínimo.

§ 1º A ampliação de que trata o caput ocorrerá na forma de escalas


graduais, definidas em regulamento, de acordo com os seguintes
fatores, combinados entre si ou isoladamente:

I – o grau da deficiência;

II – a dependência de terceiros para o desempenho de atividades


básicas da vida diária;

III – as circunstâncias pessoais e ambientais e os fatores socioe-


conômicos e familiares que podem reduzir a funcionalidade e a
plena participação social da pessoa com deficiência candidata ou
do idoso;

IV – o comprometimento do orçamento do núcleo familiar de que


trata o § 3º do art. 20 exclusivamente com gastos com tratamentos
de saúde, médicos, fraldas, alimentos especiais e medicamentos do
idoso ou da pessoa com deficiência não disponibilizados gratuita-
mente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou com serviços não
prestados pelo Serviço Único de Assistência Social (Suas), desde que
comprovadamente necessários à preservação da saúde e da vida.

178
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§ 2º O grau da deficiência e o nível de perda de autonomia, re-


presentado pela dependência de terceiros para o desempenho de
atividades básicas da vida diária, de que tratam, respectivamente, os
incisos I e II do § 1º deste artigo, serão aferidos, para a pessoa com
deficiência, por meio de índices e instrumentos de avaliação fun-
cional a serem desenvolvidos e adaptados para a realidade brasileira,
observados os termos dos §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei nº 13.146, de
6 de julho de 2015.

§ 3º As circunstâncias pessoais e ambientais e os fatores socioeco-


nômicos de que trata o inciso III do § 1º deste artigo levarão em
consideração, observado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei
nº 13.146, de 2015, entre outros aspectos:

I – o grau de instrução e o nível educacional e cultural do candi-


dato ao benefício;

II – a acessibilidade e a adequação do local de residência à limitação


funcional, as condições de moradia e habitabilidade, o saneamento
básico e o entorno familiar e domiciliar;

III – a existência e a disponibilidade de transporte público e de ser-


viços públicos de saúde e de assistência social no local de residência
do candidato ao benefício;

IV – a dependência do candidato ao benefício em relação ao uso de


tecnologias assistivas; e

V – o número de pessoas que convivem com o candidato ao be-


nefício e a coabitação com outro idoso ou pessoa com deficiência
dependente de terceiros para o desempenho de atividades básicas
da vida diária.

Excepcionalmente durante o período de isolamento social em razão


do Coronavírus, ficou determinado que o INSS, responsável pela reali-
zação da perícia para aferição da deficiência, irá conceder o BPC por 3
meses independente da verificação do direito ou não, a partir da data da
promulgação da lei (02 de abril de 2020).
Os pedidos de BPC para pessoas com deficiência passam por três aná-
lises: de renda, avaliação social e perícia médica. Por conta das medidas de

179
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distanciamento social impostas, ainda não há previsão para o retorno das


atividades presenciais do INSS, de modo o governo decidiu fazer a ante-
cipação do benefício para não prejudicar as famílias que estavam cadastra-
das, através da Portaria nº 438, de 9 de julho de 2020.

4. METODOLOGIA

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório de revisão bibliográ-


fica, elaborado no contexto das medidas de isolamento social impostas na
cidade de Manaus por conta da pandemia da COVID-19.
Caracteriza-se como um estudo descritivo pois possui o escopo de
descrever determinado fenômeno, no caso, o Transtorno do Espectro do
Autismo enquanto fenômeno neuropsicológico e as garantias legais vi-
gentes reservadas às pessoas diagnosticadas com autismo no contexto da
pandemia; e exploratório pois a situação das pessoas com autismo no mer-
cado de trabalho é reconhecidamente uma problemática pouco explorada,
de modo que a pesquisa contou com fontes diversificadas, desde matérias
jornalísticas até a doutrina especializada.
Quanto à abordagem, trata-se de pesquisa qualitativa, uma vez o ob-
jetivo da amostra é de produzir informações aprofundadas e ilustrativas,
preocupando-se, portanto, com aspectos da realidade que não podem ser
quantificados, centrando-se na compreensão e explicação dos fenômenos
jurídicos e psicológicos relativos à pessoa com autismo no mercado de
trabalho.

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

b.1. Sem dados oficiais, não há como formular políticas


públicas de qualidade e que atendam a demanda da
pessoa com autismo

O primeiro grande problema que se esbarra ao se questionar sobre


a falta de políticas públicas voltadas para pessoas com autismo no Brasil
refere-se aos dados oficiais, ou a falta deles. O Brasil é signatário da Con-
venção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência desde
2009; as pessoas com autismo são consideradas pessoas com deficiência

180
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para os efeitos da Lei Brasileira de Inclusão desde 2015, e até o ano de


2019, quando foi promulgada a Lei nº 13.861, não havia qualquer previsão
legal determinando o colhimento de dados quantitativos com base nas
especificidades inerentes ao Transtorno do Espectro do Autismo.
Resultado dessa falta de investimento das instituições públicas em
políticas que se aprofundem nas demandas dessa parcela da população é
que as informações de que se dispõe são meros comparativos feitos por
entidades não governamentais com os dados emitidos por outros países,
dos quais se tiram estimativas aproximadas da realidade do Brasil.
Os últimos dados divulgados pelo Center of Desease Control and Pre-
vention, dos EUA, para o ano de 2016, demonstram que cerca de uma em
cada 54 crianças de 0 a 8 anos é autista: “across all 11 sites, ASD prevalence
was 18.5 per 1,000 (one in 54) children aged 8 years” (MAENNER, 2016).
Outra pesquisa, desta vez realizada pela Journal of the American Medical As-
sociation Network, demonstrou que a ocorrência de quadros depressivos em
pessoas diagnosticadas com autismo é 20% maior do que em pessoas sem
o diagnóstico:

For our main analyses, we had 223 842 individuals born to 144 558
mothers followed up in the registers from at least age 18 years up to age 27
years by 2011. Of these, 4073 had a diagnosis of ASD (mean [SD] age,
21.5 [2.7] years; 2673 [65.9%] male) (2927 without intellectual disabil-
ity and 1146 with intellectual disability), and 219 769 had no diagnosis
of ASD (mean [SD] age, 22.1 [2.8] years; 111 794 [50.9%] male).
Between the ages of 18 and 27 years, 808 (19.8%) of the individuals with
ASD had received a diagnosis of depression compared with 13 114 (6.0%)
of the population without a diagnosis of ASD (Table 1).

Para nossas análises principais, tivemos 223.842 indivíduos nasci-


dos de 144.558 mães acompanhados nos registros, de pelo menos
18 anos até 27 anos, em 2011. Desses, 4.073 tiveram um diagnós-
tico de TEA (idade média [DP], 21,5 [2,7] anos; 2.673 [65,9%] do
sexo masculino); (2.927 sem deficiência intelectual e 1.146 com
deficiência intelectual) e 219.769 não tinham diagnóstico de TEA
(idade média [DP], 22,1 [2,8] anos; 111.794 [50,9 %] masculino).
Entre 18 e 27 anos, 808 (19,8%) dos indivíduos com TEA haviam
recebido diagnóstico de depressão em comparação com 13.114

181
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

(6,0%) da população sem diagnóstico de TEA (Tabela 1). (RAI


et al, 2018)

(Traduzido pelo autor)

É apenas com base nesses dados e outros que são divulgados através
do globo que especialistas estimam que cerca de 2 milhões de pessoas com
autismo estão no Brasil. Segundo a Organização Autismo e Realidade,
80% dos adultos com autismo estão desempregados.
A falta de dados oficiais para a averiguação da real porcentagem de
pessoas com autismo que estão desempregadas é ainda mais preocupante
quando se leva em consideração que a não há no Brasil dados oficiais sobre
a parcela da população que possui o diagnóstico.
A Organização Spectrum News lançou um mapa online onde foram co-
lacionados os principais estudos científicos publicados a respeito da preva-
lência de autismo em todo o mundo e o site é constantemente atualizado
desde o seu lançamento, em 5 de novembro de 2018. A única contribui-
ção que o Brasil compartilhou para o mapa foi uma pesquisa realizada pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie em Atibaia/SP, no ano de 2007, e
cujos resultados só foram divulgados em 2011.
O déficit de informação é o principal obstáculo para a efetivação de
direitos fundamentais como educação inclusiva e políticas de saúde pú-
blica voltadas para as demandas neuropsíquicas destes indivíduos. Nesse
sentido, é preciso que o Governo Federal implemente medidas emergen-
ciais que estimulem não só a pesquisa, mas a participação ativa de pessoas
com TEA em setores da vida pública, visando abrir espaços inclusivos de
debate e discussão dos interesses e demandas das pessoas com deficiência.

b.2. A problemática do diagnóstico

Por não existir ainda exames específicos, não são raros os casos em
que o diagnóstico de TEA é realizado de forma tardia. Muitas vezes a fa-
mília não possui conhecimento sobre a condição clínica e acaba deixando
passar características que representam a manifestação do transtorno, tais
como a falta de sorriso social e o contato visual e, por conta disso, não
buscam um profissional. O diagnóstico precoce permite uma maior agili-

182
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dade na intervenção, proporcionando melhor desenvolvimento e qualida-


de de vida desde a infância até a fase adulta. (LENZA, 2020).

b.3. Apesar da falta de dados, existem empresas e


associações que viabilizam a inserção da pessoa com
autismo no mercado de trabalho

A despeito da importância desses dados para que sejam implementa-


das políticas públicas de qualidade, o Brasil conta com empresas que ofer-
tam iniciativas visando a inclusão da pessoa com autismo no mercado de
trabalho, a exemplo da Specialisterne, empresa social que oferece formação
gratuita em Tecnologia da Informação para pessoas com autismo e faz a
mediação com empresas para a contratação dos profissionais.
Algumas empresas ofertam ainda a modalidade “emprego apoiado”.
Segundo o site da Associação Nacional do Emprego Apoiado – ANEA,
emprego apoiado consiste em:

Uma metodologia que visa à inclusão no mercado competitivo de


trabalho de pessoas em situação de incapacidade mais significativa;
respeitando e reconhecendo suas escolhas, interesses, pontos fortes
e necessidades de apoio. O usuário do Emprego Apoiado deve ter
a sua disposição, sempre que precisar, os apoios necessários para
conseguir obter, manter e se desenvolver no trabalho. (2020)

O público-alvo da iniciativa são pessoas em situação de incapacidade


mais significativa que não estão sendo atendidas pelos sistemas tradicio-
nais de colocação ou não conseguem se manter em um emprego ou devi-
do à necessidade de apoios mais intensos precisam de serviços de Emprego
Apoiado para conseguir um trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) representa um dis-


túrbio no neurodesenvolvimento, no que tange aos aspectos biológicos e
comportamentais e que se manifesta nos anos iniciais até o fim da vida,
apresentando graus e incidências diferentes. Mesmo com os avanços do
campo científico e a diversidade de estudos debatendo sobre o tema, o

183
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

TEA ainda se caracteriza como uma incógnita, devido à sua complexida-


de para se chegar à um diagnóstico, não somente pela ciência, mas tam-
bém pela sociedade que ainda desconhece sobre o transtorno.
Os critérios para o diagnóstico do TEA vêm sofrendo alterações ao
longo dos anos, assim como os instrumentos para a sua mensuração. Mes-
mo com divulgação de estudos sobre a temática, muitas pessoas não pos-
suem conhecimento sobre a condição e, por conta disso, não buscam a
ajuda de um profissional, o que leva a um diagnóstico tardio e atraso ainda
maior no desenvolvimento do indivíduo. Quanto mais cedo se faz uma
investigação, mais se otimiza o tempo para se obter um diagnóstico e me-
lhor a qualidade de vida do sujeito. O tratamento com o autismo deve ser
feito por equipe multidisciplinar, envolvendo psicólogos, fonoaudiólogos,
médicos e terapeutas ocupacionais.
A pandemia tem causado diversos impactos na vida da sociedade, seja
no âmbito social, psicológico, financeiro e profissional. O problema se
agrava para as pessoas com diagnóstico de Transtorno do Espectro do Au-
tismo (TEA), devido a condição clínica possuir como uma das caracterís-
ticas principais a dificuldade na mudança de rotina, no caso, o isolamento
social, que pode ocasionar momentos de estresse e ansiedade. Em situa-
ções como essa, muitas vezes a família do autista possui dificuldades em
lidar com suas crises, gerando sofrimento não apenas para a pessoa com
TEA, como também a família como um todo.
Em tempos de pandemia, uma das consequências mais visíveis em
relação à economia do país refere-se ao aumento do desemprego. A situa-
ção se agrava com os adultos que possuem diagnóstico de autismo, pois
em muitos casos o emprego representa a sua independência financeira, a
sua forma de se sentir útil à sociedade, dado os obstáculos que a condi-
ção clínica apresenta ao longo de sua vida. A alteração brusca de rotina, a
necessidade de ficar em casa como forma de se prevenir do vírus, não ser
possível sair para cumprir as atividades do dia a dia e nem mesmo a possi-
bilidade de ter momentos de lazer tem sido vista como um fator desenca-
deante de estresse, ansiedade e pânico, tanto para pessoas com TEA como
para os que não apresentam o diagnóstico. Cada vez mais tem se solicitado
ajuda profissional por via online para o manejo adequado dos momentos
de crise que o autista manifesta.

184
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

Para que os direitos sociais previstos na Constituição e nas demais


convenções internacionais das quais o Brasil é signatário sejam de fato
exercitáveis, é preciso que as instituições democráticas ajam com o obje-
tivo de propagar conhecimento sobre o autismo e suas manifestações na
sociedade, através de campanhas de conscientização e incentivo de contra-
tação de pessoas com autismo.
É urgente que os estudos sobre autismo sejam estimulados e postos
em prática, para que o diagnóstico seja preciso e, como detentor de ga-
rantias e direitos fundamentais, a pessoa com autismo disponha das fer-
ramentas para que seja inseridanum ambiente de trabalho que entenda e
acompanhe suas demandas.
A questão da falta de dados oficiais em relação a população com au-
tismo é extremamente prejudicial para a consolidação de direitos e garan-
tias fundamentais, especialmente num momento de pandemia, em que
as medidas de seguridade social se mostram imprescindíveis para a po-
pulação com alguma deficiência. A falta de políticas públicas sinaliza o
silenciamento dessas pessoas que constantemente encontram barreiras que
dificultam sua inserção na sociedade.
Por fim, conclui-se que a academia brasileira, por meio de seus pes-
quisadores, pode contribuir muito para que esta importante questão social
seja trabalhada, identificando padrões, políticas, atitudes e práticas posi-
tivas visando uma sociedade mais inclusiva. Faz-se mister incentivar os
estudos exploratórios sobre a realidade nacional, com multiplicidade me-
todológica e disciplinar, tais como estudos de caso, pesquisa ação, entre
outras modalidades, e o desenvolvimento de projetos de pesquisa sobre
esta temática.

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BRASIL. Lei nº 13.861, de 18 de julho de 2019. Altera a Lei nº 7.853,


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186
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

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188
RESOLUÇÃO 329, DE 30 DE JULHO
DE 2020 DO CNJ: AUDIÊNCIA
DE CUSTÓDIA NO PERÍODO DE
PANDEMIA PROVOCADA PELO VIRUS
SARSCOV-2
Juliana Oliveira Eiró do Nascimento48

INTRODUÇÃO

Antes de ser introduzida no Brasil, a audiência de custódia já havia


sido prevista em diversos tratados e convenções internacionais, como no
art. 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos e art. 9.3 do Pac-
to Internacional de Direitos Civis e Políticos, dos quais o Brasil é signa-
tário desde 1992.
Contudo, somente 23 anos após da adesão aos mencionados diplomas
internacionais, o Brasil passou a regulamentar a realização da mencionada
audiência através da Resolução 2013/15 do CNJ, para uma verificação
mais eficiente da legalidade das prisões realizadas.
É bem verdade que, antes de ser editada tal resolução, a verificação
da legalidade das prisões ocorria, contudo, baseada somente na analise do
Auto de Prisão em Flagrante que era remetido ao juiz em conjunto com
o exame de corpo de delito, o que impedia que o magistrado verificasse a

48 Discente do 10º semestre do curso de Direito no Centro Universitário do Pará, Monitora


de Processo Penal no Centro Universitário do Pará e Estagiária no escritório de advocacia
André Eiró Advogados Associados.

189
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

ocorrência de abusos por parte das autoridades policiais, como maus tratos
e tortura, visto que aqueles sujeitos jamais foram conduzidos à presença da
autoridade judiciária competente.
Ademais, tão somente em 2019, com a edição da Lei 13.964, é que
a audiência de custódia passou a ser expressamente prevista no Código de
Processo Penal Brasileiro, com a nova redação dada ao art. 310º.
Ocorre que, em 2020, a disseminação do vírus Sars Cov-2 fez com
que o governo brasileiro reconhecesse estado de calamidade pública no
país e passaram a ser necessárias medidas para a preservação da vida e saú-
de, bem como para que se reduzisse o risco de contaminação.
É nesse diapasão que se insere a problemática de que, em 30 de julho
de 2020, o CNJ editou a Resolução nº 329, que, em vista da alta taxa de
contaminação pelo vírus, passou a regulamentar a realização das audiên-
cias por meio da videoconferência, de modo que os direitos e garantias de
todos os usuários do sistema judiciário fossem respeitados.
Todavia, nessa resolução, o CNJ vedou a realização das audiências de
custódia por vídeo, ainda que fosse respeitada toda a regulamentação legal,
argumentando que esse procedimento não atenderia de forma eficiente às
finalidades desse ato processual.
Dessa maneira, considerou mais adequado a suspensão da realização
das audiências no país, retrocedendo ao método anteriormente utilizado
para verificar a legalidade das prisões, isto é, por meio somente do auto de
prisão em flagrante e do exame de corpo de delito.
Diante disso, o presente artigo dedicou-se a reunir informações com
o propósito de responder ao seguinte problema de pesquisa: Até que pon-
to a suspensão da realização das audiências no período de pandemia pro-
vocada pelo vírus Sars Cov-2 pode ser meio mais adequado para proteção
dos direitos e garantias do preso do que a realização por videoconferência?
Acredita-se que, tendo em vista que a supracitada Resolução do CNJ
prescreve a suspensão da realização das audiências de custódia, os direitos
e garantias processuais e constitucionais dos sujeitos privados de sua liber-
dade serão demasiadamente mais prejudicados, do que se o mencionado
ato processual fosse realizado por meio de vídeo.
Isto, pois se presume que, com a suspensão, o preso não será levado
aos olhos do magistrado de nenhuma maneira, sendo que o contato entre
esses sujeito é direito legalmente previsto.

190
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O presente trabalho tem como objetivo geral investigar até que ponto
suspensão da realização das audiências no período de pandemia provocada
pelo vírus Sars Cov-2 pode ser meio mais adequado para proteção dos
direitos e garantias do sujeito preso do que a realização por videoconfe-
rência.
Para atingir o fim almejado, a presente pesquisa analisará o conceito
e finalidade das audiências de custódia no sistema penal brasileiro, bem
como apresentará breves comentários sobre a pandemia provada pelo Sars
Cov-2, seus reflexos no Brasil que desencadearam a edição da Resolução
nº 329 de 30 de julho de 2020 do CNJ.
Além disso, esse artigo irá discorrer sobre as disposições relativas às
audiências de custódia previstas na supracitada resolução e, por fim, ava-
liará os efeitos da suspensão das audiências de custódia no período de pan-
demia provocada pelo novo vírus.
O tema a ser estudado é de extrema importância, diante da nova rea-
lidade experimentada por todos em decorrência da pandemia, analisar as
providências tomadas pelo Estado em prol da saúde de seus agentes e dos
sujeitos privados de sua liberdade, bem como examinar as consequências
advindas desses atos nos direitos e garantias fundamentais desses.
Ademais, tem relevância internacional, visto que a realização das au-
diências de custódia é um direito previsto por diversos diplomas interna-
cionais dos quais o Brasil é signatário e, também, é uma forma de proteger
os indivíduos dos abusos e arbitrariedades do Estado, tonando-se meio
valioso para efetivação dos direitos humanos.
A metodologia adotada é critico-dialética, com abordagem qualitati-
va, através do referencial teórico dos princípios constitucionais e proces-
suais penais e da legislação pátria, seguindo pelo estudo pormenorizado de
livros e artigos publicados na literatura e no meio eletrônico, visto que se
entende ser o melhor método para atingir os objetivos da pesquisa.

1. AUDIÊNCA DE CUSTÓDIA NO BRASIL: DEFINIÇÃO E


FINALIDADES

O Brasil é signatário, desde 1992, da Convenção Americana de Di-


reitos Humanos, diploma internacional que determina a realização da au-
diência de custódia no Artigo 7.5., bem como, no mesmo ano, aderiu ao

191
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Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o qual também dispunha


sobre tal ato processual como um direito irrenunciável do detido no Ar-
tigo 9.3.
Ressalta-se que, os dois dispositivos internacionais citados, segundo
o art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), possuem status de ga-
rantia fundamental, conforme o § 2º, bem como eficácia plena e aplicabi-
lidade imediata, de acordo com o § 1º.
Contudo, até 2015, não havia no ordenamento jurídico brasileiro
qualquer previsão relativa à realização da audiência de custódia. Nesse pe-
ríodo, o juiz deveria analisar e decidir sobre a legalidade da prisão, bem
como sobre a homologação ou relaxamento, com base apenas no Auto de
Prisão em Flagrante, lavrado na delegacia de policia em que o sujeito fosse
conduzido após sua prisão, e no exame de corpo de delito.
Resta evidente que o magistrado, ao analisar a prisão somente com
base em um expediente escrito como o Auto de Prisão em Flagrante,
ficava restrito ao que fosse redigido pela autoridade policial, bem como
não tinha contato pessoal com o individuo detido, não havendo como
verificar de imediato suas condições para constatar a presença de abuso
por parte dos policiais.
Igualmente, tendo em vista que o sujeito privado da sua liberdade
muitas vezes somente era ouvido meses depois a prisão, a autoridade ju-
diciária ficava impossibilitada de averiguar as reais circunstâncias em que
se deu a medida e de perguntar se o preso foi informado de todos os seus
direitos e garantias, o que prejudicava o controle da legalidade.
Nesse contexto, o STF, em 09 de setembro de 2015, deferiu uma
medida cautelar na ADPF 347/DF determinando que em 90 dias os Juízes
e Tribunais criassem medidas, afim de que se regulamentasse a realização
das audiências de custódia de acordo com os diplomas internacionais.
Com isso, em 2015, a audiência de custódia passou a ser prevista no
ordenamento jurídico brasileiro como um direito irrenunciável do detido
por meio do Artigo 1º da Resolução 2013/15, editada pelo CNJ, em vista
de humanizar o ato de prisão.
No entanto, somente em 2019, com a entrada em vigor da Lei nº
13.964, foi que o Código de Processo Penal, no Artigo 310, passou a
prever expressamente a obrigatoriedade da realização das audiências de

192
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custódia no prazo máximo de 24 horas, garantindo, nesse aspecto, a con-


vencionadidade indispensável ao processo penal.
Segundo os ensinamentos do Aury Lopes:

A inovação agora é inserir, nesta fase, uma audiência, onde o preso


seja – após a formalização do auto de prisão em flagrante feito pela
autoridade policial – ouvido por um juiz, que decidirá nesta au-
diência se o flagrante será homologado ou não e, ato contínuo, se a
prisão preventiva é necessária ou se é caso de aplicação das medidas
cautelares diversas (art. 319). (2020, p.966-967).

Com isso, a realização da audiência de custódia passou a ser um dever


do Estado para tornar o processo de prisão mais humanístico, bem como
para proteger a dignidade do sujeito detido e garantir a sua integridade
física e psíquica.
Pode-se concluir que, a audiência de custódia no Brasil consiste em
um ato processual realizado obrigatoriamente em até 24 horas após a pri-
são, no qual deve haver a oitiva pessoal do sujeito detido para que o ma-
gistrado possa aferir sobre a legalidade da prisão, analisando os aspectos
formais previstos no art. 302 ou 303 do Código de Processo Penal e se
foi efetivado todo o disposto no art. 306 do mesmo diploma, procedendo
assim com a homologação ou relaxamento da prisão. (LOPES, 2020)
Em síntese, o juiz deve analisar se foi realizada dentro das hipóteses
previstas no Código de Processo Penal, se foram respeitadas e informadas
todas as garantias e direitos do individuo detido, do mesmo modo deve
examinar se houve a ocorrência de maus tratos ou tortura, prosseguindo
com a determinação do exame de corpo de delito se ainda não realizado
ou se alegado abusos ocorridos após a sua realização.
Ademais, depois de ultrapassado a analise das formalidades da prisão,
o magistrado, se houver requerimento da autoridade policial ou do Mi-
nistério Público, decidirá fundamentadamente sobre necessidade de con-
versão do flagrante em preventiva, nos casos de cumpridos os requisitos
dispostos no art. 312 do Código de Processo Penal e se inadequadas ou
insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão colacionadas no art.
319 do Código de Processo Penal, bem como se concederá ou não a liber-

193
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

dade provisória, com ou sem fiança, respeitando o disposto no §1º e §2º


do art. 310 do Código de Processo Penal. (LOPES, 2020)
Destaca-se ainda que, para que a audiência de custódia atinja sua fina-
lidade, não deve se tornar um campo para discursão de culpa ou inocên-
cia, absolvição ou condenação, tendo em vista que não é uma audiência
realizada com fim de instrução e julgamento, conforme redação do art.
8º, da Resolução 213 do CNJ.
Em razão disso, não devem ser admitidas perguntas que antecipem o
mérito do processo, devendo ocorrer somente questionamentos referentes
às condições que a prisão foi realizada.
Outrossim, ressalta-se que a previsão do §3º do art. 310 do Códi-
go de Processo Penal reforça a obrigatoriedade determinada no caput do
mesmo artigo, devendo a realização da audiência de custódia ocorrer no
prazo máximo de 24 horas, cabendo a distensão desse prazo somente na
hipótese de motivação idônea, sob pena da autoridade causadora da não
realização da audiência de custódia no prazo estabelecido responder admi-
nistrativamente, civilmente e penalmente pela omissão. (LOPES, 2020)
Há de se salientar que, de acordo com o art. 13º da Resolução
213/2015 do CNJ e art. 287 do Código de Processo Penal, a realização da
audiência de custódia não é obrigatória somente nos casos de prisão em
flagrante, mas também deve ocorrer nos casos de pessoas presas em decor-
rência de cumprimento de mandados de prisão cautelar, ou seja, preven-
tiva e temporária, bem como de prisão preventiva.
Aury Lopes aponta que:

Essencialmente, a audiência de custódia humaniza o ato da prisão,


permite um melhor controle da legalidade do flagrante e, princi-
palmente, cria condições melhores para o juiz avaliar a situação e
a necessidade ou não da prisão cautelar (inclusive temporária ou
preventiva (...). Também evita que o preso somente seja ouvido
pelo juiz muitos meses (às vezes anos) depois de preso (na medida
em que o interrogatório judicial é último ato do procedimento).
(...) (2020, p. 967).

Dessa maneira, conlui-se que, com a regulamentação das audiências


de custódia e, principalmente, a previsão da sua realização no prazo má-

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F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

ximo de 24 horas, passou a ser possível a redução de prisões arbitrarias,


visto que se torna possível um maior controle dos direitos e garantias dos
sujeitos detidos.
Outrossim, o juiz passa a realizar a oitiva do preso pessoalmente, con-
seguindo valorar suas declarações, bem como analisar a possibilidade da
existência de maus tratos e tortura e proceder com a solicitação da reali-
zação do exame de corpo de delito, se necessária, passa a ser possível uma
analise mais efetiva da legalidade da prisão e redução de abusos policiais.

2. PANDEMIA PROVOCADA PELO SARS COV-2 E A


RESOLUÇÃO Nº 329 DE 30 DE JULHO DE 2020 DO
CNJ

No ano de 2020, o Brasil passou a sofrer com as consequências de


uma situação excepcional desencadeada pela pandemia da Covid-19, pa-
tologia provocada pelo vírus Sars Cov-2.
Em razão da alta taxa de mortalidade e facilidade de contaminação
pelo referido vírus, a OMS, em 30 de janeiro de 2020, declarou Emergên-
cia em Saúde Pública de Importância Internacional, bem como o Minis-
tério da Saúde, através de Portaria, declarou Emergência em Saúde Públi-
ca de Importância Nacional.
Com isso, o país precisou se mobilizar para adoção de medidas que
visassem resguardar a saúde de todos os indivíduos e o enfretamento da
emergência de saúde pública de importância internacional, o que ensejou,
em 6 de fevereiro de 2020, a edição da Lei nº 13.979.
Em março de 2020, tendo em vista o aumento do número de mortes
e de indivíduos contaminados, além da enorme velocidade que a doen-
ça de espalhava pelo globo terrestre, a OMS reconheceu a pandemia da
doença.
Igualmente, em razão da gravidade da situação e a necessidade de
contenção da propagação da doença, o distanciamento social passou a ser
considerado fundamental para a preservação da vida humana.
Dessa forma, diversos foram os reflexos no ordenamento jurídico bra-
sileiro, pois a atividade jurídica, apesar de já ter evoluído em muitos aspec-
tos nos meios eletrônicos, em sua grande maioria, ainda conta com práti-
cas e procedimentos necessariamente presenciais e com contato pessoal.

195
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Em razão disso e nesse contexto, o CNJ, amparado pelo Artigo 103-


B, §4º, I, da Constituição Federal de 1988, passou a editar diversas Re-
soluções e Recomendações para a adoção de medidas que previnissem
a contaminação pelo vírus Sars Cov-2, em vista de não interromper as
atividades do Poder Judiciário, conforme art. 93, XII, da CF.
Merece destaque, para a presente pesquisa, a Resolução nº 329, de 30
de julho de 2020, que regulamenta o uso da videoconferência nas audiên-
cias e outros atos processuais no âmbito do processo penal, com base na
permissão legislativa do Art. 185, §2º, IV do Código de Processo Penal,
visto que, segundo o CNJ, a pandemia provocada pelo novo vírus se en-
quadra como “gravíssima questão de ordem pública”.
A referida Resolução buscou harmonizar, na situação atípica gerada
pela pandemia, a saúde dos agentes públicos, magistrados, advogados e os
demais indivíduos, com as garantias e direitos constitucionais e proces-
suais dos sujeitos processados e presos.
Para tanto, regulamentou medidas que prevenissem a infecção pelo
novo Covid-19, evitando que a contaminação em larga escala sobrecar-
regasse ainda mais o sistema de saúde no Brasil, prejudicando a ordem
interna e a segurança dentro dos estabelecimentos prisionais, de modo que
conflitos e rebeliões pudessem afetar a integridade física dos indivíduos
que presos fossem.
Dessa forma, a Resolução estabeleceu diversos regramentos para que
as audiências realizadas por meio de vídeo coadunassem com os direitos e
garantias processuais vigentes, como a exigência de uma conexão com a
internet com qualidade, gravação de todo o ato processual com o seu devi-
do salvamento ao final, além de que falha no meio telemático não deveria
ser considerado em beneficio do réu.
Em síntese, o CNJ passou a regulamentar meios para garantir o de-
vido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a razoável duração
do processo, bem como possibilitasse celeridade na tramitação, visando
efetivar a previsão dos incisos LIV, LV, LX e LXXVIII do art. 5º, da CF,
em tempos de pandemia.
Contudo, apesar da supracitada Resolução recomendar o uso dos
meios telemáticos para a realização das audiências, vedou expressamente o
mesmo procedimento para as audiências de custódia previstas nos artigos
287 e 310, ambos do Código de Processo Penal, e na Resolução CNJ

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nº 213/2015, tendo em vista a importância do contato pessoal para a sua


realização.

3. EFEITOS DA RESOLUÇÃO Nº 329 DE 30 DE JULHO


DE 2020 DO CNJ NA REALIZAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS
DE CUSTÓDIA NO BRASIL NO PERÍDODO DE
PANDEMIA PROVOCADA PELO SARS COV-2

Considerando que, a audiência de custódia constitui uma forma de


garantir uma analise mais qualificada dos magistrados no que tange a lega-
lidade da prisão, a ocorrência de tortura ou maus-tratos e sobre a necessi-
dade de alguma espécie de medida cautelar.
Isso se deve ao importantíssimo contato pessoal que ocorre entre o
preso e o magistrado nesse ato processual. Nesse sentido, Aury Lopes afir-
ma que:

Eis um ponto crucial da audiência de custódia: o contato pessoal do


juiz com o detido. Uma medida fundamental em que, ao mesmo
tempo, humaniza-se o ritual judiciário e criam-se as condições de
possibilidade de uma análise acerca do periculum libertatis, bem
como da suficiência e adequação das medidas cautelares diversas
do art. 319 do CPP (2020, p. 970).

Com isso, entende-se que o contato pessoal, além de estar previsto


como obrigatório em diplomas nacionais e internacionais, é fundamental
durante a realização das audiências de custódia, visto que viabiliza a cons-
tatação da presença de lesão ou rastros de violência físicas ou psicológicas
decorrentes de abuso policial, bem como garante uma analise pormenori-
zada das características do sujeito detido.
Dyrceu Aguiar Cintra Jr. leciona que a ausência de contato pessoal:

Impossibilita perfeita percepção da personalidade do réu, quer para


fins de concessão de liberdade provisória, quer para a atividade
futura de individualização da pena, se for o caso de condenação
(2005, p. 99)

197
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Nesse sentido, destaca-se a seguinte situação: um senhor idoso, fran-


zino e debilitado comete um furto de medicamento em uma farmácia e é
detido em flagrante.
É evidente que, muitas vezes, essas particularidades de ser um senhor,
de idade avançada, enfraquecido e que não representa o menor risco so-
cial, não são descritas no Auto de Prisão em Flagrante, logo são caracte-
rísticas que somente poderão ser analisar pelo magistrado com a presença
física desse sujeito na audiência de custódia.
Dessa forma, será essa analise pormenorizada realizada pelo juiz através
do contato pessoal que lhe permitira analisar e decidir de forma mais qua-
lificada sobre a necessidade ou não de uma medida cautelar, por exemplo.
Nesse sentido, salienta-se as lições de Gustavo Badaró nesse sentido:

O pronto contato pessoal do preso com um juiz é o mínimo que


um Estado de Direito deve assegurar a quem está sendo privado
de sua liberdade. Mais do que obedecer uma norma de direitos
humanos, a audiência de custódia humanizará o juiz (2014, p.116).

Nessa esteira, Aury Lopes e Caio Paiva afirmam que “o contato pes-
soal do preso com o juiz é um ato da maior importância para ambos,
especialmente para quem está sofrendo a mais grave das manifestações de
poder do Estado” (2014, online).
Dessa maneira, é possível concluir que a virtualidade reduz drastica-
mente a concretização das finalidades da audiência de custódia, visto que
impede o contato físico entre o individuo detido e o magistrado, criando
distância entre ambos, o que impede uma verificação eficaz de rastros de
violência, bem como das características pessoais do detido, desumanizan-
do o processo de prisão.
Contudo, a pandemia provocada pelo novo vírus Sars Cov-2 tornou
o distanciamento social essencial para preservação da vida e saúde dos in-
divíduos, novos meios foram necessários para o enfrentamento de tal si-
tuação atípica, a fim de que o sistema de justiça não fosse interrompido e,
do mesmo modo, as garantias e direitos fossem resguardados.
Tal situação passou a inviabilizar que os atos processuais fossem efe-
tuados pessoalmente e, em razão disso, muitos Juízes e Tribunais, para
preservarem a saúde dos magistrados e servidores, assim como dos ad-

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vogados e demais usuários do sistema judiciário, passaram a realizar as


audiências, inclusive as de custódia, por meio da videoconferência.
Com isso, resta evidente que o tão importante contato pessoal, que
efetiva as finalidade das audiências de custódia, ficou completamente
comprometido, motivo pelo qual o Conselho Nacional de Justiça editou a
Resolução nº 329, de 30 de julho de 2020, que, no art. 19º, vedou a reali-
zação desse ato processual por meio da videoconferência.
Segundo o Ministro Dias Toffoli:

(...) Conclui-se, com efeito, que sistema de videoconferência vai


de encontro à essência do instituto da audiência de custódia, que
tem por objetivo não apenas aferir a legalidade da prisão e a neces-
sidade de sua manutenção, mas também verificar a ocorrência de
tortura e maus-tratos (BRASIL, online).

Porém, tal Resolução, que aparentemente visava resguardar o direito


dos detidos ao contato físico, a fim de que fossem efetivados os objetivos
da audiência de custódia, acabou por determinar a suspensão de tal ato
processual durante o período de pandemia.
Como consequência, retrocedeu a analise da legalidade das prisões
aos métodos utilizados anteriormente a inclusão de tal procedimento no
ordenamento jurídico brasileiro, isto é, somente com base no Auto de
Prisão em Flagrante e exame de corpo de delito, sem a manifestação da
defesa e do Ministério Público.
Dessa forma, o poder punitivo do Estado se manteve sem um con-
trole efetivo por parte do poder judiciário. Consequentemente, os abusos
policiais ficaram tendentes à um aumento e, do mesmo modo, o encarce-
ramento, a violência e os maus tratos físicos e psicológicos sofridos pelos
detidos.
É bem verdade que a realização dessas audiências por meio da video-
conferência não garante o direito do detido de ser apresentado fisicamente
perante a autoridade judicial competente e, por isso, não é o meio mais
eficaz para que o magistrado analise vestígios de violência.
Além disso, apesar da vasta regulamentação editada pelo CNJ em vis-
ta de garantir que todos os direitos dos sujeitos processados fossem res-
guardados durante as audiências virtuais, sem que haja o contato pessoal

199
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

físico, não é satisfatoriamente possível que o magistrado se certifique o


individuo preso não está sendo coagido no momento de responder às per-
guntas realizadas.
Contudo, resta demonstrado que a atual realidade vivenciada por
todo planeta em decorrência da pandemia trouxe prejuízos incalculáveis,
bem como exigiu que todos demandassem esforços e ponderassem direi-
tos e deveres de modo que a vida humana fosse preservada.
Dessa maneira, tendo em vista que o contato físico se tornou prejudicial
à vida e saúde dos indivíduos, a audiência de custódia por videoconferência
se tornou um meio mais eficaz para conciliar os interesses dos magistrados,
servidores e usuários da justiça com os dos sujeitos detidos, sendo mais ade-
quado do que a suspensão total da realização desse ato processual.
Isto, pois a videoconferência ainda garante o mínimo de contato entre
o magistrado e o sujeito preso, viabilizando uma analise, ainda que não tão
adequada quanto se feita fisicamente, por parte do magistrado das caracte-
rísticas do sujeito preso, bem como se houve maus-tratos e se é verdadei-
ramente necessária a aplicação de medidas cautelares.
É nesse sentido o posicionamento do Conselheiro do Conselho Na-
cional de Justiça (CNJ) Luiz Fernando Tomassi Keppen, que afirma que:

Entretanto, parece-me, que estaríamos, na verdade, diante de um


falso dilema, pois não se pode compreender como a proposta de,
pura e simplesmente, não realizar a audiência de custódia - com
o único propósito de resguardar principiologicamente o purismo
da proposta originária (audiência sempre com a presença física do
juiz) - possa significar uma solução mais protetiva dos interesses do
enclausurado, em tempo de pandemia. (...)

Na hipótese, entre o tudo da solução ótima (audiência presencial) e


o nada da inexistência de audiência, parece logicamente impossível
negar que existe a solução prudente e intermediária, totalmente
factível e recomendável, da audiência por videoconferência. Ora,
não se pode usar a proteção do princípio da dignidade do preso
contra ele mesmo (Jusbrasil, online).

Dessa forma, é lógico que a suspensão da audiência de custódia torna


praticamente ausente o controle judicial das prisões realizadas e impossibi-

200
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lita que o magistrado verifique a presença de abusos ou rastros de violên-


cia, violando gravemente os direitos e garantias constitucionais do preso.
Há ainda que se salientar que, esse contato em até 24 horas após pri-
são, ainda que por meio virtual, é de extrema importância, tendo em vista
que uma pesquisa realizada pela Human Rights Watch (BRASIL, onli-
ne), em 2014, apontou a violência policial sofrida pela maior parte dos
sujeitos presos ocorria nas primeiras horas seguintes à prisão.
Isto posto, se há a suspensão da realização das audiências de custódia,
esses indivíduos presos somente poderão ser ouvidos e vistos meses ou
até anos depois da efetivação da sua prisão, nas audiências de instrução e
julgamento, impossibilitando o controle do poder punitivo do estado e da
violência policial.
Merece destaque outra analise, realizada pelo Conselheiro do CNJ,
Luiz Fernando Tomassi Keppen, no sentido de que:

Em consequência, novamente, não se pode permitir que a prote-


ção da dignidade humana do preso - por meio da exigência ex-
clusiva da realização da audiência de custódia com a presença do
magistrado - seja, entretanto, contraditoriamente, utilizada contra
o próprio preso, para, ao final, como vemos aqui, chegar à conclu-
são paradoxal de que o melhor é, em situação de pandemia, não
realizar qualquer espécie de audiência. Em tempos de pandemia,
será muito mais prejudicial à pessoa do preso não realizar a audiên-
cia do que, alternativa e extraordinariamente, permitir a audiência
de custódia por meio virtual. (...) (Jusbrasil, online).

Diante disso, as audiências de custódia virtualmente realizadas duran-


te o período de pandemia, ainda que não seja o meio mais eficaz, em vista
atual cenário atípico que o mundo enfrenta, é o único capaz de resguarda
de forma mais efetiva a dignidade humana do detido.
Isto, pois se realizada por videoconferência, é possível que, mesmo
que não seja tão eficaz quanto no contato pessoal, o juiz tenha o contato
visual com o preso, o escute e verifique, ainda que minimante, se aque-
le sujeito teve sua integridade física e psíquica preservada e, do mesmo
modo, ao realizar a oitiva, pode avaliar a legalidade da prisão, bem como a
ocorrência de maus tratos e a necessidade de medidas cautelares.

201
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Desse modo, conclui-se que a suspensão das audiências de custódia,


em prol de garantir os direitos do detido, acabou por refletir demasiados
malefícios que, evidentemente, poderiam ser evitados se fosse dado conti-
nuidade a esses atos processuais virtualmente, respeitados os ditames legais
previstos pela Resolução nº 329, de 30 de julho de 2020, para realização
das demais audiências com eficiência e adequação aos direitos envolvidos.

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da presente pesquisa, foi possível analisar que a audiência de


custódia consiste em um ato processual que garante que o detido seja con-
duzido à presença da autoridade judicial competente no prazo máximo de
24 horas após sua prisão, com o fim de que o magistrado verifique, a par-
tir do contato pessoal, se há indícios de violência policial, bem como, da
oitiva do sujeito preso, analise com mais eficiência a legalidade da prisão.
Além disso, constatou-se que, apesar de já prevista há muitos anos nos
diplomas internacionais que o Brasil é signatário, a audiência de custó-
dia somente passou a ser regulada no ordenamento jurídico brasileiro em
2015 através da Resolução 2013/15 do CNJ, bem como, em 2019, passou
a constar expressamente no art. 310 do Código de Processo Penal.
Resta evidente a importância de tal audiência para garantia dos di-
retos humanos do sujeito privado de sua liberdade, visto que é um meio
simples e eficaz de controle por parte do judiciário das prisões realizadas,
bem como dos abusos por parte das autoridades policiais.
Contudo, a pandemia provada pelo Sars Cov-2, a alta taxa de mor-
talidade e facilidade de contagio tornou o distanciamento social essencial
para manutenção da vida e saúde de todos os seres humanos, o que passou
a refletir diretamente nos procedimentos jurídicos realizados presencial-
mente e, principalmente, na realização das audiências de custódia.
Em vista de que o contato pessoal passou a oferecer risco de vida tanto
para magistrados, servidores e demais usuários do Poder Judiciário, quan-
to para os sujeitos que estavam detidos, medidas foram necessárias para
que esses indivíduos tivessem seus direitos e garantias preservados, sem
que isso resultasse em contagio pela doença.
Com isso, o CNJ, por meio da Resolução nº 329 de 30 de julho de
2020, passou a regulamentar a realização das audiências no âmbito penal

202
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por meio da videoconferência, visando garantir que os sujeitos do proces-


so não fossem prejudicados pela nova realidade.
No entanto, considerando a importância do contato pessoal entre o
sujeito privado de sua liberdade e o magistrado para a garantia das finali-
dades das audiências de custódia, a supracitada resolução vedou expressa-
mente a realização desse ato processual por meio de virtual e, consequen-
temente, determinou a sua suspensão.
É bem verdade que sem o contato pessoal, não há como se dizer que
houve efetivamente a audiência de custódia, visto que não é possível o
cumprimento da finalidade da apresentação imediata do sujeito detido
à autoridade judicial competente, contudo é necessária a ponderação no
sentido de se refletir até que ponto essa audiência virtual pode ser pior do
que a não realização de qualquer audiência para analisar a prisão efetuada.
Não há como negar que se trata de um grande desafio realizar essa
ponderação, contudo foi possível concluir, que a verificação da legalidade
da prisão somente com base em expedientes escritos é, sem sobra de dúvi-
das, mais prejudicial para o sujeito detido do que a realização da sua oitiva
por meios virtuais, visto que, nessa última hipótese, é possível, mesmo que
minimamente, que o juiz verifique rastros de violação a integridade física
e psicologia com seus próprios olhos, bem como escute o indivíduo sobre
o contexto da prisão para aferir sobre a legalidade.
Logo, ainda que a videoconferência não tenha o mesmo grau de
eficiência para atingir os objetos da audiência de custódia que o contato
pessoal, na realidade excepcional que se vive atualmente, um meio termo
entre a suspensão e a realização presencial se faz necessário, sendo os meios
virtuais adequados para harmonizar a manutenção da saúde de todos os
envolvidos nesse ato processual, com as garantias e direitos dos detidos,
desde que de acordo com os ditames legais previstos pela Resolução nº
329, de 30 de julho de 2020, para realização das demais audiências com
eficiência e adequação aos direitos envolvidos.

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206
O COMBANTE AO FEMINICÍDIO NO
BRASIL DURANTE A PANDEMIA DO
COVID-19
Beatriz Peixoto Nóbrega49
Rayanny Sillvana Silva do Nascimento50

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com a pandemia do coronavírus (COVID-19), vários países pas-


saram a adotar o isolamento social como medida necessária para conter
a disseminação do vírus, devido à essa política, houve o fechamento de
escolas e universidades, a ausência de realização do trabalho externo, o
bloqueio de atividade de viagens e turismo e a diminuição da oferta de
serviços essenciais a população, como o transporte público.
Nesse cenário, com o convívio mais intenso das famílias, surgiram
mais conflitos no âmbito doméstico. Ocorre que, nas famílias em que a
violência é um padrão de comportamento, a política do confinamento
foi um fator responsável pelo aumento dos casos de violência doméstica e
feminicídio.
De fato, essas circunstâncias afetaram em especial as mulheres que so-
frem violência, pois estão presente maiores fatores de risco, principalmen-
te na sua fuga do agressor, que possui um controle mais intenso e moni-

49 Mestranda em Direito Constitucional pela UFRN. Graduada em Direito pela UFPB. Ad-
vogada.
50 Mestranda em Direito Constitucional pela UFRN. Membro colaboradora do grupo de
Pesquisa Direitos Fundamentais e a Linguagem no Direito Criminal. Servidora Pública.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

tora constantemente a vítima, de modo que nesse ambiente sob constante


atenção, uma ligação para denunciar pode ser motivo de maiores agressões
ou até mesmo do feminicídio. Diante disso, foram propostas políticas pú-
blicas, em diversos países para combater tal situação, em especial do fe-
minicídio, crime cometido em razão do menosprezo ou discriminação a
gênero ou quando envolver violência doméstica e familiar.
Nesse contexto, estudos sobre o enfrentamento da violência domés-
tica no período de pandemia é essencial para sabermos qual instrumentos
de políticas públicas ou campanhas poderão continuar a ser utilizados no
momento pós pandemia, bem como os que não foram eficazes, para pro-
piciar um mundo com a diminuição da violência de gênero, em especial
do feminicídio.
O presente artigo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica e
em consulta aos relatórios do Conselho Nacional de Justiça e do Instituto
de Pesquisa e Economia Aplicada, empregando-se o método hipotético-
-dedutivo.
Nas linhas que seguem, será explanada o crime de feminicídio, seu
contexto no âmbito de violência doméstica, bem como o isolamento so-
cial como fator de aumento dos índices de violência no país, para então
responder ao seguinte questionamento: quais foram os instrumento ao
combate à violência contra a mulher utilizados no Brasil durante o perío-
do de confinamento?

1. FEMINICÍDIO: UM CONTINUUM DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA

Após a Convenção de Belém do Pará, em 1994, a violência doméstica


e de gênero contra meninas e mulheres passou a ter status de violação de
direitos humanos, sendo essa questão preocupante do ponto de vista local
e mundial. (ADVINCULA; NASCIMENTO, 2020, p. 143).
Essa proteção internacional dos direitos humanos das mulheres tam-
bém foi reforçada pela Declaração e Plataforma de Pequim de 1995, ao
ressaltar que os direitos das mulheres são parte inalienável, integral e indi-
visível dos direitos humanos universais, de modo que não há como con-
ceber os direitos humanos sem a devida observância dos direitos das mu-
lheres. (PIOVESAN, 2018, p. 298).

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No Brasil, o crime de feminicídio surgiu com a Lei n0.13.104/2015,


resultado de conscientização da violência contra a mulher e o seu reconhe-
cimento enquanto pessoa, especialmente no âmbito de direitos humanos.
Essa proposta de criminalização seguiu a tendência da América La-
tina, desde os anos noventa, de reconhecimento da violência contra
mulheres como um delito específico, sendo essa demanda observada da
constatação que a violência baseada no gênero era naturalizada ou mesmo
ignorada pelo direito penal levando à conclusão de que os direitos huma-
nos das mulheres não eram objeto de proteção adequada. (DE CAMPOS,
2015, p. 105).
Referida lei alterou o artigo 121 do código penal brasileiro, no to-
cante à previsão do crime dolosos contra a vida, trazendo a previsão do
feminicídio como homicídio qualificado, com pena de 12 a 30 anos de
reclusão, tendo sido um marco legislativo importante para proteção inte-
gral das mulheres, ao prever o crime qualificado a circunstância objetiva
de matar uma mulher em razão das condições do sexo feminino, seja de-
corrente da violência doméstica, como uma continuidade dessa violência,
seja por discriminação ou menosprezo à condição de mulher. (VERAS,
2018, p. 113).
É importante ressaltar a participação das bancadas feministas do Con-
gresso e da ONU Mulheres no Brasil, no tocante à tramitação da Lei
n0.13.104/2015, ante a CPMI da violência contra a mulher, realizada em
2012, cujo relatório final teve grande impacto, por trazer um panorama da
violência contra as mulheres no Brasil. (ANGOTTI; VIERA, 2017, p. 18).
Pois bem, a violência contra a mulher deve ser entendida como um
padrão de violência específico, baseado no gênero, que é responsável pela
morte, dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher. (PIOVE-
SAN, 2018, p. 297). Sobre esse assunto, a Declaração sobre a Eliminação
da Violência Contra a Mulher (ONU, 1993), esclarece a violência contra
a mulher como:

Qualquer ato de violência baseado no género do qual resulte, ou


possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico
para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a
privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública,
quer na vida privada.

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A violência sofrida pelas mulheres compreende além de agressões de


caráter físico, também lesões de caráter patrimonial, psicológico, sexual e,
por vezes, culminam no assassinato, manifestação mais grave da violência
perpetrada contra mulher.
Já as vítimas não necessariamente precisam ter um relacionamento
íntimo ou familiar com o agressor, podem ser vizinhas, mulheres des-
conhecidas, colegas, e sofrerem violência como decorrência de um ato
de machismo, manifestação de desprezo e discriminação pela mulher.
(MPSP, 2018, p.21).
Sobre esse assunto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no
julgamento do caso González versus México, no qual houve o assassinato
de mulheres operárias que foram encontradas mortas com vestígios em seus
corpos de queimadura, esquartejamento e mutilação foi enfática ao reco-
nhecer feminicídio como crime homicídio de mulher por razões de gênero:

Os homicídios e desaparecimentos de meninas e mulheres em


Ciudad Juárez são a máxima expressão da violência misógina”,
razão pela qual alegaram que esta violência foi conceitualizada
como feminicídio. Segundo explicaram, consiste em “uma forma
extrema de violência contra as mulheres; o assassinato de meninas
e mulheres pelo simples fato de sê-lo, em uma sociedade que as
subordina”, o que implica “uma mistura que inclui fatores cultu-
rais, econômicos e políticos”. Por esta razão, argumentaram que
“para determinar se um homicídio de mulher é um feminicídio se
deve conhecer quem o comete, como o faz e em que contexto”.
(...) 143. No presente caso, a Corte, à luz do indicado nos pará-
grafos anteriores, utilizará a expressão “homicídio de mulher por
razões de gênero”, também conhecido como feminicídio. (CIDH,
2009).

É importante salientar que a hipótese de incidência do feminicídio


estará presente não apenas em razão do menosprezo ou discriminação à
condição de mulher, mas também quando o crime envolver violência do-
méstica e familiar.
Em regra, a violência doméstica é sistema circular, dividido em três
fase, na primeira fase, ocorre o aumento de tensão com o agressor, o qual

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se mostra agressivo por coisas insignificantes, na segunda fase, toda a ten-


são da primeira fase se transforma em violência verbal, física, psicológica,
moral ou patrimonial, já a terceira fase, poderá terminar com o feminicí-
dio. (PERRELLI; ZUCCO; SILAS FILHO, 2020, p.126). Desse modo,
o referido crime está atrelado à violência doméstica e familiar, como se
fosse sua continuação.
Conforme explica Barros e Souza (2019):

“O feminicídio cometido por parceiro íntimo em contexto de


violência doméstica e familiar, além de caracterizar como crime
de gênero ao carregar traços como ódio, que leva a destruição da
vítima, e pode ser combinado com as práticas da violência sexual/
tortura e ou mutilação da vítima antes do assassinato”

Assim, este crime está atrelado à violência doméstica e familiar, como


se fosse uma prolongação da Lei Maria da Penha, já que ambas as leis tem
por intuito proteger os direitos das mulheres, bem como prevenir e punir
a violência. (SILVA, 2018, p. 134).
De acordo com pesquisa intitulada Raio X do feminicídio, realizada
no Estado de São Paulo, para o Ministério Público de São Paulo (2018,
p.22) “o feminicídio é uma morte evitável: é certo que 3% do total de ví-
timas obteve medidas de proteção e 4% das vítimas fatais havia registrado
Boletim de Ocorrência”.
Portanto, o resultado é a morte anunciada, um continuum da violência
doméstica, e como tal pode ser evitada, sendo necessário o reconheci-
mento da consciência da violação dos direitos contra a mulher, bem como
a criação de novas estratégias para a redução da violência doméstica e de
gênero, com o intuito de evitar que novas mortes ocorram. (VERAS,
2018, p. 161).

2. ISOLAMENTO SOCIAL: FATOR RESPONSÁVEL PELO


AUMENTO DOS CASOS DE FEMINICÍDIO.

A epidemia do coronavírus (COVID-19) trouxe uma crise sanitá-


ria, econômica e de gestão para todo o globo, e atingiu significativamente
as famílias, de forma pessoal e patrimonial, especialmente, em razão da

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

imposição necessária do isolamento social, como medida preventiva ao


contágio e proteção da saúde. (HOLANDA, 2020, p.117).
Subitamente, grande parte da população teve sua rotina radicalmente
alterada, devido ao confinamento da quarentena, que colocam os núcleos
familiares em uma convivência intensa. Nesse contexto, os relacionamen-
tos que viviam uma crise viram sua situação agravada nesse período de
reclusão. (DIAS, 2020, p. 141).
De fato, a maioria das famílias lida com estresses das pressões indivi-
duais, do ambiente ou das relações cotidianamente, todavia, em famílias
nas quais o comportamento violento predomina, e parecem falhar na sua
capacidade de lidar com o conflito, por ter na violência um padrão de
comportamento, o isolamento tende a aumentar esses comportamentos.
(SEIXAS; DIAS, 2013, p. 48).
No caso específico da violência doméstica e feminicídio, em períodos
anteriores a pandemia, já se observava que o agressor tinha o padrão de
isolar a vítima de sua rede de relacionamentos. Nesse sentido leciona Sei-
xas e Dias (2013, p. 12) “todo agressor, para não ser descoberto, procura
afastar a vítima de sua rede relacional, por meio do isolamento físico, im-
pedindo-a de ter contato com todas as pessoas, a não ser em sua presença”.
Além disso, no caso da violência doméstica duas variáveis são relevan-
tes, a primeira se trata da pessoa do agressor que frequenta a sua casa ou
que mora com a vítima, independentemente da denominação de marido,
noivo, namorado, amante, entre outros, já a segunda variável é o espaço
doméstico, delimitando o agressor como pessoa que tem livre acesso a ele.
(JESUS, 2015, p. 10).
Logo, em casas onde já ocorria um isolamento da vítima e o com-
portamento violento do agressor, com o convívio mais intenso, ocasio-
nado pelo isolamento da COVID, em que não há trabalho externo, essa
vulnerabilidade da vítima tende tão somente a piorar.
Há outros fatores que influenciam no aumento de violência domésti-
ca além do convívio intenso com o agressor, como o desemprego e quebra
da responsabilidade do sustento familiar, uso e abuso de álcool e subs-
tâncias psicoativas, entre outros. (PERRELLI; ZUCCO; SILAS FILHO,
2020, p.127).
No período de confinamento houve um aumento no consumo de
drogas e álcool, que embora não seja a causa direta da violência, pode se

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tornar mais um fator que a agrava. Com efeito, há estudos que compro-
vam que, com o consumo de álcool, as chances de violência por parceiro
íntimo (VPI) contra mulheres são nove vezes mais altas quando os homens
bebiam, em comparação com dias sem consumo de álcool. (ZALESKII
ET AL., 2009, p.54).
Todas essas condições tem impacto no aumento da violência domés-
tica, no período de confinamento. Sobre esse assunto, a ONU Mulheres
lançou um documento intitulado COVID-19 na América Latina e no
Caribe, que aborda os impactos e implicações do enfrentamento da pan-
demia para as mulheres, sendo tal documento enfático ao afirmar que as
mulheres e meninas se tornam ainda mais sujeitas a violência em razão do
aumento de tensões no ambiente do lar, observe:

Em um contexto de emergência, aumentam os riscos de violência


contra mulheres e meninas, especialmente a violência doméstica, au-
mentam devido ao aumento das tensões em casa e também podem
aumentar o isolamento das mulheres. As sobreviventes da violência
podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violen-
tas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essen-
ciais devido a fatores como restrições ao movimento em quarentena.
O impacto econômico da pandemia pode criar barreiras adicionais
para deixar um parceiro violento, além de mais risco à exploração se-
xual com fins comerciais. (ONU MULHERES, 2020, p. 2.)

Esse aumento de tensões e conflitos diante de uma convivência mais


acentuada trouxe um aumento nos índices de violência no mundo todo,
sobre isso exemplifica Lima (2020, p.105):

Na China primeiro país a ser afetado, a elevação da violência do-


méstica foi logo notada. O aumento de subnotificações, em um
momento inicial do isolamento foi notado em outros países, como
na Itália, país em que, no mês de abril, houve uma mudança dessa
tendência, com o aumento de 161% das denúncias em relação a
abril de 2019.

Durante o confinamento, ao invés existir uma divisão mais igualitá-


ria de tarefas com os demais familiares, com relação as mulheres, tem-se

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

observado o efeito contrário, pois se sobrecarregam em casa com deveres


domésticos, como ressalta Holanda (2020, p. 120) “o machismo tende a
se ressaltar, destacando como indicador o aumento dos casos de divórcios
em algumas cidades chinesas, além disso o notório crescimento dos femi-
nicídios”.
Nesse contexto de convivência intensa, o feminicidio que é um conti-
nuum da violência doméstica tende também a aumentar, como tem ocor-
rido no Brasil. De acordo com a nota técnica, de dados compilados em 29
de maio de 2020, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
durante a pandemia de COVID-19, houve um aumento destes casos no
período de isolamento social:

O crescimento no número de feminicídios registrados nos 12 es-


tados analisados foi de 22,2%, saltando de 117 vítimas em março/
abril de 2019 para 143 vítimas em março/abril de 2020. No Acre, o
crescimento chegou a 300%, passando de 1 para 4 vítimas este ano;
no Maranhão o crescimento foi de 166,7%, de 6 para 16 vítimas;
no Mato Grosso o crescimento foi de 150%, passando de 6 para
15 vítimas. Apenas três UFs registraram redução no número de
feminicídios no período, Minas Gerais (-22,7%), Espírito Santo
(-50%), e Rio de Janeiro (-55,6%). (FBSP, 2020, p.6).

Percebe-se assim que diante comportamento já violento dos agres-


sores somado ao convívio intenso em razão do distanciamento do local
de trabalho, da rede de amigos e familiares, do fechamento de escolas e
outros serviços essenciais, a violência em muitos lares se agravou. (LIMA,
2020, p.105).
Somado ao aumento de violência, as vítimas se encontraram em
maiores dificuldades de fugir do seu agressor, pois serviços públicos ou
essenciais, como rede de transportes públicos deixaram de funcionar ou
funcionaram de forma precária. (NANTHINI; NAIR, 2020, p. 8).
Não obstante anteriormente ao período da pandemia já era difícil a
denúncia da violência, tendo em vista que muitas vezes o local desses cri-
mes é o ambiente do lar, o isolamento decorrente da pandemia do CO-
VID-19 agravou tal situação, trazendo novos obstáculos as vítimas, sendo

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papel do Estado identificar as situações de risco e criar mecanismos para


contornar a situação.

3. COMBATE AO FEMINICÍDIO DURANTE A PANDEMIA


NO BRASIL: OS INSTRUMENTOS UTILIZADOS.

As medidas tomadas pelos Estado em reposta a pandemia do CO-


VID-19, como o fechamento de escolas, a redução de serviços essenciais,
a ausência de trabalho externo para a maioria dos trabalhadores, limitação
do transporte público, tornou-se uma circunstância que causa obstáculo
para as mulheres que enfrentam violência no seu lar, dificultando as pos-
sibilidade de fuga do agressor e de denúncias.
Em regra, já é difícil a ocorrência de denúncias nos casos de violência
doméstica, já que a violência acontece dentro do ambiente familiar, difi-
cultando a verificação do episódio. O lar, consoante explana Mastropaolo
(2020, p.121) “é um dos ambientes onde mais se verifica a violência con-
tra as mulheres e crianças, onde acontecem a maioria dos abusos sexuais
e se acometem a maioria dos feminicídios.” No mesmo sentido, para o
Ministério Público de São Paulo (2018, p. 21), o feminicídio é praticado
“em regra, por alguém do convívio da mulher, dentro de casa ou em locais
onde a vítima costuma estar, situações que configuram uma “vantagem”
do agressor em relação às vítimas e justificam uma atuação mais efetiva do
Estado”.
Logo, num contexto convívio intenso com o agressor, realizar a de-
núncia se torna ainda mais difícil, posto que uma ligação pode ser motivo
para novas violências ou até mesmo para o feminicídio, continuum da vio-
lência doméstica. (PERRELLI; ZUCCO; SILAS FILHO, 2020, p. 128).
Apesar das maiores dificuldades de acionar a rede de apoio da sua ci-
dade, observou-se o aumento de 9% nas ligações do Disque 180 em mar-
ço de 2020, no Brasil, - número este que muito provavelmente sofre uma
cifra oculta bastante considerável. (ADVINCULA; NASCIMENTO,
2020, p.143). Esse aumento de casos, para Josefina Mastropaolo (2020,
p.121) “não apenas denuncia mais uma vez que a violência existe, mas
coloca em evidência que o âmbito do exercício do amor é um âmbito de
violência e morte para uma percentagem importante de mulheres”.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Nesse contexto, é papel do Estado desempenhar formas criativas e


inovadoras para que as denúncias possam ser realizadas. (PERRELLI;
ZUCCO; SILAS FILHO, 2020, p. 128). Sobre a resposta do Estado no
enfrentamento da violência contra a mulher, um dos fatores que é neces-
sário considerar é que a resposta a violência deve ser pautada no atendi-
mento multidisciplinar, já que há um diálogo entre diversas áreas como
saúde e jurídico, além disso, há situações que demandam uma resposta
peculiar para um grupo específica como atendimento de mulheres indí-
genas, com deficiência, cigana, em situação de rua, etc. (ADVINCULA,
NASCIMENTO, 2020, p. 144).
Na aplicação de políticas públicas no Brasil, é necessário ponderar
o seu impacto em distintos grupos, conforme destaca Friedrich e Jasper
(2020, p.443) “especialmente considerando cenários de grande desigual-
dade social e econômica, como é o caso brasileiro, a implementação de tais
medidas se tornam um enorme desafio”. Portanto, é vital que a resposta
do Estado à COVID-19 considere as realidades cotidianas de diferentes
grupos. (JUBILUT et al, 2020, p.15).
Em relação as vítimas de violência de gênero no período de confina-
mento, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), atra-
vés da Res.01/2020, traz como papel do Estado:

Fortalecer os serviços de resposta à violência de gênero, em parti-


cular a violência intrafamiliar e a violência sexual no contexto de
confinamento. Reformular os mecanismos tradicionais de respos-
ta, adotando canais alternativos de comunicação e fortalecendo as
redes comunitárias para ampliar os meios de denúncia e ordens de
proteção no período de confinamento. Desenvolver protocolos de
atenção e fortalecer a capacidade dos agentes de segurança e atores
de justiça envolvidos na investigação e punição de atos de violência
intrafamiliar. (CIDH, 2020, p.15).

No mesmo sentido, a ONU Mulheres no documento COVID-19 na


América Latina e no Caribe atribui ao Estado a necessidade de garantir a
continuidade dos serviços essenciais, bem como desenvolver novas moda-
lidades de prestação dos serviços no nível local e territorial, observe:

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“Garantir a continuidade dos serviços essenciais para responder à


violência contra mulheres e meninas, desenvolvendo novas mo-
dalidades de prestação de serviços no contexto atual e aumentar
o apoio às organizações especializadas de mulheres para fornecer
serviços de apoio nos níveis local e territorial.” (ONU MULHE-
RES, 2020, p. 3).

A resposta para proteger as mulheres vítimas de violência variou


entre os diversos países, por exemplo, na Austrália, houve a liberação
de um bilhão de libras para auxílio de vítimas de violência domésti-
ca e atendimento psicológico, por sua vez, no Egito, as mulheres que
perderam o emprego devido à crise gerada pela COVID-19 receberam
auxílio, incluindo o aumento de pagamento as mulheres comunitárias
nas áreas rurais de US$ 22 para US$ 56 por mês, já no Tonga, houve o
lançamento de uma linha de emergência e um portal via mídias sociais
para lidar com o aumento de casos de violência contra mulheres e crian-
ças no país devido às medidas relacionadas ao corona vírus. (JUBILUT
et al, 2020, p. 101, 104 e 74).
Na Espanha, o governo criou um site, que fornece um guia de atua-
ção às mulheres vítimas de violência de gênero, durante o período de con-
finamento, no qual há um aviso para entrar no modo navegação privada
para que a página não fique registrada no histórico do computador, além
de serem orientadas a clicar no botão salir rapido para fazer a página desa-
parecer da tela, caso sejam surpresas pelo agressor. (IPEA, 2020, p. 10).
No caso do Brasil, o Conselho Nacional de Justiça em conjunto com
a Associação dos Magistrados Brasileiros lançou uma campanha intitulada
Sinal Vermelho para a Violência Doméstica, na qual as vítimas eram in-
centivadas a adotar o procedimento de escrever um X vermelho na palma
da mão, o que poderia ser feito com caneta ou batom, a vítima faria tal
sinal em farmácias que assinaram o termo de adesão à campanha, diante
disso, os atendentes do local deveriam ligar para a polícia e reportar a si-
tuação. (CNJ, 2020).
Por outro lado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos lançou um aplicativo de denúncias chamado Direitos Humanos
BR, o aplicativo após um cadastro permite a denúncia e tem a opção de
anexar arquivos, como fotos e vídeos. (MMFDH, 2020).

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Faz-se necessário esclarecer que as ações em aplicativos dependem


de celulares com tecnologia avançada e acesso à internet, de modo que
tal medida desconsidera as mulheres com condições aquisitivas menores
que não tem acesso a um telefone celular, computador ou internet, ou até
mesmo as mulheres que possuem os aparelhos de telefone, mas estes estão
nas mãos de outros membros da família.
Em nota técnica sobre as políticas públicas e violência baseada no gê-
nero durante a pandemia da COVID-19, o Instituto de Pesquisa e Econo-
mia Aplicada (2020, p.14), deixou claro que no Brasil o recurso de aplica-
tivo se mostra insuficiente para grande parte das mulheres:

O foco das ações em aplicativos que dependem de celulares com


tecnologia avançada e nas mídias sociais deixa de lado as mulhe-
res que não têm acesso a estas tecnologias e à internet. Um olhar
comparativo entre os países da Europa, onde esse tipo de medida
também foi adotada, e o Brasil revela diferentes possibilidades de
alcances às mulheres. Enquanto no continente europeu a taxa de
acesso à internet chega a 100% em algumas regiões, no Brasil 71%
dos domicílios possuem esse recurso. (IPEA, 2020, p.14).

Ademais, o atendimento no combate a violência de gênero deve ser


pautado no atendimento multidisciplinar, com a articulação de diversos
setores, no âmbito federal, foram anunciadas duas ações entre os minis-
térios da Cidadania, da Economia e do Turismo para eventual abrigo de
mulheres na rede hoteleira do país no caso de esgotamento de vagas nas
Casas Abrigo, as unidades da Casa da Mulher Brasileira, o Disque 180,
entre outras instituições, e o envio de itens de segurança para as Casas da
Mulher Brasileira, contudo, de acordo com o Instituto de Pesquisa e Eco-
nomia Aplicada, essas ações se mostraram com tímidas e de pouca eficácia
diante dos desafios ao aumento da violência contra as mulheres no período
de confinamento. (IPEA, 2020, p.14).
No âmbito municipal, esse atendimento multidisciplinar foi obser-
vado em Recife, no Centro Sony Santos, Hospital da Mulher, que de
acordo com Advincula e Nascimento (2020, p. 121) “funciona 24 horas,
oferecendo atendimento de saúde e psicossocial, além da possibilidade de
registro policial da ocorrência e exame de corpo delito, sem a necessidade

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do deslocamento até a Delegacia”. Outro exemplo é demonstrado no


Centro de Referência Clarice Lispector que:

Oferece à mulher apoio psicológico, social e jurídico. O serviço


inovou lançando o atendimento através do aplicativo WhatsApp,
que funciona 24h, somando-se às iniciativas à mulher que tenha
dificuldade de sair de casa, considerando o período de isolamen-
to social. Vale salientar que esse serviço também oferece apoio à
mulher que ainda não está segura em realizar uma denúncia. (AD-
VINCULA, NASCIMENTO, 2020, p. 121).

Durante o confinamento, alguns serviços de suporte diminuíram o


seu funcionamento, dentre eles, as delegacias de polícia, que são essenciais
no combate à violência de gênero, pois permitem a realização do boletim
de ocorrência e a partir daí surge a possibilidade de utilização de medidas
de proteção para a vítima.
Com a redução do serviço de atendimento presencial, a polícia possi-
bilitou que boletins de ocorrência fossem iniciados online, com o preen-
chimento de formulário em casa ou com envio de mensagens. (IPEIA,
2020, p.15).
Ademais, alguns serviços continuaram a funcionar apesar das restri-
ções impostas pelo governo, por exemplo, a Patrulha Maria da Penha,
serviço prestado pela Polícia Militar, realiza o acompanhamento das mu-
lheres que tem medida protetiva em vigor, por meio de visitas as suas ca-
sas, para verificar se estão sendo devidamente cumpridas, prosseguiu em
alguns Estados, com algumas adaptações:

No Acre, por exemplo, as policiais não entram nas casas e conver-


sam com as mulheres da calçada, para evitar contaminação pela
Covid-19. No Piauí, a Patrulha Maria da Penha mantém contato
com as assistidas por meio de telefonemas e mensagens. Em Ala-
goas, a Ronda Maria da Penha funciona 24 horas e os atendimentos
psicológicos foram mantidos no formato on-line. Na Bahia, a ron-
da segue normalmente visitando as mulheres que necessitam. No
Rio Grande do Sul, a Brigada Militar ampliou o atendimento das
Patrulhas Maria da Penha de 46 para 82 dos municípios gaúchos.
O governo do Mato Grosso do Sul informou que intensificou as

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

ações do Programa Mulher Segura (Promuse), as quais envolvem


visitas técnicas e fiscalização de medidas protetivas em áreas urba-
nas e rurais, inclusive em aldeias indígenas. (IPEA, 2020, p. 16).

Percebe-se que surgiram novos obstáculos as mulheres, as vítimas de


violência de gênero, ante o isolamento social, providência necessária para
diminuir a contaminação do coronavírus, em especial em relação a fuga
do agressor e a denúncia. Esse combate complexo que envolve diversos
setores ocorreu de formas diferentes ao redor do mundo, de acordo com
as diferentes realidades de cada país, no Brasil, ocorreu por meio de apli-
cativo, novas campanhas, novos usos de tecnologias e da Patrulha Maria
da Penha.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o confinamento do covid-19 surgiram novos fatores que se


tornaram obstáculos para as mulheres vítimas de violência doméstica e fe-
minicídio, dentre estes a dificuldade em denunciar, com o monitoramen-
to intenso do agressor no mesmo ambiente, bem como a fuga da vítima
com a redução da oferta de serviços essenciais, de transporte público, o
que impede seu deslocamento. Contudo, apesar dessas dificuldades, hou-
ve a constatação do aumento dos crimes de violência doméstica e femini-
cídio na maioria dos países.
Diante dessa nova realidade, esse combate, que envolve o diálogo en-
tre diversos setores, foi feito de formas diferentes nos países, haja vista as
peculiaridades de cada região. No Brasil, foi realizado através de diversos
mecanismos, como o uso do aplicativo Direitos Humanos BR, da cam-
panha Sinal Vermelho para Violência Doméstica, da Patrulha Maria da
Penha, entre outros, com o uso de novas tecnologias que buscam oferecer
a facilitação da denúncia. Dentre as medidas utilizadas grande parte foi
através do uso de novas tecnologias, a exemplo do oferecimento do bole-
tim de ocorrência online.
É importante salientar que todos esses mecanismos são importantes
para facilitar o acesso da vítima em situação de vulnerabilidade, contudo,
parte das mulheres, ainda não tem o acesso ao uso de tecnologia, como
smartphones. Por isso, cabe ao Estado o desafio de desempenhar seu papel

220
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de forma inovadora e buscar novos caminhos para facilitar as denúncias,


atendendo as peculiaridades todas as mulheres, sejam carente de recursos,
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225
MASCULINIDADE E PANDEMIA: UM
VÍRUS E DUAS GUERRAS
Loyse Gabriela Moura da Silva51

INTRODUÇÃO

Diante do contexto social atual, a violência contra a mulher apresen-


ta-se perante múltiplas formas de agressões. Diante ao exposto foi cons-
truído o desencadeamento de sérios conflitos e dificuldades na vida das
mulheres, sucedendo-se situações de degradação humana entre discrimi-
nação de gênero e a submissão, que em posição revela-se secular para tais
práticas.
A cultura machista e conservadora se afirmam presente nos dias
atuais, sendo considerada uma das características marcantes da sociedade
heteronormativa brasileira. No tocante ao contexto de pandemia situa-
ções e práticas travestidas de ódio, resultou em um aumento significável e
preocupante, justificando assim a pertinência da realização deste estudo,
que visa buscar um debate crítico e preciso diante desta problemática que
tanto nessecita ter mais força e voz.
No tocante, a discussão tem o objetivo de proporcionar ao leitor
pressupostos para uma reflexão que busca contribuir no fortalecimento
das mulheres em sua emancipação e igualdade na sociedade. Eviden-
ciando o sistema patriarcal de poder como exercutor da desigualdade,
entendendo que por sua vez, a situação atual da pandemia desencadeou

51 Bacharel em Serviço Social, pela Faculdade Católica Santa Teresinha – Caicó/RN. Cursan-
do Especialização em Educação e Direitos Humanos pela FAVENI.

226
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

a intensificação de diversos conflitos que integram a violência em suas


multiplas expressões.
Com isso, os mescanismos de apoio que são as criações das leis: Ma-
ria da Penha, e a do Feminicídio, entre as redes especializadas de apoio ao
enfrentamento, necessitam de mais representações e de investimentos do
poder público para sua aplicabilidade, encoranjando assim todas as mulhe-
res que venham sofrer violência denunciarem seus agressores.
De acordo com os assuntos expostos para o enriquecimento do deba-
te a seguir, buscou-se no que refere aos os objetivos específicos: a) retratar
a violência contra a mulher e sua relação com o patriarcado: expressão da
dominação masculina, evedenciando os desafios postos na vida das mu-
lheres desde a preconização deste sistema opressor e suas múltiplas facetas;
b) evidenciar a relação da covid-19 com a intensa desingualdade de gêne-
ro, mostrando o alarde dos diversos casos, no contexto do distanciamen-
to social; c) “sobrevivi ao meu agressor e agora?”: as sequelas que ficam,
compreendendo que, esses ciclos de agressões demandam traumas que vão
além das aparências físicas.
A problematização fundamentou-se em conformidade com uma me-
todologia qualitativa diante de pesquisas exploratórias, tendo em vista um
referencial teórico que integrasse as análises aqui debatidas, buscou-se au-
tores (as) que discutam sobre essas categorias em específico, sendo estes
(as): Bourdieu (2010), Beauvoir, (2016), Cisne (2004), Pateman (1993),
Pasinato (2015), Saffioti (1987-2011) e entre outros (as).

1. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E SUA RELAÇÃO


COM O PATRIARCADO: EXPRESSÃO DA DOMINAÇÃO
MASCULINA

A violência contra a mulher se instaura diante suas faces como um


dos principais agentes da violação dos direitos humanos, atingindo todas
as classes sociais dentre seus diferentes níveis de formação profissional,
religioso, educacional, cultural, entre outras. É importante citar que esse
fenômeno drástico afeta diretamente a vida das mulheres, acarretando
consigo um debate antigo e preciso na história de luta deste público ex-
cluído historicamente nas reproduções econômicas e sociais da execução
da sociedade, construída pelas normas heteronormativa.

227
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Essa violência de gênero, não se limita apenas ao ato físico, mas sim-
bólico que visa à subjugação a mulher e a sua desvalorização, esse fenô-
meno vem se perpetuando e renovando suas práticas atualmente, trata-se,
portanto, de “uma ruptura de qualquer forma de integridade da vítima:
integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade
moral”. (SAFFIOTTI, 2011, 17). Diante deste cenário perverso e rodea-
do de desumanização, a luta transfere em resistência, sendo de suma im-
portância contextualizar sobre os condicionantes que cercam a exercurção
dos poderes de dominação.
Este sistema de poder é unificado e intitulado como patriarcado,
umas das principais categorias de análise sobre a qual os estudos feministas
e marxistas se debruçam especificamente no que tange às consequências
para a vida das mulheres, que liga ao casamento e a família, considerado
espaços legitimados desse fenômeno. Simone de Beauvoir, em sua obra
clássica “O Segundo Sexo” inicia o capítulo intitulado: a mulher casada,
afirmando que “o destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mu-
lher é o casamento” (BEAUVOIR, 2016, p. 187).
O patriarcado é considerado, historicamente, o mais antigo sistema
de dominação e exploração humana, vindo a se reatualizar de acordo com
as dinâmicas impostas pela sociedade, se instaurando em meio aos costu-
mes e cultura (SAFFIOTI, 1987). Dessa maneira, é importante citar que
sistema de poder atribuido a figura masculina impõe a impossibilidade do
pensamento contrário desse gênero específico, explanando os impactos
nas relações sociais das mulheres no convívio social e para além. De acor-
do com Pateman (1993):

“A interpretação patriarcal do “patriarcado” como direito paterno


provocou, paradoxalmente, o ocultamento da origem da família na
relação entre marido e esposa. O fato de que homens e mulheres
fazem parte de um contrato de casamento – um contrato original
que instituiu o casamento e a família – e de que eles são maridos e
esposas antes de serem pais e mães é esquecido. O direito conjugal
está, assim, subsumido sob o direito paterno e as discussões sobre
o patriarcado giram em torno do poder (familiar) das mães e dos
pais, ocultando, portanto, a questão social mais ampla referente ao

228
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

caráter das relações entre homens e mulheres e à abrangência do


direito sexual masculino” (PATEMAN 1993, p. 49).

Portanto, essa normatização dos homens sob as mulheres abarca todos


aspectos da vida social e civil. Expressando que, esse sistema de domi-
nação prevalece presente sob toda sociedade, “submetendo as mulheres
tanto na esfera pública quanto na privada, configurando o poder total de
todas as práticas ao patriarca” (PATEMAN, 1993, p. 167).
A sexualidade masculina e sua dominação vem exprimindo que o ato
sexual é pensado em função do princípio do primado da masculinidade,
ou seja, pensar o ato sexual como uma relação de dominação, pois é con-
cebido pelos homens como uma forma apropriada a “posse”, resultando a
posição considerada normal, logicamente a que o homem “fica por cima”,
associando esse comportamento humano ao poder (BOURDIEU, 2010).
Deste modo, cita-se a desigualdade nas relações de gênero no que
direciona a violência doméstica sofrida pelas mulheres como expressão da
questão social, essa titulação passada aos homens em decorrência desses
anos são resultados de várias violências, dentre elas: violência física, psico-
lógica, sexual, patrimonial e moral, que vem se intensificando atualmente
em diversas formas.
Por sua vez, expressa a função do Estado como principal agente inter-
ventor na responsabilização no enfrentamento das expressões da questão
social, no que tange a violência de gênero, desde o final dos anos de 1980
vem requisitando a atuação de trabalhadores (as) no campo da proteção
social no Brasil, porém de acordo com (CISNE, 2004):

“O Estado utiliza-se da “figura” da mulher, com todas as suas


“características, dons e papéis sociais” difundidos ideologicamente
pela igreja Católica para assegurar o controle da “questão social”
e ao mesmo tempo para se desresponsabilizar pelos problemas so-
ciais” (CISNE, 2004, 41).

Entendendo que por diante as desigualdades se materializam através


de uma relação existente entre a submissão e a dominação, explicitando a
predominância na figura masculina nas reproduções, enquanto a condição
de subalternidade associa a figura feminina. Nesse contexto, a violência

229
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

contra a mulher encontra-se cada vez mais significativa e presente na rea-


lidade e vivência de muitas mulheres.
No tocante temos um marco histórico repleto de lutas e rodeado de
desafios, a “Lei nº 11.340/06”. A Lei Maria da Penha que, foi sancionada
em 2006 “com 46 artigos distribuídos em sete títulos, ela cria mecanismos
para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em
conformidade com a Constituição Federal” (IMP, 2006, p, 01). Citando
ainda, que em 2015 é sancionada a “Lei de nº 13.104/15” que, “prever
o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio”
(BRASIL, 2015, p. 01).
Sem dúvidas a criação desses dispositivos no que condiz a efetivação
das leis representa um marco legal no enfrentamento da violência contra
a mulher, porém a realidade vem sendo contrária dos artigos expressos na
lei, “o grande desafio para a efetiva aplicação da Lei Maria da Penha é a
questão cultural, principalmente no que se refere à violência doméstica,
que tem as mulheres como vítimas preferenciais” (MPPR, 2017, p. 01).
A necessidade de mais discussões que envolve o tema “violência de
gênero”, inquestionavelmente é o pilar essencial da problemática, pois a
falta em investimentos, mais debates e profissionais capacitados na rede
especializada de atendimento para mulher vítimas de violência, são me-
canismos que vem sofrendo dificuldades em suas implementações, tor-
nando a lei falha e com escassez na sua aplicabilidade. De acordo com
os serviços de acolhimento estão expostos os seguintes aparatos para o
enfretamento da questão em debate:

Centros especializados de atendimento à mulher, casas-abrigo, ca-


sas de acolhimento provisório, delegacias especializadas de aten-
dimento à mulher (DEAMs), núcleos ou postos de atendimento à
mulher nas delegacias comuns, defensorias públicas e defensorias
da mulher (especializadas), juizados especializados de violência
doméstica e familiar contra a mulher, promotorias e promotorias
especializadas, casa da mulher brasileira, serviços de saúde geral e
serviços de saúde voltados para o atendimento dos casos de violên-
cia sexual e doméstica. (BRASIL, 2016, p. 01-02).

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Porém, diante do contexto atual no qual estamos vivenciando, que é


a pandemia do Covid-19, no ano de 2020, o desafio e o desencadeamento
de múltiplas sensações fez parte do dia a dia de milhares pessoas, em con-
sequência das medidas restritivas elaboradas pelos governos federal, esta-
dual e municipal que modificou a rotina e o modo de vida da sociedade
em geral, desencadeando um aumento no que tange aos casos de violência
contra mulher, tornando esse desafio recorrente.

1.1 Covid-19 e sua intensa relação com a desigualdade


de gênero

Potencializou com a chegada do Coronavírus, no ano de 2020, al-


guns indicadores no que concerne ao aumento da violência contra a mu-
lher, este período intenso mostra evidências sobre essa problemática que
embora seja considerada um debate bem problematizado criticamente,
vem se fortalecendo e tornando presente no contexto social. Durante o
distanciamento social, notícias eram divulgadas pelas mídias e a criação de
relatórios eram expressos apontando um aumento no que referenciava a
violência cometida contra as mulheres. Onde indicadores apontavam que
durante a quarentena essas violações vinham sendo rotineiras, entendendo
que, muitas mulheres se virão “presas” com seus receptivos agressores.
Visando evidenciar o quanto vem sendo desafiador o enfretamento
da violência contra a mulher e os alarmantes números de casos, e infeliz-
mente sem justiça em sua grande parte. O Conselho Nacional de Justiça
explana que:

O Brasil terminou o ano de 2019 com mais de um milhão de pro-


cessos de violência doméstica e 5,1 mil processos de feminicídio
em tramitação na Justiça. Nos casos de violência doméstica, houve
aumento de quase 10%, com o recebimento de 563,7 mil novos
processos. Os casos de feminicídio que chegaram ao Judiciário
cresceram 5% em relação a 2018 (CNJ, 2020, p. 01).

Portanto, “desde que a pandemia de coronavírus começou, 497 mu-


lheres perderam suas vidas. Foi um feminicídio a cada nove horas entre
março e agosto, com uma média de três mortes por dia” (BRASIL DE

231
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

FATO, 2020, p. 01). Com esse aumento de casos voltados a violência


contra as mulheres reflete pensar sobre a eficácia das políticas públicas e
investimentos voltados a esse dilema social.
Entendendo que, no Brasil, as políticas públicas voltadas nessa área,
são consideradas novas, iniciando suas estruturas na defesa dos direitos
das mulheres nos anos 2000, com a criação da Secretaria de Políticas para
as Mulheres. É importante citar, o quanto é necessária mais atenção e
eficácia dos poderes públicos, principalmente dos representantes legais
executores da lei.
Precisa-se superar a cultura machista fruto do patriarcado das relações
sociais, mediante a isso, o Estado deve-se haver com precauções efetivas
e mais punitivas para o enfretamento dessa realidade danosa na produção
e reprodução da vida feminina. Onde em muitos casos é um obstáculo
o acesso à justiça, hoje legalmente considerada um direito da mulher, e
crime para quem vinher cometer.  
A violência contra a mulher vem instaurar-se em diversificadas facetas,
podendo ser praticada pelos seus respectivos parceiros, pessoas desconheci-
das, chegando ate a familiares, entendo que, as medidas de distanciamento
social desencadearam um outro tipo de contaminação, a intensificação da
violência, e fortificação do patriarcado, mostrando que, “quando iniciou o
confinamento da população por causa do vírus, 195 mulheres foram mortas
em 20 estados”. (BRASIL DE FATO, 2020, p. 02).
Por meio disso, “um grande alarde em diferentes eixos de opressão,
foi o aumento de 14, 1% no que refere ao número de denúncias realizadas
ao 180 entre os primeiros quatros meses de 2020” entendo que, por meio
destas circunstâncias fica evidenciado “o total de registros foi de 32,9 mil
entre janeiro e abril de 2019 contra 37,5 mil no mesmo período deste ano,
com destaque para o mês de abril, que apresentou um aumento de 37,6%
no comparativo entre os dois anos” (BRASIL, 2020, p. 01).
No dia 10 de junho de 2020, a Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB), em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lançam
a campanha “Sinal Vermelho”, que propõe diante um ato simples salvar
vidas. “Com um “x” vermelho desenhado na palma de uma das mãos,
as vítimas já podem contar com o apoio de mais de 10 mil farmácias em
todo o país, cujos atendentes, ao verem o sinal, imediatamente acionam
as autoridades policiais” (AMB, 2020, p 01). A criação de campanhas

232
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com objetivo ao enfretamento da violência contra a mulher, inibem atos


violentos e incentiva denúncias contra os agressores.
A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (DPE/
RN), “registrou mais de 900 atendimentos na área de violência doméstica
e familiar nos primeiros sete meses de 2020 só na capital potiguar” isto
evidência a intensa luta e realidade de vida das mulheres onde, “só durante
a pandemia causada pela Covid-19, mais de 500 mulheres procuraram a
instituição em busca de direitos, seja abrindo processos ou em acompa-
nhamento de casos já existentes”. (DPE, 2020, p. 01).
O DPE/RN criou mecanismos no que condiz ao fortalecimento de
sua rede, ampliando os canais para que as vítimas pudessem com mais
facilidade buscar por seus direitos junto com o auxílio da instituição, ex-
pressando ainda:

Em seu site, www.defensoria.rn.def.br, o espaço denominado “Juntas


– Justiça e Atendimento para elas” que permite, através de um for-
mulário específico, o acolhimento dos relatos e a abertura de atendi-
mento para as vítimas de violência doméstica e familiar. As demandas
enviadas pelo site são destinadas diretamente ao Núcleo de Defesa da
Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (Nudem) para que
sejam analisadas e devidamente respondidas. (DPE, 2020, p. 01).

Entendendo que a implementação desses serviços são necessariamen-


te precisos durante a pandemia e para além dela, pois os efeitos dessas
atrocidades deixam marcas externas e internas, que além de interferir na
vida das mulheres economicamente, desencadeiam também problemas
psicológicos, onde muitas ficam impossibilitadas fisicamente ou inter-
rompida pelo feminicídio. Considerando um grande desafio ser mulher na
contemporaneidade e combater o patriarcado vem sendo um dos grandes
dilemas atuais na vida das mulheres.

1.1.1 “Sobrevivi ao meu agressor e agora?”: As sequelas


que ficam

Pensar no contexto social na atualidade nos demanda uma reflexão


crítica além da realidade inserida é entender a violência contra a mulher

233
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

como saúde pública. O senso comum e sua “fala” sobre esses condicio-
nantes ao qual apontam a mulher “aceitar” ou “conviver” com seus agres-
sores em suas múltiplas vezes, faz com que, a figura feminina mais uma
vez, passe por diversas situações vexatórias, que envolvem não apenas a
questão sentimental “da família”, mais econômica, a falta da rede de apoio
especializada entre outras.
É preciso pensar que essa sobrecarga e o ciclo de agressões ao qual
a mulher está inserida entre queimaduras, espancamentos, xingamentos,
limitações, chegando muitas vezes até a morte além deixar marcas im-
põe traumas nas vítimas, exigindo contínuos tratamentos, que por sua vez
são caros. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), “em
2013 o Brasil já ocupava o 5º lugar dentre os territórios que mais matam
mulheres”. (AGÊNCIABRASIL, 2017, p. 01).
Compreendendo este cenário agravante decorrido pelo fenômeno
da violência contra as mulheres nos compete “o reconhecimento de que
a violência doméstica e familiar contra as mulheres não será mais aceita
como componente ‘natural’ e ‘admissível’ das relações entre homens e
mulheres” (PASINATO, 2015, p. 414).
O contexto atual provocado pelo coronavírus trouxe consigo a inten-
sificação do elevado número de violência que consequentemente deixará
impactos entre eles citam-se os mais recorrentes que são os psicológicos
podendo persegui-se ao decorrer da vida desencadeando depressão, ansie-
dade, mal alimentação e distúrbios, entre as físicas que deixam traumas,
medo de relaciona-se com outras pessoas. Esses crimes baseados no gêne-
ro no ano de 2020, veio a se agravar, pelo simples convívio social ao qual as
vítimas se virão mais tempo em casa como seus agressores, desencadeando
inúmeros problemas.
Estes conflitos sociais demarcam sequelas eternas na vida das vítimas,
e em meio de milhares casos será citado um que ocorreu no período de
Agosto de 2019, onde a vítima relatou ao programa “Encontro” da rede
globo logo no início da pandemia, “a gente se conheceu em uma rede
social. A princípio ele era muito cavaleiro e galanteador. Para mim, ele era
o amor da minha vida. Mas bastou a gente ficar sozinhos, morar juntos,
que as agressões começaram”. Onde em seguida a vítima expressa como
ocorreram as primeiras violências cometidas pelo seu ex-companheiro,
relatando “os primeiros sinais que a gente tem que perceber é isso: quando

234
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

você começa a perder a sua identidade. Eu não podia falar com a minha
família, o meu celular era o mesmo dele.” (G1, 2020, p. 02- 03).
E o mais devastador é que em uma das agressões a vítima desenca-
deou sequelas na perna e as consequências dessa violação a seus direitos
são presentes em sua vida “até hoje eu não posso trabalhar porque eu fi-
quei com uma deficiência na perna”. (G1, 2020, p. 03). Ou seja, as mar-
cas da violência contra a mulher além de físicas e psíquicas, econômicas e
entre outras, deixam desafios a serem vencidos.
Consequentemente em meio a esse ciclo opressor ao qual as mulhe-
res estão submetidas é considerável mencionar a importância da denúncia
e as campanhas de incentivo e apoio as vítimas. Ainda em acordo com
o debate promovido pelo programa “encontro” a promotora de justiça
Gabriela Manssur ratifica “sempre tem saída depois da violência e não se
sinta culpada porque a culpa é sempre de quem agrediu, nunca de quem
é vítima, de quem é agredida. A denúncia é sempre o melhor caminho”
(G1, 2020, p. 04).
O objetivo das redes de apoio e os mecanismos ao enfrentamento da
ruptura do ciclo violento, diante da submissão feminina, busca combater a
intolerância e essa dominação do homem para com a mulher, em busca da de-
fesa aos direitos constitucionalmente conquistados. Central de Atendimento
à Mulher – Ligue 180, Polícia Militar – Ligue 190) entre outras redes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os noticiários, relatórios, criação de campanhas, as


medidas de distanciamento social utilizadas para o não contagio ao Co-
vid-19, causou a intensificação e desencadeou um aumento significativo
da violência contra a mulher em suas múltiplas expressões, listando como
fatores de risco, a integridade física e psíquica das mulheres.
O fortalecimento da rede de apoio na conscientização, no que refere
ao incentivo da denúncia, expansão em mais investimentos na rede pro-
teção e criações de mais ouvidorias são ferramentas primordiais, para esse
enfrentamento, presume-se a ocorrência de muitos mais casos aos quais
não são registrados. Dessa forma, explana a importância do olhar do esta-
do frente a essa problemática, enquanto representante legal da lei por meio
dos investimentos em mais políticas públicas.

235
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

O presente trabalho não tem pretensão de esgotar o tema abordado,


dessa forma mostrou que durante a pandemia decorrente do coronavírus
os ciclos de agressões obtiveram aumento, evidenciando segundo as fontes
que esse problema social pecorre por todo Brasil e seus respectivos esta-
dos, capitais e distritos, impactando a vida da mulher.
Refletindo enquanto a realidade ao qual está exposto é na verdade a
instauração de duas guerras, em suas diversificadas faces. Compreender,
debater, e lutar por uma sociedade mais justa e igualitária é algo intenso e
desafiador, porém precisa-se falar mais sobre a fortificação, emancipação
da mulher. Os inúmeros constrangimentos as vítimas decorrendo até ao
feminicídio, é algo corriqueiro e presente na atualidade.
Com isso, a aplicabilidade continua das redes de proteção à mulher, e
punição aos agressores são assuntos que precisam de mais funcionalidade
e efetividade. O incentivo a denúncia deve ser continuo nas mídias so-
ciais, congressos e eventos ligados a esse enfretamento. O governo e seus
sucessores principais agentes interventores devem gerir mecanismos que
combatam esses números de agressões e mortes.
Diante dos fatos apresentados, fica mais que explícito a veracidade do
contexto atual e a necessidade de mais debates acerca deste presente assun-
to, que tanto precisa de mais concretude, e a sua preconização da mesma
forma que legaliza a lei. Mostrando que, a importância da criação das leis
e outras políticas públicas implementadas foram primordiais porém falta
mais ação, afinal, todos os dias morre uma mulher vítima do feminicídio
e essa realidade não deve ser normalizada.
No mais, a luta e resistência contra esses tipos de agressões transferi-
das as mulheres não se devem parar, isso por todas as mulheres que ainda
se encontram nesses ciclos perversos e em justiça pela memória das que se
foram. Denunciar o agressor será sempre a melhor saída. Por fim, cita-se a
importância de estudos voltados nesta temática, como forma de não dei-
xar normalizar um assunto tão preciso.

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238
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS E A SUA (IN)EFICÁCIA
DIANTE OS POVOS DO IRAQUE E
DA SÍRIA EM VIRTUDE DO GRUPO
JIHADISTA ESTADO ISLÂMICO NO
LEVANTE E NO IRAQUE
Jéssica Pauline Pinheiro Salvi

1 INTRODUÇÃO

Os Direitos Humanos representam a igualdade e a liberdade dos in-


divíduos. É o ponto norteador para a vida em sociedade de forma digna.
Desta forma, as leis, normas, tratados e convenções internacionais for-
mam o mecanismo para garantir que cada ser humano não sofrerá lesões
contra a dignidade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada em 1948, sur-
giu da necessidade do pós Segunda Guerra Mundial. A ideia de superiori-
dade de um tipo de indivíduo sobre os demais demonstrou a necessidade
de legislar e tutelar o direito à dignidade, inerente a todos os seres huma-
nos.
Ocorre que a maior preocupação tornou-se a forma de fazer com
que a Declaração Universal dos Direitos Humanos obtivesse força para
efetivar e proteger, de fato, a liberdade e dignidade das pessoas. Conter
os casos de violação dos direitos humanos não é uma tarefa fácil. Isso fica
claramente evidenciado diante das transgressões que o povo do Iraque e da

239
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Síria vem sofrendo diante do grupo terrorista Estado Islâmico no Levante


e no Iraque. O grupo tem por objetivo ocupar e dominar territórios, a
fim de impor suas normas. Contudo, seus métodos de organização social
são baseados em tortura, morte e, por consequência, afronta aos Direitos
Humanos.
Desta forma, este artigo tem por objetivo analisar as normas protecio-
nistas dos Direitos Humanos, a fim de averiguar sua (in)eficácia diante das
violações da dignidade humana que vem acontecendo ao povo do Iraque e da
Síria pelos ataques dos rebeldes do Estado Islâmico no Levante e no Iraque.
Assim, inicialmente são abordados a análise da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, do surgimento do grupo terrorista Estado Islâmi-
co e suas transgressões da liberdade e igualde, para, por fim, apresentar o
resultado da (in)eficácia das normas protecionistas dos Direitos Humanos
no que diz respeito ao povo do Iraque e da Síria diante das violações jiha-
distas.

2 OS DIREITOS HUMANOS

O homem é o responsável por resguardar a dignidade da pessoa. Neste


contexto, os Direitos Humanos representam as maneiras encontradas de
proteger o ser humano do sofrimento. As leis e normas internacionais são as
formas para dar garantia ao bem tutelado. Contudo, torna-se necessário que
estes tratados e leis sejam eficazes, para de fato combater as crueldades que
assolam o direito à liberdade e à igualdade (CASTILHO, 2011).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, conforme explica o
autor supracitado, é responsável por assegurar o direito às diferenças de
raça, cor, orientação sexual, etnia, religião, nacionalidade, opção política
ou de qualquer outra natureza. Desta forma, a Declaração surge como
uma forma de garantir a igualdade entre os seres humanos, que vivem em
um meio tão desigual.

2.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos e sua


origem

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada em 1948, de-


veria ser elaborada em três etapas distintas. Inicialmente, havia a necessi-

24 0
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

dade de criar uma declaração em conformidade com o art. 55 da Carta das


Nações Unidas para, posteriormente, garantir que o documento produzi-
do teria maior relevância jurídica que uma mera declaração. Por fim, de-
veria ser introduzida uma maneira de fazer-se assegurar que o texto fosse
de fato cumprido, respeitando-se os direitos humanos, capaz de tratar os
casos em que ocorresse violação (COMPARATO, 2015).
Outrossim, seguindo a ideia deste autor, a última das etapas do pro-
cesso de elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda
não fora finalizada, já que não há uma maneira eficaz de proteger de fato
tudo que a declaração rege. É notório a impossibilidade de controlar e
punir todas as formas de violação que ocorrem em todo o território in-
ternacional.
A Declaração, em seu preâmbulo, parágrafo segundo, cita a seguinte
frase:

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos hu-


manos resultam em atos bárbaros que ultrajam a consciência da
humanidade e que o advento de um mundo em que os homens
gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem
a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta
aspiração do homem comum.

Ou seja, surge, pela primeira vez em texto jurídico, a distinção das


liberdades, distinguidas em quatro, sejam estas da palavra, da crença, de
viver salvos do temor e da necessidade.
Conforme explica Comparato (2015), a Declaração surgiu da ideali-
zação das Declarações de independência dos Estados Unidos e dos Direi-
tos do Homem e Cidadão, da Revolução Francesa, aliado aos temores da
Segunda Guerra Mundial e do medo que a sociedade internacional estava
da ideia de que uma raça pudesse vir a se achar superior as demais, seja em
ideia de religião, cor, etnia ou cultura, colocando em risco toda a existên-
cia humana. Logo, viu-se a necessidade de contextualizar a igualdade do
ser humano em sua dignidade da pessoa.
A criação do Direitos Humanos é uma consequência direta do pós
segunda guerra e da reação que a humanidade teve em relação as barbáries
cometidas. Com isso, foi criado a organização das Nações Unidas. Con-

24 1
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

tudo, a ONU não listou os direitos que seriam considerados essenciais.


Isso ocorreu com o surgimento da Declaração dos Direitos Humanos,
também conhecida como Declaração de Paris, aprovada com 48 votos a
favor e nenhum contrário, mas com oito abstenções (Bielorússia, Checo-
losváquia, Polônia, União Soviética, Ucrânia, Iugoslávia, Arábia Saudita
e África do Sul). Honduras e Iêmen não participaram da votação. Com
seus trinta artigos surgiram o rol de proteção aos direitos humanos. A
força vinculante da Declaração Universal dos Direitos Humanos tem três
posicionamentos claros. O primeiro deles, que tem força vinculante por se
tratar de termo de Direitos Humanos previstos na Carta das Nações Uni-
das. A outra opção é que possui força vinculante por se tratar de costume
internacional sobre matéria. Por fim, a última ideia é que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos apenas busca orientar a ação futura dos
Estados, por isso não tem força vinculante ( RAMOS, 2014).

2.2 A aplicabilidade das normas protecionistas dos


Direitos Humanos

A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocí-


dio, de 1948, explicita que o genocídio vai contra o Direito Internacio-
nal, sendo de responsabilidade das partes contratantes prevenir e punir, a
fim de assegurar que a humanidade não passe novamente por situações
dolorosas de perseguição, como já aconteceu muitas vezes na história da
humanidade, acarretando em desrespeito aos direitos de igualdade e liber-
dade das pessoas (TRINDADE, 1991).
Ainda segundo o autor, considera-se genocídio o crime capaz de des-
truir, no todo ou parcialmente, um determinado grupo nacional, étni-
co, racial ou religioso. Em consequência, seguindo a explicação do autor,
as pessoas acusadas de cometer este crime serão julgadas pelos tribunais
competentes do Estado em que foi cometido o ato, ou então pela Corte
Penal Internacional, desde que seja parte contratante da convenção e que
reconhecida a jurisdição.
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça é anexo à Carta das Na-
ções Unidas, assinada em 1945. Esta Carta tem por objetivo promover a
paz e a tolerância entre as nações, de forma a trazer segurança, igualdade e
dignidade para a humanidade. Sua intenção é a de promover cooperação

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entre os países, de forma que os tratados e outras fontes de direito interna-


cional possam ser mantidos e cumpridos (PIOVESAN, 2009).
Assim, a população mundial tem, conforme explica a autora supra-
citada, mecanismos de proteger a segurança internacional. Os tratados,
convenções e outras normas podem ser eficazes se munidos de cooperação
mútua.
Contudo, Cockburn (2015) explica que as grandes potenciais mun-
diais, algumas vezes, demoram a perceber a gravidade de situações que asso-
lam a uma determinada comunidade. Foi o que aconteceu e eclodiu para o
crescimento do Estado Islâmico. O conhecimento do fato que estava acon-
tecendo em determinados países do Oriente Médio só se tornou visível ao
mundo com a explosão dos refugiados sírios, que além de enfrentar uma
guerra civil desde 2011, passaram a ser perseguidos pelo grupo jihadista.
Sendo assim, as normas internacionais para punições de crimes de
genocídio, que estão interligados diretamente com a afronta aos Direitos
Humanos, são capaz de manter a paz internacional, desde que os países
da Organização das Nações Unidas estejam empenhados em combater e
reafirmar os direitos fundamentais do homem (PIOVESAN, 2009).

3 O ESTADO ISLÂMICO NO LEVANTE E NO IRAQUE

O Estado Islâmico no Levante e no Iraque é um grupo terrorista islâ-


mico que surgiu, oficialmente, em junho de 2014, quando se separou da
outra frente terrorista Al-Qaeda. Embora só apresentado para o mundo
no ano supracitado, os países do oriente e sua população já enfrentavam a
fúria dos rebeldes há mais tempo. Prova disso é que, em 2013, a Al-Qaeda
havia intimado ao Estado Islâmico para retirar suas tropas da Síria, a fim
de deixar que a Frente Al-Nusra continuasse com a expansão no territó-
rio. Ocorre que o Estado Islâmico se recusou, já que seu principal inte-
resse é o domínio e ocupação de territórios (WEISS; HASSAN, 2015).

3.1 O surgimento do grupo terrorista Estado Islâmico

O grupo jihadista, segundo Cockburn (2015), dominou o noroeste


do Iraque e parte central da Síria. Seu líder, denominado califa, chama-se
Abu Baks Al-Baghdadi. Contudo, a história do grupo rebelde e seus ideais

24 3
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

vem de tempos mais antigos. Conforme Sonn (2011) explica, a morte de


Maomé desencadeou uma divisão na população muçulmana. Isso porque,
sem seu profeta, a comunidade acabou sendo influenciada por duas ver-
tentes diferentes, os sunitas e os xiitas.
Ainda segundo a autora, embora ambos os grupos muçulmanos qui-
sessem um novo governo baseado na religião islâmica, os xiitas acredi-
tavam que o sucessor do profeta deveria ser descentes de Maomé. Já os
sunitas consideravam que o califa, que se tornaria o líder máximo dos
muçulmanos, poderia ser qualquer pessoa, desde que o candidato fosse
aceito pela população em geral.
Ocorre que o Estado Islâmico no Levante e no Iraque tem vertente
sunita, o que faz com que persiga todos os infiéis, ou seja, aqueles conside-
rados pertencentes a outras religiões, ou, mesmo sendo muçulmanos, mas
que sejam xiitas (COCKBURN, 2015).
O autor supracitado ainda esclarece o Iraque, historicamente, é um
país marcado por conflitos externos e internos, o que trouxe aos cidadãos
muito sofrimento, com grandes violações aos direitos humanos. A popu-
lação iraquiana sempre foi abusada pelo governo autoritário de Saddam
Hussein, sendo alvo de ataques contra a dignidade humana.
Cockburn (2015) explica que as intervenções lideradas pelos Estados
Unidos, em 2003, eclodiram em um grande guerra, não só externa, mas
também interna. Com as tropas estrangeiras bombardeando o Iraque, o
povo sunita sentiu necessidade de defender seu povo. Assim, uma insur-
reição armada sunita agiu contra os norte-americanos.
Após a retirada das tropas estadunienses, o sunitas extremistas bus-
cam retroceder as forças armadas iraquianas, que passaram a ser vistas
como inimigas. Na busca pelo poder e tomada das terras, surge em 2014
um novo jihad, mais inescrupuloso e cruel, autoproclamado Estado Islâ-
mico no Iraque e no Levante. O que é evidente são as marcas que o Estado
Islâmico deixa no povo Iraquiano, como todos os outros por onde passa
(COCKBURN, 2015).

3.2 O Estado Islâmico e a afronta aos Direitos Humanos

O grupo, que se autoproclama Estado, embora pretenda, não é de


fato considerado um. Isso porque sua expansão e controle se dá em ci-

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dades isoladas, e não de um país como o todo. Não é reconhecido como


Estado pela Organização das Nações Unidas, pois embora o grupo jiha-
dista tenha seu próprio jeito de governar e controle sobre a população dos
lugares que conquista, não possui um território definido, muito menos
capacidade de manter relações com outros Estados (WEISS; HASSAN,
2015).
Sua intenção, conforme explica os autores supracidatos, é levantar a
bandeira do jihad em todo o mundo, fazendo predominar o islamismo. A
ocupação pelo califado se dá através de tortura, guerra e morte de cidadãos
inocentes. Sua bandeira hasteada causa terror nas cidades dominadas, sig-
nificando que o local já é propriedade do Estado Islâmico.
No Iraque e Síria, a ocupação de cidades inteiras, transforma a so-
ciedade em refém. Isso porque possuem um poder absoluto sobre toda a
forma, estrutura e organização do município. O Estado Islâmico controla
a vida de cada um dos indivíduos por onde se expande. Desde sua conduta
até seus negócios. Tem o poder de aplicar sanções, estipuladas pelo pró-
prio Estado Islâmico. Domina o trabalho e negócio dos cidadãos, estipula
os preços do comércio, e aplica suas próprias leis, com base na Sharia,
como um verdadeiro Estado Autoritário (COCKBURN, 2015).
A Sharia é conhecida como o direito islâmico. Sendo assim, ainda
como entendimento do autor supradescrito, não há uma distinção entre
direito e religião, que acabam se fundindo. Isso significa que as normas e
leis são todos baseados em escrituras religiosas ou nas próprias opiniões do
líder, que é o califa. Cockburn (2015) explica que as penas aplicadas são
duras, dentre elas está jogar homossexuais de edifícios, crucificações em
praça pública, amputação de membros do corpo e decapitações expostas
nas cidades, dentre tantas outras maneiras de punições.
O povo do Iraque e da Síria sofre violações à sua dignidade das quais o
mundo demorou para perceber a força e a gravidade que o Estado Islâmi-
co representava. O grupo jihadista foi subestimado, tomando proporções
incontroláveis e deixando marcas profundas e tristezas permanentes nos
povos que domina (COCKBURN, 2015).
O autor ainda explica que apenas o bombardeio em resposta às vio-
lações do Estado Islâmico não são mais eficientes. O grupo jihadista tor-
nou-se forte e com a aderência de muitas pessoas, até mesmo não islâmi-
cos, que se identificaram com a forma de agir e a organização do grupo.

24 5
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Atualmente, faz-se necessário um estudo do islamismo e dos ideais que


este povo segue, para, por fim, confrontar o terrorismo.

4 RESULTADO

Embora a população internacional possua mecanismos de combater a


perseguição que assola aos povos do Iraque e da Síria, e que consequente-
mente afeta a humanidade, pouco se demonstra eficiente as normas pro-
tecionistas dos Direitos Humanos.
Portanto, a partir da análise realizada sobre a (in)eficácia da Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos, com foco no sofrimento do povo
iraquiano e sírio diante das violações à dignidade sofridas em decorrência
do grupo Estado Islâmico no Levante e no Iraque, notou-se que a socie-
dade internacional demorou a perceber a gravidade da situação que estava
acontecendo em parte do Oriente Médio. O grupo jihadista foi crescen-
do e ganhando força, conquistando territórios e dominando populações,
sem, de fato, ser impedido.
Assim que oficialmente proclamado ao mundo sua existência, o Es-
tado Islâmico passou a deixar transparecer o horror que causa aos povos
que passa a dominar. Desta forma, as normas protecionistas dos Direi-
tos Humanos tornam-se pouco eficazes. Embora legalmente haja amparo
para buscar asilo aos povos que sofrem com os atos do jihad, meramente
os tratados, convenções e outras fontes de direito internacional não serão
eficientes enquanto não houver comoção mundial e cooperação mútua
dos Estados para combater o terrorismo como um todo.

5 CONCLUSÃO

Os Direitos Humanos buscam para a comunidade internacional se-


gurança, a fim de garantir que a humanidade não sofra com perseguições
que afetem seu direito a igualdade e a liberdade. Existem, no ordenamen-
to jurídico mundial, tratados, convenções e normas protecionistas da dig-
nidade humana.
Contudo, em que pese tais fontes de direito, a população ainda é as-
solada por transgressões e violações dos direitos humanos. Na Síria e no
Iraque, o grupo jihadista Estado Islâmico no Levante e no Iraque vem do-

24 6
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minando e ocupando territórios, com a intenção de impor suas próprias


regras e normas desumanas.
Com base na Sharia, que se trata de uma forma de interligar o direito
e a religião islâmica, o grupo rebelde pratica atos de barbárie contra os
povos que domina. As penalidades são estipuladas pelo próprio califa, que
é visto como o líder do grupo. Suas sanções vão desde tortura até a morte
dos cidadãos.
Desta forma, fica evidenciado que, embora a comunidade interna-
cional possua mecanismos para impor direitos à dignidade humana, não
são eficientes na forma de assegurar que estes direitos sejam protegidos no
caso concreto de violações.

REFERÊNCIAS

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2011.

CHEMIN, Beatris Francisca. Manual da Univates para trabalhos


acadêmicos: planejamento, elaboração e apresentação. 2 ed. Lajea-
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metodologia da pesquisa no Direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva,
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24 7
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WEISS, Michael; HASSAN, Hassan. Estado Islâmico: Desvendando o


exército do terror. 1 ed. São Paulo: Seoman, 2015.

24 8
SISTEMA PRISIONAL E “ESTADO
DE COISAS INCONSTITUCIONAL”:
DO CASO CARANDIRU AO
CORONAVÍRUS
Saulo Capelari Junior52
Moacyr Miguel de Oliveira53
Renato Alexandre da Silva Freitas54

INTRODUÇÃO

No dia 02 de outubro de 1992, a Casa de Detenção de São Paulo,


também conhecida como “Carandiru”, foi palco de um dos episódios
mais devastadores da história do sistema prisional brasileiro: o denomi-
nado “Massacre do Carandiru”. Embora existam questionamentos sobre o
número exato de mortos, ao menos 111 (cento e onze) óbitos ocorreram
com a intervenção da Polícia Militar para pacificar a rebelião no presídio.

52 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Toledo Araçatuba/SP – UniToledo. Pes-


quisador pelo Grupo de Pesquisa “Jurisprudência de Direitos Fundamentais” do UniToledo
e pelo Grupo de Estudos “Serviços Públicos e Administração Pública Digital” vinculado ao
NUPED/PUC-PR.
53 Doutorando e Mestre em Direito – UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná).
Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Toledo Araçatuba/SP – Unitoledo.
Advogado.
54 Doutorando em Ciências Jurídicas pela UENP/Jacarezinho/PR. Mestre em Direito pelo
Unitoledo de Araçatuba/SP, coordenador e professor pela mesma instituição. Graduado em
Direito pelo Centro Universitário Toledo. Advogado.

24 9
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Além de processos criminais ajuizados em desfavor dos policiais, o


país também foi questionado em órgãos internacionais de proteção de di-
reitos humanos, a exemplo da Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos. Ocorre que, mesmo com este grandiloquente marco histórico,
ainda persistem seríssimos problemas no sistema penitenciário que resul-
tam na violação dos direitos humanos fundamentais da população carce-
rária. Tanto é assim que a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
pela primeira vez em sua história, decidiu reunir quatro casos envolvendo
o Brasil em um supercaso55 que apreciará a responsabilidade internacional
do Estado com relação à violações de direitos dos detentos.
Além disso, o atual cenário instaurado pela Pandemia do novo corona
vírus (COVID-19) apresentou uma conjuntura até então desconhecida
para a Administração Pública, no que se refere a necessidade de proteção
dos presidiários contra eventuais infecções que, caso se alastrem em larga
escala, poderiam provocar um “novo massacre”, agora, por omissão do
Estado.
O objetivo da presente pesquisa consiste em examinar a evolução do
sistema penitenciário brasileiro após o caso do Carandiru, e questionar as
razões de persistirem violações de direitos humanos fundamentais da po-
pulação carcerária, dando-se destaque à análise da postura do Estado fren-
te ao potencial risco de contágio em massa nos presídios em decorrência
da pandemia de COVID-19.
Para tanto, o primeiro tópico é responsável por apresentar, brevemen-
te, o ocorrido no Massacre do Carandiru, de acordo com o Relatório ela-
borado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O segundo
tópico analisa o precedente firmado na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 347, em que o Supremo Tribunal Federal (STF)
reconheceu a tese jurídica do “Estado de Coisas Inconstitucional” do sis-
tema penitenciário nacional. Examinou-se também o Habeas Corpus Co-
letivo nº 172.136 e o Caso Urso Branco (que está em julgamento pela Corte
Interamericana). A análise conjunta dos referidos casos reforça a tese de que
omissões advindas do Estado podem ser fatais dizimando vidas que, inde-
pendente do crime cometido, estão sob a custódia estatal.

55 Matéria veiculada no jornal “El país” com o seguinte título: “Justiça Interamericana mon-
ta ‘supercaso’ contra presídios brasileiros”. Disponível em: <https://bit.ly/3eDh62E>.

250
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O terceiro tópico busca investigar se a atual conjuntura do nosso sis-


tema prisional apresenta condições adequadas para o tratamento da popu-
lação carcerária. Com isso, há a contextualização com o cenário imposto
pela pandemia do novo coronavírus, fenômeno da natureza que exigiu
uma completa readequação da vida cotidiana e, especialmente, do modus
operandi do Estado no que se refere a gestão dos presídios e as práticas e
protocolos adotados para evitar contaminações em massa, que poderiam
ser compreendidas como “novos massacres” advindos da omissão e negli-
gência das autoridades públicas.
A presente pesquisa adotou a metodologia da análise bibliográfica e
jurisprudencial – com ênfase na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da
Corte Constitucional Colombiana e da Corte Interamericana de Direitos Humanos
–, elegendo o método dedutivo, objetivando alcançar a compreensão de
como tem-se dado a tutela aos direitos humanos fundamentais da popula-
ção carcerária brasileira ao longo destes quase 30 (trinta) anos do Massacre
do Carandiru, considerando o reconhecimento, pelo STF, do fenômeno
do “Estado de Coisas Inconstitucional” e seu possível agravamento em
tempos de pandemia do novo coronavírus (COVID-19).

1. 02 DE OUTUBRO DE 1992: O SANGRENTO


MASSACRE DO CARANDIRU

Em um Estado Democrático de Direito, como é o Brasil (art. 1º,


caput, CRFB), a lei – como expressão da vontade geral e produto de um processo
democrático – deve estabelecer as condutas humanas desejáveis e, principal-
mente, as condutas humanas reprováveis. “Assim, nesse Estado Consti-
tucional e democrático de direito é que encontraremos o fundamento de
validade do jus puniendi, bem como suas limitações. É um Estado em que
os direitos humanos deverão ser preservados a qualquer custo” (GRECO,
2015, p. 26). Qualquer pessoa que cometa um delito deverá ser processada
com todas as garantias constitucionais provenientes do devido processo legal.
Independentemente do crime cometido pelo indivíduo, não se pode
negar um tratamento minimamente digno aquele que estará sob a custó-
dia do Estado por ter cometido um ilícito penal. Qualquer ação ou omis-
são do Estado que coloque em risco a vida ou integridade física e/ou psi-
cológica do preso deve ser repudiada, sob pena de responsabilização civil,

251
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

penal e administrativa das autoridades envolvidas. Ocorre que, o Brasil


tem vivenciado nas últimas três décadas, episódios lamentáveis de dizima-
ção de sua população carcerária.
Inicialmente, necessário destacar que a Casa de Detenção de São Pau-
lo, popularmente conhecida como Carandiru, era “Um dos maiores pre-
sídios do mundo naquela época, abrigava cerca de 7 mil presos para uma
capacidade aproximada de 3.200. A intervenção foi sangrenta e o saldo
foi o número de 111 presos mortos” SALLA; ALVAREZ,. 2012, p. 02).
O Massacre do Carandiru, ocorrido em 02.10.1992, é um episódio
sombrio da história penitenciária brasileira, pois até o presente momento,
ainda pairam dúvidas sobre a legalidade do procedimento de interven-
ção do Estado para pacificar a rebelião. Importante pontuar que o caso
revela uma enorme complexidade, que se nota com o prolongamento
no transcorrer dos anos de processos judiciais ainda em trâmite no Poder
Judiciário brasileiro, bem como intervenções de órgão internacionais de
proteção aos direitos humanos, a exemplo da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos.
Necessário proceder a uma breve apresentação do caso: as 14 horas do
dia 02 de outubro de 1992, por um motivo ainda não completamente es-
clarecido, iniciou-se uma briga generalizada entre os reclusos do pavilhão
0956. Os guardas conseguiram conter o tumulto e fecharam o pavilhão,
sendo os detentos aglomerados e confinados. Não suportando tal situação,
romperam as trancas e iniciaram um motim (OEA, 2000).
Frente ao levante, os guardas retiraram-se do pavilhão. O diretor da
prisão pediu ajuda da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que chega-
ram por votla das 14h45. Dentre os quais, haviam policiais do batalhão
de choque e grupo especial da ROTA, com aproximadamente 350 agen-
tes. O diretor solicitou a presença urgente de magistrados com jurisdição
sobre a conjuntura (OEA, 2000). As 16 horas a ocupação teve início e
depois de algumas horas, os guardas puderam retomar seus postos, pois
a operação resultou em, ao menos, 111 mortos (aproximadamente) e 35
feridos entre os reclusos, não havendo uma morte sequer no corpo de
agentes policiais (OEA, 2000).

56 O pavilhão abrigava 2.069 internos, e, apenas 15 guardas penitenciários, sendo que as


condições carcerárias não atendiam às disposições regulamentares Organização dos Esta-
dos Americanos. (OEA, 2000).

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O evento foi criticado por considerável parcela da doutrina vez que


“O século XX foi marcado por tragédias ocorridas dentro dos sistemas
penitenciários, (...) O massacre da Prisão de Carandiru, em 2 de outubro
de 1992, resultou na morte de 111 presos, por integrantes da Polícia Mili-
tar de São Paulo (OLIVEIRA apud GRECO, 2015, p. 179).
Os laudos produzidos pelo Instituto de Criminalística (I.C.) foram
inclusos. Contudo, existem fortes acusações de adulteração da cena do
crime de modo a dificultar o trabalho pericial. Nesse sentido:

O local dava nítidas demonstrações de que fora violado, tornando


o inidôneo para a perícia. A falta de cuidado com a preservação das
provas é notada ainda no laudo de exame das armas de fogo, em
que os peritos atestam que a pesquisa de resíduos de pólvora com-
busta nas armas relacionadas ficou prejudicada em “face do tempo.
(MACHADO; MACHADO; FERREIRA, 2015. p. 51-52.)

No entanto, os referidos laudos não foram totalmente inutilizados,


pois o I.C. concluiu que ocorreram excessos na ação policial57. Os peti-
cionários relataram casos de extrema violência policial em diversos outros
locais, antes do dia 02 de outubro, até mesmo dentro da casa de detenção
(OEA, 2000). Deve-se registrar que os familiares dos detentos mortos têm
encontrado muita dificuldade de conseguir êxito em ações indenizatórias
cíveis58.
Diante deste contexto, uma reflexão é oportuna: Por que rememorar
um caso do longínquo ano de 1992? Dar ênfase ao caso do Carandiru se
faz necessário tendo em vista que o sistema penitenciário brasileiro tem
apresentado uma série de outras violações aos direitos humanos funda-
mentais da população carcerária – conforme se demonstrará nas próximas linhas
– e se por uma ação do Estado centenas de vidas foram perdidas naquele

57 Para uma análise mais detalhada sobre a violação aos direitos humanos dos internos
da casa de Detenção do Carandiru indica-se a leitura da Ata da Comissão Permanente de
Estudos de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados de São Paulo – Caso do Massacre
do Carandiru (IASP, 2016)
58 TJ nega indenização a filhos de morto o massacre do Carandiru. Consultor Jurídico, 2016.
disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-ago-31/tj-nega-indenizacao-filhos-mor-
to-massacre-carandiru>. Acessado em: novembro de 2020.

253
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

episódio, agora, em 2020, com a pandemia de coronavírus omissões esta-


tais poderão provocar um novo massacre em virtude da potencial prolife-
ração do COVID-19 nos presídios brasileiros.

1.1. A responsabilidade civil do Estado diante da


violação de direitos no sistema prisional

O desdobramento da persecução penal no caso do Massacre do Ca-


randiru bem demonstra que não houve uma satisfatória resposta do Poder
Judiciário, até o momento, posto que não se obteve a individualização das
ações dos agentes, impossibilitando condenações criminais e, por conse-
quência, a concessão de indenizações a todos os familiares dos detentos
mortos.
Ocorre que após o fatídico dia 02, outras violações continuaram a
ocorrer em presídios brasileiros. Constata-se, com indesejável frequên-
cia, violações aos direitos humanos fundamentais da população carcerária.
Exemplificativamente, menciona-se o Recurso Extraordinário 580.252/
MS59, que se discutiu a responsabilidade do Estado por danos morais de-
correntes de superlotação carcerária. Os ministros vencidos propuseram a
remição como forma indenizatória.
O acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nº
2016.0000648289 merece atenção, pois o Estado de São Paulo foi con-
denado ao pagamento de indenização a família de detento que se suicidou
em uma penitenciária do município de Mirandópolis, segue ementa em
destaque:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil do Estado


Danos morais e materiais. Suicídio de detento em estabelecimen-
to prisional. Responsabilidade do Estado. Responsabilidade que

59 Ementa do RE 580.252/MS: Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Re-


percussão Geral. Constitucional. Responsabilidade civil do Estado. Art. 37, § 6º. 2. Violação a
direitos fundamentais causadora de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carce-
rários. Indenização. Cabimento. O dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente
causados por ato de agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre di-
retamente do art. 37, § 6º, da Constituição, disposição normativa autoaplicável. Ocorrendo
o dano e estabelecido o nexo causal com a atuação da Administração ou de seus agentes,
nasce a responsabilidade civil do Estado. (STF, 2017).

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subsiste ainda que se trate de suicídio. Omissão quanto ao dever de


custódia e vigilância. (TJSP, 2016).

Percebe-se que mesmo na hipótese de suicídio, tal evento não afasta a


responsabilidade objetiva do Estado por omissão. Em relação aos casos em
tela, observa-se que não foram assegurados os direitos mínimos dentro dos
presídios em Corumbá/MS e Mirandópolis/SP.
Não se desconsidera que parcela da população entende incabível qual-
quer indenização com relação a morte de detentos. Contudo, deve-se pre-
servar a racionalidade científica e o respeito à legalidade e a Constituição
Federal. Assim, o próprio STF tem reconhecido, em sua jurisprudência,
a gravidade de muitos eventos ocorridos em complexos penitenciários no
Brasil, que persistem na violação de direitos, ocasionando o que a doutri-
na e a jurisprudência tem denominado de “Estado de Coisas Inconstitu-
cional”, conforme se verá a seguir.

2. A ADPF 347 E A TEORIA DO “ESTADO DE COISA


INCONSTITUCIONAL” NO BRASIL

A Constituição de 1988, marco histórico da redemocratização bra-


sileira, erigiu a dignidade da pessoa humana como o núcleo axiológico
e parâmetro de validade de todo o sistema jurídico. Os direitos funda-
mentais previstos no texto constitucional e complementados pelos direitos
humanos advindos de tratados internacionais objetivam proporcionar a
todos, sem exceção, condições mínimas para uma vida digna.
Nesse sentido, “No último quartel do século XX, com a promulga-
ção da Constituição Federal, as instituições nacionais foram revigoradas
eticamente com o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido como
um dos fundamentos do Estado brasileiro.” (NADER, 2014. p. 74-75).
A Dignidade Humana deve ser preservada inclusive dentro das peni-
tenciárias. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) traz, quase utópi-
camente, em seu art. 88 que “o condenado será alojado em cela individual
que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório, garantindo-lhes
um ambiente salubre, aerado, isolado e adequado termicamente a existên-
cia humana” (LEP, 1984). Todavia, Sergio Adorno já apontava conside-
ráveis fragilidades do Estado no que se refere ao sistema de justiça criminal

255
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

no Brasil: “Dadas as heranças históricas e o peso da administração patri-


monial, o sistema de justiça criminal carece de uma articulação eficiente”
(ADORNO, 1991, p. 04).
Ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) nº 347, em Setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal re-
conheceu um “Estado de Coisas Inconstitucional (ECI)” do sistema pe-
nitenciário brasileiro, o que, intensifica o debate público sobre a eficiência
da legislação em vigor, bem como, a inexistência de uma gestão pública
adequada.
Tese jurídica desenvolvida na Corte Constitucional Colombiana na
Sentença T-25/2005, para se identificar o ECI é necessário “que exista
grave e massiva violação dos direitos fundamentais, uma omissão persis-
tente do Estado em resolvê-la e, ainda, um litígio estrutural a demandar
soluções interinstitucionais para os problemas” (LEGALE; ARAUJO,
2018).
Pondera Campos que “a Corte Constitucional colombiana acabou
tomando medida extrema ao reconhecer a vigência de um ECI. Trata-se
de decisão que busca conduzir o Estado a observar a dignidade da pes-
soa humana e as garantias dos direitos fundamentais (CAMPOS, 2019,
p. 102).
Pois bem, para o reconhecimento de um ECI é preciso haver uma
alta e contínua violação aos direitos humanos fundamentais combinada
com uma inércia estatal. Explica Dantas (2017, p. 59) “que é imperioso a
existência de requisitos, a saber: a grande violação generalizada de direitos
constitucionais que prejudicam um número amplo de pessoas; a propaga-
da omissão das autoridades em cumprir com as obrigações que garantem
direitos;”
Para reforçar tal ponto, no julgamento do Habeas Corpus coletivo
172.136/SP, de relatoria do Ministro Celso de Mello, o STF também re-
conheceu o “Estado de Coisas Inconstitucional”, ao destacar que o caso se
tratava (...) em sua indisfarçável realidade concreta, hipótese de múltiplas
ofensas constitucionais, em clara atestação da inércia, do descuido, da in-
diferença e da irresponsabilidade do Poder Público em nosso País”. (STF,
2019).
Outro fator importante destacado no julgamento é a insuficiência
de recursos públicos para o setor penitenciário, surgindo, inegavelmen-

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te, certas decisões difíceis, caracterizadas, juridicamente, como “escolhas


trágicas”:

O grau de desenvolvimento socioeconômico de cada país impõe


limites, que o mero voluntarismo de bacharéis não tem como su-
perar. E a escassez obriga o Estado em muitos casos a confrontar-
-se com verdadeiras ‘escolhas trágicas’, pois, diante da limitação de
recursos, vê-se forçado a eleger prioridades dentre várias demandas
igualmente legítimas (HC 172.136-SP, p. 19).

Porém, nada justifica a exposição de detentos a situações violadoras


de sua dignidade. Rogério Greco aduz “Hoje em dia, a luta no que diz
respeito à dignidade da pessoa humana não está mais centrada no seu re-
conhecimento, mas sim na sua efetiva aplicação prática” (GRECO, 2015,
p. 73). Diante deste ECI, em um país como o Brasil, inegável que certos
direitos devem ser priorizados em detrimento de outros.
Essa questão é muito suscitada no embate entre a reserva do possível
e o mínimo existencial. Apenas para reflexão: como justificar a existência
de orçamento público para gastos expressivos com publicidade governa-
mental, sendo que em muitos detentos são privados de medicamentos que
comprometem sua saúde60? Pondera o Ministro Celso de Mello que:

a noção de mínimo existencial, (...), compreende um complexo de


prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir con-
dições adequadas de existência digna” (...) a cláusula da Reserva
do Possível é ordinariamente invocável naquelas hipóteses em que
se impõe ao Poder Público o exercício de verdadeiras ‘Escolhas
Trágicas’, em contexto revelador de situação de antagonismo entre
direitos básicos e insuficiências estatais financeiras.

(...)

60 Matéria intitulada: “Faltam medicamentos psicotrópicos no maior presídio de MT, diz


sindicato: Secretaria que administra sistema prisional reconheceu problema. Sindicato diz
que detentos que fazem tratamento correm risco de ‘surto’. Disponível em: <http://g1.glo-
bo.com/mato-grosso/noticia/2013/04/falta-medicamentos-psicotropicos-no-maior-presi-
dio-de-mt-diz-sindicato.html>. Acessado em: novembro de 2020.

257
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A decisão governamental, presente essa relação dilemática, há de


conferir precedência à intangibilidade do “mínimo existencial”,
em ordem a atribuir real efetividade aos direitos positivados na pró-
pria Lei Fundamental da República e aos valores consagrados nas
diversas convenções internacionais de direitos humanos. A cláusu-
la da reserva do possível, por isso mesmo, é inoponível à concreti-
zação do “mínimo existencial” (HC 172.136-SP, p. 23).

Ademais, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (OEA)


que o Brasil integra, já investigava, desde 2006, situações que comprovam
esse “Estado de Coisas Inconstitucional”, a exemplo da Casa de Deten-
ção José Mario Alves, conhecida também como “Urso Branco” que foi
denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, resultando
no Relatório de Admissibilidade n. 81/0661, veja-se fragmentos do menciona-
do relatório:

I. Em 5 de junho de 2002, a Justiça Global e a Comissão Justiça


e Paz da Arquidiocese Porto Velho (doravante denominados “pe-
ticionários”) apresentaram à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (doravante denominada “CIDH” ou “a Comissão”)
uma petição contra a República Federativa do Brasil (doravante
denominada “Brasil” ou “Estado”). Esta petição denuncia a situa-
ção de violência e perigo em que se encontram as pessoas privadas
de liberdade na Casa de Detenção José Mario Alves, conhecida
como Presídio “Urso Branco” em Porto Velho, Estado de Rondô-
nia, Brasil. Segundo os peticionários, os fatos caracterizam viola-
ções aos Direitos Humanos garantidos pela Convenção Americana
de Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção” ou
a “Convenção Americana”), (...). 2. O Estado brasileiro afirmou
que já realizou diversas melhorias estruturais na Penitenciária, in-
clusive com a melhoria de atendimento médico, odontológico e
jurídico. (OEA, 2006).

Inegável que o Poder Judiciário tem assumido um papel de destaque,


e até mesmo protagonismo, nas democracias contemporâneas, sendo as

61 Relatório disponível em: <https://bit.ly/2U5JKQx>.

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cortes constitucionais as responsáveis pela deliberação de casos específicos


e de grande repercussão nacional. Barroso leciona “A ascensão do judiciá-
rio deu lugar a uma crescente judicialização da vida e a alguns momentos
de ativismo judicial. Judicialização significa que questões relevantes do
ponto de visto político, social ou moral estão sendo decididas pelo judi-
ciário” (2014, p. 39).
Nesse contexto, o reconhecimento jurisdicional de que o sistema
penitenciário necessita, urgentemente, de reformas, deve movimentar
os Poderes Legislativo e Executivo na busca por soluções, uma vez que
transferir a responsabilidade ao Judiciário, é medida absolutamente insu-
ficiente.
Por outra ótica, não se pode esperar unicamente do Poder Judiciário
que resolva o problema através de decisões judiciais. Isso, porque a crise do
sistema penitenciário exige o planejamento e execução de políticas públi-
cas, gestão orçamentária, bem como outras questões atinentes, principal-
mente, ao administrador público, e não ao magistrado.
Aliás, os demais poderes não podem se acovardar, permanecendo
inertes e esperando em juízes e tribunais a solução para um problema que
também é político, e não unicamente jurídico. Tanto é assim, que uma
postura mais ativa dos juízes e tribunais pode ser entendida como um fe-
nômeno que tem sido denominado pela doutrina de “ativismo judicial”62.
O Massacre do Carandiru ainda não foi solucionado e, por conse-
quência, o Estado não foi responsabilizado. Infelizmente o Estado não
conseguiu evitar que novos episódios nefastos ocorressem nas penitenciá-
rias brasileiras e mais de vinte anos depois do evento o STF reconheceu o
“Estado de Coisas Inconstitucional” no sistema penitenciário brasileiro.
Ainda há muito a fazer para corrigir os gravíssimos erros que persistem em
acontecer, inclusive, levando o Brasil ao banco dos réus em um Supercaso
que será julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

62 Por “ativismo judicial” entenda-se: É o exercício da função jurisdicional para além dos
limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Ju-
diciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e contro-
vérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos) (RAMOS, 2015, p. 324).

259
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

3. DO MASSACRE DO CARANDIRU A PANDEMIA:


OS DESAFIOS DE PROTEÇÃO DA POPULAÇÃO
CARCERÁRIA FRENTE AO CORONAVÍRUS (COVID-19)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi elaborada


em contexto de pós-guerra em que ideologias totalitárias como o nazismo
e o fascismo reduziam os seres humanos a estatísticas a serviço de um pla-
no de poder. Assim, com o surgimento da Organização das Nações Uni-
das se estabelece um discurso transnacional de que cada ser humano é um
fim em si mesmo. “O homem, e duma maneira geral, todo ser racional,
existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário
desta ou daquela vontade” (TAVARES, 2014, p. 439).
Com relação a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Flávia
Piovesan reforça essa ideia de que toda pessoa humana é titular de direitos
mínimos que lhe assegurem uma vida digna:

Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pes-


soa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. (...) A dig-
nidade humana como fundamento dos direitos humanos e valor
intrínseco à condição humana é concepção que, posteriormente,
viria a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direi-
tos humanos (PIOVESAN, 2015, p. 216).

Portanto, ainda que o indivíduo tenha cometido crimes bárbaros,


juridicamente, ainda permanecerá como titular de direitos. Neste racio-
cínio, necessário fixar a premissa: Com o assassinato dos, aproximada-
mente, 111 detentos durante o Massacre do Carandiru, diversos direitos
fundamentais foram violados.
Além das violações a Constituição, um conjunto de Tratados Inter-
nacionais ratificados pelo Estado Brasileiro reforçam a necessidade de pro-
teção aos encarcerados, a exemplo da Convenção Americana de Direitos
Humanos - CADH (OEA); Pacto Internacional de Direitos Civis e Po-
líticos (ONU); e, mais especificamente: Regras de Mandela (regras mínimas
das Nações Unidas para o tratamento de presos); Regras de Bangkok (regras das
Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de
liberdade para mulheres infratoras).

260
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

A Convenção Americana (CADH), editada em 1969 pela OEA, foi


elaborada buscando a efetivação de tais direitos por meio do órgão de pro-
teção na américa. Em seu art. 5º expresso está que toda pessoa tem o direi-
to de ter sua dignidade humana preservada, mesmo no cárcere.
A Constituição de 1988 surgiu como o marco de uma nova Era, alme-
jando desvencilhar-se das “masmorras” do passado. Com efeito, o artigo 5º
CRFB, trouxe um extenso rol exemplificativo de Direitos Fundamentais,
sendo alguns específicos sobre os detentos, por exemplo: o inciso XXXIX
afirma que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal (princípio da legalidade e reserva legal); O inciso
XLV diz que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, consagran-
do o princípio da individualização da pena; Por sua vez, o inciso XLIX,
reforça que é assegurado aos presos o respeito a integridade física e moral;
E merece realce o super princípio do devido processo legal, positivado no
inciso LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal” (BRASIL, 1988).
Ademais, o Massacre do Carandiru violou, a um só tempo, a Cons-
tituição da República, leis infraconstitucionais e tratados internacionais
de Direitos Humanos. Este episódio demonstrou diversas violações aos
direitos humanos fundamentais de mais de uma centena de detentos que
foram mortos por uma ação do Estado.
Ocorre que com a Pandemia do Novo Coronavírus, poderemos ter
um novo massacre por omissão estatal. No entanto, com relação as prisões
ao redor do mundo a ONU ponderou “A superlotação das prisões persist
e na maioria dos países em todo o mundo e constitui um dos obstáculos
mais fundamentais para proporcionar ambientes de detenção seguros e
saudáveis, de acordo com os direitos humanos fundamentais” (UNODC,
2020, p. 02). Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde orientou sobre
o que vem a ser esse vírus pandêmico:

Coronavírus são uma grande família de vírus (...). Alguns infectam


pessoas e são conhecidos por causar doenças que vão desde o res-
friado comum até doenças mais graves, como a Síndrome Respi-
ratória Aguda Grave (SARS) e a Síndrome Respiratória do Orien-
te Médio (MERS). O novo coronavírus é uma nova categoria de
coronavírus que não foi previamente identificada em humanos.

261
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

(...) os principais sinais e sintomas clínicos relatados em pessoas


durante este surto incluem febre, tosse, dificuldade para respirar, e
as radiografias de tórax mostram infiltrações pulmonares bilaterais
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020, p. 17, Tradução
nossa).

Tendo em vista o “Estado de Coisas Inconstitucional” existente no


sistema prisional, há uma alta violação de direitos, dentre eles, o direito à
saúde e ao ambiente salubre. Com efeito, diante da Pandemia, houve um
crescente número de casos de detentos infectados, nesse sentido, em ma-
téria veiculada pelo canal ConJur, expôs-se que “O número de infecta-
dos por coronavírus em unidades do sistema prisional brasileiro registrou
um aumento de 82,3% nos últimos 30 dias, chegando a 19.683 casos.”
(CONJUR, 2020).
Nesse sentido, Greco pondera que “Na verdade, aquele ambiente in-
salubre é um terreno fértil para a disseminação dessas doenças, pois os
presos não recebem o devido tratamento” (GRECO, 2015, p. 151).
Tanto é assim que no início da pandemia no Brasil – março de 2020
– o Ministro Marco Aurélio, do STF, sugeriu, publicamente, a adoção
de medidas preventivas para inibir a expansão do coronavírus no sistema
prisional63. No mesmo sentido, o Departamento Penitenciário Nacional
tomou certas medidas de contenção e prevensão, decidindo:

Suspender, (...), as visitas sociais e os atendimentos de advogados


(...) com exceção de requisições judiciais, inclusões emergenciais
e daquelas que por sua natureza não possam ser adiadas. O órgão
também solicitou que cada gestor de saúde do sistema prisional das
unidades federativas preenchessem uma planilha (...), com as ne-
cessidades de insumos de saúde necessários para prevenção contra
COVID-19 no sistema prisional (DEPEN, 2020).

Todavia, “a aglomeração de pessoas e a baixa circulação de ar, mesmo


com todas as medidas de precaução que estão sendo adotadas, tornam

63 Matéria “Ministro sugere medidas preventivas contra a expansão da COVID-19 no siste-


ma carcerário”. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?i-
dConteudo=439614>. Acessado em: novembro de 2020.

262
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

o sistema carcerário um ambiente propício para a transmissão do CO-


VID-19” (BARBOSA; BIONDI; GODOI, 2020, p. 10). Sendo assim,
o DEPEN ainda elaborou um Manual64 com as informações mais impor-
tantes sobre como se portar durante o período pandêmico.
Obviamente, as medidas tomadas pelo DEPEN estão sendo de ex-
trema importância para a prevenção à saúde dos internos, a fim de que
não haja o agravamento das violações aos direitos humanos fundamentais.
Contudo, essa abrupta crise sanitária que se instalou no mundo revela a
necessidade de políticas públicas efetivas de proteção à saúde dos inter-
nos, haja vista que o ambiente prisional com a superlotação carcerária com
uma população que ostenta uma considerável parcela de encarcerados com
histórico de outras doenças acaba traduzindo a combinação perfeita para a
dizimação de vidas por um vírus tão letal e agressivo.

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Massacre do Carandiru foi um terrível episódio da história do


sistema penitenciário nacional, marcado por equívocos na intervenção
policial, e ineficácia do Estado na devida resolução do caso concreto. A
problemática se agrava pela extrema dificuldade de responsabilização dos
envolvidos e consequente responsabilização do Estado, haja vista que os
processos judiciais se arrastam por mais de vinte anos, correndo-se o sério
risco de serem atingidos pelo fenômeno da prescrição.
Demonstrou-se que o Poder Judiciário brasileiro tem tentado comba-
ter os excessos e falhas do Estado, a exemplo dos julgamentos do Recurso
Extraordinário 580.252/MS pelo STF e no acórdão nº 2016.0000648289
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, especificamente sobre o
dever do Estado de pagar indenizações aos familiares dos internos que
sofreram violações a direitos humanos fundamentais.
Ademais, diante da massiva e contínua violação aos direitos humanos
fundamentais da população carcerária, conjuntamente com uma inércia/
omissão estatal, se fez imprescindível o reconhecimento pela suprema
corte brasileira de um “Estado de Coisas Inconstitucional” no sistema pe-

64 Orientações para as Secretarias Estaduais responsáveis pela Administração Penitenciária


de todas as Unidades Federativas e o Sistema Penitenciário Federal a respeito das medidas
necessárias para controlar a proliferação da Covid-19 (DEPEN, 2020).

263
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

nitenciário, conforme julgamento da ADPF nº 347. Depreendeu-se que,


frente às falhas na tutela aos direitos dos encarcerados, é simbólico o reco-
nhecimento desse “Estado de Coisas Inconstitucional”, para convocar os
poderes Executivo e Legislativo para colaborarem com o Judiciário através
da formulação e implantação de políticas públicas mais efetivas na prote-
ção aos direitos dos presos.
O ECI revela uma preocupação ainda mais urgente diante do cená-
rio instaurado pela Pandemia do Novo Coronavírus (COVID-19), a qual
tem provocado um sério agravamento na situação dos encarcerados, evi-
denciando que o Massacre do Carandiru é emblemático pela ação ilegal do
Estado, mas a contaminação em massa de presidiários pode ocasionar um
massacre ainda mais letal pela omissão estatal. O Brasil, que já figura como
réu na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em um supercaso en-
volvendo quatro presídios nacionais, poderá ser levado a julgamento no
Tribunal Internacional pela omissão na proteção de seus detentos frente
a pandemia de COVID-19. Devemos aprender com o Massacre do Ca-
randiru, para evitar um novo e ainda mais letal Massacre da COVID-19.

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tion, 2020.

267
COVID-19 E MISTANÁSIA
Jaime Leônidas Miranda Alves65

Introdução

A pesquisa tem por objetivo investigar se é possível apontar a exis-


tência de mistanásia no Estado brasileiro – e, talvez, em outros países - no
contexto da pandemia do covid-19.
Em 2020, a pandemia do novo coronavírus modificou sensivelmente
a forma de vida de milhares de pessoas em todo o mundo. Conforme
manifestação da Organização Mundial de Saúde (OMS), trouxe o coro-
navírus um estado de calamidade sanitária mundial.
Nesse cenário, necessário analisar esse contexto a partir da perspec-
tiva do direito fundamental à saúde, especialmente do ponto de vista das
obrigações do Poder Público na sua garantia mínima, porquanto uma má
gestão da coisa pública pode revelar um estado de mistanásia, o que justi-
fica a realização da pesquisa.
A pesquisa se estrutura da seguinte forma: num primeiro momento é
apresentado o contexto fático do covid-19 no Brasil (contextualização fá-
tica); posteriormente, apresentam-se ilações acerca do direito fundamen-
tal à saúde (contextualização jurídica) e, por fim, a antítese da pesquisa,
apontando a mistanásia como hipótese a ser confirmada / refutada.

65 Defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-Defensor Público do Estado do Amapá. Pro-


fessor em cursos de graduação (Direito Constitucional) e pós-graduação (Execução Penal).
Professor do Curso Ouse Saber. Mestrando em Ciência jurídica pela Universidade do Vale do
Itajaí. Especialista em Direito Público pela PUC-Minas e Direito Constitucional pela Universi-
dade Cândido Mendes. Parecerista da Revista Culturas Jurídicas / UFF.

268
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Para a realização da pesquisa foi utilizado o método indutivo na fase


de investigação, somado às técnicas do referente, da categoria, dos concei-
tos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento, tudo confor-
me lição de Pasold66.

1 Contextualização fática: a pandemia do Covid-19

Em março deste ano, houve, oficialmente, o início da pandemia do


COVID-19 (novo corononavírus no Brasil). A contaminação pelo CO-
VID-19 é tamanha e tão grave que levou a Organização Mundial de Saú-
de (OMS) a decretar cenário de calamidade global. Demais disso, a OMS
registrou, em 7 de julho de 2020, um total de 6.004,685 (seis milhões
e quatro mil e seiscentos e oitenta e cinco) casos de COVID-19 apenas
no continente americano, com 268.828 (duzentos e sessenta e oito mil e
oitocentos e vinte e oito) mortes, conforme seu “Cumulative confirmed and
probable COVID-19 cases reported by countries and territories in the Americas”67.
Esse cenário, sem precedentes na história recente, forçou uma série
de medidas, como a quarentena e o gradual isolamento social, fazendo
com que houvesse sensíveis transformações no cotidiano das pessoas.
A impossibilidade de aglomeração afeta, como consectário, os lucros
das empresas, diante das proibições de abertura do comércio não essencial
ou com a diminuição no número de consumidores. Trata-se de uma res-
posta à lógica da procura e da oferta.
Nesse cenário, os realmente prejudicados são as pessoas e grupos eco-
nomicamente vulnerabilizados, que, em consequência das perdas econô-
micas das empresas, como regra, perdem também seus empregos ou tem o
contrato de trabalho suspenso – com a suspensão da remuneração - , con-
forme medida regulamentada pelo Poder Executivo federal com a edição
da Medida Provisória nº. 936, convertida na Lei nº 14.020, de 6 de julho
de 2020, que trata, dentre outras questões, das medidas complementares
para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo
Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de

66 PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática. Florianópolis:


Conceito Editorial, 2011.
67 PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION – PAHO. Disponível em: https://ais.paho.org/
phip/viz/COVID19Table.asp. Acesso em 08 de outubro de 2020.

269
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de


que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Isso sem mencionar o grande número de pessoas que encontra sus-
tento em trabalhos informais ou como trabalhadores autônomos (como
trabalho doméstico, trabalho de feirantes, mototaxistas etc...) e que de-
pendem, para auferir renda, do contato com os possíveis clientes.
Desta forma, pode-se cogitar cenários em que toda a renda de deter-
minado núcleo familiar restou comprometida em decorrência dos efeitos
da pandemia da COVID-19. A calamidade deixa de ser, então, estrita-
mente sanitária e atinge aspectos econômicos.
Segundo dados disponibilizados pelo Google68, no mundo mais de um
milhão de pessoas faleceram em decorrência do covid-19 (número exato
1.056.493 óbitos) em um universo de 36.200.813 casos e 25.257.402 fo-
ram recuperados. No início de outubro, registrou-se o número de mais de
dois milhões de pessoas infectadas.
No Brasil, o cenário não é mais animador: foram mais de cinco mi-
lhões de casos contabilizados de covid-19, sendo que desses, 148.304 vie-
ram a óbito. A média atual é de mais de 700 novos casos por dia (o que é
visto com otimismo, haja vista que esses números ultrapassam a faixa dos
mil no mês de agosto).
Isso sem falar nas cifras negras69, emprestando aqui um conceito
da criminologia crítica para categorizar aqueles casos em que não entram
nos números oficiais, especialmente em se tratando de pessoas economi-
camente vulnerabilizadas, que muitas vezes morrem de covid-19 antes
mesmo do diagnóstico.

68 ALERTA DE COVID-19. Total de mortos. Disponível em: <https://www.google.com/sear-


ch?q=total+mortos+covid-19&oq=total+mortos+covid-19&aqs=chrome..69i57j0l3.3632j-
0j1&sourceid=chrome&ie=UTF-8>. Acesso em: 9 out. 2020.
69 ...a cifra negra representa a diferença entre aparência (conhecimento oficial) e a reali-
dade (volume total) da criminalidade convencional, constituída por fatos criminosos não
identificados, não denunciados ou não investigados (por desinteresse da polícia, nos crimes
sem vítima, ou por interesse da polícia, sobre pressão do poder econômico e político), além
de limitações técnicas e materiais dos órgãos de controle social (SANTOS, Juarez Cirino. A
Criminologia radical. Curitiba: IPCP: Lumen Juris, 2006, p. 13).

270
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Por outro lado, a vacina, que poderia contribuir na luta contra a dis-
seminação do covid-19 encontra-se em fase de testes, sendo improvável
que seja disponibilizada ainda esse ano, conforme informações da Carta
Capital70.
Nesses contornos é que se delineia o contexto fático da pesquisa, que
será confrontado, mais à frente, com a perspectiva jurídica do direito fun-
damental à saúde.

2 Contextualização jurídica: direito fundamental social


à saúde

O direito fundamental à saúde, conforme pacífica doutrina, é direito


social. Isso significa que, para além de uma abstenção do Estado, exige,
para a sua concretização à luz do caso concreto, uma atuação positiva do
poder público.
A noção de direitos sociais surgiu com a crise do Estado Liberal, que
gerou um cenário de extrema desigualdade social e espalhou a pobreza.
Percebeu-se que a concepção de igualdade estritamente formal, nesse ce-
nário, nada mais fazia senão aumentar as desigualdades. A Constituição
do México de 1917 é considerada a pioneira por trazer um rol de direitos
sociais, sendo seguida pela Constituição de Weimar, de 1919. Ambas de-
ram o pontapé inicial no chamado constitucionalismo social71.
O direito à saúde é lido, assim, sob a cláusula do untermassverbot, ou
seja, enquanto norma-regra que impõe um dever de atuação ao Poder
Público, visando impedir uma pos­tura do Estado aquém do necessário.
Com efeito, dispõe o art. 6º da Constituição Federal serem direitos
sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o trans-
porte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados.

70 VACINA DA COVID-19 ATÉ O FIM DO ANO É CENÁRIO IMPROVÁVEL, DIZEM ESPECIALIS-


TAS. https://www.cartacapital.com.br/saude/vacina-da-covid-19-ate-o-fim-do-ano-e-cena-
rio-improvavel-dizem-especialistas/. Acesso em: 09 out. 2020.
71 SARMENTO, Daniel. Constitucionalismo: trajetória histórica e dilemas contemporâneos.
In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang. Jurisdição constitucional, democracia e
direitos fundamentais. Estudos em homenagem ao Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Salva-
dor: JusPodivm, 2012, p. 87-124.

271
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

No plano convencional, o direito fundamental social à saúde en-


contra abrigo em importantes documentos, a exemplo do Pacto Interna-
cional de Direitos Sociais e Econômicos (sistema onusiano) e da Conven-
ção Americana de Direitos Humanos, de San José da Costa Rica (sistema
interamericano).
Os direitos sociais se caracterizam por sua natureza prestacional (status
positivo de Jellinek72), ou seja, reclamam uma atuação positiva do Poder
Público para que sejam implementados. Sua previsão nas Constituições
vem com o objetivo de assegurar a igualdade material, reduzindo-se as
desigualdades fáticas e econômicas existentes.
São debates comuns aos direitos sociais o fator custo, que os diferencia
das liberdades negativas (direitos fundamentais de primeira dimensão), a
reserva do possível e o mínimo existencial. São classificados pela doutrina
como direitos fundamentais de segunda dimensão e encontram-se previs-
tos, essencial, mas não exclusivamente, nos arts. 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 11, além
do art. 193 e seguintes (Título VIII − Da Ordem Social) da Constituição
Federal.
Deve-se destacar, ademais, que, em se tratando de direitos sociais,
há a compreensão, encampada não só pela doutrina, mas também pelo
Supremo Tribunal Federal, no sentido de que, tendo em vista que há uma
íntima relação com a dignidade da pessoa humana e a própria manuten-
ção da vida, está-se diante de direitos que compõem o chamado mínimo
existencial, ou seja, argumentos meramente econômicos não servem para
fundamentar uma não concretização desses direitos (teoria da reserva do
possível).
Isso porque hoje o cumprimento aos direitos sociais é compreendi-
do enquanto determinação constitucional, não mais se cogitando a com-
preensão de direitos sociais enquanto normas programáticas.
Sobre esse posicionamento (direitos sociais enquanto normas progra-
máticas), comumente atribuído a Canotilho73, ao fazer referência à Cons-
tituição de Portugal de 1976, trata-se de compreensão segunda a qual os

72 ALVES, Jaime Leônidas Miranda. Direito constitucional organizado em quadros. Rio de


Janeiro: Lúmen Júris, 2020.
73 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:
contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coim-
bra, 1994.

272
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

direitos fundamentais perdem eficácia jurídica, passando a ser compreen-


didos apenas como programas a serem, paulatinamente, perseguidos pelo
Poder Público.
O constituinte opta, aqui, pela fi­xação de diretrizes indicativas dos
fins e objetivos a serem buscados pelo poder público. São esquemas gené-
ricos e verdadeiros programas de ação. Envolvem conteúdo social e eco-
nômico e têm por finalidade a interferência do Estado na ordem econô-
mico-social, agindo ativamente como instrumento de desenvolvi­mento e
garantidor da igualdade material.
Não há, contudo, exigibilidade (ou judiciabilidade), tendo em vistas
que os olhos das normas programáticas são voltas ao futuro.
Ocorre que o próprio Canotilho74 revisou o entendimento, passando
a defender que não há que se falar em normas programá­ticas, visto que
estas classicamente foram pensadas como “declarações”, “apelos ao legis-
lador” ou “exortações morais”, o que contraria a tese da for­ça normativa
da Constituição.
Sendo espécie de norma constitucional, nessa conjectura, os direitos
sociais não podem ser vistos como mero apelo, mas sim como possuidoras
de força vinculan­te, podendo seu descumprimento ser reclamado judi-
cialmente75.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça:

A concessão dos medicamentos que não estão incorporados em


atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes
requisitos: (I) comprovação, por meio de laudo médico fundamen-
tado e circunstanciado, da imprescindibilidade ou necessidade do
medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da mo-
léstia, dos remédios fornecidos pelo SUS; (II) comprovada incapa-
cidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;

74 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:


contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coim-
bra, 1994.
75 A judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema de controle de
constitucionalidade abrangente adotado no Brasil, o que permite que discussões de largo
alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Vale dizer: a judiciali-
zação não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte.

273
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

e (III) existência de registro na ANVISA do medicamento. REsp


1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Seção,
por unanimidade, julgado em 25/04/2018, DJe 04/05/2018.

Não é diferente o entendimento do Supremo Tribunal Federal, para


quem “A saúde é direito de todos e dever do Estado (responsabilidade
solidária dos entes federativos quanto ao fornecimento de medicamento e
tratamento” (RE 581.488, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min.
Dias Toffoli, julgado em 3/12/2015).
E tudo o que foi exposto em relação ao direito à saúde dialoga com o
conceito de liberdade em dimensão positiva. Para a doutrina76, a liberdade
se divide em uma dupla acepção: liberdade negativa e liberdade positiva.
A primeira corresponde a uma ausência de interferência intencional na
atividade de outrem, típica da constitucionalismo liberal.
Ocorre que o constitucionalismo social também traz consigo uma
noção de liberdade: a liberdade positiva, que além da ausência de inter-
ferência, reclama uma noção de autorrealização, ou seja, deve o Estado
proporcionar ao indivíduo que este viva em um ambiente com recursos
necessários para que posa cumprir suas potencialidades.
No âmbito do direito à saúde, significa que o indivíduo recebe efetiva
proteção do Estado a esse direito que é instrumento de todos os demais,
tanto na esfera preventiva quanto no combate a doenças.

3 Da crise sanitária para a crise humanitária: amistanásia


no contexto da pandemia-19

Exprime-se no plural mas é singular. Ao contrário de deus, os


mercados é omnipresente neste mundo e não no mundo do além,
e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os poderosos e uma
maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos humanos
e a totalidade da vida não humana)77.

76 ALVES, Jaime Leônidas Miranda. Direito constitucional organizado em quadros. Rio de


Janeiro: Lúmen Júris, 2020.
77 SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.

2 74
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

O objetivo do artigo é analisar se existe, no contexto do covid-19, um


cenário de mistanásia. Para tanto, foram apresentadas as contextualizações
fática (pandemia do novo coronavírus) e jurídica (o direito fundamental
à saúde como liberdade positiva). Cumpre agora analisar tudo o que foi
exposto tendo como parâmetro interpretativo o conceito de mistanásia.
Mistanásia é um termo utilizado para designar a morte de milhares
de pessoas “sem nenhuma assistência, deixadas à própria sorte, em lixões,
embaixo de viadutos, pontes, ruas e, principalmente, nos hospitais com
corredores lotados, com pacientes moribundos e abandonados pelo Esta-
do e por todos”.78
A palavra mistanásia vem do grego mis (infeliz) e thanatos (morte),
significando, assim, ,morte infeliz. O termo, segundo apontam Araújo
Filho e Vargas “é utilizado para se referir à morte de pessoas que, excluí-
das socialmente, acabam morrendo sem qualquer ou apenas uma precária
assistência de saúde”79. Ou seja, refere-se à situação em que a morte po-
deria ser evitada, mas não é em razão da ausência de condições financeiras
das pessoas e, para além disso, da falha na prestação do serviço público de
saúde.
O fenômeno da mistanásia pode ser observada, para Namba, no “caso
de idosos internados em hospitais ou hospícios onde não se oferecerem
alimentação e acompanhamentos adequados, provocando, assim, uma
morte precoce, miserável e sem dignidade”.
Retornando a Araújo Filho e Vargas, a mistanásia é a morte precoce,
miserável e evitável, ocorrida como consequência da violação sistêmica do
direito à saúde.
Partindo desse conceito operacional passa-se à análise de eventual
mistanásia no contexto do coronavírus.
Primeiro, se resgatam os números: em um universo de 36.200.813
infectados, 1.056.493 vieram a óbito (pouco menos de 3%). No Brasil,

78 MENDONÇA, Márcia Helena; SILVA, Marco Antônio Monteiro da. Vida, dignidade e mor-
te: cidadania e mistanásia. In: Revista Ius Gentium, v. 9, n. 5, 2014.
79 ARAÚJO FILHO, Gilson Dias; VARGAS, Matheus. Mistanasia: a morte precoce, miserá-
vel e evitável como consequência da violação do direito à saúde no Brasil. Disponível em:
<https://ambitojuridico.com.br/cadernos/biodireito/mistanasia-a-morte-precoce-misera-
vel-e-evitavel-como-consequencia-da-violacao-do-direito-a-saude-no-brasil/>. Acesso em:
08 ago 2020.

275
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

de 5.002.357 casos, um total de 148.304 de falecimentos (algo cerca de


2,9%).
A fim de verificar se há, de fato mistanásia, necessário tentar dimen-
sionar, dentro do porcentual de óbitos, quantos desses foram realmente
inevitáveis (gravidade da doença, complicações biológicas, ausência de va-
cina, letalidade do vírus etc).
O primeiro indício de mistanásia ocorreu em maio na Itália, em que
idosos eram literalmente deixados para morrer, ante a ausência de respi-
radores e leitos de terapia intensiva. Nesse período, a Itália contava com
uma nova morte a cada três minutos e um total de 5,2 mil leitos de terapia
intensiva, o que se mostrou extremamente insuficiente para a demanda
do coronavírus.
Nesse cenário, houve a escolha entre quais vidas deveriam ser salvas
e quais, a despeito de protegidas por diversos documentos convencionais,
constitucionais e legais, teriam o direito negado, conforme revelado por
documento emitido pela Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Rea-
nimação e Terapia Intensiva (SIAARTI) que, entre suas recomendações
éticas, determinou que “"[...] cada médico pode ser forçado a tomar deci-
sões em pouco tempo do ponto de vista ético e clínico: quais pacientes são
submetidos a tratamentos intensivos quando os recursos não são suficien-
tes para todos os pacientes que chegam"8081.
Na Espanha a situação não foi diferente: em junho, idosos abando-
nados foram encontrados mortos em asilos82. Segundo dados divulgados
pela Secretaria de Políticas Públicas Sociais de Madri, mais de 6.000 mor-

80 'EM COLAPSO': A DRAMÁTICA SITUAÇÃO DOS HOSPITAIS DA ITÁLIA NA CRISE DO CO-


RONAVÍRUS. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51968491>.
Acesso em: 08 out 2020.
81 Se uma pessoa em estado grave é muito idosa, a gente deixa morrer. É preciso escolher,
e não posso pegar vaga na UTI para alguém de 90 anos, com perspectiva de um ou dois
anos de vida, e ignorar alguém de 60 anos, que tem perspectiva de 25. Todos os dias tenho
visto isso”. CORONAVÍRUS: 'Idosos deixamos morrer', diz enfermeiro italiano. Disponível
em: <https://www.metropoles.com/brasil/saude-br/coronavirus-idosos-deixamos-morrer-
-diz-enfermeiro-italiano>. Acesso em: 08 out 2020.
82 CORONAVÍRUS: IDOSOS ABANDONADOS SÃO ENCONTRADOS MORTOS EM ASILOS NA
ESPANHA. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/06/10/
governo-de-madri-e-acusado-de-impedir-hospitalizacao-de-idosos-com-covid-19.htm?cm-
pid=copiaecola>. Acesso em: 09 out. 2020.

276
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

tos morreram com coronavírus em asilos na região de Madri. 88% desse


número ocorreu até 17 de abril, período em que os hospital recusaram a
internar idosos pertencentes a asilos83.
Segundo dados vazados em junho desse ano, houve um protocolo
determinado pelo Governo regional de Madri, no qual se impedia a trans-
ferência de idosos suspeitos de terem o coronavírus para os hospitais no
momento mais crítico da pandemia84
Nos Estados Unidos, segundo levantamento realizado pelo New
York Times e divulgado pelo O Globo85, um terço das mortes por co-
vid-19 aconteceu em asilos, o que parece espelhar as realidades da Itália e
Espanha.
No Brasil, a situação não é diferente, visto que o sistema público de
saúde chegou próximo ao colapso em ao menos cinco estados: Amazonas,
São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Pará86.
O fato desses estados chegarem ao colapso (ou perigosamente pró-
ximo) significa que, em determinado momento, faltou equipamentos
(leitos, respiradores etc.) ou profissionais para o tratamento dos pacientes
com covid-19 ou outra enfermidade.
Em caso de tratamento de urgência ou emergência, a falha na presta-
ção do serviço público de saúde significa, ao fim e ao cabo, o óbito e, nesse
cenário, não há dúvidas que se trata de mistanásia. É nesse contexto que a
crise sanitária se torna crise humanitária.

83 CORONAVÍRUS: IDOSOS ABANDONADOS SÃO ENCONTRADOS MORTOS EM ASILOS NA


ESPANHA. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/06/10/
governo-de-madri-e-acusado-de-impedir-hospitalizacao-de-idosos-com-covid-19.htm?cm-
pid=copiaecola>. Acesso em: 09 out. 2020.
84 GOVERNO DE MADRI É ACUSADO DE IMPEDIR HOSPITALIZAÇÃO DE IDOSOS COM CO-
VID-19. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/06/10/go-
verno-de-madri-e-acusado-de-impedir-hospitalizacao-de-idosos-com-covid-19.htm?cmpi-
d=copiaecola>. Acesso em 09 out. 2020.
85 UM TERÇO DAS MORTES POR COVID-19 NOS EUA ACONTECEU EM ASILOS. Disponível
em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/um-terco-das-mortes-por-covid-
-19-nos-eua-aconteceu-em-asilos-24424719>. Acesso em 9 out. 2020.
86 APÓS BRASIL BATER RECORDES, CINCO ESTADOS SE APROXIMAM DO COLAPSO NA
SAÚDE... Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/esta-
do/2020/05/25/apos-brasil-bater-recordes-cinco-estados-se-aproximam-do-colapso-na-
-saude.htm>. Acesso em: 09 out. 2020

277
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Isso porque, conforme ensina Boaventura de Sousa Santos, o coro-


navírus não atinge todos de forma igual, mas, noutro giro, estende seus
malefícios (não só biológicos, mas também econômicos, sociais e, com
isso, de modo geral, sistêmico) com mais intensidade junto aos grupos
vulnerabilizados87.
Sofrem mais com o coronavírus, justamente, aqueles que tem menos
condições de arcar com cuidados e tratamento de saúde, tendo como úni-
ca opção a prestação do serviço público que, conforme evidenciado, não
só no Brasil, mas em diversos países, foi falho88.
Sobre o assunto, Santos:

Na presente crise humanitária, os governos de extrema-direita ou


de direita neoliberal falharam mais do que os outros na lutam con-
tra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comu-
nidade científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia,
utilizaram a crise humanitária para chicana política. Sob o pretexto
de salvar a economia, correram riscos irresponsáveis pelos quais,
esperamos, serão responsabilizados89.

Todas essas circunstâncias aliadas permitem a compreensão de que o


número de mortos com o covid-19 poderia ter sido reduzido caso hou-
vesse a prestação de serviço público de saúde de maneira efetiva para todas
e todos. A falha no comando constitucional (art. 1º, III, art. 6º e art. 196
da Constituição Federal), além dos diversos regramentos convencionais, é
suficiente para caracterizar o quadro de mistanásia, tanto no Brasil, como
em outros países, como Espanha e Itália, por exemplo.

Conclusão

O objetivo investigar se é possível apontar a existência de mistanásia


no Estado brasileiro no contexto da pandemia do covid-19

87 SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.


88 SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
89 SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020,
p. 26.

278
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Para tanto, utilizou-se do método indutivo na fase de investigação,


somado às técnicas do referente, da categoria, dos conceitos operacionais,
da pesquisa bibliográfica e do fichamento.
Ao final, foi possível chegar às seguintes considerações:
I. Não há que se cogitar no direito fundamental à sociedade como
mera norma programática (“apelos ao legislador”); mais que isso, é norma
constitucional possuidora de eficácia normativa, devendo ser respeitada,
especialmente porquanto parte indissociável do mínimo existencial.
II. A pandemia do covid-19, em pouco tempo, criou um estado de
calamidade sanitária mundial que, ante a ausência da prestação de serviço
público de saúde efetivo se tornou um estado de calamidade humanitário.
III. Em países como Itália, Espanha e Estados Unidos (este último em
menor proporção) verificou-se que, durante o pico da pandemia, os mé-
dicos tiveram que optar entre os infectados quais teriam tratamento, haja
vista que a ausência de recursos instrumentais e humanos suficientes para
atender à demanda que a cada dia surgia. No Brasil, diversos estados foram
caracterizados como à beira do colapso do sistema de saúde, haja vista a
ausência absoluta de profissionais médicos e, especialmente, de leitos de
UTI intensiva e respiradores.
IV. A falha na prestação de serviço público de saúde acabou, direta ou
indiretamente, contribuindo com o número de mortes. Ainda que não
seja possível confirmar o exposto em termos quantitativos, resta evidente
que faltaram tanto profissionais quanto equipamentos e estrutura para o
enfrentamento do covid-19, o que leva a um inquestionável cenário de
mistanásia, ou seja, morte por omissão do Estado.

Referências

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em quadros. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2020.

APÓS BRASIL BATER RECORDES, CINCO ESTADOS SE


APROXIMAM DO COLAPSO NA SAÚDE... Disponí-
279
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

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281
DIREITOS HUMANOS NA PANDEMIA:
DESAFIOS FRENTE À VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA
Sérgio Augusto Pires dos Reis Madeira90
Brenner Teodoro de Sousa91
Washington Luiz Sudré Silva Junior92

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa analisar a efetividade dos mecanismos de


combate à violência doméstica, na vigência das convenções, sobre o tema,
ratificadas pelo Brasil, no contexto da Pandemia do SARS-CoV-2, o
chamado “Novo Coronavírus”, através de pesquisa bibliográfica e análise
qualitativa.
Tem-se que o tema tem relevância particular e necessidade de pri-
meira ordem a fim de polir o entendimento do supramencionado fenô-
meno. Consideramos que, qualquer tipo de violência, mas com especial
destaque para a violência contra a mulher, enseja em atentado à dignidade
da pessoa humana.
Deste modo, abordamos tanto a análise legislativa brasileira quanto
às manifestações de discriminações contra a mulher. Ademais, tratamos
das convenções internacionais sobre a temática, destacando, portanto,

90 Pós-graduando em Direito do Trabalho e Previdência pela PUC Minas. Graduado em


Direito pela PUC Minas.
91 Graduando em Direito pela PUC Minas.
92 Graduando em Direito pela PUC Minas.

282
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

em situações de violência contra a mulher a ocorrência de violações con-


tra os Direitos Humanos e, por fim, sobre a Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340/06). Por fim, abordamos os desafios e os novos horizontes, e os
possíveis meios de enfrentamento desse problema durante a pandemia, e
lançar olhar pro futuro ao problematizar a presente situação e os métodos
enfrentamento dessa adversidade.
Cabe destacar, que a Lei Maria da Penha tem reconhecimento in-
ternacional, dado os avanços ao combate à violência doméstica que a ela
trouxe ao país. No entanto, por mais perspicaz que seja a Lei, a tradição
calcada no âmago da sociedade e os instrumentos para coibir a conduta
criminosa não são dotados da efetividade desejada. 
Por fim, analisando dados de antes e durante a pandemia, após o exa-
me geral do tema pesquisado, apontando, em síntese, as considerações e
pontos relevantes acerca do estudo, destacando críticas e possíveis medidas
no combate da violência contra a mulher, especificamente, no âmbito do-
méstico, na intenção de trazer mais uma contribuição para a comunidade
científica.

2. BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL/


LEGISLATIVA NO BRASIL REFERENTE ÀS
DISCRIMINAÇÕES CONTRA AS MULHERES.

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), de 05


de outubro de 1988, garante que todos são iguais perante a lei (art. 5º,
CF/88), na “defesa efetiva da isonomia entre homens e mulheres” (OLI-
VEIRA, 2018), e de forma ratificadora, veda possíveis distinções de sexo,
conforme o inciso I do mesmo artigo. A busca pela não discriminação já
se encontra também positivada no Título I – Dos princípios Fundamen-
tais da Carta Magna, art. 3º, como se vê:
 
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federa-
tiva do Brasil:

(...)

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,


raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
(BRASIL, 1988).

283
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Considera-se assim um marco no âmbito jurídico e social, uma vez


que corrobora com uma concepção - a igualdade entre homens e mulhe-
res - que até então os legisladores, frutos de um sistema que colocava o
homem em posição superior a mulher não adotava.
No entanto, em inúmeros momentos, ao observar a evolução legisla-
tiva, é possível notar a hierarquização positivada entre homem e mulher,
fenômeno que tem “justificado” ações discriminatórias e violências con-
tra mulheres (VOGEL, 2018). Desse modo, em inúmeros momentos da
história legislativa é possível perceber a discriminação contra as mulheres
ao longo do tempo.  
Inicialmente, a Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de
março de 1824, apesar de prever a igualdade da lei para todos, tanto em
suas recompensas, quanto nos castigos (art. 179, XIII), “sequer se cogita-
va a participação da mulher na sociedade” (MARINELA, 2015) e como
afirma Sá (2017), em tal legislação, permaneceu o consenso de que cabia
à mulher os cuidados com a prole, as atividades do lar, ou seja, restringin-
do-a ao contexto privado.
Segundo a Constituição de 1824, a mulher era evocada apenas no
que tange a sucessão imperial (art. 116 e seguintes). Ainda conforme a
Constituição, eram considerados cidadãos somente homens livres, nas-
cidos no  Brasil ou no estrangeiro, filhos de Brasileiros, com residência
ou domicílio no Brasil, bem como os naturalizados na forma da lei, com
exclusão das mulheres, das crianças e dos escravos (CAMPANHOLE;
CAMPANHOLE, 1986).
Outro momento importante de se destacar é sobre a conquista do di-
reito do voto feminino. Com o advento da Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891, período de transição
entre a monarquia e o império, o Brasil torna-se República Federativa
Presidencialista, é estabelecido o chamado sufrágio universal masculino,
ou seja, todos os homens alfabetizados maiores de 21 anos, poderiam vo-
tar. No entanto, conforme Santos (2009), esse direito não foi estendido às
mulheres, sendo essas excluídas dos direitos políticos:

O voto continuaria “a descoberto” ou não-secreto, porém os can-


didatos a voto seriam escolhidos por homens maiores de 21 anos, à

284
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

exceção de analfabetos, mendigos, soldados, mulheres e religiosos


sujeitos ao voto de obediência (SANTOS, 2009).

Noutro sentido, a promulgada Constituição de 1934 foi a primeira a


contar com a participação feminina, garantia reconhecida em 24 de Feve-
reiro de 1932 por intermédio do Decreto n° 21.076, assinado pelo então
presidente Getúlio Vargas, que estabeleceu a não distinção entre homens
e mulheres, na seara eleitoral, como encontra-se previsto no art. 2º do
referido decreto: “é eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção
de sexo, alistado na forma deste Código” (BRASIL, 1932). Tal fato foi
confirmado pela Constituição de 1934, com alteração em relação à idade
mínima (BRASIL, 1934).
Além disso, o Princípio da Igualdade, pela primeira vez, foi trazida
no escopo constitucional do país. Consolidando a busca de não haver dis-
criminações por motivo, de nascimento, sexo, raça, profissões ou do país,
classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas, trecho que foi
omisso nas Constituições de 1937 e 1946, retornando ao texto maior em
1969. Destaca-se, no entanto, a distância entre a positivação das garantias
e a realidade de fato.
Desse modo, diante de uma sociedade desigual, a atitude preconcei-
tuosa mais praticada no Brasil, segundo pesquisa realizada pelo Ibope Inte-
ligente, em que o homem detêm posições de poder e, consequentemente,
gera uma estrutura marcada “pela imposição ou pretensão de subordina-
ção e controle do gênero masculino sobre o feminino” (BALBINOTTI,
2018), alcançando, assim, diversas formas de violência contra a mulher93.
Além dos pontos abordados nas Constituições, tem-se que o Código
Civil de 1916, vigente até o ano de 2003, estipulava que o chefe da socie-
dade conjugal era o marido. Além disso, estabelecia que a mulher casada
era relativamente incapaz frente aos atos civis, necessitando da anuência
de um terceiro (marido ou pai), inclusive no exercício de um emprego.
Como aponta Maria Berenice Dias (2006), “retratava a sociedade da épo-
ca, marcadamente conservadora e patriarcal”.
Já o Código Penal de 1940, em sua redação original previa que o estu-
pro era tipificado contra “mulher honesta”, sendo que aquelas que não se

93 (...) qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimen-
to físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (art. 5º, Lei nº 11.340/2006).

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

enquadravam nesse conceito estavam fora dos radares da Lei Penal. Cabe
destacar, ainda, que tal conceito somente veio a ser suprimido em 2009,
pela Lei nº 12. 015.
Nesse sentido, não se pode ignorar que o movimento feminista tam-
bém teve grande participação e relevância nas alterações legislativas, visto
todas as reivindicações em prol da garantia de direitos.

As mulheres brasileiras, apesar da exclusão constitucional mencio-


nada acima, empreenderam-se em lutas em prol de seus direitos
civis nos anos 50. Podemos destacar a luta em prol da modificação
dos dispositivos do Código Civil de 1916, porque continha inúme-
ros dispositivos legais que relegavam a condição de inferioridade.
O resultado dessa demanda foi o Estatuto da Mulher Casada, em
1962, no qual a mulher casada passou a ter plena capacidade aos 21
anos, sendo considerada colaboradora do marido nos encargos da
família. A aprovação da lei do divórcio em 1977 também foi resul-
tado do Movimento Feminista (SANTOS, 2009).

Já no tocante, propriamente dito, sobre a violência de gênero, a Con-


venção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a
Mulher (1979) foi ratificado no Brasil em 1984. Dessa forma, marcando a
primeira iniciativa brasileira no sentido da proteção e garantia da igualda-
de dos direitos da mulher.  
A Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Ci-
dadã, é reconhecida como Constituição exemplar, como defende o ilustre
ex-ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Carlos Ayres Britto,
afirmando que manteve direitos e trouxe inúmeros outros na tentativa de
proteger a isonomia entre homens e mulheres. Veja- se:

Se temos andado mal das pernas é porque temos andado de costas


para esta Constituição. Nós não precisamos morar em outro país.
Precisamos morar em outro Brasil e vamos chegar lá. (...) Não va-
mos mudar essa constituição por outra, vamos vitalizá-la. É uma
bíblia jurídica, de credo democrático, e democracia a gente sabe: é
pegar ou pegar. Fora da democracia, nada presta (BRITTO, 2018).

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Por fim, buscando criar mecanismos para coibir a violência domésti-


ca e familiar contra a mulher, em atenção aos termos do § 8º do art. 226
da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979) e da Convenção In-
teramericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(1994), houve a criação da Lei nº 11.340/06, conhecida como “Lei Maria
da Penha”. Pontos que serão analisados no capítulo a seguir.

3 - A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NAS


CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

3.1. Declaração Internacional de Direitos Humanos

O ato de violência contra a mulher é um fenômeno que ocorre em


todas as sociedades e reflete a violência estrutural de uma sociedade em
que não há equidade de gênero, que decorre de um histórico processo de
desrespeito aos direitos humanos, fundamentais e da marginalização que
o gênero feminino enfrenta. Tal violência, comumente é praticada por
alguém que coabita com a mulher (DATASENADO, 2019).
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) de 1948, foi um marco na luta pelo reconhecimento e respeito
aos direitos humanos em todo o mundo. Reconhecendo a igualdade de
direitos entre mulheres e homens, visto que todos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos. Do mesmo modo, afirma sobre a capacidade para
gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo etc. (ONU, 1948).
Nessa perspectiva, observa Flávia Piovesan: 

A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem


pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao
consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é
afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de
direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Uni-
versal a condição de pessoas é o requisito único e exclusivo para
a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos huma-
nos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condi-
cionava a titularidade de direitos à pertinência a determinada

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

raça (raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento


dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana é
concepção que, posteriormente, viria a ser incorporada por to-
dos os tratados e declarações de direitos humanos, que passaram
a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Huma-
nos (PIOVESAN, 2012).

Contudo, mesmo com a vigência da DUDH, a ofensa à dignidade e


aos direitos da mulher continua sendo contumaz, e evidencia a dificulda-
de de algumas sociedades em reconhecer o sexo feminino em igualdade
ao masculino e em vislumbrar a mulher como titular de direitos, livre,
capaz e de igual dignidade, sendo a norma aplicada sem nenhuma discri-
minação, por exemplo sexo (BARROSO, 2018). 

3.2. Convenções Internacionais

Nesse contexto, existem tratados internacionais incorporados no


ordenamento jurídico brasileiro que combatem a discriminação e vio-
lência contra a mulher, sendo eles: a Convenção sobre Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida pela
sigla inglês – CEDAW –, de 1979, tornou-se o principal instrumento
internacional na luta pela igualdade de gênero e combate à discrimina-
ção, seja ela perpetrada por Estados, indivíduos, empresas ou organiza-
ções. Atualmente, são 189 os Estados parte da Convenção; e não me-
nos importante há a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção
de Belém do Pará, de 1994. Atualmente, são 32 os Estados parte da
Convenção.
As supramencionadas convenções pressupõem que os Estados signa-
tários comprometam-se a implementar em suas constituições ou outras
legislações o Princípio da Igualdade entre homem e mulher, e assegu-
ra outros meios apropriados à realização prática desse princípio, além de
empregar medidas adequadas com as sanções cabíveis que proíbam toda
discriminação contra a mulher (RAMOS, 2017). 

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3.2.1. Recepção dos Direitos Humanos pela CFRF/88

Na seara dos Direitos Humanos, a CRFB/88 é um marco na histó-


ria das constituições brasileiras (FISCHMANN, 2009), pois, introduziu
o mais extenso rol de direitos das mais diversas espécies, abrangendo os
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. O seu art. 5º, §
2º, prevê o Princípio da Não Exaustividade dos Direitos Fundamentais
que, segundo Ramos (2017), entende como abertura da Constituição aos
Direitos Humanos dispondo que os direitos nela previstos não excluem
outros decorrentes do regime adotado, princípios da Constituição e em
tratados celebrados.
Os Direitos Humanos estão intrinsecamente ligados à dignidade,
atributo que todo indivíduo possui e que é inerente à sua condição huma-
na, independentemente de sua nacionalidade, opção política, orientação
sexual, credo, gênero, entre outros.
Nesse sentido, corrobora o entendimento de Flávia Piovesan:

A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio


matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, con-
dicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado
dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitu-
cional que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos,
conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro
(PIOVESAN, 2012).

De forma inédita na história constitucional brasileira, a Assembleia


Nacional Constituinte de 1987 levou em consideração para a elaboração
da CRFB/88 os tratados internacionais celebrados pelo Brasil e foi um
marco da transição do regime autoritário para o regime democrático, ci-
mentado sobre os direitos humanos e garantias fundamentais (CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 2018).
Ocorreu no Brasil na década de 80, o caso de Maria da Penha Maia
Fernandes, um trágico acontecimento que repercutiu no Brasil e exterior,
a ponto de ressoar os enunciados da DUDH, e, consequentemente, a pro-
dução da Lei homônima, marco do avanço legislativo entrando definiti-
vamente para história, como veremos a seguir.

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3.3. O notável caso Maria da Penha

Decorridos 12 (doze) anos da Convenção de Belém do Pará, foi pu-


blicada a Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, tendo
por objetivo criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, atendendo aos ditames estabelecidos nos acordos inter-
nacionais (BRASIL, 2006). 
O caso de Maria da Penha Maia Fernandes ocorreu em 1983 e refle-
tiu mais um acontecimento de violência no contexto familiar, quando a
vítima sofria agressões constantes, que acarretaram em tentativa de homi-
cídio que a deixou paraplégica. Houve depois outro ataque do marido, e
apesar da denúncia criminal ao Ministério Público ter sido proposta em
1984, a morosidade da justiça penal quase gerou a prescrição do ato crimi-
noso. Apenas em 2002, o culpado veio a ser preso.
A Lei de proteção à mulher, em análise, foi resultado dos tratados
incorporados, além da recomendação da Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos diante da repercussão internacional das atrocidades do
caso, sendo o Estado brasileiro responsabilizado pelo descumprimento
das normas contidas na Convenção de Belém do Pará, da Declaração de
Direitos Humanos e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem (OLIVEIRA, 2011).
A Lei Maria da Penha tem reconhecimento internacional, visto os
avanços nos mecanismos de proteção adotadas e está em consonância com
o disposto no § 8º do art. 226 da CRFB/88: “O Estado assegurará a as-
sistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando me-
canismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL,
1988).
Para configurar a incidência da Lei é necessário a implementação de
três pressupostos cumulativos, como ensina Lima (2020): 1) sujeito pas-
sivo mulher; 2) prática de violência física, psicológica, sexual, patrimonial
ou moral: hipóteses previstas nos incisos I a V do art. 7º; 3) violência dolo-
sa praticada no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família, ou em
qualquer relação íntima de afeto. Portanto, não é necessário que as partes
sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados, basta
estar caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou
de afetividade (DIAS, 2007).

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Não obstante ao reconhecimento internacional da Lei Maria da Pe-


nha como uma das melhores leis de enfrentamento à violência doméstica,
segundo a ONU, os desafios à sua efetiva implementação ainda são atuais,
pois, a violência contra a mulher exige uma complexa rede de políticas
públicas de prevenção e repressão (SANTOS, 2015). 
Nessa lógica, novo desafio foi imposto com o advento da pandemia
do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Cabe notar que as medidas adota-
das para o enfrentamento à pandemia perpassam pelo distanciamento so-
cial, segundo especialistas. Ocorre que com o isolamento social, segundo
(ALENCAR, 2020), a convivência constante entre agressor e vítima, in-
tensifica-se, ainda mais, e agrava a pandemia velada da violência doméstica
(ONU, 2018). Como será analisado a seguir.

4 - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: PANDEMIA, DESAFIOS E


NOVOS HORIZONTES

Dados revelam que no Brasil, a cada 2 minutos uma mulher é vítima


de violência doméstica (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020). Em uma aná-
lise simples, o Ministério Público de São Paulo (2020) compara o mês de
março/2019 e março/2020, e, de forma cristalina, evidencia o aumento
nos casos de violência doméstica no Estado de São Paulo logo no primeiro
mês da pandemia, em que houve um crescimento de 51,4% do número
de flagrantes de violência contra a mulher.  São visíveis os índices e as altas
estatísticas que tratam da agressão contra as mulheres no Brasil. Estes nú-
meros denotam de maneira cristalina a pouca efetividade das políticas de
combate à violência contra a mulher.
Atualmente, além das medidas previstas na legislação brasileira contra
os crimes de violência contra a mulher, o Brasil ainda conta com uma sé-
rie de mecanismos de prevenção ao crime e tratamento das vítimas.
Dentre as ferramentas, há o “ligue 180”, canal criado pelo Decreto
nº 7. 393 de 2010 (BRASIL, 2010), tratando-se de central de atendi-
mento que funciona de forma gratuita e 24 horas por dia, que tem como
objetivo receber denúncias de violência. No Brasil, logo no primeiro
mês da pandemia, segundo a Ouvidoria Nacional dos Direitos Huma-
nos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Hu-
manos (MMFDH), houve crescimento de 18% no número de denúncias

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registradas pelos serviços “Disque 100” e “Ligue 180” (GOVERNO


FEDERAL, 2020).
Outra medida paliativa são os Centros de Atendimento Integral e
Multidisciplinares para Mulheres ou Casas de Apoio à mulher vítima de
violência doméstica, que é um modelo de acolhimento exclusivo para que
as mulheres violentadas no âmbito doméstico possam residir em local se-
guro até encontrarem condições para retomar o curso de suas vidas (INS-
TITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019).
A Lei Maria da Penha e os mecanismos de auxílio às vítimas são fun-
damentais para o empoderamento feminino como ferramenta de combate
a uma tradição histórica de violência contra a mulher. Salienta-se aqui,
que os mecanismos de repressão, como os citados anteriormente, surtem
efeitos positivos. Porém, por mais que esses dispositivos tenham auxilia-
do, até o presente momento, eles não têm sido suficientes para combater
a violência contra a mulher (MANSSUR, 2018). Aqui, não se quer colo-
car em “cheque” se devem existir ou não os mecanismos. Evidenciar os
fatos faz parte do processo de demonstração da necessidade de se pensar
em instrumentos mais efetivos para o enfrentamento do problema.
Para começar a progredir neste cenário, é necessário desconstruir
todo um panorama histórico e cultural que ainda assola a contempora-
neidade. É necessário enfrentar a mácula proveniente da desigualdade de
gêneros que ainda prevalece no Brasil (SILVA, 2010).
Convergente à esta ideia, discorre Sérgio Gomes da Silva:

Do nosso ponto de vista, não compreendemos a violência con-


tra as mulheres apenas como um ou vários atos sistematizados de
agressão contra o seu corpo, seja da ordem do abuso sexual, seja do
espancamento, da tortura física ou psicológica. No nosso entender,
a violência que a mulher sofre está no seu dia a dia, incorporada e
enraizada no imaginário social coletivo da nossa sociedade, de ho-
mens, mas também de mulheres, que legitimam a subordinação do
sujeito feminino ao domínio do poder masculino (SILVA, op. cit).

Além da desconstrução de todo esse arcabouço cultural, é necessário


creditar fé na palavra da vítima. Não é plausível que, ao invés de acolher
a mulher agredida, fazer com que ela seja constrangida por ter sua pala-

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vra desacreditada.  Em muitos casos, o crime é praticado longe dos olhos


de terceiros, e sem deixar rastros. Assim, a palavra da vítima é uma das
poucas provas possíveis. Um processo precário de denúncia desestimula
as mulheres a denunciarem e estas acabam suportando a violência por um
bom tempo antes de denunciar (JACINTO, 2009). 
Além disso, as vítimas ainda convivem com medo do parceiro, de
suas eventuais atitudes frente ao caso ou receio em “perder” a família, nes-
te segundo caso, principalmente quando se tem filho com o agressor. Para
grande parte das mulheres, ainda há uma dificuldade em romper com o
projeto de família, por conta de toda a padronização efetivada às mulheres
de serem responsáveis pelo lar e o bom convívio familiar (CHAKIAN,
2020). Acrescentando, outras situações que também afloram a tensão da
mulher é o medo de expor a privacidade de sua família, suportar o ônus de
um processo judicial, e a vulnerabilidade da mulher frente a dependência
(em alguns casos) financeira em relação ao agressor, posto que não é fácil
abandonar o lar (mesmo que de forma provisória e emergencial), que em
diversos casos é sustentado pelo companheiro. 
Assim, é corriqueiro o acontecimento do denominado Ciclo da Vio-
lência. Este, é constituído por três fases que norteiam a tomada de decisão
da vítima, sendo a primeira fase denominada de “fase da tensão”, em que
a mulher começa a ser vítima de desrespeito e humilhações. Em seguida
vem a “fase das agressões”, nela passando a vítima a conviver com agres-
sões físicas. Já a terceira fase é a chamada “lua de mel”. Nela, o agres-
sor pede desculpas e promete mudar. Geralmente, as mulheres tendem a
acreditar nessa mudança temporária, movidas pelo sentimento, conforme
já dito acima, de se pouparem da carga de um processo judicial ou do fin-
dar de um relacionamento (MINISTÉRIO DA MULHER, FAMÍLIA E
DIREITOS HUMANOS, 2020).
Nesta última fase, após as promessas vazias do companheiro, as mu-
lheres geralmente voltam ao mesmo lugar onde denunciou e dizem que
já foi tudo resolvido. Porém, nestes casos, como a denúncia já foi apresen-
tada, não há como voltar atrás, visto que os crimes de violência contra a
mulher configuram ação penal pública incondicionada, conforme deci-
diu o Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4424 (BRASIL, 2012). Em
outros termos, a partir do momento da denúncia, por mais que a vítima

293
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não queira dar andamento ao feito, o Ministério Público é obrigado a


prosseguir.
De acordo com um estudo publicado no The Lancet, os pesquisadores
desenvolvem algumas ideias que certamente contribuirão no auxílio às
mulheres vítimas, conforme se vê:

Quando a violência já ocorreu, o sistema de saúde deve identificar


os sinais nas vítimas; acolhê-las e oferecer cuidados imediatos e
contínuos para problemas de saúde – incluindo saúde mental; fazer
a conexão com outros serviços legais e de suporte, para garantir
assistência jurídica e outras necessidades, como habitação ou no
caso do Brasil, até mesmo o acesso aos programas de transferência
de renda, como o Programa Bolsa Família. Também é essencial
que os sistemas implementem políticas internas de qualificação e
diálogo para os seus trabalhadores, a fim de que eles enfrentem tan-
to barreiras individuais quanto estruturadas socialmente e possam,
de fato, amparar as mulheres (GARCÍA-MORENO, Claudia et
al., 2015).

Ademais, as mulheres precisam realmente ser amparadas pelo Estado.


É necessário que o Estado invista no tratamento das vítimas, para que não
tenham receio do que irá acontecer a curto prazo, fornecendo um siste-
ma que garanta às mulheres seu sustento e principalmente sua dignidade,
seja investindo nas Casas de Abrigo, auxílio à mulher para ingressar no
mercado de trabalho ou criando algum tipo de auxílio que possa prover
financeiramente a vítima.

5 – CONCLUSÃO

A evolução legislativa no Brasil, no que tange à prevenção e combate à


violência contra as mulheres, foi, e continua sendo, um processo de extre-
ma relevância na busca da igualdade de gênero. O principal normativo em
prol das mulheres vítimas da agressão doméstica, a Lei Maria da Penha, foi
fundamental para que as mulheres passassem a ver seus direitos por outra
ótica, principalmente quanto a tomada de decisão nos casos de agressão.
Frente a toda problemática da violência doméstica contra as mulheres,
o real apoio do Estado nesta causa se faz de forma basilar. É necessário

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aumentar os investimentos nos sistemas de denúncia e prevenção, para


que o problema seja eliminado na raiz, poupando eventuais investimentos
futuros em programas de acolhimento.
Além disso, a mulher deve se sentir segura para denunciar o agressor
e se emancipar dos fatores que impedem de prosseguir no curso de sua
vida. Imprescindível destacar ainda a importância de combater a desigual-
dade de gênero, promovendo políticas públicas de incentivo ao respeito e
equidade.
Nesse sentido, a internalização do direito para a mudança social há de
ser respaldada nos ideais de respeito aos direitos humanos e à dignidade da
pessoa humana. Desta feita, a equidade de gênero implica, a eliminação
das diferenças desnecessárias, injustas e evitáveis entre homens e mulheres
em relação às oportunidades de desfrutar de iguais direitos e probabili-
dades, tratando-se de revisitar com cuidado a situação das mulheres que
sofrem com iniquidades no cotidiano e que se faça valer os tratados inter-
nacionais de Direitos Humanos que o Brasil é subscritor.
O isolamento social é uma providência necessária à queda da taxa de
transmissão do COVID-19, reduzindo a contaminação. Porém, o con-
finamento agravou os impactos sociais da pandemia que estimularam a
reprodução da violência doméstica e familiar contra as mulheres, expondo
a fragilidade do Estado em garantir a proteção. Assim, conclui-se que os
órgãos públicos devem trabalhar priorizando a necessidade de implemen-
tar políticas públicas para as mulheres, para que ocorra um rompimento
do ciclo de violência e estabeleça igualdade entre os gêneros.

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300
A DESPROTEÇÃO DO(A)
TRABALHADOR(A) INFORMAL
EM TEMPOS DE PANDEMIA E A
RESPONSABILIDADE ESTATAL
Brenner Teodoro de Sousa94
Sérgio Augusto Pires dos Reis Madeira95
Washington Luiz Sudré Silva Junior96

Sem trabalho eu não sou nada


Não tenho dignidade
Não sinto o meu valor
Não tenho identidade
Mas o que eu tenho
É só um emprego
E um salário miserável
Eu tenho o meu ofício
Que me cansa de verdade
Tem gente que não tem nada
E outros que tem mais do que precisam(...)

(BONFÁ, RUSSO, 1996).

94 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.


95 Pós-graduando em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica de Minas Gerais (PUC Minas). Graduado em Direito pela PUC Minas.
96 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

301
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

1. INTRODUÇÃO

O trabalho tem importância particular na vida da pessoa e, conse-


quentemente, na sociedade. Nesse sentido, o presente artigo tem como
proposta trazer luz e analisar os desafios encarados pelos trabalhadores in-
formais frente ao atual contexto de calamidade pública reconhecida pelo
Decreto Legislativo Nº 6 de 20 de março 2020 (BRASIL, 2020), em de-
corrência da emergência de saúde pública de importância internacional
causada pelo SARS-CoV-2, o chamado “novo coronavírus”.
O objetivo geral é, portanto, evidenciar o tema da vulnerabilidade
social no trabalho, principalmente no que tange à violação ao princípio da
dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho. Ademais, de for-
ma específica, pretende-se perpassar pela temática das possíveis ações por
parte do Estado, no que se refere a diminuição dos impactos gerados pela
precarização do trabalho informal diante da Pandemia da COVID-19.
Os trabalhadores informais, marginalizados no mundo do trabalho,
não possuem proteções sociais e vivem, cada dia mais, a precarização em
suas ocupações laborais. A situação posta, foi ainda mais notada em razão
da pandemia enfrentada pela humanidade e as suas trágicas consequên-
cias, como afirma o sociólogo Ricardo Antunes em entrevista ao site Rá-
dio Brasil de Fato:

Um trabalhador ou trabalhadora na informalidade, se vai pra casa


fazer isolamento, não recebe. Inclusive a maioria sofreu com o de-
semprego imediato. Se vai pra casa, morre de fome. Se vai para a
rua, seu emprego desapareceu. A pandemia do capital mostrou o
flagelo, a virulência, a devastação, que o capitalismo dos nossos dias
pratica em relação à classe trabalhadora (ANTUNES, 2020).

Cabe notar que as medidas adotadas para o enfrentamento da dissemi-


nação do novo coronavírus são fundadas no princípio do distanciamento
social, segundo especialistas. Ocorre que, como Antunes entende, tal si-
tuação de isolamento impacta de forma direta os trabalhadores informais.  
Neste breve estudo será apresentado o contexto em que os trabalha-
dores informais estão inseridos, com foco na precarização das relações de

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trabalho na atual pandemia e na necessidade de amparo estatal aos sujeitos


que vivem na informalidade.

2. DESENVOLVIMENTO

A temática da vulnerabilidade social não é exclusiva dos tempos


atuais. Ela está presente em grandes obras literárias brasileiras, como na
obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, que narra a situação vivencia-
da por uma família nordestina, retirante, castigada pela seca (RAMOS,
1969). No romance “Capitães de Areia”, de Jorge Amado, que retrata a
realidade de crianças e de adolescentes em situação de abandono, nas ruas
de Salvador (AMADO, 1937). Assim como em “O Cortiço”, obra em
que Aluísio Azevedo narra a vida de moradores do Rio de Janeiro que
experimentam explorações e péssimas condições sociais (AZEVEDO,
1997). Nesse sentido, pode-se dizer que nas obras nacionais as diferentes
formas de vulnerabilidade social são frequentemente retratadas. 
O conceito de vulnerabilidade social aqui abordado é o adotado pela
Política Nacional de Assistência Social (PNAS). De acordo com Almeida
et al.:

tal conceito é multidimensional e abrange situações excludentes e


discriminatórias que ocorrem nas relações sociais, além da questão
da falta de renda, tendo a família como público-alvo da política,
valorizando assim a importância do núcleo familiar no enfrenta-
mento das questões sociais (ALMEIDA, 2020).

Utilizando o conceito dado pelas autoras, Pochmann, o vincula ao


trabalho e suas relações, em sua obra “Trabalho sob Fogo Cruzado: ex-
clusão, desemprego e precarização no final do século”, como pode se ver:

O distanciamento atual de uma situação de pleno emprego e as


mutações nas condições e relações de trabalho e no status do assa-
lariado permitem observar com maior clareza uma ruptura na tra-
jetória de identificação social e de integração comunitária. E, com
isso, o surgimento de novas vulnerabilidades sociais no capitalismo
torna-se por si só um elemento fundante da exclusão social que se
generaliza neste final de século (POCHMANN, 1999).

303
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Nesse sentido, percebe-se que as relações de trabalho têm impor-


tância singular na sociedade, assim como na vida do sujeito, con-
forme leitura da obra “O Capital” (MARX, 1985). Dessa forma,
é imprescindível abordar a temática da vulnerabilidade e como esta
interfere nas relações de trabalho. Ainda nesta esteira, cumpre as-
sociar com as mudanças significativas que as relações de trabalho
vêm sofrendo no decorrer dos anos.

Na história da humanidade, o trabalho vem sendo desempenhado de


acordo com as necessidades e os meios disponíveis para sua execução, ten-
do como premissa a subsistência humana (SILVA, 2020). Nas sociedades
primitivas, por exemplo, utilizava-se da caça, pesca e agricultura no ofício
diário para o auto-sustento. Nas sociedades grega e romana, por sua vez,
a força humana de trabalho era proveniente do trabalho de pessoas es-
cravizadas. Posteriormente, o feudalismo, sistema iniciado no Século XI,
valia-se do sistema agrário e do consumo local.
Superados estes períodos, vem o período da Revolução Industrial, que
teve início no século XVIII. Junto com ela, veio também toda a moderni-
zação dos métodos de trabalho trazidos pela máquina a vapor (SANTOS,
2005). Porém, ainda se notava nas relações trabalhistas total ausência de
proteção, em razão das grandes jornadas de trabalho desempenhadas nas
fábricas e as condições precárias impostas aos trabalhadores, ferindo por
completo o princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, de-
mandou ao Estado a criação de legislação protetiva e consequente surgi-
mento do Direito do Trabalho.
Já o Direito do Trabalho no Brasil experimenta, constantes modifica-
ções, como ocorreu recentemente com a Lei nº 13.467 de 2017, conhecida
como Reforma Trabalhista (BRASIL, 2017). Tal Lei, foi a responsável por
desencadear diversas flexibilizações nesse ramo do Direito, afetando assim
as relações trabalhistas e o mercado de trabalho como um todo (ADAS-
CALITEI; MORANO in FILGUEIRAS; LIMA, SOUZA).
No entendimento de Naercio Menezes Filho, coordenador do Cen-
tro de Políticas Públicas do Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER, “a
flexibilização do trabalho é tendência no mundo”, além disso, “o empre-
go formal full-time tende a cair no mundo, por causa da flexibilização do
trabalho” (ROLLI, 2020). Tal flexibilização, aqui tem interpretação com

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base em Uriarte: “a flexibilidade pode ser entendida como eliminação,


diminuição, afrouxamento ou adaptação da proteção trabalhista clássica,
com a finalidade – real ou pretensa – de aumentar o investimento, o em-
prego ou a competitividade da empresa” (URIARTE, 2002).
Na mesma direção, entende Bauman: 

‘Flexibilidade’ é o slogan da contemporaneidade, e quando aplica-


do ao mercado de trabalho pressagia um fim do ‘emprego como o
conhecemos’, anunciando em seu lugar o advento do trabalho por
contratos de curto prazo, ou sem contratos, posições sem cober-
tura previdenciária, mas com cláusulas ‘até nova ordem’ (BAU-
MAN, 2001).

O grande argumento sustentado para a aprovação da Reforma Tra-


balhista, tratava-se da geração de empregos para o mercado de trabalho
brasileiro, contribuindo com a diminuição do desemprego no país, como
é possível perceber na fala do então Presidente da República Michel Te-
mer (MDB), citado por Matoso: “[Quero] combater certa tese que dizem
que, ao pensar em reforma trabalhista, estamos querendo eliminar direi-
tos. Pelo contrário, o que queremos é manter empregos, e manter empre-
go é manter a arrecadação que o emprego dá ao poder público brasileiro”
(MATOSO, 2016).
Com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),
divulgada pelo Instituto Brasil de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de
desemprego apresentou queda de 12,3%, em 2018, para 11,9%, em 2019,
situação percebida no segundo ano consecutivo. No entanto, destaca-se,
por outro lado, que houve um aumento da informalidade, atingindo a
marca de 41,1%, que corresponde a 38,4 milhões de pessoas, o maior
número desde de 2016 (IBGE, 2019).
No que tange ao atual cenário de crise econômica enfrentada pelo
Brasil e o mundo, em decorrência da pandemia da COVID-19, Adria-
na Beringuy, analista da PNAD CONTÍNUA, , em entrevista concedi-
da para o site UOL, afirmou que o país apresentou taxa de desemprego
de 12,9%, no primeiro trimestre de 2020, e índice de informalidade de
37,6%, o menor desde 2016. Ainda atesta que tais dados revelam que os

305
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

trabalhadores estão perdendo a ocupação sem que haja o ingresso em ou-


tro emprego (UOL, 2020).
O presente contexto tem impactado a rotina de grande parte da po-
pulação mundial, tendo como fato causador a disseminação incontrolável
da COVID-19 pelo mundo afora. No caso dos trabalhadores não é dife-
rente. Milhões deles sofrem com bruscas mudanças em suas rotinas por
causa das medidas tomadas para a contenção do vírus, podendo citar aqui
como principal exemplo o isolamento social.
Além de mudar a vida corriqueira dos trabalhadores, o momento vi-
venciado também tem caracterizado um tempo de tensão e incertezas;
não se sabe a extensão e duração desta pandemia, se ela poderá durar mais
algumas semanas ou alguns meses, muito menos o nível de perdas que ela
irá trazer consigo.
Os sentimentos de medo, preocupação e insegurança, gerados pelo
“perigo invisível”, o novo coronavírus, tem sido experimentado por
inúmeras pessoas nos dias atuais, conforme aponta estudo desenvolvidos
pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) (MALDINI, 2020). Ocorre que de acordo com a Organiza-
ção Internacional do Trabalho (OIT), os trabalhadores informais97, au-
tônomos e desempregados, configuram o grupo mais vulnerável no que
se refere ao mundo do trabalho. Estes enfrentam outros desafios além do
receio de serem contaminados pela COVID-19, tais como a precariedade
do trabalho em relação às condições físicas, ergonômicas, à intensidade no
trabalho e às longas jornadas laborais.
Além disso, em que pese o vírus pandêmico não fazer distinção de
pessoas, podendo atingir qualquer sujeito, os trabalhadores informais so-
frem com a marginalização provocada pela ausência de garantias e prote-
ções sociais. Enquanto aos trabalhadores formais são garantidos direitos,
como o auxílio-doença, em caso de enfermidades (mesmo no caso da
COVID-19), e seguro-desemprego, na hipótese de dispensa pelo empre-
gador, aos homens e mulheres que vivem na informalidade essas proteções

97 Apesar dos variados sentidos e interpretações do conceito da informalidade apresen-


tados pela doutrina, aqui toma-se a compreensão que a informalidade está intimamente
associada com a precarização e desproteção social (FAGUNDES; SOUZA, 2017). Além disso,
a informalidade está relacionada às ocupações nas quais as relações de trabalho não obe-
decem à legislação trabalhista (LIRA, 2002). 

306
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sociais são inexistentes. Isto posto, as consequências dessa crise são capa-
zes de reproduzir e ampliar as desigualdades, segundo estudo da Rede de
Pesquisa Solidária (MENDONÇA, 2020).
Assim, percebe-se a necessidade da atuação do Estado em desenvolver
políticas públicas de amparo, configurando-se como um tipo de proteção
social mais abrangente, como afirma Shahra Razavi, diretora do Departa-
mento de Proteção Social da OIT. 

A crise da COVID-19 é um alerta. Ela mostrou que a falta de pro-


teção social não afeta apenas as pessoas mais pobres, também des-
taca a vulnerabilidade das pessoas em uma situação relativamente
boa, pois o custo de cuidados médicos e a perda de renda podem
facilmente destruir o fruto de décadas de trabalho e a economia de
uma família (RAZAVI, 2020).

Em sentido semelhante, Pochmann assinala a relevância da função


do Estado como agente capaz de lidar com as vulnerabilidades sociais que
permeiam as relações de trabalho:

Não parece haver dúvidas, portanto, de que a definição de um


novo padrão de integração social está ainda por ser desenvolvida.
Todavia, é preciso compreender que o Estado necessitaria exercer
um papel relevante na luta contra a exclusão social, principalmente
no que diz respeito ao enfrentamento do problema do desempre-
go e das ocupações precárias nas economias avançadas. Sem isso,
novas vulnerabilidades sociais tendem a ganhar maior espaço neste
final de século (POCHMANN, 1999).

Os casos de situações excepcionais como a atual, fazem com que o


dever de seguridade social do Estado seja invocado além da normalidade e
exige que, mais do que nunca, a Administração Pública desempenhe sua
função de forma hábil e apropriada, principalmente no que tange à pre-
servação dos direitos fundamentais. Dessa forma, é imprescindível tratar
das situações enfrentadas pelos trabalhadores informais neste momento de
crise e a ideal função do Estado frente a este panorama.
É certo que os trabalhadores têm como garantia que, as relações tra-
balhistas sejam exercidas sob o prisma do princípio da dignidade da pessoa

307
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

humana, o qual é basilar não apenas para as relações do trabalho, mas para
todo o contexto social de um Estado Democrático de Direito, conforme
traz expresso o artigo 1º inciso III, da Constituição da República Federa-
tiva do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988). Nas palavras de Marques:

[...] o trabalho a que se refere a Carta de 1988 não é apenas aquele


fruto da relação de emprego, senão toda forma de trabalho, que
gere riqueza não só para quem o presta, mas para a sociedade em
geral. O trabalho não é apenas um elemento de produção. É bem
mais do que isso. É algo que valoriza o ser humano e lhe traz digni-
dade, além, é claro, do sustento. É por isso que deve ser visto, antes
de tudo, como um elemento ligado de forma umbilical à dignidade
da pessoa humana (MARQUES, 2007).

Além do dispositivo constitucional supracitado, a Declaração Uni-


versal dos Direitos Humanos (DUDH), a qual o Brasil é signatário, em
seu artigo 23 discorre:

1.Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do traba-


lho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção
contra o desemprego.

3.Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e sa-


tisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme
com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os
outros meios de proteção social (DUDH, 1948).

  De acordo com os ensinamentos de Delgado, o Estado deve ter


um sistema de valores pautado no ser humano enquanto pessoa, e ainda
disserta que “no desempenho das relações sociais, em que se destacam as
trabalhistas, deve ser vedada a violação da dignidade, o que significa que o
ser humano jamais poderá ser utilizado como objeto ou meio para a reali-
zação do querer alheio” (DELGADO, 2006). 
         Na mesma tese, Delgado ainda assevera que “onde o di-
reito ao trabalho não for minimamente assegurado (por exemplo, com o
respeito à integridade física e moral do trabalhador, o direito à contrapres-

308
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tação pecuniária mínima), não haverá dignidade humana que sobreviva”


(DELGADO, 2006). 
O Estado Nacional, através da Lei Nº 13.979 de 2020, concebe me-
didas para serem tomadas na atuação do enfrentamento da Pandemia do
Coronavírus (BRASIL, 2020). Além disso, foi adotada a Medida Provi-
sória (MP) nº 927 de 2020, que dispõe sobre medidas trabalhistas para o
enfrentamento da pandemia (BRASIL, 2020). E ainda foi instituído por
meio da MP Nº 936 de 2020, que posteriormente resultou na sanciona-
da Lei nº 14.020 de 2020, o Programa Emergencial de Manutenção do
Emprego e da Renda (BRASIL, 2020). Entretanto, os legisladores não
preveem garantias suficientes às pessoas que não têm vínculo empregatí-
cio e não terão como sustentar suas famílias se submetidas às medidas de
isolamento ou quarentena.
Nessa perspectiva, o Governo Federal sancionou a Lei nº 13.982 de
2020, o “Auxílio Emergencial”, consistindo em medida excepcional que
proporciona benefício financeiro destinado aos trabalhadores informais,
microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e
tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrenta-
mento à crise causada pela Pandemia do Coronavírus (BRASIL, 2020).
A referida Lei estabelece o benefício mensal de R$600,00 (seiscentos
reais), a princípio durante três meses, destinado para até duas pessoas da
mesma família. Já para as famílias em que a mulher é a única responsável
pelas despesas da casa, o valor pago mensalmente será de R$1.200,00.
Todavia, este benefício foi prorrogado por mais dois meses, através do
Decreto Nº 10.412 de 2020 (BRASIL, 2020).  
De acordo com o Senador Elmano Férrer (PODEMOS), esse é um
dos programas emergenciais mais importantes na história do Brasil (SE-
NADO FEDERAL, 2020). Nos apontamentos feitos por estudos da
OIT, caracteriza-se como “mecanismo indispensável para fornecer apoio
às pessoas durante a crise” (OIT, 2020).
De fato, essa medida surtiu efeitos positivos, como pode ser visto atra-
vés dos sentimentos de algumas pessoas que receberam o auxílio emer-
gencial, conforme os relatos: “e quando eu ‘subi’ pela rádio e televisão
que ia ter esse auxílio pra gente poder se manter, eu fiquei muito feliz (...)
eu olhei três vezes, três vezes mesmo, pra ver se era aquele valor mesmo”
(Francisca, 46 anos, costureira). Em sentido parecido acrescenta Jessica,

309
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

30 anos, vendedora na praia: “Eu consegui comprar os medicamentos da


minha filha, que ela estava necessitando, e estou mantendo minha família
graças ao auxílio emergencial” (PODER 360, 2020).
De acordo com o Ministério da Cidadania, o auxílio removeu tem-
porariamente da extrema pobreza 80,1% e alcançou 85,2% dos lares que
possuem renda domiciliar per capita até R$242,15, de acordo com os re-
sultados da PNAD (GOVERNO FEDERAL, 2020). Todavia, em re-
portagem do jornal Folha de São Paulo, pode ser visto que inúmeros lares
brasileiros, compostos por trabalhadores que não possuem vínculo com
a formalidade, ainda continuam em situação de miserabilidade. Assim,
é cristalina a necessidade de se projetar algo ainda maior (PUPO, 2020). 
Dessa forma, aproximando-se do término do prazo previsto de con-
cessão do benefício do auxílio emergencial, especialistas apontam que
o fim impactará negativamente as famílias em seus rendimentos, o que,
consequentemente, também afeta o panorama econômico do pais, pela
perda de potencial aquisitivo das classes mais baixas.
Neste sentido, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº
670 de 2020, de autoria da Deputada Gleisi Hoffmann (PT). De acordo
com a parlamentar, a ideia é criar um abono no valor de um salário mí-
nimo mensal para pessoas maiores de 16 anos, sem vínculo empregatício
que atuam em atividades informais e que estejam submetidas às medidas
de isolamento ou quarentena fixadas pelo governo para enfrentamento da
emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus (HAJE, LIBRE-
LON, 2020).
O desenvolvimento de proteções sociais, em sentido semelhante, e
a criação de leis no mesmo objetivo trazido pelo auxílio emergencial, se
mostram totalmente necessários não apenas em um contexto extraordi-
nário vivenciado pelo mundo. Em consonância a isso, a OIT desenvolve
estudos sobre a renda básica universal, que proporciona um mínimo de
garantia ao trabalhador informal em meio às intempéries que está inserido
no cotidiano.
À vista disso, importa salientar o entendimento e apontamento de
Pastore a respeito da necessidade de proteção social no que tange aos tra-
balhadores formais e informais, a saber:

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Diante de um mundo novo, no qual realidade se torna cada vez


mais complexa, heterogênea e movediça, as dicotomias entre for-
mal e informal ou moderno e tradicional perdem sustentação: os
esforços devem se concentrar na busca de proteção para todos; a
proteção social deve estar atrelada às pessoas e não à condição de
ocupação (PASTORE, 2000).

Dessa forma, buscar concretizar garantias protetivas aos trabalhado-


res informais têm o papel fundamental a fim de preservar a dignidade
da pessoa humana e assegurar aos mais vulneráveis, condições mínimas
favoráveis para o auto-sustento e de sua família. Assim proporcionando
sentimentos de segurança e mínima estabilidade aos informais que vivem
em situação de desamparo estatal.

3. CONCLUSÃO

É evidente que os trabalhadores constantemente estão em luta no in-


tuito de conquistar ou assegurar os direitos e garantias para a classe, como
pode ser visto no presente estudo através da abordagem do desenvolvi-
mento histórico do trabalho. De forma mais específica, na classe dos tra-
balhadores informais há uma luta ainda maior, visto que estes não contam
com garantias e direitos, como os que já foram concedidos aos trabalha-
dores celetistas. Sendo assim, vivem à margem da vulnerabilidade e da
precarização do trabalho.
Com a atual conjuntura, houve um agravamento dessa problemáti-
ca. A taxa de desemprego está em ascensão e os trabalhadores informais,
além de conviverem com os impasses corriqueiros, lidam também com
a tensão de trabalharem a mercê de contraírem a doença e ainda sob
a preocupação com o atual cenário econômico. Destarte, vislumbra-se
que isso fere a garantia constitucional do princípio da dignidade da pes-
soa humana e, consequentemente, eleva no indivíduo um sentimento de
objetificação, pois este não é tratado com o primor merecido ao traba-
lhador enquanto pessoa.
No Brasil, como medida excepcional para fornecer proteção emer-
gencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do

311
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

coronavírus, buscou-se medidas sociais e econômicas com objetivo de


minimizar os seus efeitos, como é o caso do auxílio emergencial. É ve-
rídico que a medida excepcional surtiu efeitos positivos, porém, não os
suficientes para possibilitar que os trabalhadores informais adotem o isola-
mento social sem ao mesmo tempo ter o sustento de seu lar prejudicado.
Posto tudo isso, conclui-se que cabe ao Poder Estatal, através de po-
líticas públicas, proporcionar a minimização da precarização e a vulnera-
bilidade nas relações trabalhistas informais, inclusive planejando medidas
de atuação do Estado em eventuais futuras crises. Assim, influenciando
diretamente no sentimento humano, em que o trabalhador desenvolve na
sua ocupação e, desse modo, em sua vida. Construindo, portanto, uma
sociedade livre, justa, e valorizando o bem-estar social.
Assim sendo, para além do trabalhado no presente estudo, sugere-se
que sejam realizados estudos e pesquisas que visem conhecer e analisar a
viabilidade de projetos que abrangem o incentivo à contribuição com a
previdência social, alterações legislativas que estimulem à formalização de
trabalhadores e outros programas sociais voltados à proteger aos trabalha-
dores informais.

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SITES OFF-LINE: UMA INJUSTIÇA
ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
DURANTE A PANDEMIA DO
CORONAVÍRUS
Álefer Aguiar de Oliveira98

INTRODUÇÃO

2020 ficou marcado por um silêncio singular. Um vírus foi o culpado


pelas ruas vazias. Com a chegada do SARS-CoV-2, causador da CO-
VID-19, medidas restritivas imprescindíveis foram realizadas para preve-
nir o contágio. Seja via isolamento, seja via quarentena, as atividades co-
tidianas não puderam ocorrer nos moldes anteriores, gerando às relações
sociais colossal digitalização.
Este artigo busca, sob contornos jurídicos e digitais, no panorama
exposto, demonstrar, que os efeitos da pandemia do Coronavírus foram
mais injustos às pessoas com deficiência99. Considerando, dessa forma,
uma necessária comprovação para o alegado, questiona-se: como seria a
arquitetura dos websites? Acessível? Inclusiva?
Em suma, para a investigação, adota-se como referencial teórico os
estudos da autora Nancy Fraser, para quem justiça social conceber-se-ia

98 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).


99 Em relação à terminologia, adota-se a expressão “pessoa com deficiência” como refe-
rência. Qualquer outra designação não será usada, por se considerar que estão distanciadas
da atual tutela jurídica.

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como paridade participativa, a qual seria atingida pelos paradigmas da re-


distribuição e do reconhecimento. A partir disso, será possível confirmar
o cenário digital injusto às pessoas com deficiência, reforçado pela pande-
mia do Coronavírus.

1. RATIO DA TUTELA JURÍDICA DA PESSOA COM


DEFICIÊNCIA

As pessoas com alguma deficiência representam uma parcela signifi-


cativa da população seja brasileira, seja mundial. Mas, a estrada percorrida
por elas é cheia de percalços, afinal foram diversas as suas formas de trata-
mento, ao longo da história. No modelo da prescindência, o discurso reli-
gioso atrelou as deficiências às causas divinas, sendo relegadas ao ostracis-
mo várias vezes, ora vítimas da eugenia greco-romana, ora marginalizadas
no período medieval. Já no modelo médico ou reabilitador, a situação
mudou, pois com o boom dos conflitos bélicos no século XX, quando ci-
vis e militares ficaram feridos em consequência deles, procurou-se tornar
aptos ao convívio social, os tantos atingidos pelas batalhas (MADRUGA,
2018, p. 34-35).
Contudo, em meados dos anos 60, no Reino Unido, a abordagem
médico-reabilitadora começou a decair, dando lugar ao início do modelo
social (MADRUGA, 2018, p. 35) – em vigor nos dias atuais. Com tal
declínio, a pessoa com deficiência passou a ser vista como uma padece-
dora da estrutura social que existia naquela ocasião. Da mesma forma que
o sexismo e o racismo, eram discriminadas pela opressão por um corpo
idealizado (DINIZ, 2007, p. 9). Em consequência dessa evolução, surgiu
uma ratio, que se irradiou à tutela jurídica.
No Brasil, entretanto, o arsenal legislativo na perspectiva do modelo
social, veio muito após os anos 60. Com a promulgação da Constituição
Federal em 1988, embora haja uma preocupação em relação a algumas
situações de vulneração, as disposições foram legisladas ao abrigo do assis-
tencialismo, resguardo próprio do modelo médico-reabilitador.
Apenas no século XXI, a partir da Convenção Internacional de Nova
York, erigida ao relevo de emenda constitucional, nos termos do § 3º do
art. 5º da Constituição Federal, as alterações rumo ao modelo social de-
ram seus primeiros passos. Nos mesmos contornos, surgiu em 2015, a Lei

319
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

nº 13.146, mais conhecida por Estatuto da Pessoa com Deficiência. Am-


bas, tanto a Convenção, quanto o Estatuto, se alinhavaram sob um novo
paradigma protetivo, que seria menos integrativo, porém, mais inclusivo.
Sob esse ângulo, aduzem Heloisa Helena Barboza e Vitor de Aze-
vedo Almeida Junior (2017, p. 21-22), que “a inclusão, embora não seja
incompatível com a integração, dela se distingue por chamar a sociedade
à ação, isto é, por exigir que a sociedade se adapte para acolher as pessoas
com deficiência”. E, complementam que “diferentemente da integração,
a inclusão institui a inserção de uma forma mais radical, completa e siste-
mática [...].” Em vista disso, com os atos normativos antes mencionados, o
conceito sobre o que seria deficiência precisou ser reformulado, vejamos,
portanto, o art. 2º da Lei nº 13.146/15:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impe-


dimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas. (grifos nossos)

Dessa forma, ao definir deficiência, passou-se a considerar, tam-


bém, as barreiras sociais impostas, passando a analisá-la menos por ques-
tões clínicas, médicas ou reabilitadoras. Com o modelo social, portanto,
busca-se uma ruptura do status quo, de modo a inserir aqueles que pos-
suem alguma deficiência ao convívio social, por meio da inclusão, não
mais da integração.

2. JUSTIÇA SOCIAL PARA NANCY FRASER

Grupos sociais, num binômio espaço-tempo, sempre buscaram, atra-


vés de lutas, por algumas demandas a fim de suprir suas necessidades. No
fim do século XX, elas passaram a serem alimentadas, sobretudo, pela
busca por reconhecimento. As bandeiras levantadas, contudo, costuma-
vam, e ainda costumam, se inserir num panorama de forte vulneração,
tendo em vista a desigualdade material latente que ilustrava, e ainda ilus-
tra, o cenário apresentado (FRASER, 2001, p. 245-246).

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Nancy Fraser, embarcando na observação acima, sublinha que as rei-


vindicações por reconhecimento aumentaram muito, de fato, nos últimos
anos, sendo a força motriz para as principais lutas dos grupos sociais. Ape-
sar disso diminuíram as reivindicações por redistribuição socioeconômica
(FRASER, 2002, p. 8-9). Acerca das duas demandas mencionadas, le-
ciona:

Do ponto de vista distributivo, a injustiça surge na forma de de-


sigualdades semelhantes às da classe, baseadas na estrutura econó-
mica da sociedade. Aqui, a quintessência da injustiça é a má dis-
tribuição, em sentido lato, englobando não só a desigualdade de
rendimentos, mas também a exploração, a privação e a marginali-
zação ou exclusão dos mercados de trabalho. Consequentemente,
o remédio está na redistribuição, também entendida em sentido
lato, abrangendo não só a transferência de rendimentos, mas tam-
bém a reorganização da divisão do trabalho, a transformação da
estrutura da posse da propriedade e a democratização dos proces-
sos através dos quais se tomam decisões relativas ao investimento.

Do ponto de vista do reconhecimento, por contraste, a injustiça


surge na forma de subordinação de estatuto, assente nas hierarquias
institucionalizadas de valor cultural. A injustiça paradigmática nes-
te caso é o falso reconhecimento, que também deve ser tomado em
sentido lato, abarcando a dominação cultural, o não-reconheci-
mento e o desrespeito. O remédio é, portanto, o reconhecimento,
igualmente em sentido lato, de forma a abarcar não só as reformas
que visam revalorizar as identidades desrespeitadas e os produtos
culturais de grupos discriminados, mas também os esforços de re-
conhecimento e valorização da diversidade, por um lado, e, por
outro, os esforços de transformação da ordem simbólica e de des-
construção dos termos que estão subjacentes às diferenciações de
estatuto existentes, de forma a mudar a identidade social de todos
(FRASER, 2002, p. 11-12).

Ambas, por mais que pareçam excludentes, ou substitutivas, não são


incompatíveis. Afinal, justiça social requer além do reconhecimento, a re-
distribuição. Ou seja, sua análise deve se propor numa perspectiva bifocal,

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na qual os riscos para a exclusão ou a substituição entre as reivindicações


não existiriam mais (FRASER, 2002, p. 12).
Com o propósito combinatório das duas demandas, a autora elabora
uma medida normativa, nomeada por paridade participativa, que as in-
cluiria no mesmo patamar, de modo que para sua viabilização de forma
plena e efetiva os arranjos sociais deveriam promover as relações sociais em
igualdade de condições. Ademais, Nancy Fraser salienta que:

[...] Primeiro, deve haver uma distribuição de recursos materiais


que garanta a independência e “voz” dos participantes. Esta con-
dição impede a existência de formas e níveis de dependência e de-
sigualdade económicas que constituem obstáculos à paridade de
participação. Estão excluídos, portanto, arranjos sociais que insti-
tucionalizam a privação, a exploração e as flagrantes disparidades
de riqueza, rendimento e tempo de lazer que negam a alguns os
meios e as oportunidades de interagir com outros como pares. Em
contraponto, a segunda condição para a paridade participativa re-
quer que os padrões institucionalizados de valor cultural exprimam
igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportu-
nidades para alcançar a consideração social. Esta condição exclui
padrões institucionalizados de valor que sistematicamente depre-
ciam algumas categorias de pessoas e as características a elas asso-
ciadas. Portanto, excluem-se padrões institucionalizados de valor
que negam na alguns o estatuto de parceiros plenos nas interações
– quer ao imputar-lhes a carga de uma “diferença” excessiva, quer
ao não reconhecer a sua particularidade (FRASER, 2002, p. 13).

Das conclusões da autora, observa-se que sua discussão acerca do re-


conhecimento o centraliza como uma questão da justiça social. Como re-
sultado disso, surge uma noção mais ampla dela, que passa a abarcar as duas
demandas antes expostas. Apenas com o atendimento das reinvindicações
pela igualdade e pela diferença, via redistribuição e reconhecimento, respec-
tivamente, a paridade participativa será atingida (FRASER, 2007, p. 103).
À luz da justiça social discutida por Nancy Fraser, portanto, em que
medida a pandemia do Coronavírus foi mais injusta às pessoas com defi-
ciência?

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3. UMA INJUSTIÇA SOCIAL CAUSADA PELO VÍRUS


SARS-CoV-2

As medidas restritivas para enfrentamento da pandemia do Corona-


vírus foram necessárias para prevenir o contágio. Mas, para agrupamentos
específicos, pode-se dizer que, seja via isolamento, seja via quarentena,
foram mais tormentosas.
Em seu livro “A Cruel Pedagogia do Vírus”, Boaventura de Sousa
Santos analisa alguns desses grupos sociais – em sua maioria considerados
vulnerados, os quais chama de Sul, que seria “a metáfora do sofrimento
humano injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação
racial e pela discriminação sexual” (SANTOS, 2020, p. 15). Em relação
as pessoas com deficiência, salienta que elas:

Têm sido vítimas de outra forma de dominação, além do capita-


lismo, do colonialismo e do patriarcado: o capacitismo. Trata-se da
forma como a sociedade os discrimina, não lhes reconhecendo as
suas necessidades especiais, não lhes facilitando acesso à mobili-
dade e às condições que lhes permitiriam desfrutar da sociedade
como qualquer outra pessoa. De algum modo, as limitações que
a sociedade lhes impõe fazem com que se sintam a viver em qua-
rentena permanente. Como viverão a nova quarentena, sobretudo
quando dependem de quem tem de violar a quarentena para lhes
prestar alguma ajuda? Como já há muito se habituaram a viver em
condições de algum confinamento, sentir-se-ão agora mais livres
que os «não-deficientes» ou mais iguais a eles? Verão tristemente
na nova quarentena alguma justiça social? (SANTOS, 2020, p. 20)
(grifo nosso)

E o autor conclui da seguinte maneira:

Por um lado, ao contrário do que é veiculado pelos media e pelas


organizações internacionais, a quarentena não só torna mais visí-
veis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e
o sofrimento imerecido que elas provocam. Acontece que tais assi-
metrias se tornam mais invisíveis em face do pânico que se apodera
dos que não estão habituados a ele (SANTOS, 2020, p. 21).

323
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Observa-se, assim, que o capacitismo ficou ainda mais reforçado,


sobretudo, à medida que o SARS-CoV-2, causador da COVID-19, foi
avançando, tendo em vista a sem precedentes transformação digital que foi
surgindo na mesma direção. Em pouco mais de 15 dias, as circunstâncias
modificaram em proporções que poderia se gastar 5 anos no curso natural.
Com um crescimento exponencial do uso das tecnologias de informação
e comunicação (TIC), as relações sociais foram colossalmente digitaliza-
das (SAMPAIO, 2020, p. 169).
Mas, embora façam parte do grupo de risco – não pelas deficiências,
mas pelas comorbidades que vem junto delas, pouco foi feito, no auge do
surto sanitário, ao grupo social ora analisado, seja orientando, seja apoiando.
Um levantamento produzido durante o período, corrobora com o
alegado acima. Segundo o Painel TIC COVID-19, desenvolvido pelo
Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da
Informação (Cetic.br), que tem por missão monitorar a adoção das tec-
nologias de informação e comunicação (TIC), no Brasil, as informações
coletadas demonstraram um aumento, de fato, no uso da Internet.
Em sua primeira edição,100 com coleta de dados entre 23 de junho e
08 de julho de 2020, a pesquisa apresentou informações relacionadas às
atividades na Internet, à cultura e ao comércio eletrônico. Sem adentrar
em maiores detalhes, analisando, portanto, de maneira geral, os resultados,
observa-se que, na delimitação recortada, o acréscimo no uso da Internet
foi nítido, se comparado a uma perspectiva sem COVID-19. A título de
exemplo, salienta-se o incremento nas compras, via delivery, de comidas
ou produtos alimentícios, sendo que o uso dos aplicativos de mensagens
instantâneas tornou-se o principal meio para sua realização.
Outras atividades cotidianas, como estudar e trabalhar, também, so-
freram seus contratempos. Seja por ensino à distância (EAD) ou home offi-
ce, as pessoas, com ou sem deficiência, tiveram que passar a exercerem suas
relações educacionais e trabalhistas fora dos espaços físicos.

100 Tal levantamento foi planejado para análise em variados segmentos, sendo que seu
propósito corresponde a três edições, lançadas, porém, em datas diferenciadas entre si.
Assim, para este trabalho apenas a primeira edição da publicação foi observada. Para mais
informações sobre as outras edições, cf.: Disponível em <https://cetic.br/pt/noticia/painel-
-tic-covid-19-aponta-aumento-do-comercio-eletronico-e-das-atividades-culturais-on-line-
-durante-a-quarentena/> Acesso em 18 de setembro de 2020.

3 24
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

Além da fruição digital desses direitos fundamentais, denota-se


o mesmo contexto disruptivo ao Estatuto Democrático de Direito nos
ecossistemas políticos e jurídicos, através do exercício das funções judiciá-
rias, legislativas e executivas no ciberespaço. Juntas, essas mudanças para-
digmáticas foram reforçando uma agenda ao movimento constitucionalis-
ta, através do que podemos denominar como constitucionalismo digital
(SAMPAIO, 2020, p. 165-169).
Nessa conjuntura, então, evidencia-se que vem ocorrendo um fenô-
meno de alteração nas relações sociais, cada vez mais digitalizadas, que al-
tera, por consequência, o Direito, tendo em vista a simbiose existente en-
tre a sociedade e a ciência jurídica. Assim, com as transformações digitais
promovidas pela ascensão do uso do ciberespaço – considerando que as
mudanças tecnológicas também são mudanças sociais – faz-se necessária
uma revisitação dos institutos jurídicos (PECK, 2016, p. 49), sobretudo
após o surto sanitário causado pelo vírus SARS-CoV-2.

3.1. Uma paridade participativa invisível?

Um dos ícones dos direitos das pessoas com deficiência, Jacobus


tenBroek, defendeu, no século passado, o direito de “viver no mundo”.
Alcançar isso seria o mesmo que garantir o acesso de forma plena e efetiva
aos ambientes sociais em igualdade de condições. Mas, atualmente, com
a ascensão do uso do ciberespaço, “viver na Internet” seria um bom jeito
para reconfigurar a expressão, afinal relações sociais têm sido, cada vez
mais, realizadas no metameio (AREHEART; STEIN, 2015, p. 450-456).
A Suprema Corte dos EUA decidiu em 2019, justamente, nesse sen-
tido, ao interpretar a Lei dos Americanos com Deficiência, em vigor desde
1990, para além das barreiras sociais nos espaços físicos. Segundo a decisão
judicial estabelecimentos comerciais precisam fornecer alternativas para
o acolhimento das pessoas com deficiência até mesmo no ciberespaço.101

101 Uma ação judicial iniciada por Guillermo Robles, homem com deficiência visual, afir-
mando que tanto o portal, quanto o aplicativo de uma rede de pizzaria conhecida à nível
mundial não funcionava, demarcou o que viria a ser o caso Robles vs. Domino’s. Cf.: Si-
tes varejistas devem ser acessíveis a cegos, decide Suprema Corte dos EUA. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2019-out-16/sites-varejistas-acessiveis-cegos-decidem-eua>.
Acesso em: 31 de jul. de 2020.

325
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Ao encontro do julgado acima mencionado, se encontram a ratio


emancipadora inaugurada pela Convenção Internacional de Nova York e
a Lei nº 13.146/15, no Brasil. Com o contributo de ambas, a acessibilidade
digital ao menos, por atos normativos, foi assegurada, levando em conta
a necessidade da paridade participativa nos ambientes sociais digitais. No
entanto, sabe-se que às pessoas com deficiência a paridade participativa
efetua-se de diferentes maneiras, dada a diversidade que permeia esse gru-
po social.
A título de exemplo, um indivíduo com deficiência física ao ter de
driblar as inúmeras barreiras sociais nos espaços físicos poderá preferir evi-
tá-las, caso haja a possibilidade dos seus estudos, pela educação à distância
(EAD), ou do seu trabalho, pelo home office, por conseguir, estando em
casa, driblar melhor seus impedimentos de longo prazo. Já aqueles com
deficiência sensorial, a situação seria outra, pois precisariam de uma adap-
tação através das suas formas comunicativas, que se daria pela implantação
do conteúdo em braille ou libras, a depender de o indivíduo ter, respecti-
vamente, impedimento visual ou auditivo. Ou seja, dada a diversidade que
permeia esse grupo social, um mesmo website pode oferecer oportunida-
des para uns, mas retirar para outros (JAEGER, 2012, p. 2-3).
Mesmo assim, o ciberespaço tem sido visto com seu enorme potencial
para promover a sociabilização das pessoas, inclusive as com deficiência,
considerando as formas comunicativas permitidas pelas redes sociais. Afi-
nal, agora, por exemplo, pessoas que possuam alguma deficiência psíquica
ou intelectual, podem se sociabilizar, sem intermediários, de um jeito ins-
tantâneo, por meio de mensagens textuais, não ficando mais reféns a uma
linguagem apenas oral (JAEGER, 2012, p. 2-3).
Apesar dessa importância, segundo uma pesquisa do Movimento
Web para Todos (MWPT), em conjunto com o BigData Corp, no Brasil,
os ambientes sociais digitais ainda não estão acessíveis, por completo. Na
análise, foram realizados alguns testes com três recursos – imagens, links e
formulários – em 14,65 milhões de endereços eletrônicos ativos, para in-
vestigar o nível de acessibilidade às pessoas com deficiência. A partir disso,
o resultado apresentado demonstrou algo nada promissor, já que menos de
1% dos websites brasileiros são acessíveis.102

102 Apenas aproximadamente 0,01% dos websites apresentaram falha em todos os testes,
mas cerca de 99,26% deles registaram ao menos uma falha nos testes. Cf.: Novo estudo de

326
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

A julgar, então, pela inacessibilidade constatada, percebe-se uma ver-


dadeira agrura: às pessoas com deficiência não há uma paridade participa-
tiva, visto que os arranjos sociais do ciberespaço não permitem as intera-
ções intersubjetivas em igualdade de condições.
Sem dúvidas, a partir dessa exclusão causada pela inacessibilidade di-
gital, vê-se que o ciberespaço precisa se reconfigurar para ser pleno e efe-
tivo. Afinal, consegue-se, através dele, se permitir interações intersubje-
tivas, tanto em tempo real quanto em qualquer lugar do mundo. Ou seja,
com o ciberespaço encurta-se o tempo e o lugar das comunicações que
permitem as tantas atividades do dia a dia.
Caso contrário, se não respeitadas, pelos setores sociais, as diretrizes
e os protocolos da W3C bem como os atos normativos que versam sobre
as boas práticas da arquitetura nos websites, a injustiça social, sob as vestes
de um capacitismo digital, às pessoas com deficiência ficará ainda mais
reluzente no futuro, quando visto o potencial do ciberespaço, através da
Internet, para ser o maior mecanismo inclusivo já inventado (JAEGER,
2012, p. 33).
Nessa seara, destaca-se o conceito da Gabrielle Bezerra Salles e do
Ingo Wolgang Sarlet (2016, p. 155-156) acerca do direito à inclusão, que
seria “a consequência natural do amadurecimento da teoria dos direitos
fundamentais”, sendo que afirmá-lo seria procurar seu alcance pleno e
efetivo, de maneira pluridimensional, ou seja, para todos. No entanto, à
agrupamentos específicos, como, as pessoas com deficiência, “a concre-
tização do direito à igualdade somente se aperfeiçoa, na medida em que
se contempla na mesma medida o direito à diferença e, [...] deve se falar
igualmente do direito à inclusão”.
Sob essa ótica, Roger Raupp Rios (2012, p. 172) versa sobre o direito
à igualdade e o direito à diferença fazendo um paralelo com a teoria de
Nancy Fraser:

No fundo, a tensão entre os paradigmas da distribuição e do reco-


nhecimento traz à tona a tensão entre as formulações de um direito
geral de igualdade e as do direito à diferença. Desde a Revolução

acessibilidade do Web para Todos em sites brasileiros. Web para todos, 2020. Disponível
em: <https://mwpt.com.br/2o-estudo-de-acessibilidade-do-movimento-web-para-todos-
-nos-sites-brasileiros/>. Acesso em: 18 de setembro de 2020.

327
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Francesa, o projeto político de abolir os privilégios e superar a so-


ciedade estamental se associou à formulação da igualdade jurídica
como componente essencial do Estado de Direito e da democra-
cia, considerando-se a defesa da diferença uma estratégia conserva-
dora e retrógrada. Todavia, como indicado acima, nas últimas dé-
cadas do século XX, grupos e movimentos sociais que reivindicam
agendas progressistas passaram a perseguir o reconhecimento das
diferenças e a promoção da diversidade.

Outrossim, vê-se, ainda, que o próprio Estatuto da Pessoa com De-


ficiência busca tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, vejamos:

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com De-


ficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegu-
rar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à
sua inclusão social e cidadania. [...]

Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de opor-


tunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discri-
minação. (grifos nossos)

Desse modo, percebe-se que o direito à igualdade e o direito à di-


ferença procuram, sob as vestes da redistribuição e do reconhecimento,
promover um cenário inclusivo, portanto, mais justo, às pessoas com de-
ficiência. Mas, com as transformações digitais promovidas pela chegada
da COVID-19, a preocupação precisa, ainda mais, ir além das barreiras
sociais nos espaços físicos. Afinal, apenas com uma redistribuição no aces-
so à Internet – considerado não só como um direito fundamental, mas,
também, um direito humano – bem como um reconhecimento no ci-
berespaço de que indivíduos com alguma deficiência são consumidores,
estudantes, trabalhadores, e, até mesmo, usuários de redes sociais, a pari-
dade participativa será possível através da garantia da acessibilidade digital.
Considerando essa aptidão inclusiva ou exclusiva – a depender da
promoção ou não da acessibilidade, do ciberespaço, gradualmente, sur-
gem diálogos pela aceitação da inclusão digital como um direito a ser ga-
rantido pela Constituição Federal de 1988. Assim, sabe-se que “a inclusão

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digital, dentre as suas inúmeras vertentes, deve ser encarada como um


direito entre direitos, abrigando as mudanças trazidas pelas tecnologias de
informação e comunicação, mas não se subordinando a elas” (GONÇAL-
VES, 2012, p. 110).
Todavia, conforme já mencionado antes, a acessibilidade precisa
ser total, não a assistida por alguém, a qual deve ser evitada, afinal a ratio
emancipadora efetuada pelos atos normativos inclusivos às pessoas com
deficiência requerem autonomia no exercício de sua cidadania. Acerca
disso, Lauro Luiz Gomes Ribeiro (2015, p. 133-140) versa que a:

“[...] autonomia deve ser interpretada como o domínio absoluto


do espaço físico e/ou dos sistemas e meios de comunicação, com
independência, liberdade de escolha e dignidade, o que se anta-
goniza com qualquer pretensão reducionista a esta ‘liberdade com
dignidade’”

Ou seja, a autonomia, ilustrada pelo reconhecimento da capacidade


civil pela Lei nº 13.146/15, precisa ser interpretada a partir dessa lógica do
domínio absoluto do espaço físico ao ciberespaço. Mas, ela só será plena e
efetiva com a garantia da acessibilidade digital, já que as pessoas com de-
ficiência requerem, para sua paridade participativa, uma arquitetura mais
inclusiva.
Considerando, portanto, sua instrumentalidade para tantos outros di-
reitos fundamentais, a acessibilidade precisa ser considerada como um di-
reito fundamental em todas as dimensões das relações sociais, ainda mais
que, com a pandemia do Coronavírus, elas foram colossalmente digitali-
zadas. Assim, caso o ciberespaço continue inacessível, exclusões ficarão
escondidas sob o manto da paridade participativa invisível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Camp Jened103, um acampamento de férias que funcionava du-


rante o verão dos EUA do século passado, pessoas com deficiência pude-

103 Sobre o documentário que fala sobre Camp Jened, cf.: CRIP Camp: Revolução pela In-
clusão. Direção: James Lebrechet e Nicole Newnham. Produção de James Lebrechet, Nicole
Newnham e Sara Bolder. [S.l.]: Higher Ground Productions; Netflix, 2020, 108 min. Dispo-

329
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

ram experimentar vivências pouco antes vistas. Afinal, estando distantes


de uma civilização segregacionista puderam superar, ao menos naquele
momento, as restrições causadas pelas barreiras sociais. Com essa incuba-
dora, os campistas puderam, então, perceberem do que eram capazes, caso
os ambientes fossem mais receptivos.
Este artigo buscou, portanto, no panorama exposto, confirmar que os
efeitos da pandemia do Coronavírus foram mais injustos às pessoas com
deficiência, tendo em vista o reforço, no período, das barreiras sociais –
agora, no século XXI, com vestes digitalizadas. Com a chegada do vírus
SARS-CoV-2, causador da COVID-19, de fato, as atividades cotidianas,
que já vinham se digitalizando, se digitalizaram ainda mais. Contudo,
nem todo os websites estavam acolhedores, no auge do surto sanitário, às
pessoas com deficiência.
Nesse sentido, verificou-se que os websites, sendo integrantes do ci-
berespaço, precisam ser acessíveis, logo, inclusivos, para que aqueles que
possuam deficiência possam exercer atos relacionados a sua cidadania.
Caso não haja essa igualdade de condições, no futuro, a ratio emancipa-
dora promovida pela recente tutela jurídica não será plena e efetiva. Sem
dúvidas, assim, faz-se necessária uma revisitação dos institutos jurídicos,
sob a ótica dessas transformações digitais.
Mas, ainda que existam diretrizes e protocolos assim como atos nor-
mativos, essa reconfiguração do Direito à luz da Tecnologia, sobretudo
no que se refere ao instituto jurídico da acessibilidade digital, depende da
união dos inúmeros setores sociais, a fim de perceberem a importância da
garantia da paridade participativa da pessoa com deficiência. Apenas com
essa consciência de que a acessibilidade seria um direito fundamental, até
mesmo no ciberespaço, os websites ficarão on-line no intuito de concre-
tizar uma visível justiça social.

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333
GESTÃO DE RISCO E
GERENCIAMENTO DE CRISE
NA COVID-19: PERSPECTIVAS
MULTIFOCAIS PARA A GOVERNANÇA
NA ATUALIDADE
Leandro Belloc Nunes104

INTRODUÇÃO

O Brasil e o mundo experimentam um período conturbado na rea-


lidade global e coletiva. Trata-se da maior crise sanitária dos últimos 100
anos, com implicações e impactos em diversos campos da vida cotidiana,
envolvendo consequências econômicas, políticas e sociais.
Nesse cenário, ganha importância a gestão de riscos, que busca ma-
pear, identificar e mitigar riscos nas mais diversas áreas, com a aplicação
de planos táticos para controle de perdas em caso de eventos sensíveis,
momento quando se confronta a eficácia de um sistema perante um caso
concreto de extrema magnitude. Tal previsão de contingência é matéria
amplamente tratada no panorama da governança, no campo do estudo de
riscos, controles internos e reações institucionais para superação de tais
impactos, em seus diversos contextos.

104 Doutorando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie


(UPM), Mestre em Função Social do Direito pela FADISP. Advogado.

334
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Para fins da presente análise do estudo, portanto, são suscitadas impli-


cações da gerenciamento de crise em um contexto de gerenciamento de
crise, visando a consolidação da governança - corporativa ou institucional
- conforme matriz de riscos a ser proposta nas esferas público e privada,
como exercício metodológico de análise.
Com esse norte, tem-se deflagrado o objetivo de pesquisa, ou seja,
analisar os fatores complexos da gestão de riscos, programas e respostas
de governos, empresas e indivíduos, de modo a refletir sobre a especial
conjuntura política, econômica e social da pandemia e os impactos de-
correntes da disseminação da doença denominada COVID-19, por es-
tabelecer um grande desafio para a área de governança de todas as par-
tes envolvidas. Essa empreitada presume a apresentação de percepções e
proposições de melhorias tático-estratégicas para tais públicos, global e
paradigmaticamente, transformados em algo que está sendo chamado de
“o novo normal”.
A ocorrência do cisne negro (black swan), um evento inesperado e de
grande impacto, ganha aqui roupagem ensaística e empiricamente abor-
dado, ocorre na segunda metade da obra, com maior ênfase na análise
panorâmica das implicações em esferas de governança, em seu conceito
ampliado. Inicialmente aborda-se a esfera estratégica, representada pela
governança pública quanto aos quesitos direcionadores de organismos de
saúde e poder administrativo implementador de políticas públicas emer-
genciais e orientação à população. Em seguida, a implementação de táticas
empresariais para contingenciamento tático-logístico, buscando-se conti-
nuidade das operações ou redução de atividades. Por fim, os impactos na
esfera individual, com o entendimento de medidas e fatores emergenciais
e posturas coletivas cidadãs para a preservação da integridade social e a
continuidade das condições de vida.

1. CONCEITOS CENTRAIS DA GESTÃO DE RISCO E


A EFETIVIDADE DO GERENCIAMENTO DE CRISE A
PARTIR DO EVENTO CRÍTICO

O termo “risco” deriva do antigo italiano riscare, que por sua vez, ad-
vém de termos de raizes latinas como risicu, riscu, que significa primordial-
mente o ato de “ousar” (BERNSTEIN, 1997). No francês, tem-se o cor-

335
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

relato risqué, que representa um perigo provável, ao passo que no inglês,


o vocábulo correspondente é hazard, ou um acaso relacionado a perigo105.
A implementação de tais métodos precede aos tempos babilônicos,
a exemplo da indenização para inundações e roubos, ou a seleção de de-
vedores a serem selecionados por banqueiros nos primórdios, sistemática
utilizada até hoje, medido pela capacidade de pagamento. Na Grécia an-
tiga, em meados do Séc. II a.C, tem-se os primeiros relatos de seguros
para perdas envolvendo embarcações e escravos. Durante o Séc. VIII, os
vikings utilizavam probabilidades para o estudo das navegações em via-
gens desde o reconhecimento dos mares da Escandinávia até incursões à
então desconhecida América, buscando analisar os riscos de naufrágios
e ataques piratas. Também desbravadores, portugueses e espanhóis du-
rante a era das navegações buscavam antever perigos marítimos durante
a expansão mercantilista, fazendo uso de ponderações empíricas sobre os
riscos ali contidos.
Galileu Galilei, em 1630, já analisava questões sobre probabilidade
(sopra le scoperte dei dudi), sobre o jogar dos dados. Em 1662, John Graunt
aprofunda-se sobre a teoria da amostragem, debruçando-se sobre as ta-
xas de mortalidade, a partir de observações políticas e naturais, servindo
de modelo para análises populacionais para governo, religiões, negócios
e crescimentos para a comunidade londrina. No Séc. XVII, os holande-
ses utilizaram métodos similares para o controle do mercado de tulipas,
com estudos pioneiros de derivativos de opções financeiras aplicadas ao
produto. Na Inglaterra do Século XVII, o Lloyd’s Café era um ponto de
encontro de negociadores de seguros marítimos, onde eram discutidas as
novidades e tendências do setor local, mantendo a tradição de seguros
e resseguros durante séculos, mantendo-se até os dias atuais como refe-

105 Conforme Spink (2001), houve um processo de ”incorporação” gradativa de termos,


passando de fatalidade à fortuna (Giddens, 1991), e incorporando paulatinamente os vo-
cábulos hazard (século XII), perigo (século XIII), sorte e chance (século XV) e, no século XVI,
risco. Após emergir como vocábulo na pré-modernidade, risco haveria de tornar-se um con-
ceito fundamental na modernidade clássica. Entretanto, a possibilidade de efetivamente
utilizar o conceito de risco como estratégia de governo, envolve um longo processo de for-
malização que pode ser melhor entendido como o enredo arquetípico do desenvolvimento
da compreensão, segundo as teorizações de White (1994) sobre os trópicos do discurso”.

336
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

rência para cálculos de risco e inovação representada por novos tipos de


coberturas.
A partir do Séc. XX, ganha força o mercado de capitais, seguros e
previdências. Em 1921, a obra Risk, Uncertainty and Profit, de Frank Kni-
ght, começa a sistematizar o tema. Do impulso dos estudos ligado à gover-
nança corporativa decorreu a publicação em 1975, da revista Fortune com
o artigo intitulado The Risk Management Revolution, de Kloman, H. F.,
atribuindo à alta administração o controle de riscos. No início da década
de 1990, os documentos COSO I, Cadbury e AS/NZS foram impulsio-
nadores mundiais para o movimento, por meio de diretrizes e normas
técnicas sobre o tema.
Recentemente, The Orange Book, a Lei Sarbanes Oxley, o CO-
SO-ERM, o Acordo de Basileia (I e II), a AS/NZS 4360-2004 e a ISO
31000-2009. A adoção de tais modelos avançou na aplicação internacio-
nal, com uma abordagem sistemática para gerenciamento de riscos e uma
cultura organizacional cada vez mais voltada para tais práticas. O geren-
ciamento e documentação de riscos constitui instrumento de accountabili-
ty, aproximando a comunicação com as partes interessadas106, numa visão
de governança ampliada, vide ensinamentos de Villas-Boas Filho (2016),
acerca do fenômeno da governança em suas mais variadas implicações,
não somente baseadas na governança corporativa, sendo aplicável a gover-
nos, organizações, entidades, etc:

O conceito de governança remete a uma experiência extrema-


mente complexa cujas vias de análise parecem ser, à primeira vista,
inesgotáveis. Aliás, nesse particular, vários são os autores que subli-
nham o caráter paradigmático desse conceito para a compreensão

106 A metodologia COSO, desenvolvida pela PriceWaterHouseCoopers (PwC), sob a for-


ma de um cubo, com o gerenciamento estratégico de tais riscos, levando-sem em conta
os objetivos da organização. No topo, portanto, os objetivos, na lateral esquerda, os com-
ponentes e na face direita, a estrutura e níveis funcionais. A estratégia COSO GRC leva em
conta princípios focais para criação de valor, com missão, valores e visão, seus objetivos e
desempenho esperado. Ainda revisão, informação e reporte. A ISO 31000 apresenta diretri-
zes gerais para harmonizar os processos de gestão de riscos, levando em conta atividades,
produtos, operações, funções, ativos e estratégias. The Orange Book Management of Risk,
Principles and Concepts foi encomendada pelo tesouro britânico, compatível com os dois
modelos anteriores.

337
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

do que está implicado em um cenário, marcado pela globalização,


em que “governar sem governo” parece ser uma realidade cada vez
mais efetiva. [...] pelo ângulo da sociologia jurídica, são analisadas,
sucessivamente, a “governança corporativa”, a “governança glo-
bal”, a “governança dos blocos regionais”, a “governança nacio-
nal” e, finalmente, a “governança local” (VILLAS BOAS FILHO,
2016, p.695)

Em suma, o risco é uma incerteza sobre o futuro, ante objetivos es-


tabelecidos, bem como pode apontar impactos e consequências a serem
confrontados. Estabelecer o controle de tais riscos, geram bons índices de
governança são fatores base para governos e pessoas a delimitar e escolher os
riscos aos quais estão dispostos a enfrentar, conforme seu ramo de atividade
e seu plano estratégico para objetivos institucionais. Dentre os tipos de ris-
cos, são exemplos aplicáveis, de acordo com variáveis externas ou internas
ao ente analisado: Risco de mercado; Risco de liquidez; Risco de crédito;
Risco operacional; Risco legal; Risco de conjuntura; Risco de imagem,
dentre outros. A partir daí, poderá ser mapeado o comportamento da cor-
poração conforme maior ou menor risco enfrentado em determinado setor,
bem como estabelecer os níveis de controle sobre tais variáveis. Também
são abordados os eventos mais prováveis de ocorrência e uma eventual rea-
ção para reduzir perdas em tais hipóteses107. A previsão ideal genérica de
estudos de riscos inclui identificação, análise, tratamento, monitoramento
e avaliação de riscos, compõe o sistema de proteção contra as crises a serem
enfrentadas - inclusive os eventos pouco previsíveis ou improváveis, como
o caso do presente artigo. Portanto, além de incertezas sobre tais ocorrên-
cias, os eventos podem trazer ameaças ou oportunidades, sendo identificado
(qualitativa) e mensurável (quantitativamente) seu impacto, de modo a tal
lógica ser aproveitada da melhor forma por organizações, governos e pes-

107 Conforme Kliemann Neto (2011), vide definição da organização RISKSIG (Risk Manage-
ment Specific Interest Group), existem 3 grupos de riscos: (i) Gerenciamento de riscos: cor-
responde ao conjunto de riscos da empresa que conduz o projeto, a operação ou a análise,
e que considera o gerenciamento do projeto como gerenciamento de riscos organizacionais;
(ii) Riscos externos: é o conjunto de riscos que está além da capacidade da empresa de in-
tervir ou controlar, como ações de terceiros, forças climáticas, mercados, entre outros; e (iii)
Tecnologia de riscos: corresponde ao conjunto de riscos inerentes à tecnologia e processos
usados em um projeto, operação ou análise.

338
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soas. Não obstante a efetividade de medidas preventivas, podem ocorrer


eventos críticos, com ações emergenciais para controle de impactos. Con-
forme Calil (2009, p.44), “O gerenciamento da continuidade do negócio é
um conceito ampliado do planejamento para recuperação de desastres, que
ainda é bastante utilizado por órgãos administrativos de governos, a fim de
se preparar para determinadas catástrofes” .

Figura 2: Etapas da gestão de riscos


Fonte: NBR ISO 31000

A redução dos riscos, considerando atuação prévia, corrente e posterior


ao evento crítico, portanto, pressupõe a correta identificação e mensuração
108
das hipóteses de incidentes e seus efeitos, representadas pela probabi-

108 Os métodos qualitativos de priorização, como se denota da própria nomenclatura,


focam na priorização dos riscos para análise ou ação subseqüente por meio de avaliação
e combinação de sua probabilidade de ocorrência e impacto. Já os métodos qualitativos
de avaliação têm como objetivo permitir a incorporação de aspectos subjetivos na análise,
proporcionando, através da Teoria da Utilidade, a consideração do perfil de risco da orga-
nização (ou de seus tomadores de decisão) para agregar aspectos intangíveis na análise
final. Por sua vez, os métodos quantitativos fazem a medição da probabilidade e do impacto
dos riscos, fazendo também uma estimativa de suas implicações nos objetivos do projeto.

339
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

lidade da ocorrência ou minoração dos efeitos de tais fatos. Aceitação ou


retenção de riscos poderá ser um dos caminhos, caso o trade off pela assunção
de tais possibilidades seja suportado. Dessa forma, confrontando-se com
o debate proposto no presente estudo, o ponto nevrálgico para a crise em
questão está no fator de imprevisibilidade, que ocasionou um efeito de cisne
negro, com baixa generalizada nas expectativas de faturamento, circulação
de mercadorias e serviços e lockdown forçado da população109.

Figura 3: Plano de resposta emergencial


Fonte: CALIL (2009)

(KLIEMANN NETO, 2011).


109 O estudo da estratégia da organização procura alinhar o BCM (Business Continuity Ma-
nagement) com o plano de negócios da organização. Devem-se prever, durante a elaboração
do BCM, os planos de longo e médio prazo da organização, para que seja elaborado um
BCM capaz (flexível o suficiente) de ser adaptável às situações futuras. Nessa fase, devem-
-se definir quais os tempos máximos de interrupção que a organização suporta – levando
em consideração, por exemplo, falha do sistema de informática; falha de equipamentos;
interrupção por parte dos fornecedores; perda de pessoal; etc. Na análise do impacto no
negócio (Business Impact Analysis – BIA), procura-se identificar, quantificar e qualificar o
impacto de perdas, interrupções ou distúrbios nos processos da organização e fornecer da-
dos para definir a estratégia da continuidade. Contempla a identificação e compreensão dos
objetivos críticos e os respectivos critérios de sucesso; a definição dos tempos máximos de
interrupção tolerável (Maximum Tolerable Outage – MTO); a definição dos objetivos para os
pontos de recuperação (Recovery Point Objective – RPO); o delineamento das dependências
internas e externas para se atingir os objetivos críticos; a identificação dos impactos que
podem resultar em perdas de reputação ou financeira; etc. (CALIL, 2009).

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2. DIMENSÕES DE GOVERNANÇA FRENTE AO RISCO


PANDÊMICO: IMPACTOS E REAÇÃO À CRISE

Transportada para o panorama da gestão sanitária de uma crise pan-


dêmica, que evolui para o gerenciamento de crise sistêmica, a metodo-
logia para esse enfrentamento deve envolver amplos setores da sociedade
civil, governo e empresas, com a adoção de diretrizes sanitárias dos órgãos
e instituições reguladoras. A visão integrativa e holística 110 de ambiente
complexo de governança, por vezes requer a análise de stakeholders ou par-
tes interessadas, buscando-se o melhor posicionamento na mitigação de
riscos em seus contextos respectivos de governança.
A presente escolha de abordagem advém da superação tanto do con-
ceito liberal, no qual o setor corporativo se desvencilha de responsabilida-
des não contribuindo para o bem-estar social pois não seria seu papel em
um livre mercado, tampouco afiliamo-nos a uma visão crítica, apontando
a responsabilidade exclusiva dos setores capitalistas de exploração, para
lhes imputar taxas e multas contributivas para restauração socioambien-
tal, quanto aos novos modelos propostos dos novos modelos sustentáveis.
Desta forma, opta-se por uma visão política atualizada, que agregue pes-
soas, instituições e sociedade, rumo aos interesses coletivos, criando-se a
perspectiva do valor compartilhado, conforme Porter e Kramer (2011)111,
o shared value, o que se aproxima da visão de responsabilidade socioam-
biental, dever de todos.

110 O BCI (2005) define, então, gerenciamento da continuidade do negócio (business con-
tinuity management – BCM) como um processo de gerenciamento holístico que identifica
potenciais impactos e ameaças a uma organização e fornece a ela uma estrutura de tra-
balho que a possibilite se adaptar às situações de crise e uma habilidade de ser capaz de
responder efetivamente à crise, a fim de salvaguardar os interesses das partes envolvidas, a
reputação, a marca e as atividades que agregam valor. (CALIL, 2009, p. 44).
111 PORTER, Michael E, KRAMER, Mark R. Criação de valor compartilhado. Em: <https://
hbrbr.uol.com.br/criacao-de-valor-compartilhado/>. Acesso em: 03 de junho de 2020.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

a. Implicações para a governança pública: Aspectos


conjunturais e político-econômicos

A partir da conflagração do evento crítico e disparo das medidas de


contenção e mitigação de riscos por situação externa, tem-se instalado o
estágio de medidas emergenciais nos múltiplos planos da administração
pública, englobando esferas diversas da máquina estatal. Conforme Bucci
(2013), o Estado pode realizar ações e políticas públicas emergenciais em
planos distintos da administração, de modo a possibilitar avanços em seto-
res a serem privilegiados:

O plano macroinstitucional compreende o governo propriamente.


No extremo oposto, plano microinstitucional, considera-se a ação
governamental como unidade atomizada de atuação do governo.
Na posição intermediária, o plano mesoinstitucional, analisam-se os
arranjos institucionais, ação governamental agregada em unidades
maiores. Enquanto o plano macroinstitucional tem por objetivo a po-
litics, os planos meso e microinstitucionais focam as policies, distin-
guindo-se entre eles apenas a chave de análise (BUCCI, 2013, p. 37).

Como medidas reativas para controles dos impactos da pandemia de-


vido à restrição na circulação de pessoas e serviços, ainda são abrangi-
das medidas keynesianas no plano econômico, com injeção de medidas
monetárias para ajuda dos mercados, empresas e trabalhadores atingidos
pelo cataclisma. Historicamente, a necessidade de regulação dos mercados
remonta do pós-crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, quando a crise
econômica afetou homogeneamente o sistema financeiro mundial de uma
maneira devastadora, pela primeira vez na história moderna. A partir daí,
grandes corporações e bancos americanos verificaram a necessidade de
um debate mais aprofundado sobre a conformidade dos processos, com
espaço de influência na Europa, principalmente em relação ao combate
à corrupção, o crime internacional e à lavagem de dinheiro . Acrescenta
Bucci (2013, p. 275):

[...] o Estado pode atuar sobre a economia de forma mais estru-


turante, por meio da criação, na norma instituidora do programa

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F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

de ação, de categorias de relações e negócios jurídicos, o que sig-


nifica posições subjetivas também para os entes privados, passíveis
de gerar resultados econômicos. Trata-se da chamada “função
distributiva” do direito, que se acresce às funções tradicionais, de
regulação e controle. Essa é a função por meio da qual aqueles que
dispõem do instrumento jurídico atribuem os membros do grupo
social, sejam esses indivíduos ou grupos de interesse, os recursos
econômicos e não econômicos de que dispõem.

No Brasil, o auxílio emergencial aos informais e desempregados


passou a ser distribuído à população, com utilização do cadastro de be-
neficiários de programas sociais do governo social e implementação do
pagamento através da Caixa Econômica Federal (CEF). Várias institui-
ções bancárias suspenderam parcelas de empréstimos em andamento e o
governo baixou a taxa de juros para patamares inéditos no país. Ainda, a
adoção da suspensão de contratos de trabalho ou diminuição de horas,
como incentivo regulatório às empresas foi outro fator posto em prática
no campo legislativo 112.
No plano geoeconômico, a pandemia do novo Coronavírus (CO-
VID-19) primeiramente causou o efeito de chacoalhar a economia do pla-
neta , com uma queda generalizada das bolsas de valores internacionais,
bem como seus efeitos no mercado brasileiro. Fala-se de uma volatilidade

112 Na composição dos arranjos institucionais, o governo dispõe basicamente dos recursos
oriundos da arrecadação tributária. Além disso, tem poder deliberativo sobre a utilização
do crédito público, bem como a possibilidade de manejar mecanismos de renúncia fiscal, os
quais podem beneficiar de maneira distinta setores ou atividades. E também a possibilida-
de de influir sobre a orientação de investimentos de fundos públicos ou com participação
do Poder Público, na proporção desta, observada a representação nos seus órgãos deli-
berativos. Dispõe, assim, de poder sobre os meios fiscais, alocados no orçamento público
em rúbricas vinculadas aos programas, e detém disponibilidade, nos termos da legislação,
sobre os orçamentos de investimento das empresas públicas e poder deliberativo sobre a
utilização dos recursos das agências oficiais de fomento, responsáveis pelas políticas de estí-
mulo à produção ou à inovação, tais como, no Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) ou a Agência de Financiamento de Projetos (FINEP), no campo
da ciência e tecnologia. Devem-se considerar, ainda, o acesso a crédito em bancos públicos,
bem como o acesso diferenciado a compras governamentais e mecanismos similares (BUC-
CI, 2013, p. 275).

343
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

somente vista em crises agudas, como o crash de 29 113, a black monday de


1987 e a crise do subprime de 2008, nas quais os mercados envergaram em
depressões nas cotações de ativos na ordem de mais de 50%. Os “cisnes
negros”, conforme jargão do setor, são experiências traumáticas que po-
dem gerar quebradeiras e crises de liquidez, em geral seguido do chama-
mento de governos para salvar a economia por meio de um rol variado de
instrumentos monetários para apaziguar os ânimos, nem sempre sendo
uma estratégia com garantia de sucesso. Alguns falam em um longo pe-
ríodo de depressão econômica a consolidar-se nos próximos tempos. Já
a consultoria Mc Kinsey114 pontua três possíveis cenários básicos para o
plano econômico: “recuperação rápida, desaceleração global e pandemia
com recessão global. O planejamento do cenário é importante para gover-
nos e empresas, mas permanece longe de ser claro qual desses cenários, se
houver, prevalecerá”.
De outra banda, quanto ao ponto de vista sanitário, em geral re-
comenda-se a diretriz da Organização Mundial da Saúde (OMS) à po-
pulação, com vistas a manter os índices de contaminação baixos ou sob
controle, pressupondo-se o isolamento social, com a recomendação para
que as pessoas evitem aglomerações e fiquem em casa. Houve o monito-
ramento dos índices de isolamento passaram a ser fornecidos pelas opera-
doras de telefonia celular, apontando a média de pessoas que respeitam a
recomendação.
Todavia, tal direcionamento no Brasil tem enfrentado controvérsias,
que enfrenta inúmeras pelejas políticas enfrentadas durante a pandemia,
com efeitos econômicos e fiscais para a nação, ruídos de disseminação

113 [...] com a evolução que se sucede à Segunda Guerra Mundial e a perspectiva de
exaustão do paradigma belicista como representação de poder na arena mundial e fator
de desenvolvimento econômico das nações militarizadas, a evolução dos papéis institucio-
nalizados do Estado passa a conferir relevo, ao lado do monopólio do uso da violência, ao
monopólio do uso dos meios públicos, em função das demandas dos agentes econômicos,
polarizadas com as pressões por serviços e benefícios. Os instrumentos e a linguagem eco-
nômicos penetram crescentemente o direito. As próprias sanções, tanto punitivas como
premiais, passam a expressar-se cada vez mais na forma econômica (BUCCI, 2013, p. 274).
114 IGCN - International Corporate Governance Network. Coronavirus as a new systemic
risk: implications for corporate governance and investor stewardship. In: <https://www.
icgn.org/coronavirus-new-systemic-risk-implications-corporate-governance-and-investor-s-
tewardship>. Acesso em: 03 de março de 2020.

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F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

de fake news por grupos e correntes ideológicas e recentes conflitos entre


União, governadores e prefeitos, acerca de sua competência.
Alguns países adotaram sistemáticas de lockdown ou trancamento da
população, com proibição de abertura de comércio e serviços não essen-
ciais. Ainda, o controle de fronteiras, proibição de vôos vindos de países
afetados e uma gama de estratégias lançadas para conter a contaminação
em massa, com vistas a arrefecer a utilização da rede hospitalar das locali-
dades atingidas.
Experiência inovadora foi posta em prática no estado do Rio Grande
do Sul, que impôs bandeiras de medição de riscos baseadas em fatores
como número de infectados e disponibilidade de UTIs em diferentes re-
giões de seu território. A partir daí, mais ou menos atividades profissio-
nais são liberadas para sua execução. Como resultado até o momento, o
estado mantém um certo equilíbrio entre prevenção e regularidade no
desempenho das atividades econômicas. Nessa mesma toada, o estado de
São Paulo também articula um plano de retomada gradual das atividades
econômicas.
Outras mediadas, contaram com certo grau de polêmica, como a li-
beração de presos pertencentes ao grupo de risco da doença (idosos, por-
tadores de doenças autoimunes e pulmonares) e fraudes no campo das
licitações também trouxeram à tona fraudes e falta de transparência, como
foi o caso de compras de equipamentos super faturados, com atuação de
órgãos de controle e a identificação de responsáveis para brecar desvios.
Portanto, desejável que os mecanismos de auditoria jurídica para fins táti-
co-estratégicos. Conforme Blumen (2015, p. 22):

Os controles internos impõem-se como obrigatórios não só para


diagnosticar/sanear as causas dos erros, fraudes e irregularidades.
É para o setor de controle interno/compliance que as denúncias
e violações dos códigos de ética/conduta devem ser encaminha-
das para diagnóstico, análise, tratamento e elaboração de planos de
ação. As fragilidades dos controles internos deverão ser detectados
com auditorias regulares. Ações preventivas são sempre necessá-
rias para antecipar falhas, condutas antieconômicas ou antiéticas.
A supervisão do risco associado ao negócio é fundamental para
se ter clareza de quais processos críticos e relevantes deverão ser

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

examinados com prioridade. A gestão dos riscos identificados e a


resposta da organização a esses riscos é condição básica para uma
boa prática de governança.

Em meio a esse caldeirão de medidas reativas a um risco não total-


mente mensurado pelos gestores, ainda restam dúvidas sobre a retomada
econômica e a volta dos serviços e a rotina das cidades pelo mundo. Ainda
há dúvidas sobre a imunidade adquirida da população curada e eventuais
novas ondas de contaminação ainda não estão descartadas. Há necessidade
da ampliação de testes. O novo normal parece que estará presente pelos
próximos tempos, no Brasil e no mundo.

b. Redesenho de processos e situação de contingência


na governança corporativa: Saídas para a recuperação
pós-pandemia

O cenário para as corporações em termos de gestão de riscos e seu


controle emergencial em sede de gerenciamento de crise não se difere
muito dos utilizados pelos governos, adaptando-se às peculiaridades de
seus respectivos setores, sendo recomendadas medidas para mitigação de
riscos e elaboração de planos de contingência. O grande desafio da crise
em questão foi a abrupta disseminação dos casos, o que deixou um certo
grau de imprevisibilidade na demora acerca da identificação de riscos e
alocação de recursos para a adoção de medidas para o combate à pande-
mia.115
Visando contornar tal situação, a postura das empresas deve ser confi-
gurada para a melhor gestão de riscos possível, sendo apresentada tal con-
juntura116. O gerenciamento de crise possui papel fundamental, havendo

115 Uma crise pode ser inevitável; no entanto, um plano eficaz de gerenciamento de crises
e um programa de gerenciamento de riscos corporativos, juntamente com uma forte redu-
ção de custos e mitigação de riscos, podem ajudar a detectar e prevenir a crise antes que ela
aconteça. Embora as empresas não possam prever quando uma crise ou um evento do cisne
negro pode ocorrer, os conselhos devem preparar sua organização para ter a capacidade de
reagir e se recuperar de uma crise com resiliência e força. In: EY GLOBAL. The board’s role in
confronting crisis. In <https://www.ey.com/en_gl/webcasts/2018/09/how-the-board-ma-
nages-crisis>. Acesso em: 03 de junho de 2020.
116 Uma crise corporativa pode afetar a cultura organizacional, os negócios, as operações

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necessidade prévia da idealização de mapeamento de riscos, para a partir


daí, configurar-se a melhor estratégia para minimizar perdas, usando-se
as etapas de identificação, análise, tratamento, monitoramento e avaliação
de resultados. Conforme normas de auditoria de processos, os níveis da
organização possuem papéis específicos (linhas de defesa) que interagem
com tais fases, em espectro estratégico, tático e operacional, visando a
continuidade dos negócios.
Já a idealização de planos de contingência durante um evento sensível
(interno ou externo), trata-se de matéria atinente ao guarda-chuvas do
gerenciamento de crises e controle de riscos, fatores fundamentais para a
governança - quando esta se vê num contexto ampliado. Com efeito, de-
verá estar claro dentro das atribuições e papéis dentro das empresas, sobre
as dinâmicas inerentes às rotinas exercidas por seus colaboradores e quais
processos poderão ser modificados, adaptados, aprimorados ou extintos,
visando a proteção dos conglomerados neste momento crítico para os ne-
gócios. Conforme Chadha e Oord (2020)117:

Ao avaliar um risco imprevisto, como o surgimento de uma crise


global de saúde, o conselho e a administração devem avaliar os pos-
síveis impactos na cadeia de suprimentos global da empresa e em
suas operações. As premissas da gerência de testes de pressão sobre
as possíveis implicações financeiras, estratégicas e operacionais são
críticas para enfrentar com sucesso uma onda de turbulência eco-
nômica. [...] Eles devem manter conversas francas com a gerência
sênior para estabelecer expectativas claras sobre seus respectivos
papéis e responsabilidades em uma crise. Isso ajudará a reduzir o

e a reputação - todos com ramificações financeiras, legais e regulamentares significativas.


Portanto, um programa de gerenciamento de crises deve reunir uma variedade de partes
interessadas que possam entender as implicações potenciais de um plano de ajuda e re-
cuperação de uma crise. O programa deve ser gerenciado por alguém com profunda expe-
riência jurídica e de conformidade, capaz de gerenciar as respostas operacionais e táticas
do dia-a-dia. Ele também deve alinhar estreitamente os líderes de comunicação interna e
externa para garantir que as decisões e mensagens sejam clara e diretamente articuladas
aos principais públicos (Tradução do autor). In: EY GLOBAL, op. cit.
117 CHADHA, Reaa. OORD, Friso van der. Confronting COVID-19: Actions Boards Should
Take. In: <https://blog.nacdonline.org/posts/covid-19-board-action>. Acesso em 03 de ju-
nho de 2020.

347
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

risco de qualquer dinâmica prejudicial à administração da diretoria


e a melhorar o tempo de resposta quando a crise aumentar peri-
gosamente. Protocolos adequados devem ser desenvolvidos com
relação às informações que os diretores devem receber assim que a
crise ocorrer. Os conselhos devem garantir que eles recebam atua-
lizações relevantes e oportunas para entender como os negócios
estão sendo afetados. [...] Isso se torna um verdadeiro desafio para
decidir o que divulgar aos investidores sobre a exposição ao risco e
determinar o que é material, porque o impacto do risco pode mu-
dar rapidamente se o vírus interromper mais mercados e regiões
(Tradução do autor).

Um estudo118 do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corpora-


tiva) trouxe as percepções de vários gestores acerca das medidas previstas
e implementadas pelos conselhos de administração, quando ficou consta-
tado que nem todos seguiriam planos robustos de contingência, visto ser
uma área ainda em desenvolvimento no país. As áreas mais reagentes aos
primeiros sinais da crise nas empresas foram os setores financeiro, pessoas
e comunicação. Já a EY Global apresenta o documento The board’s role
in confronting crisis119, no qual aponta o papel recomendável das principais
partes interessadas na condução de uma crise, como a que se atravessa no
momento. Como exemplo para tais medidas, o CEO deve estar envolvi-
do no gerenciamento da crise, com ativação da equipe de gerenciamen-
to, reunindo informações adequadas para mitigar seus efeitos. A seguir,
o diretor de operações deve avaliar impactos em clientes, fornecedores e
outras partes afetadas, visando planos de recuperação e continuidade de
negócios. O conselho interno e externo interage e verifica a conformida-
de, com respostas aos interessados. Outra pessoa fundamental é o CRO
(Chief Risk Officer), com avaliação de riscos e impactos, ao lado do Dire-

118 O IBGC, por meio dessa pesquisa, se propõe a compreender como os administradores
estão lidando diante ao cenário de incertezas causadas pela pandemia da COVID-19 (coro-
navírus). Além de apresentar uma visão das medidas que as empresas têm adotado – ou
não – visando ao enfrentando da crise. In: Pesquisa Covid-19 (Coronavírus) Gerenciamento
de Crises e o Papel dos Administradores nas Organizações. IBGC. <https://conhecimento.
ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.aspx?PubId=24211>. Acesso em: 20 de maio de 2020.
119 IGCN, op. cit.

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tor Financeiro (CFO), para provisionamento de despesas e financiamento


para contingências. Conforme salienta a EY Global, em seu comunicado
ao mercado, sobre a importância da convergência de esforços para a boa
montagem de um gabinete de crise:

O gerenciamento de crises envolverá uma variedade de partes ex-


ternas, como advogados externos, reguladores, consultores tercei-
rizados e / ou investigadores (particularmente se o gerenciamento
estiver envolvido na crise) e agências de aplicação da lei. Um pro-
grama de resposta centralizado ajuda a proteger um fluxo oportu-
no e coordenado de informações para esses grupos, que integra o
conhecimento das principais partes interessadas internas120.

A partir da segunda quinzena de março de 2020, com as medidas de


isolamento adotadas em todo o mundo, houve o fechamento generaliza-
do de escritórios, fábricas, comércios e serviços não-essenciais. Tais atos
foram sucedidos também por números recordes de demissões em todos os
setores, com previsão de perdas profundas de faturamento nos negócios e
falências entre os setores mais afetados. O valor de mercado de ativos de
empresas caiu drasticamente em um primeiro momento e não há previ-
são de melhora econômica para os próximos meses. Isso afetaria o PIB
e a arrecadação dos governos, com impacto na poupança popular e na
depreciação das divisas cambiais das nações. O Real foi uma das moedas
mais afetadas pela crise, com desvalorização perante o dólar e mesmo en-
tre os países emergentes, o que acende a luz vermelha para instabilidades
e problemas logo à frente. O ouro, ativo de segurança em momentos de
incerteza, brilhou como nunca. Corrobora o IGCN (2020)121:

A primeira prioridade para gerentes e conselhos será garantir a


sustentabilidade financeira da própria empresa. Os investidores
também devem entender que as questões de alocação de capital
podem surgir onde é necessário comprometimento. As empresas
podem ter que escolher entre cortar pagamentos de dividendos,
cortar gastos de capital ou cortar custos, possivelmente levando a

120 In: EY GLOBAL, op. cit.


121 IGCN, op. cit.

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P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

redundâncias. Os investidores devem demonstrar apoio às empre-


sas à medida que enfrentam ameaças financeiras potencialmente
agudas e pressões do mercado. Os investidores também devem
evitar incentivar as empresas a assumir riscos indevidos que pos-
sam fornecer benefícios a investidores de curto prazo, mas tam-
bém comprometer a estabilidade financeira de uma empresa ou a
sustentabilidade de seu modelo de negócios. Isso reflete não apenas
algum nível de interesse próprio esclarecido, mas também o im-
perativo moral de contribuir positivamente para as ameaças mais
amplas à saúde pública e à estabilidade social.

O papel do gestor, no momento conturbado do panorama econômico


deverá ser proativo, visando identificar fatores de riscos e mapear aqueles
que influenciam diretamente seu negócio. A natureza do negócio é fun-
damental para definir tais diretrizes. Por exemplo, setores como o turismo
e comércio de rua estão sem previsão de retorno, tendo suas previsões de
renda reduzidas a zero. Deverão ser buscadas alternativas, como vendas
online para comerciantes e planos de redução de despesas para aqueles ne-
gócios que ficaram inviabilizados a curto prazo. Aluguéis devem ser rene-
gociados dentro das possibilidades, eventualmente sob o abrigo do poder
judiciário, que poderá encarar o descumprimento do contrato como uma
exceção para o inadimplemento, com vistas a um acordo melhor para as
partes envolvidas.
Note-se que a análise da cadeia de valor é importante fator para o
redesenho de empresas e indústrias. Algumas empresas têxteis, por exem-
plo, remodelaram seus parques industriais para produção de máscaras pro-
tetoras. Empresas de bebidas adaptaram suas máquinas para a produção de
álcool gel. Pesquisadores desenvolveram respiradores hospitalares em uni-
versidades e locadoras de veículos estão concedendo descontos generosos
para motoristas de aplicativos permanecerem com os automóveis.
Cabe lembrar que a disseminação do trabalho em home office foi ado-
tada em larga escala pelas empresas, num movimento de expansão tec-
nológica que parece não ter volta. Ademais, as empresas de tecnologia
compuseram um rol de empresas resilientes que passaram incólumes pela
crise. Outros setores, como os exportadores também saíram ganhando
com a alta do dólar. Como toda a crise e seus riscos, há aqueles que pos-

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sam ser aproveitados como oportunidade e fator de contrapeso (hedge),


representados por demandas até então represadas e agora reveladas, que
podem favorecer novas oportunidades de negócios.

c. Mitigação de riscos e o papel esperado do cidadão:


Apontamentos para um “novo normal”.

Acaso pudesse ser medida a efetividade individual de uma função de


compliance sócioambiental nesse cenário devassado pela pandemia poderia
ser objeto de um ensaio antropológico completo apenas tratando-se sobre
as implicações socio-psíquicas coletivas carregadas de constante aprendi-
zagem e estado de alerta permanente. Trata-se de cenário difícil e carrega-
do de tensão, com recepção da pandemia em terra brasilis nem sempre den-
tro de um grau aceitável de previsibilidade de riscos. Desde o começo da
pandemia, o indivíduo - enquanto parcela de uma coletividade na vida em
sociedade - deve ser tratado como parte frágil em meio a um turbilhão de
notícias, interesses e dinâmicas que muitas vezes fogem à sua compreen-
são, percebendo-se sua posição de menor acesso a uma efetiva orientação
para o controle de riscos. Dessa forma, faz-se necessário o redesenho de
uma matriz de riscos até mesmo para o cidadão comum, considerando
suas peculiaridades e novas ameaças ao seu cotidiano a partir de então.
Primordialmente, do ponto de vista sanitário, portanto, principal
preocupação do cidadão comum deve ser no sentido de se proteger contra
o vírus, buscando não alimentar o ciclo de contágio, ajudando a diminuir
as taxas de mortalidade e arrefecer a pressão sobre as redes hospitalares.
Ademais, não poderia ser diferente a postura individual dos cidadãos, que
são agentes ativos para a prevenção, mas afetados pelas novas condições
sociais e econômicas da situação causada pela disseminação do vírus. Ain-
da assim, as recomendações para a preservação do tecido social seguem
sendo divulgadas pela mídia, governo e empresas, no intuito de diminuir
o contágio e a proliferação do vírus nas esferas de convívio da sociedade.
Atualmente, o modelo para medidas sanitárias comporta a recomendação
para o distanciamento social, com adoção da obrigatoriedade do uso de
máscaras pela população e uma série de medidas preventivas, em âmbito
municipal, estadual e federal. A higienização de mãos, objetos e lugares de
circulação comuns é fator adicional de preocupação e talvez permanecerá

351
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

por um longo tempo até o aparecimento de vacinas, visando a imunização


da população mundial.
O conceito de saúde é o que a Organização Mundial da Saúde (OMS)
elaborou em 1947, que define o termo como "um estado de completo
bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou en-
fermidade". Dessa forma, o indivíduo deve buscar condições para atingir
tais quesitos, ainda que em tempo de confinamento, por vezes com seu
sustento ameaçado ou reduzido, enfrentando adaptações em suas rotinas e
lidando com fatores de vulnerabilidade122.
Não obstante, a metodologia de quarentena, proposta pela OMS e
adotada para tratamento coletivo e prevenção da doença enfrentou bas-
tante controvérsia, devido aos níveis irregulares de mobilização para o
isolamento observados, ocorrência contraditória em pronunciamentos de
autoridades e aglomerações em locais públicos. A atuação individual - mas
de foco permanente à preservação coletiva - é, portanto, um dos fatores
fundamentais para uma retomada consciente da economia em um novo
cenário de atitudes e ética coletiva. Visando serem evitadas as cenas cada
vez mais comuns vistas pelo mundo, como enterros coletivos de cadáveres
em valas comuns de cemitérios e outros verdadeiros cenários de guerra,
como os caminhões do exército carregando caixões na Itália, a calamidade
nos hospitais do norte do Brasil e o sofrimento pela perda irreparável de
entes queridos, todos os dias. A contagem de vítimas não para de subir e
o problema parece longe de ter fim. É hora de cada um fazer sua parte,
buscando mitigação de riscos coletivos e a disseminação do vírus.

122 Nesse cenário de fragilidade, materializam-se os efeitos da COVID-19, por exemplo,


quando optamos pelo isolamento social em casa. Opção que vem revelando desafios, so-
bretudo para as mulheres e que tem pressionado as políticas públicas envolvidas no enfren-
tamento à violência contra as mulheres. Além da violência que aumenta com a quarentena,
o fato das pessoas estarem em casa escancara a desigual economia do cuidado, em que a
responsabilidade e sobrecarga do trabalho doméstico e dos cuidados com doentes, criança
e idosos são das mulheres. BEVILACQUA, Paula Dias. Mulheres, violência e pandemia de
coronavírus. In INSTITUTO RENÉ RACHOU <http://www.cpqrr.fiocruz.br/pg/artigo-mulhe-
res-violencia-e-pandemia-de-coronavirus/>. Acesso em: 03 de junho de 2020.

352
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo desvela e permite, por fim, a compreensão de seu


objeto que circunda a gestão de riscos e compreende a complexidade de
efeitos e consequências do advento e magnitude epidêmica sobre pratica-
mente a totalidade dos aspectos da vida cotidiana no mundo contempo-
râneo.
Ora, primeiramente, cumpre destacar a dificuldade, ainda que não
totalmente excluída em prever a magnitude de um evento de tal porte.
Portanto, o risco apesar de improvável, representa o poder de reação efeti-
va em caso de concretização de tal evento. O princípio da não eliminação
da probabilidade, ainda que fora da curva, foi em tal caso um diferencial
para sobrevivência neste episódio. Aquele que antevê uma remota possi-
bilidade de ocorrência, consegue se preparar, suportar e gerenciar melhor
suas condições durante uma crise.
Dessa forma, a melhor estratégia para o contexto em tela é a organi-
zação prévia de uma matriz de riscos estudada e testada, sob o enfoque de
seu core business. A adoção de modelos de gestão de riscos e a correta im-
plementação de seus aspectos operacionais são de extrema valia e podem
amenizar perdas em cenários de impacto e imprevisão. O calcanhar de
Aquiles no caso estudado no presente artigo foi a confluência de diversas
ondas conjunturais que aumentaram o contexto de crise, acentuando a
criticidade de seus impactos, em suas inúmeras manifestações.
A partir daí, conforme retomada dos fatores produtivos, bem como
da adoção de medidas de prevenção e condução, visando curvas gráficas
de recuperação em “V”, “U” ou “K”, conforme o ativo. Contudo, sem
excluir impactos de novas crises ou uma recessão geral ou concentrada, a
depender de determinadas áreas, territórios ou setores.
Cabe, portanto, a cada uma das partes - empresas, governo e indi-
víduos - um momento de lucidez, com a união de esforços, visando a
superação de tais momentos de dificuldade, com a identificação de opor-
tunidades para virar o jogo e buscar um melhor posicionamento para a
sobrevivência de suas atividades, pessoais ou profissionais. Para tanto, bus-
ca-se o mapeamento correto de uma matriz de riscos bem calçada para o
enfrentamento da crise. Aqueles que regularem da melhor forma a go-

353
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

vernança, seja em termos amplos, coletivos ou individuais, comerciais ou


não, passarão mais fortes para o futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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SPINK, M. J. P. Trópicos do discurso sobre risco: risco-aventura como


metáfora na modernidade tardia. Cadernos de Saúde Pública, 17(6):
K1277-1311, nov.- dez., 2001.

VILLAS BOAS FILHO, Orlando. A governança em suas múltiplas for-


mas de expressão: o delineamento conceitual de um fenômeno com-
plexo. Revista Estudos institucionais, Vol. 2, N. 2, 2016.

355
RESUMOS

357
ABORDAGEM DOS DIREITOS
HUMANOS INDIVIDUAIS EM
RELAÇÃO A PANDEMIA DO
COVID-19
Carlos Roberto Tencarte123
Cristina Lacerda Soares Petrorolha Silva124

INTRODUÇÃO

Com a pandemia COVID 19 e as comorbidades e letalidade da mes-


ma, o Brasil viu-se a frente da necessidade de aplicar sanções sobre as
situações de aglomeração, podando o direito de ir e vir dos cidadãos, para
o preparo da Saúde Pública frente a demanda que seria originada à partir
da infecção do SARS-CoV-2.
Essas medidas foram amplamente discutidas e na busca de legisla-
ção pertinente pode-se encontrar subsidios legais, considerando-se que o
Direito Comunitário sobrepassa o Direito Individual, fato esse bastante
interessante para uma sociedade de direito extremamente individulista.

123 Graduando em Direito. Cirurgião Dentista. Especialista em: Odontologia do Trabalho,


Gestão Pública em Saúde, Micropolítica de Saúde, Educação Permanente, Estratégia Saúde
da Família e Gestão do Trabalho.
124 Graduada em Ciências Biológicas. Mestre e Doutora em Genética. Docente na FAISA/
FACILUZ –UNIESP, Ilha Solteira - SP. Graduanda em Direito – UNIFUNEC.

359
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Constituição Federal seu artigo 6º apresenta a Saúde como um


Direito Social, assegurados adiante nos Artigos 196 ao 200. Legislações
secundárias como exemplo a lei 8.080/90 e a 8.142/90 norteiam seu fun-
cionamento em Rede de Assitência e as responsabilidades dos Entes Fede-
rados. No entanto, ao se tratar da pandemia Covid 19 o Sistema Único de
Saúde (SUS) se viu sobrecarregado, uma vez que a sua rede de assistência
se demonstrava insuficiente. Como maneira de diminuir o contágio de-
sacelerar a demanda da assistência, houve a necessidade de implementar
medidas pertinentes para que se diminuisse o contágio enquanto se efeti-
vava o aumento da oferta em Saúde (NORONHA et al., 2020).
Assim, a legislação foi colocada em prática por meio de ações que
visavam a diminuição do contágio desta doença. Entretanto, ao se iniciar
esse processo, emergiram discussões sobre a legalidade destas mediadas
(NOVAIS, 2020) e dos seus efeitos sobre os direitos humanos individuais.
É fato que mesmo em situações de exceção, os  Estados devem permane-
cer atentos ao respeito dos limites constantes na fonte dos Direitos Hu-
manos Universais (MARTINS, 2020), implicando desta forma, na obser-
vância dos preceitos do Pacto de San Jose da Costa Rica e da Convenção
Americana dos Direitos Humanos.
O presente trabalho objetivou realizar uma análise sobre a observân-
cia dos direitos humanos individuais durante o período da Pandemia do
COVID-19 no Brasil.

METODOLOGIA

Utilizou-se a investigação bibliográfica com a finalidade de realizar


uma pesquisa descritiva e analítica sobre o respeito aos direitos humanos
individuais no contexto da Pandemia de COVID-19. Foram consultados
artigos científicos da área do Direito e da Saúde, Estatísticas Oficiais de
Saúde, Normas Legais e outros documentos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Verificou-se que as ações aplicadas de contingenciamento e isola-


mento social estão norteadas pelo ordenamento jurídico, fundamentado
360
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nos Direitos Humanos Universais, sendo que o mesmo já antevia situa-


ções de saúde pública onde os Diretos Comunitários poderiam sobrepor
ao Direito Individual.

CONCLUSÕES

Pode-se concluir que as principais ações implementadas pelos gover-


nantes brasileiros, com o intuito de resguardar a saúde da população frente
aos riscos trazidos pela Pandemia de COVID-19, não feriram os direitos
humanos individuais, pois resguardava os direitos humanos em sua segun-
da dimensão, ou seja os direitos sociais ou comunitários. Assim, tais ações
visaram zelar a saúde da coletividade do povo brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARTINS, Ana Maria Guerra. O impacto da COVID 19 nos Di-


reitos Humanos. A resposta da concenção Europeia dos Direi-
tos Humanos. Termo In: Scielo.mec.pt e-publica. Rev. Eletro-
nica de Direito Público. V. 1, n. 1. Abril, 2020. Disponível em:
<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S-
2183-184X2020000100007>. Acesso em: 04/10/2020.

NORONHA, Kenya Maria Micaela de Souza et al. Pandemia por


COVID-19 no Brasil: análise da demanda e da oferta de leitos
hospitalares e equipamentos de ventilação assistida segundo dife-
rentes cenários. In: Cad. Saúde Pública v. 36, n. 6. 2020. Dispo-
nível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-311X2020000605004&tlng=pt>. Acesso em: 04/10/ 2020.

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais em situação de crise – a


proposito da epidemia COVID-19. e-Pública v. 17, n. 1, p.78-117.
2020. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?scrip-
t=sci_abstract&pid=S2183-184X2020000100005&lng=pt&nrm=i>.
Acesso em: 04/10/ 2020.

361
O ABUSO SEXUAL E O USO DO
CONCEITO DE FANTASIA.
Silvania Lopes dos Santos

INTRODUÇÃO

A fantasia é muito importante de ser estudada, pois para um terapeuta


mais interessa a realidade psíquica, que a factual (CÂMARA, 2011). Com
base nisso, e no crescente número de casos de abuso sexual, esse trabalho
buscou fazer uma revisão bibliográfica dos últimos 10 anos sobre a apli-
cação do conceito de fantasia, por psicólogos ou psicanalistas no enten-
dimento dos casos de abuso sexual. A violência do abuso é um problema
antigo e recorrente, sendo foco de movimentos sociais que resultaram em
leis específicas, a exemplo do ECA, contudo o problema persiste:

Entre 2011 e 2017, foram registrados no Sistema de Informação


de Agravos de Notificação (Sinan), 184.524 casos de violência se-
xual contra crianças (31,5%) e adolescentes (45%). Esse levanta-
mento inclui como violência sexual os casos de assédio, estupro,
pornografia infantil e exploração sexual, sendo 74,2% das vítimas
do sexo feminino e 25,8% do sexo masculino (GALVÃO, 2020).

A solução jurídica para casos de abuso durante a infância é difícil,


pela ausência de provas ou argumentos consistentes, e essas pessoas têm
seu discurso desqualificado. Seriam casos de fantasia? Nesses processos,
com base nas leis atuais, os profissionais da área psicológica são obrigados
a manifestarem seu ponto de vista sobre o abuso sexual (LIMA e POLLO,

362
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2005). A pesquisa buscou responder as questões: como esses profissio-


nais têm tratado a situação de abuso sexual? Como as supostas vítimas são
ouvidas em suas subjetividades e desejos? Portanto, tratar do conceito de
fantasia pode contribuir bastante para o entendimento e análise de várias
situações, não somente as de abuso sexual, mas também as de relaciona-
mentos chamados abusivos em nossa sociedade.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O conceito de fantasia não está muito claro nos escritos de Freud,


além disso, existe uma indefinição entre fantasias inconscientes e as que
são consideradas conscientes. Mas ele diz que a fonte da fantasia é incons-
ciente, o fato da sua origem ser inconsciente é importante para seu destino
(CÂMARA, 2011).
As fantasias produzem sintomas, por causa disso, Freud começou seus
estudos com os histéricos pelo sintoma, que geralmente era o incômodo
que os conduziam àquele terapeuta. Em Fragmentos de análise de um
caso de histeria, Freud trata do sintoma de irritação da garganta de Dora,
que era fruto de sua imaginação (CÂMARA, 2011).
As fantasias são necessárias para os sujeitos, que se servem delas como
uma maneira de se proteger da realidade insatisfatória e, muitas vezes,
traumática, (SILVA e SANTIAGO, 2017).
A fantasia é algo da organização psíquica do sujeito, Freud fala de fan-
tasias primárias, que são: a cena originária, a vidra intra-uterina, a sedução
e a castração, essas fantasias são organizadoras da vida, independente da
história particular de cada sujeito (CÂMARA, 2011).

METODOLOGIA

Durante os dias 25 e 26 do mês de julho de 2020, foram encontrados


apenas 2 artigos nas bases de dados da psicologia e da saúde. No dia 25
realizou-se a busca usando como critério de inclusão: artigos publicados
nos últimos cinco anos -2015 à 2020; que não fossem de revisão bibliográ-
fica, que estivessem disponível gratuitamente e na íntegra em português.
Usou-se as palavras-chave: “fantasia”, “inconsciente”, “consciente”
e “abuso sexual”, usou-se o boleano and. Os artigos deveriam conter pelo

363
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

menos duas palavras-chave no título. Os critérios de exclusão foram: arti-


gos que não fossem científicos, que não estivessem disponíveis na íntegra
e gratuitamente; que estivessem em outro idioma, que não o português e
que fossem publicados em anos anteriores a 2015.
A pesquisa no dia 25, retornou: no Google Acadêmico, 9 resultados,
que foram excluídos, por não serem dos últimos cinco anos, sendo que 2
não continham o ano de publicação. Na revista Psicologia: Ciência e Pro-
fissão 0 resultados. No Lilacs 0 resultados. No Bvs 0 resultados. No scielo
0 resultados. No Indexpsi 40 artigos foram encontrados, mas nenhum se
incluia nos critérios estabelecidos.
Com base nesses resultados, mudaram-se os critérios ano de publi-
cação para os últimos dez anos, isto é; 2010 à 2020, e conter pelo menos
1 palavra-chave no título. Os resultados se mantiveram os mesmos, com
exceção do Scielo que retornou dois artigos, um de 2005, que continha
a palavra sexual no título, (este artigo foi excluído), e outro de 2017, que
continha a palavra fantasia no título. O Google Acadêmico retornou 1
artigo de 2014 que continha a palavra “abuso sexual” no título. Após essa
fase, procedeu-se a leitura dos resumos e dos artigos na íntegra.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A pesquisa encontrou apenas dois artigos que discutem a fantasia, um


trata do trauma do abuso sexual e usa o conceito de fantasia no enten-
dimento das situações de abuso, é de 2014 e foi encontrado no Google
Acadêmico. Este artigo analisa o modo como os casos de abuso sexual são
tratados na atualidade, tanto na clínica como no sistema judiciário, analisa
a situação do terapeuta e do suposto analisando, que só lhe resta o lugar de
passividade e não de autor na situação em questão.
Foi encontrado que as situações de relato de abuso sexual são muito
comuns e geralmente são analisadas como trauma, no qual o desejo do su-
jeito, especialmente o da criança não é considerado, (PIZA e ALBERTI,
2014).
As situações tratadas no artigo mostraram um terapeuta fora de seu
lugar, travado na prática, que não dá voz à criança, como deve acontecer
em uma análise. Significa que este terapeuta apenas obedece ao juiz, fa-
zendo parte da engrenagem como objeto da pulsão escopofílica, na qual o

364
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

representante da lei é ativo e olha, (PIZA e ALBERTI, 2014). O discurso


e a postura de psicanalistas e psicólogos receberam críticas, por se referi-
rem à criança com nomenclaturas que não permitem ao sujeito o lugar de
atividade.
O outro artigo no entanto, é mais teórico, é de 2017, neste, (SILVA e
SANTIAGO, 2017) fazem uma revisão da teoria psicanalítica reafirman-
do, e dando como esperado, maior importância à teoria da fantasia em
relação a de trauma. Explicam que o lugar do deste último é o um evento
que não está no campo dos desejos do sujeito, por isso, seu caráter nefas-
to. Em oposição, a fantasia, que foi vista como algo prazeroso e desejado,
sendo vivências e uma manistação de situações psíquicas paradoxais.

CONCLUSÕES

A pesquisa mostrou o crescimento dos casos de abuso sexual contra


crianças e adolescentes e como a realidade e as mudanças na lei afetam a
prática terapêutica. Mostrou um profissional destituído de sua responsa-
bilidade de auxiliar do analisando na compreensão de seus conflitos. Tal
situação pode ser perigosa para o futuro da profissão e para a sociedade
como um todo, que precisa de um auxiliar na elaboração de suas questões,
por serem inconscientes.
A fantasia foi colocada como constituinte e organizadora do psiquis-
mo, facilitando a vida nos contextos considerados insuportáveis para o su-
jeito. Nela a pessoa pode desejar e viver o que quiser, visto que o contexto
psíquico é ilógico e atemporal.
A análise mostrou ainda um terapeuta estudando a situação do abuso
sexual apenas da perspectiva jurídica, ou seja; unicamente para provar se
o fato aconteceu na realidade ou não. Pelo motivo de todos nós sermos
possuidores de fantasias, a pesquisa encontrou nos artigos esta dificuldade
dos terapeutas em ver o abuso da perspectiva desse recurso psíquico.
É importante salientar que esse trabalho não advoga o abuso sexual,
que enquanto abuso é algo realmente violento, traumático, criminoso e
que não respeita o desejo do sujeito. O trabalho tratou da posição subje-
tiva do sujeito, que deseja e está ativo na cena, mesmo na de violência, o
sujeito está atuando nela, ele não é apenas um objeto, ele tem desejos, sub-
jetividade e atitude, como (PIZA e ALBERTI, 2014), bem mostraram.

365
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

O trabalho revelou que apesar da atualidade dos conceitos psicanalí-


ticos, poucos artigos foram publicados por psicólogos ou psicanalistas nos
últimos 10 anos, usando o conceito de fantasia no esclarecimento das si-
tuações de abuso sexual. Essa situação é preocupante, visto que as estatísti-
cas mostram o crescimento dos casos de abuso sexual, sem no entanto, ha-
ver muitos estudos publicados acessíveis para a compreensão desses casos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Três crianças ou adolescentes são abusadas no


Brasil a cada hora. Disponível em:<https://agenciapatriciagalvao.org.br/
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57-61,   2011 Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?s-
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t=sci_arttext&pid=S1414-98932005000400006&lng=pt&nrm=i-
so>. acessos em:  10 ago. 2020.

PIZA, Luciana; ALBERTI, Sonia. A criança como sujeito e como objeto entre duas for-
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63-85,  Dec.  2014 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?s-
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SILVA, Virgínia Célia Carvalho da; SANTIAGO, Jésus. Do “Embele-


zamento dos Fatos” à “Cicatriz”: Uma Investigação sobre a Fantasia em
Freud. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 33,  e33419,    2017.   Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&-
pid=S0102-37722017000100417&lng=pt&nrm=iso>; Epub 08-Jan-
2018.  <https://doi.org/10.1590/0102>.  10 ago.  2020.  

366
O USO DA MÁSCARA FACIAL NA
PREVENÇÃO DA TRANSMISSÃO DO
VÍRUS RESPIRATÓRIO
Camila Faria dos Santos Dainez125
Rosa Maria Ferreiro Pinto126

Introdução

O uso de máscaras surgiu com a doença conhecida como, COVID


19, denominado SARS-COV-2, um novo coronavírus. E o uso de más-
caras durante essa pandemia tem se tornado um dos fatores importantes
no controle dessa doença. O uso das máscaras tem se tornado um tema re-
corrente e conflitante com relação ao fato de as máscaras terem um efeito
protetor na propagação de vírus respiratórios. Porém, há varias opiniões,
varias instituições e diversas autoridades se manifestando de forma contra-
ria ao uso dessas máscaras.

125 Graduação em Direito desde 2019 pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS),
Graduação em Logística Empresarial em 2009 pela Universidade Católica de Santos (UNI-
SANTOS), Mestranda em Direito da Saúde pela UNISANTA – Universidade Santa Cecilia.
126 Graduação em Serviço Social pela Universidade Católica de Santos (1974), Mestrado
em serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1984) e doutorado
em serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996). Atualmente é
professora da Universidade Santa Cecília UNISANTA, na graduação do Curso de Psicologia e
no Mestrado em Direito da Saúde.

367
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Fundamentação Teórica

Diante de uma crise em que o mundo vive devido o novo coronavi-


rus, foram tomadas medidas não só no Brasil, como em diversos países. A
disseminação da doença foi rápida, e com isso, diversos países se uniram
com a intenção de conter o virus, não propagar infecções e proteger as
pessoas. Uma das medidas foi o uso de máscaras para evitar que doenças
transmitidas por contato e vias de gotículas contaminassem a população.
Experimentos relataram que os micrósporos das máscaras fazem um blo-
queio nas partículas de patógenos ou poeira, ocorrendo assim um efeito
positivo no uso das máscaras, mesmo com dados suficientes, evidencias de
que a eficácia do seu uso não previne a transmissão viral respiratória. Com
isso, o estudo se baseia em uma meta analise para que seja avaliado a pre-
venção e a transmissão do virus respiratório e eficácia do uso de máscaras,
e revisão sistemática.

Metodologia

Para enfrentar o problema, a pesquisa foi com base em revisões sis-


temáticas e meta análise, em estudos publicados no mês de março ate o
mês de outubro do ano de 2020, bancos de dados, incluindo o chinês,
Web Of Science, Biblioteca Chinese (CNKI) além de artigos e revisões
importantes.

Resultados e Discussão

Com base nos 21 tipos de estudos do uso da máscara , envolvendo


8.686 pessoas, onde 13 pessoas foram estudos de casos, 6 foram ensaios
clínicos, sendo benéficos 20% , 13 foram estudos de controle com efi-
cácia de 54% , 12 foram investigando os profissionais da área da saúde, os
outros 4 estudos foram feitos em Hon Kong, na china , totalizando em
asiáticos a eficácia de 64% , 6 estudos foram em países ocidentais, onde a
eficácia atingiu 51% , 12 constaram efeitos benéficos. Foram investigados
o vírus da gripe, sendo benéfico em 27% incluindo o virus H1N1, sendo
benéfico em 51%, 7 estudos foram sobre a síndrome respiratória aguda
grave, denominado como SARS-CoV, e por fim, 1 investigou o SARS-

368
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

-COV2, que não foi benéfico e atingiu 0% de eficácia. Diante desse es-
tudo, dados mostraram que o uso de máscaras em profissionais da área da
saúde tem mostrado uma eficácia na propagação do vírus respiratórios em
56%, reduzindo o risco de infecção por influenza, SARS e o COVID-19
em 45,75,96% com o uso de máscaras.

Conclusões

O presente estudo mostrou a eficácia no uso de máscaras, em parti-


cular a N.95 para os profissionais da área da saúde e máscaras cirúrgicas
ou de algodão de 12 a 16 camadas para a população em geral para que haja
uma prevenção na transmissão do vírus. A proposito, o uso de máscaras
não substitui o distanciamento social e também outras práticas de higie-
ne, como lavar as mãos. Não usar máscaras poderá acarretar riscos para a
população em geral podendo afetar negativamente as respostas oportunas
ao surto. Subsídios governamentais e Políticas de saúde pública adequadas
podem ser necessárias para coordenar crises semelhantes em um futuro
próximo.

Referencias Bibliográficas

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venção de pneumonia infectada por nCoV 2019.  Disponível em:
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Comissão Nacional de Saúde do Prc Aviso sobre a emissão de um novo


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frentamento à epidemia da Covid-19 no Brasil. Epidemiol Serv Saú-
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369
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

KUCHARSKI AJ; RUSSEL TW; DIAMOND C; LIU Y; ED-


MUNDS J; FUNK S. Early dynamics of transmission and control
of COVID-19: a mathematical modelling study. Lancet Infect Dis
[Internet]. 2020 Mar [cited 2020 Apr 8]. Disponível em: <https://
doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30144-4>.

370
OS EMBARGOS NA ADESÃO AOS
TRATAMENTOS MEDICAMENTOSOS
EM DECORRÊNCIA DA BAIXA
ESCOLARIDADE
John Victor Rocha
Anna Luiza Fragoso Guimarães Costa
Laura Alberto da Silva
Denise Mota Araripe Pereira

]INTRODUÇÃO

A adesão medicamentosa é um dos pilares da atenção primária à saú-


de e, por isso, é necessário haver compreensão dos fatores que levam os
pacientes a aderirem ou não ao tratamento estabelecido, de forma que o
médico ou o profissional de saúde assistente possa abordar o tema de ma-
neira estratégica e efetiva (MACIEL et al, 2019)
Hodiernamente, tem-se evidenciado a dificuldade da adesão aos tra-
tamentos medicamentosos por parte da sociedade, principalmente, por
aqueles que possuem baixa escolaridade. Tal adesão é definida como o
grau de concordância entre o comportamento de uma pessoa e as orienta-
ções do profissional da saúde (TAVARES et al, 2016).
Entender tais questões é de suma importância para uma melhor rela-
ção médico-paciente, e concomitantemente a isso, uma melhor compac-
tuação e aderência aos tratamentos medicamentosos, principalmente, nos
casos de doenças crônicas. Por isso, tal estudo tem o objetivo de mostrar
os embargos da adesão aos tratamentos medicamentosos em decorrência

371
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

da baixa escolaridade, visto que, essas informações são escassas no Brasil a


partir de estudos populacionais e que a adesão é determinante na evolução
clínica dos pacientes (MACIEL et al, 2019).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Tentativas de definição do conceito de saúde datam da Idade Antiga


com filósofos definindo o como resultado da relação do homem com o
meio em que vive. Já na Idade Moderna, sob influência do Renascimento,
o corpo humano é comparado com uma máquina, em que a doença é um
defeito que deve ser consertado. Tal pensamento perdurou e foi refor-
çado durante a Idade Contemporânea, principalmente, no início século
XX com o apogeu do capitalismo e a crescente mercantilização da saúde.
Entretanto, antes da metade do século XX ocorreram as duas grandes
guerras mundiais, mudando o cenário e estabelecendo um grande debate
a respeito dos direitos humanos, entre eles a definição de saúde e seu aces-
so. Por fim, em 1948 houve a criação da ONU (Organização das Nações
Unidas) e de sua agência especializada OMS (Organização Mundial de
Saúde), a qual declara a saúde como “um estado de completo bem-estar
físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermida-
des”. Em 1978 deu-se a Conferência de Alma Ata que formulou uma
declaração reafirmando o direito à saúde, em que alguns pontos cabem
ser ressaltados:

II - A chocante desigualdade existente no estado de saúde dos po-


vos, particularmente entre os países desenvolvidos e em desenvol-
vimento, assim como dentro dos países, é política, social e econo-
micamente inaceitável e constitui por isso objeto da preocupação
comum de todos os países.

IV - É direito e dever dos povos participar individual e coletiva-


mente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde.

(Declaração de Alma Ata sobre os Cuidados Primários, 1978)

Apesar desses direitos serem preconizados nos Estados democráticos,


a desigualdade socioeconômica ainda promove distintos acessos à saúde,
que vão desde a dificuldade em conseguir atendimento e medicações até

372
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atendimentos diferenciados pelos médicos em decorrência da escolarida-


de, fator que muita das vezes é condicionante da situação social e econô-
mica do paciente, de forma que os médicos fornecem menos informações
e explicações, não havendo também o estímulo à participação do processo
de tomada de decisões e a questionamentos. Afetando, assim, a adesão e
cooperação ao tratamento.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de caráter transversal, exploratório, com abor-


dagem qualitativa, realizada por meio do Portal Regional da BVS, com
uso de descritores: “adesão do paciente”, “escolaridade” e “cooperação
e adesão do paciente”, combinados através do operador booleano and,
sendo a amostra do tipo não probabilística, delimitada por conveniência.
A pesquisa resultou em 10 artigos, dos quais 5 foram selecionados como
fontes principais para o desenvolvimento deste estudo, após aplicação dos
filtros “disponível”, “português” e “inglês”.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dentre os fatores socioeconômicos que afetam na adesão dos pacien-


tes aos tratamentos de curto e longo prazo, a baixa escolaridade se faz pre-
sente tanto de forma direta quanto indireta em diversos espectros, desde a
confiança em sua eficácia até a compreensão do seu funcionamento. As-
sim, quando analisada a questão medicamentosa, é observada uma relação
inversamente proporcional entre a polifarmacologia e a correta manuten-
ção do tratamento, devido a regimes de medicação complexos que levam
o paciente a tomar diversos medicamentos em distintos momentos do dia.
Tal escala se torna mais evidente em pacientes com grau de escolaridade
entre 0-4 anos, os quais apresentam maiores dificuldades na leitura de
rótulos e bulas dos medicamentos, podendo causar confusão e erros na
hora de se medicar. Da mesma forma, a taxa de escolaridade se correla-
ciona com os fatores econômicos, na medida em que maiores formações
acadêmicas são de praxe associadas com melhores remunerações. Nesse
sentido, pacientes que possuem uma condição financeira mais estável, tem
maior possibilidade de acesso aos medicamentos, mesmo aqueles que são

373
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

garantidos pelo poder público -como os fornecidos pelo Sistema Único de


Saúde (SUS) no Brasil - visto que, por questões logísticas, burocráticas ou
acidentes ocasionais podem levar a indisponibilidade de tais drogas e assim
decorrer na interrupção do tratamento. Outro aspecto observado foram
as diferenças nas relações médico-pacientes vistas nas diversas classes so-
ciais, no contexto de que as menos favorecidas são comumente associadas
às baixas taxas de escolaridade. Assim, a necessidade da não utilização
de jargões médicos somada a uma conversação muitas vezes em linguajar
mais informal e simplificado, faz com que certos profissionais subjugam a
capacidade de entendimento desses pacientes, passando menos informa-
ções ou mesmo não explicando as fisiopatologias das doenças. Tal fato faz
com que haja uma menor desenvoltura da compreensão, credibilidade e
percepção da importância da manutenção do tratamento, o que acarreta
em possíveis desleixos ou abandono deste. Fez-se notória a dificuldade em
achar e selecionar artigos que fizessem correlações entre a escolaridade e o
tratamento de comorbidades, haja vista que a mesma é majoritariamente
embutida como fator secundário dentre os aspectos socioeconômicos (es-
colaridade, renda e ocupação), além de ser encontrada em maior relevân-
cia dentre as publicações acadêmicas de origem estrangeira.

CONCLUSÕES

A adesão medicamentosa é um dos pilares da atenção primária, sendo


definida como o grau de concordância entre o comportamento de uma
pessoa e as orientações do profissional da saúde. Assim, dentre os fatores
históricos que rondam a evolução do conceito, acesso e eficácia dos pro-
cessos da saúde, os aspectos socioeconômicos se fazem presentes muitas
vezes como geradores de discriminação e embargos a uma plena adesão
ao tratamento das doenças. Nesse ponto de vista, a escolaridade mantém
influência tanto direta quanto indireta desde a questão medicamentosa até
a relação médico-paciente, visto que baixas taxas de escolaridade afetam
a maioria das esferas que envolvem um bom cumprimento das exigên-
cias de um tratamento eficaz. Com isso, é possível perceber a importância
de um atendimento, explicação e acompanhamento médico de qualidade
para que sejam mitigados os riscos de erros e abandono do tratamento pela

3 74
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

polifarmácia, falta de recursos econômicos ou não compreensão de sua


importância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo , v. 22, n. 1, p. 57-63, Feb. 1988 .

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PMID: 15653242.

375
A OUVIDORIA HOSPITALAR: UMA
ANÁLISE DA UTILIZAÇÃO DO
MECANISMO DE PARTICIPAÇÃO
E CONTROLE SOCIAL COMO
FERRAMENTA DE GESTÃO EM TRÊS
HOSPITAIS PÚBLICOS
Flávia Aparecida Vaz Silva 127

INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de uma pesquisa qualitativa realizada nas Ouvi-


dorias de Saúde do SUS de três hospitais públicos localizados na cidade de
Belo Horizonte, Minas Gerais.
O interesse em desenvolver esta pesquisa tem origem nas observações
da minha prática profissional, a partir de minha experiência de mais de
uma década na saúde pública, enquanto enfermeira, atuando em processos
assistenciais, gerenciamento da equipe de enfermagem e, desde 2013, na
coordenação do serviço de Ouvidoria Hospitalar da Maternidade Odete
Valadares, instituição essa integrante do complexo de especialidades da
rede FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais).

127 Graduada em enfermagem pela UFVJM, especialista em saúde da família e enferma-


gem do trabalho pelo Centro Universitário São Camilo, mestre em Ciências Sociais pela PU-
C-MG. Atua como docente do Centro Universitário Estácio de BH e enfermeira da Fundação
Hospitalar do Estado de Minas Gerais.

376
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Neste sentido, a ouvidoria se configura como órgão estratégico de


controle social e participação, constituindo-se em um instrumento para a
avaliação e transformação institucional, agindo em função das necessida-
des e sob a ótica do usuário dos serviços de saúde. Relacionar hospitais e
ouvidorias possibilitou a compreensão de que as ouvidorias hospitalares,
no momento atual, são um local privilegiado para também estudar novas
estratégias de gestão.
A produção deste trabalho sobre as Ouvidorias dos hospitais públicos
nas três esferas de poder (municipal, estadual e federal) parece uma grande
oportunidade para refletir sobre o tema e, quem sabe, oferecer alguma
contribuição. Desta forma, esta pesquisa tem como objeto central a inves-
tigação das possibilidades e limites da ouvidoria enquanto instrumento de
participação, controle social e como uma ferramenta de gestão na busca
pela qualidade do serviço de saúde. A nossa hipótese é que, ainda que as
Ouvidorias não funcionem plenamente, o desafio consiste mais em ama-
durecer a utilização desta estrutura institucional e menos em redesenhá-la.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Segundo Vismona (2005), a ouvidoria brasileira se constitui em ali-


cerce do Estado Democrático de Direito com valorização ao cidadão, am-
pliando os espaços da participação e fortalecendo o exercício da demo-
cracia participativa. Ainda como proposto por Santos (2002), a ouvidoria
é um experimento democrático que surge para combater a democracia
hegemônica. Mas é pertinente considerar que não existe uma formatação
única, detalhada e acabada que possa valer para todas as ouvidorias, devido
à diversidade das ouvidorias públicas que comportam diferentes graus de
influência, conforme sua modalidade (LYRA, 2014).

METODOLOGIA

Esta pesquisa foi desenvolvida por meio do Estudo de Caso, uma das
estratégias da abordagem da pesquisa qualitativa, onde foram analisadas e in-
vestigadas as Ouvidorias públicas, nos âmbitos municipal, estadual e federal.
A primeira fase desta pesquisa contemplou a realização de uma pes-
quisa bibliográfica. Posteriormente foi realizada a análise documental,

377
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

em que foram analisados relatórios, regimentos, diretrizes, manifestações


registradas por usuários dos hospitais investigados referente ao período
de junho a dezembro de 2018. Já na segunda fase realizou-se entrevistas
com os diretores, gerentes e ouvidores dos Hospitais públicos, sendo eles
o Hospital São José, João Paulo II e Hospital Risoleta Tolentino Neves.
Foram realizadas 13 entrevistas semiestruturadas, ressalta-se que a amostra
foi definida de acordo com os setores mais demandados das instituições
hospitalares. Foi utilizado como critério para elencar os participantes da
entrevista, os gerentes responsáveis pelos setores mais reclamados dos hos-
pitais investigados.
Para a análise dos dados qualitativos, foram cumpridas as fases de:
pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência
e interpretação. Foi realizada a categorização das informações qualitativas,
que emergiram da pesquisa documental realizada, bem como das entre-
vistas realizadas com os sujeitos da pesquisa e das observações em campo
realizadas, tendo em vista a análise das visões e percepções dos atores so-
ciais desta investigação, em articulação o referencial teórico e bibliografia
adequada, tendo em vista a utilização da análise temática, de onde foram
definidos os seguintes eixos temáticos abaixo:
-Autonomia/competência e funcionalidade/desempenho das Ouvi-
dorias do SUS no universo dos Hospitais Públicos investigados.
- Contribuições e limites das Ouvidorias Hospitalares dos SUS para a
Participação, Controle Social e como ferramenta de Gestão;
Após a categorização mencionada, os dados foram interpretados,
por meio da análise de conteúdo, buscando-se estabelecer uma análise
da atuação das Ouvidorias investigadas, enquanto mecanismos e instru-
mentos de participação, controle social e de gestão, bem como dos limites
relacionados ao exercício destas questões elencadas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As análises basearam-se nos seguintes dados: as transcrições das falas


dos gestores e ouvidores, da pesquisa documental, bem como das obser-
vações realizadas. Consistiu-se na fragmentação do todo em unidades de
significados, que foram agrupadas em temas de análise, apresentadas as
análises e interpretações obtidas, conforme os temas de análise identifi-

378
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

cados nas falas dos sujeitos entrevistados, na pesquisa documental e nas


observações realizadas. Os temas se relacionam com questões que dizem
respeito à competência/ autonomia no universo das ouvidorias, à funcio-
nalidade/ desempenho do trabalho no universo destes espaços, bem como
questões relacionadas às contribuições e limites das ouvidorias nos uni-
versos investigados para a participação, controle social, e enquanto ferra-
mentas de gestão.
Foram analisados, os efeitos sociais desencadeados pelas ouvidorias
hospitalares na perspectiva preconizada por Pereira (2002). Desta forma,
tais efeitos sociais foram analisados a partir da constatação e identificação
nas entrevistas realizadas do reconhecimento das Ouvidorias Hospitalares
por parte de gestores e ouvidores, enquanto espaços de alteração da he-
gemonia de determinadas forças sociais e institucionais, tendo em vista
posturas e posicionamentos relacionados a projetos reformadores na área
de saúde (PEREIRA, 2002). Questões estas evidenciadas nos mecanis-
mos e estratégias utilizadas para divulgação/ comunicação do trabalho das
Ouvidorias, a partir das relações e interações estabelecidas entre gestores,
ouvidores, usuários, bem como com outros atores sociais importantes.
Os relatos dos entrevistados vêm a demonstrar também algumas fra-
gilidades da competência e autonomia das ouvidorias nestes contextos
hospitalares visto que se evidenciam prejuízos a sua legitimidade, uma vez
que se torna necessário o ouvidor cobrar dos gestores as respostas formais
em virtude de não cumprirem com os prazos estabelecidos para a resposta
a manifestação do usuário. Outro aspecto importante evidenciado e que
se articula com as questões relacionadas aos limites ao exercício da auto-
nomia e da competência no universo das Ouvidorias é a identificação do
papel centralizador da gestão que interfere decisivamente na autonomia da
ouvidoria, pois todas as manifestações que são recebidas nesta ouvidoria
devem ser encaminhadas a direção também, além do setor responsável
por responder a demanda. Em consonância com a associação brasileira de
Ouvidorias (ABO) que sempre questionou a modalidade de ouvidorias
subordinadas, “apenas ao dirigente máximo” (OLIVEIRA, 2002).
Nos três contextos empíricos analisados constatou-se a partir das en-
trevistas realizadas que há entre os entrevistados, gestores e ouvidores, a
clara noção de forma unanime, das contribuições das Ouvidorias Hospi-
talares enquanto promotoras da participação e do controle social.

379
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Para todos os entrevistados, gestores e ouvidores, as Ouvidorias hos-


pitalares se revelam como o principal instrumento de aproximação entre
funcionários do hospital e o pacientes, permitindo o foco nas melhorias,
bem como um maior esforço dos profissionais envolvidos, proporcionan-
do um feedback dos mesmos, que se revela fundamental para o plane-
jamento e gestão dos processos e das relações, garantindo processos de
aperfeiçoamento e requalificação , e para que haja um melhor retorno aos
usuários, a partir de serviços prestados de forma mais efetiva e de melhor
qualidade.
Para a maioria dos entrevistados as Ouvidorias revelaram-se impor-
tantes ferramentas de gestão à medida que publicizam os problemas de
execução da política de saúde do ponto de vista local, a partir do olhar e
das necessidades dos usuários, facilitando e possibilitando a observação
dos limites e potencialidades de uma intervenção, através de sugestões,
denúncias ou elogios.

CONCLUSÕES

Tendo em vista alguns eixos temáticos importantes relacionados à


autonomia, competência das Ouvidorias Hospitalares do SUS, à Funcio-
nalidade, Desempenho do trabalho, bem como as contribuições e limites
das Ouvidorias Hospitalares dos SUS para a Participação, Controle Social
e como ferramenta de Gestão, podemos constatar, a partir da pesquisa, nos
três universos empíricos analisados, que estes adotam a Ouvidoria como
instrumentos de avaliação dos serviços prestados aos usuários, permitindo
a introdução de melhorias na atuação de gestores e ouvidores, utilizando
o feedback como mecanismo para elevação da satisfação dos usuários em
relação aos serviços utilizados.
Nas práticas cotidianas de trabalho nos contextos hospitalares ainda
apresentam grandes desafios a serem superados para a funcionalidade e
desempenho do trabalho desenvolvido. Questões essas que são funda-
mentais, uma vez que interferem na qualidade da atenção à saúde e que
podem contribuir para uma gestão dos serviços em saúde que seja efi-
ciente e de qualidade, que possibilite o pleno desenvolvimento humano
dos usuários.

380
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

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VISMONA, E.L. A Ouvidoria no Brasil e seus Princípios. In: A Ou-


vidoria no Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Ouvidores,
2001.

381
CORONAVÍRUS E REFUGIADOS
INDÍGENAS VENEZUELANOS
Thiago Augusto Lima Alves128

INTRODUÇÃO

No mês de dezembro de 2019, houve a transmissão de um novo co-


ronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19, o qual foi identifica-
do na cidade chinesa de Wuhan. No dia 30 de janeiro de 2020 a Organi-
zação Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto da doença causada
pelo novo coronavírus constitui uma Emergência de Saúde Pública de
Importância Internacional e, em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi
caracterizada pela OMS como uma pandemia.
Com a pandemia do novo coronavírus, a situação dos refugiados in-
dígenas venezuelanos, que já era delicada, ficou pior. Se antes já era sabido
que a cooperação conduz a bons resultados, recentemente evidenciou-se
maior necessidade de colaboração e solidariedade entre as nações para o
enfrentamento da pandemia. No Brasil, o combate à COVID-19 tem sido
não apenas um teste para o sistema de saúde e de assistência social, mas um
áspero desafio de fazer funcionar, com maestria, a capacidade brasileira
de trabalhar em equipe, pautando-nos na tutela aos Direitos Humanos.
A pesquisa tem o objetivo de abordar as ações do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados – ACNUR na defesa dos refugiados in-
dígenas venezuelanos que estão no Brasil.

128 Mestrando em Relações Internacionais (UNILA). Especialista em Direito Constitucional


(URCA) e Graduado em Direito (UNIFOR).

382
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Venezuela passa por uma crise humanitária que tem causado efeitos
no Brasil. De acordo com o ACNUR (2020), a partir de 2014, mais de
4,5 milhões de venezuelanos já saíram do país, o que torna essa uma das
mais recentes e maiores crises de deslocamento forçado na Venezuela e no
mundo.
Os refugiados são considerados migrantes internacionais forçados,
que cruzam as fronteiras nacionais de seus países de origem em busca de
proteção. De acordo com a definição do ACNUR, são aqueles que estão
fora de seu país de origem devido a temores bem fundamentados em um
histórico de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, per-
tencimento a um determinado grupo social ou a opinião política, como
também devido à violência generalizada, grave violação dos direitos hu-
manos e conflitos internos; não podem ou não querem, portanto, voltar a
seu país de origem porque não contam com proteção estatal.

METODOLOGIA

A incursão metodológica que possibilita a realização desta investiga-


ção é direcionada por abordagens de pesquisa qualitativa e por método
indutivo. O procedimento metodológico é bibliográfico e documental.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No dia 18 de março de 2020 o Brasil fechou sua fronteira com a


Venezuela, sendo este o primeiro país a sofrer esta restrição por parte do
governo brasileiro. Com as fronteiras fechadas aos não nacionais era de
se esperar que o número de solicitações de refúgio também fosse afetado
pela crise da COVID-19. De acordo com Observatório das Migrações
Internacionais – OBMIGRA (2020), as solicitações de refúgio no mês de
junho registraram alta em comparação ao mês de maio, mas ainda bem
abaixo do observado em junho de 2019 e março do corrente ano, quando
foi emitido o Decreto tratando da pandemia da COVID-19.
O fechamento da fronteira está amparado na Lei nº 13.979, de 06
de fevereiro de 2020, conhecida por “lei de quarentena”, que determina

383
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

ações para o enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus,


como a restrição temporária de entrada e saída do país por rodovias, portos
e aeroportos. A justificativa utilizada pelo governo brasileiro é que o SUS
não iria suportar o tratamento de estrangeiros infectados pelo novo vírus.
No entanto, existem conforme a Agência da ONU para Refugia-
dos, uma população considerável de indígenas que chegam no Brasil. O
número de solicitações de refúgio no País vem crescendo e, atualmente,
65% dos indígenas venezuelanos registrados no Brasil são solicitantes de
refúgio. Existem quatro etnias (Warao, Pemon, Eñepa e Kariña) na região
norte daquele país.
Ao todo são 5.020 venezuelanos indígenas registrados no Brasil, se-
gundo o ACNUR até o mês de junho de 2020. Desse total, 3.305 são
solicitantes da condição de refúgio e 1.715 possuem outro status legal. O
relatório da Agência da ONU para Refugiados ainda trouxe outros dados.
Conforme o documento 66% dos indígenas venezuelanos no Brasil são
da etnia Warao; 30% da etnia Pemon; 3% da etnia Eñepa e 1% da etnia
Kariña.
A população indígena é a mais suscetível a violências entre os grupos
de refugiados e migrantes. Geralmente tem sua cultura confrontada ou são
esquecidos na execução de políticas públicas, que tentam abarcar o máxi-
mo de pessoas possível em seus projetos, esquecendo das especificidades
de cada população. Conforme explicam Moreira e Torelly (2020, p. 45),
“uma das razões que fazem os indígenas saírem da Venezuela é a dificul-
dade de acesso a especialistas em medicina e, às vezes, a medicamentos”.
A migração funciona como uma estratégia de acesso à saúde, porém, ao
chegaram no Brasil encontram uma dissonância entre o Sistema Único de
Saúde (SUS) e o subsistema de saúde indígena (MOREIRA; TORELLY,
2020).
Desde 2017, 80 indígenas venezuelanos já faleceram no Brasil. A
maioria das mortes aconteceram na Região Norte do país – 84% das
mortes –, a faixa etária mais atingida é a de crianças – cerca de 64% dos
óbitos – e a principal causa das mortes de crianças é a pneumonia – 46%
dos falecimentos. Autoridades afirmam que o número é alto porque existe
muita precariedade da situação de moradia e das condições do desloca-
mento da população indígena venezuelana refugiada e migrante, não ape-
nas no Norte como também nos outros estados (ACNUR, 2020).

384
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

Com a pandemia do novo coronavírus a vulnerabilidade dessa po-


pulação aumentou e até junho de 2020, como mostra o relatório do AC-
NUR sobre a população indígena, já aconteceram 9 mortes confirmadas
ou suspeitas de COVID-19. Isso representa 32% do total de 28 mortes
registradas em 2020 pelo monitoramento realizado pelo ACNUR. Ao
todo, 67% dos falecidos são idosos e 19% crianças; duas de cada três mor-
tes registradas de casos confirmados ou suspeitos de COVID-19 ocorre-
ram no Pará.
Além dos problemas de acesso ao sistema de saúde brasileiro, seja por
falta de informação ou documentação, outros problemas são enfrentados
pelos refugiados indígenas. Os dados do ACNUR (2020) mostram que
41% das crianças indígenas estão em situação de risco e que 39% estão
fora da escola, justificando a alta porcentagem de crianças em situações de
risco. Outros problemas percebidos são o alto índice de gravidez na ado-
lescência e o casamento infantil.
O ACNUR busca proteger pessoas em situações de vulnerabilidade
no mundo inteiro. A instituição é vinculada a ONU e conta com a ajuda
dos governos dos países onde atua e de ONG’s. Os refugiados são concei-
tuados pelo ACNUR como aqueles que estão fora de seu país de origem
devido a fundados temores de perseguição por motivo de raça, religião,
nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião
política, como também devido à violência generalizada, grave violação
dos direitos humanos e conflitos internos; não podem ou não querem,
portanto, voltar a seu país de origem porque não contam com proteção
estatal.
Diante dessa situação, a população indígena que encontra-se refu-
giada é a mais afetada. O ACNUR intensificou suas ações para proteção
aos refugiados indígenas como assistência médica, materiais de higiene,
fornecimento de água tratada e informações básicas sobre higiene e dis-
tanciamento social, dessa forma, evita-se a propagação da pandemia nos
campos de refugiados.
A Agência da ONU para refugiados, em parceria com outros orga-
nimos, trabalha para oferecer aconselhamento psicossocial, bem como
medidas para prevenir e responder à violência sexual e de gênero. Este
trabalho realizado pelo ACNUR é muito importante para os refugiados
indígenas que estão no Brasil, tendo em vista que o país é o terceiro país

385
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

do mundo em número de infecções e mortes e não conta com plano efi-


ciente para gerir a crise sanitária.

CONCLUSÕES

Por fim, ficou evidente que o coronavírus tem exigido um esforço


de união. Se antes já era sabido que a cooperação entre os países conduz
a bons resultados, recentemente evidenciou-se maior necessidade de co-
laboração e solidariedade entre as nações para enfrentarmos essa pande-
mia. O Brasil necessita da ajuda humanitária do ACNUR para salvar as
vidas dos indígenas venezuelanos que estão refugiados. Nesse contexto,
as relações internacionais entre os países e instituições não serão – ou não
deveriam ser – as mesmas. Comportamentos de ilhas ou fechamentos de
fronteiras não resolverão nada e só agravarão as crises. No século XXI,
deve-se refutar os achismos, confiar na ciência e enaltecê-la e ampliar a
cooperação internacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Atividades do ACNUR para Populações Indígenas - Junho de
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Brasília, DF: OBMigra, 2020. Disponível em: <https://portaldei-
migracao.mj.gov.br/images/dados/relatorio-mensal/OBMigra_
JUN_2020.pdf>. Acesso em: 16 set. 2020.

386
FALSOS DILEMAS ENTRE SALUD
Y ECONOMÍA. CONSECUENCIAS
NEGATIVAS DE UN DEBATE QUE
AUMENTÓ LAS CONDUCTAS DE
DISEMINACIÓN EN LA PANDEMIA DE
COVID-19: LECTURAS DESDE LAS
CIENCIAS CONDUCTUALES.
Luis Alberto Mellado Díaz129

INTRODUCCIÓN

El presente artículo trata sobre las Ciencias conductuales o compor-


tamentales y una mirada interdisciplinar, a la performance de gestores pú-
blicos y habitantes de determinados territorios, considerando para estos
efectos la literatura que trata sobre los “Nudges”, “Sesgos conductuales” y
la“Arquitectura de la decisión” en el contexto de la Pandemia Covid- 19.
Para ello, inicialmente intentamos localizar los orígenes de esta propuesta
y el Estado del arte al respecto. Para luego, iniciar el estudio de caso sobre
cómo intervinieron los sesgos y creencias en el contexto discursivo y co-
municacional en el inicio de la Pandemia, al igual que como fueron evolu-

129 Bolsista en Unila y ex Bolsista en Lab Cidades (FPTI-BR). Estudiante de Ciencias Políticas
y Sociología, UNILA (2020-2021). Cursó Ciencias Económicas, integración y desarrollo, UNI-
LA (2018-2020), Derecho en Universidad de Chile (2012-2014) y Universidad de Valparaíso
(2009-2011).

387
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

cionando. En especial, en el comienzo de la pandemia, en el debate sobre


implementar o no medidas de confinamiento o apostar por la “inmunidad
de rebaño”. Pero también, en relación de las medidas coercitivas, de res-
tricciones de movilidad, cierres de fronteras, aplicación de multas y hasta
amenazas del uso del Derecho penal. Comúnmente, se piensa que las or-
ganizaciones, ya sean públicas o privadas, así como los individuos que ac-
túan y toman decisiones en ellas, como a su vez quienes son afectados por
las mismas como usuarios o clientes, se encuentran siempre en contexto
de racionalidad económica (“Homo Economicus”), lo cual no es siempre
así. En ese contexto, se pretende hacer una evaluación de cómo podrían
aplicarse los “Nudges” y su utilidad en comparación a medidas mucho
más invasivas y problemáticas, como son las prohibiciones o sanciones,
que muchas veces no consiguen disuadir las conductas reguladas, pro-
vocando consecuencias aún más desfavorables. Dichas cuestiones son de
vital importancia, para quienes se toman en serio los Derechos humanos y
la dignidad de toda persona humana.

FUNDAMENTACIÓN TEÓRICA

El abordaje escogido es de análisis de políticas públicas, proponiendo


lo que se conoce como: “Nudges”, traducido como “pequeños empujo-
nes”. Esto tiene implicancias, en el diseño de la respuesta estatal, como
también de los medios de comunicación de masas y la comunidad cien-
tífica, en dar recomendaciones y persuadir a la población. Destacándose
el rol de la propia población, para tomar determinadas decisiones con la
información disponible, de modo de “empujarlos” hacia determinados
resultados, es decir, actúa en la propia toma de decisiones de manera in-
dividual. Si bien es cierto, ya existió un debate sobre el uso de los “Nud-
ges” en Inglaterra para efectos del Covid-19, estos no fueron aplicados. Se
pretende abordar la cuestión, contrastandola con el resultado del actuar y
el manejo de la crisis con herramientas de política pública tradicionales.
Mostrándose como buena alternativa sobre todo en países en desarrollo
y con menores recursos, tanto económicos como técnicos. Producto que
los “Nudges”, son una herramienta fácil y barata, a diferencia de méto-
dos más problemáticos como sanciones sean administrativas o penales. De
cuestionable efectividad, presentando diversas fallas y discriminaciones

388
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

arbitrarias, en relación a prohibiciones de salir a personas de determinadas


edades (menores de edad y/o adultos mayores), aplicación de multas, de-
tenciones en lugares públicos por parte de fuerzas de seguridad, o incluso,
el uso del sistema penal. Lo anterior, tiene relación con concientizar y
entregar a la población, los conocimientos, actitudes y prácticas necesarias
para prevenir el contagio, de una manera persuasiva y no coercitiva.

METODOLOGIA

Se trata de una investigación de naturaleza exploratoria de carácter


bibliográfica y documental, que consulta un conjunto de obras de natu-
raleza económica como jurídica, como la interacción entre estas ramas de
conocimiento. Con el fin de someter a análisis crítico una revisión docu-
mental, que va desde la prensa escrita, publicaciones de difusión en websi-
tes, como también, de documentos oficiales de la Organización Mundial
de la Salud (OMS) y la respectiva recepción de las recomendaciones en
Leyes, Decretos, Medidas Provisorias y abundante normativa de legisla-
ciones en diferentes países. Derivada de una observación y seguimiento
principalmente de países correspondientes a la región de Iberoamérica, en
el periodo de no período de 9 meses.

RESULTADOS Y DISCUSIÓN

Es posible identificar en diversos países de Iberoamérica dificultades


en el inicio y desarrollo de la pandemia, para concientizar respecto de las
medidas legítimamente cabibles para la prevención y combate de la Pan-
demia del Covid-19, tanto a nivel colectivo, como individual. Un común
denominador, radicó en problemas de credibilidad de los gestores públi-
cos, “falsos dilemas entre la salud y la economía”, como respuestas tardías
y contradictorias. Con alta polarización en la sociedad, fomentada incluso
por teorías conspirativas, una oleada de “fake news”, un aumento agotador
de exceso de información- denominado como “infodemia”- y decisiones
basadas en creencias, que aumentaban la desconfianza y las probabilidades
de incumplir con las recomendaciones dadas a la población, propician-
do un mantenimiento de las cadenas de transmisión del virus, evaluadas
por los epidemiólogos. Una de las razones esgrimidas en dicho debate,

389
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

incluso por gestores públicos de altos escalones en diferentes países, ha-


cia relación con la preocupación del impacto de las medidas sanitarias en
la disminución de la actividad económica y las cadenas productivas. La
cuestión de achatar la "curva de contagio" y la "curva de la actividad económica",
que fueron erróneamente presentadas como competidoras entre sí. Vale
decir, se presentó como poco deseable: a) realizar acciones para evitar los
contagios, b) realizar acciones de confinamientos obligatorios y cierre de
actividades económicas, incluso no esenciales. Una alternativa presentada,
fue la llamada “inmunidad de rebaño”, que fue contestada rápidamente
por intelectuales y la comunidad científica, por considerarla irrespetuosa
de la “dignidad de la persona humana”. Imponiéndose, la que planteaba
que es necesario proteger los dos aspectos, complementariamente. Esto se
denominó la "doble curva" y apeló a esfuerzos importantes por parte de los
Estados para salvar vidas. Aumentando las capacidades hospitalarias, junto
a programas de sustitución de rentas- para quienes la hubiesen perdido o
visto mermadas- como también apoyo financiero a empresas. Lo ante-
rior, implicó una serie de programas de gobierno, mayor gasto público, un
despliegue comunicacional de cobertura a la pandemia. Como también,
la dictación de leyes, decretos (tanto del gobierno central, como local),
actuación de fuerzas de orden y seguridad, aplicación de multas y hasta
amenaza penal, por incumplimiento de normativas de restricción a la libre
circulación. Todo lo anterior, debe ser puesto en análisis de costo-benefi-
cios, con el fin de evaluar alternativas más simples y que requieren menos
recursos económicos, como lo son los “Nudges”.

CONCLUSIONES

Esta reflexión, más próxima al género del ensayo, que la de un artícu-


lo académico, analizó los resultados de la implementación de recomen-
daciones internacionalmente compartidas, como también de diferentes
medidas, leyes y programas de gobiernos centrales como locales, para el
enfrentamiento de la Pandemia de Covid-19, teniendo como foco una vi-
sión crítica desde la visión de las ciencias del comportamiento y cuestiones
tales como: Arquitectura de la decisión, “Nudges” e incentivos que sean
capaces de que las personas prevengan por sí solas, los contagios y no me-
diante amenazas de uso de la fuerza socialmente organizada, para lograr

390
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

el confinamiento de las personas, para evitar líneas de transmisión comu-


nitaria del virus. De esa forma, como conclusión es necesario repensar en
un análisis costo-beneficio y con enfoque de derechos, la aplicación de
medidas coercitivas, que presentaron bajos niveles alcanzados por las cua-
rentenas implementadas, los índices de infractores de las mismas, como
también la falta de una “radiografía social” que previera las dificultades
por parte de personas que consiguen sus recursos en el mercado infor-
mal. dan cuenta que no es recomendable implementar recomendaciones
foráneas, sin una adaptación a las particularidades socioeconómicas tan
dispares de nuestro continente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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392
COVID-19 E FECHAMENTO
DAS FRONTEIRAS: EFEITOS EM
ESTUDANTES INTERNACIONAIS
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA
INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA.
Luis Alberto Mellado Díaz130

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre as problemáticas e


os desafios nessa emergência sanitária, enfrentados pela comunidade aca-
dêmica de estudantes estrangeiros da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA), em Foz de Iguaçu, Paraná, Brasil. Produto
dos impactos negativos na satisfação vital e diferentes dimensões da ativi-
dade universitária dos mesmo, perante as medidas adotadas pelos gover-
nos centrais e locais, da região de fronteira (Foz de Iguaçu, Porto Iguaçu e
Cidade de Leste) pelas implicações da pandemia nas cidades e municípios
da tríplice fronteira Brasileira - Argentina - Paraguaia, respectivamente.
Somados ao fechamento de fronteiras em março e apertura parcial, do
Ponte Internacional da Amizade (PIA) no mês do outubro, acabou sepa-
rando aos estudantes do local de estudo e até de trabalho. Assim também,

130 Bolsista na UNILA y ex Bolsista no Lab Cidades (FPTI-BR). Discente em Ciências Po-
líticas y Sociología, UNILA (2020-2021). Anteriormente Ciências Económicas, Integração e
desenvolvimento, UNILA (2018-2020), Direito na U. de Chile (2012-2014) e U. de Valparaíso
(2009-2011).

393
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

foram atingidos pelas medidas preventivas para respeitar o isolamento so-


cial, adotadas pela própria Universidade, produto da prolongada suspen-
são do calendário acadêmico e das atividades letivas desde o dia 17 de
março até a implementação do Ensino Remoto Emergencial (ERE), des-
de o dia 1º. de setembro a 31 de dezembro, chamado o Período Especial
Emergencial (PEE), com início de aulas no dia 21 de setembro de 2020.
O anterior, tem provocado maiores impactos para estudantes vulneráveis
e migrantes. Muitos deles, com impossibilidade de voltar até seus países,
por causa de interrupção de rotas comerciais para diferentes destinos e
escasso apoio de voos humanitários, gestionados pelos Estados em que
são nacionais. O anterior, traz uma sensação de angústia e desespero, que
foi minorada por políticas de acompanhamento e auxílio emergencial por
parte da Universidade e distribuição de cestas básicas pelo Diretório Estu-
dantil Latino-Americano (DELA). Porém, é preciso uma maior reflexão
olhando para o futuro, para que ditas políticas públicas já sejam nacionais
(isolamento social, limitações de ir e vir, fechamento de fronteiras, proi-
bição de ingresso de pessoas de certas idades a lugares públicos, etc) ou
institucionais (exigibilidade de manter residência no Brasil, cumplimento
e verificaçao de situçao migratoria regular, perda dos auxílios estudantis
em casos previstos pela normativa da PRAE, etc), precisem ser subme-
tidas a um exercício de ponderação com outros direitos fundamentais,
para evitar situações de discriminaçao evitáveis ao estudantes estrangeiros.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A situação pandêmica gerada pelo COVID-19 é, sem dúvida, o even-


to mais extremo que teve que ser enfrentado pelo sociedade até agora
neste século. Tanto pela sua extensão, que tem afetado centenas de mi-
lhões de pessoas, como sua duração de meses e sua continuidade pre-
visível e consequências. A situação de excepcionalidade derivada cobriu
todas as áreas da nossa funcionando como sociedade: relacional, saúde,
economia... E claro, educação (LOZANO-DÍAZ, A. et al, 2020). Na
Unila, implementação do ERE no ano 2020, tem sido muito desafiador
tanto para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), como para
os estudantes, sejam Brasileiros ou estrangeiros. Pelo tanto, é preciso fazer
uma avaliação, contrastada com a informação coletadas pelas IFES até o

394
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

momento. Mas, agora identificando as dificuldades que afetam mais aos


discentes, que voltaram para seus países de origem ou outros Estados dos
Brasil, e se encontram em piores situações pelo transcurrir da pandemia,
seja em relação a sua saúde psicológica ou necessidades tanto econômicas,
como de aprendizagem. Se a instituição não tem conhecimento acerca
das condições de estudo dos estudantes e de trabalho dos professores; das
condições institucionais disponíveis (recursos e tecnologias); e da concep-
ção de ensino-aprendizagem que orienta o trabalho docente, dificilmen-
te algum projeto de ensino promoverá aprendizagem. Assim, o primeiro
desafio para planejar o processo de ensino durante a pandemia é partir de
dados precisos quanto às condições das pessoas envolvidas no processo de
ensino-aprendizagem (GUSSO et al., 2020).

METODOLOGIA

A metodologia utilizada apresenta um estudo descritivo-analítico,


referente a uma pesquisa exploratória de tipo bibliográfica e documental
em relação a: livros, artigos científicos, páginas de websites, documentos
oficiais do Ministério da Educação (MEC) e da própria UNILA. Assim
também, a possibilidade de fazer um estudo comparativo dos resultados
da pesquisa quantitativa da avaliação institucional, feita no ano 2016 e
analisada em relação ao índice de satisfação (Díaz, 2020), acrescentada
com dados mais atualizados ainda não disponíveis, que estão sendo levan-
tados e discutidos nos órgãos superiores da UNILA.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Produzir conhecimento sobre a atual condição das pessoas envolvidas


no processo de ensino-aprendizagem implica identificar, pelo menos, a)
quais são as pessoas centrais envolvidas nesse processo; b) os aspectos crí-
ticos que o constituem; c) as condições mínimas necessárias para viabilizar
seu desenvolvimento em contexto remoto; e d) a função desse processo.
(GUSSO et al., 2020). Na pesquisa desenvolvida em estudantes da Univer-
sidade de Almeria, Espanha. O campo psicológico ou de humor é conside-
rado o mais afetado, com quase 3 em cada 4 entrevistados (73,6%), seguido
pelo desempenho acadêmico por mais da metade (57,4%) e socioeconômi-

395
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

co para quase um terço dos estudantes universitários entrevistados (31,6%)


(LOZANO-DÍAZ, A. et al, 2020). Guardando as distâncias com as reali-
dades latinoamericanas, o panorama não é melhor. E é preciso realizar cole-
tagem de dados similares, para obter os dados representativos.

CONCLUSÕES

As conclusões preliminares deste estudo exploratório tem haver com


os impactos ainda difíceis de avaliar em toda sua complexidade na vida
universitária e as políticas implementadas com o propósito de mitigar a
evasão e a retenção causadas pela interrupção dos estudos. Existe um forte
impacto que o confinamento tem tido sobre a situação vital dos estudan-
tes universitários no campo psicológico e acadêmico, principalmente, e
a relação existente com a satisfação e a resiliência da vida, é fundamental
(LOZANO-DÍAZ, A. et al, 2020). Cabe, aos gestores institucionais em
conjunto com as comunidades acadêmicas levantar dados, para um bom
planejamento para o ano 2021.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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políticas públicas de combate à pandemia. 2020”. [online] Texto
para Discussão. Abril 2020. Disponível em: <http://thomasvconti.
com.br/wp-content/uploads/2020/04/Conti-Thomas-V.-2020-04-
06.-Crise-Tripla-do-Covid-19-olhar-econ%C3%B4mico-sobre-
as-pol%C3%ADticas-p%C3%BAblicas-de-combate-%C3%A0-
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GUSSO, Hélder Lima et al . Ensino Superior em tempos de Pandemia:


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Campinas , v. 41, 2020 . Disponível em: <http://www.scielo.br/
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LOZANO-DÍAZ, A. et al. Impactos del confinamiento por el COVID-19


entre universitarios: Satisfacción Vital, Resiliencia y Capital Social
Online. International Journal of Sociology of Education, [S.l.],
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hipatiapress.com/hpjournals/index.php/rise/article/view/5925>.
Acesso em: 08/11/ 2020.

397
O “VÍRUS CHINÊS”: OS DISCURSOS
XENOFÓBICOS DOS LÍDERES
MUNDIAIS A CHINA DURANTE
A PANDEMIA DO COVID-19 E A
PROLIFERAÇÃO DOS DISCURSOS DE
ÓDIO NAS REDES SOCIAIS
Arthur Sonza Villanova131
Gabriela Parode Buzetto132

INTRODUÇÃO

Há três décadas, o muro de Berlim tombava e colocava-se fim a uma


guerra fria, entre URSS e os Estados Unidos. Atualmente, no século
XXI, o mundo vem vivenciando uma nova guerra fria, entre Os Estados
Unidos e a China, as duas superpotências mundiais. As farpas trocadas
entre os líderes de ambos os países vão de confrontos comerciais e tecno-
lógicos à ameaças, sanções e acusações de espionagem
Entre o segundo semestre de 2019 e início de 2020, a população
mundial foi surpreendida com a pandemia no vírus denominado como
COVID-19. É de conhecimento global que o vírus se disseminou em
primeiro lugar na cidade Wuhan, na província de Hubei, na china. Diante
disso, proliferações de ódio e discursos xenofónicos acusando a china de

131 Acadêmico do 8º semestre do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria.


132 Acadêmica do 10º semestre do curso de Direito da Universidade Franciscana.

398
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ter produzido o vírus se alastraram em todo mundo e principalmente nas


redes sociais.
O presidente do Estados Unidos, Donald Trump, durante seu dis-
curso na assembleia geral da ONU pediu a ONU que responsabilizasse
a china pela propagação do vírus e ainda intitulou como “VÍRUS CHI-
NES”. Bolsonaro, presidente do Brasil, também atacou e responsabilizou
os chines pela pandemia. O discurso de ambos líderes influenciou diversas
pessoas em todo mundo a proliferarem discursos de ódio contra os chines
em suas redes sócias. Por isso, a presente pesquisa busca responder quais
as consequências dos discursos xenofónicos dos líderes mundiais contra os
chineses e suas consequências na relação entre as nações?

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Durante a guerra fria do século XX, muitos pensadores ocidentais


acreditavam no expansionismo do comunismo, liderado pela URSS. Um
dos principais idealizadores deste pensamento foi George Kennam, em-
baixadores norte-americano na União Soviética. Contudo, nas décadas
de 60 e 70, uma série de estudos indicava que os Estados Unidos ha-
viam construído a Guerra Fria, pois os soviéticos, destruídos pela Segunda
Guerra Mundial, não poderiam provocar uma guerra.
Gabriel Kolko, pensador norte-americano, compactua com a ideia de
que a Guerra Fria foi inventada pelos Norte-Americanos, uma vez que
existiriam razões internar para o governo construir os soviéticos como
“inimigos”. Uma delas era que os lucros do país eram basicamente frutos
das demandas provocadas pela Segunda Guerra Mundial. Ademais, no
início de 1946, a produção industrial Norte-Americana despencou 30%,
que originou o aumento do desemprego e a situação iria ficar pior com a
desmobilização das Forças Armadas (1977).
A obra Novas e Velhas Ordens Mundiais, de Noam Chomsky, tam-
bém fundamenta sobre a invenção da Guerra Fria por parte dos EUA. Para
o autor, colocar o expansionismo comunista como um inimigo maior, fez
com que o país pudesse intervir em quase todos os lugares do mundo, não
apenas para contem o comunismo, mas, principalmente, para impedir o
desenvolvimento de economias fora da dinâmica capitalista (1996).

399
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Atualmente, a China é o novo “inimigo” comunista dos Estados


Unidos, pois politicamente continua sendo um país comunista, desde a
tomada de poder de Mao-Tse-sug, há 70 anos. O PIB chinês é superado
apenas pelos Estados Unidos, porém em poder de compra o país já é o
mais rico do mundo. Segundo a lista de 2019 da revista Fortune, é o con-
siderado como um gigante comercial, pois é o país que mais produz e ex-
porta no mundo. Assim, criou-se uma disputa comercial entre os países.
Porém, com o surgimento da COVID-19, os EUA passou a acusar
a China de ser a responsável pela pandemia, influenciando diretamente
na ascensão de discursos xenófobos contra a população asiática, erigidos,
principalmente, em redes sociais.
Nesse sentido, verificou-se, em diversas plataformas digitais, a ge-
neralizada propagação de preconceitos aos hábitos alimentares chineses,
responsabilizando-os pela ocorrência da pandemia global. Em maio deste
ano, foi publicado o livro “Sopa de Wuhan – pensamientos contempora-
neo en tiempos de pandemia” por Pablo Amadeo, contendo compilados
de textos de diversos filósofos e pensadores espanhóis realizando-se um
debate acerca da COVID-19. Além de vislumbrar-se um claro discurso
racista em desfavor da população chinesa, visualiza-se na capa do livro
um morcego e, na contracapa, uma tigela de sopa. O compilado de textos
gerou uma onda de indignação por parte da população chinesa, sendo
fortemente criticado por diversos discursos xenofóbicos ao tentar respon-
sabilizar a China pelo surgimento e expansão da pandemia.

Metodologia

A presente pesquisa adotará uma abordagem dedutiva, visto que, inicial-


mente será realizado um estudo sobre a Guerra Fria do século XX, posterior-
mente uma análise dos conflitos entre os Estados Unidos e a China, para que
no fim seja apresentada os discursos xenofóbicos dos líderes políticos contra a
China e suas consequências na relação amistosa entre as Nações.
Em relação ao método de procedimento, aplicar-se-á o método
histórico, visto que será realizada uma retomada história do que tange
a Guerra Fria e a política interna da China, bem como o monográfico,
pois será feito um estudo sobre os discursos xenofóbicos e de ódio e suas
consequências. A técnica de pesquisa utilizada foi a indireta (bibliográfica
e documental).

400
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Diante disso, verifica-se que os Estados Unidos, historicamente,


utiliza-se de tensões globais para se manter no poder economicamen-
te. Atualmente, tendo em vista que seu novo inimigo em uma disputa
comercial é a China, utilizou-se de discursos xenofóbicos contra o país,
principalmente, durante a Pandemia de COVID-19. Os discursos de seus
líderes tiveram influência eminente na disseminação do discurso de ódio
contra China nas Redes Sociais e as manifestações de outros políticos pelo
mundo, como o presidente do Brasil.
Nesse sentido, saliente-se a forte rejeição de Jair Bolsonaro em com-
prar as vacinas denominadas “Coronavac”, que está sendo desenvolvida
pela farmacêutica chinesa em parceira com o Instituto Butantan. Ademais,
imperioso apresentar consequências materiais de práticas xenofóbicas
ocorrentes no mundo, como a exemplo da estudante Marie Okabayashi
que efetuou um registro de ocorrência policial, em decorrência de ter so-
frido insultos racistas ao sair de um metrô no Rio de Janeiro. Insultos
como “sua nojenta, fica passando doença para todo mundo” foram profe-
ridos contra a estudante.
Na França, franceses de ascendência asiática iniciaram o movimento
“#JeNeSuisPasUnVirus” (Eu não sou um vírus) no início de fevereiro,
que desencadeou o protesto realizado durante a semana da moda em Ma-
drid, em que o músico Chenta Tsai Tseng desfilou com os dizeres “I am
not a virus” escrito no próprio peito.
Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump chegou a anunciar
a proibição do aplicativo chinês “Tik Tok” no país, sob a argumentação de
que o aplicativo poderia estar sendo usado para coletar dados pessoais de
americanos para ser compartilhados com o governo chinês.
Destarte, constata-se que as manifestações xenófobas aventadas por
representantes políticos legitimam a ocorrência do aumento de casos de
sinofobia pelo mundo, sob argumentações fantasiosas, eis que sem com-
provação fática ou científica para tal.

CONCLUSÃO

O início das novas farpas trocadas entre as nações chineses e estaduni-


denses, foram, no primeiro momento, protagonizadas pelo Presidente dos
401
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

Estados Unidos, Donald Trump, através de suas ações governamentais,


tais quais o discurso efetuado na Assembleia Geral da ONU, em setem-
bro deste ano, onde culpa os chinês pela pandemia e denominou o vírus
como “vírus chinês”. O Presidente do Brasil segui na mesma linha de
pensamento e fazendo acusações ao povo chinês.
As falas dos líderes políticos geraram no mundo ondas de ataques
xenofóbicos ao povo chinês e os seus imigrantes espalhados por todo o
mundo. Diante do acesso democrático as redes sociais, facilmente elas se
tornaram a maior plataforma para o discurso de ódio aos chineses.
Entretanto, cumpra-se salientar que por trás desta disseminação de
ódio, originária do discurso do líder político norte-americano, pode-se ve-
rificar uma manobra para conter o avanço econômico da China. Pois, ela
vem ultrapassando os Estados Unidos no âmbito do comercio internacio-
nal. Segundo a previsão do Fundo Monetário Internacional, a China deve
ser o único país a ter crescimento no seu PIB no ano de 2020. Tais previsões
apavoram a atual potência mundial, pois com crise econômica instaurada
pela pandemia do COVID-19, o EUA sofreu grave abalo econômico.
Diante disso, uma possível incidência de culpa pela disseminação do
vírus a China poderia freia as relações comerciais de outros países com os
chineses e assim, sua econômica não sofreria abalos. Contudo, a presente
tensão instaurada pelo Estados Unidos e incentivada pelo Brasil vai de
encontro com o preâmbulo da Declaração de Direitos Humanos, pois um
de seus maiores objetivo é o desenvolvimento de relações amistosas entre
as nações, pois só assim poderá se concretizar o respeito a Dignidade da
Pessoa Humana inerente a todos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHOMSKY, Noam. Novas e Velhas Ordens Mundiais. São Paulo,


Scritta, 1996.

DEUTSCHER, Isaac. Ironias da História – Ensaios sobre o Comu-


nis- mo Contemporâneo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1968.

KOLKO, Gabriel. The Limits of Power. New York: Harper & Row
Publishes, 1970.

402
COVID-19 NO BRASIL: UM VÍRUS
COMO INSTRUMENTO DE
AMPLIAÇÃO DA SELETIVIDADE DO
DIREITO À EDUCAÇÃO
Gabriel Maciel Barbosa133

INTRODUÇÃO

A disseminação mundial da Covid-19 (SARS-COV-2) exigiu


uma reinvenção do modelo de ensino-aprendizagem tradicional. Após
a constatação do alto grau de transmissibilidade da doença, os institutos
de ensino brasileiros optaram por suspender as atividades presenciais.
Nesse contexto, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)
tornaram-se uma boa solução para manter a difusão do conhecimento
nas escolas e universidades, na modalidade remota, em todo o pais.
Entretanto, há uma parcela de professores e alunos que não têm aces-
so a aparelhos eletrônicos (como computadores e smartphones), além da
fração que possui esses equipamentos, mas esses últimos são de baixa qua-
lidade, o que dificulta ou não os permite ministrar e assistir as aulas, res-
pectivamente. Portanto, é necessário analisar os efeitos da pandemia na
educação, pois o vírus tornou esse direito, com sede constitucional, ainda
mais elitizado, uma vez que somente os indivíduos que tem acesso as TICs
de boa qualidade conseguem obter o direito à educação.

133 Graduando em Direito do Centro Universitário Christus (Unichristus).

403
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No início do surto de coronavírus no Brasil, o Ministério da Educa-


ção (MEC) elaborou a Portaria n° 343, de 17 de março de 2020, a qual no
artigo 1°, determina a substituição, em caráter excepcional, das aulas pre-
senciais por meios virtuais de difusão do conhecimento. Contudo, surge o
problema aqui abordado, qual seja, a dificuldade de acompanhar as aulas,
por parte de alguns alunos, devido ao acesso precário ou à falta de acesso
às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).
A solução para o obstáculo supramencionado faz-se mister, pois é in-
certa a duração da pandemia; dessa forma, os alunos prejudicados não rece-
berão a educação adequada na modalidade remota, enquanto outra parcela
dessa população receberá, devido ao uso das TICs. O quadro exposto revela
uma injusta vantagem do segundo grupo em relação ao primeiro, tanto em
exames para o ingresso em cursos superiores, quanto em testes escolares.
Destarte, a resolução do problema beneficia não só os estudantes,
os quais alcançarão o direito social à educação indicado no artigo 6°, da
Constituição Federal, mas também ao Brasil, porque o País necessitará de
pessoas qualificadas para gerir os danos pós-pandemia.
Ademais, o objetivo geral do presente resumo é buscar um meio para
que os alunos prejudicados com a substituição da modalidade presencial
para a virtual consigam assistir às aulas e acompanhar o conteúdo. Já os
objetivos específicos, encontram-se sob dois pontos que são imprescindí-
veis para esse debate, quais sejam, o acesso à internet e a aparelhos eletrôni-
cos, como computador ou smartphone.

METODOLOGIA

Partimos de metodologia qualitativa, por meio da revisão da literatura


na forma de artigos científicos, reportagens e texto da lei, correspondentes
ao tema em estudo, com objetivo exploratório, pois visa a pesquisar hipó-
teses para sanar o problema ora em debate.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD),


do último trimestre de 2018, o acesso à internet entre estudantes de 14

404
F E L I P E A S E N S I , G L A U C I A M A R I A D E A R A U J O R I B E I R O, K L E V E R PA U LO L E A L F I L P O ( O R G . )

anos ou mais é maior que 80%, em todas regiões do Brasil. No que tange
ao acesso entre estudantes de 10 a 13 anos, há uma redução para 70%,
também em todas as regiões do País. Outrossim, 98% dos estudantes uni-
versitários brasileiros possuem acesso à internet.
A pesquisa ainda revela que o telefone móvel é o aparelho preferido
para o uso da ferramenta, constando em cerca de 97% dos casos no País.
A partir desses dados, é razoável propor, em caráter emergencial, Parcerias
Público-Privadas (PPP) entre os governos federal, estadual e municipal
com empresas de fornecimento de internet, a fim de reduzir o valor da
internet móvel, de modo a ser acessível para o maior rol possível de estu-
dantes. Em contrapartida, o Estado pode diminuir a taxação de impostos
sobre as fornecedoras do serviço.
Em relação à disponibilização de aparelhos eletrônicos, é válido men-
cionar o caso da Universidade de São Paulo (USP). Após o início das aulas
remotas, a USP disponibilizou chips e modems para os discentes que resi-
dem nas moradias estudantis da Universidade, bem como para os demais,
segundo critérios socioeconômicos. É de bom alvitre que a interessante
iniciativa da USP expanda-se para os demais centros de ensino do País,
tanto públicos quanto privados.

CONCLUSÕES

Ao final da pesquisa, a certeza da relevância do tema é ainda maior,


pois limitar o direito à educação ao jovem é um retrocesso não só para
ele, mas para a nação brasileira, que sofrerá futuramente, as consequências
dessa limitação, seja no aumento da violência urbana ou de mão de obra
desqualificada.
Após consulta bibliográfica pertinente, verificou-se a viabilidade de
soluções para o problema dos alunos prejudicados com a substituição do
modelo de ensino-aprendizagem tradicional para o remoto. Dentre as so-
luções encontradas, citam-se as Parcerias Público-Privadas (PPP) entre
os governos federal, estadual e municipal com fornecedoras de internet, a
fim de promover esse serviço para estudantes necessitados.
Além disso, a disponibilização de chips e modems, por parte de uni-
versidades públicas e privadas, como ocorreu com a USP, pode ajudar,
de modo subsidiário, o problema emergencial da educação na pandemia.

405
P E R S P E C T I VA S D O D I R E I TO À S A Ú D E

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Eucídio Pimenta. EDUCAÇÃO REMOTA EMERGEN-


CIAL: elementos para políticas públicas na educação brasileira em
tempos de Covid-19. Em Rede: Revista de Educação a Distância,
[s. l.], v. 7, ed. 1, p. 257 - 275, 14 maio 2020. Disponível em: <https://
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ternet-chega-a-79-1-dos-domicilios-do-pais#:~:text=Pr%-
C3%B3ximas%20divulga%C3%A7%C3%B5es-,PNAD%20
Cont%C3%ADnua%20TIC%202018%3A%20Internet%20
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JORNAL DA USP. USP oferece subsídios para que estudantes


mantenham atividades a distância. 07 abr. 2020. Disponível
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tudantes-sem-equipamentos-para-atividades-a-distancia/>. Acesso
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Ministro de Estado da Educação.


17/03/2020. PORTARIA Nº 343, DE 17 DE MARÇO DE 2020,
[S. l.], 17 mar. 2020. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/
web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376>.
Acesso em: 11 nov. 2020.

406
PERSPECTIVAS DO DIREITO À SAÚDE

Felipe Asensi, Glaucia Maria de Araujo Ribeiro,


Klever Paulo Leal Filpo (orgs.)

Tipografias utilizadas:
Família Museo Sans (títulos e subtítulos)
Bergamo Std (corpo de texto)
Papel: Offset 75 g/m2
Impresso na gráfica Trio Studio
Abril de 2021

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