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PERSPECTIVAS DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS
PEMBROKE COLLINS
CONSELHO EDITORIAL

PRESIDÊNCIA Felipe Dutra Asensi

CONSELHEIROS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, São Paulo)


Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Rio de Janeiro)
Adriano Rosa (USU, Rio de Janeiro)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Rio de Janeiro)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, São Paulo)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colômbia)
Carlos Mourão (PGM, São Paulo)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, São Paulo)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Juiz de Fora)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Porto Seguro)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Niterói)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Juiz de Fora)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, Estados Unidos)
Elaine Teixeira Rabello (UERJ, Rio de Janeiro)
Glaucia Ribeiro (UEA, Manaus)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Campo Grande)
Jonathan Regis (UNIVALI, Itajaí)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura. Espanha)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, São Paulo)
Luciano Nascimento (UEPB, João Pessoa)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Três Lagoas)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Niterói)
Marcia Cavalcanti (USU, Rio de Janeiro)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Porto Alegre)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Rio de Janeiro)
Rogério Borba (UVA, Rio de Janeiro)
Rosangela Tremel (UNISUL, Florianópolis)
Roseni Pinheiro (UERJ, Rio de Janeiro)
Sergio de Souza Salles (UCP, Petrópolis)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brasil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Rio de Janeiro)
ORGANIZADORES
ARTHUR BEZERRA ORGANIZADORES:
DE SOUZA JUNIOR, DANIEL GIOTTI DE
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, LUCAS
PAULA, EDUARDO KLAUSNER, MANOELBORBA
ROGERIO DA SILVADA
CABRAL,
SILVA
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL

DIREITOS HUMANOS
JURIDICIDADE E EFETIVIDADE
PERSPECTIVAS DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

G RU PO M U LT I FO CO
Rio de Janeiro, 2019

PEMBROKE COLLINS
Rio de Janeiro, 2021
Copyright © 2021 Arthur Bezerra de Souza Junior, Lucas Manoel da Silva Cabral, Maurício Pires Guedes,
Robert Segal (org.)

DIREÇÃO EDITORIAL Felipe Asensi


EDIÇÃO E EDITORAÇÃO Felipe Asensi
REVISÃO Coordenação Editorial Pembroke Collins

PROJETO GRÁFICO E CAPA Diniz Gomes

DIAGRAMAÇÃO Diniz Gomes

DIREITOS RESERVADOS A

PEMBROKE COLLINS
Rua Pedro Primeiro, 07/606
20060-050 / Rio de Janeiro, RJ
info@pembrokecollins.com
www.pembrokecollins.com

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sem autorização por escrito da Editora.

FINANCIAMENTO

Este livro foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, pelo
Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), pelo Conselho Internacional de Altos
Estudos em Educação (CAEduca) e pela Pembroke Collins.

Todas as obras são submetidas ao processo de peer view em formato double blind pela Editora e, no caso
de Coletânea, também pelos Organizadores.

P467

Perspectivas dos direitos fundamentais / Arthur Bezerra de Souza


Junior, Lucas Manoel da Silva Cabral, Maurício Pires Guedes e
Robert Segal (organizadores). – Rio de Janeiro: Pembroke Collins,
2021.

734 p.

ISBN 978-65-87489-93-3

1. Direitos fundamentais. 2. Direitos humanos. 3. Direitos civis. I.


Souza Junior, Arthur Bezerra de (org.). II. Cabral, Lucas Manoel da Silva
(org.). III. Guedes, Maurício Pires (org.). IV. Segal, Robert (org).

CDD 342.7

Bibliotecária: Aneli Beloni CRB7 075/19.


SUMÁRIO

ARTIGOS 17

O DIREITO FUNDAMENTAL A EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI 19


Helíssia Coimbra de Souza

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS IDOSOS NO BRASIL 35


Igor Gouveia de Andrade

A CURATELA E A TOMADA DE DECISÃO APOIADA COMO GARANTIAS


CIVIS CONSTITUCIONAIS 48
Maria Clara Chaves Assunção

AVALIAÇÃO DAS NOVAS PERSPECTIVAS DA GESTÃO SOCIAL NO


ESTADO DA PARAÍBA NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NO COMBATE À ERADICAÇÃO DA POBREZA, ASSEGURADA NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL PARA REDUZIR AS DESIGUALDADES SOCIAIS. 67
José Lirailton Batista Feitosa

O DESMONTE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIAIS CONTRA OS POVOS


INDÍGENAS NO ATUAL GOVERNO BRASILEIRO  82
Marianne Pazos Santos

LA PROBLEMÁTICA DE LA TRANSMISIÓN EN VIVO DE LAS SESIONES


DE LAS CORTES SUPREMAS Y LA COLISIÓN DE DERECHOS EN LAS
SOCIEDADES DEMOCRÁTICAS 97
Carolina Vieira
O DIREITO À DIGNIDADE DE MULHERES TRANSEXUAIS NEGRAS COMO
CULTURA CONSTITUCIONAL DO ESTADO 113
Andre Antônio Martins Brasil

RESTRIÇÕES ÀS VISITAS ÍNTIMAS NAS PENITENCIÁRIAS FEMININAS DE


PORTUGAL E DO BRASIL: VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E
DA DIGNIDADE DA MULHER ENCARCERADA. 126
Carolina Arruda Costa Ferreira

AÇÕES AFIRMATIVAS E A INCLUSÃO SOCIOLABORAL DAS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA: CONSTRUTOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS  145
Reuelio Marques Rios

AUTORITARISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: REFLEXÕES ACERCA DA


NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS HUMANOS  161
Túlio Almeida Rocha Pires
Ana Eliza Simões Alves

APONTAMENTOS ACERCA DA DIFICULDADE EM SE GARANTIR O


DIREITO À SAÚDE DA POPULAÇÃO LGBT+ NO BRASIL 173
Lorena Patrícia Basílio Morato

A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS CRIANÇAS E/OU


ADOLESCENTES VÍTIMAS DA ALIENAÇÃO PARENTAL E A PROTEÇÃO
LEGAL CONFERIDA PELA LEI N. 12.318/2010 E PELAS DOUTRINAS
PERTINENTES ADOTADAS NO BRASIL 188
Arlete Maracaipe Cardoso Freire

EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR COMO INSTRUMENTO DE AMPLIAÇÃO


DA CAPACIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO
ACESSO À JUSTIÇA 200
Milena do Nascimento Cruz

RACISMO NAS MÍDIAS SOCIAIS: A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SUAS


IMPLICAÇÕES NA MANUTENÇÃO DE UMA CULTURA DISCRIMINATÓRIA 213
Maria Clara Farias de Lira

DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITOS HUMANOS E O RACISMO


ESTRUTURAL NOS EUA 223
Giovanna C. B. M. da Silva
A POSSIBILIDADE DE VACINAÇÃO COMPULSÓRIA COM BASE NA LEI Nº
13.979/2020: UMA ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA 242
Carolina Lopes da Silva

A DEFESA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO DISFARCE PARA O


EXERCÍCIO DO ATIVISMO JUDICAL  259
Lucas Gabriel Ladeia Cirne
Caroline Carneiro Gusmão

A HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS COMO


INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA  276
Marco Bruno Miranda Clementino
Bruno Pereira de Andrade

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O CONCEITO DE MORTE DIGNA:


REFLEXÕES JURÍDICAS A PARTIR DO CASO RAMÓN SAMPEDRO 290
Bruno Pereira de Andrade

A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E A IMPORTÂNCIA DO ESTADO LAICO


BRASILEIRO NA SUA COERÇÃO 308
Thais de Castilho Matos
Ronny Cesar Camilo Mota

O DIREITO E A ACESSIBILIDADE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA COMO


UM DIREITO FUNDAMENTAL 326
Lorena Chamone Vita

O DIREITO A MORADIA E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 338


Carlos Augusto Almeida de Jesus

A VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL


À LIBERDADE E A AUTONOMIA SINDICAL POR DECRETO
GOVERNAMENTAL: ANÁLISE DO DECRETO Nº. 3808/2020 DO ESTADO
DO PARANÁ 355
Andréa Arruda Vaz
Fabrício Gonçalves Zipperer
Genilma Pereira de Moura
Valquíria Gil Tisque
NEUROPRIVACIDADE: NOVOS DIREITOS HUMANOS FRENTE À
EXPANSÃO NEUROCIENTÍFICA 371
Francisco José Borsatto Pinheiro

O EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL DE PERSONALIDADE EM


PÓS-PANDEMIA 385
Aline Pomodoro Dias

OS LIMITES JURÍDICOS DA EXPOSIÇÃO DA IMAGEM DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES NAS REDES SOCIAIS 400
Daniele Vedovatto Gomes da Silva Babaresco
Vinícius Almada Mozetic

ACESSIBILIDADE DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS (PNE):


PROTEÇÃO DA DIGNIDADE E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 416
Claudia Rogéria Fernandes

O CONCEITO DE SUJEITO E A OBJETIFICAÇÃO – OS CORPOS ACEITOS


E OS CORPOS REJEITADOS 427
Cibele Pavanatto Mereth
Marco Antonio Lima Berberi
Sandra Mara de Oliveira Dias
Tais Martins

A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS 443


Pedro Augusto Rufatto Pizzatto
Eduardo Fin de Figueiredo

O ESTADO DE EXCEÇAO NA VISAO DE GIORGIO AGAMBEN E HANNAH


ARENDT: UMA ANÁLISE JURÍDICA A PARTIR DA REALIDADE BRASILEIRA.  461
Amanda Pimentel de Souza

CRISE DE REPRESENTATIVIDADE: REFORMA POLÍTICA  477


Jeazi Almeida de Sousa

ASSÉDIO MORAL LABORAL POR MEIO DE AGRESSÃO VERBAL: EFEITOS-


SENTIDO DE VIOLAÇÃO DE UM BEM JURÍDICO TUTELADO  492
Thalyra Santana Silva Leão
Maria da Conceição Fonseca-Silva
Jorge Viana Santos
O PROCESSO ESTRUTURAL ENQUANTO MECANISMO DE PROTEÇÃO DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROMOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS 507
Isabela de Araújo Zambon Elias

MÍNIMO EXISTENCIAL COMO UMA DAS CONDIÇÕES BÁSICAS PARA O


EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA E A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA BRASILEIRAS 520
Anderson Allan Damasceno de Medeiros

OS EFEITOS DA VULNERABILIDADE DO POSTULADO DO ESTATUTO


DO IDOSO E A CONTRIBUIÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA NA
PROTEÇÃO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 538
Camila de Carvalho Guimarães Ouro
Flavia Lima Xavier
Viviane Mello de Oliveira Spena

ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NOS PRESÍDIOS BRASILEIROS 552


Jaquelina Leite da Silva Mitre

A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO PRESIDENCIAL DE


INDULTO: DIREITO FUNDAMENTAL OU PRIVILÉGIO RETRÓGRADO? 568
Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida

A POSSIBILIDADE DAS CANDIDATURAS AVULSAS NO BRASIL FRENTE AO


PACTO DE SAN JOSE DA COSTA RICA 587
Bárbara Jacyntho dos Santos

A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO


CONTRATUAL  605
Maximiano Dias Rosa

POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER:


AVANÇOS E RETROCESSOS DOS PROGRAMAS BRASILEIROS SOB O
ENFOQUE DOS DIREITOS HUMANOS 620
Bianca Alves Castro

A PONDERAÇÃO DE VALORES FUNDAMENTAIS EXERCIDA PELO CHEFE


DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE ATOS DISCRICIONÁRIOS 634
Paulo Arthur Germano Rigamonte
Thiago dos Santos Almeida
Moacyr Miguel de Oliveira
Vladimir Brega Filho
PRECEITO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE DE GÊNERO: REFLEXOS
DE UM DIREITO FUNDAMENTAL NA TRIBUTAÇÃO BRASILEIRA 651
Pryscilla Régia de Oliveira Gomes

A SEGURANÇA PÚBLICA COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOB A ÓTICA


CONSTITUCIONAL 664
Jocilene Costa Vanzeler
Emmanuelle Ferreira Ribeiro

RESUMOS 677

CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA 679


Camila Pereira Cavalcanti Souza

DIREITO À ALIMENTAÇÃO E MÍNIMO EXISTENCIAL  684


Cláudia Toledo
Giovanna Freitas
Larissa Duque

PANDEMIA COVID-19 E DIREITO À VIDA – RESPOSTAS DISTINTAS


CONFORME O SISTEMA DE SAÚDE DO ESTADO: ESTUDO COMPARADO
EM DIFERENTES REALIDADES 690
Ian Botelho de Abreu

DIREITOS HUMANOS DE DEFESA E A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE


DADOS NO BRASIL 696
Gabriela Almeida Marcon Nora
Denise Teresinha Almeida Marcon

EFEITOS DE MEMÓRIA E EFEITOS-SENTIDO DE VIOLÊNCIA FÍSICA


CONTRA EMPREGADA DOMÉSTICA NO DIREITO TRABALHISTA E
CRIMINAL DA LEI MARIA DA PENHA  701
Nayane de Macedo
Maria da Conceição Fonseca Silva
Joseane Bittencourt
Jorge Viana Santos
O DANO MORAL ÀS FAMÍLIAS VÍTIMAS DE DESAPROPRIAÇÃO: UMA
ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO À CIDADE  707
Chimênia Corrêa Pinheiro
Laércio Lima Vulcão
Prof. Dra. Luciana Albuquerque Lima

LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A PROTEÇÃO AOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE MASSIFICAÇÃO DE DADOS 713
Marlene Aparecida Alves Pedrosa

A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS COMO DIREITO FUNDAMENTAL 720


Ana Amelia Geleilate

PRINCÍPIO A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E A PROTEÇÃO AO MÍNIMO


EXISTENCIAL: A SOLUÇÃO PARA VAGUEZA DA DEFINIÇÃO DO MINÍMO
EXISTENCIAL. 725
Lívio Augusto de Carvalho Santos
Manuela Saker Morais

ENVELHECER PARA VIVER E NÃO PARA MORRER: PROJETO AMIGOS DA


PRAÇA 730
Mônica Geralda Palhares

OS DIREITOS HUMANOS EM ANGOLA: UMA ANÁLISE DA LIBERDADE DE


EXPRESSÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL 732
CONSELHO CIENTÍFICO DO CAED-JUS

Adriano Rosa (Universidade Santa Úrsula, Brasil)


Alexandre Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto,
Brasil)
Alfredo Freitas (Ambra College, Estados Unidos)
Antonio Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (Universidade Nove de Julho, Brasil)
Bruno Zanotti (PCES, Brasil)
Claudia Nunes (Universidade Veiga de Almeida, Brasil)
Daniel Giotti de Paula (PFN, Brasil)
Danielle Ferreira Medeiro da (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Silva de Araújo Brasil)
Denise Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Edgar Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano,
Colômbia)
Eduardo Val (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Felipe Asensi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil)
Fernando Bentes (Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Brasil)
Glaucia Ribeiro (Universidade do Estado do Amazonas,
Brasil)
Gunter Frankenberg (Johann Wolfgang Goethe-Universität -
Frankfurt am Main, Alemanha)

13
João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)
Jose Buzanello (Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil)
Klever Filpo (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Luciana Souza (Faculdade Milton Campos, Brasil)
Marcello Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Maria do Carmo Rebouças dos (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Santos Brasil)
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
Paula Arévalo Mutiz (Fundación Universitária Los Libertadores,
Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (Universidade Federal do Espírito Santo,
Brasil)
Santiago Polop (Universidad Nacional de Río Cuarto,
Argentina)
Siddharta Legale (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Saul Tourinho Leal (Instituto Brasiliense de Direito Público,
Brasil)
Sergio Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (Centro Universitário Lassale, Brasil)
Tiago Gagliano (Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, Brasil)
Walkyria Chagas da Silva Santos (Universidade de Brasília, Brasil)

14
APRESENTAÇÃO - SOBRE O CAED-Jus

O Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito (CAE-


D-Jus) é iniciativa consolidada e reconhecida de uma rede de acadêmicos
para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e reflexões interdisciplina-
res de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se via internet, sendo a tecnologia par-
te importante para o sucesso das discussões e para a interação entre os
participantes através de diversos recursos multimídia. O evento é um dos
principais congressos acadêmicos do mundo e conta com os seguintes di-
ferenciais:

• Abertura a uma visão multidisciplinar e multiprofissional sobre o


direito, sendo bem-vindos os trabalhos de acadêmicos de diversas
formações;
• Democratização da divulgação e produção científica;
• Publicação dos artigos em livro impresso no Brasil (com ISBN),
com envio da versão ebook aos participantes;
• Galeria com os selecionados do Prêmio CAED-Jus de cada edição;
• Interação efetiva entre os participantes através de ferramentas via
internet;
• Exposição permanente do trabalho e do vídeo do autor no site
para os participantes;
• Coordenadores de GTs são organizadores dos livros publicados.

O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadêmicos


de alta qualidade no campo do direito em nível nacional e internacional,

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tendo membros do Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Portu-


gal, Reino Unido, Itália e Alemanha.
Em 2020, o CAED-Jus organizou o Congresso Interdisciplinar
de Direitos Humanos e Fundamentais (CDHF 2020), que ocorreu
entre os dias 02 a 04 de dezembro de 2020 e contou com 60 Áreas Te-
máticas e mais de 380 artigos e resumos expandidos de 62 universidades
e 34 programas de pós-graduação stricto sensu. A seleção dos trabalhos
apresentados ocorreu através do processo de peer review com double blind, o
que resultou na publicação dos livros do evento.
Esta publicação é financiada por recursos da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Educação (CAEduca) e da Editora Pembroke
Collins e cumpre os diversos critérios de avaliação de livros com excelên-
cia acadêmica nacionais e internacionais.

16
ARTIGOS

17
O DIREITO FUNDAMENTAL A
EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI
Helíssia Coimbra de Souza1

1. INTRODUÇÃO

As comunidades humanas desenvolveram-se ao longo da história com


o objetivo de proporcionar uma vida mais funcional e integrada, rompen-
do hostilidades individuais em prol de bases estabelecidas que firmassem
os bens e valores comuns. No processo de deslocamento agrário para as
zonas urbanas, perpassando pela industrialização dos meios de trabalho,
até o atingimento do ápice com relações globalizadas por meio das ino-
vações tecnológicas e informacionais, a educação permeou o desenvolvi-
mento dos indivíduos de modo que estes expandissem as competências e
habilidades internas para gerarem contribuições significativas no meio em
que estivessem inseridos.
Na era contemporânea em que os processos sociais apresentam-se de
forma intensa e multidisciplinar, as bases educacionais permanecem com
a missão de capacitar os indivíduos desde a infância conforme as exigên-
cias técnicas do Brasil, contudo, acrescenta-se a essas disciplinas tradicio-
nais metodologias ativas de ensino, sendo o desenvolvimento estudantil
fomentado de modo conjunto com o cidadão. O direito ao ensino que
perpassa por todas as etapas colegiais é garantia constitucional, sendo a
base humanística internalizada como um dos objetivos principais da Carta
Magna, além de estar positivada como salvaguarda social, logo, de cum-

1 Mestranda em Direitos Fundamentais pela UNAMA

19
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

primento com status prioritário e tendo efeitos impactantes em toda co-


letividade.
O Brasil enquanto nação internacionalmente ativa em acordos que
firmam a importância dos direitos humanos, acompanha as evoluções sem
precedentes que perpassam a sociedade para interpretar as diretrizes legais
com técnicas que possibilitem decidir casos apresentados nos organismos
administrativos com máxima harmonização dos interesses, animando as
friezas das regras com a sensibilidade humana a partir do sistema jurídi-
co-normativo. As inclusões das referendadas técnicas interpretativas de
ponderação ou sopesamento, tendo como recursos acessórios a moral e os
princípios estruturados conforme os costumes nacionais, permitem a oti-
mização de direitos fundamentais considerados desafiadores pela extensão
a nível coletivo, além da importância internacionalmente reconhecida que
estes recebem, a exemplo em evidência do direito a educação.
Na contemporaneidade marcada pelas transformações que rompem
fronteiras, integrando nações com as dinâmicas da globalização, fusionan-
do os meios ambientes orgânicos e inorgânicos a partir das múltiplas inte-
ligências tecnológicas, importante analisar o direito humano e fundamen-
talmente internalizado a educação como base estrutural da grande rede
cibernética. Os pilares do currículo básico estabelecidos pelo Ministério
da Educação (MEC), respeitando as autonomias dos estados e municípios
que moldam as matrizes conforme os seus regionalismos, não mais po-
derão pensar em metodologias sem impulsionar nas gerações estudantis o
acesso pleno aos recursos que facilitem a integral desenvoltura destes, para
o futuro profissional e as exigências no cotidiano da vida que integra as
relações físicas com os conteúdos interativos das mídias virtuais.
A presente pesquisa tem como objetivo analisar a salvaguarda humana
e fundamentalmente reconhecida de acesso à educação com toda a exten-
são que o tema exige. A metodologia bibliográfica aclara o direito a matrí-
cula em ensino regular que abrange todos os estágios colegiais, perpassan-
do pelas estratégias da atualidade de incluir o ensino superior para atender
as demandas de profissionalização, incluindo as competências e habilida-
des de gerenciamento das múltiplas tecnologias que tornam-se impres-
cindíveis frente aos processos disruptivos sem precedentes que envolvem
sistemicamente a coletividade. O embasamento doutrinário e alinhado a
artigos de referência, explanado com envolvimento de casos práticos re-

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

flexivos, propiciam o tom crítico do artigo ao estágio atual, construindo


possibilidades para um futuro próspero através das novas concepções edu-
cativas no Brasil.

2. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO


A EDUCAÇÃO

As mudanças transnacionais pelas quais passaram a coletividade foram


propulsoras para atingir a visão de casa comum em detrimento do nacio-
nalismo que distanciava os povos enquanto dependentes de bens e valores
essenciais para a sustentabilidade do ciclo da vida humana. Após o térmi-
no da devastadora segunda guerra mundial, a Organização das Nações
Unidas (ONU) fora alicerçada para garantir a solidez nas relações entre
países que alinhavam-se com as possibilidades de um futuro com solida-
rismo, que não estava imune as trincheiras, mas através da educação para
o desenvolvimento individual, e consequentemente, melhor engajamento
nos processos coletivos, apresentaria alternativas consensuais para supera-
ção dos desafios humanitários.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos elaborada em 1946
firmou o direito a educação de modo provinciano, qual seja, pautado
nas diretrizes básicas para garantir aos indivíduos melhores possibilida-
des de crescimento laboral e na economia (mínimo existencial), contudo,
acompanhando os processos sociais de consolidação deste direito huma-
no, foram elaborados documentos que adaptavam a salvaguarda para as
realidades internas dos países. As crianças eram tidas como prioritárias
na garantia do direito ao ensino e a aprendizagem, contudo, as transições
quanto ao modelo de educação técnica para a cidadã, do ensino presencial
para as fusões envolvendo as dinâmicas no universo cibernético, promo-
veram a reformulação interpretativa para entender a educação de modo
sistêmico e contínuo, capacitando indivíduos em todos os estágios para
dar-lhes o pertencimento nas atividades de cooperação social.

Art. 26, 2. A educação será orientada no sentido do pleno desen-


volvimento da personalidade humana e do fortalecimento do res-
peito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A
educação promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as ativi-


dades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

As longas transições desde a colônia portuguesa pelas quais passaram


o Brasil, permitiram a intensa reflexão quanto a importância de regramen-
tos que refletissem os ideais da nação, a adoção de princípios com bens e
valores correspondentes ao futuro que almejava ser construído para todos
que habitam no país, culminando o desafiador processo constitucional no
firmamento da democracia enquanto regência maior para as relações co-
tidianas e solução dos conflitos levados aos organismos da administração.
No histórico nacional a compreensão educativa dos direitos humanos ob-
servados no panorama exterior possibilitou o elevo da cidadania através
dos direitos fundamentais, sendo estes alicerçados com status máximo de
observância dentro da Carta Magna de 1988.
O sentir interno de pertencimento após invasivos feitos no território
nacional fora aflorado, e consequentemente ocorreu a tomada decisória
“de estabelecer a educação formal e social no sentido da construção do
nacionalismo, que sem considerar uma nação superior a outra, mas res-
peitando as singularidades locais, busca melhor posicionamento do país
no cenário global.” (HARARI, 2018, p. 146). Ainda na compreensão das
positivações ao longo da Constituição Federal de 1988, o direito funda-
mental a educação enquanto base para transformações sociais recebeu a
competência comum entre os entes, qual seja, fora alcançado pelo consti-
tuinte que os processos de ensino e aprendizagem necessitavam da soma
de esforços para ser desenvolvido, levando em consideração os aspectos da
extensão demográfica e contrastes sociais que marcam o Brasil.

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito


Federal e dos Municípios:

V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciên-


cia, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;   

As diretrizes estruturantes do plano nacional de educação, apesar da


referendada cooperação entre os entes, estão firmadas como de compe-
tência privativa da União, e tal formalização revela-se de modo sensível
pela concentração de recursos ser maior em âmbito federal, além das pos-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

sibilidades de harmonização dos interesses para a nação. Salienta-se que a


privatização do interesse de gerenciar as bases educativas pela União não
torna a interpretação do direito uma exclusividade do órgão, sendo per-
mitido e incentivado que estados e municípios possam adaptar os currí-
culos conforme o ano escolar, bem como, respeitando as particularidades
geográficas de cada região. O pluralismo que marca o desenvolvimento da
nação é observado, ainda, para que as novas concepções educativas com
embasamento humanista sejam alcançadas, a exemplo do estado do Ceará
que modificou as metodologias de ensino das disciplinas para alinhar teo-
ria e prática com as vivências típicas da região, feito este que gerou engaja-
mento entre os alunos e alavancou os índices de desempenho.

Gráfico 1 – O desenvolvimento do direito fundamental a educação

Fonte: (CLP Liderança Pública, 2017)

O ânimo de Constituição considerado fundamental em uma nação


que prima pela cidadania entre os integrantes, com o firmamento da
educação enquanto salvaguarda social e que tem observância entre os ob-
jetivos maiores a serem fomentados, está constantemente elevado pelas
matrizes curriculares do país envolverem as tradições históricas e bases
cívicas entre os conteúdos multidisciplinares. Ainda, ressalta-se a abertura
constitucional para que a educação atinja as etapas de modo integral, am-
pliando o direito humano que inicialmente centrava o ensino e aprendiza-
gem na infância, incluindo jovens e adultos no processo de formação que

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

os tornam efetivos no exercício da função do existir, dando-lhes melhores


oportunidades de emprego e renda, além da colocação nas dinâmicas do
cotidiano das comunidades.
Na compreensão de que o processo educacional tem como alvo a
formação técnica e desenvolvimento das competências e habilidades pes-
soais, estrutura a Carta Magna de 1988 que “o direito a educação preci-
sa envolver profissionais e estudantes que estão engajados nos estágios de
aprendizagem, garantindo a estes o âmbito máximo de proteção as inter-
ferências indignas, restrições nas mudanças das diretrizes, além da justi-
ficação de quaisquer alterações.” (MARMELSTEIN, 2019, p. 195). O
reconhecimento moral e na estrutura de apoio aos envolvidos no âmbito
educacional são grandes diferenciais da Carta Magna de 1988, que em
comparado com as bases da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
alcança a importância dos subsídios nos ambientes institucionais, aquisi-
ção de materiais individuais de ensino, além da remuneração proporcional
a função primorosa dos profissionais que impulsionam o futuro da nação.

3. O DIREITO FUNDAMENTAL A EDUCAÇÃO NA ERA


TECNOLÓGICA

Os modelos de educação da Constituição Federal de 1988, durante


a fase inicial de internalização do direito humano, baseava-se em garantir
a distribuição de recursos com foco nas etapas de ensino básico das dis-
ciplinas essenciais a colocação profissional futura. Na era contemporânea
marcada pelas múltiplas tecnologias e todas as suas inteligências, as bases
constitucionais sofreram o mecanismo da mutação, sendo os direitos que
compõem a educação não invalidados quanto a origem, mas reinterpre-
tados de modo que haja efetividade prática, com total correspondência
aos estímulos recebidos pelas dinâmicas cotidianas. A estruturação distan-
te e passiva transpôs para o direito a simetria relacional entre educadores
e alunos, perpassando pelas disciplinas que ganham tom sistêmico para
abranger as competências técnicas e socioemocionais conjuntamente, cul-
minando nos recursos tecnológicos nos quais alunos e corpo educacional
estão inseridos para melhor compreensão da cidadania virtual.
A Constituição Federal de 1988 concebeu as bases formais para o en-
tendimento da educação enquanto direito fundamental e objetivo máxi-

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mo no tocante ao desenvolvimento do Brasil, sendo incluídas as bases do


neoconstitucionalismo que fomenta a ciência inovadora no contexto edu-
cacional. As bases legais de investimento são destinadas para a criação de
aparatos e ambientes informatizados nos seios institucionais, além da ofer-
ta de cursos que capacitem todos os envolvidos na educação para integra-
ção das realidades físicas e virtuais de ensino, expandindo as possibilidades
de visão do mundo, bem como, atribuindo maior significância para os
conteúdos ministrados que passam a fazer parte dos interesses cotidianos
dos alunos. Na visão do Marco Civil da Internet, que acompanha os ali-
cerces da Carta Magna de 1988 enquanto Constituição Digital, a educa-
ção precisa estar centrada nos diferentes meios ambientais de convivência,
que no século atual envolve as plataformas digitais enquanto merecedoras
de tutela para boas práticas dos cidadãos que as integram.
O referendado neoconstitucionalismo concebe o ordenamento cons-
titucional de forma sistemática, onde os pontos em comum dos dispositi-
vos integram as fases decisórias e culminam por jurisdições mais ponde-
radas e efetivas as realidades evidenciadas frente as demandas que chegam
às esferas jurídico-estatais. Na atualidade a inovação inclui estratégias in-
terpretativas e harmonizadoras que “extraem dos desafios na concepção
de direitos fundamentais em uma sociedade que se transforma sem pre-
cedentes, as singularidades de cada pedido, não analisando uma lei com
rigor, mas verificando o objeto de cada salvaguarda.” (POZZOLO, 2005,
p. 244). O Brasil enquanto nação internacionalmente reconhecida não
tem no neoconstitucionalismo uma nova constituição, mas a educação
jurídico-social permite interpretar o texto sob concepções que impulsio-
nem a pacificação social através da atuação equilibrada dos poderes juris-
dicionais da administração.
Nas etapas que perpassam a educação básica, em conformidade com
as mudanças nas diretrizes curriculares brasileiras quanto as metodologias
de ensino e aprendizagem, inclui-se o Projeto de Lei n⁰ 6885 de 2017 em-
basado pelos recursos de múltiplas inteligências utilizados nas dinâmicas
internas e externas das instituições, centrada esta iniciativa no ideal “de
que a inclusão eletrônica precisa ocorrer após a educação referente a cul-
tura digital, não sendo satisfatório conhecer as técnicas de manejo sem o
entendimento de como dialogar e resolver pequenos conflitos nas redes.”
(ABRUSIO, 2015, p. 47). A Informática como disciplina obrigatória, ou

25
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

mesmo lecionada de modo integrativo aos conteúdo das outras matérias,


expande o direito a educação de modo que a realidade enfrentada pelos
alunos e educadores seja vislumbrada de modo crítico e reflexivo, possi-
bilitando, inclusive, que as instituições sejam fomentadoras de iniciativas
para a família e comunidade quanto a educação que transpõe o estágio de
usuários para cidadãos do meio ambiente virtual.
A realidade de extensão demográfica e contrastes socioeconômicos
reafirma a importância da positivação a nível constitucional quanto o
direito a educação, sendo este de importância social e com impactos
gerenciados por todos os entes. A ineficiência da proposição do ensino
informático como obrigatório fora aclarada pela iniciativa que marcou
o Projeto de Lei n⁰ 6356 de 2019, sendo a fundamentação reveladora
da discrepância entre a aquisição de dispositivos informáticos por alu-
nos das instituições privadas versus a carência basilar dos alunos da rede
pública. Enquanto o direito a educação não for analisado de modo a ga-
rantir a dignidade humana nas instituições, não há como pensar em ex-
pandir boas práticas para o universo ainda mais desafiador e pluralizado
da grande rede. A referendada postulação constitucional quanto a soma
de esforços entre os entes fora propulsora para a revisão do primeiro
plano de inclusão Informática, sendo a exigência da atualidade a garantia
de espaços adequados, aquisição de equipamentos pela própria escola,
além da capacitação dos professores nivelada pelas fases que compõem o
ensino básico.

Art. 27-A. Com o objetivo de garantir o acesso ao saber


previsto nos conteúdos curriculares estabelecidos nesta Lei,
cada escola pública de ensino fundamental e médio contará
obrigatoriamente com laboratórios de Ciências, de ensino de
matemática e de informática.

§ 1º. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios


promoverão estratégias de ação que contemplem estudos dos
investimentos para a montagem laboratórios de Ciências, de
ensino de matemática e de informática e a definição das etapas
a serem seguidas para a sua implementação com o envolvimen-
to da comunidade escolar;

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Na abrangência sistêmica da temática que inova a educação para a era


tecnológica e informacional do século xxi, importante salientar o papel
dos juristas enquanto animadores das friezas das regras a partir de téc-
nicas interpretativas voltadas a solução de conflitos envoltos aos direitos
fundamentais. O sistema alemão de Robert Alexy fora recepcionado com
louvor pela incidência constitucional de salvaguardas que recebem status
de máxima importância, além do envolvimento histórico do Brasil com
acordos internacionais que o posicionam como nação que valora e zela
pelo cumprimento dos direitos humanos, dentre estes a Declaração Uni-
versal que fora o marco inicial para que a educação fosse inserida dentro
do cenário de globalismo. O entendimento conciliatório dos interesses
concorda que restrições legais ao excesso de garantias são necessárias para
esclarecer os parâmetros constitucionais e evitar a discricionariedade dos
intérpretes, sendo assim, “a ponderação ou sopesamento não é somente
válida, mas adequa-se ao sistema jurídico brasileiro, haja vista que a sensi-
bilidade humana para analisar casos precisa alinhar-se as fases de justifica-
ção dos interesses.” (TOLEDO, 2017, p. 47).
O histórico jurídico nacional aponta que as inovações não podem ser
concebidas de modo restrito as múltiplas tecnologias e suas inteligências,
sendo papel dos envoltos ao sistema administrativo gerenciar as estraté-
gias de pacificação social, sendo inclusas formas de interpretação, além
da atualização periódica de instrumentos normativos que acompanhem o
direito fundamental a educação. O envolvimento dos sistemas familiares
e comunitários apresentam extrema importância, a partir da compreensão
da impossibilidade de firmar competências e habilidades técnicas sem que
os cidadãos enquanto receptores das salvaguardas possam sentir-se per-
tencentes ao processo de desenvolvimento das leis e políticas públicas, já
sendo firmada pela gestão participativa que membros atuantes na trans-
formação das suas realidades cooperam para a sustentabilidade futura dos
projetos.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da famí-


lia, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

4. O PAPEL DA GESTÃO MULTISETORIAL NA GARANTIA


DA EDUCAÇÃO

As bases jurídicas concebem a educação como um dos objetivos que


colaboram na redução das desigualdades, contudo, essa salvaguarda não é
observada como um serviço essencial pela legislação eleitoral, o que torna
desafiador o fomento de estratégias para elevar a contratação de profis-
sionais e atualizar com a frequência devida os planos de engajamento dos
educadores no cumprimento das bases curriculares. As discrepâncias re-
gionais tornam-se outro ponto de relevância, sendo concebidas as singu-
laridades regionais como desafios que exigem repasses orçamentários com
sensibilidade, alinhados estes as políticas locais de ensino que, para além
do cumprimento das bases curriculares, possam atender as demandas de
comunidades hipossuficientes ou que sejam consideradas especiais pela
historicidade apresentada. A densidade demográfica que marca o Brasil
impulsiona o olhar da gestão pública para as possibilidades de governança
aberta, haja vista o cenário atual aclarar a ineficiência quanto aos direcio-
namentos orçamentários, além da impossibilidade de alcance da adminis-
tração centralizada (federal) para as reais manifestações comunitárias ao
longo das regiões.
A gestão contemporânea que concebe a administração pública en-
quanto plataforma de serviços não desvirtua os princípios constitucionais
quanto a regência do estado, contudo, media esta hierarquia na compreen-
são de que a supremacia do interesse público se inicia com o pertencimen-
to deste a localidade em que se encontram. As bases pré-constituídas em
uma gestão focada nos resultados obtêm o retorno positivo da sociedade
que “não faz tudo quanto queira, mas é educada pelo condicionamento de
cada organismo público a expor suas necessidades e participar nas etapas
de concretude dos bens e valores acordados pelos membros.” (BITTAR,
2014, p. 937). O direito fundamental a educação é tido como base social
que impulsiona a conquista de outras salvaguardas, assim, em comunida-
des que já tem consideração histórica como minoritárias, a exemplo das
tribos indígenas e remanescentes de quilombos, existe a prioridade ad-
ministrativa na atuação em políticas que transcendam a educação formal,
incluindo a sensibilidade para as culturas e crenças destes povos, culmi-
nando na preservação das línguas, localidades de origem, bem como, o

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direcionamento as possibilidades futuras de profissionalização e sustento


que tornem tais núcleos mais desenvolvidos e independentes.
O papel imprescindível da gestão multisetorial acompanha a visão
constitucional contemporânea na qual todos são o estado, logo, deve-se
superar a concepção historicamente firmada de recebedores, para juntos
fomentar novos ideais e estratégias de colaboração mútua. O Estatuto da
Criança e do Adolescente eleva o status da Carta Magna de 1988, estabe-
lecendo o cuidado integrativo entre os setores desde a primeira infância,
sendo a educação uma salvaguarda que deve acompanhar os indivíduos
conforme as demandas da atualidade, que primando pela inclusão no
mercado de trabalho e garantia do sustento próprio, estende-se ao ensino
superior com as políticas nacionalmente estabelecidas com especificida-
des que concedem preferência aos grupos mais vulneráveis. A inclusão
no ambiente de ensino está positivada com primazia, ainda assim, na sa-
piência de que a sustentabilidade das relações com as instituições revela-se
desafiadora, novas interpretações legais adaptam as matrizes curriculares
dos cursos superiores para alcançar a realidade dos alunos historicamente
não nivelados com a parcela que ingressa regularmente os centros uni-
versitários, possibilitando aos docentes e equipe multidisciplinar ir além
das bases técnicas, ensinando a todos os envolvidos sobre o direito a di-
versidade, construção das vivências regionais em sala de aula, elevando a
humanidade partilhada.

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando


ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício
da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

V - acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência,


garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que fre-
quentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica.

O Estado inovador encontra-se aberto e receptivo para alinhar seus


organismos administrativos com aa plataformas de inovação das startups,
sendo estas integradas por profissionais com visão atualizada e que conce-
bem as informações trazidas por organizações não governamentais e enti-
dades do terceiro setor, culminando em uma gestão que reafirma através

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

das políticas públicas os ideais da governança aberta quanto a transparên-


cia, otimização dos gastos e novas estratégias para interpretar as salvaguar-
das sociais internalizadas como de status fundamental. Apesar das desi-
gualdades existirem desde os primórdios da humanidade, compreende-se
o neoconstitucionalismo e a nova gestão pública que o direito a educação
é a única garantia para um futuro próspero e sustentável, sendo a atenção
ainda mais especializada nos países que encontram-se em desenvolvimen-
to como o Brasil, onde, pelas bases orçamentárias e de politicas não esta-
rem estruturadas desde a concepção, evidencia-se a palpitante urgência,
através do conhecimento adquirido e arquitetado em projetos práticos
correspondentes as necessidades de cada região, de engajar metodologias
ativas de educação, transpondo das competências técnicas exigidas para
impulsionar a cidadania humanística que existe em cada estudante.

Figura 2 – Projeto de educação integradora entre favelas e zona urbana no Rio

Fonte: (Prefeitura do Rio; 2015)

A atualidade que desenvolve-se com visão sistêmica e práticas de glo-


balismo exige reformulações na concepção dos direitos, correspondendo
estas estratégias jurisdicionais em projetos com elaboração conjunta as co-
munidades, onde o direito a educação não é apenas uma positivação inter-
nacional inclusa na constituinte, mas construído na prática e sustentável

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pelo envolvimento motivador de todos os setores, que para além das suas
atuações específicas, juntos tornam-se agentes da transformação. O Rio
de Janeiro, pela localização promissora e impacto a nível transnacional,
fora o estado piloto no projeto de levar educação pública de qualidade a
partir da integração entre as zonas periféricas e os centros urbanos, que,
além do aumento nos índices de presenteísmo e qualificação educativa
dos estudantes conforme o estágio em que estes se encontram, promoveu
melhoras nas relações interpessoais, marcadas estas por diálogos pacíficos
e direcionados a urbanização do futuro, que educa a todos para não ve-
rem as cidades nas arquiteturas materiais, mas como locais de encontros
e partilhas dos interesses comuns ao bem-estar dos indivíduos, ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado para todas as gerações.
O Brasil em seu potencial de pluralismo e ascensão no cenário inter-
nacional, através da governança aberta com foco em resultados, concretiza
o direito a educação de modo integrativo entre os setores, engajando os
investimentos orçamentários e consequentes as doações para expandir o
acesso ao ensino em todos os níveis. A educação superior através dos pro-
gramas de facilitação no pagamento, passando pelas estratégias de inclusão
interpessoal, reafirmam o compromisso do estado em elevar o ânimo de
constituição por meio das boas práticas de ensino e aprendizagem, ali-
nhando as bases humanísticas com as inteligências artificiais, harmonizan-
do as relações entre as classes que formam as comunidades pelo interesse
maior de uma nação sólida e operante. Ainda que os contrastes históricos
sejam grandiosos desafios, modelos locais de cidadania e metodologias pe-
dagógicas aclaram a cooperação positivada na Carta Magna de 1988, as
leis complementares ao direito a educação são reavivadas diariamente pela
sensibilidade humana de crescimento e contribuição no sentido dos estu-
dos para a felicidade e completude dos indivíduos em suas necessidades.

5. CONCLUSÃO

Ao longo da evolução doa povos, fora posicionado os direitos hu-


manos como garantidores dos bens e valores comuns, estabelecendo os
limites individuais de atuação, além de direcionar as bases estatais para
promoção de políticas que ampliassem o bem-estar social. As constitui-
ções locais, a exemplo da Carta Magna de 1988 internacionalmente re-

31
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

conhecida pelas extensas salvaguardas, buscaram internalizar tais garantias


conforme as correspondências jurídicas e estágios sociais de aplicação,
sendo os direitos fundamentais positivados com status formal que salienta
a primazia na efetivação destes. O direito a educação, em especial, encon-
tra-se alicerçado como um direito social e indispensável, haja vista este
ser permissor de transformações com impactos a nível coletivo, em que,
formal e materialmente torna-se meio para o desenvolvimento futuro e
sustentável de outras garantias.
A educação enquanto direito concretizado através de políticas pú-
blicas que tem o objetivo de mediar as relações sociais e transformar
as realidades contrastantes existentes, no século xxi apresenta pontos
chave para auxiliar no direcionamento das práticas em gestão pública,
sendo eles: disponibilidade dos envolvidos com o processo adminis-
trativo em educação para compreender as complexidades existentes,
acessibilidade para que os centros de ensino sejam plurais e sustentáveis
nessa inclusão, aceitabilidade da era atual quanto as exigências de flexi-
bilidade em métodos e recursos para acompanhar as mudanças disrup-
tivas, culminando na adaptabilidade regional, que respeita e enaltece
os regionalismos no Brasil, trazendo a educação que não segrega frente
as culturas históricas, mas agrega nas comunidades tradicionais e vul-
neráveis para que seus membros sintam-se pertencentes e construtores
das novas realidades almejadas.
As estruturações firmadas ao longo da evolução humana buscam
aclarar diretrizes curriculares por meio de metodologias ativas que per-
mitam aos envolvidos no processo de ensino participarem ativamente no
processo de governança aberta. Os ideais de transparência, otimização
dos gastos e inovação são multidisciplinarmente acrescentados nas disci-
plinas desde as etapas colegiais, objetivando que a administração pública
transponha de provedora do direito a educação para uma plataforma ex-
tensiva aos cidadãos que fomentam propostas conforme as observâncias
locais, contribuem na fiscalização das políticas públicas, e por verem os
resultados do engajamento multisetorial, manifestam ânimo quanto a
sustentabilidade das obras e interpretações legais que estejam direciona-
das ao ensino profissionalizante e humanístico, a aprendizagem dos bens
e valores comuns.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

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ponível em: <https://www.unidosparaosdireitoshumanos.com.pt/
course/lesson/articles-26-30/read-article-26.html>.

34
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS
IDOSOS NO BRASIL
Igor Gouveia de Andrade2

INTRODUÇÃO

Os idosos no Brasil compreende as pessoas que possuem 60 anos ou


mais, de acordo com a Política Nacional do Idoso, um público que precisa
ter seus direitos fundamentais garantidos de forma material e formal, uma
vez que é dever da família, da comunidade e do Estado oferecer condições
mínimas de sobrevivência aos idosos, e sobretudo ao Estado a obrigação
de prover a proteção à vida e a saúde através de estratégias de intervenção e
políticas públicas capazes de oferecer qualidade no envelhecimento.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, é direito de todos e
também da população idosa, os direitos de ir e vir, direito a liberdade de
expressão, crenças ideológicas e religiosas, além da liberdade sobre seus
rendimentos e proventos a não ser quando há casos de interdição judicial.
Nossa abordagem aqui neste artigo está focada no art. 2º do Estatudo
do Idoso (Lei 10,741/03), a saber:

o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa


humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportu-
nidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental

2 Servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Bacharel em Direito; Pós Graduando


em Direito Público; Autor de artigos e livro.

35
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em


condições de liberdade e dignidade. (BRASIL, 2003)

Ao longo do estudo faremos uma evolução histórica dos direitos


fundamentais dos idosos no Brasil e os perfis constituicionais do direito
comparado, já que o idoso tem a garantia materializada, mas não possui a
garantia efetiva e concreta do direito em sua realidade.

1. BRASIL: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DOS


IDOSOS

A Pesquisa Nacional por Amostragem em Domicílios (PNAD), mos-


trou que, desde 2004, foram estimados 17 milhões de idosos no Brasil, in-
formação apresentada na exposição de motivos do Ato Normativo no 514,
de 31 de julho de 2007, do Ministério Público do Estado de São Paulo.
No mesmo viés, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
ainda no Censo de 2010, verberou existirem 20 milhões de idosos, perfa-
zendo mais de 10% (dez por cento) da população brasileira.
Ainda, que os dados do IBGE, sejam de 2010, temos estudos da Or-
ganização Mundial da Saúde, que apontam pela estimativa de existência
de 34 milhões de idosos em 2025.
É um número impressionante, mas, no legislativo brasileiro, um
quantitativo esquecido conforme observamos na doutrina:

Apesar dos números impressionantes, até janeiro de 2004 apenas


poucos dispositivos legais, quase sempre vinculados à saúde, à assis-
tência e à previdência social, se referiam à pessoa idosa. Não havia
consenso, sequer, sobre quem deveria ser considerado idoso. No
âmbito constitucional não foi diferente; a Constituição Imperial
de 1824 e a Constituição da Republica de 1891 desprezaram a ne-
cessidade de regulamentar os direitos dos idosos, e nada disseram
sobre o assunto. (FREITAS JÚNIOR, 2015, p. 144)

Aproximando-se, na Constituição de 1934 (primeira sobre o assun-


to), tratou da previdência social ao trabalhador em “favor da velhice”.
Ato contínuo, novamente, na Carta Magna de 1937, no artigo 137 (re-
servando apenas um artigo ao idoso), em sua alínea ‘m’, dispôs sobre “a

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
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instituição de seguros de velhice, de invalidez, de vida e para os casos de


acidentes do trabalho”.
A Constituição de 1946, dispôs em seu artigo 157, inciso XVI, adu-
ziu sobre a previdência social, preconizando que a “previdência, mediante
contribuição da União, do empregador e do emprega- do, em favor da
maternidade e contra as consequências da doença, da velhice, da invalidez
e da morte.”
Após 1946, somente em 1994, o legislador trouxe novidades aos idosos,
promulgando a Lei 8.842/94, que trata sobre a Política Nacional do Idoso,
uma grande conquista aos idosos, assegurando, principalmente, seus direi-
tos sociais. Posteriormente, foi instituído o Conselho Nacional dos Direitos
dos Idosos, pelo decreto 4.227 de 2002, e, em 2004, entrou em vigor a Lei
10.741/2003, denominada Estatuto do Idoso, regulando direito material e
processual, tratando-se direito previdenciário, civil, público, privado, etc.

2. PERFIS CONSTITUCIONAIS DOS DIREITOS DOS


IDOSOS

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) trouxe diversos dispositivos


nos quais garantem os direitos fundamentais, denominados de primeira
geração/dimensão.
Cabe elucidar, em que pese, entendimentos doutrinários transversais
diversos, será utilizada a expressão primeira “dimensão” ao revés de gera-
ção, pois, este último, poderia remeter o leitor a uma ideia equivocada de
que a próxima etapa, ou seja, geração poderia substituir/superar a anterior,
o que de fato não ocorre.
Ultrapassado tais prolegômenos, observa-se que a CF/88 em seus ar-
tigos 229 e 230 preconiza que:

Artigo 229: Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos


menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os
pais na velhice, carência ou enfermidade.

Artigo 230: A família, a sociedade e o Estado têm o dever de am-


parar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comuni-
dade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o
direito à vida

37
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

§ 1o Os programas de amparo aos idosos serão executados prefe-


rencialmente em seus lares.

§ 2o Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade


dos trans- portes coletivos urbanos. (BRASIL, 1988)

Deve-se ter em mente que a positivação constitucional do artigo re-


tromencionado, como direito fundamental, não aconteceu de forma ime-
diata, conforme estabelecido no capítulo 01, e sim por intermédio de um
processo histórico.
Nesse jaez, conforme explanado, os textos constitucionais anteriores
não preconizavam referida previsão de proteção ao idoso. Tratavam, so-
mente, quanto aos direitos previdenciários, conforme positivado na alínea
'h', do artigo 121 da Constituição Federal de 1934.
Para a criação de diversos direitos e deveres, em regra, prevalece o
brocardo em latim, qual seja, dura lex, sed lex, a lei é dura, porém é a lei,
e que a aplicação normativa é para todos sem distinção (princípio da terri-
torialidade), entretanto, admitem-se algumas exceções, para que se possa
alcançar o ideal aristotélico de justiça: tratar os iguais de forma igual e os
desiguais de forma desigual na medida de sua desigualdade.
Diante dessa premissa maior, o surgimento do direito aos brasileiros
na velhice, advém de uma exceção à lei, quanto à necessidade de igualdade
substancial efetiva, considerando a vulnerabilidade presumida dos idosos.
Nesse aspecto, analisando o direito comparado, observa-se que a
Constituição Portuguesa em seu artigo 72, desde 1976, tratava, desde já,
como diretrizes basilares nacionais a valorização da terceira idade.

Artigo 72º - As pessoas idosas têm direito à segurança económica


e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que
respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamen-
to ou a marginalização social. (PORTUGAL, 1976)

Nota-se, à luz desse dispositivo, que o ideal não é somente aos direi-
tos de segurança, moradia e convívio familiar, mas respeitar a proteção
econômica e a autonomia pessoal do idoso de forma a evitar o isolamento
e a marginalização social.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Nesse sentido, observamos as constituições da Espanha, Venezuela,


Peru, e Colômbia, nas quais trazem os direitos fundamentais aos idosos
em suas cartas magnas, a saber:

Artículo 50 - Los poderes públicos garantizarán, mediante pensiones


adecuadas y periódicamente actualizadas, la suficiencia económica a
los ciudadanos durante la tercera edad. Asimismo, y con indepen-
dencia de las obligaciones familiares, promoverán su bienesta me-
diante un sistema de servicios sociales que atenderán sus problemas
específicos de salud, vivienda, cultura y ocio. (ESPANHA, 1978)

Artículo 80. El Estado garantizará a los ancianos y ancianas el pleno


ejercicio de sus derechos y garantías. El Estado, con la participa-
ción solidaria de las familias y la sociedad, está obligado a respetar
su dignidad humana, su autonomía y les garantiza atención integral
y los benefícios de la seguridad social que eleven y aseguren su
calidad de vida. Las pensiones y jubilaciones otorgadas mediante
el sistema de Seguridad Social no podrán ser inferiores al salário
mínimo urbano. A los ancianos y ancianas se les garantizará el de-
recho a un trabajo acorde a aquellos y aquellas que manifiesten su
deseo y estén en capacidad para ello. (VENEZUELA, 1999)

Artículo 4 - Protección a la família. Promoción del matrimonio La


comunidad y el Estado protegen especialmente al niño, al adoles-
cente, a la madre y al anciano en situación de abandono. También
protegen a la família y promueven el matrimonio. Reconocen a
estos últimos como institutos naturales y fundamentales de la so-
ciedad. (PERÚ, 1993)

Artículo 46. El Estado, la sociedad y la família concurrirán para la


protección y la asistencia de las personas de la tercera edad y pro-
moverán su integración a la vida activa y comunitária. El Estado les
garantizará los servicios de la seguridad social integral y el subsidio
alimentario en caso de indigencia. (COLÔMBIA, 1991)

Pode-se notar que as referidas constituições têm por objetivo garantir


a autonomia de sua população na velhice, principalmente, por intermédio
da previdência social.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Entretanto, merecem ressalvas especiais as constituições da Espanha


e da Colômbia, nas quais objetivam garantir a suficiência econômica du-
rante a terceira idade promovendo o bem-estar (Espanha), e a integração
na vida ativa e comunitária (Colômbia).
No Brasil, os direitos aos idosos, além dos previstos na Constituição
Federal, estão preconizados nas Lei n.º 8.212/91, Lei n.º 8.842/94, Decre-
to n.º 1.948/94, Decreto n.º 4.227/02, Lei n.º 10.741/03, além de outras
normas esparsas no ordenamento jurídico.
Assim, o Estatuto do Idoso, preconizam diversos direitos, a saber:

O artigo 47 do Estatuto do Idoso, assim, diz que as políticas sociais


básicas, os pro- gramas de assistência social, os serviços especiais de
prevenção e atendimento às vítimas de negligencia, maus-tratos,
exploração, abuso, crueldade ou opressão, o serviço de identifica-
ção e localização de parentes ou responsáveis por idosos abandona-
dos em hospitais e instituições de longa permanência, a proteção
jurídico-social por entidades de defesa dos direitos dos idosos e a
mobilização da opinião pública no sentido da participação dos di-
versos segmentos da sociedade no atendimento do idoso consti-
tuem os objetivos principais da política de atendimento ao idoso.
Ora, todos os objetivos mencionados caracterizam, sem dúvida al-
guma, a observância, por parte do Poder Público, da dignidade da
pessoa humana. (FREITAS JÚNIOR, 2015, p. 126)

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral ine-


rente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodetermina-
ção consciente e responsável da própria vida, e que traz consigo a
pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se
em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve asse-
gurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas
limitações dos direitos fundamentais, mas sempre sem menospre-
zar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto se-
res humanos. (MORAES, 2001, p. 78)

O Código de Processo Civil de 2015, elenca apenas uma prerrogativa


aos idosos, qual seja quanto à competência no foro da residência do idoso
para causas previstas no Estatuto do Idoso (alínea 'e', inciso III, do art. 53,

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

do CPC/2015).Da análise do direito processual e material, observa-se que


outrora, nas legislações infraconstitucionais, não tratavam sobre a diferen-
ça fática entre os seres humanos.
Quando assim refiro (diferença fática), não quer dizer que o princípio
da dignidade da pessoa humana, aplica-se de forma a privilegiar determi-
nadas pessoas, entretanto, é real sua necessidade de análise, para igualdade
em seu aspecto material, fazendo aplicar a efetiva justiça. Nesse viés, a ilus-
tre escol doutrina de Simone de Beauvoir, verberou de forma brilhante
em seu livro sobre A velhice desde 1970 que:

O Código Civil não faz qualquer distinção entre um centenário e


um quadragenário. Os juristas consideram que, fora os casos pato-
lógicos, a responsabilidade penal dos idosos é tão integral quanto a
dos jovens. Os velhos não são considerados uma categoria à parte e,
por outro lado, isto não lhes agradaria; existem livros, publicações,
espetáculos, programas de tevê e de rádio destinados às crianças e
aos adolescentes; aos velhos, não (...) A desatenção às necessidades
do idoso, igualando-o ao homem adulto em direitos e deveres, ou
supondo que a garantia de um caixa preferencial no supermercado
é elemento bastante a aplacar qualquer sofrimento, é o mesmo que
enterrá-lo vivo, como faziam os dinkas do Sudão. (BEAUVOIR,
1990, p.43)

Das palavras exemplares de BEAUVOIR, diversos trechos podemos


extrair e ressaltar. Entretanto, antes disso, devemos fazer uma ressalva de
quanto avançada em seu tempo BEAUVOIR estava, sendo que lecionava
sobre a necessidade de igualdade material dos idosos, em seu livro datado
originalmente de 1970, ou seja, muito antes da promulgação do Código
Civil (2002) ou do Estatuto do Idoso.
Entretanto, se pesquisarmos as palavras idoso ou velhice no referido
Código Civil, não encontraremos nenhuma referência expressa. Em aná-
lise latu sensu, descortinamos as vertentes da velhice em duas representa-
ções sociais (CARADEC, 2001A, pp. 28-37), sendo elas: a) Discurso da
velhice negativa na qual ponderam e ressaltam somente as características
de pobreza, dependência, solidão, ansiedade, isolamento social, depressão,
etc., e b) Velhice positiva que se enquadra em um cotejo dos atuais adultos
e futuros idosos no qual induz a vertente de melhor idade, tempo para

41
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

as atividades dinâmicas, melhor qualidade de vida financeira, experiência


racional, etc., (embora muitos não modificam sua atualidade para poder
beneficiar-se na velhice).
Pode-se enquadrar mais um discurso, qual seja, o da exploração da
velhice, no qual analisa o idoso em uma perspectiva de consumo, como
potenciais seguimentos para desenvolvimento de medicamentos (causados
muitas vezes por causa natural como sarcopenia), necessidade de cuida-
dor, viagens de terceira idade, universidade para idosos, planos de saúde,
entre outros, que necessitam da demonstração de maior capacidade eco-
nômica destes.
Pois bem, em que pese os conceitos e conjecturas advindas da 2. ª
Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, realizada no mês de abril de
2002 pela ONU, no qual objetiva a integração labora e social dos idosos,
o que se observa no mundo dos fatos é realidade distinta.
Os idosos passam por diversas discriminações em relação ao trabalho,
possuem dificuldades quanto ao acesso, atividades culturais e recreativas
e, por pior que se possa imaginar, a banalização de solidariedade inter-
geracionais por parte dos próprios integrantes da família onde os filhos
abandonam os pais na velhice.
Pontua-se que, não se trata de exclusividade do abandono físico
presencial, mas a ausência de atenção, afeto, carinho, vida social, amor,
nos quais, quando inexistentes, trazem resultados piores que o abandono
material.
É necessário repensar a velhice, em seus conceitos e aplicabilidade
funcional ativa. Conforme verberava Pierre Boudieu "a juventude não é
senão uma palavra", existem idosos mais úteis e com atitudes diárias que
beneficiam toda a sociedade e jovens de alma atrasada que aparentam es-
tarem apenas de passagem no mundo. Em visão paralaxe, a velhice deve
ser tratada como a transcendência de um estado natural da existência,
um novo ciclo, uma nova fase, que merece atenção, apoio instrumental,
emocional, aconselhamento e orientação como outrora já fizeram por
seus filhos.
Assim, a velhice se situa em uma linha tênue divergindo em duas
situações, uma de má qualidade de vida e outra de excelente qualidade de
vida que devem ser estudadas para garantia de criação de políticas públicas
que possam facilitar o caminhar e a passagem da fase adulta para velhice.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Existe um conflito de raciocínio lógico, a razão não prepondera. Os


jovens desejam cada vez mais a longevidade, é o desejo de todos viverem
mais, entretanto, desde que exista uma fórmula mágica de condições para
isso como ausência de dependência, não ficar velho, excelente qualidade
de vida física e financeira. Entretanto, nada é feito pelos jovens para alcan-
çarem seus objetivos na velhice, pelo contrário.
No Brasil, existe um medo de envelhecer e uma vontade contínua
de permanecer na juventude, pois, a experiência da velhice não reflete
ao mundo imaginário dos jovens. Os jovens de hoje, que contam com a
velhice futura, maltratam e tratam com descaso os idosos diariamente, em
todos seus contornos sociais, materiais e intelectuais, e esperam que se-
jam tratados de forma diversa quando chegarem sua vez, não demonstram
qualquer apoio social aos idosos, apenas criticam, afastam e discriminam.
Barron (1996, p. 96) define como apoio social “um conceito inte-
ractivo que se refere às transacções que se estabelecem entre indivíduos”,
indivíduo esse que o idoso pode confiar ou contar em qualquer situação
diante da característica de utilidade que essas pessoas que amam, preocu-
pam e dão valor ao próximo diante de toda sua contribuição desempenha-
da ao longo da vida.
Se compreendermos que as pessoas com idade avançada possuem sig-
nificativo papel social e que efetuaram enormes contribuições (familiares,
profissionais, sociais, etc.), durante o decorrer dos anos, entenderemos a
necessidade de lutarmos por políticas sociais que honrem essa geração.
Nesse prisma, é público e notório que na velhice os custos de vida
aumentam gradativamente (remédios, consultas, doenças, ausência de tra-
balho, plano de saúde, etc.), e de modo inversamente proporcional ocor-
re a redução dos rendimentos como, por exemplo, o aminguamento dos
ganhos ao se aposentarem.
Por tais motivos, foram criadas legislações no sentido de diminuir essa
discrepância diante da vulnerabilidade fática presumida do idoso, sendo
que em 2006 foi regulamentada a gratuidade da passagem em viagens in-
terestaduais.
A Lei nº. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), o Decreto nº. 5.934/2006
e a Resolução 1.692/2006 da Agência Nacional de Transporte Terres-
tre regulamentaram que as empresas que prestam serviço de transporte
rodoviário de passageiros de forma habitual, têm o dever de reservar aos

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

idosos (desde que preencham os requisitos de idade e renda) dois assentos


gratuitos por ônibus.
Cabe ponderar, o que poucas pessoas sabem, que quando já estive-
rem preenchidos os assentos gratuitos, deverá ser concedido o desconto
mínimo de 50% (cinquenta por cento) no valor das demais passagens. As
pessoas que têm direito são as maiores de 60 (sessenta) anos e renda igual
ou menor que dois salários-mínimos. Sob esse prisma, resta o questio-
namento da inexistência de passagens aéreas para os idosos. Em que pese
existir um Projeto de Lei do Senado (PSL nº 482) apresentado em 2011
pelo senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), não existe nenhum dispositivo
legal hodiernamente que garanta o deslocamento do idoso por transporte
aéreo de forma gratuita.
Toda fundamentação supramencionada nos leva a pensar, diante da ad-
versidade encontrada na velhice, pela falta de condições financeiras, aumento
do custo de vida, solidão social, entre outros, que vários idosos não conse-
guem, em um país que possuem Estados maiores que outros países, viajarem
para encontrarem seus parentes e muito menos a lazer, pois os custos das pas-
sagens são de valores teratológicos para as condições de vida desses.
Segundo registro da Agência Nacional de Aviacao Civil, somando
somente as quatro maiores empresas de transporte aéreo público no 1º tri-
mestre de 2018, essas tiveram lucro líquido somado de R$ 369,2 milhões
de reais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dessa análise, com as péssimas condições das estradas somadas


ao tamanho continental do país e a saúde precária dos nossos idosos, veri-
fica-se que não é compatível que empresas milionárias de transporte aéreo
não tenham o dever de garantir vagas gratuitas aos passageiros idosos de
baixa renda.
A luta pelos direitos dos idosos reflete nos nossos próprios direitos
futuros e devem ser buscadas com forças titânicas. Os legisladores de-
vem garantir os direitos fundamentais de forma material, ou seja, pre-
conizando os direitos de cidadania previstos na Constituição Federal
de 1988, mais conhecida como Constituição Cidadã, que envolve os
direitos políticos, sociais e civis, dentre os direitos civis e sociais respec-

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tivamente, não podemos deixar de mencionar o de ir e vir, o direito ao


lazer e bem-estar social, a saúde, a moradia, a integridade física, social e
psicológica dos idosos, sendo nosso papel cobrar de nossos representan-
tes o papel de garantidor de todos estes direitos previstos nas normativas
federais, estaduais e municipais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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cional dos Direitos dos Idosos. Brasília: DF, 2002.

_____. Decreto 1.948 de 03 de julho de 1996. Regulamenta a Política


Nacional do Idoso. Brasília: DF, 1996.

_____. Decreto nº. 5.934 de 18 de outubro de 2006. Estabelece mecanis-


mos e critérios a serem adotados na aplicação do disposto no art. 40
da Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), e dá
outras providências. Brasília: DF, 2006.

45
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_____. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília:


DF, 2002.

_____. Lei nº 13.105, de março de 2015. Código de Processo Civil.


Brasília, DF: Senado, 2015.

_____. Lei nº 8.842 de 04 de janeiro de 1994. Institui a Política Nacio-


nal do Idoso. Brasilia: MPAS, SAS, 1997.

_____. Lei nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. Institui o Estatuto


do Idoso. Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
2004.

_____. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organi-


zação da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá
outras providências. Brasília, DF: 1991.

_____. Resolução ANTT nº 1.692, de 24 de outubro de 2006. Dispõe


sobre procedimentos a serem observados na aplicação do Estatuto do
Idoso no âmbito dos serviços de transporte rodoviário interestadual
de passageiros, e dá outras providências. Brasília, DF: 2006.

CARADEC, Vincent. sociologie de la vieillesse et du vieillissemet.


2001a. ed. Paris, v. 128. (Édition Nathan).

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46
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
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1999. Disponível em: <http://www.minci.gob.ve/wp-content/up-
loads/2011/04/CONSTITUCION.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2017.

47
A CURATELA E A TOMADA
DE DECISÃO APOIADA
COMO GARANTIAS CIVIS
CONSTITUCIONAIS
Maria Clara Chaves Assunção3

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo abordará os institutos relacionados ao regime das


capacidades em convergência com o modelo constitucional, associado aos
direitos humanos e fundamentais da pessoa com deficiência, reservando-
-se à reflexão sucinta, baseada na realidade, sem, contudo, aprofundar-se
na teoria do direito fundamental.
A Tomada de Decisão Apoiada é um procedimento de jurisdição vo-
luntária, introduzido no Direito Civil com o advento do Estatuto da Pes-
soa com Deficiência e vem sendo encarado como uma alternativa à vetusta
ação de interdição civil.
Enquanto na Tomada de Decisão Apoiada, a própria pessoa requer o
auxílio, optando pela nomeação de dois apoiadores, na Ação de Interdi-
ção, conforme postulação de um dos legitimados, o Juiz declara a incapa-
cidade civil de alguém e nomeia um curador ao interdito para administrar
seus bens ou sua pessoa.
O clássico instituto da curatela tornou-se centro de polêmicos de-
bates junto à comunidade jurídica e especializada, ao ponto de algumas

3 Especialização em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes.

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vozes propalarem até mesmo o seu fim. Este artigo se propõe a defendê-la
como instrumento de proteção - que é - dos direitos fundamentais de
quem dela necessite.
O termo deficiência é carregado de historicidade4, pois a cada estágio
de desenvolvimento sociocultural o tema é encarado de modo distinto.
Atualmente, o conceito de deficiência está contido no art. 2º da Lei
13.146/2015, da seguinte forma: se considera pessoa com deficiência
aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras,
pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade
de condições com as demais pessoas. 
A capacidade civil de uma pessoa não está condicionada à deficiência,
porém, há casos em que o impedimento mental ou intelectual compro-
mete o livre discernimento do indivíduo, afetando a funcionalidade das
atividades de vida diária.
A falta de autogoverno, neste caso, poderá em maior, ou menor me-
dida, torná-lo incapaz para certos atos ou à maneira de exercê-los. Ativi-
dades menos complexas afetam a autonomia para o exercício de direitos
extrapatrimoniais - um ângulo da capacidade civil.  
De modo que o imperativo da lei civil não é suficiente para determi-
nar, na realidade, a preservação de faculdades cognitivas necessárias para
a prática segura de atos (decisões para a administração dos bens ou de sua
pessoa) em medida razoável para a boa manutenção da vida e das coisas.
Neste sentido, a escolha pela interdição ou pela tomada de decisão
apoiada terá de ser pensada pelos legitimados, ou mesmo pelo próprio
indivíduo, de acordo com a situação pessoal de cada caso, pautando-se no
seu maior interesse e na proteção de sua dignidade.
A decretação da incapacidade absoluta em certos casos poderá ser a
providência mais adequada, sem embargo da lei civil categorizar como
relativamente capazes as pessoas com deficiência intelectual, por uma sim-
ples razão: proteção.

4 CUNHA, Antonio Renato Cardoso da Cunha, ASSUNÇÃO, Maria Clara Chaves. O Projeto
de Acessibilidade Jurídica como Instrumento de Garantia da Dignidade da Pessoa Humana.
Disponível em: <www.conpedi.org.br> em publicações. IV Congresso Nacional da FEPODI.
O artigo contém breve relato histórico sobre o movimento político das pessoas com defi-
ciência no Brasil.

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Após longo processo de segregação e discriminação histórico-social


contra a pessoa com deficiência, a Lei Brasileira da Inclusão (como tam-
bém é denominado o Estatuto da Pessoa com Deficiência) inova no orde-
namento jurídico ao traçar alternativas ao modelo incapacitante, na teoria
do direito civil e também ao modelo médico conceitual, no que concerne
à compreensão do que vem a ser deficiência.
Ao longo dos anos, o tratamento jurídico dispensado à pessoa com
deficiência seguiu o modelo incapacitante o que pode ser observado, den-
tre outros, pelos seguintes fatores: exegese estática e literal dos dispositivos
disciplinadores da interdição e da capacidade civil; prestação jurisdicional
pautada na interdição total, em detrimento da fixação proporcional e ra-
zoável da curatela; inexistência de procedimentos mais brandos alternati-
vamente à interdição; a ampla utilização da perícia psiquiátrica, em detri-
mento da análise biopsicossocial5 do indivíduo; enfoque discriminatório
da curatela no lugar do garantista e etc.
A Tomada de Decisão Apoiada passa a modular o exercício da ca-
pacidade legal sob olhar inclusivo, resguardando a liberdade pessoal do
deficiente, todavia, não substitui a curatela, quando se trata da deficiência
intelectual moderada a severa.
Ocorre que a capacidade civil deve continuar sendo discutida, em
face das inovações6 trazidas pela Lei Brasileira da Inclusão, sob o viés da
constitucionalização do direito civil.

2. UM BREVE RELATO HISTÓRICO

5 ASSUNÇÃO, Maria Clara Chaves. SOARES, Irineu Carvalho de Oliveira. A importância da


prova técnica na interdição das pessoas com deficiência. In: Revista Científica Ciência Atual.
Rio de Janeiro, Volume 8, nº 2, 2016. Disponível em: <http://inseer.ibict.br/cafsj/index.php/
cafsj/index>. O artigo ressalta a participação da equipe multidisciplinar na formação da con-
vicção judicial.
6 RODRIGUES, Melissa Cachoni, RIBEIRO, Dandara dos Santos Damas. Inovações da Lei Bra-
sileira de Inclusão no CC e no NCPC e as repercussões na jurisprudência. Revista Jurídica do
Ministério Público do Estado do Paraná, ano 4 - nº 7, dezembro / 2017. Curitiba, Paraná.
Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/arquivos/File/imprensa/2017/RevistaJuridica_7E-
dicao.pdf>. Acesso em: 14/03/2020.

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A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (de 1789), nas-


cida da Revolução Francesa, reconhece a igualdade entre os homens e a
extinção de privilégios abusivos do Estado contra o indivíduo.
Considerada como modelo a ser seguido pelo constitucionalismo
liberal, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela
Organização das Nações Unidas, em 1948, surgiu em um momento de
conscientização de direitos, quando se reafirmou o espírito de liberdade
e igualdade, servindo de base para os demais tratados internacionais de
direitos humanos.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), internali-
zada no ordenamento pátrio como norma supra legal, dispõe em seu art.
3º que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade
jurídica.
Conhecida como Pacto de São José da Costa Rica vem reafirmar o
conteúdo da Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe em seu
preâmbulo que só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento
do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada
pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como
dos seus direitos civis e políticos.
Nesta análise se conectam o direito público e o direito privado pelo
que se verifica do item 2, do Artigo 23, segundo o qual a lei pode regular
o exercício dos direitos de participação e acesso às funções públicas de seu
país, por motivo de capacidade civil e mental.
A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com deficiência (2009) é
o primeiro tratado de direitos humanos internalizado na ordem jurídica
nacional com status de emenda constitucional.

A Convenção surge como resposta da comunidade internacional


à longa história de discriminação, exclusão e desumanização das
pessoas com deficiência. É inovadora em muitos aspectos, tendo
sido o tratado de direitos humanos mais rapidamente negociado e
o primeiro do século XXI. Incorpora uma mudança de perspec-
tiva, sendo um relevante instrumento para a alteração da percep-
ção da deficiência, reconhecendo que todas as pessoas devem ter a
oportunidade de alcançar de forma plena o seu potencial.(PIOVE-
SAN, 2015, p.303)

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A personalidade jurídica é o contorno formal da capacidade civil, a


partir deste entendimento o homem está para a ordem jurídica como su-
jeito de direitos e obrigações, em igualdade de condições com todos os
seus semelhantes.
Ao considerar a personalidade da pessoa física, todos os direitos civis e
políticos são articulados, tais como o respeito à integridade física, psíquica
e moral, a liberdade e o direito de expressão (e da parte ser escutada).
As pessoas com deficiência sofreram, demasiadamente, com o estig-
ma social, sendo rotulados como improdutivos, incuráveis ou imperfeitos,
até castigos físicos e tratamentos cruéis e degradantes, metodologia redire-
cionada com a Reforma Psiquiátrica.
O padrão de normalidade, geralmente, aceito impacta diretamente
na absorção da mão de obra com deficiência, agravando ainda mais a de-
sigualdade econômica.
Tendo em vista a dificuldade de se enxergar a diversidade como algo
natural, condutas de racionalidade fracassaram:

Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma


não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários
tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas
vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: construímos
uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferiori-
dade e dar conta do perigo que ela representa. (GOFFMAN, 1963,
p.08)

Neste tema, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiên-


cia (art. 12) reafirma a importância do exercício da capacidade legal em
igualdade de condições, respeitado o grau em que as salvaguardas afetam
os direitos e interesses da pessoa.

Reconhecimento igual perante a lei - 1.Os Estados Partes reafir-


mam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhe-
cidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei. 4.Os Estados
Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da
capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para
prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos
direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas

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relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a


vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de in-
teresses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas
às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto
possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade
ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As sal-
vaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afeta-
rem os direitos e interesses da pessoa

Mais do que mero instituto jurídico, a curatela é garantia civil cons-


titucional através da qual se materializam os direitos fundamentais da pes-
soa com deficiência intelectual (capacidade legal, reabilitação, autonomia,
saúde, integridade, liberdade, vida, segurança, lazer, moradia, educação,
privacidade, trabalho e etc.).
Por motivo de proteção à integridade física, os deficientes intelectuais
não raro precisam de observação contínua, motivo pelo qual, em regra, os
pais são os curadores, a fim de melhor perseguirem os interesses de seus
filhos.
Neste sentido, pensando naqueles que vivem sob a custódia do Esta-
do, no âmbito da alta complexidade do Sistema Único de Assistência So-
cial, a prestação positiva por parte do poder público mais especificamente
sob o viés da representação garantista da personalidade, se bem desenvol-
vida, poderá gerar ganhos sociais de bem estar e prosperidade.
Neste sentido, remonta-se a ética da reciprocidade dos direitos hu-
manos, (PIOVESAN, 2012) aquela ética que vê no outro um ser mere-
cedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de
desenvolver as suas potencialidades de forma livre e de forma plena.
A Constituição Brasileira reserva o Título II (art. 5º ao 17), aos direi-
tos e garantias fundamentais, estando nela previstos os direitos individuais,
coletivos e sociais como expressão das duas primeiras gerações dos direitos
fundamentais.
A primeira geração dos direitos fundamentais liga-se às liberdades pú-
blicas, enquanto a segunda geração dos direitos fundamentais envolve a
questão dos direitos sociais.
Acerca da mutabilidade dos direitos fundamentais, a dimensão objeti-
va possibilita que sejam também aplicados nas relações entre particulares,

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

na medida em que eles vão muito além da dimensão subjetiva de direitos


do indivíduo frente aos Poderes Públicos.
Estando na base do ordenamento jurídico, os direitos fundamentais
não vinculam apenas os Poderes Públicos, mas vinculam também os par-
ticulares nas relações com outros particulares.
Sob a ótica dos direitos fundamentais e suas gerações, separadas por
categorias de direito, por assim dizer, sem o necessário aprofundamento
neste momento, é válido mencionar que a doutrina se refere à terceira
geração que, considerando os direitos de solidariedade ou fraternidade, se
referem à resistência contra a deterioração da qualidade de vida humana e
seus agravos sociais.
Doutrinariamente, estabelece-se, inclusive a diferença entre os direi-
tos materialmente fundamentais e os direitos fundamentais apenas for-
mais, como é o caso do direito de obter certidões.
A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º, §2º, dispõe que
os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Neste
sentido, outros direitos de hierarquia superior são portadores de mesma
consideração, mesmo que não constem expressamente do texto consti-
tucional.

3. DIREITOS FUNDAMENTAIS GARANTIDOS PELA


CURATELA

Por ser uma condição humana, a deficiência e suas implicações não


podem ser ignoradas, pois o meio também exerce influência sobre essa
condição, podendo agravar ou minorar as dificuldades advindas das lesões
(impedimentos próprios).
O intuito é resguardar a participação equitativa de todos, de modo a
preservar o bem-estar social e o direito à igualdade. Por isso, cabe avaliar se
a lei que protege os direitos da pessoa com deficiência produz efeitos perante
as demandas sociais, respeitando a dignidade humana de forma efetiva.
Sob o aspecto social, a capacidade civil e o direito à educação são (ou
deviam ser) congruentes, na medida em que o sucesso da capacidade ci-
vil do indivíduo com deficiência, ao atingir a maioridade, em grande par-

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te, depende diretamente de um sistema educacional de qualidade e inclu-


sivo - ideal da Lei.
Esta idéia reforça a significativa atuação de terapeutas ocupacionais no
ambiente escolar, a instalação da sala de recursos e a adaptação de conteú-
dos pedagógicos em prol do desenvolvimento de alunos com deficiência
intelectual.
A Tomada de Decisão Apoiada gerou dúvida, se seria capaz de subs-
tituir a Curatela, definitivamente, não será.
Porém, tem o condão de modular o exercício da capacidade, recaindo
sobre a pessoa de forma branda, sem efeito perante terceiros e conteúdo
detalhado acerca dos atos, vez que tem início na manifestação de vontade
da parte, enquanto a curatela subentende um enfrentamento natural e será
levada a registro.
As mudanças de ordem hermenêutica e legal impactam as funções
institucionais estatais.
Depreende-se do art. 1783-A, do Código Civil, que o requerente
da tomada de decisão apoiada deve possuir grau suficiente de faculdade
mental preservada, pois ele elege seus apoiadores, possuindo, assim, en-
tendimento sobre a realidade.
Aparentemente, o procedimento referido é mais apropriado às defi-
ciências que afetam o físico, sensorial ou mental (dependendo do grau),
mas não é o caso de quem é acometido de déficit cognitivo, moderado a
severo.
É relevante anotar as eventuais dificuldades de implantação da Toma-
da de Decisão Apoiada e identificar os pontos fortes e fracos da curatela
que tanto divide opiniões, ora sendo associada ao assistencialismo, ora as-
sociada – como se acredita - à inclusão social.
O estudo da curatela sob o prisma existencial para além do seu aspec-
to patrimonial é recomendável, ainda que entre as relações privadas seja
obrigatório o respeito recíproco, a figura do curador possui o condão de
prover de cuidados essenciais a pessoa em situação de curatela, resguar-
dados, logicamente, abusos indesejáveis que não podem ser confundidos
com o propósito da salvaguarda, propriamente dita.
É indispensável para o indivíduo com deficiência intelectual a presen-
ça de alguém, um porta voz, que defenda seus interesses, mormente nas

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situações em que a compreensão e a fala são afetadas, pois sozinho seria


penoso ou impossível enfrentar os desafios de uma vida.
Surge, daí, a problemática da proteção efetiva do vulnerável sob a
tutela institucional do poder público, pessoas que não possuem uma
rede afetiva ou familiar, neste caso, a nomeação de um curador vira um
percalço.
Diante do crescente quadro de pessoas com deficiência que atingem
a fase adulta, em situação de vulnerabilidade social, é importante certifi-
car-se de que o Estado põe a salvo os meios de promover a curatela, como
medida extraordinária e proporcional à deficiência, distribuindo o encar-
go entre pessoas capacitadas para o exercício de tal múnus.
Por outro lado, quanto ao regime das capacidades, no afã de reabili-
tar o modelo incapacitante, transformando-o em um modelo altamente
(radicalmente) capacitado, ao revogar o art. 3º do Código Civil, retirando
integralmente do rol de absolutamente incapazes as pessoas com prováveis
deficiências mentais e intelectuais o comando legal escapa do pragmatis-
mo social.
Se por um lado, a autonomia privada projeta as suas luzes em recan-
tos até então inacessíveis, ao comentar que os dois artigos matriciais do
Código Civil foram reestruturados (GAGLIANO, 2016, 01). Por outro,
em nome da segurança jurídica e da proteção das pessoas com deficiência,
de acordo com o grau de seu discernimento, a alteração do Código Civil
pode produzir risco de não serem tuteladas.
Com o objetivo de afastar um sistema paternalista ou excludente (para
desfazer o estigma social), a lei deixou de considerar que a interdição total
dos sujeitos desprovidos de autogoverno é irrefutável.
A proteção integral do ser humano é tônica pertinente à curatela,
dissociada da idéia que se faz da interdição como um ato, unicamente,
castrador.
Novas premissas que imprimem maior flexibilidade ao regime das ca-
pacidades podem ser encontradas no Estatuto da Pessoa com Deficiência,
a Tomada de Decisão Apoiada, por exemplo, baseia-se, primordialmente,
na liberdade de escolha individual.
A Tomada de Decisão Apoiada e a Curatela são complementares e
devem ser aplicadas de acordo com o caso concreto, mas não se repelem

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no quadro geral do ordenamento jurídico que os alberga simultaneamente


(art. 84, §1º e 2º, EPCD).
A prova técnica é de fundamental importância para que o indeferi-
mento da interdição não seja uma prática pelo Judiciário, dissociada dos
elementos da realidade.
O procedimento da Tomada de Decisão Apoiada pode vir a servir,
em último caso, de instrumento para constatação sobre a adequação, ou
não, da interdição ao caso concreto, bem como, ter como objetivo a reali-
zação de negócio jurídico específico.
A definição de curatela à pessoa com deficiência constitui medida
protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias
de cada caso, e durará o menor tempo possível. E para emissão de do-
cumentos oficiais, não será exigida a situação de curatela da pessoa com
deficiência.
Com relação ao prazo para a duração da curatela, compreende-se que
em certos casos a curatela será permanente, sobretudo quando a circuns-
tância que a motivou for de difícil reabilitação, o impedimento biológico
atingir os processos mentais de forma irreversível.
De acordo com o art. 85, §1º da Lei 13.146/2015, a definição da cura-
tela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio,
à privacidade, à educação, à saúde, ao artigo e ao voto.
Análise valiosa deste dispositivo (ABREU, 2015, p.115):

Acontece que este artigo não está certo. Este dispositivo engessa
a interdição parcial. De fato, nada impede que, na interdição par-
cial, as restrições recaiam sobre situações existenciais e não sobre
as patrimoniais. Um indivíduo pode não estar apto a cuidar de seus
assuntos patrimoniais.

Este tema é pródigo em dividir opiniões (GAGLIANO, 2016, p. 04):

Mas o grande desafio é a mudança de mentalidade, na perspecti-


va de respeito à dimensão existencial do outro. Ciente de que há
sérios desafios de interpretação a enfrentar, rogo que a doutrina e
a jurisprudência extraiam do Estatuto o que há nele de melhor,
valorizando o seu sentido, a sua utilidade e o seu fim. Mais do que
leis, precisamos mudar a forma de percebermos o outro, enquanto

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

expressões do nosso próprio eu. Só assim compreenderemos a dig-


nidade da pessoa humana em toda sua plenitude.

Neste cenário, é possível conferir modelos assemelhados no Direito


comparado ((REQUIÃO, 2016, p. 02).

A adoção de medidas diferentes da curatela é algo que pode ser


encontrado na experiência estrangeira. Apresentam-se ora através
da criação de novos modelos que excluem a curatela do sistema,
como no caso da austríaca Sachwalterschaft e da alemã Betreuung; ora
com a criação de modelos alternativos que não excluem a curatela
do sistema mas esperam provocar o seu desuso, como se deu com a
criação do “administrador” belga e da figura do amministrazione di
sostegno italiana; e por vezes simplesmente como figura que convi-
verá com a curatela, como na sauvegarde de justicefrancesa.

Com mais de uma fonte de comparação, como se vê abaixo:

O novo modelo jurídico também se inspira no legislador italia-


no, que através da Lei n. 6/2004 introduziu no Código Civil (arts.
404 a 413) a figura do amministratore di sostegno, ou seja, o ad-
ministrador de apoio, e ingressa no Brasil por meio do Estatuto
da Pessoa com Deficiência quase que simultaneamente com a sua
introdução no art. 43 do Código Civil da Argentina, com vigência
programada para 2016. (...) Enquanto a curatela e a incapacida-
de relativa parecem atender preferentemente à sociedade (isolando
os incapazes) e à família (impedindo que dilapide o seu patrimô-
nio), em detrimento do próprio interdito, a Tomada de Decisão
Apoiada objetiva resguardar a liberdade e dignidade da pessoa com
deficiência, sem amputar ou restringir indiscriminadamente seus
desejos e anseios vitais. (ROSENVALD, 2016, p.01)

Quanto ao novo dispositivo comenta também que:

No caso brasileiro optou-se pela convivência entre a curatela e o


novo regime, servindo inclusive as disposições gerais daquela para
este, nos termos do artigo 1783-A, §11. Se na realidade brasileira a

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tomada de decisão apoiada levará ao desuso da curatela, é algo que


somente o tempo dirá. (REQUIÃO, 2016, p. 02)

Como acima mencionado, o instituto encontra amparo em ordena-


mentos de outros países, embora com peculiaridades (RAMOS, 2008,
p.55).

Na Suécia já se adota um modelo altamente capacitante, tendo a


pessoa do curador a incumbência de auxiliar a pessoa com defi-
ciência a fazer escolhas e tomar decisões de forma independente.
Essa figura, chamada de ombudsperson, não é indicada num processo
judicial de interdição, fazendo parte dos quadros da Administração
Pública, com a incumbência de se aproximar da pessoa com defi-
ciência, conquistar sua confiança, o que pode levar dias, meses ou
anos, e por fim auxiliá-la a manifestar sua vontade sobre aspectos
da sua vida, ou tão somente prestar apoio em momentos difíceis.

O modelo acima demonstra que a criação de mecanismos para o


exercício da capacidade civil pela pessoa com deficiência e as salvaguardas
com base na igualdade é tema de política pública relacionado com o direi-
to fundamental à habilitação e reabilitação.
O Estatuto, regulando os termos previstos na Convenção Internacio-
nal, estabelece a reabilitação como direito fundamental, tanto quanto o
direito à vida, saúde, moradia, educação, cidadania e transporte.
É imprescindível que sejam asseguradas condições para o processo de
reabilitação da pessoa com deficiência. O curador deverá buscar tratamen-
to e apoio apropriados à conquista da autonomia pelo interdito (art. 758,
CPC).
Recentemente, passou a constar do art. 85, §3º, da Lei Brasileira de
Inclusão que no caso da pessoa em situação de institucionalização, ao no-
mear curador, o juiz deve dar preferência à pessoa que tenha vínculo de
natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
Vale lembrar que a criança e o adolescente possuem uma rede de pro-
teção de direitos, cercada por um mecanismo estatal composto por: Comis-
sários de Infância e Juventude, Conselho Tutelar e guarda atrelada ao diri-
gente de abrigo, conforme Estatuto próprio, vigente há mais de dez anos.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Porém, o mesmo não ocorre com o deficiente intelectual na fase


adulta, muito embora o desenvolvimento cognitivo não corresponda ao
cronológico/físico.
Tão logo passe para a fase adulta, a sua segurança depende, a rigor, de
uma interdição bem sucedida, isto é, quando a curatela é atribuída a quem
melhor possa atender aos interesses do curatelado (art. 755, §1º, CPC).
Cabe ao Juiz firmar sua convicção subsidiado pela prova pericial que
poderá ser produzida por equipe multidisciplinar, uma vez que o novo
padrão de judicialização da capacidade civil contém em si o desafio de
distinguir os atos para os quais o interdito possui habilidade suficiente e os
atos para os quais não possui a mesma aptidão.
Razão pela qual não se presume mais a incapacidade absoluta da pes-
soa com deficiência, porque todos são capazes em alguma medida de rea-
lizar algo ou possui o potencial.
Isto explica a cláusula aberta no artigo 755, I e II, do CPC, que per-
mite que o Juiz se fundamente no sistema de valores e provas a fim de
decretar a incapacidade relativa ou absoluta, mencionando os atos da vida
civil e a correspondência viável diante das características pessoais, poten-
cialidades, habilidades, vontades e preferências do interdito.
Dificilmente, o Judiciário chegará a este patamar isento de equívo-
cos, haja vista que em muitos casos sequer a entrevista pessoal é marcada,
valendo-se o Juízo do laudo pericial para decretar a interdição e nomear
curador, o que a bem da verdade, muitas vezes, é favorável às partes.
A par da visão romantizada sobre a capacidade legal das pessoas com
deficiência, que atingiu sem muitas reservas o deficiente intelectual, a ne-
cessidade de regularização de sua representação é medida de relevância e
urgência.
Dignos de elogios, os Enunciados do Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios (nº 80 e seguintes), in verbis:

II - Nos procedimentos de curatela ou tomada de decisão apoia-


da, o juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita,
podendo adotar em cada caso a solução que considerar mais con-
veniente e oportuna, conforme dispõe o art. 723, parágrafo único,
do novo CPC. III - O art. 85 da Lei n. 13.146/2015 deve ser inter-
pretado em consonância com o art. 723, § único, do novo CPC,

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de forma que a curatela da pessoa com deficiência poderá afetar o


exercício de direitos de natureza extrapatrimonial, desde que essa
restrição conste da Sentença. IV - Os arts. 3º e 4º do Código Civil,
com a nova redação dada pela Lei n. 13.146/2015, não disciplinam
todas as hipóteses de incapacidade, de forma que poderá ser decre-
tada por sentença a incapacidade absoluta da pessoa com deficiên-
cia, nos casos em que houver necessidade.

Fato é que a interpretação sistemática entre a lei e os princípios cons-


titucionais permite encarar a curatela de modo mais flexível e dinâmico,
com enfoque na proteção individual.
Flexibilizar a curatela é aplicá-la, como medida protetiva, a todos que
dela necessitem e na proporção que precisem (ABREU, 2015, p.115).

Desse modo, sempre que a lei não contiver uma determinação es-
pecífica e suficiente para a proteção da parte mais fraca da rela-
ção contratual, nos casos onde nitidamente falta uma igualdade de
forças na relação, a aplicação das cláusulas gerais jurídico-privadas
por meio dos tribunais civis ganha espaço por meio de uma eficá-
cia indireta dos direitos fundamentais. Isso garante a efetivação da
autonomia privada, bem como da liberdade contratual, com a fi-
nalidade de evitar o abuso pela desigualdade de poder. Nessa pers-
pectiva, o princípio da proporcionalidade detém uma importante
função para a concretização das cláusulas gerais, sobretudo no que
diz respeito à boa-fé. (DUQUE, 2013, p.274)

Para a doutrina segundo a qual a eficácia dos direitos fundamentais


nas relações de direito privado se dá de forma indireta ou subsidiaria os
valores constitucionais emanariam das cláusulas gerais de direito.
Nas situações mais críticas como, em tempos de pandemia, ou con-
flito, sobressai a importância da figura do curador para a manutenção das
condições de saúde física e mental destes indivíduos mais vulneráveis, seja
pela fragilidade em geral do sistema imunológico, seja pelas dificuldades
comportamentais, advindas do voluntarismo irracional, uma vez despro-
vidos do discernimento completo e da consciência sobre todo o risco a
que estão sujeitos.
De modo que em relação a este instituto, a incidência pragmática dos
direitos fundamentais é um evento concernente à própria convivência.
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No caso de hospitais e residências terapêuticas, a questão da curatela


está presente na atuação de assistentes sociais que fiscalizam as necessida-
des de defesa de direitos, obtenção de prontuários médicos, documenta-
ção, benefícios sociais e etc.
Fato é que diante de um quadro severo de deficiência, a única opção
será a interdição e nomeação de um curador, responsável por salvaguardar
o complexo de direitos do curatelado, desde atitudes elementares como
higiene, alimentação, moradia até as atividades mais sofisticadas de inte-
ração social.

4. CONCLUSÃO

Portanto, a análise baseada na tutela da dignidade da pessoa com defi-


ciência e na proteção do maior interesse do curatelado, é que se observará,
caso a caso, qual a medida processual mais adequada para a garantia dos
direitos fundamentais: se a interdição, a fim de melhor garantir uma exis-
tência digna e a preservação de seu patrimônio, ou, a Tomada de Decisão
Apoiada, para a gestão compartilhada dos atos da vida civil.
Sendo imprescindível para essa avaliação, a prova pericial apta a inves-
tigar os limites da deficiência à autonomia individual e valorar a igualdade
substancial, a ser buscada durante e após o processo.
Vale lembrar que todo o corpo social deve estar consciente sobre a
esteira da conquista de direitos para que a tendência de abertura para o
convívio harmônico de todos não seja interrompida.
Neste passo, os estudos devem favorecer o processo construtivo de
aprendizado, refletindo sobre o modo com que os avanços na promoção
dos direitos da pessoa com deficiência interferem na formulação de políti-
cas públicas, a participação positiva de instituições político-jurídicas neste
processo, assim como a eficácia legislativa em relação à promoção do bem-
-estar e da qualidade de vida das pessoas.
A curiosidade despertada sobre o modo de gestão das curatelas (da-
queles que vivem sob a custódia do Estado) gera produtos positivos para a
esfera coletiva.
A interface da teoria das capacidades com o respeito à liberdade in-
dividual - e os bens da vida que dependam da proeminência da curatela

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(parcial ou total), ou da tomada de decisão apoiada para a sua garantia -


resulta em benefícios que ultrapassam a esfera particular.
É importante reconhecer a peculiaridade de cada pessoa com defi-
ciência intelectual na fase adulta para a correta aplicação do regime de
capacidade, sob a ótica dos direitos fundamentais. O aspecto pragmático
permitirá a aplicação casuística das salvaguardas mais apropriadas.
Considerando que há efeitos variados oriundos da interação do de-
ficiente intelectual com seu meio, a análise interdisciplinar, certamente,
permitiria avançar mais nas garantias fundamentais do indivíduo.
Pelo exposto, sendo em princípio a curatela um instituto que tem por
objetivo a proteção da pessoa e de seu patrimônio, no caso da deficiência
mental e intelectual, é inevitável interpretá-la como uma garantia funda-
mental, por se tratar de um dispositivo jurídico que tem por finalidade
viabilizar o acesso aos bens da vida.

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66
AVALIAÇÃO DAS NOVAS
PERSPECTIVAS DA GESTÃO
SOCIAL NO ESTADO DA PARAÍBA
NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NO COMBATE
À ERADICAÇÃO DA POBREZA,
ASSEGURADA NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL PARA REDUZIR AS
DESIGUALDADES SOCIAIS.
José Lirailton Batista Feitosa7

INTRODUÇÃO

A pobreza no Brasil é consequência de um passado histórico resul-


tante da ganância dos colonizadores europeus que, movidos por interesses
eminentemente mercantilistas, não respeitaram os povos tradicionais. Es-
ses desajustes econômicos e sociais foram patrocinados ou, pelos menos,
contaram com a conivência da ação do Estado, tímido no sentido de re-
gular e estabelecer equilíbrios entre os interesses privados e os interesses
coletivos mediados por políticas pública.

7 Coordenador do Programa Pacto pelo Desenvolvimento Social da Paraíba. Formado em


Direito-UFCG, Doutor Em Ciências Sociais-UMSA, Especialização em Gestão Pública-UEPB,
professor de Direito Administrativo, Licitações e Contratos da ESPEP-PB.

67
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O Brasil, nas últimas décadas, vem confirmando, infelizmente, uma


tendência de enorme desigualdade na distribuição de renda e elevados ní-
veis de pobreza. Um país desigual, exposto ao desafio histórico de enfren-
tar uma herança de injustiça social, que exclui parte significativa de sua
população do acesso a condições mínimas de dignidade e cidadania.
É dever do Estado erradicar a pobreza, pois além de ser um dos obje-
tivos da República Federativa do Brasil, constitui também um direito sub-
jetivo público de todos os que vivem em condições humanas degradantes.
Para tanto, o Poder Público deve se valer de políticas públicas para garantia
do mínimo existencial, direito este, que consiste no núcleo material do
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
O objetivo deste projeto de pesquisa é discutir as garantias asseguradas
na Constituição Federal a fim de reduzir às desigualdades sociais no com-
bate à pobreza no Estado da Paraíba. Por sua vez, a Constituição de 1988
estatui entre os objetivos da República Federativa do Brasil a erradicação
da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais (art
3º, III, da CF). Para tanto, releva-se o papel do Estado como garantidor de
prestações positivas de natureza material.
A problemática a ser tratada através dessa pesquisa parte do princípio
de que as Políticas Públicas aplicadas no Estado da Paraíba são ineficazes
para reduzir as desigualdades sociais, no que se refere à pobreza, como
princípio da igualdade real e efetiva dos direitos fundamentais sociais em
que se almeja a uma igualdade real para toda sociedade.
O objeto geral da pesquisa visa descrever a forma de ingerência do
Estado da Paraíba na erradicação da pobreza, bem como apresentar ins-
trumentos que possam ajudar na elaboração e implementação de políticas
públicas na área social com o fim de reduzir a pobreza.
Essa avaliação dos novos aspectos da gestão social no Estado da Pa-
raíba procura focalizar em um aspecto fundamental do tempo e estudar, a
partir da perspectiva de atuação do Estado na função de gerenciamento da
pobreza, inclusive dentro das relações econômicas; quanto à distribuição
e alocação de recursos; e quanto às ações das instituições e dos agentes
públicos que, de algum modo, lidam com a pobreza e com os excluídos.
Largos extratos da população sofrem não somente a ausência do Es-
tado, mas a omissão ativa, que privilegia parcelas reduzidas e aquinhoadas
da sociedade, caracterizando verdadeira violação dos direitos humanos,

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

em franca oposição aos fins legitimadores da razão de constituição e de


existência do Estado.
A situação de pobreza viola, a um só tempo, os direitos civis e políti-
cos, assim como os econômicos, sociais e culturais. A pessoa destituída de
recursos, que se encontra além do estado de vulnerabilidade ou de preca-
riedade não tem elementos próprios e meios para dar início ao exercício
de seus direitos fundamentais e, muitas vezes, sequer saber de sua existên-
cia enquanto tal. Por isso, o pobre, expressão adjetiva que se substantivou,
é vítima de numerosas violações de direitos humanos e sequer se dá conta
disso, sobretudo quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais.
E, para garantir o objetivo geral, os seguintes escopos serão traçados
descrevendo os objetivos específicos, são eles:
Examinar a Constituição de 1988, visando dar efetividade aos funda-
mentos, em especial, o da dignidade da pessoa humana, bem como, con-
cretizar seus objetivos previstos no art. 3º, dentre os quais, a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e da
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais;
Demonstrar a importância dos direitos sociais que tem como sua fi-
nalidade assegurar a participação na vida política, econômica, cultural e
social dos indivíduos, assim como dos grupos dos quais são integrantes;
Apontar o conjunto de normas por meio das quais o Estado leva a
cabo sua função equilibradora das desigualdades sociais; destacar o papel
do Estado como garantidor das prestações sociais; descrever as relações do
Estado com a pobreza para que se possam desenvolver políticas públicas
eficientes para a erradicação da pobreza;
Qualificar a importância do Estado Democrático de Direito que tem
o seu fundamento na soberania popular; na efetivação da vontade popular
através de uma democracia representativa, pluralista e livre; na tutela dos
direitos fundamentais do homem; no fomento à justiça social; na obser-
vância dos princípios da legalidade, igualdade e segurança jurídica;
Especificar os modos de atuação do Estado da Paraíba na função de
gerenciamento da pobreza; analisar a aplicação dos recursos de Combate e
Erradicação da Pobreza no Estado da Paraíba; demonstrar o trabalho dos
Órgãos Públicos do Estado da Paraíba no Combate à Pobreza; apresen-
tar instrumentos que possa ajudar na função social do Estado da Paraíba
como forma de contribuir para a redistribuição de renda decorrente da

69
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

implantação e o funcionamento de serviços públicos mediante organiza-


ções sociais.
Importa explicitar, que a desigualdade econômica cerceia o acesso
material aos direitos fundamentais da pessoa, garantidos formalmente pe-
los instrumentos de proteção de direitos assegurado na Constituição Fe-
deral e pelas leis e regulamentos infraconstitucionais.
A metodologia empregada foi baseada, primordialmente, na aborda-
gem qualitativa, já o método utilizado foi o indutivo, porque só assim foi
possível o desenvolvimento dos enunciados gerais a respeito de proposi-
ções de validade universal. Do ponto de vista metodológico, trata-se de
uma pesquisa teórica operacionalizada pela pesquisa bibliográfica e docu-
mental, a partir das quais decompomos análises sobre os aspectos literários
e metodológicos orientadores das políticas públicas com influência direta
na formulação de políticas voltadas para equacionar as questões sociais re-
ferentes à pobreza no Estado da Paraíba.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O panorama da política urbana no Brasil, nas últimas décadas, vem


indicando um quadro de insuficiência e inoperância da ação do Estado,
sendo possível afirmar que as políticas sociais na escala Estadual, delimita-
das pelos marcos institucionais vigentes, têm assumido contornos concei-
tuais pouco precisos onde podem ser encontrados problemas de naturezas
diversas em relação aos atributos destas políticas e à incorporação efetiva
de perspectivas e processos de acompanhamento e avaliação com respeito
à formulação, aos resultados e aos meios e instrumentos utilizados.
Nesse sentido, a afirmação de que a eficácia e efetividade das políticas
públicas dependem, sobretudo, do envolvimento e participação coorde-
nados de atores sociais diversos, com propósito de indicar quais são as
necessidade de construção de arranjos institucionais que desempenhem
as funções de mediação entre diversos interesses e necessidades, que agen-
ciem os recursos materiais e humanos disponíveis ou criem novos recur-
sos, e que estabeleçam programas e linhas de ação efetivas, legitimadas
e assumidas pelos atores sociais envolvidos. Tais pressupostos conduzem
à afirmação de que a legitimidade dessas políticas seria construída e al-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

cançada através do controle social efetivo de sua aplicação através de seu


monitoramento contínuo.
Porém, a maneira correta de resolver estes dilemas e conflitos, come-
ça por reconhecer sua existência, e tratá-los como dilemas reais, pois não
há solução em curto prazo para os problemas da pobreza no Brasil, mas
para que seja vencida, é necessário vontade política e compromisso com
os valores da igualdade social e dos direitos humanos; uma política econô-
mica adequada, que gere recursos; um setor público eficiente, competente
responsável no uso dos recursos que recebe da sociedade; e políticas espe-
cíficas na área da educação, da saúde, do trabalho, da proteção à infância,
e do combate à discriminação social, e outras.
Tudo isto é fácil de dizer, e dificílimo de fazer, mas para concretizar
é preciso ter uma sociedade competente, responsável, comprometida os
valores de equidade de justiça social, e que não caia na tentação fácil do
populismo e do messianismo político, é uma tarefa de longo prazo, e que
pode não chegar a bom termo, mas não há outro caminho a seguir a não
ser este.
Segundo magistral ensino de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p.109), no
constitucionalismo pátrio, pode-se aduzir que;

[...] os direitos fundamentais sociais a prestações, diversamente dos


direitos de defesa, objetivam assegurar, mediante a compensação das
desigualdades sociais, o exercício de uma liberdade e igualdade real
e efetiva, que pressupõem um comportamento ativo do Estado, já
que a igualdade material não se oferece simplesmente por si mes-
ma, devendo ser devidamente implementada. Ademais, os direitos
fundamentais sociais almejam uma igualdade real para todos, atin-
gível apenas por intermédio de uma eliminação das desigualdades, e
não por meio de uma igualdade sem liberdade, podendo afirmar-se,
neste contexto, que em certa medida, a liberdade e a igualdade são
efetivadas por meio dos direitos fundamentais sociais.

Destaque-se o Estado democrático de Direito, como alternativa de


fomento ao bem- estar-social exigido pela sociedade. Nesse sentido, ele
exerce efetivamente o princípio da soberania popular e tem como voz ati-
va, o povo, titular do poder, através de seus representantes escolhidos pelo

71
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

sufrágio universal, o qual deve participar nas decisões e rumos a serem


tomados pelo Estado, visando sempre à concretização da justiça social e a
garantir o mínimo de dignidade da pessoa humana.
No mesmo sentido, a definição de Marcelo Figueiredo (2007, p.52):

O Estado é uma organização jurídico-política, formada de povo,


território e soberania. Todo Estado é um organismo político. Sob
o ângulo jurídico, titular de direitos e obrigações na órbita interna-
cional e interna, fruto de sua criação e de seu direito.

O estado contemporâneo tem função eminentemente social, é o Es-


tado das Prestações. O estado tem como função precípua zelar pelo bem
estar social, para tanto destina parte do produto nacional bruto para tal.
Na função social do estado, inclui-se também a prestação de serviços que
o cidadão, como indivíduo, pode não considerar como sendo prioritários,
como a defesa nacional, porém, ao zelar pelo bem estar social, cabe ao
estado zelar pela segurança nacional do território.
O professor Vicente de Paula Faleiros (2003, p.14), descreve dois ele-
mentos, que são essenciais para a concretização efetiva da Função Social,
quais sejam:

O “dever de agir” e o “agir” do Estado, caracterizados como


compromissos intrínsecos que o Estado Contemporâneo deve ter
perante a Sociedade que proporcionam, como resultado, a com-
petente resolução dos conflitos no e do Estado. Tal expressão as-
senta-se na premissa de que as políticas públicas foram estabeleci-
das através do repartir, dividir, conceder, ceder aos anseios sociais.

É importante ressaltar que a pobreza continua a se expandir, além


de se apresentar extremamente elevada em várias áreas subdesenvolvidas,
como a Ásia, África e América Latina. A riqueza mundial, contudo, tam-
bém se expande, mas nas mãos de poucos, por outro lado, o crescimento
econômico que estamos vivendo não está necessariamente ligado à me-
lhoria da qualidade de vida da população, pois grande parte dela ainda não
tem acesso aos serviços básicos, tais como: saúde, educação, moradia etc.
Em outras palavras, o país enriqueceu, porém não conseguiu transformar

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

esta riqueza em maior expectativa de vida e alfabetização para toda popu-


lação, ao menos na mesma velocidade.
Segundo magistral ensino de João Almeida (1992, p.18), no sentido
de conceituar a pobreza como sendo; qualquer que seja o conceito uti-
lizado – Pobreza Absoluta ou relativa – a pobreza definida em termos
de limiar o rendimento parece ter apenas o mérito de ser politicamente
operacional.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), identificou
o conjunto da população que se encontra em situação de extrema pobreza
segundo os dados do Universo preliminar do Censo Demográfico 2010.
Estas informações são de grande importância no processo de formulação
do Plano Brasil sem Miséria, sobre a responsabilidade do MDS em con-
junto com outros Ministérios.
A Síntese dos Indicadores Sociais 2013, publicada pelo Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que, percentualmente, a
Paraíba é o terceiro Estado brasileiro em concentração de famílias vivendo
em situação de pobreza. Os dados, referentes ao ano de 2012, mostram
que 37,3% das famílias paraibanas que vivem em domicílios permanentes
urbanos, sobrevivem com até meio salário mínimo por pessoa, patamar
considerado pelo IBGE como situação de pobreza. Alagoas, com 42,5%
das famílias com até meio salário mínimo por pessoa, lidera o ranking
nacional.
Para Eduardo Appio (2005, p.62), as políticas públicas podem ser
conceituadas como:

Instrumentos de execução de programas políticos baseados na in-


tervenção estatal na sociedade com a finalidade de assegurar igual-
dade de oportunidades aos cidadãos, tendo por escopo assegurar as
condições materiais de uma existência digna a todos os cidadãos.

De acordo com o estudo divulgado pelo IBGE, existem 869 mil


domicílios fixos urbanos na Paraíba, dos quais, mais de 324 mil possuem
renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo e 273,7 mil têm
renda per capita de até um salário mínimo.
O Funcep-PB- Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza no Es-
tado da Paraíba tem como garantia o acesso a níveis básicos de subsistência

73
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

à população em situação de vulnerabilidade. O valor orçado para o fundo,


no exercício de 2012, é de R$ 75 milhões, verba utilizada para financiar
programas de natureza social em todo o Estado.
Os recursos decorrentes dos projetos aprovados por meio do Funcep
estão concentrados, principalmente, em ações que visam acabar com a
fome e a miséria, dar assistência ao idoso, viabilizar a inclusão social pro-
dutiva, promover a qualidade de vida e o respeito ao meio ambiente, bem
como garantir educação básica e qualificação profissional aos beneficiados.
Ele tem um papel fundamental, que é o de reverter a condição das
famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade, ampliando as
oportunidades e o acesso às políticas públicas com o objetivo de construir
uma Paraíba mais justa.
São programas como o da Fundação de Ação Comunitária- FAC,
com o Programa Leite da Paraíba e Distribuição de Pão; do Projeto
Cooperar; da Companhia Estadual de Habitação Popular- Cehap, entre
tantos outros. São programas como o da Fundação de Ação Comuni-
tária- FAC, com o Programa Leite da Paraíba e Distribuição de Pão;
do Projeto Cooperar; da Companhia Estadual de Habitação Popular-
Cehap, entre tantos outros.
São considerados projetos prioritários de erradicação e combate à po-
breza: os situados em municípios com baixos indicadores sociais; grupos
ou famílias que se encontrem em condições de vulnerabilidade social; ou
outros programas emergenciais direcionados ao combate e erradicação da
pobreza.
É possível afirmar que as políticas urbanas na escala local, delimitadas
pelos marcos institucionais vigentes, têm assumido contornos conceituais
pouco precisos onde podem ser encontrados problemas de naturezas di-
versas em relação aos atributos destas políticas e à incorporação efetiva de
perspectivas e processos de acompanhamento e avaliação com respeito à
formulação, aos resultados e aos meios e instrumentos utilizados.
Porém, a maneira correta de resolver estes dilemas e conflitos começa
por reconhecer sua existência, e tratá-los como dilemas reais, pois não há
solução em curto prazo para os problemas da pobreza no Estado da Paraí-
ba, mas para que seja vencida, é necessário vontade política e compromis-
so com os valores da igualdade social e dos direitos humanos; uma política
econômica adequada, que gere recursos; um setor público eficiente, com-

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

petente responsável no uso dos recursos que recebe da sociedade; e polí-


ticas específicas na área da educação, da saúde, do trabalho, da proteção à
infância, e do combate à discriminação social, e outras.
Por fim, largos extratos da população sofrem não somente a ausência
do Estado, mas a omissão ativa, que privilegia parcelas reduzidas, carac-
terizando verdadeira violação dos direitos humanos, em franca oposição
aos fins legitimadores da razão de constituição e de existência do Estado.

CIDADANIA, ERRADICAÇÃO E ALTERNATIVAS DE


POLÍTICAS SOCIAS

A cidadania, em um de seus aspectos, traz em si a ideia do direito


fundamental à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segu-
rança, entre outras garantias que o Estado deve assegurar.
Para que os direitos sociais possam ter efetiva implementação, mos-
tra-se necessário que o Poder Executivo promova a elaboração e cum-
primento das correspondentes políticas públicas, traçando estratégias de
atuação na busca da efetivação de tais direitos.
Importa mencionar que a desigualdade econômica grave e a destitui-
ção que lhe é correlata cerceiam o acesso material aos direitos fundamen-
tais da pessoa, garantidos formalmente pelos instrumentos de proteção de
direitos assegurado na Constituição Federal e pelas leis e regulamentos
infraconstitucionais.
As políticas de mobilização são aquelas que partem do princípio de
que só através da participação e do envolvimento das comunidades afeta-
das é que políticas sociais podem ser efetivamente implementadas.
Estas políticas são propostas por movimentos sociais, como o Movi-
mento dos Trabalhadores sem Terra e as Comunidades Eclesiais de Base,
e podem ser observadas em documentos e pela ação de pessoas envolvidas
com a área de saúde, educação, segurança, ação afirmativa, e outros. Fa-
zem parte desta mesma linha de ideias os sistemas de orçamento partici-
pativo, implantados em várias prefeituras. Estas são também políticas de
focalização, na medida em que procuram trazer benefícios e conquistar
posições de poder para grupos sociais específicos, considerados especial-
mente carentes.

75
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Por outro lado, as políticas sociais universais de terceira geração que


tem como defensor José Pascoal Vaz (2000, p. 94), que;

Incluem a instituição de linhas oficiais de pobreza e o estabeleci-


mento de metas para a sua redução; políticas universais de renda
mínima para as populações mais carentes; a introdução de quotas
raciais em escolas e serviços públicos, para a redução das desigual-
dades sociais; políticas de promoção automática nas escolas, para a
redução da retenção escolar; e políticas de flexibilização do mer-
cado de trabalho, para reduzir os custos indiretos do emprego e
aumentar a inclusão de trabalhadores no setor formal da economia.

Por outro lado, políticas de metas e de mobilização não se excluem ne-


cessariamente, por exemplo, as políticas de quotas raciais, ou de distribuição
de terras, podem ser implementadas a partir das demandas de movimentos
organizados: políticas de distribuição de recursos para populações de baixa
renda podem ser implementadas através de organizações comunitárias, que
assumem a responsabilidade por identificar os beneficiários e garantir que
eles estão cumprindo as exigências correspondentes aos benefícios – envian-
do as crianças para escola, por exemplo, ou adquirindo algum ofício. Mas
elas trazem consigo profundas diferenças de concepção em relação à natu-
reza do sistema político, do papel do Estado e das organizações de mobili-
zação, e sobre o peso relativo dos técnicos, que pensam em termos analíticos
sobre o interesse comum, e pretendem agir de acordo com o princípio de
delegação de poderes; das autoridades instituídas, cuja responsabilidade faz
parte dos princípios da democracia representativa, e os militantes, que agem
na defesa direta e quotidiana dos interesses e prioridades de seus compa-
nheiros, sem ver nisto contradição com os interesses mais gerais.
São estas visões de mundo que estão competindo pela definição da
nova agenda social brasileira, e que deverão definir sua forma, sua filosofia
e seu alcance, nos próximos anos.

CONCLUSÕES

A situação de pobreza viola, a um só tempo, os direitos civis e políti-


cos, assim como os econômicos, sociais e culturais. A pessoa destituída de

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

recursos, que se encontra além do estado de vulnerabilidade ou de preca-


riedade, não tem elementos próprios e meios para dar início ao exercício
de seus direitos fundamentais e, muitas vezes, sequer sabe de sua existên-
cia enquanto tal.
Por isso, o pobre, expressão adjetiva que se substantivou, é vítima de
numerosas violações de direitos humanos e sequer se dá conta disso, so-
bretudo quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais.
Destaque-se a origem da pobreza como um conjunto complexo de
fatos sociais que exigem uma reavaliação do Estado e da sociedade. Por
esta via, para se alcançar a erradicação da pobreza, é necessário que se crie
oportunidades para que a população pobre seja integrada à sociedade de
consumo, através de programas de políticas públicas que proporcionem a
correção dos fatos sociais desencadeadores da pobreza.
Para que se possa avaliar a real gravidade e a extensão do fenômeno da
pobreza, a ONU tem adotado como medida referencial, o Índice de De-
senvolvimento Humano, IDH, que supera a perspectiva eminentemente
econômica ao considerar dimensões como esperança de vida, alfabetiza-
ção de adultos, escolarização e volume do Produto Interno Bruto, PIB,
per capita ajustado. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano
de 2015, estima-se que aproximadamente 980 milhões de pessoas são
consideradas pobres, de acordo com essa linha de pobreza, o que corres-
ponde a 16 % dos habitantes da Terra.
Para Rosa Helena (2006, p.65), o principal problema que se coloca
para o IDH é o fato de ter que se estabelecer:

Padrões mínimos universais de qualidade de vida, válidos para to-


dos os países e culturas. Dentre os fatores positivos que ele con-
sidera, pode-se citar a relativa simplicidade de composição desse
índice, em razão de quase todos os países disporem dos dados de
esperança de vida, educação e PIB, o que permite a análise, a longo
prazo, desses indicadores.

Tudo isso, induz à conclusão de que discutir simplesmente a pobreza


como um problema de renda não constituirá solução para tal. Por ou-
tro lado, deve-se estabelecer uma reflexão acerca das políticas dos direitos
fundamentais sociais na Constituição Federal de 1988, buscando demons-

77
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

trar o papel do Estado na concretização dos direitos fundamentais sociais


mediante a prestação de serviços públicos, os quais se configuram como
instrumentos destinados aos oferecimentos de prestações materiais im-
prescindíveis à consolidação da dignidade humana, operando, inclusive,
com condição ao exercício dos demais direitos, sem desconsiderar os di-
versos obstáculos presentes à aplicabilidade dos direitos prestacionais, ten-
do como referência o paradigma causal da pobreza enquanto fator social.
Por fim, resta ao Estado à obrigação de dar a todas as pessoas acesso e
meios de exercício dos direitos, e com especial ênfase dos direitos funda-
mentais expressos na Constituição Federal, fazendo cumprir as garantias
constitucionais, assim como desenvolver e implementar políticas públicas
sociais para todos.

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81
O DESMONTE DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS SOCIAIS CONTRA OS
POVOS INDÍGENAS NO ATUAL
GOVERNO BRASILEIRO
Marianne Pazos Santos8

INTRODUÇÃO

Este trabalho irá apresentar informações sobre as violações de direi-


tos humanos em face dos povos indígenas no Governo do Presidente Jair
Messias Bolsonaro, com enfoque no direito à propriedade, política pública
e análise governamental do atual cenário político brasileiro. Aduzir esse
tema é, sobretudo, demonstrar a relevância da discussão.
O atual Presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, é um político
de extrema direita eleito com um discurso nacionalista, pontuando em
sua carreira política discursos contra grupos inseridos num contexto de
vulnerabilidade social, sendo estes: mulheres, negros, indígenas e LGB-
TQI+. O presente artigo objetiva a análise dos reflexos do governo na
atual conjuntura política, bem como as condições em que vivem os povos
indígenas. Abordará ainda questões como a inaplicabilidade dos direitos
e garantias fundamentais instituídos pela Constituição Federal de 1988
e pelos Tratados de Direitos Humanos, especificando quais são os direi-

8 Bacharela em direito pela Faculdade Joaquim Nabuco. Advogada inscrita sob a OAB/PE nº
48.206, pesquisadora e pós-graduanda em Direitos Humanos pela Universidade Católica de
Pernambuco.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

tos deste grupo vulnerabilizado socialmente, determinando o percentual


de indígenas que estão em condições desumanas e buscar soluções para a
inaplicabilidade de direitos.
Os dados possuem o escopo de verificar a governabilidade da atual ges-
tão, exemplificando e interpretando a ressignificação das políticas públicas.
Diversas medidas estão sendo realizadas no sentido de cercear direitos dos
povos indígenas, concretizando a necropolítica, atingindo as políticas públi-
cas sociais de maneira intensificada, refletindo na acentuação da vulnerabi-
lidade social desse grupo. Do ponto de vista metodológico, foram realiza-
das pesquisas bibliográficas para melhor compreensão acerca do tema. Para
embasar a análise sobre os direitos humanos violados utilizamos o conteúdo
de Jamil Chade, Ailton Krenak, Achille Mbembe, Celso Anônio Bandeira
de Melo, John Manuel Monteiro e Pedro Vilela. Quanto ao diagnóstico
da inaplicabilidade dos direitos, utilizamos como fundamento a Declaração
Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Convenção America-
na de Direitos Humanos e a Constituição Federal de 1988.

1. A CULTURAL INDÍGENA NO BRASIL

Diante do contexto histórico, é válido abordarmos inicialmente um


breve relato sobre a evolução no Brasil, começando em 1500, quando os
colonos europeus chegaram. Dos grupos que povoavam, dois deles pos-
suem questões étnicas, os povos africanos e os povos indígenas, ambas
as raças foram vítimas da violência praticada pelos europeus. Os povos
indígenas já habitavam o Brasil antes da invasão europeia, sendo estes es-
cravizados juntamente com os povos africanos, numa tentativa de domi-
nação territorial, diante da ideia de supremacia branca com pensamentos
de “civilização”.
Dessa forma, além dos povos indígenas serem explorados, tinham suas
identidades étnicas e culturais apagadas, tendo em vista o preconceito dos
colonizadores, os quais acreditavam serem supervalorizados e civilizados,
denominando os índios como completos selvagens, refletindo, assim, na
submissão e catequização deste grupo, com o objetivo também de ocultar
todo e qualquer vestígio da etnia.
Apesar disso, ao se observar a narrativa histórica, é possível verificar
que, na maioria das vezes, os colonizadores possuem um papel heroico e

83
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

supervalorizado. Historicamente, a situação deste grupo socialmente vul-


nerabilizado é marcada por violência, genocídio, escravidão e expansão de
doenças com o fito de exterminar a raça indígena, como por exemplo a
transmissão de sarampo e varíola.
A violência em face dos povos indígenas é tão demasiada que havia
um número reduzido de pessoas que se reconheciam como indígenas,
justamente por desconhecerem suas origens devido a tentativa de desa-
parecimento deste grupo. Porém, de acordo com o Instituto Brasileiro
de Geografia Estatística (IBGE), no ano 2000 revelou-se um crescimento
da população indígena, passando de 294 mil para 734 mil. Esse aumento
advém de pessoas que passaram a se reconhecer como indígenas. Recen-
temente, com o censo demográfico de 2010, foram introduzidos alguns
questionamentos, que nos censos de 1991 e 2000 não foram perguntados,
passando a indagar como povo ou etnia que pertenciam, bem como as
línguas indígenas faladas.
Nota-se que o termo “grupo socialmente vulnerabilizado” fora utili-
zado por acreditar ser o exato, sendo indispensável a explanação do termo
escolhido. Frequentemente nos deparamos com o uso da palavra “mi-
noria”. No entanto, observa-se que o termo “minoria” tem origem da
condição de inferioridade a algo, ensejando até mesmo a existência de um
grupo reduzido, em vista disso, não foi optado para ser usado. Além desse
termo, também não foi preferido a utilização do termo “grupo vulnerá-
vel”, haja vista que acaba ensejando como um grupo fragilizado. Dessa
forma, por acreditar que esses termos se encontram equivocados, optou-
-se pelo emprego do termo “grupo socialmente vulnerabilizado”, tendo
em vista que é um grupo forte e uma grande parte da população, conside-
rando que a sociedade que o vulnerabiliza.
Além dos processos históricos vivenciados, estes povos sofrem mais
outra violência. No caso, a atribuição dos estereótipos criados sobre eles,
reforçando um problema social enraizado. Diante disso, o senso comum
da população brasileira reforça ideias discriminatórias que refletem em ati-
tudes de intolerância e violência. Embora socialmente se pense o índio
de maneira importante, se baseando na formação do Brasil, nas heranças
culturais que recebemos ou também nas genéticas ainda há uma figura do
índio baseado nos livros de histórias da formação do Brasil e, com base

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nesse simbolismo, que o discurso de ódio e algumas políticas públicas es-


tão sendo tolhidas.
Atualmente se observa a expansão e a força que discursos de ódio,
altamente racistas e preconceituosos, tomam conta dos meios sociais, atra-
vés de mídias que veiculam rapidamente esses conteúdos, de modo a es-
tigmatizar a figura do índio, baseando-se em questões como “o que é ser
índio e a que os povos indígenas teriam direito”, respostas essas que por
vezes são dadas fundamentadamente nos relatos das histórias retiradas de
1500. É notório o ganho da força do discurso de ódio na sociedade quan-
do nos deparamos com uma figura pública, que exerce o maior cargo de
um país, proferindo frases como “cada vez mais, o índio é um ser humano
igual a nós”, conforme consta no site G1 notícias, de modo a intensificar
o racismo e o preconceito social.
Nesse contexto, cresce a sensação de representatividade dos discursos
preconceituosos, já que os pensamentos são proferidos por um chefe de
Estado, o que resulta no que se verá na sequência, as violações de direitos
humanos em face dos povos indígenas no atual governo brasileiro, pos-
suindo enfoque no direito à propriedade, política pública e análise go-
vernamental, sendo estes direitos conquistados apenas no ano de 1988,
conforme a Constituição Federal Brasileira.

2. O DESMONTE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO


GOVERNO JAIR MESSIAS BOLSONARO

É sabido que os indígenas são um grupo socialmente vulnerabilizado,


sendo estes encontrados em situação de maior gravidade motivada pelo atual
governo. Esse grupo encontra-se nessa condição devido à violência que so-
frem regularmente, sendo considerada a violência aqui referida toda ação que
afeta o ser humano. A violência contra os povos indígenas ocorre de diversas
formas: contra a pessoa, contra o patrimônio e omissão do poder público.
O desmonte das políticas públicas começou assim que Jair Messias
Bolsonaro assumiu o governo. O atual chefe do Estado sempre disse-
minou o seu discurso antes mesmo da candidatura presidencial, quando
ocupava ainda o cargo de deputado federal, possuindo alguns enunciados
como, por exemplo, o constante no site Survival “os índios não falam nos-
sa língua, não tem dinheiro, não tem cultura. São povos nativos. Como

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

eles conseguem ter 13% do território nacional”. O posicionamento do


Presidente não é algo desconhecido, conforme mencionado, motivando
assim os desmontes das políticas públicas, sendo agente realizador da ne-
cropolítica contra os indígenas.
Abordar sobre necropolítica é discutir que em alguns grupos e lugares
há “licença para matar”, exercendo uma política de inimizade, onde é “acei-
tável” exterminar alguns corpos. No contexto dessa nova política, diante das
afirmativas de discurso de ódio e medidas promovendo a inexistência de di-
reitos, é inequívoco o objetivo da destruição dos povos indígenas. O discurso
do Presidente Jair Bolsonaro promove um caratér alienatório e evidencia o
intuito de tornar aceitável os parâmetros realizados, pois tal discurso estigma-
tiza a figura do índio, adotando justamente uma fala preconceituosa sobre a
cultura e propagando uma manifestação racista “anti-indígena”.
Dessa forma, com falas de cunho preconceituoso, cuja pretensão é
justificar e fundamentar as medidas adotadas, o Presidente argumenta para
tentar naturalizar o tolhimento e inaplicabilidade de direitos, demons-
trando uma justificativa enraizada socialmente, como podemos verificar
em falas que vários usuários veiculam nas plataformas da web, tais como:
“pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a ame-
ricana, que exterminou os índios”, ou ainda “não tem terra indígena onde
não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especial-
mente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de
defender terra pra índio”, e até frases que nitidamente tem a intenção de
suprimir direitos ou incentivar o genocídio da raça indígena, quais sejam:
“se eu assumir (a Presidência do Brasil) não terá mais um centímetro para
terra índigena”, “em 2019 vamos desmarcar (a reserva índigena) Raposa
Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros”, “essa po-
lítica unilateral de dermarcar a terra indígena por parte do Executivo vai
deixar de existir, a reserva que eu puder diminuir o tamanho dela eu farei
isso aí. É uma briga muito grande que você vai brigar com a ONU”, “não
vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilom-
bola”, entre outros discursos nocivos e de grande repercussão.
Em entrevistas, conforme supramencionado, o Presidente registrava,
desde então, alguns ataques a grupos socialmente vulnerabilizados, falas es-
sas que vem sendo disparadas e concretizadas na gestão, como podemos
observar no congelamento da demarcação de terras indígenas. Do ponto

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de vista econômico, vislumbra-se como se o país estivesse à venda, sendo tal


colocação dada por ofertas do atual presidente para que os Estados Unidos
da América (EUA) explorem a Amazônia, entregando-lhes todas as rique-
zas, devastando o meio ambiente e desrespeitando os direitos humanos.
Os desmontes ocorrem com os roubos de terras, integração forçada e
genocídio, desmantelando a FUNAI e entregando a demarcação para o Mi-
nistério da Agricultura, que só não foi possível graças a rejeição da proposta
pelo Congresso Nacional e o Senado Federal, facilitando ao agronegócio e
às indústrias extrativas a exploração dos recursos das terras indígenas.
Em vista disso, o Brasil foi denunciado no Conselho de Direitos Hu-
manos da Organização das Nações Unidas (ONU), a motivação se deu
pelo desmonte das políticas ambientais e sociais indigenistas. Apesar da
queixa apresentada em audiência ocorrida em Genebra, pelo Instituito
Socioambiental, Conectas Direitos Humanos e Comissão Arns, as me-
didas ainda não foram efetivadas, continuando as práticas das violações
ambientais e sociais. Conforme dados extraídos do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), nos nove primeiros meses de 2019, houve aumento
de casos referentes a “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos
naturais e danos diversos ao patrimônio dos povos indígenas”. Possuindo
a somatória de 160 (cento e sessenta) casos em terras indígenas. Esse per-
centual mais recente é de extrema importância, pois no ano de 2018, a
CIMI registrou 111 (cento e onze) casos de invasão ou exploração ilegal
de recursos em 76 (setenta e seis) terras indígenas diferentes, distribuídas
em 13 estados do país, os 160 casos contabilizados até setembro de 2019
afetaram 153 terras indígenas em 19 estados do Brasil.
A princípio, conforme dados extraídos da Survival International,
existiam 11 milhões de indígenas, vivendo aproximadamente em 2.000
grupos. Em panorama mundial, é no Brasil que os povos indígenas mais
vivem de forma isolada, possuindo cerca de 100 povos na Amazônia, sen-
do maior que qualquer outro lugar do planeta. A situação da luta pela
Amazônia não é um problema atual, ocorre desde 1970 e, em 1989, quan-
do foi colocada à disposição dos militares para desenvolver a construção
de hidrelétricas, estradas, bem como progresso das atividades pecuniárias
e mineração. Porém, com a atual gestão presidencial, o problema encon-
tra-se de forma extremamente gravosa, havendo uma verdadeira política
de extermínio em face dos povos indígenas, possuindo o intuito de apa-
gamento da população.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Considerando o isolamento e o preconceito estrutural, os povos indí-


genas são extremamente vulnerabilizados socialmente, acontecendo fre-
quentes ataques violentos. Nota-se que, o que mudou não foi a forma de
ataque, tendo em vista que permanecem sendo atacados por doença, mas
a atual doença aplicada com tal objetivo é a COVID 19. Explica-se. Anali-
sando o contexto histórico, temos como observar que algumas pandemias
mundiais foram utilizadas como forma de dizimar alguns grupos, entre
eles os povos indígenas. Devemos recordar o acontecimento no período
da peste do século XIV, sarampo, varíola e outras doenças como uma
forma de genocídio. Nesses períodos, diversos grupos indígenas foram
exterminados, a pandemia atual na época foi utilizada como arma de ex-
termínio populacional, uma verdadeira arma biológica onde o intuito era
garantir posse e ocupação da terra. Desse modo, considerando o contexto
atual, se faz necessário abordar que a pandemia se apresentou como uma
oportunidade para praticar o genocídio indígena.
Com o intuito de atingir a sua finalidade, repetindo acontecimentos
históricos, Jair Bolsonaro sancionou com vetos a Lei nº14.021/2020, que
prevê medidas de proteção para comunidades indígenas na pandemia do
coronavírus. A vedação se deu em 6 dispositivos da norma, tolhendo o
direito dos povos indígenas ao acesso à água potável; oferta emergencial
de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI); distribuição
gratuita de materiais de higiene; pontos de internet nas aldeias; aquisição
de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea; limpeza e desinfec-
ção de superfícies e distribuição de materiais informativos sobre a Co-
vid-19. Efetuando assim, a necropolítica nos povos indígenas.
Assim, é notório que as medidas internacionais são extremamente
necessárias para resguardar o direito não somente à propridade, aplicabili-
dade e garantia de políticas públicas, mas também à vida desse povo.

3. AS MEDIDAS INTERNACIONAIS COMO PROTEÇÃO E


GARANTIA DE DIREITOS AOS POVOS INDÍGENAS

Após a Segunda Guerra Mundial, a importância da construção de


direitos humanos passou a ser observada, possuindo um caráter universal
perante a Comunidade Internacional, chamando de Direito Internacional
dos Direitos Humanos (International Human Rights Law). A declaração,

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

elaborada ao longo de anos e instituída em 1948, obtém relevância mun-


dial, possuindo uma proteção universal dos direitos humanos. Posterior-
mente, ocorreram outros acontecimentos e medidas internacionais extre-
mamente consideráveis para os direitos humanos, como, por exemplo, o
Pacto de San José da Costa Rica, adotado no ano de 1969, estabelecendo
liberdade e justiça social, além de consolidar as instituições democráti-
cas. Conferência de Viena em 1993, que resultou nas relações pacíficas e
amistosas entre as nações. E a Declaração de Viena, na qual a Organização
das Nações Unidas (ONU) explicitou a democracia como um regime
político mais favorável, pois nesta há respeito de direitos humanos e das
liberdades fundamentais.
No âmbito interno, a Constituição Federal de 1988 elenca os obje-
tivos da República Federativa e traz um rol de direitos e garantias funda-
mentais, os quais devem ser aplicadas e asseguradas para a sociedade, de-
monstrando como uma necessidade básica de todo ser humano, previsto
na Declaração Universal dos Direitos Humanos e instituído pelo Tratado
Internacional de Direitos Humanos da ONU.
A Carta Magna de 1988 deve ser vista com base principiológica à
Dignidade da Pessoa Humana, princípio este que é o núcleo dos direitos
humanos. Essa previsão decorreu através da Emenda Constitucional nº
26/00 com a recepção da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A
partir desta é que os direitos dos povos indígenas passaram a ser efetiva-
mente registrados no âmbito interno com o intuito de serem garantidos.
A referida declaração prevê e reconhece direitos originários à proteção,
demarcação e respeito aos povos indígenas, em seu artigo 231:

Art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, cos-
tumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União de-
marcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."

Com base na Constituição Federal, na Lei 6001/73 (Estatuto do Ín-


dio) e no Decreto nº 1775/96, as terras indígenas podem ser classificadas
em algumas modalidades: terras indíngeas tradicionalmente ocupadas,
reservas indígenas, terras dominiais e, interditadas. De acordo com a FU-
NAI, podemos conceituar da seguinte forma:

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Terras indígenas tradicionalmente ocupadas: são as terras indíge-


nas de que trata o art. 231 da Constituição Federal de 1988, direito
originário dos povos indígenas, cujo processo de demarcação é dis-
ciplinado pelo Decreto n.º 1775/96.

Reservas indígenas: são terras doadas por terceiros, adquiridas ou


desapropriadas pela União, que se destinam à posse permanente
dos povos indígenas. São terras que também pertencem ao patri-
mônio da União, mas não se confundem com as terras de ocupa-
ção tradicional. Existem terras indígenas, no entanto, que foram
reservadas pelos estados-membros, principalmente durante a pri-
meira metade do século XX, que são reconhecidas como de ocu-
pação tradicional. 

Terras dominiais:  são as terras de propriedade das comunidades


indígenas, havidas, por qualquer das formas de aquisição do do-
mínio, nos termos da legislação civil. Interditadas:  são áreas in-
terditadas pela Funai para proteção dos povos e grupos indígenas
isolados, com o estabelecimento de restrição de ingresso e trânsito
de terceiros na área. A interdição da área pode ser realizada conco-
mitantemente ou não com o processo de demarcação, disciplinado
pelo Decreto n.º 1775/96.

As terras ocupadas pelos povos indígenas são consideradas bens da


União, conforme o art.20, inciso XI, da Constituição Federal, deven-
do ser demarcada, preservada e reservada como direito garantido a esse
grupo, motivo pelo qual as terras são inalienáveis e indisponíveis, ou seja,
não podem ser utilizadas por outros que não os próprios povos indígenas.
A demarcação das terras indígenas é realizada justamente para proteger
os direitos previstos na Constituição da República Federativa Brasileira.
Dessa forma, os parágrafos 1º e 2º do art.231, da Constituição Federal,
dispõem sobre as terras que devem ser resguardadas, vejamos:

Art. 231, §1º : "São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios


as por ele habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem estar e as necessárias a sua repro-
dução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

§2º: "As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se


a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das ri-
quezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".

Além da demarcação e da existência desse direito, é preciso expor


que a terra contém um valor maior para os povos indígenas, é dela a
sobrevivência física e cultural. Porém, apesar de conter previsão legal,
conforme dados extraídos do site da FUNAI, atualmente existem 488
terras indígenas regularizadas que representam cerca de 12,2% do terri-
tório nacional, localizadas em todos os biomas com maior concentração
na Amazônia Legal.
Ademais, é profícuo explicitar que se assegura a participação na ex-
ploração dos recursos hídricos e riquezas minerais aos indígenas. A explo-
ração desses recursos em suas terras só poderia ser efetivada com autoriza-
ção do Congresso Nacional, consoante no art. 231, §3º, da Constituição
Federal:

Art. 231, §3º, CF: "O aproveitamento dos recursos hídricos, in-
cluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas
minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autori-
zação do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas,
ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na
forma da lei".

No entanto, a concessão não poderia ser realizada sem antes a oi-


tiva das comunidades indígenas afetadas, em tese. Respeitando assim o
princípio denominado prevalência dos interesses indígenas. De modo que
fossem obrigados a cumprir a determinação prevista em lei (art. 176 Parág.
1º e art. 174, Parágs. 3º e 4º, da CF). Apesar disso, o atual governo brasi-
leiro Presidido por Jair Messias Bolsonaro, ignora a Carta Magna e ofende
princípios constitucionais que deveriam ser seguidos e aplicados.
Em entrevista no site Notícias UOL, o Presidente afirmou que “a
Amazônia é muito maior que a Europa”, possuindo o intuito de justifi-
car a dificuldade de fiscalização das diversas queimadas. E ainda, resolveu
minimizar os incêndios, afirmando também que “a Amazônia não pega
fogo”, atribuindo como agentes responsáveis pelas queimadas os próprios
indígenas, disse o Presidente “ Se vocês olharem bem, na região Amazô-

91
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

nica não tem nada vermelho. A floresta não pega fogo", tal abordagem foi
realizada enquanto mostrava uma foto de um satélite da NASA, a agência
espacial dos Estados Unidos, continuando a narrativa nos seguintes ter-
mos "os focos de incêndio que existem, é [sic] o caboclo, é o índio que
toca fogo, é a cultura dele. O tamanho da Amazônia é maior que a Europa
toda, não tem como fiscalizar”, percebe-se aqui o carácter incriminatório,
racista e discriminatório na fala da maior figura política do país.
É notório a violência intensificada contra o patrimônio e a política
de extermínio em face do grupo. Aqui, podemos visualizar também não
somente uma omissão do poder público interno, mas que este é o agente
causador. Essas narrativas proferidas pelo atual Presidente não somente
fundamentam e incentivam a necropolítica contra os povos indígenas, mas
golpeia o Estado Democrático de Direito, princípios internacionais e fun-
damentos constitucionais. Desse modo, quando abordamos sobre princí-
pios, estamos falando sobre fundamentos que sustentam a construção do
direito, segundo Melo [2009, p. 882-83), temos a seguinte definição:

Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, dis-


posição fundamental que se irradia sobre diferentes normas com-
pondo-lhes o espírito e sentido servido de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a ra-
cionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe
dá sentido harmônico.

No tocante, temos o princípio da Dignidade da Pessoa, que é preciso


ser visualizado como absoluto, não sendo renunciável, mitigado, relati-
vizado e tampouco afastado. Respeitar este princípio é, acima de tudo,
constituir o Estado Democrático de Direito. Este princípio fundamental
tem previsão no art.1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, pos-
suindo o escopo de assegurar a toda pessoa humana direitos mínimos que
devem ser garantidos pelo poder público. Portanto, a não observância im-
plica também no rompimento de um Estado Democrático, motivo pelo
qual é indispensável a utilização de medidas internacionais.
O Sistema Internacional de Direitos Humanos é formado por instru-
mentos de alcance geral para efetivação dos direitos humanos, aplicável ao
Estado brasileiro e composto pela Comissão Interamericana de Direitos

92
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Humanos, Corte Interamericana de Direitos Humanos e órgãos de mo-


nitoramento da Organização dos Estados Americanos (OEA). A atuação
desse sistema adota um conjunto de instrumentos internacionais para pro-
mover a proteção dos direitos humanos.
Dessa forma, sendo a gestão governamental um dos principais agentes
causadores, as medidas cautelares e os mecanismos internacionais servem
para reivindicação de seus direitos, passando a ser a principal fonte e não
uma alternativa de solucionar a gravosidade dos ataques, resguardando das
decisões adotadas pelo novo governo do Presidente Jair Bolsonaro.

CONCLUSÃO

Quando os indígenas forem considerados sujeitos históricos e os múl-


tiplos processos de interação entre suas sociedades e as populações que
surgiram com a colonização europeia forem recuperados, “páginas intei-
ras da história do país serão reescritas; e ao futuro dos índios reservar-se-á
um espaço mais equilibrado e, quem sabe, otimista”, é assim que John
Monteiro (1995) aborda em sua obra.
O direito à propriedade é garantido pelos tratados internacionais de
direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, possuindo previsão na
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, tendo o Estado obriga-
toriedade na aplicação imediata da Lei, devendo garantir uma vida digna,
humana e com igualdade, desenvolvendo um ambiente saúdavel e ade-
quado. O que se verifica no atual contexto político é a ausência de po-
líticas públicas eficazes e assistenciais direcionadas aos povos indígenas,
existindo uma política de extermínio.
A campanha presidencial de Jair Bolsonaro foi pautada no discurso
de ódio contra grupos socialmente vulnerabilizados, afirmando que não
demarcaria nenhuma terra indígena e que buscaria reduzir as áreas já der-
macadas. O atual presidente defende que as terras indígenas sejam abertas
para serem exploradas em grande escala, assistindo também a entrega dos
títulos das terras para comunidades para que possam negociá-las, tal deci-
são exigiria uma mudança constitucional. Em ocasiões, demonstrou um
discurso afirmativo de ódio, referindo-se que os indígenas não podem
“continuar sendo pobres em cima de terras ricas” e que “há muita terra
para pouco índio no Brasil”, promovendo um manifesto em prol da mine-
ração e agronegócio, expondo visões racistas e etnocêntricas.

93
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Desta forma, mesmo havendo esse direito resguardado na Constitui-


ção Federal de 1988, conforme supramencionado, ocorre verdadeiramen-
te um desmonte no atual cenário brasileiro, sendo causado pela ausência
de políticas públicas e a necropolítica aplicada em face deste grupo, abs-
tento o valor social garantido como direito fundamental. Como solução,
apura-se a intervenção de mecanismos internacionais como forma de mi-
nimizar os efeitos e garantir a aplicabilidade de direitos humanos previstos
em tratados internacionais que o Brasil faz parte, para assim concretizar os
direitos resguardados por lei.

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96
LA PROBLEMÁTICA DE LA
TRANSMISIÓN EN VIVO DE
LAS SESIONES DE LAS CORTES
SUPREMAS Y LA COLISIÓN DE
DERECHOS EN LAS SOCIEDADES
DEMOCRÁTICAS
Carolina Vieira9

INTRODUCCIÓN

Las interrelaciones entre la sociedad y las Cortes Supremas interveni-


das por los medios de comunicaciones y las redes sociales han alcanzado
un nivel de difícil mensuración, siendo evidente la inserción más directa
de los ciudadanos comunes en la vida jurídica en los últimos años.
Sin embargo, hemos asistido a un acalorado debate entre los expertos
sobre el desarrollo de mecanismos para aproximar el ciudadano del Esta-
do, en especial del Poder Judicial, entendido por muchos como el poder
más alejado de la sociedad.
Este trabajo se propone a analizar el impacto de las transmisiones de
las decisiones de las Cortes Supremas y si esta herramienta puede efecti-
vamente ayudar al fortalecimiento de la democracia en el mundo. Así, el
trabajo se desarrolla en dos partes: Como punto de partida, se expone la

9 Advogada Criminal, pós graduada em Direito Público, Mestranda em Estudos Avançados


em Direitos Humanos pela Universidade Carlos III de Madrid, graduanda em História pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio).

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

innovadora experiencia de la República Federativa de Brasil con la crea-


ción de un canal público con programación relativa para las actividades
del Poder Judicial (“TV Justiça) y las transmisiones en vivo de las sesiones
de la Corte Suprema de Brasil o “Supremo Tribunal Federal (STF)”. En
seguida se analiza la colisión de principios y derechos relativos al tema.
Por último, se propone una reflexión sobre el contenido esencial de los
capítulos anteriores.

LA EXPERIENCIA BRASILEÑA: LA “TV JUSTIÇA” Y SU


INFLUENCIA PARA EL MUNDO

A partir de 2002, un importante y nuevo capítulo de la democracia


brasileña empezó a ser escrito con la publicación de la Ley n. 10.461, que
autorizó la transmisión en vivo de las sesiones plenarias de la Corte Su-
prema brasileña por un canal público de televisión. Se trata de la creación
de un canal reservado para la difusión de los actos del Poder Judicial y los
servicios esenciales a la justicia.
A través de esta herramienta, los brasileños pasaron a acompañar jui-
cios históricos en vivo, como la discusión sobre la constitucionalidad de la
investigación con células embrionarias, el reconocimiento de la unión del
mismo sexo, las cuotas raciales y más recientemente, la prisión automática
como resultado de una condena de segunda instancia.
El éxito de la audiencia de “TV Justiça” en poco tiempo ha atraído
la atención de los principales medios de comunicación, que también em-
pezaron a transmitir en vivo, fenómeno este que se hizo aún más notorio
después del de la acción criminal n. 470 o “Ação Penal n. 470”, nacional
e internacionalmente conocido como el caso "Mensalão".
Aunque el Poder Legislativo federal brasileño ya tuviera sus propios
canales (“TV Câmara” y “TV Senado”), el Poder Judicial permaneció en
un nivel aparentemente más distante, lo que corroboraba la presunta falta
de legitimidad democrática por se tratar del único Poder de la República,
cuyos miembros no son seleccionados por el voto popular.
Pocos meses después de la publicación de la ley n. 10.461/2002, la
“TV Justiça” empezó a funcionar (aunque con una estructura deficiente si
comparada a otros canales de televisión abiertos y cerrados) y está ubicada
en el mismo edificio de la Corte Suprema, en la capital de Brasil.

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Cuando completó 16 (dieciséis) años de existencia en 2018, además


de la renovación de equipos, nuevos escenarios, se produjo la unificación
de toda la programación en un solo canal en youtube. Actualmente, la
“TV Justiça” cuenta con un equipo multidisciplinario, compuesto por
más de ciento cincuenta profesionales, tales como: reporteros, presenta-
dores, asesores legales, directores de cine y fotografía, productores, artistas
de videografía, editores de postproducción y nuevo equipo de medios de
la estación.
El canal cuenta con una relevante producción interna y existe también
la colaboración de tribunales locales. La programación cuenta con más de
cincuenta entre cuadros fijos y programas especiales y dos ediciones de
periódicos ("Jornal da Justiça"), que se emiten en vivo de lunes a viernes,
además de los los boletines especiales con noticias relevantes del día.
Además de las 24 horas en el aire en televisión (y en la plataforma
youtube desde enero de 2003), no se puede dejar de observar la intensa
interacción de “TV Justiça” con los espectadores a través de las redes so-
ciales, en especial el uso del twitter y Instagram.
En cuanto a las transmisiones en vivo, las sesiones plenarias ordinarias
del “Supremo Tribunal Federal” se transmiten regularmente a los miér-
coles y jueves a partir de las 14 horas (sin perjuicio de las sesiones extraor-
dinarias). No se puede olvidar que la “TV Justiça” también empezó a
transmitir las sesiones plenarias en vivo de la Corte Suprema en materia
electoral “Tribunal Superior Eleitoral” 02 dos veces a la semana.
Aunque el legislador constituyente de 1987 no haya inicialmente pre-
visto la creación de un canal público específico para tales finalidades, no
hay dudas que uno de los objetivos de la ley fue llevar el trabajo de la
justicia al público, cumpliendo con el artículo 93, IX, que establece que
todas las sentencias del Poder Judicial serán públicas, con la excepción de
algunos casos cubiertos por el secreto de la justicia.
Cabe señalar que este tiene por objeto garantizar que se agoten los
medios y recursos para que los ciudadanos puedan ejercer su derecho de
defensa. En este sentido, la televisión proporcionará a los ciudadanos in-
formación sobre cómo acceder al Poder Judicial y defender sus derechos.
La “Tv Justiça” fue la primera en el mundo en transmitir una sesión
de la Corte Suprema en vivo y desde su inauguración todas las sesiones,
programas y documentales están archivados. Por lo tanto, el caso brasileño

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

corresponde a una iniciativa sin precedentes, incluso en comparación con


los países desarrollados, como, por ejemplo, los Estados Unidos de Amé-
rica (EE.UU.).
En este país, las cámaras de televisión están permitidas en los Tribu-
nales de Justicia (“Trial Courts”) y Tribunales de Apelación (“Appelate
Level”) en la mayoría de los estados y en algunos tribunales federales. Sin
embargo, las acaloradas discusiones entre los jueces de la Corte Suprema
(“Supreme Court”) generalmente se llevan a cabo en privado y las sesio-
nes públicas son una excepción (la filmación y la fotografía están prohibi-
das, en cualquier caso).
En febrero de 2007, el “General Attorney” de los EE.UU. Alberto
Gonzales reveló su entusiasmo por la transparencia del sistema legal bra-
sileño, elogiando a la iniciativa de la “TV Justiça”. En la misma línea, el
ex juez de la “Supreme Court” Antonin Scalia, insistió en visitar las ins-
talaciones de la emisora pública en mayo de 2009 y elogió la reputación
internacional del “Supremo Tribunal Federal”10.
Resulta, pues, conveniente señalar que televisar los juicios es un tema
muy peculiar en los EE.UU. Si, por un lado, los casos de los tribunales
inferiores relacionado a personalidades famosas son televisados por
​​ emiso-
ras privadas y se han convertido en parte de la cultura del país, existe un
antiguo y complejo debate sobre la posibilidad de transmitir las sesiones de
la Corte Suprema11. Por lo tanto, la idea de crear un canal exclusivo en la
línea de “TV Justiça” es un tema que aún está lejos de cualquier consenso
en el país.
Sin embargo, la experiencia brasileña ha servido de inspiración para
otros países, como México, Paraguay y Costa Rica, aunque no haya una
gran adhesión en el mundo. Para la magistrada mexicana Lilia Mónica
López Benítez

El caso brasileño es relevante para la transparencia jurídica mexi-


cana, pues ha generado una influencia o movimiento top-bottom,

10 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu-


do=108198&caixaBusca=N. Acesso em: 20/10/2020
11 El juicio del ex jugador de fútbol americano O.J. Simpson, acusado de firmar a su exespo-
sa Nicole Simpson y su amigo Ron Goldman en 1994 fue transmitido en tiempo real durante
meses y las emisoras privadas alcanzaron récords de audiencia.

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al lograr que el STF incentive a otras cortes al ejercicio proactivo


de la transparencia y el uso de la tecnología. (…) Además de las
transmisiones en vivo y sin edición de las sesiones del Tribunal
Federal (sin duda el contenido más valioso del canal), TV Justiça se
vale de dos vertientes adicionales en su programación para lograr su
objetivo: periodismo— reportajes sobre el quehacer de los jueces
y ministros, así como temas de actualidad—y programas de aná-
lisis institucional. El canal ha recibido visitas del Reino Unido y
Hungría interesados en integrar este tipo de políticas en sus países;
el Canal Judicial que inició en México 3 años después, tiene una
estructura muy similar12.

Es posible observar que tales iniciativas (sea a través de un canal dedi-


cado a la programación dirigida a las actividades del Poder Judicial o a tra-
vés de un espacio especial en otros canales o por internet), tienen el mayor
objetivo de garantizar la transparencia y la aproximación de los ciudadanos
con este poder de la República.
Sin embargo, una pregunta interesante no puede pasar desapercibida.
¿Sería tan solamente una coincidencia que la implementación de políticas
que acerquen el Poder Judicial a la población un fenómeno latinoamerica-
no, teniendo en cuenta específicamente la existencia de un canal específi-
co para la transmisión de sus sesiones de los Tribunales Supremos, como
nos casos de Brasil, Paraguay, México y Costa Rica ¿
¿O sería posible que la observación anterior denote, en verdad, la la-
mentable tendencia de una mayor desconfianza de la sociedad con respec-
to a los Poderes Legislativo y Ejecutivo? Estas son algunas preguntas que,
aunque no son el objeto de este trabajo, sirven para nuevas reflexiones.

LA COLISIÓN DE PRINCIPIOS Y DERECHOS: PRINCIPIO


DE LA PUBLICIDAD X DERECHO A UN PROCESO
JUSTO X DERECHO A INTIMIDAD

Es posible afirmar que la ampliación de los participantes indirectos de


los juicios es un fenómeno desde el siglo pasado a partir del aparecimiento

12 Disponível em: <https://www.ijf.cjf.gob.mx/publicrecientes/2014/Marron/La%20Trans-


misi%C3%B3n%20con%20portadas%20en%20PDF.pdf>. Acesso em 20/10/2020.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

de los medios de comunicación masivos (la radio y la televisión), garanti-


zando así no solo la libertad de prensa, como el derecho a la información
y el principio de la publicidad de los actos del Estado.
Todavía, es posible notar que en muchos países este fenómeno ha
obtenido proporciones enormes, incluso interviniendo directamente el
Estado como el transmisor oficial a título de la consolidación de la publi-
cidad y de participación ciudadana más efectiva.
Es innegable que la transparencia, la publicidad y el derecho a la infor-
mación son nociones inseparables de cualquier Estado que afirme como
democrático. El gran jurista, filósofo y politólogo BOBBIO,1989 define
el gobierno de la democracia como el gobierno del poder público en pú-
blico, entendiendo que la superioridad de la democracia con relación a
otras formas de gobierno se basa exactamente en el hecho de que solo en
ella es posible ofrecer la transparencia al poder, noción esta contrasta con
las características del estado absolutista.
Además de estos principios y valores, hay un concepto que está de
moda desde el fin de los años noventa y que se refiere a la idea actual de
accountability, un término en inglés que no tiene una traducción precisa al
español tampoco al portugués.
Para los expertos en el tema Luiz Akutsu y José Antonio Gomes de
Pinho13 para la comprehensión del concepto, hay que tenerse en cuenta
la cuestión de “rendición de cuentas”, que implica la responsabilidad y la
obligación de buen gestionar los recursos.
Aunque inicialmente limitada a la cuestión de la gestión y la gober-
nanza, para que la cultura de la rendición de cuentas se internalice dentro
de las sociedades democráticas, no es suficiente hablar de instrumentos
formales de control que podamos gestionar de forma individual o colecti-
va. Es necesario garantizar el control social del Estado por parte de la gente
común de forma a llevar a los ciudadanos más directamente a la vida polí-
tica y jurídica de la nación. En suma, el Estado no es y ha sido concebido
como un fin en sí mismo

13 Aktsu, Luiz y Pinho, José Antonio Gomes de. “Sociedade da informação, accountability e
democracia delegativa: investigação em portais de governo no Brasil”. Revista de Adminis-
tração Pública, n. 05, vol.36 (2002):723-745. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/
ojs/index.php/rap/article/view/6461/5045>. Acesso em: 10/10/2020

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Con eso, no se puede rechazar la idea de que iniciativas como la bra-


sileña suelen tener grande impacto en el fortalecimiento de la democracia,
en especial considerando la transparencia y publicidad en relación con los
actos del Poder Judicial, especialmente el “Supremo Tribunal Federal”.
Ya no se trata de publicidad o transparencia de los actos de mera ges-
tión del Poder Judicial, sino del contenido en tiempo real de las decisiones
jurisdiccionales de la instancia más alta de este Poder.
En Brasil, existe cierto consenso entre los ministros del “Supremo
Tribunal Federal” sobre la relevancia del papel de estas herramientas en la
sociedad. En este sentido, vale la pena verificar el análisis realizado por el
exministro Celso de Melo, cuando el canal completó 10 (diez) años:

TV Justiça es un valioso instrumento al servicio del interés público,


ya que, al acercar a los ciudadanos a los magistrados y tribunales de
este país, debido al intenso grado de visibilidad que otorga al sis-
tema de administración de justicia, culmina en atribuir un mayor
coeficiente de legitimidad democrática.[...] La TV Justiça ha cum-
plido plenamente los altos propósitos que motivaron su creación,
ha permitido, a lo largo de su trayectoria significativa, la realiza-
ción de un principio esencial, basado en el valor inestimable de la
publicidad y la transparencia, cuya observancia, tan valiosa para las
formaciones sociales democráticas, debe guiar siempre las acciones
del Estado, sus instituciones y sus agentes y servidores14.

Sin embargo, hay que tener mucho cuidado con esta visión, pues no
se puede desconsiderar los efectos peligrosos y nocivos de este fenómeno.
Según dos grandes especialistas, AFONSO DA SILVA y HÜBNER
MENDES, 2009 ese entusiasmo merece una profunda reflexión sobre los
logros sociales reales:

Transmissões ao vivo e acórdãos disponíveis na internet, entre


outras medidas criam um mito de transparência que precisa ser
desconstruído. Ao contrário do que muitos tentam fazer crer, pu-
blicidade e transparência não tem nenhuma relação direta com

14 Disponível em: <htttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu-


do=207642&caixaBusca=N>. Acesso em 10/10/2020.

103
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a quantidade de julgamento transmitidos pela TV. Um tribunal


transparente é aquele que decide com base em argumentos transpa-
rentes, que não disfarça dilemas morais por trás de retórica jurídica
hermética, que não se faz de surdo para os argumentos apresenta-
dos pela sociedade. Em suma, é aquele que que expõe abertamente
os fundamentos de suas decisões para que sejam escrutinados no
debate público[...]. Talvez estejam produzindo, a título de uma
transparência de superfície, um indesejável populismo judicial.15

Una mayor transparencia muchas veces puede implicar en escenas de


pura exhibición personal y exaltación de ego de los juzgadores. De hecho,
son las entrañas de la justicia las que se muestran con un sensacionalismo
exagerado por algunos ministros en particular. Eso parece ser suficiente para
que tengamos una especie de desmoralización de la proprio Corte Suprema.
Además, no se menospreciar la cuestión del derecho a intimidad de los
participantes directos de los procesos, mismo con la regla interna de los Tri-
bunal de nombrar los nombres de las partes solamente con la primera sigla
de sus apellidos. En casos notorios, estas medidas no se muestran suficientes
y muchas veces pueden resultar en un proceso de revictimización.
Dentro esta óptica, también nos advierte el magistrado español LO-
PÉZ ORTEGA,1993 sobre otros relevantes riesgos con relación a los jui-
cios criminales

Ahora bien, es preciso advertir que la publicidad amplificada por


los medios de comunicación, la publicidad espectáculo, conlleva
grandes riesgos para los participantes en el proceso. Especialmente
para el inculpable, el cual ha de soportar que parte de su vida, el
reproche por el delito e incluso su condena, se pongan en vista de
todos, lo que representa uno de los obstáculos más importantes
para su resocialización. La publicidad excesiva bien comporta una
amenaza para la presunción de inocencia del acusado que se halla
expuesto a una precondena en los medios de comunicación16.

15 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1105200908.htm>. Aces-


so em 10/10/2020.
16 López Ortega, Juan José. "Televisión y Audiencia Penal". Jueces para la democracia, 1993.
Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/revista/829/A/1993>. Acesso em: 10/10/2020.

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Como se nota, el espectáculo masivo de los juicios producidos por los


medios y alimentados hoy por los usuarios en las redes sociales en realidad
puede causar un daño profundo a la democracia, ya que afecta varios dere-
chos individuales fundamentales, en especial el derecho a un proceso justo.
La necesidad de reflexionar y preservar su núcleo esencial consideran-
do la inexistencia de un derecho absoluto o ilimitado17 no puede dejar de
considerar la ponderación y preservación del núcleo esencial los derechos
supuestamente amenazados o vulnerados.
Este tema tiene especial relevancia cuando se está delante los procesos
penales, ya que la publicidad generalizada puede terminar afectando el
derecho a un juicio justo, es decir, los acusados ​​ya están condenados de
antemano por la opinión pública, que se expresa públicamente en mesas
de bar y en las redes sociales. Tal manifestación capturada por los medios
de comunicación de alguna forma alcanza a los ministros de la Corte, que
muchas veces se siente presionados a juzgar basados en fundamentos que
no las normas constitucionales.
Los abogados penales son prácticamente unánimes en advertir sobre
los riesgos nocivos de este ciclo, en el cual los ministros se acobardan y
se convierten en rehenes de la opinión pública, sin cumplir con su papel
esencial de tutores de la Carta Magna.
Según esta línea de razonamiento, la magistrada federal brasileña Si-
mone Schreiber explica que
Há assim possibilidade de que a liberdade de expressão sofra restri-
ções, em situação de colisão com outros direitos fundamentais de igual
hierarquia, como é o direito a um julgamento justo e imparcial. A colisão
free press v. fair trial ocorre quando se verifica uma campanha midiática pela
condenação da pessoa acusada, que impeça que o julgamento se dê em um
ambiente de serenidade, com respeito ao devido processo legal18.

17 Hay que señalar que para muchos autores (como por ejemplo el profesor da Universidad
Carlos III de Madrid Francisco Javier Ansuátegui Roig), el único derecho absoluto seria de no
someterse a la tortura.
18 SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva dos julgamentos criminais. Disponível em:
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-publicidade-opressiva-dos-julga-
mentos-criminais/4643>. Acesso em: 10/10/2020. “Por lo tanto, existe la posibilidad de que
la libertad de expresión pueda sufrir restricciones, en una situación de colisión con otros
derechos fundamentales de igual jerarquía, como el derecho a un juicio justo e imparcial.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Debe tenerse en cuenta que cuando el órgano judicial más alto del
país no garantiza un juicio justo al individuo (independientemente de su
condición social, económica o actividad), estamos por cruzar la frontera
entre la democracia y otros regímenes políticos, muy a menudo muy pe-
ligroso. ¡Mas que eso!
No solo la democracia puede estar amenazada, sino que la cultura
política19 del país puede estar viciada, ya que las opiniones de los ciudada-
nos fueron apoyadas por los votos de los ministros, quienes, de hecho, no
consagran la supremacía de la Constitución, sino opiniones estrictamente
individuales.

CONCLUSIONES

Aunque no sea un tema inmune de crítica, la “TV Justiça” ha con-


quistado un espacio en el seno de la sociedad brasileña, lo cual es difícil
de revertir considerando su alcance y nivel de desarrollo en términos de
transparencia y publicidad de las acciones de los Poderes del Estado. Se
trata de un hecho que incluso disfruta de innegable reconocimiento por
parte de varios países, como Estados Unidos de la América, México, Pa-
raguay y otros.
En ese sentido, es válido destacar las ideas del jurista alemán HÄBER-
LE con relación a la interesante correlación entre lo que llama "la sociedad
abierta de intérpretes de la constitución" y la democracia. Según el jurista,
la interpretación de la ley máxima de una nación y los dilemas a los que se
enfrentó durante siglos fueron una especie de "sociedad cerrada", es decir,
de intérpretes legales vinculados a las corporaciones.
Sin embargo, considerando la evolución histórica de las formas de
organización política, la interpretación de la constitución debe ser en rea-
lidad un proceso amplio e intrínseco para una sociedad abierta, en la cual
los participantes en este proceso son al mismo tiempo actores y consti-

La colisión entre free press v. fair trial ocurre cuando hay una campaña mediática para la
condena de la persona acusada, lo que impide que el juicio se lleve a cabo en un ambiente
de serenidad, con respecto al debido proceso legal.” (traducción libre).
19 Por cultura política se puede entender como los valores, creencias y conductas impor-
tantes para el proceso político que prevalecen entre los individuos y grupos de la sociedad,
lo que contribuye para la estabilidad y la calidad del sistema político y la democracia.

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tuyentes de esa sociedad pluralista, es decir, todos los que experimentan


esa constitución deben tener la legitimidad para interpretarla.
En entrevista a un famoso sitio jurídico especializado en 2012,
HÄBERLE comentó sobre la política de transmisión de las sesiones de la
Corte Suprema brasileña

Eu acompanho essa democratização com grande entusiasmo e


acompanho com igual entusiasmo a tendência de dar publicida-
de às sessões do STF. Mas tal orientação pode envolver também
riscos e perigos. O legislador parlamentar é dotado de legitimação
democrática direta, uma vez que é eleito pelo povo, ao passo que
os juízes do STF têm legitimidade apenas indireta e mediada. O
que me alegra é saber que o Supremo é a expressão de uma socie-
dade de intérpretes da Constituição que se abre cada vez mais. O
STF está em vias de se transformar em um Tribunal do Cidadão.
Os jovens tribunais constitucionais precisam investir esforços para
criar uma sociedade civil. Para uma sociedade lícita e cidadã, é
imprescindível a existência de um Judiciário constitucional con-
cebido como um Judiciário cidadão. Essas audiências públicas são
um meio para este fim20.

Desde esta óptica, a partir del momento en que los individuos pueden
contar con la transparencia y publicidad de los actos de todos los poderes
(como, por ejemplo, un canal público estatal), se admite esta capacidad de
participación del ciudadano común en el proceso de pensar y comprender
la Constitución, alcanzando, en ultima ratio, un nivel más democrático de
sociedad y de régimen político.
Todavía, hay que observar que un instrumento aislado con un canal
público no es capaz de conferir mayor legitimidad democrática por sí mis-
mo. Es innegable que la “TV Justiça” sumada a una población con plena
capacidad para reflexionar y cuestionar ciertamente puede llevar a la socie-
dad a un mayor grado de libertad, igualdad y solidaridad. En este punto,
está la conclusión clave: solo una nación con un buen sistema educativo

20 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/20anos/2017-ago-10/peter-haeberle-cons-


titucionalista-alemao-constituicao-e-declara>. Acesso em: 20/01/20.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

es capaz de formar ciudadanos críticos y calificados para protagonizar su


propia historia.
Por otro lado, no se puede dejar de observar que el tema choca emi-
nentemente con varios derechos y principios fundamentales en un sistema
democrático, como el derecho a la información, el derecho a la imagen, el
derecho a la intimidad o la privacidad, la libertad de prensa, el principio
de independencia del poder judicial y en especial con el derecho del indi-
viduo a un proceso justo.
Si, por un lado, es innegable que la popularización de las transmisio-
nes de las sesiones generó el fenómeno del empoderamiento de los jueces,
todavía no es posible afirmar con seguridad que hubo un daño al alcance
efectivo de la justicia en países que cuentan con iniciativas como la “TV
Justiça” por se tratar de un valor que es difícil de medir. Sin embargo,
quedó claro que el riesgo se ha potencializado.
A causa de ello, se posible asociar este fenómeno con las ideas de la
politóloga alemán Ingeborg Maus que nos advierte de la construcción del
Poder Judicial como el "superyó de la sociedad huérfana", es decir, cuando
el Poder Judicial se atribuye una condición superior con respecto a los
dictados morales de la sociedad. Sería, entonces, la expansión del control
normativo analizado dirigido por el Poder Judicial a la luz del concepto
psicoanalítico del imago paterno, que se proyecta en función de la moral
pública ejercida por el modelo judicial de decisión.
En este sentido, tenemos las palabras del doctor en Derecho por la
Universidad de Buenos Aires e investigador de la Universidad de Paris I
Ferraz, 2010

Nosotros hemos heredado de la modernidad la condición de rehe-


nes del poder judicial, el único socialmente autorizado para liqui-
dar la mayoría de nuestros conflictos. Hoy en día, ni siquiera po-
demos recurrir a los grandes relatos (Les grand Récits) – el Dios
del cristianismo, la Historia de Hegel, la Ilustración de la razón
Kant, el trabajador emancipado de Marx, fueron reemplazados por
la figura del Estado, que utiliza la coacción y la violencia simbólica,
con la adopción del Derecho como factor de legitimación. En este
sentido, es correcta la crítica de Ingeborg Maus cuando dice que el
poder judicial se ha convertido en el superyó de la sociedad huér-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

fana. Hemos acompañado la creciente necesidad de un extraordi-


nario poder estatal para decidir en confrontación con esta sociedad
en que el conflicto parece haberse convertido sistémico - no es de
extrañar Dworkin cuando habla de la figura de un juez Hércules.
Crecente también se convirtió el mismo poder judicial en contra
de los otros poderes y la sociedad21.

Tomando como referencia este punto de vista, quizás esta sea la fun-
damentación del proyecto de ley n. 7.004/201322 presentado por el dipu-
tado del Partido de los Trabajadores (PT) Vicente Cândido, que modifica
las disposiciones de la Ley 8.977/1995, con el objetivo de establecer nue-
vos criterios con respecto al uso del canal reservado a la Corte Suprema,
o sea, uno de los primeros intentos de restringir la transmisión de las se-
siones en vivo.
¿La referida problemática iría en contra de los ideales de la diosa The-
mis, símbolo de la justicia, con los ojos vendados y ajena a las luces de las
cámaras (privadas o públicas)? Esta es una de las muchas preguntas que el
presente trabajo deja para futuras reflexiones.

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22 Según investigación del 20/01/2020, el referido proyecto de ley fue archivado el
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112
O DIREITO À DIGNIDADE DE
MULHERES TRANSEXUAIS NEGRAS
COMO CULTURA CONSTITUCIONAL
DO ESTADO
Andre Antônio Martins Brasil23

INTRODUÇÃO

É de extrema importância que a Constituição Federal seja realista e


compatível com o nível de desenvolvimento cultural, político, social e
econômico do seu povo. Neste diapasão, o direito à dignidade da pessoa
humana, estabelecido e normatizado na CF/88 como fundamento do Es-
tado Democrático de Direito, deve possuir efetiva aplicabilidade também
às mulheres transexuais negras, para a configuração de uma cultura cons-
titucional no Estado brasileiro.
A Constituição Federal de 1988, mesmo com mais de 30 (trinta) anos
de existência, falha precipuamente na implementação e efetivação do di-
reito à dignidade da pessoa humana à população de mulheres transsexuais
negras, diante de equívocos na atuação do Estado em seus deveres funda-
mentais.
A responsabilidade estatal na consolidação da dignidade da pessoa
humana possui natureza intervencionista, condicionada à realização de

23 Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza. Carreira desenvolvida. com 14


anos de experiência na área jurídica, em Advocacia, Gestão e Serviço Público; Pesquisador
na área de Direitos Humanos e Justiça Social.

113
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

políticas públicas, com a aplicabilidade imediata a todos. Ocorre que, os


grupos de pessoas consideradas vulneráveis, como as mulheres transexuais
negras, que sofrem o trinômio sexismo, racismo e o não reconhecimento
de gênero, tendem a não atingir a aplicabilidade desses direitos, na medida
em que o Estado privilegia uns em detrimento de outros.
Falta, portanto, vontade política do poder público para tornar efi-
caz o texto da carta magna e o exercício da cidadania, restando confi-
gurado um baixo grau de cultura constitucional como eixo de coesão
social, em que se observa a necessidade de uma nova postura estatal
ante a realidade social.

1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Conceitua-se o direito à dignidade da pessoa humana como o reco-


nhecimento do direito a resguardar direitos. Trata-se de uma qualidade
intrínseca ao ser humano, de proteção à vida e a todo tratamento degra-
dante e discriminação, objetivando um mínimo de condições de sobre-
vivência e convivência social, sendo inquestionável sua relevância para a
sociedade em geral, em razão de sua finalidade de promoção e efetivação
de normas de caráter social.
Diante desta abordagem, cumpre iniciar com a instrumentalização
desse direito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
em 1948, que estabeleceu garantias aos direitos imprescindíveis à pessoa,
fazendo referência à dignidade humana. Tema, posteriormente, consa-
grado no Brasil, ganhando força normativa e coercitiva, na Constituição
da República de 1988, que a estabeleceu como fundamento do estado
democrático de direito e objetivo fundamental da República, visando a
promover o bem de todos, sem preconceitos, ou qualquer outra forma de
discriminação.
Ao se inferir a dignidade humana como fundamento da República
Federativa do Brasil, assevera-se que o princípio é a base sustentadora do
Estado Democrático de Direito e constitui valor imprescindível ao indi-
víduo social, devendo, portanto, ser observado pela sociedade e garantido
pelo Estado, bem como, por suas normas, como medida necessária ao
reconhecimento da condição humana.

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Canotilho (2008, p.225) ressalta que a dignidade da pessoa humana


significa que “a República é uma organização política que serve o ho-
mem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios”.
Assim, a pessoa humana é colocada no eixo central do ordenamento ju-
rídico brasileiro e, como tal, merecedora de proteção, principalmente nas
situações de vulnerabilidade.
É de suma importância observar que o direito à dignidade, basilar do
eixo central de garantias Constitucionais, compreende um aspecto exis-
tencial apto a possibilitar que os cidadãos busquem a própria ideia de feli-
cidade, fazendo livremente as escolhas oportunas e elegendo seus projetos
existenciais, sob o direito de não sofrer discriminações em razão de sua
identidade e de suas escolhas.
Vale ressaltar, também, que a Constituição Federal é, em sua essência,
uma ordem normativa inclusiva, da qual não se deve permitir uma inter-
pretação de seu conteúdo capaz de reconhecer e admitir qualquer forma
de discriminação, visando a proteger o cidadão comum.
Na mesma esteira, os Princípios de Yogyarkarta, que versam sobre
a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à
orientação sexual e identidade de gênero, dispõem que:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e


direitos. Todos os direitos humanos são universais, interdependen-
tes, indivisíveis e inter-relacionados. A orientação sexual e a iden-
tidade de gênero são essenciais para a dignidade e humanidade de
cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso.”
(PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2007, p.07)

Segundo Sarmento (2016), o principal déficit de efetividade da dig-


nidade da pessoa humana deriva da cultura enraizada, que não concebe
a todas as pessoas como igualmente dignas, mas consagra privilégios para
uns à custa do tratamento indigno a outros.
Desta feita, a efetivação da dignidade humana e da real cidadania, a
todos os indivíduos da sociedade e, em especial, às mulheres transexuais
negras, objeto do nosso estudo, é um caminho que atravessa a tomada de
consciência de ruptura da ideologia patriarcal, de uma dominação exer-

115
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cida por ideais racistas e sexistas, que fomentam o preconceito e a discri-


minação.

2. GÊNERO, RAÇA E IDENTIDADE SEXUAL

Dando continuidade, cabe qualificar quem é a mulher transexual ne-


gra. Entender quem é essa mulher a quem está sendo negada a dignidade,
e que está a merecer essa proteção especial do Estado enquanto integrante
de um grupo vulnerável, fazendo jus a uma visão particular no meio social
em que vive.
A mulher transexual, segundo os critérios binários para a definição do
sexo, é a pessoa que nasceu em um corpo masculino, porém cresceu e se
desenvolveu no seu íntimo como mulher, com hábitos, reações e aspecto
físicos diversos do seu sexo morfológico inicial.
Sendo esta mulher ainda negra, ela vem a sofrer violações de toda
ordem, através de um preconceito devastador que se inicia nas próprias
famílias, pela falta de acolhimento, em uma reprodução da violência de
gênero tradicional, de um país estruturalmente machista e racista.
Tendo em vista que, o machismo e o sexismo atingem a vida de to-
das as mulheres, observa-se que essa violação é ainda maior quando a
esta condição de gênero é acrescida outras como de classe, raça, e iden-
tidade sexual, sendo preciso interseccionalizar tais violações, buscando
compreender como essas opressões funcionam de forma vinculada, po-
sicionando determinados grupos em situação de maior vulnerabilidade, a
exemplo das mulheres transexuais negras.
Com efeito, essas mulheres são colocadas em um grupo de pessoas
vulneráveis, em que lhes são violados direitos intimamente ligados à dig-
nidade, como o direito à vida, à educação, ao trabalho e tantos outros,
em uma tripla opressão de gênero, raça e identidade sexual, que deve ser
analisada em sua interseccionalidade, buscando um enfrentamento simul-
tâneo de todas as formas de injustiças.
O passado escravagista e as heranças do patriarcado compõe o ideal que
culminou no alto grau de injustiças culturais e sociais contra a mulher transe-
xual negra, atingindo-lhe a identidade e a autoestima, bem como, o reconhe-
cimento de sua cidadania pelos demais membros da sociedade, corroborando
para a violação de seus direitos, lhes alcançando a dignidade humana.

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Essas mulheres são, hoje, as maiores vítimas de feminicídio, por so-


frerem constantes violências pelo simples fato de serem mulheres, transe-
xuais e negras, o que aponta para a necessidade de serem pensadas políticas
públicas específicas que lhes assegurem proteção frente à violência relacio-
nada às questões de gênero e raça, em que dados denunciam que a cada
5 dias uma mulher é vítima de Feminicídio, enquanto a cada 48h uma
pessoa trans é assassinada, e 54% são negras (Sinan), ocupando o Brasil o
5º lugar no mundo entre os países com mais vítimas de feminicídio e o 1º
do ranking mundial que mais mata transexuais (Mapa da Violência 2019
e ANTRA).
Observa-se que, houve muitas conquistas no sentido de ampliar e ga-
rantir direitos e liberdades, porém quando se trata de sexualidade, raça ou
reconhecimento de gênero se depara com uma enorme dificuldade em se
reconhecer a diversidade e o pluralismo, colocando-as à margem da socie-
dade e fomentando a vulnerabilidade desses grupos divergentes, em uma
sociedade, repleta de discriminação e preconceito, que obstrui a realização
pessoal, profissional e afetiva desses grupos.
Segundo Saffioti (1999) a sociedade e o Estado, por meio de suas
políticas públicas, acabam, muitas vezes, considerando normal e natural
a violência exercida por homens contra mulheres. Diante deste cenário,
nota-se que a naturalização da violência causa a morte das mulheres, pois
a impunidade do sujeito ativo permanece como fruto dessa naturalização,
o que ocasiona o aumento das mortes, em especial das mulheres negras,
que são discriminadas pela cor da pele, pelo baixo nível de escolaridade,
considerando-se que o acesso à educação de qualidade é elitizado e poucas
conseguem concluir os estudos.
Nesse sentindo, o médico Roberto Farina, primeiro cirurgião brasi-
leiro a realizar, em 1971, na cidade de São Paulo, uma cirurgia de redesig-
nação sexual em uma mulher trans, estabelece:

“Há diversos tipos de estigma, e em todos podemos, de alguma


forma, identificar a situação do transexual, por exemplo a estigma-
tização decorrente das deformidades do corpo. Exsurgem, tam-
bém, as denominadas culpas de ordem individual, tais como, por
exemplo, “os distúrbios mentais, prisão, vício, alcoolismo, homos-
sexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento
político radical”. Há, ainda, os estigmas referentes à raça, religião e

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

nação, mas em todos, se encontra a mesma característica, qual seja,


“um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação
social quotidiana possui um traço que pode se impor à atenção e
afastar aqueles que encontra, destruindo a possibilidade de atenção
para outros atributos seus.” (FARINA, 1982 p. 14).

Nesse contexto, pode-se afirmar que a existência dessas pessoas é


marcada por inúmeros desafios, dos quais, muitos agridem o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Limitar e, até mesmo, não lhes conceder
a dignidade plena é não reconhecer o avanço social que o direito e a me-
dicina já avançaram em respeito da transexualidade e, com isso, difundir
ainda mais o preconceito.
A dignidade humana como reconhecimento de mulheres transexuais
negras significa o respeito a sua identidade e as suas diferenças, de forma a
repulsar as injustiças sociais que lhes atingem, destituindo-as de qualquer
importância social, em razão de padrões culturais estruturais que as infe-
riorizam, excluem e rejeitam. Recusar à estas mulheres o direito à digni-
dade, afeta não somente a esse grupo social, estigmatizado desde sempre,
mas também toda a sociedade, contribuindo para a preservação de desi-
gualdades e injustiças que as acompanham durante a vida.

3. POLÍTICAS PÚBLICAS E JUSTIÇA SOCIAL

A efetivação da cidadania e da dignidade pressupõe uma atuação es-


tatal, no sentido de desempenhar a igualdade material entre os indivíduos
do corpo social, respeitando as diferenças e promovendo a inclusão dos
grupos vulneráveis.
Referindo-se ao Papel do Estado como garantidor de direitos, o mi-
nistro Luís Roberto Barroso (2011, p.680), dispõe: “O Estado deve ga-
rantir os direitos fundamentais, viabilizar a concretização da dignidade
humana, assegurando a liberdade e igualdade, não permitindo discrimi-
nações e preconceitos, promovendo tratamento desigual aos desiguais e
igualitário aos iguais.“ Assim, na lição do Ministro, a dignidade da pessoa
humana funciona como fator de legitimação das ações estatais.
Neste contexto, faz-se necessário ao Estado investir em projetos es-
pecíficos que visem à igualdade racial, social e de gênero, bem como, im-

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plementar políticas públicas efetivas que permitam a conscientização da


sociedade, com fins de desconstruir qualquer forma de violação de direi-
tos, em especial, contra a mulher transexual negra, uma vez que, a omissão
estatal compromete a existência digna dessas mulheres, salientando que a
dignidade é o núcleo intangível do ordenamento jurídico.
Não se trata de elaborar direitos fundamentais. Estes já existem. Urge
repensar o papel do Estado e da sociedade em geral, em seus deveres fun-
damentais, de torná-los efetivos por meio de políticas que possibilitem a
afirmação dos direitos fundamentais na realidade social brasileira, onde
há uma inobservância consciente da Constituição pelos órgãos do Estado,
dificultando, assim a assimilação da Carta magna pela população, restando
evidente um claro distanciamento da Constituição em relação à socieda-
de, na medida em que esta não a reconhece.
Mesmo existindo meios jurídicos que visam a combater a violência
contra a mulher, o racismo e a transfobia, bem como agentes públicos
próprios para atuação neste sentido, observa-se o despreparo destes profis-
sionais, na falta de capacitação e interesse do agente, o que leva, portanto,
a não implementação efetiva das políticas públicas.
Demonstra-se que a mulher transexual negra é extremamente
vulnerável e marginalizada, sendo necessárias ações focais e emergen-
ciais, com fins de frear essa violência e garantir o desenvolvimento
pleno dessas mulheres, através dos deveres fundamentais do Estado.
Nesta seara, Ingo Sarlet conceitua a dignidade humana como: Qua-
lidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado
e da comunidade, implicando neste sentido, um complexo de direitos
e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com demais
elementos humanos. (SARLET, 2010, p.60).
Do ponto de vista da relevância de dados do Atlas da Violência de
2019, considerando o aumento de mortes em razão do gênero e raça, em
especial de mulheres transexuais negras, torna-se primordial o cumpri-
mento de deveres fundamentais, através de políticas públicas especificas,

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

por se tratar de um problema social, uma questão de justiça, de segurança


e saúde pública, que atinge a todos de forma direta ou indireta.
No que tange à responsabilidade do Estado na consolidação da digni-
dade da pessoa humana, destacam-se os ensinamentos de Piovesan (2009,
p.324), ao afirmar que “da Constituição de 1988 emerge uma ordem ju-
rídica própria dos Estados intervencionistas, cuja dinâmica está condicio-
nada à eficiência e competência na obtenção de resultados, que se subor-
dinam à concretização de políticas públicas”.
Inquestionável a necessidade de se concretizar por meio da atuação do
Estado Democrático de Direito a realização pessoal da transexual negra,
por intermédio de mecanismos imediatos que possam garantir e tutelar
o direito a dignidade humana dessas pessoas, através de uma capacitação
contínua dos agentes públicos e da sensibilização dos gestores em questões
de gênero, diversidade e raça, enfrentando a intolerância social, e garan-
tindo a missão essencial do Estado de promover e ampliar o desenvolvi-
mento social, sob pena da perda de seus propósitos fundamentais.
Nenhuma mulher trans negra se sente segura e plena, no Brasil. Elas
saem de casa e não sabem se conseguirão voltar. Não sabem se irão con-
seguir acessar serviços públicos ou espaços comuns. Não conseguem, em
sua imensa maioria, acesso à educação, ou se manterem vinculadas às es-
colas. O acesso ao trabalho quando atingido é na forma de subempregos,
sem garantia de direitos, ou da prostituição, que é o caso de 90% da popu-
lação transexual, cuja expectativa de vida é de 36 anos (ANTRA).
É dever fundamental do Estado, portanto, reconhecer a liberdade dessas
mulheres e se manter pluralista, garantindo aos grupos mais vulneráveis, ex-
cluídos do acesso aos direitos fundamentais mais básicos, a conquista da sua
própria condição humana, enquanto que, no cenário atual, o que se observa é
um caminho inverso de redução da importância e do investimento na educa-
ção e na ciência, a formação precária dos agentes públicos, a baixa consciência
e cultura de respeito e concretude da Constituição de 1988 e a visão dos gru-
pos mais vulneráveis da sociedade brasileira como inimigos do Estado.

4. CULTURA CONSTITUCIONAL

Sendo assim, é necessário à Constituição Federal transcender a con-


dição formal de documento e assumir o papel de um processo público

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sempre aberto e participativo que influencia diretamente política, socie-


dade e direito, reduzindo a prevalência da vontade individual com fins de
concretizar a vontade coletiva. Evidenciando, assim, que ainda não existe
uma cultura constitucional no Brasil, para a plena efetivação de direitos e
deveres, o que indica a necessidade de se desenvolver uma ação educativa,
objetivando desenvolver dita cultura constitucional, em que o povo tem
conhecimento da sua Constituição e o Estado efetiva as políticas públicas
garantidoras do texto constitucional.
Importante ressaltar que o sujeito ou grupo social ao se autorreco-
nhecer como detentor de direitos está mais apto a enfrentar politicamente
o Estado, e exigir sua atuação no combate às injustiças e efetivação dos
direitos fundamentais (PINTO, p.50, 2008), vivenciando assim uma cul-
tura constitucional com sua cidadania assegurada.
A ideia de uma cultura constitucional plena, quando da sua visão
prática, se refere ao conhecimento e à adesão daqueles que integram a
Constituição, configurando o respeito de todos à Carta Magna e o real
acatamento dos seus comandos em seu dia a dia. A Constituição não basta
existir. É imprescindível seguir para ideais mais abertos e reconhecer que
o povo é parte da Constituição, efetuando um combate à falta de conheci-
mento do texto constitucional, bem como, assumir a relevância do papel
a ser desenvolvido pelo Estado, atingindo a consolidação de uma cultura
constitucional.
Como bem observa Verdu (2004, p. 157), um dos motivos que ex-
plicam o escasso sentimento constitucional que nossa Carta inspira nos
cidadãos é o deficiente ensino que sobre ela é ministrado nos centros es-
colares, daí a importância do conhecimento constitucional, pois não se
realiza aquilo que não se conhece. O Conhecimento deve estar nortea-
do pela visão humanística, ética, solidarista, pluralista e transformadora
(SANTOS, 2004).
Portanto, o desenvolvimento da cultura constitucional, que presume
a efetividade das normas constitucionais, está intimamente ligado à atua-
ção do Estado na execução de políticas públicas garantidoras de direitos a
todos da sociedade, para se tornar viva a Constituição.
O que se vê, hoje, no Brasil, é que sua população, de modo geral, não
conhece a Constituição Federal. E se é nela que está consagrada a garantia
dos direitos essenciais do ser humano e os mecanismos de controle do Es-

121
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tado, o conhecimento do seu conteúdo é a única maneira de se efetivar o


exercício pleno desses direitos. Nesse sentido, a Constituição precisa fazer
parte do cotidiano da vida social do seu povo, para que, assim, seu texto
se torne efetivo, por meio de políticas públicas que garantam a dignidade
humana de todos, em especial das mulheres transexuais negras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar a eficácia do direito à dignidade da pessoa humana às mu-


lheres transexuais negras, bem como, a existência de efetiva prestação de
deveres fundamentais por parte do Estado, como consubstanciação des-
te direito fundamental, em uma cultura constitucional do ordenamento
jurídico brasileiro, é medida urgente para se aprimorar os instrumentos
constitucionais garantidores da concretização do mesmo, em sua abran-
gência e aplicabilidade.
Urge, portanto, interrelacionar a importância do Direito à dignidade
da pessoa humana com os Deveres Fundamentais do Estado, enquanto
sujeito responsável por garantir a efetividade da Constituição, problemati-
zando a intersecção da tripla opressão de gênero, raça e identidade sexual
nas vidas das mulheres transexuais negras e a responsabilidade do Estado
na reprodução dessas violências.
Já que, observa-se-se o despreparo do aparato estatal aliado à falta de
capacitação profissional e interesse de seus agentes, o que leva, portanto,
a não efetivação de direitos fundamentais e a carência na implantação das
políticas públicas, em especial quando se trata de mulheres trans negras,
na medida em que o racismo, o sexismo e a transfobia prevalecem nas
relações sociais.
Necessária, pois, a implementação de políticas públicas estatais de in-
clusão, debatendo e analisando o papel dos agentes públicos frente aos
deveres fundamentais do Estado e à frágil cultura constitucional.
Assim, disseminar e efetivar socialmente a cultura constitucional en-
quanto estratégia para uma real aplicação do direito à dignidade humana, é
uma alternativa para se enfrentar a singularidade interseccional da opres-
são vivenciada pelas mulheres transexuais negras
Desta forma, anseia-se pela efetivação dessas normas de caráter pro-
tetivo, em que as ações do poder público estejam focalizadas no sentido

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de reverter esse cenário de violência, onde se observa que o olhar para a


diversidade dessas mulheres, e em especial para a inclusão da dimensão ra-
cial, sexual e de gênero em pesquisas, estudos e políticas públicas, qualifica
a agenda política nacional, na construção de um Estado justo e solidário.

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125
RESTRIÇÕES ÀS VISITAS ÍNTIMAS
NAS PENITENCIÁRIAS FEMININAS DE
PORTUGAL E DO BRASIL: VIOLAÇÃO
AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE
E DA DIGNIDADE DA MULHER
ENCARCERADA.
Carolina Arruda Costa Ferreira24

1. Introdução

No sistema penitenciário feminino existem inúmeros problemas, que


se intensificaram ao longo das décadas, com elevação do número de cri-
mes praticados por mulheres e, consequentemente, com o aumento ex-
pressivo do número de encarceradas.
A Declaração dos Direitos Humanos prevê, em seu art. 1º, que “to-
dos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.
No mesmo sentido, em seu art. 2º estabelece que:

“todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberda-


des proclamados na Declaração, sem distinção alguma, nomeada-
mente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião
política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nas-

24 Mestra em Direito e Instituições Políticas pela Universidade Fumec, Doutoranda em


Estudos de Gênero pelas Universidades Nova de Lisboa e Universidade de Lisboa.

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cimento ou de qualquer outra situação”. (DECLARAÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS, 1988)

Sobre o princípio da igualdade, a Constituição da República Portu-


guesa estabelece, em seu artigo 13º, que “todos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a Lei”, asseverando ainda, no mesmo
dispositivo legal, que:

“ninguém poderá ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, priva-


do de qualquer direito ou isento de isento de qualquer dever em ra-
zão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica,
condição social ou orientação sexual.” (PORTUGAL, 1974)

Na Constituição da República Federativa do Brasil também há pre-


visão expressa sobre o princípio da igualdade, assim dispondo o art. 5º:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos


termos desta Constituição;” (BRASIL, 1988)

Embora exista no Brasil e em Portugal a proibição legal de tratamento


diferenciado em razão do sexo, especialmente em relação ao encarcera-
mento feminino, as discriminações relativas ao gênero existentes dentro
das prisões, e a ausência de políticas públicas voltadas para atender as espe-
cificidades das mulheres, tornam-se cada vez mais evidentes. A manuten-
ção de ideologias formadas há anos, atrasadas e misóginas, que defendem,
por exemplo, que o desejo sexual é algo restrito ao sexo masculino, de-
monstra como o princípio da igualdade por inúmeras vezes é simplesmen-
te ignorado.
Esse texto tem por objeto central analisar o direito da mulher presa
à visita íntima, tendo em vista sua importância para a materialização dos
princípios da igualdade e da dignidade humana da mulher encarcerada,

127
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

buscando detalhar como o tema da libido da mulher presa vem sendo tra-
tado pelos sistemas carcerários brasileiro e português.
Para tanto, necessário resgatar um pouco da história e analisar como
a libido feminina foi tratada ao longo da história e como a manutenção de
estereótipos de gênero pode influenciar no cumprimento de pena das mu-
lheres, tema que merece uma atenção especial da sociedade, com neces-
sidade de políticas públicas que deem conta da singularidade da questão.

2. Conceituação dos Direitos Humanos

Embora nos tempos modernos seja comum a utilização da expressão


Direitos Humanos, em razão da amplitude do tema, conceituá-los não se
torna uma tarefa muito simples. Flávia Piovesan, ao tratar do assunto, nos
ensina que os Direitos Humanos representam "uma construção axiológi-
ca, fruto de nossa história, de nosso passado, de nosso presente, a partir de
um espaço simbólico de luta e ação social”. (PIOVESAN, 2007:16)
Perez Luño, não divergindo do que fora acima esposado, preleciona:

Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades


e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exi-
gencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humana, las cuales
deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídi-
cos a nivel nacional e internacional. (LUÑO, 1999:48)

Alexandre de Moraes, a seu turno, assim se posiciona a respeito do


tema:

Os direitos humanos colocam-se como uma das previsões absolu-


tamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consa-
grar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder
e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana. (MO-
RAES, 1998:20)

Podemos afirmar, portanto, que quando falamos de Direitos Huma-


nos, estamos tratando de algo essencial, fundamental para a convivência
das pessoas, independentemente da condição econômica, social, cor, de
gênero ou criminal que esteja envolvida. São direitos que visam resguardar

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a integridade física e psicológica de todos os seres humanos perante os seus


semelhantes e o Estado em geral.
É comum que os meios de comunicação façam referência aos direitos
humanos a partir de sua violação. A revelação de torturas humilhantes na
prisão de Guantánamo e a própria situação caótica verificada no sistema
prisional atual, por exemplo, são notícias de grande repercussão, não se ol-
vidando que o principal marco internacional contemporâneo dos direitos
humanos, a Declaração Universal de 1948, foi realizada após a ocorrência
de inúmeras demonstrações de que os direitos básicos, indispensáveis à
convivência social, estavam sendo desrespeitados.25
Referido documento foi criado com o intuito de proteger os seres
humanos das barbaridades que vinham sendo cometidas no mundo, as
quais ensejaram as mais profundas preocupações no tocante à proteção dos
direitos tidos como universais, afirmando-se, a partir de sua criação, que
a soberania estatal não é absoluta, mas encontra-se limitada pelo respeito
aos Direitos Humanos.
Em seu preâmbulo, a Declaração dos Direitos Humanos fez constar
expressamente que:

A Assembléia Geral das Nações Unidas proclama a presente "De-


claração Universal dos Direitos do Homem" como o ideal comum
a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objeti-
vo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sem-
pre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da
educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,
pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e inter-
nacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observân-
cia universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados
Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
(DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, 1988)

25 Como exemplos de atrocidades cometidas antes da elaboração da Declaração dos Di-


reitos Humanos podemos citar a ocorrência de duas guerras mundiais, dos regimes totali-
tários, a tentativa de extermínio dos judeus e os lançamentos das bombas nucleares sobre
Hiroshima e Nagasaki.

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A adoção e vigência de princípios fundamentais inerentes à vida, as


diversas formas de liberdade e a igualdade entre os seres humanos, fez
com que os Estados firmassem entre si um compromisso para a busca da
paz mundial.
Assim, os direitos humanos sempre estiveram diretamente relaciona-
dos com as mudanças ocasionadas nas sociedades, o que nos leva à afir-
mação de que, a primeira vista, não parece possível delimitar a extensão
de seu significado, porque, ainda que em ritmos diferentes, todas as socie-
dades vivem em um processo histórico de transformação contínua, sendo
indiscutível que o juízo que as culturas fazem sobre os valores individuais
e sociais vão sendo modificados ao longo do tempo, alterando-se, conse-
quentemente, o que chamamos de direitos humanos.
Embora não seja intuito do presente trabalho analisar detidamente
os instrumentos internacionais de direitos humanos que regulamentam
o tratamento das mulheres encarceradas em Portugal e no Brasil, pre-
tendendo-se dar ênfase nas legislações nacionais aplicáveis à espécie, não
poderíamos deixar de mencionar os inúmeros tratados que traçam dire-
trizes e orientações para que os Estados implementem os Direitos Hu-
manos: Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966);
Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discri-
minação contra a Mulher (1979); Convenção contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penais Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984); Con-
venção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (1989) e as Regras
de Bangkok (2009).

3. Evolução histórica do papel da mulher na sociedade

Em sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do Es-


tado”, Engels atribui à Bachofen o pioneirismo nos estudos da história da
família, asseverando que referido autor, em sua obra Direito Materno, es-
crita em 1861, formula a tese de que primitivamente os seres humanos vi-
viam em promiscuidade sexual, tornando-se impossível estabelecer, com
rigor, a paternidade, fazendo com que as mulheres, mães, gozassem de
grande apreço e respeito, alcançando o domínio da sociedade. A passagem
para a monogamia (por parte da mulher) e o direito paterno processou-se

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

como consequência de determinadas concepções religiosas, e para se ga-


rantir que a herança passasse de pai para filho. (ENGELS, 1884).
No decorrer da história, vimos que a mulher, durante anos, teve os
seus direitos tolhidos, sendo vista não como protagonista da própria histó-
ria, mas tão somente como objeto de reprodução e assistência da figura do
homem, representado primeiramente pelo pai, depois pelo marido e filhos.
O Código de Manu (200 A.C e 200 D.C), considerado por muitos
como a primeira organização geral da sociedade, deixava bem explícito o
papel secundário da mulher:

Art. 419º Dia e noite, as mulheres devem ser mantidas num estado
de dependência por seus protetores; e mesmo quando elas têm de-
masiada inclinação por prazeres inocentes e legítimos, devem ser
submetidas por aqueles de quem dependem à sua autoridade.

Art. 420º Uma mulher está sob a guarda de seu pai, durante a in-
fância, sob a guarda de seu marido durante a juventude, sob a guar-
da de seus filhos em sua velhice; ela não deve jamais se conduzir à
sua vontade.

O lugar destinado para as mulheres era o lar e a família. Mesmo aque-


las detentoras de uma posição privilegiada não tinham seus direitos sociais
e políticos representados, sendo-lhes reservado o papel de esposa, mãe e
guardiã da casa, cabendo aos homens o espaço público.
A partir da chegada do século XX, e das grandes guerras, após inces-
santes lutas em busca de igualdade, as mulheres ingressaram em espaços
antes destinados unicamente aos indivíduos do sexo masculino.
Sua emancipação como chefe do lar, sem a devida equiparação do
salário com o dos homens, acabou por acarretar um aumento da pressão
financeira, podendo este ser um dos fatores causadores do aumento da
criminalidade feminina.
Os dados divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias – Infopen, publicado em junho de 2017, de certa forma
comprovam referida teoria. No Brasil, os delitos mais praticados pelas
mulheres são aqueles que podem, de alguma forma, complementar a ren-
da: tráfico de entorpecentes lidera o ranking de crimes femininos, seguido
do roubo, crime contra o patrimônio.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Os dados extraídos do sítio da Direção Geral de Reinserção e Serviços


Prisionais demonstram que em Portugal, em relação aos crimes praticados
pelas mulheres, a realidade não é muito diferente daquela apresentada no
Brasil. O tráfico de drogas e o roubo também foram os crimes mais prati-
cados pelas mulheres que se encontram atualmente encarceradas no país.

4. A mulher e o sistema penal

A história da pena e, consequentemente, do Direito Penal, se confun-


de com a história da própria humanidade. Em todos os tempos, em todas
as raças, vislumbra-se a pena como uma ingerência na esfera do poder e da
vontade do indivíduo que ofendeu e porque ofendeu as esferas de poder da
vontade de outrem. (MASSON, 2015).
De acordo com a Bíblia, a primeira pena aplicada na Terra foi a expulsão
de Eva e Adão do Jardim do Éden, punição atribuída por Deus por terem
desobedecido as suas ordens e comido o fruto proibido. (GRECO, 2019)
Nas primeiras organizações de sociedade a pena era aplicada pelos
sacerdotes quando acontecia uma infração totêmica ou a desobediência
ao “tabu”, levando o coletivo a punir o infrator para evitar que os Deuses
punissem toda a sociedade. A pena significava mera vingança, um revide à
agressão sofrida, seu único objetivo era punir, sem qualquer preocupação
em se fazer justiça. (MIRABETE; FABRINI, 2012)
Posteriormente à vingança divina, surge a fase da vingança privada,
decorrente principalmente do crescimento dos povos e da complexidade
daí resultante. (MASSON, 2015)
Imperava a Lei do mais forte, a vingança de sangue, acarretando, na
maior parte das vezes, excessos e demasias, o que culminava com a disse-
minação do ódio e consequente guerra entre os grupos.
Com a evolução política e melhor organização da sociedade, o Estado
avocou o poder-dever de manter a ordem e a segurança social, assumindo
a pena um nítido caráter público. (MASSON, 2015)
Nessa fase, a despeito de o Estado proibir a autotutela, as sanções ain-
da mantinham as características das fases anteriores, mostrando-se muitas
vezes cruéis e intimidatórias, variando desde a fogueira até o esquarteja-
mento. A privação de liberdade como pena autônoma surgiu apenas no
período moderno, já na segunda metade do século XVI.

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Em 1596, tivemos a arquitetura carcerária mais antiga, em Amsterdã,


denominada Rasphuis, que se destinava aos homens, em princípio men-
digos e jovens malfeitores, submetidos a penas leves e longas com trabalho
obrigatório e vigilância contínua. Entre 1597 e 1600 criou-se, também
em Amsterdã, a primeira penitenciária feminina, Spinhis26, com uma se-
ção especial para meninas adolescentes. Referida instituição tinha por fi-
nalidade a reforma das delinquentes pelo trabalho e pela disciplina, além
da prevenção da criminalidade. (MESSA, 2009:114)
Em 01 de julho de 1867, no reinado de D. Luís, foi abolida a pena
capital para todos os crimes civis em Portugal. A última execução de uma
mulher se deu em 01/07/1772, tratando-se de Luísa de Jesus, morta aos
22 anos de idade por ter assassinado 33 bebês abandonados, que ia buscar à
“roda” de Coimbra apenas com o intuito de se apoderar dos enxovais das
crianças para vendê-los. (COMUNICAR, 2017)
No Brasil, o Código Criminal de 1830, o primeiro do Brasil inde-
pendente, representou uma profunda modernização do direito penal, mas
ainda trazia a previsão de pena de morte em determinados delitos como,
por exemplo, insurreição e homicídio agravado27:
A última aplicação da pena de morte no Brasil ocorreu em 1876, ten-
do a prática sido abolida com a Proclamação da República, em 1889.
A partir da segunda metade do século XVIII começaram a surgir mo-
vimentos humanitários nas prisões, visando o fortalecimento do princípio
da dignidade da pessoa humana e, a partir do final dos anos 1960 e início
dos anos 1970, começaram a aparecer trabalhos sobre as prisões femininas.

26 Referido estabelecimento prisional era voltado tanto para a preparação ao tra-


balho na indústria têxtil, quanto para a comunidade prisional, exercendo tarefas
consideradas tipicamente femininas, abrigando mulheres pobres, bêbadas, prosti-
tutas e criminosas, bem ainda aquelas que desvirtuavam do caminho esperado e
desobedeciam a seus patriarcas e maridos. (FRANCO, 2015)
27 INSURREIÇÃO - Art. 113. Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte
ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força. Penas - Aos cabeças
- de morte no gráo maximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no
minimo; - aos mais - açoutes.
HOMICÍDIO – Art. 192. Matar alguém com qualquer das circumstancias aggravan-
tes mencionadas no artigo dezaseis, numeros dous, sete, dez, onze, doze, treze,
quatorze, e dezasete. Penas - de morte no gráo maximo; galés perpetuas no mé-
dio; e de prisão com trabalho por vinte annos no mínimo

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A criminalidade feminina sempre esteve relacionada ao que se pode


chamar de “delitos de gênero” como por exemplo aborto, infanticídio,
homicídios passionais, exposição ou abandono do recém-nascido para
ocultar desonra própria, furto e aqueles relacionados aos delitos dos par-
ceiros. (BUGLIONE, 2000)
Um dos primeiros estudos sobre a criminalidade feminina é a obra de
Lombroso e Ferrero, “A mulher delinquente, a prostituta e a mulher nor-
mal”, de 1893, na qual a imagem da mulher é apresentada como um su-
jeito fraco, em corpo e inteligência, produto de falhas genéticas. (LOM-
BROSO; FERRERO, 2017).
Outra característica atribuída à mulher foi a maior inclinação dela ao
mal por sua menor resistência à tentação, além de predominar nela a car-
nalidade em detrimento de sua espiritualidade. (ZAFFARONI, 1993:23)
Ao se observar as mulheres em cumprimento de pena privativa de
liberdade, constatamos que as desigualdades de gênero estão presentes no
ambiente prisional, sendo evidente a falta de condições de assistência às
mulheres que ali se encontram reclusas.
As normas penais, a sua execução e as formas de controle foram es-
truturadas a partir de uma perspectiva masculina que desconsidera as es-
pecificidades do feminino. (BUGLIONE, 2000)
A despeito do cumprimento da pena privativa de liberdade ocorrer
em penitenciárias voltadas para o público feminino, considerando a proi-
bição de se manter no mesmo local homens e mulheres, as detentas ainda
estão submetidas a ideia de que o criminoso é aquele do sexo masculino
e, portanto, a formulação dos espaços prisionais é voltada para os homens.
Não há um rompimento com a ordem patriarcal de gênero, deixando de
se considerar a complexidade dos sujeitos envolvidos.
O sistema penitenciário não está preparado para receber mulheres,
e quando o faz, dispensa a elas um tratamento ainda pior do que aquele
atribuído aos homens. É como se a mulher, ao praticar um delito, violasse
duas ordens normativas: a lei penal e o papel de gênero, merecendo uma
punição maior em razão disso.
Ao analisarmos os dados gerais do Levantamento de Informações Pe-
nitenciárias referentes a junho de 2016, verificamos que existem 42.355
mulheres privadas de liberdade no Brasil. A maioria delas solteira, com
idade entre 18 e 24 anos, negra e com baixo nível de escolaridade. Os

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crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62% das inci-


dências penais pelas quais as mulheres foram responsabilizadas, sendo o
roubo, crime patrimonial, o segundo mais praticado (11%).
Em Portugal, a seu turno, o número de mulheres encarceradas au-
mentou consideravelmente após o ano de 2008, quando eclodiu a cri-
se econômica e financeira na Europa. A estatística da Direção Geral de
Reinserção e Serviços Prisionais demonstra que o número de reclusos
subiu de 10.160 no final de 2008 para 12.431 no final de 2013, quando
começou a se estabilizar. As mulheres, a seu turno, continuaram a man-
ter uma contínua curva ascendente por mais tempo, crescendo de 647
reclusas em dezembro de 2008, para 869 em dezembro de 2016, quando
começou a apresentar mais estabilidade. (PEREIRA, 2018)
A estatística realizada pela Direção Geral de Reinserção e Serviços
Prisionais entre os dias 15 de outubro e 01 de novembro de 2019 demons-
tra que Portugal conta com aproximadamente 835 mulheres presas. A
maioria delas, segundo o último relatório anual divulgado, é oriunda de
extratos sociais desfavorecidos economicamente, possui idade entre 30-39
anos e nível mínimo de escolaridade, sendo o tráfico de drogas o crime
responsável por colocar cada vez mais mulheres atrás das grades.
O ingresso das mulheres no tráfico de entorpecentes é descrito, de
maneira geral, como subordinado à participação dos homens na empreita-
da criminosa, sendo, na maior parte das vezes, decorrente de suas relações
afetivas, o que retira o seu protagonismo e reforça ainda mais a invisibili-
dade do universo feminino na prática das atividades ilícitas.

5. A sexualidade feminina

A sexualidade é o conjunto de fatos, sentimentos e percepções vincu-


lados ao sexo ou à vida sexual. É um conceito amplo, que envolve o dese-
jo, a influência da cultura, da sociedade, da família, a moral, os valores, a
religião, repressão. (RIBEIRO, 2005)
Ao longo da história, a sexualidade feminina foi moldada muito mais
por repressões do que pela liberdade.
Na idade média, sexo era considerado algo natural. As pessoas anda-
vam nuas, tomavam banhos juntas e, nos quadros, até os santos eram re-
presentados nus. Somente a partir do século XVI (com mais força no séc.

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XVIII), com o advento do puritanismo, é que houve mudanças no caráter,


na moral e nos valores do homem europeu, que se transformou em um
homem contido, regrado e controlado. (RIBEIRO, 2005)
O século XIX foi marcado por uma grande repressão sexual, baseada
em padrões e normas restritivas, que sustentavam o controle sexual prega-
do pela moral médica: católicos, protestantes, médicos, educadores, todos
se aliavam para normatizar as atitudes e comportamentos sexuais. Sobre o
tema, Loyola (1999: 32-33) preleciona:

o erotismo deveria ser regulado pela exigência de reprodução da


espécie e dos ideais de amor a Deus e à família. É na medicina que a
sexualidade termina por ser unificada como instinto biológico vol-
tado para a reprodução da espécie e que todos os demais atributos
ligados ao erotismo, desde sempre tidos como sexuais, passaram a
ser submetidos a essa exigência primordial. A sexualidade é assim
identificada com genitalidade e heterossexualidade...

As mulheres eram consideradas pessoas sem auto desejo sexual, estan-


do a sua sexualidade subordinada ao desejo sexual do homem. Ser ativa
sexualmente era considerado um comportamento desviante e imoral e até
as feministas da época estavam alinhadas com essa visão estereotipada de
que a mulher deveria ser recatada, mãe, cuidadora e dona de casa. (PENI-
CHE, 2018).
Durante anos o homem foi considerado superior à mulher e, em re-
lação à sexualidade, não seria diferente. A visão que se tinha das mulhe-
res sempre foi determinada por uma sociedade patriarcal, que a ilustrava
como um ser frágil, submisso e dedicado à família. As mulheres que por-
tavam desejos e realizavam as fantasias sexuais masculinas eram as prosti-
tutas, pecadoras.
As prisões acabaram por reproduzir as ideologias tradicionais do gê-
nero, abordando as mulheres transgressoras sobretudo como mães, dei-
xando de lado outros aspectos de sua identidade, como a sexualidade.
Esse breve histórico explica um pouco sobre o porquê de a visita ín-
tima sempre ter sido considerada necessária aos homens e desnecessária, e
até malvista, para as mulheres que se encontram em cumprimento de pena
privativa de liberdade.

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Na atualidade, a sexualidade ainda é um tema polêmico e cercado


de tabus, inexistindo em Portugal ou no Brasil legislação específica que
discipline o assunto.
A despeito da ausência de dispositivos legais sobre a sexualidade, po-
demos invocar a tutela geral dos direitos da personalidade, disposto na
legislação civil de ambos os países, quando o exercício da sexualidade de
alguém é violado, e não estivermos diante de infrações mais graves, tute-
ladas pelo direito penal.
Os direitos da personalidade podem ser considerados como aqueles
inerentes ao homem, indispensáveis para o desenvolvimento da dignidade
da pessoa humana. Visam salvaguardar a saúde física e psíquica, a integri-
dade, honra, liberdade, nome, imagem, implicando a sua violação, por
vezes, em um ilícito civil ou penal.
Filipe Matos (2001: 24-25) defende que os direitos de personalidade
constituem “instrumentos jurídicos de concretização dos direitos funda-
mentais no direito privado”, asseverando que:

Em termos constitucionais, o art. 70º do Código Civil encontra


paralelo, a partir da revisão constitucional de 1997, no art. 26, n. 1.
Se consagra aí o direito fundamental ao desenvolvimento da per-
sonalidade. É sobretudo, em relação a essa panopléia de direitos
de liberdade, que o art. 26 da Constituição exerce suas funções de
norma de recolha, complementação. Através da introdução deste
conceito indeterminado na ordem constitucional assegura-se uma
correspondência entre esta ordem jurídica.

Em matéria penal, os sistemas jurídicos do Brasil e de Portugal reco-


nhecem a autodeterminação sexual das pessoas, impondo penas, algumas
inclusive gravíssimas, para aqueles que de alguma forma violam a liberda-
de na esfera sexual.
Restou, portanto, demonstrada a preocupação dos Estados em tute-
lar a liberdade e autodeterminação sexual, não havendo justificativas para
que, durante o encarceramento, referido direito não seja observado, eis
que sua manutenção é perfeitamente compatível com a pena privativa de
liberdade.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Importante salientar que a efetivação das visitas íntimas fortalece os


laços familiares e dignifica a mulher encarcerada, contribuindo sobrema-
neira para sua ressocialização. As lutas protagonizadas pelas mulheres a
fim de obter mais espaço ainda não terminaram, e em relação à sexuali-
dade não seria diferente. É necessário ainda percorrer um longo caminho
para se alcançar a almejada paridade de direitos perante os homens.

6. A visita íntima nas penitenciárias femininas

O tema das visitas íntimas nas penitenciárias femininas ainda é


tratado como um tabu, sob forte influência de uma sociedade patriar-
cal e sexista.
Considerando o papel atribuído às mulheres, de dócil, frágil e hones-
ta, e à necessidade de se buscar por direitos básicos como a aquisição de
produtos de higiene (absorventes íntimos e papel higiênico por exemplo),
o direito à sexualidade acabou sendo colocado em segundo plano pelas
próprias reclusas, vez que as rebeliões e manifestações, quase inexistentes
se comparadas àquelas realizadas nos presídios masculinos, não colocavam
em pauta a necessidade de implementação das visitas íntimas.
A permissão de visitas intimas às mulheres dentro das penitenciárias,
apresenta-se, ainda, como fonte de preocupação institucional relaciona-
da à saúde reprodutiva, considerando que, posteriormente, a ocorrência
de eventos como gravidez e doenças sexualmente transmissíveis gerarão
impactos diretos nos estabelecimentos prisionais onde as reclusas cum-
prem penas.
Embora não explicitado, talvez seja esse o principal motivo para não
se efetivar o direito à visita íntima às mulheres, eis que ainda predomina a
ideia de que a mulher é o único e exclusivo sujeito responsável pela ado-
ção de métodos contraceptivos, situação que, por si só, já aponta a marca
patriarcal no enfrentamento do tema.
No Brasil, segundo os dados divulgados pelo Infopen Mulheres, o
exercício do direito à visita íntima, com observância à dignidade e pri-
vacidade da pessoa presa, ainda encontra limitações determinadas pelas
infraestruturas dos estabelecimentos prisionais femininos. Apenas 41%
dos estabelecimentos penais femininos possuem local específico para
realização das visitas íntimas e, no caso dos estabelecimentos mistos,

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somente 34% das unidades disponibilizam de locais apropriados para


referida visitação.
Em Portugal, até 2010 não existiam instalações disponíveis nos esta-
belecimentos prisionais femininos que permitissem ter acesso às visitas ín-
timas. Até então, as mulheres reclusas apenas poderiam ter acesso às visitas
íntimas se os seus parceiros também estivessem presos. (GRANJA, 2015)
Atualmente, no plano formal, conforme acima asseverado, os regu-
lamentos prisionais adotam os princípios da neutralidade e da igualdade
formal entre homens e mulheres, podendo ambos ter acesso a visitas ínti-
mas, bastando apenas que o estabelecimento prisional em que estiverem
localizados possua as condições necessárias, e os reclusos cumpram os re-
quisitos legalmente estabelecidos para que possam ingressar no regime de
visitas íntimas.
Sobre a situação atual das visitas íntimas nas prisões femininas de Por-
tugal não se encontram publicados dados oficiais divulgando claramente o
percentual de estabelecimentos penais com local adequado para sua reali-
zação, mas sabe-se que, assim como no Brasil, nem todas as penitenciárias
femininas se encontram devidamente preparadas.
As reclusas que se encontram nas penitenciárias que não possuem lo-
cal adequado, bem como aquelas cujos companheiros também se encon-
tram em cumprimento de pena privativa de liberdade, devem manifestar
o seu desejo de realizar a visita íntima, dependendo de autorização do di-
retor do estabelecimento prisional para que seu direito seja concretizado.

7. Considerações finais:

Aplicando-se as disposições contidas na Declaração dos Direitos Hu-


manos, mormente a imposição de respeito aos princípios da igualdade e
da dignidade da pessoa humana, torna-se necessária a efetivação da visita
íntima em todos os estabelecimentos prisionais femininos, contribuindo
sobremaneira não só para a manutenção dos vínculos familiares, mas tam-
bém para o fortalecimento da autoestima das reclusas.
Imprescindível se aplicar uma perspectiva desconstrutivista visando
romper definitivamente com a ideia de que ao falar de sexo, e buscar
realização pessoal nesta área, a mulher está se vulgarizando, eis que a
manutenção desse ideal não se sustenta perante o discurso atual sobre a

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sexualidade, tampouco encontra amparo nos discursos de ressocializa-


ção amparados na família.
Nos últimos anos tem-se caminhado para um entendimento tenden-
cialmente generalizado da necessidade de se buscar uma igualdade de gê-
nero, tornando-se necessário efetivar o direito à visita íntima também para
as mulheres encarceradas, eis que os desejos são similares para homens e
mulheres, não havendo justificativas para se manter o pensamento de que a
efetivação do referido direito deve ser restrita às penitenciárias masculinas.
Portugal e Brasil já avançaram muito no tocante aos direitos humanos
da mulher e ao reconhecimento de sua plena cidadania e capacidade, mas
ainda há muito o que ser feito em todos os setores.
Em relação ao tema abordado, a inclusão do direito às visitas íntimas
no Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade de
Portugal pode ser considerada uma verdadeira conquista social28.
No Brasil, as visitas íntimas ainda carecem de legislação específica,
havendo tão somente recomendações do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciaria sobre sua realização, tornando o caminho em
busca da consolidação do direito ainda mais longo e tortuoso.
O percentual de mulheres presas nos países estudados (Portugal e
Brasil) ainda pode ser considerado ínfimo, quando comparado com o de
homens encarcerados (cerca de 7% apenas, em ambos os países observa-
dos). Contudo, a reduzida presença de mulheres não pode ser utilizada
como justificativa para a violação de seus direitos.
Não há dúvidas de que o encarceramento produz nos homens e nas
mulheres sentimentos similares. Todavia, as mulheres presas possuem de-
mandas específicas, e, a ausência de considerações das referidas demandas,

28 Artigo 3º Princípios orientadores da execução


1 – A execução das penas e medidas privativas da liberdade assegura o respeito pela digni-
dade da pessoa humana e pelos demais princípios fundamentais consagrados na Constitui-
ção da República Portuguesa, nos instrumentos de direito internacional e nas leis.
2 – A execução respeita a personalidade do recluso e os seus direitos e interesses jurídicos
não afectados pela sentença condenatória ou decisão de aplicação de medida privativa de
liberdade.
3 – A execução é imparcial e não pode privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer
direito ou isentar de qualquer dever nenhum recluso, nomeadamente em razão do sexo,
raça, língua, território de origem, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas
ou ideológicas, instrução, situação econômica, condição social ou orientação sexual.

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acaba por causar às reclusas um peso maior no cumprimento da pena pri-


vativa de liberdade.
É necessário dar às mulheres encarceradas um tratamento digno, vi-
sando restituí-las à sociedade aptas para o convívio pacífico. Resta ao Es-
tado e à sociedade a missão de lidar com a pena privativa de liberdade de
modo a compatibilizá-la com as funções a que ela se propõe, num contex-
to em que é impositiva a observação aos direitos fundamentais. Conside-
rando a liberdade sexual um direito personalíssimo, a sua preservação é,
inequivocamente, uma forma de enaltecer a dignidade humana.

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144
AÇÕES AFIRMATIVAS E A INCLUSÃO
SOCIOLABORAL DAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA: CONSTRUTOS PARA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Reuelio Marques Rios29

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por desígnio ponderar sobre as ações afirmativas,


sua origem, as normas pátrias constitucionais que as contemplam, e os
princípios jurídicos que lhes servem de arcabouço, ambas no bojo dos
direito fundamentais. Esta pesquisa tem caráter descritiva e valeu-se do
método histórico. As informações foram balizadas através de pesquisas
bibliográficas e documentais.
As arguições teóricas sobre as ações afirmativas evidenciam que elas se
respaldam em normas jurídicas que bradam entre os Direitos Humanos e
as garantias constitucionais fundamentais, ambas com o escopo de romper
com a perversidade histórica que perpetuava a exclusão e a discriminação
de grupos minoritários. Destarte, foram criadas medidas especiais para
reverter a realidade de segregação e desigualdade aos grupos ou indivíduos

29 Diretor Jurídico do Sindicato dos Bancários de Jacobina-Ba e Região. Mestrando como


aluno regular em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS. Pós-Graduado em
Processo Civil pela Faculdade Damásio de Jesus. Lic. em Geografia e Bel. Direito pela Uni-
versidade do Estado da Bahia – UNEB.

145
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

submetidos a tal processo, dotando-lhes de oportunidades para mitigar


os problemas gerados no seio da disparidade social, e, em seu lugar, criar
alternativas para desenvolver suas potencialidades e integrá-los ao tecido
social, reparando os aspectos que dificultavam o acesso ou desrespeitavam
frontalmente seus direitos.

1. AÇÕES AFIRMATIVAS E DIREITOS FUNDAMENTAIS:


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ao analisar à temática sob o prisma jurídico, Piovesan (2005) assevera


que as ações afirmativas tem como matiz a gramática da inclusão, tipifi-
cada pela Declaração Internacional dos Direitos dos Homens, datado de
1948, que compõe um constituído axiológico, fruto de combates histó-
ricos, fundamentado em um espaço simbólico de luta e ação social em
defesa de um direito universal: o respeito pela dignidade humana. Este
primado emancipatório concebeu os direitos humanos contemporâneos
que tem como pilar a universalidade e a indivisibilidades desses direitos,
de modo que a condição de pessoa é o pressuposto único para a titularida-
de de direitos, compreendendo o ser humano como sujeito moral, dotado
de unicidade existencial e dignidade.
Certamente, o processo de globalização, em sua feição ante-hege-
mônica, difundiu pelo mundo inúmeros instrumentos de proteção ao ser
humano, com o escopo de erigir um sistema internacional de direitos mí-
nimos, ou sistema normativo global, que devem ser acautelados pelos Es-
tados como parâmetros protetivos, calcado neste consenso internacional
e voltados aos direitos humanos. Neste particular, convivem os sistemas
normativos de âmbito global e os sistemas internos de cada país de forma
complementar, com o escopo de tutelar a dignidade da pessoa humana.
Oliveira e Lazari (2019) destacam que, do ponto de vista terminológi-
co, há distinções entre as “Direitos Humanos” e as “garantias constitucio-
nais fundamentais”. Aqueles, são instrumentos supranacionais, diretrizes
normativas resguardadas em documentos internacionais de proteção da
pessoa humana. Já às garantias constitucionais fundamentais decorrem do
modo que cada país erige, nos moldes de suas dinâmicas sociais, culturais
e políticas, os pilares embasadores das normas do funcionalismo estatal.
São, portanto, os sistemas particularizados de cada nação que devem tute-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

lar os direitos fundamentais do seu povo. Merece destaque o fato de que,


materialmente, ambos são diplomas normativos que vislumbram a prote-
ção e a promoção da dignidade humana. Assim, as distinções existentes
pairam apenas no âmbito conceitual, não variando quanto ao conteúdo ou
objeto de proteção.
Retomando à discussão axiológica dos Direitos Humanos, Piovesan
(2008) assegura que a ética emancipatória destes direitos demanda trans-
formação social para que cada sujeito possa exercer plenamente suas po-
tencialidades, sem violência e sem discriminação, de forma livre, autôno-
ma e plena. Trata-se de construto histórico, forjado no combate, mediante
um processo de luta social que conseguiu ascender e consolidar espaços
de luta pela dignidade. No entanto, esse processo de luta pelo respeito ao
ser humano, indistintamente de seus atributos físicos, psíquicos ou sociais
estão em constante processo de construção e reconstrução. São fluxos e
refluxos que que concentram a plataforma emancipatória, qual seja, a ex-
tensão universal dos direitos humanos.
Helio Gallardo (2014) nos lembra que há uma distância significativa
entre o que se diz e o que se faz no campo dos direitos humanos. De modo
que, os direitos humanos continuam a ser propostas ou exigências, não
algo que se tem, mas que deveria ter. São normas programáticas que o
Estado tem o poder-dever de efetivá-la, como construto basilar do Estado
Democrático de Direito, e de convergir com o supra princípio da digni-
dade da pessoa humana, cerne do transconstitucionalismo.
Em consonância com este pensamento, Rocha (1996) preconiza que
em nenhum Estado democrático até meados dos anos 1960, e em quase
nenhum, até final do século XX, se cuidou de promover a igualdade e su-
perar os preconceitos por comportamentos estatais ou privados pelos quais
se superassem todas as formas de desigualação injusta. Em suas palavras,

Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por opção


religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências físicas
ou psíquicas, por idade, etc. continuam em estado de desalento jurí-
dico em grande parte no mundo. Inobstante a garantia constitucional
da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual para todos,
não são poucos os homens e mulheres que continuam sem ter acesso
às iguais oportunidades mínimas de trabalho, de participação política,

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

de cidadania criativa e comprometida, deixados que são à margem da


convivência social, da experiência democrática na sociedade política.
Do salário à Internet, o mundo ocidental continua sendo o espaço do
homem médio branco. Das prisões às favelas, o mundo ocidental
continua marginalizando os que são fisicamente desiguais do modelo
letrado e chamado civilizado e civilizatório pelos que assim o criaram.
Sem oportunidades sociais, econômicas e políticas iguais, a competi-
ção – pedra de toque da sociedade industrial capitalista – e, principal-
mente, a convivência são sempre realizadas em bases e com resultados
desiguais (1996, p.284).

Conforme proposição da autora, são pelos motivos segregacionistas


apregoados acima que urge a necessidade de empreender ações afirmativas
com o intuito de reconstituir o tecido social outrora esgaçado pelos estig-
mas e rótulos que definiam quem poderia usufruir dos bens produzidos
socialmente, bem como, ratificavam àqueles que tinham a legitimidade
para desfrutar dos lugares de poder, que perpassavam desde as escolas e
universidades – enquanto espaços institucionais do saber – até as ocupa-
ções políticas e econômicas, sempre resguardada a uma pequena elite de
homens brancos. Neste contexto, é dever de todos repensar os meios de
concretude de cidadania, de empoderamento social e de igualdade real. É,
ao mesmo tempo, dever constitucional do Estado criar dispositivos para
superar o fosso e a desigualdade social por que tem passado as minorias
como um todo, em especial, às pessoa com deficiência.
Na esteira desse pensamento, surgiram formas legais para a tentati-
va de mitigação ou superação dessa realidade e promoção da igualdade
jurídica entre os sujeitos engajados em constituir um novo patamar de
democracia e cidadania, de uma nova experiencia social, contemplativa
de todas as formas de promoção ao bem comum. Destacamos aqui o pa-
pel compensatório da política afirmativa na construção de uma sociedade
multicultural, onde a pluralidade social, o princípio da isonomia real e a
diversidade são fatores estruturantes para o projeto de sociedade democrá-
tica e republicana. Tais ações cumprem o dever de velar pelos direitos fun-
damentais, e eliminar a segregação gratuita e odiosa, outrora compreendi-
da como normal, e, em seu lugar, nascem medidas compensatórias para a
inclusão e a ascensão social.

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Gomes e Silva (2003) afiançam que o país pioneiro na adoção das


políticas sociais consignadas em ações afirmativas foram os Estados Uni-
dos. Inicialmente, estas políticas foram concebidas como mecanismos
tendentes a solucionar a marginalização social e econômica do negro na
sociedade americana. Contudo, em momento seguinte, elas foram esten-
didas às mulheres, a outras minorias étnicas e nacionais, aos índios e aos
deficientes físicos.
Os autores ratificam que estas políticas públicas são construídas para
alcançar objetivos constitucionais que devem ser contraídos pelo Estado
e pela sociedade, e consistem em combater as flagrantes manifestações
de discriminação cultural, enraizada na sociedade – portanto estrutural
– como também, estabelecida em seu caráter pedagógico, estimular o
engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, aptas a
inculcar nos atores sociais a proficuidade e a obrigação da observância dos
princípios do pluralismo e da dessemelhança nas distintas esferas do con-
vívio humano.
A reversão da exclusão social, que perpassa pelas discussão de mi-
norias, em especial pelas pessoas com deficiência, só pode ser alcançada
com o posicionamento de um Estado ativo, com instituições democráti-
cas robustas capazes de abraçar projetos que contemplem mecanismos de
emancipação social e de repartição de poder fora do parâmetros históricos
hegemônicos que cultuavam os estigmas de inferioridade e de subordina-
ção de determinados sujeitos, em decorrência de seu atributos físicos ou
psíquicos, da sua cor, credo, raça, etnia, orientação sexual, gênero, idade
e demais critérios. Todos nós somos sujeitos de diretos e temos papéis
sociais relevantes a serem cumpridos. Portanto, precisamos ser respeitados
e tutelados em nossas singularidades e em nossas razões existenciais, es-
sencialmente plúrimas.

1.1 AÇÕES AFIRMATIVAS E O PRINCÍPIO DA ISONOMIA:


INSTRUMENTOS PARA INCLUSÃO SOCIAL E
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Para Gomes (2001), as ações afirmativas formam um conjunto de ins-


trumentos políticos e sociais que vislumbram a concretização do princípio
constitucional da igualdade, através de tratamento diferenciado, justifica-

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

do e temporário de grupos sociais que sofreram o peso da discriminação


ao longo dos tempos. Este processo de rotulação dos diferentes foi sutil-
mente enraizada na psicologia humana, motivo pelo qual apenas a aplica-
ção de normas proibitivas não eliminou a segregação nem o tratamento
pejorativo dado à determinadas pessoas. Pautado nesta realidade, o Estado
rompeu com o padrão imposto pelo modelo liberal-capitalista e passou a
realizar, ainda que de forma tímida, a promoção da igualdade por meio das
ações afirmativas, também denominadas como medidas pró-igualdade.
Neste contexto, destacamos o pensamento de Piovesan (2005) se-
gundo o qual, a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem
se desenvolve o Direito Internacional dos Direitos Humanos, pensa-
mento norteador para a adoção de medidas, como os Tratados Interna-
cionais voltados à proteção dos direitos fundamentais. Em sua primeira
fase, versavam sobre a proteção geral, com base na igualdade formal, que
expressava os temos da diferença. Para a autora, com o tempo, tornou-se
insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica ou abstrata, tornando-
-se necessário a especificação do sujeito de direito que passa a ser conce-
bido em suas peculiaridades e particularidades, para impedir e reparar as
violações por eles sofridas, através de respostas especificas, diferenciadas
e palpáveis. In verbis,

Na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos


internacionais nasce com a vocação de proporcionar uma proteção
geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença,
percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determi-
nados grupos uma proteção especial e particularizada, em face de
sua própria vulnerabilidade. Isso significa que a diferença não mais
seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua
promoção (2005, p.46).

Aqui, evidenciamos os grupos segregados como o das mulheres, dos


negros, da comunidade indígena, LGBTQ+, das pessoas com deficiência,
ente outros, que pagaram um alto preço em decorrência de suas peculiari-
dades, ficando à margem do processo social, político, cultural e econômi-
co. Doravante, surge ao lado do direito à igualdade, o direito à diferença,
enquanto direito fundamental.

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Na seara do pensamento que contempla a diferença como respeito


ao direito personalíssimo, portanto, um direito fundamental, surge a pre-
mente necessidade de criarmos mecanismos de inclusão concebidos nas
esferas públicas e privadas, e por órgãos de competência jurisdicional, vis-
lumbrando a concretização de um objetivo constitucional, de valoração
universal, da efetiva igualdade de oportunidades para todos os seres hu-
manos (GOMES e SILVA, 2003).
O direito à diferença e à diversidade tem como sustentáculo o princí-
pio jurídico da isonomia. Inicialmente, concebido por afirmação aristotélica
que consistia em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Desse modo, surgiu a isonomia formal que conferia tratamento parificado
quando da aplicação de uma lei, em face dos sujeitos abrangidos. A esse
respeito, Mello (2011) preconiza que o conteúdo político-ideológico ab-
sorvido pelo princípio da isonomia é o de que a lei não deve ser fonte de
privilégio ou perseguições, mas sim, instrumento regulador da vida social
que necessita de tratamento equitativo a todos os seus citadinos.
De posse do dever de velar pela sociedade e pelo cumprimento da
Norma Fundamental, o Estado que outrora se permanecia inerte em face
das discriminações odiosas e, zelando pelo caráter bidimensional da justiça
(redistribuição somada ao conhecimento), passa a tomar atitudes para o
enfrentamento da discriminação deletéria (PIOVESAN 2008). A autora,
respaldada pelo direito internacional dos direitos humanos aponta duas es-
tratégias adotadas pelo Estado para mitigar os dilemas causados pela segre-
gação às minorias: a) a estratégia repressiva-punitiva (que tem por objetivo
punir, proibir e eliminar a discriminação); e b) a estratégia promocional
(que tem por objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade).
Para Piovesan (2008), na primeira vertente, repressiva-punitiva, há a
urgência em se erradicar todas as formas de discriminação. O combate à
discriminação é medida basilar para que se afiance o pleno exercício dos
direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e
culturais. No entanto, por si só a medida pode ser insuficiente. É essencial
conjugá-la com a estratégia promocional como forma de incitar a inclusão
de grupos socialmente vulneráveis em todos os espaços sociais, incluindo
os espaços de poder. Propõe, ainda que as ações afirmativas sejam com-
preendidas não apenas pelo prisma retrospectivo – como forma de aliviar
a carga de um passado discriminatório –, mas também prospectivo – com
escopo de fomentar a transformação social e criar uma nova realidade.

151
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Na esteira desse pensamento, Rocha afirma não bastar as letras frias


das garantias fundamentais prometidas pelo Estado, mas imprescindível
instrumentalizar as promessas garantidas pela atuação exigível do Estado e
da sociedade. Daí, surgiram as ações afirmativas como face construtora de
um novo conteúdo a ser buscado pelo princípio da isonomia jurídica. Em
seus termos, “somente a ação afirmativa [...] a atuação transformadora,
igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade do princípio da
igualdade, para se chegar à igualdade que a Constituição brasileira garante
como direito fundamental de todos (1996, p.289.)”
Enfatizamos o entendimento de Delgado (2005) segundo o qual, o
trabalho formal, protegido e regulado por normas jurídicas torna-se um
dos principais vínculos de inserção do trabalhador na sociedade capitalista,
vislumbrando proporcionar-lhes um patamar sólido de afirmação indivi-
dual, familiar, social, econômica e, porque não dizer, ética. Afinal, como
afirmou o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Maurício Godi-
nho Delgado,

O direito do trabalho foi o grande instrumento que as democracias


ocidentais mais avançadas tiveram para implantar a integração social
de suas populações, a distribuição de renda e de poder em suas econo-
mias e sociedades, enfim, garantir a consecução da democracia social
em seus respectivos países. Um poderoso e eficaz instrumento que
conseguiu exatamente estabelecer uma forma de incorporação do ser
humano no sistema socioeconômico, em especial daqueles que não
tivessem (ou tenham) outro meio de afirmação senão a própria força
de seu labor. O que a realidade histórica do próprio capitalismo de-
monstra é que o Direito do Trabalho consiste no mais abrangente e
eficaz mecanismo de integração dos seres humanos ao sistema econô-
mico, ainda que considerado todos os problemas e diferenciações das
pessoas e vida social. [...] Trata-se do mais generalizante e consistente
instrumento assecuratório de efetiva cidadania, no plano socioeconô-
mico e de efetiva dignidade, no plano individual. Está-se diante, pois,
de um potente e articulado sistema garantidor de significativo patamar
de democracia social (2005, p. 141-142).

Portanto, concatenamos com o pensamento de que “trabalho não é


mercadoria” e não poder ser regido, estritamente, por regras economi-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

cistas, no dizer de Souto Maior (2000). Destarte, o valor atribuído ao


trabalho deve pautar-se em eticidade, necessidades humanas e não apenas
em possibilidades econômicas. Outrossim, não podemos esquecer a exis-
tência de outros mecanismos de inclusão, que escapam especificamen-
te do vínculo empregatício tradicional, a exemplo de cotas universitárias
para pardos e negros, das vagas destinadas exclusivamente às mulheres, no
pleito eleitoral, entre outros. O que pretendemos deixar explícito é que as
ações afirmativas não se excluem, pelo contrário, se complementam, pois
vislumbram a construção de uma história diferente daquela perversidade
pretérita que ocorriam com as minorias.
Além de normas proibitivas, a ação do Estado permite a criação de
mecanismos para a conquista democrática do bem estar social de toda a
população, especialmente, aquelas que são promotoras da isonomia ju-
rídica de grupos minoritários que precisam de condições para superar o
estigma de inferioridade que lhes deixaram à marginalidade em decorrên-
cia dos preconceitos perpetrados pela cultura dominante. Neste contexto,
enaltecemos o papel do direito do trabalho e do seu desempenho de in-
clusão sociolaboral das pessoas com deficiência, que além da sua extensão
tem significativo impacto de comprometimento econômico, político cul-
tural e social nos tempos de hoje. Em outros termos, o direito do trabalho
ainda é um significativo instrumento civilizatório essencial para a cons-
trução da democracia para a edificação de uma cultura cidadã, portanto
inclusiva, neste país (DELGADO, 2005).

1.2 ACOLHIMENTO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS E A


PROTEÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO
DIREITO BRASILEIRO

A Constituição Federal de República Brasileira tem, notadamente,


uma feição principiológica e leva em seu arcabouço todos os ideários po-
líticos, sociais e econômicos da nossa nação (MENDES, COELHO E
BRANCO, 2011). Sobre esta construção principiológica, Ingo Wolfgang
Sarlet (2011) acrescenta que, ao verificar que a dignidade da pessoa hu-
mana passou a integrar o direito positivo vigente, pode-se afirmar que o
nosso constituinte originário reconhece categoricamente que é o Estado
que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser

153
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

humano constitui a finalidade precípua, e não o meio da atividade estatal.


Destarte, quando se fala de tal princípio fundamental, traduz-se a certeza
de que o art. 1º, inciso III, não contém apenas uma declaração de con-
teúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva, dotada,
em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal,
inequivocamente carregado de eficácia, alcançando valor jurídico funda-
mental da comunidade. Importa considerar que, na sua qualidade de prin-
cípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não
apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica.
Nesse contexto, podemos assegurar que o estigma em torno da de-
ficiência é um elemento gerador de exclusão, capaz de retirar da pessoa o
seu convívio sociolaboral, rejeitando-o, por fugir dos padrões tidos como
“normais”, não oferecendo àquele o direito de desempenhar dignamente
sua condição plena de cidadão. Afinal, “a pessoa com deficiência (seja ela
motora, sensorial ou intelectual) é inteira, no que diz respeito à dignidade,
direitos e exercício de cidadania (CISZEWSKI, 2005, p.58)”. No intuito
de reverter, ou, pelo menos, de mitigar progressivamente tal condição, é
que se faz necessário o cumprimento das ações afirmativas para a inclusão
deste grupo social, uma vez que ela tem respaldo constitucional, insculpi-
da em torno do princípio da dignidade da pessoa humana.
Para Costa (2008) o princípio da não-discriminação30, ínsito ao art.
3º, IV, da Constituição, decorre de um processo evolutivo constatado

30 Tal princípio seguiu as diretrizes do art. 1ª, Convenção 111 da OIT, ipsis litteris:
Artigo 1º. 1 - Para os fins da presente Convenção, o termo "discriminação" compreende:
a- toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião polí-
tica, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igual-
dade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão;
b - qualquer outra distinção; exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alte-
rar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que
poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações
representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organis-
mos adequados.
2 - As distinções, exclusões ou preferências fundadas em qualificações exigidas para um
determinado emprego não são consideradas como discriminação.
3 - Para os fins da presente Convenção as palavras "emprego" e "profissão" incluem o acesso
à formação profissional, ao emprego e às diferentes profissões, bem como as condições de
emprego.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

sobre o reconhecimento da heterogeneidade, presente na vida gregária,


razão pela qual o ordenamento jurídico não pode adotar um método de
tutela uniforme. Deve-se ter em mente que esse regramento jurídico se
encontra intimamente ligado à garantia do direito fundamental da digni-
dade da pessoa humana e à promoção do desenvolvimento humano. Res-
peitando-o integralmente, ele poderá desarmar os estereótipos e os pre-
conceitos que se encontram no núcleo da discriminação como um todo,
em especial, no tocante à pessoa com deficiência e o mercado de trabalho.
Claramente, a Constituição determina uma mudança nos paradig-
mas sociais políticas, econômicas e regionais, justamente para se alcançar
a realização dos valores supremos a fundamentar o Estado Democrático
de Direito constituído. Somente a ação afirmativa, uma atuação transfor-
madora, igualadora, estabelecida no e pelo Direito possibilita a verdade
do princípio isonômico para se chegar à igualdade ínsita à Norma Fun-
damental, enquanto garantia de direito fundamental de todos, indistin-
tamente (ROCHA, 1996). Outrossim, o mandamus de se erradicar a po-
breza, a marginalização e a redução das desigualdades sociais perpassa pela
discussão de eliminar as maiores formas de discriminação e preconceito,
de mitigar quaisquer forma de miserabilidade humana, como a fome e a
pobreza extrema que expõe milhares de pessoas a todos os tipos de ne-
cessidades, destituindo-lhes a sua própria dignidade isto quanto não lhes
retiram o maior bem jurídico que temos, a vida.
No Brasil, o princípio da igualdade substancial se reverbera no direito
laboral, cujas regras também estão insculpidas na Constituição Federal. A
exemplo, podemos citar a proibição de diferenças de salários, de exercício
de funções e de critérios de admissão por motivos de sexo, idade, cor ou
estado civil (art.7º, XXX, CF/1988); ou de diferenças de critérios de ad-
missão e de salário em razão de deficiência física (art.7º XXXI, CF/1988);
e, bem assim, que se distinga, na aplicação das normas gerais entre os res-
pectivos profissionais (art.7º, XXXII, CF/1988).
Não podemos olvidar do princípio da isonomia, pois, intimamente
ligado ao princípio da não-segregação. Nele contém a base fundamental
de todas as garantias e prerrogativas de que goza a pessoa com deficiência.
Conforme sinaliza Ciszewski (2005), este princípio sempre esteve presente,
desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução
Francesa (art. 1º), e depois repetido pela Declaração Universal dos Direitos

155
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

do Homem (art. 1º e 4º), permanecendo como base de sustentação das so-


ciedades modernas instado em todas as constituições contemporâneas. Na
brasileira, ele encontra-se topograficamente no caput do art. 5º, segundo o
qual: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Para Carvalho (2012),
a igualdade de todos prevista no art. 5º da Constituição nasce ao lado da
obrigatoriedade da redução das desigualdades. De tal modo, não basta que
o Estado se abstenha de discriminar, de tratar desigualmente, mas faz-se ne-
cessário que atue positivamente no sentido das desigualdades sociais. Assim,
a igualdade entre os homens surge como corolário do direito à dignidade,
obrigando o Poder Público a elaborar normas e velar pela sua aplicação.
É nesse sentido que algumas normas infraconstitucionais, como a Lei de
Cotas, têm permitido ao Estado, através das políticas afirmativas, incluir
a pessoa com deficiência, de maneira isonômica, no mercado de trabalho.
Segundo Rui Portanova (2008), uma forma correta de aplicar a igual-
dade consiste em tomar como princípio a desigualdade. Depois, dian-
te da desigualdade entre os destinatários da norma, impõe-se promover
certa igualização. Por isso, a interpretação do princípio tem que levar em
conta, de um lado, que há desigualdades, de outro, as injustiças causadas
por tal situação. Doravante, gerar a equalização. Essa definição inclui não
somente o direito à igualdade, como também, a diferença, que especifica,
aprofunda e amplia o direito à igualdade real.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto constitucional convoca a ação estatal para institucionaliza-


ção de políticas igualadoras capazes de promover medidas compensató-
rias para a inclusão e ascensão das pessoas com deficiência no labor es-
tatal, enquanto imperativo ético, político e social, em face deste grupo
socialmente vulnerável. Tomando por escopo a isonomia real e as vagas
compulsórias destinadas às pessoas com deficiência, Fonseca (2006) asse-
vera que as ações afirmativas que decorrem de lei ou de decisões judiciais
atuam como instrumentos imprescindíveis para que a sociedade dirija-se
à busca dos excluídos, abrindo atalhos, rompendo tabus, justamente para
propiciar caminhos livre e reais para todos.

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

A sociedade inclusiva impõe-se como aquela que, pela observância


da realidade, propicia efetiva igualdade, cujo lastro equilibra a constru-
ção histórica, moldada pelas liberdades civis individuais, equivalentes à
igualdade formal de todos perante a lei, pela igualdade substancial gené-
rica, propiciadas pelos direitos humanos de caráter social, equivalente à
igualdade material do Estado Providência e pelas ações afirmativas, por
intermédio das quais se atingem medidas peculiares em prol das especifi-
cidades humanas para que todos tenham acesso às liberdades individuais
e à igualdade material (FONSECA, 2006). Neste sentido, ao lado da
“Lei de Cotas”, o art. 37 da Constituição, ao vislumbrar a igualdade real
e a tentativa de reparar alguns séculos de política de abandono para com
as pessoas com deficiência, assegura reserva de vagas para esse grupo, na
seara dos concursos públicos. Tal artigo fora regulado pela Lei 8.213/90,
que em seu art. 5º, § 2º, definiu que às pessoas com deficiência é asse-
gurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento
de cargos cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que
são portadoras, sendo-lhes reservado um percentual de até 20% das vagas
oferecidas no concurso. Por sua vez, o Decreto 3.298/99 consolidou as
normas atinentes aos direitos das pessoas com deficiência de se inscreve-
rem em concursos públicos em condições de igualdade com os demais
participantes. Seu art. 37, § 1º determina que o candidato concorrerá a
todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de 5% em face
da classificação obtida.
Pelo exposto, torna-se patente que as ações afirmativas empreendidas
pelo Estado, do ponto de vista formal, têm por fito concretizar a verdadei-
ra igualdade de oportunidades, também preconizada pelas Convenções
111 e 159 da OIT. Resta-nos saber se todo esse aparato normativo encon-
tra subsidio institucional para sua efetivação no seio da sociedade, ou se
não passam de meras previsões legais inócuas.
Por fim, a Magna Carta proíbe, em seu art. 60, § 4º, inciso IV, “qual-
quer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias indivi-
duais”, implicando em maior proteção aos direitos das pessoas com de-
ficiência, o que consolida o princípio do não retrocesso social, segundo
o qual, o núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados
através das medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente
garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a

157
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzem,


na prática, numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse
núcleo essencial (CANOTILHO, 2002, p.337).
Para o cumprimento dos deveres republicanos e a concretização dos
seus princípios fundamentais, a norma brasileira encontra-se permeada de
ações afirmativas, com posicionamento proativo do estado para tutelar os
interesses sociais.

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160
AUTORITARISMO E DEMOCRACIA
NO BRASIL: REFLEXÕES ACERCA DA
NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS
HUMANOS
Túlio Almeida Rocha Pires31
Ana Eliza Simões Alves32

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como intuito uma análise histórica dos direi-
tos humanos e fundamentais de maneira a compreender a dinâmica social
que levou à sua instituição em diplomas normativos supranacionais e sua
correlação com a história autoritária brasileira. A sistemática dos direitos
humanos diante do esforço de proteger o indivíduo em sua hipossuficiên-
cia diante de toda a máquina Estatal, elucida a situação do autoritarismo
brasileiro e a funcionalidade jus-humanista na proteção do indivíduo.
Na construção de uma sociedade democrática, a natureza jurídica dos
direitos humanos possibilita a interferência popular no Estado por meio de
seus direitos civis e políticos, também chamados de direitos humanos de
primeira geração, haja vista a representatividade pública nos processos polí-
ticos. Nesse sentido, a democracia vai além do Estado de direito que possi-

31 Discente do Programa de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de


Minas Gerais-PUC Minas. Pesquisador na área dos direitos humanos e fundamentais, direi-
tos sociais, direito à alimentação, educação, direito à educação.
32 Discente do Programa de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais-PUC Minas.

161
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

bilita a participação do povo nos governos e eleições por meio dos votos pú-
blicos, ela também se caracteriza pela instituição e manutenção de direitos.
A tradição autoritária e a formação de uma população culturalmente
arcaica produzida por séculos de exploração e marginalização humanas
na terra brasilis, faz com que a preservação e exercício dos direitos funda-
mentais na atualidade seja de profunda importância para o fortalecimento
da democracia e inclusão social. Levando à compreensão, então, de que
o exercício consciente e ativo da cidadania, assim como a prática de uma
educação que emancipa e liberta, abrem caminhos para a realização de
uma democracia mais justa, livre e igualitária.
No cenário mundial, com o deslinde da segunda guerra e a produção
de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, e o Brasil
ainda em seu período autoritário ditatorial se produziram marcam que
atravessam a redemocratização e ainda persistem na contemporaneidade.
Um desafio para as perspectivas jus-humanistas nacionais e internacio-
nais, que encontram no Brasil um insistente cenário de inefetividade de
tão básicas garantias jurídicas.
Nesta senda, os direitos humanos e a educação em direitos humanos,
possibilitam a formação de indivíduos conscientes de si e que se reconhe-
çam como existentes diante de uma sociedade que, diante de sua histórica
colonização geográfica (pautada pelo genocídio, exploração e eliminação
de culturas tradicionais) não pode reproduzir pedagogicamente modos
de subjetivação que atravessarão a colonização do espaço para colonizar
o intelecto. Considerando que a educação é a instância que gesta futuros
cidadãos que, com algum esforço, poderão participar de uma sociedade
mais fraternal, justa e igualitária, respeitadora de garantias há tempos ins-
tituídas na dimensão jurídica e que devem exercer suas funções sociais no
campo da vida prática.
Fazendo jus à diversos diplomas normativos que visam a proteção do
exercício de seus direitos individuais e da luta política por direitos e con-
dições dignas de vida e da vida em um meio ambiente ecologicamen-
te equilibrado (a exemplo dos direitos humanos de fraternidade, direitos
humanos de terceira geração), este caminhar humanista é facilitado por
uma educação libertadora e inclusiva, auxiliada pelo direito e pela genuí-
na manifestação da cidadania, compondo uma tríade de elementos para a
construção democrática.

162
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

2 A INTERFACE DO AUTORITARISMO BRASILEIRO


DIANTE DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA

Quando se fala em autoritarismo, surge então a ideia de poder, obe-


diência e subordinação, dentre outras definições que podem ser conside-
radas instantaneamente. Considerando a polissemia do vernáculo, o auto-
ritarismo, de maneira literal, também pode ser entendido como o governo
autoritário e até mesmo despótico (BUENO, 2000).
O autoritarismo, em uma de suas definições, é considerado como
uma forma de governo que exige obediência, não da maneira legal, de-
mocrática e pautada por princípios jurídicos garantistas. A manutenção da
autoridade passa a vigorar, então, através da força e da violência para que
seja garantida a ordem. Ou seja, a ideia de obediência pode ser facilmente
confundida quando confrontada com o autoritarismo.
Nesse contexto, o debate acerca do autoritarismo no brasil, sobretudo
nas três décadas que sucederam a redemocratização em 1987 e 1988, ganha
especial destaque quando se considera o povo brasileiro e sua formação. A
sistemática colonial escravista e a predominância do espaço privado sobre o
público marcaram a sociedade brasileira, onde se percebe uma hierarquiza-
ção nas relações sociais e intersubjetivas, ou seja, desigualdades que refor-
çam a dinâmica relacional de mando e obediência (CHAUÍ, 2012).
Assim como no Brasil, em muitos casos ao redor do globo, países
marcados por períodos de autoritarismo buscam a solução dos problemas
por ele desencadeados com o intermédio de instituições e diplomas jurí-
dicos democráticos, além da busca pela efetividade de uma igualdade de
direitos. No Brasil, através de uma perspectiva democrática, com o fim
institucional do autoritarismo, o Estado passou a exercer o monopólio da
violência dentre os limites da legalidade (PINHEIRO, 1991).
Por outro lado, ainda de acordo com o que preleciona Pinheiro, a
“violência ilegal do Estado e a impunidade da violência por parte dos ci-
dadãos continua depois das transições políticas, mascarada pela retórica
democrática, dissimulando relações fundamentais de força intocadas” (PI-
NHEIRO, 1991, p. 45). Ou seja, mesmo após o fim oficial da ditadura
militar, o autoritarismo se encontra disfarçado entre a ideia de democra-
cia, ainda que após a transição política para a Nova República, em outras
palavras, a falsa pacificação da violência.

163
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Nessa conjectura, pode-se notar que a sociedade brasileira não des-


frutou verdadeiramente do regime democrático devido ao autoritarismo
impregnado após a ditadura. Ainda mais sob o prisma jus-humanista de
direitos básicos como a alimentação, a educação e a moradia (e outros),
que insistem em se verificar vilipendiados e inefetivos quando da observa-
ção empírica do (des)cumprimento de sua função social, o que não condiz
com um país que se define democrático. O autoritarismo seria então, um
desafio a ser enfrentado para que a democracia se estabilize. De acordo
com Dahl:

Mais cedo ou mais tarde, todos os países passarão por crises bastan-
te profundas — crises políticas, ideológicas, econômicas, militares,
internacionais. Dessa maneira, se pretende resistir, um sistema po-
lítico democrático deverá ter a capacidade de sobreviver às dificul-
dades e aos turbilhões que essas crises apresentam (DAHL, p.173,
2001).

Devido às dificuldades que um país enfrenta para ser, de fato, demo-


crático, atingir este objetivo e ter definitivamente a estabilidade democrá-
tica, não é simples. Para Dahl “Atingir a estabilidade democrática não é
simplesmente navegar num mar sem ondas; às vezes, significa enfrentar
um clima enlouquecido e perigoso” (DAHL, 2001, p.173). O que restou
de autoritarismo, sem dúvidas, pode ser considerado uma consequência
deste “clima enlouquecido e perigoso” assim chamado por Dahl, já que
na construção democrática, este problema, atua de forma incondizente à
igualdade de direitos e à liberdade, previstos com destaque na Constitui-
ção da República Federativa do Brasil.
A principal questão é: Por que a democracia? Quais são os motivos
que fazem da democracia uma forma de governo melhor? A democracia
apresenta consequências desejáveis: evita a tirania, institui direitos essen-
ciais e maneiras de exercê-los, liberdade geral, autodeterminação, auto-
nomia moral, desenvolvimento humano, proteção dos interesses pessoais
essenciais, igualdade política e, além disso, as democracias modernas se
destacam na busca pela paz e a prosperidade (DAHL, 2001).
Dentre outras maneiras com que o autoritarismo se apresenta, uma
das formas que mais se destaca é a arbitrariedade policial, que tem como

164
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

alvo a vulnerabilidade dos indefesos da sociedade brasileira, conforme o


autor Paulo Sérgio Pinheiro preleciona. Veja:

No Brasil, assim como em outros lugares, as vítimas não são mais


militantes políticos, muitos deles pessoas educadas da classe média,
cuja oposição ao regime militar fez com que fossem assassinados
ou brutalmente torturados. Hoje em dia, o principal alvo da arbi-
trariedade policial são os mais vulneráveis e indefesos da sociedade
brasileira: o pobre, o trabalhador rural e sindicalistas, grupos mino-
ritários, crianças e adolescentes abandonados, muitos vivendo nas
ruas (PINHEIRO, 1997, p.44).

Ainda de acordo com o autor supracitado, as violações mais fortes


cometidas por militares contra os direitos humanos foram eliminadas, mas
ao mesmo tempo os governos civis recém-eleitos, falharam ao proteger os
direitos fundamentais garantidos na Constituição, permanecendo assim
como consequência, o precário regime da lei.
As consequências geradas pelo autoritarismo na construção da demo-
cracia, interferem no reconhecimento do “outro” diferente, e sua existên-
cia social e política, abandonando a ideia de democracia e o respeito aos
direitos humanos e a alteridade humana, momento em que a diferença e
dissensão se tornam uma espécie de ameaça ao pensamento autoritário,
onde o diálogo é substituído por conclusões baseadas no senso comum,
conclusões incontestáveis e absolutas (DORNELLES, 2017).
A respeito do tema, o autor João Ricardo W. Dornelles destaca a ca-
racterística multicultural presente na democracia, considerando a alterida-
de como fator fundante do debate público e essência mesma da respeita-
bilidade para com o outro num convívio pacífico. Nesse sentido, o autor
diz em suas palavras que:

O Brasil tem vivido nos últimos anos, em especial desde meados de


2013, um acelerado processo de polarização política e ideológica,
em que as históricas características autoritárias e antidemocráticas
de elitismo e exclusão passam a ser bandeiras de mobilização de
segmentos ultraconservadores da sociedade brasileira. O ambiente
nesse quadro acirrado de polarização e estranhamento tem produ-
zido práticas de violência e ódio, impossibilitando o diálogo entre

165
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

os diferentes, colocando barreiras às práticas democráticas. Pensar


a democracia tem como condições o reconhecimento do outro, a
aceitação da diferença, a construção social dialógica, a pluralidade
de vozes e de sujeitos, o convívio pacífico, a solidariedade social na
diversidade, o esforço comum no sentido da integração e o respeito
comum às diferenças e especificidades, a confrontação dialógica
de ideias, a ampliação de direitos, o respeito aos direitos dos bens
comuns (DORNELLES, 2017, p.163).

O autoritarismo, produz práticas de violência e ódio, o que impossi-


bilita a paz e o respeito entre os diferentes, o que fere diretamente a cons-
trução democrática, pois a prática autoritária gera intolerância à diversi-
dade, bloqueando a construção social dialógica, o que não condiz com o
objetivo de democracia. As vantagens de um governo democrático são
inúmeras, mas a impregnação autoritária mesmo após as transições políti-
cas, têm colaborado para a criação de uma barreira entre a democracia e a
sociedade contemporânea, como uma marca da ditadura militar que tem
se estendido até aqui.
Nesse sentido, para Dahl “a democracia é para a maioria um jogo
bem melhor que qualquer alternativa viável” (DAHL, 2001, p.74). O que
se pode concluir, então, é que o melhor caminho para a sociedade brasilei-
ra é a resolução do impasse no respeito às diferenças, como elemento fun-
damental para a retomada humanista, na busca de ampliação de direitos
e a liberdade democrática. Diante de todo este cenário, emerge tamanha
importância da instituição e manutenção dos direitos humanos no cenário
jurídico e, nesta senda, a educação jus-humanista, o que se verá adiante.

3 DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: A


TRÍADE PARA A DEMOCRACIA

A promoção de uma educação jus-humanista, firmada no contexto


histórico que cria ou declara direitos básicos ao ser humano, permite ainda
que o indivíduo, enquanto educando, compreenda a conjectura histórica
que decanta no fundo do cenário contemporâneo brasileiro e que atra-
vessa a subjetividade geral, sobretudo do ponto de vista das classes sociais
e suas lutas, da posição em que ocupa o indivíduo dentro da sistemática

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

em se que organiza a dinâmica da sociedade capitalista atual. Possibili-


ta então, no mínimo, sua emancipação intelectual e seu reconhecimento
existencial próprio dentro de uma dimensão historicamente opressora que
o obsta no acesso ao aprendizado, à cultura, ao conhecimento filosófico e
científico e assim por diante.
A perspectiva autoritária se desenrola historicamente em uma con-
temporaneidade que ainda resiste na luta pelo fim das desigualdades
(sobretudo em face da desigualdade no exercício de direitos, igualdade
perante à lei, conforme os postulados de Norberto Bobbio33), na eli-
minação das discriminações, no caminho da emancipação da pessoa
humana, na direção do que Paulo Freire chama, de sua ontológica vo-
cação de Ser Mais. Da mesma maneira que funcionam como princípios
fundamentais da república desde o ano de 1988, presentes no art. 3º da
Constituição Federal, veja:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federa-


tiva do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
(BRASIL, 1988).

Dentro da conjectura autoritária neste espaço marcado pela exclu-


são social e marginalização de povos historicamente desrespeitados em
sua dignidade, Carlos Roberto Jamil Cury preleciona que desde a forma-
ção colonial brasileira, a educação disponibilizada às pessoas era precon-
ceituosa e excludente. Trazidos à força, transformados em propriedade,
bastavam a catequese e a doutrinação, àqueles que não serviriam para o
trabalho (CURY, 2014).

33 Considerando que a Democracia se verifica, além da instituição de um governo em que


o poder se encontra exercido por representantes eleitos pelo povo e a alternância da pre-
sença de tais governantes, ela se caracteriza pela criação e manutenção de direitos. Na obra
“Liberalismo e democracia”, Bobbio explica que a ideia de igualdade na democracia, desde
os postulados que sustentam o Estado liberal, se consubstancia na “a) a igualdade perante
à lei; b) a igualdade de direitos” (BOBBIO, 2017, p.62).

167
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Conforme o mencionado autor, a herança educacional aqui encon-


trada desde a formação do país em questão, deixa como legado um ce-
nário em que a existência social se torna precária onde “a declaração e a
efetivação do direito à educação tem sido e são imprescindíveis para essa
superação [...] cuja forte tradição elitista reservou apenas às camadas pri-
vilegiadas o acesso a este bem social” (CURY, 2014, p. 65). Nesta senda,
uma educação libertadora e que permita levar ao intelecto a compreensão
de uma trajetória autoritária e excludente pode proporcionar, entre outras
coisas, a formação cidadã do indivíduo e a apropriação e exercício de seus
próprios direitos e daqueles de quem está a sua volta.
Assim sendo, verifica-se na análise dos postulados de Carlos Rober-
to Jamil Cury que a desigualdade presente na trama social também está
presente no âmbito escolar. Tais características sociais desiguais que são
observáveis no ambiente escolar são frutos de sistemas sociais excludentes
e discriminadores. Nas palavras do mencionado autor:

Lutar pelo fim da desigualdade social e das discriminações de qual-


quer natureza não é exclusividade da educação escolar. [...] Ela (a
escola) auxilia na eliminação das discriminações e, nesta medida,
abre espaço para outras modalidades mais amplas de emancipação.
Por isso, declarar e assegurar a educação como direito nas Consti-
tuições são mais do que uma proclamação solene (CURY, 2014,
pp. 66, 67).

3.1 A educação em direitos humanos como perspectiva


para uma democracia cidadã

Em essência, os direitos humanos emergem com o propósito de pro-


teger o indivíduo diante do arbítrio estatal, instituindo um governo de leis
e não de homens. Diante do cenário nacional com sua tradição autoritária,
a Constituição de 1988 contemplou amplamente tais institutos jus-huma-
nistas em virtude de seu artigo 1º, elencando a dignidade da pessoa humana
como um dos fundamentos da República e, especialmente, em seu artigo
5º, tal carta de direitos ficou conhecida como a Constituição Cidadã.
Contemplando a dignidade da pessoa humana, e estabelecendo cri-
térios mínimos de respeitabilidade à vida humana, a educação em direitos

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

humanos serve como ferramenta de emancipação cidadã, promovendo ao


educando, e assim, aos atuais e futuros cidadãos, o conhecimento do au-
toritário contexto histórico gerador de tais institutos jurídicos, sua corre-
lação para com a história nacional, sua importância para a vida cotidiana
e seu papel na proteção da dignidade, liberdade e fraternidade entre os
povos dentro das diferenças constituintes da democracia.
Nesse sentido, a educação e os direitos humanos, fortalecendo o exer-
cício ativo da cidadania, formam uma verdadeira tríade para a construção
democrática. A democracia tem como elemento intrínseco a convivência
com a diversidade cultural diante da alteridade e, assim sendo, neste es-
paço não há o que se falar em planificar as diferenças e homogeneizar as
nuances características de cada povo que compõe uma nação, mas a con-
vivência e gerência dessas visões que se alternam no podem a cada período
eletivo.
Dentro dessa perspectiva, pensar em unificar e em padronizar os tra-
ços culturais e tradicionais de cada povo, para que então se forme um todo
coeso e indiviso, além de ser uma visão autoritária, remonta aos ideias
nazistas, a segunda guerra mundial e seu fim, que fez com que diversos
países notassem a necessidade de proteger de maneira supranacional crité-
rios básicos para a vida digna garantindo o destaque dos direitos humanos
e fundamentais na proteção do indivíduo na sua hipossuficiência, eman-
cipando aqueles que os conhecem e aprendem as maneiras de exercê-los.
Nas palavras da autora Vera Maria Candau:

Também estamos chamados a favorecer processos de "empode-


ramento", tendo como ponto de partida liberar a possibilidade, o
poder, a potência que cada pessoa, cada aluno, cada aluna tem para
que possa ser sujeito de sua vida e ator social. O "empoderamento"
tem também uma dimensão coletiva, apoia grupos sociais mino-
ritários, discriminados, marginalizados, etc., favorecendo sua or-
ganização e participação ativa em movimentos da sociedade civil.
As ações afirmativas são estratégias que se situam nesta perspecti-
va. Visam a melhores condições de vida para os grupos margina-
lizados, à superação do racismo, da discriminação de gênero, de
orientação sexual e religiosa, assim como das desigualdades sociais
(CANDAU, 2012, p. 250).

169
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Pensando de maneira democrática, a educação em direitos humanos


é um importante instrumento emancipador, ao possibilitar que os atuais
e os futuros cidadãos percebam a si próprios como integrantes de uma
família humana, permite que estes verifiquem se fazem, ou não, jus às
garantias de direitos humanos em seu dia a dia e no cotidiano de sua so-
ciedade, por exemplo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das reflexões ora versadas na presente pesquisa, é possível en-


tender que a consciência de uma construção democrática deve se opor às
tradições autoritárias que marcam o cenário nacional. E nesse intuito, a
educação em direitos humanos é um importante instrumento emanci-
pador, que possibilita aos atuais e os futuros cidadãos a percepção de si
próprios como integrantes de uma família humana, permitindo que estes
verifiquem se fazem, ou não, jus às garantias de direitos humanos (e ou-
tras) em seu dia a dia e no cotidiano de sua sociedade.
Se trata de expandir os horizontes do educando no caminho de uma
democracia inclusiva, de um espaço público que conviva com as diferenças
e com as liberdades. Contemplando a dignidade da pessoa humana e esta-
belecendo critérios mínimos de respeitabilidade à vida humana, a educa-
ção em direitos humanos serve como ferramenta de emancipação cidadã,
promovendo ao indivíduo, aos atuais e futuros cidadãos, a contemplação
do autoritário contexto histórico gerador de tais institutos jurídicos, sua
correlação para com a história nacional, sua importância para a vida coti-
diana e seu papel na proteção da dignidade, liberdade e fraternidade entre
os povos dentro das diferenças constituintes da democracia.
Pode-se notar, diante das discussões aqui apresentadas, que a socie-
dade brasileira não desfrutou verdadeiramente do regime democrático
devido ao autoritarismo impregnado após a ditadura. Ainda mais sob o
prisma jus-humanista de direitos básicos como a alimentação, a educação
e a moradia (e vários outros), que insistem em se verificar vilipendiados
e inefetivos quando da observação empírica do (des)cumprimento de sua
função social, o que não condiz com um país que se define democrático.
Destarte, a educação e os direitos humanos fortalecem o exercício ativo da

170
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

cidadania que passam a compor uma verdadeira tríade para a construção


democrática.
Compreender as marcas do autoritarismo no território brasileiro,
permite entender mais da contemporaneidade nacional e a necessidade
da promoção de uma inclusão social diante da história excludente, explo-
ratória e autoritária que marcou a fundação do Brasil. Pensando a demo-
cracia, percebe-se que ela tem, como elemento intrínseco, a convivência
com diversidade cultural diante da alteridade e, neste espaço brasileiro
formado por uma miríade de tradições culturais, não há o que se falar
em planificar as diferenças ou homogeneizar os nuances característicos de
cada povo que compõe uma nação, mas a convivência e gerência dessas
visões que se alternam no podem a cada período eletivo.

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tantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Cons-
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172
APONTAMENTOS ACERCA DA
DIFICULDADE EM SE GARANTIR O
DIREITO À SAÚDE DA POPULAÇÃO
LGBT+ NO BRASIL
Lorena Patrícia Basílio Morato34

1. INTRODUÇÃO

A saúde é um direito de valor inquestionável ao ser humano. Indepen-


dentemente da idade, ter um organismo e uma mente sã podem definir
todo o futuro de qualquer pessoa. Ainda que seja um direito resguardado
por diversos tratados internacionais e pela legislação interna do Brasil, a
possibilidade de se fazer materializar este direito pode encontrar certas
dificuldades, e, a depender do recorte analisado, a situação se torna ainda
mais complexa.
Desse modo, observando a realidade da população LGBT+ e os di-
versos estigmas existentes, o presente trabalho versará sobre a dificuldade
em se garantir o direito à saúde para aqueles que não estão inseridos na
ideologia heteronormativa que, embora, numericamnete seja superior, em
nada pode deslegitimiar outras formas de gerir a vida, a sexualidade e os
relacionamentos de outros que não se enquadram nessa lógica.
O Sistema Único de Saúde desempenha um papel notável na salva-
guarda dos direitos atinentes à saúde no Brasil, entretanto, considerando
as dimensões continentais do país e as diferenças regionais, é certo afirmar

34 Discente do 6° período do curso de Direito na Faculdade Pitágoras de Betim.

173
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

que este organismo pode - e de fato- vislumbra algumas dificuldades em


seguir seus princípios mais básicos na garantia do amparo aos necessitados.
Em razão das circunstâncias já apresentadas, bem como outras que
oportunamente serão discutidas, o artigo apresentará os aspectos evoluti-
vos da saúde LGBT+ no Brasil e acontecimentos internacionais de igual
relevância; em seguida, oportuno retornar na temática do SUS e obser-
var como este órgão pode atuar na garantia dos direitos aqui expostos.
Mais adiante também será interessante discutir como o Sistema pode ser
aprimorado, de modo que nenhum indivíduo tenha ferido seu direito de
acesso às práticas que visam assegurar sua integridade física e mental. Ao
fim da exposição, o que se pretende é traçar novos caminhos para que o
direito à saúde deixe de ser mera previsão legal e passe a ser cada vez mais
observado e cumprido no plano fático.

2. ASPECTOS EVOLUTIVOS DA SAÚDE LGBT+

Dentro da perspectiva de conquista dos Direitos Humanos é certo


afirmar que a saúde detém espaço privilegiado. Seja por meio de tratados e
convenções internacionais ou através da legislação interna, o direito a um
sistema que assegura o bem-estar do indivíduo é ponto fundamental nos
países. Analisado primeiramente alguns dispositivos estrangeiros acerca do
tema tem-se a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), que em
seu artigo 25, inciso I, estabelece, dentre outras questões, que “todo o ho-
mem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis”. O documento, publicado
em 1948, após um período de extrema instabilidade política, qual seja, a II
Guerra Mundial, tinha como preocupação a assistência aos cidadãos como
uma forma de aprimorar a qualidade de vida.
No mesmo sentido, o Pacto de San José da Costa Rica, publicado em
1969 e ratificado pelo Brasil em 1992, por meio do decreto 678 estabelece
em seu artigo 11, inciso I que todas as pessoas têm o direito de que sejam
reconhecidas sua honra e dignidade. Além disso, o documento prossegue
afirmando que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou
abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.

1 74
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Logo, tomando por base os dispositivos apresentados já se pode ob-


servar que, embora o Pacto de San José não trate expressamente da saúde,
este direito é abarcado dentro da ideia de que não haverá qualquer tipo de
ingerência abusiva na vida dos cidadãos. A frase traz consigo significado
profundo para a temática exposta, tendo em vista que em incontáveis si-
tuações pessoas da comunidade LGBT+ não têm acesso a um sistema que
preze por sua vida em virtude do modo como a vivem. Ou seja, a saúde
não é resguardada, fato que evidencia uma ofensa à dignidade do paciente,
corroborando para a materialização de uma vida indigna.
No que tange à legislação nacional, a Constituição Federal de 1988,
por vezes denominada Constituição Cidadã, reúne uma série de previsões
que asseguram a saúde e o bem estar dos cidadãos em diferentes formas.
Logo em seu primeiro artigo, a CRFB/1988 estabelece como um de seus
fundamentos a dignidade da pessoa humana. Morais (2018, p. 53) con-
ceitua a dignidade humana como “pretensão ao respeito por parte das de-
mais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto
jurídico deve assegurar”, ou seja, se trata uma forma de assegurar condi-
ções que possam garantir aos indivíduos tudo que há de mais básico para
sua existência, como por exemplo a moradia, condições mínimas para o
exercício de um trabalho, a saúde, etc. Todo esse conjunto de ações afir-
mativas visam propiciar que a sobrevivência não se concretize por meio de
situações degradantes ou que possam colocar a vida das pessoas em risco.
A Carta de 88, na tentativa de resguardar a dignidade da população, elen-
cou em seu art. 6° os direitos sociais, sendo eles: “ a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade, à infância, e a assistência aos
desamparados”.
O legislador constituinte preocupou-se ainda em criar o Sistema de
Seguridade Social, o qual abarca a manutenção de políticas atinentes à saú-
de, previdência e assistência social. Embora sejam de suma importância, a
previdência e assistência não serão abordadas no presente trabalho, tendo
em vista que não são o foco da discussão. Sendo assim, cabe mencionar o
que apregoa o art. 196 da CRFB de 1988:

a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido median-


te políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de

175
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às


ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRA-
SIL, 1988).

Novamente, compactuando com o disposto nos tratados internacio-


nais ora abordados, o documento legislativo de maior significado do país
reafirma que a saúde é um direito universal, nesse sentido, não deveria,
em tese, haver qualquer tipo de desigualdade na prestação do serviço. To-
davia, a realidade nem sempre consegue atuar de acordo com as expecta-
tivas do legislador, questões sociais, econômicas e até de cunho religioso
podem influenciar no momento de atendimento de algumas pessoas.
Muito embora existam diversas previsões legais que reafirmam a
igualdade entre aqueles que compõem a sociedade, bem como os que ne-
cessitam de cuidados, é preciso relembrar que certos grupos, como é o
caso da comunidade LGBT+, podem encontrar dificuldades no acesso às
políticas de cuidado, seja ele físico ou psicológico. Talvez por isso, Bezer-
ra et al (2019) apontam que à partir da década de 70 as normas referen-
tes à Reforma Sanitária firmaram a possibilidade de implementação de
uma política universal e integral, sinalizando a necessidade de inclusão de
populações até então marginalizadas. Os autores mencionados vão além,
afirmando que:

No campo da saúde coletiva, surgem, após a criação do Sistema


Único de Saúde (SUS), as políticas de promoção da equidade,
que têm por objetivo diminuir as vulnerabilidades a que certos
grupos populacionais estão expostos, intervindo nos determi-
nantes sociais da saúde. Ancoradas no princípio da justiça social,
as políticas de equidade em saúde passaram a constituir uma das
bandeiras dos movimentos sociais, em particular, o LGBT (BE-
ZERRA et al, 2019).

Sem prejuízo aos elementos já apresentados é conveniente trazer à bai-


la a lei 8.080/90, responsável por regulamentar o art. 198 da Constituição
Federal e traçar a estrutura do SUS. A lei em questão dispõe sobre as con-
dições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização
e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências
(BRASIL, 1990). Em seus §§ 1º e 2°, a lei supramencionada estabeleceu

176
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

que é dever do Estado garantir a saúde, entretanto, esta atribuição não


isenta a família, a comunidade, as empresas e as pessoas da responsabilida-
de de atuar na garantia do referido direito. Um outro ponto relevante foi a
criação do Plano Brasil Sem Homofobia, criado em 2004, cuja finalidade,
no que diz respeito à saúde, contava com as seguintes diretrizes:

i) atenção especial à saúde da mulher lésbica em todas as fases da


vida; ii) atenção a homossexuais vítimas de violência, incluindo a
violência sexual; iii) atenção a saúde dos homossexuais privados de
liberdade; iv) promoção da saúde por meio de ações educativas vol-
tadas a população GLTB, v) estabelecimento de parceria e partici-
pação de usuários GLTB e do movimento organizado na definição
de políticas de saúde específicas para essa população; vi) discussão
com vista na atualização dos protocolos relacionados às cirurgias de
adequação sexual; vii) atenção à saúde mental da população (BRA-
SIL, 2004).

Interessante observar outras medidas propostas pelo Plano, sendo elas


o “desenvolvimento de estratégias para a elaboração e execução de estu-
dos que permitam obter indicadores das condições sociais e de saúde da
população GLTB” e ainda “Estabelecimento de um canal com função de
Ouvidoria, por meio do Disque-Saúde do MS, para recebimento e en-
caminhamento de denúncias sobre situações de discriminação ocorridas
na rede de saúde” (BRASIL, 2004). Por fim, o documento reforça mais
uma vez a necessidade de se garantir um “acesso igualitário pelo respeito
à diferença da orientação sexual e do entendimento e acolhimento das
especificidades de saúde”. Logo, conclui-se que os profissionais de saúde
deveriam, em tese, atuar de modo a jamais constranger os paciente, posto
que esta foi a determinação lançada pelo Ministério da Saúde, órgão má-
ximo nos assuntos desta seara.
Ainda na perspectiva evolutiva, oportudo trazer à baila o reconhe-
cimento da dignidade de pessoas LGBT+ foi quando houve a retirada da
homossexualidade da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde.
Welle (2020) afirma que há 30 anos, mais especificamente em 17 de maio
de 1990, a OMS excluiu o ato de se relacionar afetiva e sexualmente com
uma pessoa do mesmo sexo da Classificação Estatística de Doenças e Pro-
blemas Relacionados à Saúde (CID). Nesse mesmo período ao mesmo

177
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tempo em que o Brasil regulamentou e publicou as diretrizes para a pro-


moção de saúde, houve também esse fato que, à priori, constituiu inegável
avanço. Entretanto, a mera exclusão na CID não caracteriza igualdade e o
reconhecimento de autonomia daquelas pessoas que, há bem pouco tem-
po, eram consideradas doentes, o que servia como fomento para que não
fossem reconhecidos como sujeitos de autonomia plena.
No mesmo sentido, mais um acontecimento que merece ser lembra-
do é a retirada -ainda que tardia- da transexualidade da lista de enfermi-
dades já citada, tal ação apenas ocorreu em 2018, o que agrava ainda mais
a precariedade e a dificuldade de se reconhecer a “normalidade” dos se-
res humanos que destoam da ideologia cisheteronormativa. Diante disso,
percebe-se o quanto as pessoas tiveram de esperar para que pudessem, tan-
to jurídica quanto socialmente, serem reconhecidas como seres humanos,
dotados de direitos e merecedores de amparo e respeito.
Observados os aspectos gerais sobre a evolução dos direitos à saúde
da população LGBT+, é primordial compreender a estrutura do Sistema
Único de Saúde (SUS, investigar como os pacientes são recebidos pelos
profissionais da área e ainda descobrir como o Sistema pode garantir a
proteção do direito ao qual foi destinado a proteger.

3. O SUS E SEU PAPEL NA SALVAGUARDA DA SAÚDE


EM TODAS AS SUAS VERTENTES

As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionali-


zada e hierarquizada e constituem um sistema único (BRASIL, 1988).
Partindo dessa noção de unidade é que se dá forma ao modelo assistencial
comumente denominado de SUS. Conforme já observado, a CRFB de
1988 tratou da saúde como um direito de todos e um dever do Estado, em
virtude disso, o art. 198 do dispositivo supramencionado determina que
são diretrizes do Sistema: “a descentralização, com direção única em cada
esfera de governo; o atendimento integral, com prioridade para as ativi-
dades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e a participação
da comunidade”. Assim como outros programas de assistência, o SUS
comporta alguns princípios que lhe servem como norteadores no que diz
respeito à prestação de serviços, sendo eles: universalidade, equidade e
integralidade.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

A ideia de universalidade, como o próprio nome sugere, está relacio-


nada com a abrangência da política pública, em outras palavras, não há
que se discutir sobre a possibilidade de escolha dos atendidos. Confirme
evidencia Porfírio (2018) “todas as pessoas têm direito ao atendimento
médico, hospitalar e à atenção à saúde, independentemente de qualquer
característica distintiva”; de acordo com o autor ora mencionado, a equi-
dade traz a noção de assegurar maior atenção aos indivíduos em maior
grau de vulnerabilidade. Finalmente, ao tratar da integralidade é interes-
sante trazer à baila que cuidar da saúde:

não se resume ao hospital ou consultório, nem que é preciso espe-


rar que uma doença aconteça para que uma medida seja tomada.
Com isso, o SUS também promove campanhas educativas que vi-
sam levar a informação às pessoas sobre cuidados pessoais, cuida-
dos alimentares, preservação do meio ambiente e ações sanitárias
que reduzam a incidência de doenças na população. (PORFÍRIO,
2018)

Todavia, aqueles que têm o mínimo conhecimento da realidade já


imaginam que gays, lésbicas, travestis, transxesuais e os demais compo-
nentes da comunidade, lamentavelmente, podem não ter sua dignidade
respeitada a depender do médico ou demais profissionais da área que pres-
tam o atendimento. Nessa lógica, ao tratar sobre a percepção de LGBTs
atendidos pelo Sistema Único de Saúde, Cerqueira-Santos et al (2010, p.
235) apontam:

a avaliação da qualidade do atendimento no SUS para o público


GLBT também apresenta questões além dos aspectos específicos
relacionados à orientação sexual. Aspectos negativos do serviço
foram mencionados como comuns a população geral. Entre es-
ses aspectos negativos destacam-se a curta duração das consultas,
agendamento e marcação, e estrutura física e condições de trabalho
precárias (CERQUEIRA-SANTOS et al, 2010, p. 235).

Observe-se que o estudo supracitado foi realizado há 10 anos, contu-


do, infelizmente, pouco se avançou nesse quesito, conforme Ferreira et al
(2018) demonstram ao analisar os estudos de Bittencourt:

179
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

a população lésbica, gay, bissexual, travesti e transexual (LGBT)


experimenta dificuldades em comunicar-se com os profissionais
de saúde, medo em revelar sua identidade de gênero ou orien-
tação sexual, marginalização nas práticas de cuidado em saúde,
dentre outras barreiras no acesso aos serviços de saúde (BITTEN-
COURT apud FERREIRA, 2018, p. 2)

Nesse contexto, o que se pode depreender é que diversas formas de


discriminação podem embaralhar o acesso às políticas de saúde, isso por-
que, ainda tomando por base os ensinamentos de Ferreira et al (2018, p.
2), o fato de não pertencerem ao modelo heteronormativo torna os indi-
víduos “diferentes” e essa pode ser um caminho para a violação de direitos
e o consequente afastamento das unidades de saúde sob a justificativa da
ausênca de acolhimento.
No intuito de melhor desenhar os desafios enfrentados por pessoas
que não se identificam como heterossexuais é de suma importância apre-
sentar situações práticas envolvendo o atendimento de LGBTs no SUS.
De início, vale a pena observar o que Honorato (2019) vislumbrou ao
entrevistar Sol Guiné, mulher de 23 anos que fez uma consulta por meio
da rede pública em 2016:

"O ginecologista fez perguntas tradicionais sobre relações sexuais,


número de parceiros. Contei que sou lésbica e tinha mais de uma
parceira. Ele falou: 'não sei se vou conseguir continuar o atendi-
mento com você, porque eu não sei tratar, não tenho o costume de
atender pessoas com homossexualismo'" (HONORATO, 2019).

Honorato (2019) ainda aponta que é muito comum o estereótipo de


que somente pertencentes da comunidade LGBTI+ são portadores de al-
guma infecção sexualmente transmissível, por tal motivo:

Adriano Rodrigues, presidente do Movimento de Bissexuais (Mo-


vBi), e Vinícius Fahd Barchin, estudante de enfermagem, relatam
que, em muitas consultas, o médico pede um exame sorológico
para detectar HIV sem ao menos perguntar sobre as práticas se-
xuais deles. (HONORATO, 2019).

180
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Na sequência, a autora supramencionada continua descrevendo o que


ouviu de um dos entrevistados:

"Eu tinha 18 anos, já era assumidamente gay e estava passando por


uma crise de depressão. Procurei atenção psicológica em uma Uni-
dade Básica de Saúde e, durante a entrevista, citei, de forma bem
natural, que eu me atraía por homens. Já a psicóloga me respondeu
com: 'você acha que possui tendências homossexuais?'. Parece sim-
ples, mas aquilo me fez sentir anormal e estranho, piorando minha
crise e me dando medo de voltar para o atendimento e falar sobre
minha orientação sexual”. (HONORATO, 2019)

Outra questão extremamente delicada e que merece ser lembrada


é a negativa, ou até mesmo a inobservância, de alguns profissionais
no que se refere ao nome social da pessoa que será atendida. Esta é
uma realidade vivenciada por diversos travestis e transsexuais, dentro
da problemática é primordial citar um trecho no qual Rovai (2019, p.
15) entrevista uma mulher trans e colhe seu relato acerca da desatenção
ao uso de seu nome social:

Esses dias eu precisei ir lá no posto de saúde e o enfermeiro aca-


bou me chamando com o nome do documento. Eu tinha colocado
meu nome social em cima. Eu sempre coloco mas, mesmo assim,
ele acabou me chamando. Ainda bem que ele falou baixo. A gente
fica constrangida.. (LUCIELLY apud RAVOI, 2019, p. 15)

Retomando a temática dos princípios atinentes ao SUS ora expla-


nados, vale a pena dizer que políticas afirmativas, considerando que seu
objetivo máximo é reafirmar dignidade, deveriam estar em condições de
verdadeiramente garantir aos integrantes da comunidade LGBT+ o efe-
tivo gozo dos mandamentos de otimização apresentados. Conforme foi
exposto, a falta de cuidado ou do devido treinamento podem evidenciar
situações de extremo desconforto àquelas pessoas que encontram no aten-
dimento público sua única forma de resguardar a própria saúde. Indepen-
dentemente de as consultas se tratarem de cuidados com a saúde física ou
mental, é preciso considerar formas de capacitação dos atendentes da área.

181
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Desse modo, é fundamental que políticas de gestão ao atendimento


da população LGBT+ sejam colocadas em prática o quanto antes, mas
seria um tanto quanto utópico acreditar que a mera disponibilidade de
tais recursos será suficiente para sanar um problema que tem raízes muito
mais profundas e demanda ação conjunta de várias partes da sociedade
civil. Sendo assim, que soluções podem ser pensadas? O Brasil possui,
atualmente, material humano suficiente para assegurar o direito à saúde
de todas as pessoas? É possível que um sistema tão sobrecarregado se torne
um espaço de verdadeira transformação social? Na tentativa de alcançar
respostas para tais questionamentos é necessário pensar em cenários eco-
nômicos e sociais, avançando muito além da mera previsão legal das polí-
ticas de cuidado com a saúde.

4. POSSÍVEIS FORMAS DE GARANTIR O EFETIVO


DIREITO À SAÚDE DA COMUNIDADE LGBT+

Conforme já dito, os usuários do SUS, sejam pertencentes ou não ao


grupo LGBT+, descreveram dificuldades em receber um serviço eficien-
te, ora por condições estruturais, ora em razão da falta de observância à
subjetividade dos pacientes. Se adicionado a este cenário os preconceitos
e resistências de cada um dos trabalhadores da área da saúde, a situação
tende a se agravar ainda mais. Nesse ponto, oportuno relembrar o que
discorre Tiné (2018): “Os serviços de saúde devem ser locais onde todas
as pessoas se sintam acolhidas e seguras, por isso é importante que o aten-
dimento seja livre de preconceitos como a LGBTfobia, a fim de garantir
o acesso à saúde com qualidade e de forma humanizada”. Logo, repensar
a capacitação de funcionários e fazer valer as disposições existentes em
cada um dos documentos que regem a atuação de médicas, enfermeiros
e demais agentes de saúde pode ser um caminho para a mudança de pa-
radigmas. A rotina estressante a qual são submetidos os trabalhadores que
cuidam do bem estar da população, considerando a falta de medicamentos
e a ausência de pessoas que sejam suficientes para atuar de modo a garantir
atendimento humanizado evidenciam a sobrecarga sistêmica e a ausência
de atuação eficiente do Estado.
É urgente rever a forma pela qual os recursos que financiam a saúde
coletiva são repassados. Nesse ponto, cabe à Administração Pública, em

182
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nível federal, estadual e municipal, investigar e combater quaisquer traços


de corrupção que possam embaralhar a prestação dos serviços. Incumbe
aos órgãos gestores fazer a solicitação para abertura de editais cuja fina-
lidade é aumentar o número de prestadores de serviço, de maneira que
os trabalhadores já existentes não sejam abarrotados em demandas. Além
disso, políticas de inclusão, como por exemplo a contratação de pessoas
LGBT+ podem surtir efeito no processo de desconstrução de preconcei-
tos, agentes de saúde que acompanha diariamente a realidade de diversas
famílias poderão, à partir da própria realidade, mostrar como também são
sujeitos de direitos, o que contribuirá para a alteração da realidade e con-
sequente diminuição de comportamentos que são reforçados por falta de
informação.
Uma forma de aproximar os prestadores de serviço das mais variadas
realidades pode ser o aprimoramento dos cursos de formação dos agentes
de saúde que atuam na atenção primária, cujas atribuições abarcam a rea-
lização de:

um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo,


que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de
agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de
danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma
atenção integral que impacte positivamente na situação de saúde
das coletividades (BRASIL, [2018?])

Seguindo a lógica acima apresentada é necessário destacar o papel es-


sencial da educação como agente de transformação social. Em virtude dis-
so, ensinar às crianças e adolescentes sobre políticas de inclusão e demons-
trar que as pessoas são livres para se relacionar e viver sua sexualidade do
modo como se sentem realizadas é uma tarefa de toda a sociedade, sendo
a escola a porta de entrada para se discutir questões desta ordem. Em razão
disso, é preciso também uma ação conjunta entre os Ministérios da Saúde
e da Educação que tenha o intuito de promover debate sérios, distanciados
do senso comum e dos estereótipos comumente observados pela socieda-
de. Ao tratar da temática o que se espera são formadores de opinião, pais
e responsáveis, ainda que não façam parte da comunidade LGBT+, atuem
na tentativa de mostrar que a diversidade social existe e é uma realidade.

183
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Assim, enxergar a diferença do outro não servirá como um mecanismo de


afastamento e segregação, ao contrário, na percepção de diferentes formas
de viver o que se materializa é uma oportunidade crescer e aumentar a
prestação de direitos, fazendo valer em toda a sua essência os preceitos da
dignidade da pessoa humana.
Por fim, observando o que dispõe Nunes (2017) acerca das políticas
de atenção à saúde, além da implementação de uma cultura de cuidado
abrangente, o autor ainda versa sobre a necessidade de:

“profissionais que estejam dispostos a se despir de seus preconcei-


tos para um melhor atendimento humanizado, que facilite o acesso
e a permanência de lésbicas, gays, bissexuais, travesti e transexuais
dentro do SUS, que trabalhem a educação continuada para ter
melhor conhecimento das demandas desse e dos demais públicos
atendidos.Profissionais que empoderem seus usuários por mais di-
reitos, que trabalhem o controle social dentro das suas unidades
para instigar uma participação social maior dessa comunidade que
tem seu lugar negado em os espaços sociais.” (NUNES, 2017)

A problemática aqui apresentada denota evidente complexidade, ra-


zão pela qual as demandas são serão solucionadas de maneira ágil, en-
tretanto, iniciar a discussão e chamar a atenção da comunidade para esta
realidade já é um passo na busca com igualdade e efetivo cumprimento
de um direito inerente a todos os seres humanos. É impossível deixar de
observar que o SUS, de fato, é dotado de falhas em virtude da sobrecarga
e pela falta de presteza na distribuição de recursos, mas o que se pode fazer
quando um mecanismo tão importante apresenta falhas é pensar em for-
mas de consertá-lo e não caminhos para promover sua eliminação.

5. CONCLUSÃO

Conforme já disposto ao longo do texto, saúde é um direito funda-


mental do ser humano que deve ser mantido através da prestação estatal,
bem como o apoio da comunidade em geral. A problemática aqui exposta
leva a crer que sim, o Brasil possui extrema dificuldade em assegurar o
direito à saúde da comunidade LGBT+, seja em virtude da falta de um
quadro de funcionários habilitados para tanto, seja pela ausência de dis-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

cussões acerca da normalidade em se ter uma identidade de gênero e/ou


orientação sexual que não se funda na cisheteronormatividade.
Uma recente movimentação do Poder Executivo, qual seja a publica-
ção do decreto 10.530/2020 de 26 de outubro de 2020, autorizou o início
de estudos envolvendo a participação da iniciativa privada na prestação de
serviço das Unidades Básicas de Saúde (UBS), tal determinação demons-
tra uma tendência um tanto quanto preocupante para aquelas pessoas que
dependem do SUS. A ideia de privatizar a assistência prestada por meio
das UBS denota afronta preceitos constitucionais e deixa em aberto quais
seriam as vantagens, e quem seriam os beneficiados, caso seja efetivada a
privatização do SUS.
Em virtude dos recentes acontecimentos, afirmativas dizendo que a
saúde não é um negócio cresceram em diferentes redes sociais, razão pela
qual o Executivo rapidamente revogou o decreto ora citado. Felizmente,
ainda que a tentativa tenha sido frustrada em virtude da mobilização da
comunidade, manobras tendentes a abrir caminho para a discussão da pri-
vatização da saúde servem como um alerta e demonstram a necessidade de
maior atenção para com o tema.
Tomando por base a situação de desamparo enfrentada por boa parte
das lésbicas, gays, travestis, transexuais e demais pessoas do país, ameaças
ao Sistema Único de Saúde devem ser combatidas com veemência, posto
que este é um dos principais meios de se resguardar a saúde dos brasileiros,
sobretudo daqueles em situação de vulnerabilidade social.

6. REFERÊNCIAS

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185
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187
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DAS CRIANÇAS
E/OU ADOLESCENTES VÍTIMAS
DA ALIENAÇÃO PARENTAL E A
PROTEÇÃO LEGAL CONFERIDA
PELA LEI N. 12.318/2010 E PELAS
DOUTRINAS PERTINENTES
ADOTADAS NO BRASIL
Arlete Maracaipe Cardoso Freire35

INTRODUÇÃO

As violações sofridas pelas crianças e adolescentes vítimas da alienação


parental, foram reconhecidas pelo direito brasileiro muito recentemente,
com a concepção da lei 12.318 de 2010, e merece maior visibilidade jurí-
dica em razão das consequências que podem desencadear às crianças e/ou
adolescentes, tanto a nível psicológico quanto físico.
Nesse sentido, caberá às instituições responsáveis defender os direitos
fundamentais inerentes a pessoa humana, que são assegurados igualmente às
crianças e adolescentes pela Constituição Federal de 1988, em seu quinto ar-
tigo, e salientadas pelo artigo 3° do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).

35 Bacharela no curso de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil), e


Mestra em Direito Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal).

188
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1. A ALIENAÇÃO PARENTAL E A CONCEPÇÃO DOS


DIREITOS

A alienação parental consiste na interferência psicológica provocada


na criança e/ou adolescente, normalmente por um dos seus genitores, con-
tra outro membro da família. O menor, vítima da alienação, é facilmente
manipulado pelo alienador, que o utiliza como instrumento de vingança,
com a finalidade de aliviar seu próprio sofrimento – e, assim, atingir dire-
tamente o indivíduo (alienado) sob o qual a alienação se desenvolve.
O comportamento do alienante pode resultar no afastamento entre a
vítima da alienação e o alienado, e provocar graves prejuízos e sequelas de
ordem emocional à personalidade e as noções básicas da criança e/ou ado-
lescente, consigo mesma e no ambiente que a rodeia. As consequências
emocionais e comportamentais que atingem a vítima são denominadas
síndrome da alienação parental. (Sousa, 2012, p. 65 a 110)
Como resultado, a vítima da alienação parental que desenvolve a sín-
drome, muitas vezes apresenta comportamentos preocupantes, tais como
mentiras compulsivas, manipulações de situações e informações, manifes-
tação de emoções falsas e mudanças do sentimento para com o alienado.
Existem quadros ainda mais preocupantes em que se percebe depressão
crônica, comportamento hostil e desorganização mental, capaz de resultar
até mesmo no suicídio, dependendo da personalidade e do grau de aliena-
ção. (Garcia, 2014)
Com o passar do tempo a síndrome da alienação parental pode, in-
clusive, extinguir totalmente a relação da criança com o alienado. A esse
respeito Gardner sugere que uma criança influenciada em sua infância não
pode se tornar um adulto saudável, sendo alvo de distúrbios psiquiátricos
e, às vezes, até mesmo de doenças físicas resultantes de questões psicológi-
cas. (Escudero, 2008, p. 263-526)
O distúrbio infantil que ocorre especialmente em crianças expostas
às disputas judiciais entre seus genitores – e que se manifesta por meio da
rejeição exacerbada da criança a uma das partes, sem que haja justificativa
aparente para isso – acaba por gerar sequelas muitas vezes irreversíveis.
(Madaleno, 2006, p. 159 apud Souza, 2014, p. 82) Vale ressaltar que a ví-
tima da alienação parental normalmente está em fase de desenvolvimento,
e os prejuízos desencadeados são percebidos ao longo de toda uma vida.

189
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Segundo a psicóloga Tamara Brockhausen, quando a rejeição ocor-


re por motivos alheios à alienação parental, a síndrome não poderá ser
diagnosticada como tal. Isso acontece porque nem sempre a criança de-
senvolve problemas em razão de um terceiro. Nesse sentido, há estudos
que revelam que grande parte das crianças, filhas de pais divorciados, já
sofreram algum tipo de alienação parental, ainda que nem todos tenham
desenvolvido a síndrome. (Garcia, 2014, p. 505)
No ano de 2006, Barker publicou seu estudo no qual entrevistou 40
adultos que acreditam terem sido vítimas da Síndrome de Alienação Pa-
rental, e concluiu que pode ocorrer em famílias em que não houve o di-
vórcio ou separação, e também naquelas em que ocorreu a separação de
forma não litigiosa, ou mesmo por avós e parentes próximos à criança e/
ou adolescente. (Bernet, Barker, 2013, P. 98 a 104)
Segundo este estudo, crianças vítimas de comportamentos e atitudes
alienadores podem ser manipuladas para se afastarem de um de seus geni-
tores através do sentimento de dependência, medo e rejeição, ou criando
um senso de obrigação a culpa, tornando o filho frágil e necessitado de
suporte emocional. (Bernet, Barker, 2013, P. 98 a 104)
Um dos primeiros profissionais a identificar a alienação parental foi
Richard Gardner (professor do Departamento de Psiquiatria Infantil da
Universidade de Columbia e perito judicial), no ano de 1985. O seu in-
teresse pelos sintomas denominados síndrome da alienação parental resul-
tou na publicação de um artigo com este mesmo nome, que explica sobre
as problemáticas relacionadas às crianças nos casos de divórcios litigiosos.
(Freitas, 2012, p. 21)
Desde então, surgiram Leis especificas – em vários países – que es-
tabelecem medidas coercitivas aos alienadores, desde a advertência até a
alteração da guarda e a suspensão do poder familiar, cabendo ao magistra-
do decidir quais as medidas devidas ao caso concreto, sem deixar de con-
siderar que o conceito de dignidade humana é basilar na concepção dos
direitos do homem e que devem ser tratados com a mais elevada proteção.
A princípio, para que o diagnóstico seja dado, devem ser considerados
fatores como as habilidades cognitivas, maturidade social e emocional, gê-
nero, temperamento e idade. Porém, o fato gerador da alienação parental
ainda é incerto, de tal modo que duas crianças em um mesmo contexto
podem ter diferentes resultados quanto a alienação. Por se tratarem apenas

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

de teorias, são inúmeras as dúvidas e incertezas relativas às medidas assu-


midas pelos profissionais responsáveis. (Gardner, 2002, p. 93 a 115)
Ainda assim, as legislações garantem a segurança e estabilidade das
crianças e adolescentes, e preserva os direitos muitas vezes já anteriormen-
te estabelecidos por Constituição e Estatutos internos de cada país. Nesse
sentido, a atmosfera internacional garante por meio do artigo primeiro da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), do ano de 1948,
que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direi-
tos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos
outros com espírito de fraternidade”.
No Brasil, as primeiras decisões reconhecendo a matéria, com a par-
ticipação das equipes interdisciplinares nos processos de família aconte-
ceram no ano de 2003. (Freitas, 2012, p. 23) Embora a essência do pro-
blema tenha acompanhado o homem desde quando iniciou o processo de
estruturação familiar, foi na última década que o fenômeno ganhou maior
visibilidade pelo Poder Judiciário. (Sousa, 2014, p. 21 a 55)

1.1. A Responsabilidade Cívil pela Alienação Parental

A responsabilidade civil pela alienação parental tem a finalidade de


responsabilizar o indivíduo e fazê-lo reparar o dano provocado a outrem,
por meio de uma indenização, que é quase sempre pecuniária. Além dis-
so, poderá o dano atingir a integridade física, a honra ou os bens da víti-
ma, e, a responsabilidade civil será proporcional ao caso concreto. (Freitas,
2012, P. 90 a 101)
Há três correntes que fixam o caráter indenizatório dos danos mo-
rais, sendo a primeira como disciplinador ou pedagogo, o segundo como
punitivo ou disciplinador, e por fim, o terceiro, revestido de um caráter
reparatório e pedagogo ou disciplinador acessório, que, quando identifi-
cados enseja na aplicação da responsabilização. (Gonçalves, 2010, p. 377);
(Tartuce, 2013 p. 463 - 470); (Freitas, 2012, p. 102)
Somente configura o dever de indenizar se estiverem reunidos todos
os elementos essenciais, caracterizados pelo ilícito, nexo causal, dano e
culpa. (Gonçalves, 2010, p. 116) Porém, nos casos em que ocorrem res-
ponsabilização por alienação parental a indenização independe da culpa,

191
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

pois, ainda que o alienador não tenha como intenção causar prejuízos,
poderá acontecer. (Freitas, 2012, p. 102)
O instituto da responsabilidade civil trata sobre danos causados e a
obrigação de repará-los. O alienador, ao praticar atos de alienação paren-
tal, está cometendo um ato ilícito e causando danos não só ao menor, mas
também ao genitor que está sofrendo com a alienação, e, muitas vezes não
tem consciência de que está praticando um delito.
Portanto, o dano é, sem dúvidas, fator relevante para esse tipo de res-
ponsabilização, visto que, poderá haver responsabilidade sem culpa, mas
não poderá haver responsabilidade sem o dano. Além disso, a indenização
será fixada com o intuito de concertar, tanto quanto possível, a circuns-
tância discrepante, além de evita-las num momento futuro. (CAVALIE-
RI FILHO, 2010, P. 72)
Ou seja, não há uma finalidade de acréscimo patrimonial para a ví-
tima, mas sim de compensação pelos males suportados. Nesse sentido se
justifica a não incidência de imposto de renda sobre o valor recebido a
título de indenização por dano moral no Brasil – decisão consolidada pela
súmula 498 do Superior Tribunal de Justiça, do ano de 2012: não incide im-
posto de renda sobre a indenização por danos morais. (TARTUCE, 2013, p. 462)
Diferente do ressarcimento do dano material, que procura colocar a
vítima no estado anterior, recompondo o patrimônio afetado mediante a
aplicação da fórmula danos emergentes-lucros cessantes, a reparação do dano
moral objetiva apenas uma compensação, um consolo, sem mensurar a
dor. Em todas as demandas que envolvem danos morais, o juiz defronta-se
com o mesmo problema: a perplexidade ante a inexistência de critérios
uniformes e definidos para arbitrar um valor adequado. (GONÇALVES,
2010, p. 397)
Assim sendo, o magistrado deverá documentar os atos ou fatos que
sejam juridicamente relevantes para a sentença, e configuram a necessi-
dade da prestação jurisdicional do Estado, para aplicar o que se considera
como justo conforme a justiça, a cultura e o equilíbrio social. (FREITAS,
2012, p. 75) E também, caberá antecipação de tutela nas ações de repa-
ração do dano, e a intervenção judicial se dará mediante a imposição de
prestação de fazer e não fazer. (GONÇALVES, 2010, p. 408-409)
À causa deve ser dado o valor condizente com o pedido, não se admi-
tindo quantia elevada, de modo que impõe limites aos direitos de defesa

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

do réu, quando o autor é beneficiário da justiça gratuita. Deve-se ter em


mente que a estimativa do valor do dano, na petição inicial, não confere
certeza ao pedido, sendo a obrigação do réu de valor abstrato, que depen-
de de estimativa e de arbitramento judicial.
O autor que atribui à causa um valor superestimado, sem corres-
pondência com o pedido certo que formulou, comete abuso de direito
processual por embaraçar o exercício de defesa do adversário, onerando
com tal expediente o custo da taxa judiciária, que é condição de procedi-
bilidade recursal. Soberania do juiz de definir, com exclusividade e atento
ao interesse fiscal, o valor adequado. Impugnação acolhida, reduzindo-se
o valor pleiteado. (GONÇALVES, 2010, p. 408)
Na fixação da indenização por danos morais, o magistrado deve agir
com equidade analisando a extensão do dano, as condições socioeconô-
micas e culturais dos envolvidos, as condições psicológicas das partes e
o grau de culpa do agente, de terceiro ou da vítima com a finalidade de
reparar ou compensar o dano, punir ou disciplinar o alienante, ou, coibir
novas condutas por meio de uma indenização revestida de um caráter re-
paratório e de um caráter pedagógico ou disciplinador acessório. (TAR-
TUCE, 2013, p. 470-472)

1.1.1 Resistência dos tribunais e dificuldades de


aplicação

Em seu manuscrito de psiquiatria infantil da Faculdade de Medicina


e Cirurgia da Universidade de Columbia, em New York, EUA, o psi-
quiatra Richard Alan Gardner comenta sobre a resistência por parte dos
Tribunais quanto a aceitação da punição pela síndrome da alienação pa-
rental, e comprova em seu site mais de sessenta casos de reconhecimento
da síndrome com base em mais de cem publicações da autoria dos mais
diversos psiquiatras.
Ainda assim, existem controvérsias sobre os efeitos da alienação paren-
tal, que levantam discussões entre juristas sobre a razoabilidade e validade
da síndrome para que seja objeto de avaliação ao poder judiciário. É comum
que, por falta de adequada formação, os juízes de família façam vistas grossas
a situações que, se examinadas com mais cautela por meio, por exemplo,
de rigorosas pericias psicossociais, ordenaria as medidas necessárias para a
proteção do menor, impedindo que os casos se convertessem a distúrbios.
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Priscila M. P. Corrêa da Fonseca (2006, p. 162-168), enunciou em


seu artigo nomeado “Síndrome da Alienação Parental”, que:

Não se pode tolerar que, diante da presença de seus elementos


identificadores, não adote o julgador, com urgência máxima, as
providências adequadas, dentre as quais o exame psicológico e psi-
quiátrico das partes envolvidas. Uma vez apurado o intento do ge-
nitor alienante, insta o magistrado determinar a adoção de medidas
que permitam a aproximação da criança com o genitor alienado,
impedindo, assim, que o progenitor alienante obtenha sucesso no
procedimento já encetado.

As dificuldades enfrentadas pelo judiciário em estabelecer regras e


definições mais concisas para os casos de alienação parental acabam por
não invalidar, na prática, a proteção dos alienados. Tampouco impede
que a matéria seja discutida judicialmente, já que a consequência do
ato ilícito é a obrigação de indenizar, de reparar o dano. Cabe ao poder
judiciário abortar o desenvolvimento da alienação parental, impedin-
do que esta venha a se instalar e gerar consequências, como resposta
ao desenvolvimento da síndrome da alienação parental. (TARTUCE,
2013, p. 427)
A responsabilização civil visa evitar, e principalmente solucionar o
problema já existente, sendo um método eficaz. Conforme o prejuízo ge-
rado, a guarda também é um fator a ser decidido em juízo, por exemplo,
quando ocorre indução a falsa memória, quando a criança é levada a acre-
ditar que o outro responsável se comportou de modo inadequado, fazen-
do-a imaginar situações inexistentes como abusos sexuais. (FREITAS,
2012, p. 91)
Embora ainda não haja números precisos sobre o tema, alguns dados
ajudam a entender por que a mãe tem mais chance de se tornar alienado-
ra. A título exemplificativo, as Estatísticas de Registro Civil, divulgadas
em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em
87,3% dos casos são elas que detêm a guarda dos filhos em casos de se-
paração. Nesse contexto, ainda segundo o IBGE, cerca de 1/3 dos filhos
perde contato com os pais, sendo privados do afeto e do convívio com o
genitor ausente.

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Ao ter esse vínculo tão importante e necessário quebrado por danos


causados por um alienador, mister se faz a aplicação da responsabilidade
civil, para que de algum modo haja uma compensação pelos danos so-
fridos. Cabe ao genitor alienado buscar os meios legais para que cesse a
alienação, bem como pleitear judicialmente indenização em favor de si
próprio e também da criança/adolescente.
Ainda assim, é difícil mensurar o valor da dor, do tempo em que as
partes não tiveram contato, e mesmo tendo contato, do tempo gasto ten-
tando quebrar um paradigma imposto à criança/adolescente. As sanções
aplicadas pela lei, concomitante com a aplicação da responsabilidade civil
buscam evitar as práticas de alienação parental, e no caso de ocorrências,
inclusive em patamares mais elevados, quando em casos de efetiva síndro-
me da alienação parental, buscar indenização pelos danos sofridos, além
da punição do alienador. 
O problema da quantificação do dano moral tem preocupado o mun-
do jurídico, em virtude da proliferação de demandas, sem que existam
parâmetros seguros para a sua estimação. (GONÇALVES, 2010, p. 397)O
exame pericial terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial
e deverá conter a entrevista pessoal com as partes, exame de documentos
dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia
de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma
como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação
contra genitor.
É importante ressaltar que o laudo pericial será amplo e realizado por
profissional ou equipe multidisciplinar habilitados, de confiança, indicado
pela parte ou pelo juiz, a ser apresentado no prazo de 90 (noventa) dias,
acompanhado da indicação de eventuais medidas necessárias à preserva-
ção da integridade psicológica da criança ou adolescente que pode ou não
ser acatada pelo juiz, podendo ser prorrogado por autorização judicial ba-
seada em justificativa circunstanciada. (FREITAS, 2012, p. 75-79)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A alienação parental é uma matéria ainda recente no sistema jurídico


brasileiro, e ainda não se consolidou. Ainda assim, uma vez diagnosticada,
a síndrome causada faz da alienação parental um ato ilícito, e o alienador
deve ser responsabilizado – por ferir os direitos fundamentais do menor.
195
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Para isso, são medidas aplicáveis: a aplicação de advertências, atribui-


ção de sansões, tais como a fixação de indenização por responsabilidade
civil (quase sempre pecuniária), e perda da guarda ou suspensão do poder
familiar. Porem, sentenciar os casos de alienação parental podem ser desa-
fiadoras para os magistrados e juristas em geral.
Isso acontece em razão das dificuldades em quantificar os prejuízos
psicológicos da vítima, além da ausência de definições mais concretas que
estabeleçam os casos que se enquadram em síndrome da alienação paren-
tal. É evidente a dificuldade quanto a identificação do fato gerador e do
caráter da responsabilização – disciplinador, pedagogo, punitivo, repara-
tório ou acessório.
Além disso, a indenização muitas vezes se ampara no dano, já que
não há presença de culpa do agente. E nesse sentido, a fixação da pena
exige a multidisciplinariedade, de modo que o judiciário recorre a outros
profissionais (como é o caso das perícias por psicólogos) e consideram as
habilidades cognitivas, maturidade emocional, gênero, temperamento e
idade do menor.
O magistrado deverá, também, observar a extensão do dano, as con-
dições socioeconômicas e culturais, as condições psicológicas e o grau de
culpa – quando houver – ao fixar a indenização. Tais critérios são essen-
ciais para que o magistrado tenha maior precisão ao fixar a sentença, além
de estabelecer decisões cada vez mais uniformes.
Toda criança e/ou adolescente tem direito a um ambiente saudável
para o seu desenvolvimento, e os danos causados pela alienação paren-
tal em níveis mais graves podem ter consequências irreversíveis a sani-
dade psicológica, e até mesmo física. A lei 12.318 de 2010 marcou uma
conquista para os interessados na matéria em questão, ao reconhecer os
direitos dos menores, e intenta preservar a segurança, a estabilidade e os
direitos constitucionais a dignidade.

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199
EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR
COMO INSTRUMENTO DE
AMPLIAÇÃO DA CAPACIDADE
DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO
FUNDAMENTAL AO ACESSO À
JUSTIÇA
Milena do Nascimento Cruz 36

INTRODUÇÃO

A educação é por todos considerada uma arma de empoderamento do


ser humano, na medida em que proporciona um desenvolvimento intelec-
tual, social, cultural, econômico e em muitos outros aspectos. Nesse sen-
tido é que se insere a urgência de ampliação do alcance e aprimoramento
não somente de uma educação básica, mas também uma educação jurídi-
ca popular, direcionada a grupos sociais menos favorecidos e muitas vezes
abandonados pelo próprio Estado, a fim de proporcionar a eles acesso ao
conhecimento de direitos fundamentais que também lhe pertencem. Essa
forma de educação jurídica pode ser analisada com base na relevância con-
sistente no conhecimento dos direitos fundamentais e, sobretudo, como

36 Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós-Graduanda em Advocacia


Extrajudicial na Faculdade Legale e Advogada inscrita na OAB/BA. Pesquisadora voluntária
em Direitos Fundamentais e Acesso à Justiça na Liga Acadêmica de Estudos Jurídicos da
Bahia.

200
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

um instrumento capaz de ampliar a efetividade do acesso à justiça (um dos


direitos fundamentais mais básicos previstos na Carta Magna brasileira).
O problema proposto tem como questionamento se a educação jurí-
dica popular pode ser considerada um instrumento apto a ampliar a capa-
cidade de efetivação do direito ao acesso à justiça. O objetivo do presente
trabalho, portanto, é relacionar a educação jurídica popular com a efetiva-
ção do direito fundamental ao acesso à justiça, utilizando como premissa
básica a importância/dever de todo cidadão (principalmente os mais po-
bres e vulneráveis) conhecer os direitos fundamentais existentes no orde-
namento jurídico pátrio e saber que, independentemente de sua posição
na sociedade, eles também são sujeitos de direito que merecem respeito,
quer seja pelo Estado quer seja por particulares.
Noutras palavras, a ampliação da capacidade de efetivação do direito
fundamental ao acesso à justiça poderá ocorrer em virtude da dissemina-
ção do conhecimento de direitos básicos (fundamentais), através de uma
educação jurídica popular acessível a uma parcela da população que não
tem acesso sequer ao ensino básico, quanto mais a essa vertente educa-
cional e, por isso, acabam sendo prejudicadas no momento de efetivar e
garantir o respeito aos seus direitos. Em uma sociedade desigual como a
brasileira, ações que objetivam levar o conhecimento e a educação a pes-
soas necessitadas constituem um dos primeiros passos rumo à redução
gradual dessas desigualdades.
O contexto social ao qual o tema em discussão se insere é de um Bra-
sil marcado por reiteradas situações de desrespeito a direitos fundamen-
tais por parte de particulares, grandes empresas e até mesmo pelo próprio
Estado. Associado a isso, tem-se a urgente necessidade de proporcionar a
disseminação do conhecimento jurídico básico (pelo menos dos direitos
fundamentais) às pessoas carentes e vulneráveis, a fim de capacitá-las a lu-
tar pelos seus direitos, efetivando, de fato, um acesso à justiça amplo, e não
meramente formal (somente acesso ao judiciário). Isso porque situações
em que há algum tipo de privação, carência ou exclusão acabam funcio-
nando como motivação para a reivindicação de direitos e, até mesmo, a
criação de novos direitos em função das necessidades do ser humano, mo-
tivo pelo qual o conhecimento jurídico básico proporcionaria uma maior
capacidade de discussão e reivindicação de direitos diante das necessida-
des, conflitos e demandas dessa população carente e tão necessitada.

201
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O Trabalho foi dividido em introdução e dois tópicos subsequentes.


O primeiro deles abordará um breve estudo de aspectos conceituais dos
temas educação jurídica popular e direito fundamental ao acesso à justiça,
utilizando-se como técnica de pesquisa a revisão bibliográfica (de livros,
doutrinas e artigos). O segundo tópico, por sua vez, terá como tema a
relação existente entre a educação jurídica popular e a ampliação da capa-
cidade de efetivação do acesso à justiça, para, então se chegar às considera-
ções finais propostas pela temática abordada.

1. EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR E O ACESSO À


JUSTIÇA

A conceituação, ainda que breve, do que venha a ser uma educação


jurídica popular é o primeiro passo a ser abordado na elucidação do tema
proposto. Por conseguinte, faz-se necessário compreender o conceito de
acesso à justiça (em sua perspectiva mais ampla) enquanto um direito fun-
damental, e em qual contexto social, econômico e político ele está inseri-
do no ordenamento jurídico brasileiro.

1.1 Educação Jurídica Popular: Breve Conceito

A educação jurídica popular constitui um instrumento de empode-


ramento e exercício da cidadania por parte de grupos sociais marginali-
zados, proporcionando mais do que uma simples orientação jurídica ou
atuação de entidades e profissionais na resolução de um problema pontual.
Seu objetivo maior é ensinar a uma parcela da população mais carente e
necessitada (em diversos aspectos) que elas têm voz, espaço e, acima de
tudo, direitos. É, sobretudo, mostrar que os direitos previstos na Consti-
tuição Federal não se direcionam apenas aos integrantes dos grandes gru-
pos detentores de poder econômico ou qualquer outro tipo de privilégio
social, econômico e político, mas sim a todo brasileiro, demonstrando a
importância de se conhecer direitos em uma democracia como o Brasil.
Diante dessa problemática e para que o Brasil possa trilhar um cami-
nho rumo à real efetivação do direito ao acesso à justiça e demais direitos
fundamentais, superando a intensa desigualdade que há em sua popula-
ção, é fundamental a adoção, ainda que gradual, de ações que visem a

202
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

uma educação jurídica popular, democratizando o acesso à informação de


direitos, na medida em que esta modalidade de educação:

propõe a construção da cidadania e a formação de sujeitos de di-


reitos [...] Fomenta a participação popular nos diversos espaços de
decisão e construção do direito a favor da comunidade, sendo a
cidadania, democracia e a justiça valores básicos. (BEZERRA e
BICHARA, 2010, P.7/8).

Sua relevância está no fato de proporcionar a disseminação de um


conhecimento jurídico acessível e menos formalista do que, por exemplo,
em um ambiente acadêmico, proporcionando um conhecimento capaz
de alcançar parcela considerável da população brasileira marginalizada pe-
los diversos setores. É cediço que, em virtude das intensas desigualdades
existentes, o número de pessoas que conseguem ter acesso a um ensino
superior e até mesmo a uma educação básica de qualidade ainda é muito
reduzido, motivo pelo qual a informação e o conhecimento mais aprimo-
rado em relação a direitos e demais situações que envolvam o exercício
da cidadania e da democracia restam extremamente prejudicados, impli-
cando em um ciclo de desinformação, marginalidade social e desconheci-
mento de direitos básicos.
Pode-se falar, portanto, em uma concepção na qual “o conhecimento
jurídico consiste na capacidade humana de reconhecimento de direitos e
obrigações de forma integrada à sociedade, sendo requisito essencial para
o exercício da cidadania.” (FERREIRA, 2016, p. 69). Educação jurídica
popular consiste, então, em um instrumento de emancipação de uma po-
pulação carente e vulnerável, capaz de proporcionar ainda o exercício da
cidadania e a efetiva participação democrática desses sujeitos.

1.2 Acesso à Justiça: um Direito Fundamental na


Constituição Federal de 1988

Superados o conceito e objetivos da educação jurídica popular, mos-


tra-se imprescindível o estudo do direito ao acesso à justiça. O acesso à
justiça é tido no Brasil como um direito fundamental, constante no rol
do art. 5º da Lei Maior, inserido no Capítulo I – “Dos Direitos e Deveres

203
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Individuais e Coletivos”, que faz parte do Título II – Dos Direitos e Ga-


rantias Fundamentais. Pode, ainda, ser considerado um direito humano
fundamental, conforme consta no artigo 8º da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, segundo o qual “todo ser humano tem direito a rece-
ber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que
violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela consti-
tuição ou pela lei”.
Todavia, há muito tempo a ideia de ter tal direito um aspecto mera-
mente processual foi superada. Ou seja, parte-se hoje de uma concepção
ampla e não mais restrita de que o acesso à justiça se limitaria ao acesso
a um órgão julgador. Segundo obra clássica sobre o tema, “a expressão
“acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para
determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico” (CAPPELLET-
TI; GARTH, 1988, P. 07).
A primeira dessas finalidades é a que interessa ao tema proposto nes-
se artigo, correspondendo à ideia de que “o sistema deve ser igualmente
acessível a todos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, P. 07). Mas por que
todo esse debate é relevante tanto para o mundo jurídico quanto para a
sociedade como um todo? Por que é urgente a necessidade de se entender
que os direitos precisam ser efetivos, e não meramente simbólicos, que
precisam ser efetivados de forma plena, e não apenas escritos e positivados
na Constituição ou em normas infraconstitucionais.
Toda essa discussão se faz necessária quando inserida em um contexto
de desigualdades social, econômica, educacional, cultural e tantas outras,
como há no Brasil. Esse cenário evidencia que há uma incompatibilida-
de entre a realidade do país (quanto às condições de sua população) e a
afirmação de efetividade dos direitos previstos na Constituição Federal,
a exemplo do direito ao acesso à justiça. O que ocorre é que as desigual-
dades há muito existentes acabam impossibilitando uma real efetividade
desse direito (e de tantos outros). Nas palavras de Boaventura de Souza
Santos (1986):

(...) a discriminação social no acesso à justiça é um fenômeno mui-


to mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já que, para
além das condicionantes econômicas, sempre mais óbvias, envolve
condicionantes sociais e culturais resultantes de processos de socia-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

lização e de interiorização de valores dominantes muito difíceis de


transformar. (SANTOS, 1986, p. 21-22)

A problemática ora trazida encontra fundamento em um contexto


histórico de marginalização de grande parcela da população brasileira em
detrimento do crescimento exacerbado de grandes empresas e de grandes
grupos detentores de poder econômico. Ou seja, a acentuação da desi-
gualdade econômica, consequentemente, acaba gerando desigualdades
sociais em diversas concepções, podendo citar a educacional, cultural, in-
formativo, entre tantas outras formas. E toda essa situação de disparidade
entre os cidadãos aumenta a responsabilidade do Estado em fazer valer
as disposições e princípios de sua própria Constituição Federal, afinal de
contas é função do Estado promover o tratamento isonômico entre as par-
tes, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata
medida de suas desigualdades.
Aprofundando um pouco mais na temática, no contexto brasileiro de
um Estado Democrático de Direito, conforme preceitua o artigo 1º da Car-
ta Magna, o país está submetido aos valores intrínsecos da democracia que,
deverão estar presentes, segundo José Afonso da Silva (2002, p. 119), em
“todos os elementos constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem
jurídica”. Ademais, os princípios democráticos e de cidadania deverão tam-
bém ser encarados pelos operadores do Direito sob o prisma de serem ins-
trumentos aptos a “concretizar as exigências de um Estado de justiça social,
fundado na dignidade da pessoa humana” (SILVA, 2002, p. 120).
Noutras palavras, conceitos como justiça social, cidadania, direitos
fundamentais, acesso à justiça e democracia, quando inseridos no contex-
to social e político de um Estado Democrático de Direito, enfatizam que
esse Estado deverá ter como missão a concretização da justiça e da igualda-
de entre sua população, a fim de concretizar os preceitos constitucionais.
Todavia, para que seja possível a concretização desses preceitos é pre-
ciso que esse Estado adote não somente uma postura direcionada à erradi-
cação da pobreza e demais políticas públicas de igualdade, mas, também,
é necessário o estudo e implantação de políticas públicas que promovam a
efetivação de direitos socias (e fundamentais), a exemplo da saúde, mora-
dia, educação, alimentação, entre outros, podendo ser inserido aqui uma
nova vertente educacional, qual seja, a educação jurídica popular. Isso

205
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

porque é urgente que grande parcela da população brasileira (que vive em


situação de pobreza e vulnerabilidade), sobretudo conheça seus direitos,
saiba identificar sua violação e, ao menos, saiba quem procurar para lhe
auxiliar. Todavia, é cediço que o Estado muitas vezes falha na prestação de
serviços básicos, obrigando que a população, de forma corriqueira, tenha
que se valer do Poder Judiciário para garantir a efetividade de um direito
fundamental. É nesse contexto que se ressalta a importância do direito ao
acesso à justiça.
De forma resumida e assertiva:

o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito


fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema
jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas
proclamar os direitos de todos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988,
P. 11).

Nesta senda, a realidade brasileira impõe, cada vez mais, a necessidade


de políticas públicas capazes de promover a igualdade entre os sujeitos e a
garantia de direitos básicos presentes na Lei Maior. Não sendo concreti-
zadas tais ações, o indivíduo deverá possuir meios aptos a reivindicar seus
direitos no órgão julgador (Poder Judiciário), valendo-se, então, de outro
direito fundamental, qual seja, o do acesso à justiça. Para que isso ocorra
é preciso que esse indivíduo primeiramente conheça os seus direitos, para
depois ter condições reais de identificar quando não estão sendo respeita-
dos e o que fazer para restabelecê-los e efetivá-los. Uma vez que o cidadão
sequer sabe quais são os seus direitos fundamentais, a efetividade do direi-
to ao acesso à justiça e de demais direitos restará prejudicada. É diante de
tamanha problemática que o tema ora proposto se mostra urgente e rele-
vante quando se fala em efetividade de direitos fundamentais, incluindo o
direito ao acesso à justiça.
Após concluir pela importância do acesso à justiça para a efetivação
de direitos é preciso entender quais obstáculos no âmbito da educação
impedem a concretização desse acesso em sua forma mais plena e efetiva.
Muitos juristas destacam barreiras como custas processuais, honorários
advocatícios, a burocracia em torno do universo jurídico, a morosidade da
justiça, a linguagem excessivamente rebuscada e técnica, etc. Entretanto,

206
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

o que mais interessa a esse trabalho é o desconhecimento de grande parce-


la da sociedade acerca dos direitos que possui.

2. EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR E A AMPLIAÇÃO


DA CAPACIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO
FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA

Contrariando a ideia conceitual restrita de acesso à justiça (em sua


concepção meramente formal de acesso a um órgão julgador), é impres-
cindível se debruçar sobre o que talvez possa ser chamado de primeiro
obstáculo à efetivação do acesso à justiça: o desconhecimento de muitos
indivíduos quanto aos direitos básicos que possuem. Mais ainda, pode-se
falar na ausência de uma educação jurídica popular capaz de levar a essas
parcela da sociedade o mínimo de conhecimento de direitos. Isso porque
“o problema do acesso à justiça começa no plano educacional” (SOUZA,
2013, P. 18), na medida em que o conhecimento dos direitos tem como
caminho inicial a informação. Em conseqüência desse primeiro obstácu-
lo, têm-se duas implicações: a primeira delas corresponde à impossibilida-
de do cidadão que não conhece seus direitos identificar alguma situação
de violação desses direitos e, assim, buscar ajuda para restabelecê-los. A
segunda implicação vai mais além, o sujeito até procura um meio de de-
fender um direito, mas não entende de fato todo o processo e não com-
preende como aquele mecanismo ou procedimento poderá restabelecer
um direito ora violado.
Assim, a plena efetividade do direito ao acesso à justiça se mostra
prejudicada diante dessas duas implicações, sendo necessário, portanto,
trabalhar uma educação jurídica popular que seja capaz de formar cida-
dãos empoderados, conscientes e conhecedores dos seus direitos, para que
sejam capazes não somente de ter ciência da existência de um direito,
mas também identificar uma situação de violação e desrespeito, procurar
o meio correto de solucionar o problema, compreender esse processo e
fazer parte do restabelecimento desse direito. Vale destacar que o termo
“processo” aqui utilizado não quer corresponder ao processo judicial, mas
sim ao processo enquanto um procedimento, uma etapa, que não neces-
sariamente ocorrerá mediante ação judicial, pois não se quer afirmar que
todos precisam conhecer normas processuais e suas nuances, mas sim que

207
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

essas pessoas precisam saber da existência de procedimentos capazes de


solucionar um conflito, quer seja judicial ou administrativamente.
Quando se busca compreender a relação existente entre a edu-
cação jurídica popular e a efetividade do direito ao acesso à justiça é
preciso entender que “efetividade corresponde a uma “completa igual-
dade de armas” (CAPPELLETTI E GARTH, 1988, P. 13), mas que
essa igualdade perfeita não passa de uma utopia, na medida em que
“as diferenças entre as partes não podem jamais ser completamente
erradicadas” (CAPPELLETTI E GARTH, 1988, P. 13). Para os alu-
didos autores, a chamada “capacidade jurídica” guarda relação com os
diferentes níveis de educação, meio e status social dos cidadãos. Essa
capacidade possui ainda relação direta com a “determinação da acessi-
bilidade da justiça”. A primeira e principal barreira então corresponde
à “questão de reconhecer a existência de um direito juridicamente exi-
gível” (CAPPELLETTI E GARTH, 1988, P. 20).
Partindo dessa premissa de utopia quanto à paridade de armas entre as
partes de um conflito é que se encaixa a necessidade de levar até a popu-
lação mais carente o conhecimento dos direitos fundamentais através de
uma educação jurídica popular, para que, pelo menos a paridade de armas
relativa ao conhecimento do direito ora pleiteado possa ser alcançada em
longo prazo. Isso porque os direitos fundamentais correspondem a uma
gama de direitos básicos e imprescindíveis à manutenção de um Estado
Democrático de Direito como o Brasil, e, em decorrência de sua rele-
vância, são aplicáveis a praticamente todos os ramos da ciência jurídica,
nas mais variadas situações do cotidiano, e é por isso que toda a sociedade
precisa conhecê-los.
Quando se fala em garantia de direitos fundamentais em uma
sociedade desigual como a brasileira, é preciso que os operadores do
Direito, particulares e o próprio Estado ampliem sua visão, a fim de
compreender e conhecer as reais necessidades e reivindicações daque-
les que são os beneficiários de tais direitos. Noutras palavras, a posi-
tivação dos direitos fundamentais na atual Constituição brasileira se
deu após um processo histórico lento e gradual de reivindicações e
lutas sociais, influenciados por outras constituições de países europeus.
Todavia, a dinamicidade em torno do Direito requer uma constante e
diária análise das mudanças sociais, a fim de que a ciência jurídica e os

208
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

direitos em espécie acompanhem esse processo e a sociedade evolua,


não sendo possível mais serem aceitas quaisquer tentativas de supressão
de direitos fundamentais já conquistados.
Nas palavras de Wolkmer (2004):

Tomando em conta a contextualização do cenário excludente bra-


sileiro, há de se convir a tônica das reivindicações e das demandas,
legitimadas pelos movimentos coletivos, pelas múltiplas classes
populares e comunidades intermediárias, incidem em direitos à
vida, ou seja, direitos básicos de existência e de vivência com dig-
nidade”. (...) Trata-se de direitos relacionados às necessidades sem
as quais não é possível ‘viver como gente’: trabalho, remuneração
suficiente, alimentação, roupa, saúde, condições infra-estruturais
(água, luz, etc), educação, lazer, repouso, férias etc. (WOLKMER,
2004, p. 89)

Por outro lado, as reivindicações humanas quanto a direitos e a efe-


tivação do acesso à justiça como meio de restabelecer um direito violado
só poderão ocorrer caso todos os sujeitos tenham um mínimo conheci-
mento dos direitos já existentes e constitucionalmente positivados, pois
de nada adiantaria se falar em efetividade do acesso à justiça se grande
parcela da sociedade brasileira desconhece os seus direitos. Nesse con-
texto é que se relaciona a educação jurídica popular com o acesso à jus-
tiça, funcionando a primeira como um instrumento capaz de ampliar a
capacidade de efetivação do acesso à justiça, uma vez que proporcionaria
a disseminação de informação e o conhecimento de direitos básicos de
todo e qualquer cidadão.
A implementação de um sistema de educação jurídica popular deve
ser encarado como uma proposta a ser executada não somente por insti-
tuições privadas, ONGs, projetos sociais e comunitários, mas, também,
pelo Estado. Isso porque são funções deste cumprir e efetivar os direitos
constitucionalmente previstos, dentre eles o direito à educação, não se
restringindo apenas à educação básica. Todavia, essa temática poderá ser
proposta em outro trabalho, visto que o objetivo principal deste artigo é
relacionar a educação jurídica popular com o acesso à justiça e a possi-
bilidade de considerá-la um meio apto à ampliação da efetividade desse

209
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

direito fundamental que, acima de tudo, pode ser considerado um instru-


mento garantidor de demais direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo do conceito de educação jurídica popular e do direito ao


acesso à justiça (em sua concepção mais ampla) enquanto direito funda-
mental previsto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, pode-se
concluir pela ideia de que o primeiro pode ser considerado um instru-
mento educacional, social e jurídico de ampliação da capacidade de efe-
tivação do segundo. Tal posicionamento se fundamenta no fato de que
em um Estado Democrático de Direito como o Brasil, há uma busca pela
efetividade de direitos e, consequentemente, efetividade de um acesso à
justiça amplo, e não somente a concretização de um acesso restrito a um
órgão julgador como o Judiciário. Portanto, para isso é imprescindível que
todo e qualquer cidadão conheça os seus direitos (na teoria e na prática,
reconhecendo suas aplicações no cotidiano e situações de violação) e os
mecanismos de reivindicação.
Nesse contexto, destaca-se a relevância do tema proposto, pois se di-
reciona a necessidade de parcela da população brasileira mais carente (e
que é o público da educação jurídica popular, na sua maioria) conhecer os
direitos fundamentais elencados no ordenamento jurídico pátrio, uma vez
que constituem direitos básicos imprescindíveis à concretização da De-
mocracia e da dignidade da pessoa humana, além de constituírem um rol
de direitos aplicáveis a um número extenso de situações no dia a dia em
sociedade.
A educação jurídica popular poderá ser considerada, em longo pra-
zo, uma alternativa e um instrumento capaz de promover a ampliação da
capacidade de efetivação do acesso à justiça, na medida em que proporcio-
nará à população brasileira mais necessitada e vulnerável o conhecimento
dos seus direitos fundamentais, contribuindo, ainda, para a construção de
uma consciência e capacidade de identificar situações de desrespeito a es-
ses direitos e o que fazer para reivindicá-los. Assim, será possível falar em
um efetivo direito ao acesso à justiça, superando-se a ilusão de que apenas
se concretizará quando em um processo judicial.

210
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Conhecimento de direitos e educação jurídica popular constituem


duas importantes ferramentas quando se pretende alcançar a efetividade de
um direito fundamental, principalmente o direito ao acesso à justiça en-
quanto instrumento capaz de efetivar demais direitos. Não há que se falar
em acesso efetivo à justiça sem o real conhecimento dos direitos básicos
por parte de todo cidadão brasileiro, pois, nesse cenário de desconheci-
mento, desinformação e desigualdades não há, sequer, que se falar em um
direito ao acesso à justiça concreto e efetivo.

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212
RACISMO NAS MÍDIAS SOCIAIS: A
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SUAS
IMPLICAÇÕES NA MANUTENÇÃO DE
UMA CULTURA DISCRIMINATÓRIA
Maria Clara Farias de Lira37

1. INTRODUÇÃO

Desde a fundação da estrutura social brasileira, a diferenciação e o


preconceito racial se fazem presentes, intrinsecamente relacionado com a
própria estrutura social brasileira. Esta constituição inicia com a diferen-
ciação do português colonizador e europeu do ameríndio daqui nativo e
presente nestas terras. E tal distinção racial logo esbarra na missão dos je-
suítas que buscavam aumentar o número de fiéis para a igreja católica que
se encontrava imersa na crise do protestantismo. Após isto e a chegada de
um maior contingente de escravos africanos devido ao fortalecimento do
tráfico negreiro cerca de três décadas depois da colonização, inicia-se de
modo mais forte o enraizamento da cultura de que a cor da pele determi-
nava uma raça “inferior” e esta deveria ser escravizada.
Mesmo com os avanços de mais de 500 anos após a colonização e as
grandes conquistas sociais e legislativas do movimento negro no Brasil,
resquícios dessa cultura fincada à raiz social brasileira refletem até os dias
de hoje na construção social do país. Aliado a expressão dessa caracterís-
tica social brasileira, que é marcada pela discriminação racial, essencial-

37 Graduada em Direito pelo Centro Universitário Tiradentes/AL.

213
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

mente em sua forma cordial e velada, soma-se o advento das mídias sociais
que enaltecem e facilitam o direito à liberdade de expressão e associa-se
ao anonimato que promove a omissão da identificação social do pensa-
mento do sujeito associado à sua identidade, e promovem o aparecimento
público destas arestas discriminatórias, ainda vigente no pensar público de
grande parte dos cidadãos e ainda omisso em sua forma estrutural.
Este artigo tem como objetivo analisar como o racismo estrutural é
expresso nas mídias sociais e os instrumentos jurídicos que versam acerca
deste processo de disseminação do preconceito étnico-racial por meio das
mídias sociais.

2. A CULTURA DISCRIMINATÓRIA DO RACISMO

As diversas definições do conceito de Racismo são frutos da histó-


ria e de acordo com Kabengele Munanga (2014, p. 07), o racismo “é
geralmente abordado a partir da raça, dentro da extrema variedade das
possíveis relações existentes entre as duas noções”. Partindo dessa ótica, é
mister salientar que é importante analisarmos o contexto histórico-social
de cada local do mundo, para então identificarmos as raízes do preconcei-
to racial na sociedade brasileira.
Ao decorrer da evolução das sociedades democráticas, as práticas de
condutas de viés racista passaram a ser amplamente condenadas, no entan-
to, tais práticas foram tomando novos contornos, de modo que se torna-
ram menos tradicionais e evidentes.
A evolução legislativa do Brasil no que tange à problemática do Ra-
cismo, apesar de visível, ainda é lenta e gradativa. Uma das significativas
conquistas jurídicas alcançadas está pautada na Lei nº 7.716/ 1989, tam-
bém intitulada de Lei de Caó. A referida Lei aduz em seu art. 1º que: “Se-
rão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação
ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”.
Diante da inquietação e luta coerente de uma parte dessa população,
surge o Estatuto da igualdade racial no Brasil, no ano de 2010; e, cou-
be ainda ao estatuto criar o Sistema Nacional de Promoção da igualdade
Racial (Sinapir) para servir como órgão articulador de propostas junto ao
poder público federal vislumbrando atenuar as desigualdades étnicas no
Brasil (ARAÚJO, 2017,p.1).

214
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Esse processo denota para além de todo seu escopo, um processo de


reconhecimento e o fortalecimento da identidade negra brasileira, ao pas-
so que valoriza as suas inestimáveis contribuições para a formação cultu-
ral, econômica e estrutural do país ao passo que discorre sobre aspectos
como liberdade de culto e trabalho.
Sobre o movimento negro:

[...] o fato é que o movimento negro fez da denúncia do mito da


democracia racial seu mote mobilizador central durante todo o
período das décadas de 1970 a 90. Essa centralidade renderá fru-
tos e reações, seja por meio de políticas públicas e legislação, seja
por meio de novas teorias acadêmicas sobre a “democracia racial”.
(Guimarães, 2001, p. 159).

Este contexto sugere ainda mais a existência de um racismo estrutu-


ral, invisível, que mesmo após a criação de uma legislação vigente acerca
de todo este processo, persiste nas relações sociais e que afetam direta-
mente a vida dos brasileiros que convivem com uma herança desleal que
desequipara seres humanos por aspectos meramente fenotípicos.
A diferença mais marcante entre o racismo e a injúria, é que o racismo
se refere a uma forma mais ampla de discriminação, sendo esta direciona-
da a uma coletividade, ou seja, abrangendo uma quantidade indetermina-
da de indivíduos. Não adentraremos a respeito das questões conceituais,
mas vale salientar que, em ambos os casos, é primordial que a vítima tenha
seus direitos garantidos em sua plenitude e que o autor do delito seja devi-
damente penalizado pelo ato.

3. A LIBERDADE, SEUS LIMITES E AS MÍDIAS SOCIAIS

A liberdade sob uma ótica jurídica, pode ser interpretada e assentida


de modo permissivo, no sentido de que, é atribuído ao sujeito de direi-
to certas faculdades de ação decorrentes de uma norma jurídica, ou seja,
existe a opção da utilização de seu exercício desde que o mesmo esteja em
conformidade com os ditames legais.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, que tem como
marco introdutório a ruptura com os paradigmas impostos pelo regime
ditatorial militar vigente à época o qual restringia as liberdades individuais

215
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

e assim, por conseguinte, esbarrava diretamente em diversos direitos ine-


rentes a liberdade do cidadão, resta cristalina a preocupação do legislador
para assegurar instrumentos efetivos de balizas para a construção e ma-
nutenção do Estado Democrático de Direito, bem como a justiça social,
tendo em vista que por um período deveras pesaroso da história do país, a
investidura de autodeterminação fora suprimida do indivíduo por diversos
meios de censura.
De acordo com o que aduz o doutrinador Dirley da Cunha Júnior
(2014, p. 543):

A liberdade de expressão de atividade intelectual, artística, cien-


tífica e de comunicação tem fundamento na liberdade de pensa-
mento, da qual é uma decorrência lógica. Enquanto o direito de
opinião consiste na liberdade de manifestação do pensamento, ou
seja, de externar juízos, conceitos, convicções e conclusões sobre
alguma coisa.

Portanto, é evidente que, independente da espécie o objeto jurídico


de tutela é o mesmo, a liberdade, estando sempre sob a égide de proteção
do direito de autodeterminação do indivíduo e da concretude de seus di-
reitos de modo eficaz e eficiente.
A denominada Liberdade de Opinião ou de Pensamento encontra
arrimo no artigo 5º, IV, da Constituição Federal de 1988. Urge salien-
tar que, ao final da redação do inciso IV do dispositivo legal supracitado,
tem-se a vedação do anonimato. Isto se deve ao fato de que a Constituição
busca harmonizar o direito de liberdade de opinião com outros direitos
contidos em seu arcabouço jurídico, de modo a preservá-los para que não
sejam suprimidos pela livre manifestação de pensamentos.
Como preconiza o autor Alexy (2011, p. 524-525) em sua obra inti-
tulada “ Teoria dos Direitos Fundamentais”, os direitos fundamentais tem
suas noções elementares respaldadas no seguinte fator:

(...) as normas de direitos fundamentais contêm não apenas direi-


tos subjetivos de defesa do indivíduo contra o Estado, elas repre-
sentam também uma ordem objetiva de valores, que vale como
decisão constitucional fundamental para todos os ramos do direito,

216
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e que fornece diretrizes e impulsos para a legislação, a Administra-


ção e a jurisprudência.

Diante do explicitado, as balizas estruturais dos direitos fundamen-


tais estão pautadas pela preservação de direitos essenciais presente em um
Estado Democrático de Direito. Assim, todo direito fundamental detém
uma proteção, estando sujeito a freios em relação a proteção dada.
Com todo o impacto causado pela era digital, é nítida a velocidade
de propagação das informações e ao amplo espectro que estas adquirem,
há uma forte democratização de informações e acesso a conteúdos produ-
zidos pelos próprios usuários dessas novas tecnologias, contexto este que
difere do predominante à época de ascendência do rádio e da televisão.
Uma das principais problemáticas enfrentadas na era digital versa
acerca da questão do anonimato, frise-se, vedado constitucionalmente, e
sobre o direito de liberdade de expressão.
Isto se dá pelo fato de que vários usuários se valem da possibilidade da
não identificado nas mídias sociais e acabam exercendo seu direito de livre
manifestação de forma arbitrária, ferindo consequentemente, o direito de
outros indivíduos, bem com, incorrendo muitas vezes no cometimento
de delitos quando da ocorrência de ofensas.
Anterior à Era Digital, caracterizada pelo progresso da Internet, bem
como pelo surgimento das Redes Sociais, que se constituem como uma
“espécie” do gênero Mídia Social, a indústria audiovisual e dramatúrgica
era uma das fontes responsável pela disseminação de informações e de
entretenimento de maior alcance à população.
Destarte, ao longo dos anos, o racismo brasileiro era retratado como
característica negativa do antagonista, por exemplo, e não como um fa-
tor ainda preponderante em nossa sociedade, de modo que, as telenovelas
não tratavam da questão racial de forma direta, mas sim perpetuavam a
falsa ideia de uma democracia racial, bem como repercutiam com certa
pertinácia questões envolvendo a ideologia de branqueamento da cultura
brasileira, quanto à escala de atores e atrizes negros em papéis de menor
destaque. (ARAÚJO, 2008, p. 1-3)
De acordo com Stein (2018, p.46), este ambiente anônimo promove
um tipo de autorização à expressão do ódio de seus usuários acerca dos mais
diversos assuntos. A exemplificação da magnitude da presença desses dis-

217
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

cursos de ódio pode ser percebida pela quantidade de denúncias à Central


Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos (Safernet) que alcançam o
surpreendente número de 4 milhões, em dez anos, ultrapassando a marca
das 130 mil denúncias somente no ano de 2015 (STEIN,2018, p.46).
Se coadunarmos os aspectos já discutidos, a presença dos discursos
de ódio nas mídias sociais torna-se evidente a presença do racismo como
tema, ou motivação, central em uma grande quantidade destes atos dis-
criminatórios.
O discurso de ódio é definido como qualquer expressão que desva-
lorize, menospreze, desqualifique e inferioriza os indivíduos. Sendo as-
sim uma situação de desrespeito social (Silveira, 2007, p.80). Este aspecto
entra em choque direto com um dos pilares fundamentais da sociedade
democrática que é a liberdade de expressão e a liberdade de pensamento.
Deste modo, constitui-se então um grande paradoxo e uma linha
tênue e complexa que restringe a liberdade de expressão ao direito fun-
damental a não discriminação, que constitui uma das bases da igualdade
política. Este aspecto já fora abordado por Kevin Boyle (2001, p.157-160)
que desvincula a necessidade da questão racial para a existência do discur-
so de ódio, explicitando que o mesmo atravessa as barreiras das diferenças
étnicas e aponta para outros aspectos que se relacionam com a diversidade
e a pluralidade de características, condições e pensamentos.
Este aspecto une-se fortemente ao advento da internet há algumas
décadas que traz consigo aspectos particulares relacionados à liberdade de
expressão e facilidade em exercê-la, como explicita Silva (2011,p.445):

A internet revolucionou as maneiras de o ser humano se comuni-


car. Essa inovadora tecnologia da informação, cujo diferencial, é a
extrema rapidez e a vasta amplitude de suas operações, permite ao
homem externar seus pensamentos, suas opiniões, suas escolhas, ex-
ternar a si próprio das mais variadas formas e a um largo espectro de
outros homens que, como ele, também se projetam no ciberespaço.

Deste modo, por possuir esta particularidade de amplo espectro de


possibilidades para a expressão de opiniões e pelo seu vasto alcance, a in-
ternet tornou-se a ferramenta no qual o estabelecimento desta linha entre
liberdade de expressão e respeito à igualdade democrática tornou-se ainda
mais tênue, sendo assim também ainda mais explícita a sua ruptura.

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É neste aspecto que se encontra evidente, em prática, a factualização


do discurso de ódio presente essencialmente nas redes sociais, onde os
usuários podem exercer sua liberdade de expressão sem qualquer regula-
ção jurídica prévia. Essa factualização se manifesta essencialmente a partir
da expressão de aversão a grupos socialmente minoritários, ou socialmen-
te marginalizados.
Nesse contexto, retoma-se a importância da compreensão do fe-
nômeno e do conceito de Violência simbólica explicitado por Bourdieu
(1989,p.265), que a define como um tipo de violência que é originária dos
símbolos e signos da linguagem (BOURDIEU, 1989,p.265).
Esse conceito torna-se deveras importante por construir a forma de
violência que é prática no contexto do universo cibernético, visto que a
violência do discurso de ódio dar-se-á a partir da significação destes sím-
bolos e signos da linguagem, como exemplo prático se tem os termos pe-
jorativos que são determinados por cada sociedade para aspectos particu-
lares que constituem as diferenças daquele povo, diferenças as estas que são
a base para a discriminação e à aversão que culmina no discurso de ódio.
De forma social, este tipo de discurso propicia a ocultação da violên-
cia, sendo esta por muitas vezes não reconhecida pelas vítimas que não
a identificam como tal (RECUERO, 2013,p.241). Este não reconheci-
mento constitui um aspecto importante à perpetuação destes discursos, e
assim podemos retomar a célebre tese do “Brasileiro Cordial” de Buarque
de Holanda (1936,p.147).
Além de todos estes aspectos pode-se unir ao complexo fenômeno
da existência desses discursos à união entre ator social e alteridade, como
discorre Lebrun (2008,p.8-9) que explicita que o “ódio só é externado
em contato com o outro”. Este ponto esbarra novamente na nova possi-
bilidade que a internet constitui de possibilitar esse contato com o outro
em ampla escala, possibilitando a presença deste “ódio” que é externado
por meio dos discursos.

4. CONCLUSÃO

Ante o exposto, o Racismo no Brasil mantém-se pela perpetuação


social de um modelo discriminatório que é passado durante gerações a
partir da indiferença social gerada que este padrão de comportamento e
de discurso. Ou seja, ainda nas estruturas do Homem cordial, o racismo
219
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

se mantém presente na estrutura das relações sociais brasileiras, configu-


rando este um racismo estrutural. Após a presença das mídias sociais na
vida do brasileiro, este padrão de relações e de discursos discriminatórios
perpassa a esfera restrita do ciclo de convívio social e alcança uma magni-
tude social, visto que tudo aquilo que é publicado acaba por tornar-se de
domínio público.
A partir dessa nova caracterização, o preconceito étnico-racial de-
monstra-se ainda mais visível e presente no dia-a-dia do brasileiro, es-
sencialmente para aqueles que fazem parte de grupos socialmente mar-
ginalizados, e atua de modo a escancarar a falácia da democracia racial,
demonstrando, assim, que muito há a se fazer para a quitação dessa dívida
histórica socialmente recoberta pela presença da cordialidade e pela natu-
ralização do processo de exploração da população negra.
O crescimento de uma maior conscientização é deveras importante,
pois ainda nos encontramos envoltos pelo véu da ilusão de que racismo
não se faz mais comumente presente nos discursos, nos ambientes, e nas
relações socais, provocando uma percepção de ausência de necessidade de
debate acerca de tais questões e a presença de uma inércia e omissão social
para com a presença e a relevância destes delitos no âmbito social brasilei-
ro. Estes aspectos apontam para a predominância da invisibilidade do ra-
cismo como tal, sendo este propagado naturalmente como algo simplório.
Nessa era digital em que a sociedade se encontra, o poder de tutela
das leis deve ser colocado em prática de forma cada vez mais eficiente e
eficaz devido ao crescimento da banalização do direito de expressão e de
opinião nestes meios e em todo o campo virtual de uma maneira geral,
direitos estes que não são absolutos e que se destituem de sua licitude
ao chocarem-se com outros direitos, também, de tamanha magnitude,
principalmente no tocante ao direito de todo cidadão de não ser discrimi-
nado sob nenhuma circunstância, em nenhum ambiente e sob nenhuma
hipótese.
Por tal fator, as denúncias devem ser encorajadas e realizadas em uma
maior proporção, a fim de que haja uma diminuição deste tipo de delito,
em especial nas plataformas digitais que são o espaço em que tais condu-
tas reprováveis encontram possibilidades para se manifestar em virtude do
exercício de expressão, conforme já explicitado.

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

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do social media. Interações, Campo Grande, MS, v. 19, n. 1, p.
43-59, jan./mar. 2018.

222
DIREITOS FUNDAMENTAIS:
DIREITOS HUMANOS E O RACISMO
ESTRUTURAL NOS EUA
Giovanna C. B. M. da Silva38

INTRODUÇÃO

Os Direitos Humanos foram apresentados pela Organização das Na-


ções Unidas (ONU) na Declaração Universal dos Direitos Humanos no
dia 10 de dezembro de 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra
Mundial, um evento histórico em que muitas atrocidades e crimes contra
a humanidade aconteceram. Definiram 30 direitos e liberdades inaliená-
veis e indivisíveis. E segundo a ONU são direitos pertencentes a todos os
seres humanos.
Sendo que esses direitos são muitos conhecidos, porém infelizmente
de maneira leiga ou muito superficial, o que por muitas vezes gera uma
má interpretação dos mesmos e acabam até sendo tidos como algo ruim. E
a ONU trabalha muito nos mais diversos setores da sociedade para tentar
promover uma sociedade mais justa e conta principalmente com apoio
dos países, para que eles operem de modo a assegurar os direitos.
Entretanto nem todos os países agem conforme o esperado ou de for-
ma que ajude, alguns as vezes por não possuir os recursos necessários, ou-
tros por agora não concordarem mais mutualmente com a Organização,
como por exemplo: os Estados Unidos da América, que saiu do Conselho
de Direitos Humanos da ONU, em 19 de junho de 2018. O que de certo

38 Graduanda do 4º Período do curso de Relações Internacionais na Universidade Paulista.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

modo foi inesperado já que os EUA foi um dos países que ratificaram a
Carta das Nações Unidas para que a organização se passa a existir. Hoje
em dia, a estrutura central da ONU fica em Nova York, com sedes tam-
bém em Genebra (Suíça), Viena (Áustria) e Nairóbi (Quênia), além de
escritórios espalhados em grande parte do mundo.
E um dos problemas talvez mais recorrentes nos EUA são os casos
de racismo que ocorrem principalmente com cidadãos negros, o que di-
verge muito de diversos direitos humanos e também de direitos que estão
em sua própria Constituição, mas para compreender o que acontece hoje,
precisamos voltar até a escravidão, aos anos de segregação racial, explicar
a diferença entre o racismo institucional e o racismo estrutural, para então
chegar aos tempos atuais em que movimentos como o “Black Lives Mat-
ter” e diversos protestos contra a violência policial vem ganhando cada vez
mais força e visibilidade.

DESENVOLVIMENTO

1. Direitos Humanos

Os Direitos Humanos tratam-se do conjunto de direitos fundamen-


tais, coletivos e individuais, que se vinculam à igualdade de todos e pro-
teção da dignidade humana, segundo (PAIANO e FURLAN, 2008-pág.
3) tais direitos seriam o

“Conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser huma-


no que tem por finalidade básica o respeito e a sua dignidade, por
meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o esta-
belecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da
personalidade humana”

1.1 Trajetória histórica e tratados internacionais

Trajetória que foi feita para que hoje tivéssemos os direitos humanos
está atrelada a criação dos organismos que foram criados para defendê-los;
o primeiro organismo seria Liga das Nação, essa que foi criada após a 1ª
Guerra Mundial em 1919, a partir do Tratado de Versalhes, possuindo
como objetivo promover a cooperação, paz e a segurança no cenário in-

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ternacional. Junto a ela também foi criada a Organização Internacional do


Trabalho (OIT), que tinha intuito de promover a justiça social, ela con-
tribuiu muito para a divulgação dos direitos humanos em todo o mundo,
mas a verdadeiro consolidação de tais direitos só passa a existir de fato no
pós 2ª Guerra Mundial.
Momento em que os países tem mais força e estão voltados a evitar
uma nova matança de milhões de pessoas e é nesse contexto em que a
Organização das Nações Unidas (ONU) é criada, a Carta das Nações
Unidas – essa que será de grande importância para o desenvolvimento
deste trabalho – foi elaborada pelos representantes de 50 países, e a orga-
nização passa a existir oficialmente em 24 de outubro de 1945. Hoje em
dia, a estrutura central da ONU fica em Nova York e conta com cerca
de 193 Estados-membros, com cada um deles possuindo um assento na
Assembleia Geral.

“Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na


Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dig-
nidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre
homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social
e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, … a
Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos
Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os
povos e todas as nações…” -Preâmbulo da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, 1948 – Pág. 1

1.2 Órgãos da ONU

Como principal organização defensora dos direitos humanos é neces-


sário que existam estruturas dentro da mesma para que toda a promoção e
fiscalização de tais direitos sejam feitas da melhor forma possível para isso
existem cinco órgãos principais, sendo eles:

• Secretariado, auxilia outros órgãos da ONU e administra os pro-


grama e políticas que são elaborados, sendo comandado pelo se-
cretário geral, atualmente António Guterres. Algumas das princi-

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

pais funções do Secretariado é: analisar problemas econômicos e


sociais; organizar conferências internacionais, entre outros.
• Conselho Econômico e Social, que coordena o trabalho econô-
mico e social da organização, formulando recomendações e ati-
vidades relacionadas com o desenvolvimento, de modo resumido
está muito ligado com a promoção dos Objetivos de Desenvolvi-
mento Sustentável.
• Conselho de Segurança, é o responsável pela promoção e garantia
da paz e segurança em contexto mundial, sendo o único órgão
com poder decisório e é constituído por quinze membros, sendo
dez rotativos e cinco permanentes (Estados Unidos, Rússia, Rei-
no Unido, França e China).
• Assembleia Geral é onde os 193 membros da Organização se reú-
nem, sendo o principal órgão deliberativo, e assuntos como: paz e
segurança, aprovação de novos membros, cooperação internacio-
nal em todas as áreas, direitos humanos, entre outras pautas são
discutidas.
• Corte Internacional de Justiça, também conhecida como Corte
de Haia, é o judiciário da ONU, é importante dizer que somente
países podem pedir pareceres à Corte, uma vez que ela só receber
dois tipos de casos: disputas legais entre Estados e pedidos por pa-
receres consultivos a respeito de questões legais apresentadas por
órgãos das Nações Unidas ou agências especializadas, ela é com-
posta de quinze juízes que são eleitos pela Assembleia Geral e pelo
Conselho de Segurança.

2. Tribunal Penal Internacional - TPI

O Tribunal Penal Internacional, assim como a Corte Internacional


de Justiça, também possui sede em Haia, tal que começou a operar em
julho de 2002, a 60ª ratificação do Estatuto de Roma – esse que conta
com 123 estados membros – o TPI processa e julga indivíduos acusados
de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e,
desde 17 de julho de 2018, crimes de agressão, a existência do Tribunal
visa prevenir a ocorrência de violações dos direitos humanos e do direito

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internacional humanitário, além de coibir ameaças contra a paz e a segu-


rança internacionais.
Das ações que estão dispostas como crimes contra a humanidade,
segundo o DECRETO Nº 4.388, DE 25 DE SETEMBRO DE 2002,
previsto na Constituição Brasileira, artigo 7°, um dos crimes contra a hu-
manidade é a:

“h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identi-


ficado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais,
religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em
função de outros critérios universalmente reconhecidos como ina-
ceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato
referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência
do Tribunal;”

É interessante ressaltar que os Estados Unidos não são signatários do


Estatuto de Roma, apesar de terem auxiliado em sua formulação, o país
retirou sua assinatura antes mesmo que o TPI entra se em funcionamento.

“Atualmente, a maior Potência do globo é, sem dúvida, o maior


opositor do TPI. Apesar de um dos principais protagonistas nos
tribunais penais internacionais ad hoc ao longo da História – Nu-
remberg, Tóquio, ex Iugoslávia e Ruanda –, os EUA não viam
com bons olhos o estabelecimento de uma corte penal permanen-
te”. (GONÇALVES, 2003-Pág. 42)

3. Conceito de Raça

Segundo (Morris e Treitler, 2019) raça é um modo de classificação


humana que objetiva classificar humanos em categorias distintas de acordo
com uma constelação de traços físicos, cognitivos e culturais, possuindo
origem no Darwinismo Social que emergiu na Europa, em que acabaram
por se autodenominar brancos e se colocavam em uma posição de supre-
macia e nessa visão as pessoas que por eles eram tidas como negras estavam
no nível mais baixo, isso por muito tempo assegurou a dominação deles
sob outros povos, como no período do neocolonialismo.

227
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

“Percebe-se assim que o evolucionismo social contém o etnocen-


trismo, que representa um passo para o racismo. O culturalismo,
por sua vez, comporta a diversidade cultural, isto é, pressupõe a
existência de múltiplas culturas, e o comportamento humano é
determinado pela cultura” (BERNARDO, 2007 – Pág. 76)

4. Diferença entre racismo estrutural e racismo


institucional

Segundo (Almeida, 2019) o racismo é uma sistemática de discrimina-


ção, que se fundamenta na raça e se manifesta por meio de práticas cons-
cientes ou inconscientes que acabam gerando desvantagens ou vantagens
para indivíduos dependendo do grupo racial que tal faz parte.
Por racismo institucional se compreende que houve um fracasso nas
instituições no modo a promover uma vida digna às pessoas independen-
temente de sua origem étnica, sendo que se manifesta de muitas maneiras
seja em normas, práticas ou comportamentos discriminatórios que estão
presentes no cotidiano, colocando as pessoas de grupos étnicos discrimi-
nados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados as vezes
pelo Estado e pelas outras instituições ou organizações. Conforme (Al-
meida, 2019) é uma característica da sociedade, fundamentalmente por-
que as instituições foram e são em sua maioria controladas por pessoas
que sempre estiveram em uma posição mais privilegiada e acabaram por
impor seus interesses políticos e econômicos, que são de certo modo se-
gregatícios.
Já o racismo estrutural abrange o conjunto das práticas institucio-
nais, históricas, culturais e sociais que estruturam a sociedade que coloca
um determinado grupo étnico em posição inferior aos outros, ele é ob-
servado como uma patologia social que deve ser combatido em todos os
campos possíveis, visto que está presente na raiz da cultura. Para (Batista,
2018) o racismo estrutural é uma forma de violência reproduzida no
tecido social, não de forma direta, mas de forma institucional e cultu-
ral, ele está vinculado à história e ao contexto em que foi disseminado,
utilizando inclusive estudos “científicos” (como citado o Darwinismo
Social), sendo no modo em que a sociedade funciona em que o racismo
estrutural se constitui.

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Em suma é possível dizer então que não há de fato uma diferença, mas
sim que um é fruto do outro, sendo que o institucional é fruto do estru-
tural, uma vez que como acima dito ele abrange um conjunto de práticas
chegando a influenciar as institucionais e também por esse ter se constituído
de modo cultural na história de todo um mundo sendo herdado da época
de escravidão e exploração a quais muitas pessoas foram submetidas. Isso
estando enraizado na história era de se esperar que as organizações e/ou
instituições agissem de modo racista e segregatício, que colocam as pessoas
de grupos étnicos discriminados em situação de desvantagem, logo é um
fracasso da sociedade não conseguir mudar tal estrutura de modo eficiente
e eficaz, para que haja a devida e justa promoção dos direitos humanos e
fundamentais inerentes a qualquer ser humano, que por muito são violados
pelas pessoas que agem de forma ao caminho do retrocesso.

5. EUA

A prática de racismo tem estado presente em todas as etapas do processo


de constituição da sociedade estadunidense, em que a população negra sofre
com a discriminação e perseguição da sociedade e por vezes até do próprio
Estado, isso pode ser visto quando olhamos e analisamos o modo em que a
polícia age em abordagens. Essa violência durante a escravidão foi exercida
pelos amos, com a abolição da escravidão, a violência passou a ser monopólio
do Estado, por meio da força policial, principalmente quando as leis Jiw Crow
foram formalizadas e adotadas. Nos EUA, tende-se a classificar a população
em quatro grupos: brancos, asiáticos, latinos e negros, sendo organizadas de
forma hierárquica. E é isso que nos leva aonde estamos hoje, toda essa estru-
tura que foi formada para oprimir e subjugar pessoas, que ficou enraizada na
sociedade estadunidense, os tópicos a seguir buscam mostrar a trajetória que
foi percorrida, para que a população negra possui-se mais direitos e garantias
constitucionalizadas, mas que mesmo com pequenos avanços a discriminação
não se demonstrada totalmente desestruturada e eliminada.

5.1 Escravidão

O regime de escravidão que foi empregado nos EUA, que durou por
mais de dois séculos, utilizou de formas brutais de punição como: casti-

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

go com chicote, restrições ao deslocamento, assassinato, abuso mental,


entre outros. Tal regime se manteve por esse tempo, pois havia o apoio
da população branca, mesmo aquela em que não se encontrava em uma
posição de supremacia que trabalharam como vigilantes, sendo recom-
pensadas com rendas escassas e um status modesto baseado na premissa
de que eram melhores do que os escravos negros, isso aconteceu princi-
palmente na região Sul.
No decorrer dos anos de escravidão, a igreja negra começa a ter um
papel muito importante, pois por meia dela uma resistência coletiva e
organizada emerge, mas vale ressaltar que de certo modo a resistência
à escravidão, começa antes mesmo dos escravizados chegarem ao local
em que seriam vendidos/entregues aos grandes senhores, a resistência e
a luta pela sua liberdade nasceu dentro de navios negreiros. Entretanto
as revoltas organizadas começaram a ameaçar o regime escravista, con-
forme (Morris e Treitler, 2019) no contexto da Guerra Civil America-
na (conflito entre os estados do Norte e os do Sul) os escravos tiveram
um papel muito importante na derrubada do Sul, com suas greves,
participando dos esforços de guerra e provendo serviços de apoio es-
senciais, bem como lutando como soldados que derramavam seu san-
gue em prol da liberdade.
Entretanto mesmo após serem libertados, acabaram se deparando
com uma nova forma de escravidão, com a era Jiw Crow e especialmente
no período de Reconstrução Pós-Guerra Civil (de 1863 a 1877), as pes-
soas que eram ex escravos foram deixados a própria sorte, já que depois
da guerra as forças que protegiam os escravos foram retiradas pelo Estado,
deixando que os sulistas pudessem recaptura-los e forçá-los ao trabalho.
Sob o Jiw Crow começa um período de segregação e forte discriminação.

“A abolição da escravidão aparece na história estadunidense como


consequência de uma tentativa muito bem-sucedida de alocação
da abundante mão-de-obra escrava para a indústria nascente na
metade Norte, a qual tinha pretensões de se expandir pela metade
Sul.” (SANTANA e BICALHO, 2019 – Pág. 11)

É de suma importância dizer que um dos maiores objetivos do mo-


vimento abolicionista era garantir o cumprimento das leis federais que

230
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asseguravam o voto, o livre trânsito entre as cidades, entre outras leis que
reconheciam a cidadania de milhões de afro-americanos libertos em 1865.

5.2 Segregação

A segregação pós abolição do regime escravista começa com o Jiw


Crow, que conforme (Brito, 2019) o termo tem sua origem nas perfor-
mances do artista branco Thomas Rice, que se maquiado realizando bla-
ckface, para fazer performances daquilo que acreditava ser o comporta-
mento das pessoas negras, todas embaladas de muito racismo e o nome
de seu personagem era Jiw Crow, logo isso se tornou uma nomenclatura
pejorativa usada para se referir às pessoas negras.
O regime em si surgiu na Região Norte, na primeira metade do sé-
culo XIX, sendo leis que proibiam e tornavam crime a presença negra nos
trens, viajar nesse contexto era privilégio que pertencia a homens brancos
e ricos, esse regime implementou a ideia que apesar de agora “livres” os
negros constituíam uma população subordinada e que devia ser separada
dos demais, entre as ações de segregação é possível citar que eles tinham
de utilizar banheiros separados, frequentar escolas separadas, sentar-se no
fundo de ônibus e trens, entre outras coisas do cotidiano que eram pri-
vados de fazer. Esse sistema favoreceu as elites brancas e os brancos de
classe média que ainda trabalhavam como intermediários. No trabalho foi
designado aos negros as ocupações mais perigosas, sem sindicatos e com
remuneração inferior.
E se estabeleceu na Região Sul também a partir de 1877 e nisso se-
gundo (Brito, 2019) a Ku Klux Klan cumpriu um papel fundamental ao
usar do terror e da violência como práticas de intimidação à população
negra que ansiava por novas relações de trabalho, além de novas configu-
rações sociais e politicas na Região Sul pós-abolição, tudo isso já nos mos-
tra que a abolição não significou o fim das crenças em distinções raciais.

“Assim, a vigência formal do regime Jim Crow, que perdurou por nove
décadas, correspondeu a um sistema brutal de dominação racial, legitimado
pela lei, pela violência e pelos costumes. Por conta dele, em meados do século
XX, as enormes populações negras nos Estados Unidos eram pobres, sem
teto, tinham baixo índice de escolaridade e batalhavam contra a intimidação

231
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

produzida pela violência. Ainda assim, tal como fizeram durante a escravi-
dão, os negros nos EUA resistiram ao regime Jim Crow desde o princípio.
Tal resistência teve início no final do século XIX e persistiu durante o século
XX.” (Morris e Treitler, 2019 – Pág. 23)

A resistência afro-americana que lutou por seus direitos civis nos anos
1950 e 1960 constituiu um período da história estadunidense que ficou
marcado por nomes como Martin Luther King, Rosa Parks, Malcom X e
muitos outros. King ficou conhecido por instruir seus seguidores a utili-
zarem de táticas não violentas, mas mesmo assim seus protestos chegavam
à provocação, o incomodo na sociedade, que ele almejava causar.
O movimento por direitos civis do século vinte, proveu um capital
cultural decisivo. E aqui a igreja negra, se faz presente novamente, com
seus fortes vínculos e alcance institucionais que proporcionou confiança
generalizada e até mesmos espaços protegidos, nos quais as performances
públicas podiam ser ensaiadas. Um dos episódios mais conhecidos da lutas
pelos direitos civis foi quando em 1955, Rosa Parks se recusou-se a mudar
para a parte traseira do ônibus, em Montgomery, sendo o primeiro ato de
uma série de outros que intensificaram a luta, essa que atingiu primeiro
os nortistas que começaram a se solidarizar se com a causa e exigiram
que o poder federal fosse mobilizado para proteger a população negra e
punir seus opressores e em meados de 1965, o Congresso aboliu as leis de
segregação e aprovou legislação que assegurava aos negros direitos civis e
políticos.
Agora após terem conseguido seus direitos no final dos anos de 1960,
surge o Movimente Black Power, que surgia para empoderar a população
negra que durante muitos anos foi inferiorizada e ridicularizada, como
se é notável se vermos no que o Jiw Crow foi baseado, além disso o mo-
vimento insistia na autodefesa, em que para eles a melhor opção seria o
controle comunitário e o empoderamento econômico, para que assim
realmente houvesse segurança e ganhos reais para as comunidades negras.
Nos Estados Unidos do século XXI, a escravidão e a opressão legal do
regime de Jim Crow estão rigidamente proibidas por lei.
Entretanto atualmente mesmo com os direitos civis dos cidadãos ne-
gros agora garantidos constitucionalmente, ainda ocorrem muitas discri-
minações e crimes contra essa parte da população estadunidense, e geral-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

mente advinda do Estado, por meio de seus policiais, que deviam zelar
pela vida e segurança de todos e é nesse contexto permanente de violência
que permeia o país desde a época da escravidão que o Movimento Black
Lives Matter, surge a partir de 2012, de cunho fortemente performativo
e que encontram apoio nas tecnologias de internet, que se tornou uma
forma de trazer atona e fazer repercutir os crimes.

5.3 Casos Atuais

Os casos de violência policial vêm acompanhados de discriminação


racial manifestadas no momento das abordagens, em que detenções injus-
tificadas, maus tratos e o uso da força de maneira desproporcional, o que
caracteriza um abuso que autoridade por parte dos agentes.
De acordo com o Instituto Internacional de Unesco para la Educa-
ción Superior en América Latina y el Caribe - página 55, para a polícia
estadunidense existe um perfil de sujeito que pode apresentar perigo, que
seria: homem, entre os 18 a 44 anos, afro americano, levando em consi-
deração também sua aparência física, vestimenta, orientações expressivas
e comportamentais.
Ainda de acordo com o Instituto, durante o ano de 2015, são dados
como exemplos casos reais em que o abuso de autoridade levou a morte de
um cidadão norte americano, estando os casos que elenco a abaixo todos
na página 54:

• Dominick Wise, 30 anos, desarmado. Estava intoxicado e cami-


nhava de forma desigual pela estrada, resistiu a prisão e a polícia
usou um taser contra ele três vezes em um período de 18 segun-
dos, ele morreu no hospital em torno de 14 horas depois.
• Kevin Higgenbotham, 46 anos, desarmado. Chamou a polícia
para informar que havia alguém em sua propriedade, quando os
agentes chegaram, o golpearam e jogaram nele gás de pimenta, ele
perdeu a consciência e morreu depois de nove meses em coma.
• Freddie Gray, 25 anos, desarmado. Foi preso após fazer contato
visual com um policial, sendo perseguido e detido junto com ou-
tros cinco policias, ele morreu devido aos ferimentos sofridos na

233
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

coluna durante sua prisão que pioraram dentro da van da polícia


enquanto estava algemado e acorrentado no chão.

Os casos citados são apenas alguns dos reportados no ano de 2015,


infelizmente cinco anos depois o cenário não é diferente e um dos assas-
sinatos recentes que chocou o mundo e fez com que diversos manifestan-
tes fossem as ruas mesmo com o contexto de pandemia em que estamos
vivendo, foi o caso de George Floyd, um homem negro de 46 anos, que
morreu sob custódia de policiais, enquanto dizia repetidas vezes antes de
sua morte que não estava conseguindo respirar, tal fala que se tornou o
grito de protesto em várias cidades do país.
Para Cornel West, que já foi professor em Yale, Princeton e na Uni-
versidade de Paris e que atualmente leciona em Harvard, em uma entre-
vista que ele concedeu a BBC em 6 de junho de 2020, ele considera que o
problema racial nos Estados Unidos é um assunto profundo:

Mas este é um assunto mais profundo. Temos seres humanos ma-


ravilhosos nos Estados Unidos, mas os Estados Unidos são um ex-
perimento social falido. Quando se trata de pessoas negras e po-
bres, sua economia capitalista falha; o Estado militarizado falha;
sua cultura mercantil, em que tudo e todos estão à venda, falha.
Esse fracasso acontece há 400 anos e, embora (o sistema) tenha
funcionado para alguns, quando se trata de pessoas pobres, princi-
palmente negras, é um fracasso. Isso é crônico, estamos falando de
algo que tem raízes profundas.

5.4 Constituição dos EUA

A Constituição dos EUA, garante a Lei dos Direitos Civis, que


como visto foi aprovada em 1964 e ela proibiu a discriminação baseada
na cor, sexo, religião ou origem nacional, além de emendas propostas
pelo Congresso e ratificadas pelas legislações dos vários estados, sendo
algumas delas:
EMENDA IV: que garante o direito do povo à inviolabilidade de
suas pessoas, casas, papéis e haveres contra busca e apreensão arbitrárias
não poderá ser infringido; e nenhum mandado será expedido a não ser
mediante indícios de culpabilidade confirmados por juramento ou decla-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

ração, e particularmente com a descrição do local da busca e a indicação


das pessoas ou coisas a serem apreendidas.

EMENDA XV (1870): Seção 1 direito de voto dos cidadãos dos


Estados Unidos não poderá ser negado ou cerceado pelos Estados
Unidos, nem por qualquer Estado, por motivo de raça, cor ou de
prévio estado de servidão.

Sabendo se que nos EUA cada estado é responsável pelas suas leis é
necessário ressaltar que eles ratificaram tais emendas e as tornaram parte
de suas legislações também, sendo assim são válidas em todo os país, logo
é possível observar que as atitudes acima observadas não condizem com
oque está previsto constitucionalmente.

5.5 O que eles violam dos DH

Os Estados Unidos da Americana, se fundaram e carregam com eles


o lema da democracia, igualdade política e jurídica e da liberdade indivi-
dual, apesar disso eles falham em cumprir sua promessa fundamental de
fazer direitos para todos.

“Nos Estados Unidos, existe um padrão persistente e generalizado


de violações dos direitos humanos. Embora isso não signifique que
autoridades federais, estaduais ou locais busquem deliberadamente
políticas destinadas a reprimir grupos específicos ou violar direitos
humanos, deve-se reconhecer que, na ampla diversidade de juris-
dições em todo o país, as práticas que resultam em abusos persis-
tem real e sério.” (Amnistía Internacional, 1998 – Pág. 1)

Como é possível notar não é de hoje que o país enfrenta problemas


com violações dos direitos humanos e que é um problema que aparen-
temente está longe de ser resolvido tendo em conta a posição do atual
presidente Donald Trump que se mostra indiferente a essa pauta, um
cenário que talvez mude caso ele não seja reeleito. Os Artigos abaixo
foram todos retirados da Declaração Universal dos Direitos Humanos e
são eles alguns dos direitos que analisando toda a situação atual acredito
que estão sendo violados:

235
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Artigo III Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à


segurança pessoal.

Artigo XII Ninguém será sujeito à interferência em sua vida pri-


vada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem
a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à
proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo XXV 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida


capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive
alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desempre-
go, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Artigo XXVIII Todo ser humano tem direito a uma ordem so-
cial e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na
presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Os direitos citados foram escolhidos, pois o direito a vida e seguran-


ça pessoal está sendo duramente infligido por parte dos abusos de poder
que são cometidos, há também a interferência em sua vida privada visto
que nem dentro de suas próprias casas estão seguros como nos casos de
Kevin Higgenbotham em 2015 e de Breonna Taylor em 2020, cidadãos
principalmente afro americanos estão tendo seus direitos a um padrão de
vida digno negado, justamente por aqueles que deveriam garantir uma
ordem social para que os direitos e liberdades ratificados na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, fossem cumpridos. Em suma há a ne-
cessidade de se discutir sobre o tema, pois a dignidade humana dessas
pessoas está sendo ameaçada e para que se façam valer de formal integral
os direitos humanos, que norteiam diversas normas jurídicas e tratados
internacionais, deve haver a superação do racismo, não só nos EUA, mas
em todo o mundo.

Considerações Finais:

Os Direitos Humanos que foram fruto do contexto em que o mundo


se encontrava depois do fim da 2ª Guerra Mundial, hoje norteiam prati-
camente diversas normas jurídicas e tratados internacionais, que influen-

236
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

ciam nossa vida diretamente, é estranho pensar que um dos país que os
idealizaram, ainda em 1945 fazia sua população negra passar por diversas
situações humilhantes e os segregavam dos demais.
E que ainda assim depois de muita luta entre os anos 50 a 70, o pro-
blema que os assombra persiste, o racismo que ocorre nos Estados Unidos
da América está em sua estrutura, está naquilo que os constitui e entre-
gue ao monopólio da violência que possui e exerce, não para proteger sua
população, mas sim para continuar a oprimi-la, como desde o inicio da
escravidão fora feito.
O que muda é que agora, as pessoas conseguem denunciar os crimes
ocorridos ao mundo com maior facilidade e se mobilizar para protesta-
rem contra e lutarem por mudanças de um modo mais rápido ainda, apa-
rentemente sempre haverá resistência contra as posturas retrógradas do
Estado e de algumas partes da sociedade, e isso não está errado; em uma
democracia é preciso que as pessoas tenham esse direito de manifestar suas
insatisfações, principalmente quando essas estão colocando as suas vidas
em risco.
E do âmbito internacional é possível ver quantos direitos estão sendo
violados a cada pessoa presa injustamente ou morta pelo abuso dos agen-
tes, os casos são recorrentes, já eram falados na Anistia Internacional em
1998, continuaram a ser objeto de estudo pelo o Instituto Internacional
de Unesco para la Educación Superior en América Latina y el Caribe em
2015 e ainda em 2020 são temas de trabalhos como este.

“[…] a discussão sobre racismo vem sendo agravada pela subsequente


atuação da polícia norte-americana na autoria na morte de negros. Os
episódios ocorridos em diferentes estados americanos trazem como
característica comum o fator racial. As mortes pouco justificadas pela
polícia colaboram para o argumento de conduta discriminatória por
parte das autoridades nestes casos.” (da Silva e Silva, 2018 – Pág. 45)

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24 1
A POSSIBILIDADE DE VACINAÇÃO
COMPULSÓRIA COM BASE NA LEI
Nº 13.979/2020: UMA ANÁLISE
PRINCIPIOLÓGICA
Carolina Lopes da Silva39

INTRODUÇÃO

O ano de 2020 representa um período em que os ânimos estão aflo-


rados, onde tais exteriorizações se dão em decorrência da inesperada e
indesejada pandemia do COVID-19, bem como da polarização política,
nunca tão evidenciada como no cenário atual. Imediatamente, dá-se iní-
cio à corrida pela vacina, a fim de possibilitar a volta ao “normal”. Como
efeito, surge a questão de eventual obrigatoriedade de vacinação, tendo
em vista a gravidade da doença.
Em um contexto marcado pela exaltação da vontade e da divergência
de partidos políticos – responsáveis pela composição do Poder Legislati-
vo e Executivo, logo, pela elaboração e execução de leis –, natural que a
discussão sobre a possibilidade de vacinação compulsória seja levada até o
Poder Judiciário, cabendo a este julgar a viabilidade constitucional, ainda
que de forma abstrata, de determinada previsão legal.

39 Advogada. Pós-graduanda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do


Rio Grande do Sul e em Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia. Graduada pelo
Centro Universitário Ritter dos Reis (2018).

24 2
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Foi justamente o que aconteceu. Em 21 de outubro de 2020, o Par-


tido Democrático Brasileiro (PDT) ajuizou a Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade (ADI) 6586, requerendo que o Supremo Tribunal Federal
(STF) fixe orientação de que compete aos Estados e Municípios deter-
minarem a realização compulsória de vacinação, com respaldo na Lei nº
13.979/2020 e no direito à saúde. Por outro lado, o Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) ajuizou a ADI 6587 para que o tribunal determine que
essa vacinação em massa não possa ser aplicada por violação ao direito à
vida, à liberdade e, também, à saúde.
Destarte, o problema a ser enfrentado será verificar se, em face do
direito geral de liberdade, há possibilidade jurídica de se impor vacinação
compulsória e, ainda, analisar a constitucionalidade de eventual obrigato-
riedade da vacina por meio do exame do princípio da proporcionalidade e
seu escalonamento, ou seja, averiguar se a vacinação em massa é adequada,
necessária e proporcional – em sentido estrito.
Por conseguinte, pretende-se abordar, de início, sobre os projetos de
lei atinentes à obrigatoriedade da vacina. Em seguida, discorrer-se-á sobre
o direito à vida, uma vez que fora suscitado em ambas as ADIs menciona-
das para, logo após, tratar sobre o direito geral de liberdade. Por fim, será
realizado o exame da proporcionalidade da vacinação compulsória com
o intuito de verificar se a restrição do direito à liberdade configura uma
restrição essencial ou uma restrição excessiva.

1. PROJETOS DE LEI SOBRE VACINAÇÃO


COMPULSÓRIA E A POSIÇÃO DO CHEFE DO PODER
EXECUTIVO

Em 19 de outubro de 2020, o Presidente da República, Jair Bolsona-


ro, afirmou que a vacina em decorrência do COVID-19 não será obriga-
tória, tendo, inclusive, o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, declarado
a faculdade de os indivíduos se vacinarem (GOMES, 2020). Como reação
a declaração do Chefe do Poder Executivo, foi apresentado um projeto de
lei à Câmara dos Deputados referente a compulsoriedade da vacina.
Antes de adentrar ao referido projeto, mister destacar que em feve-
reiro de 2020 entrou em vigor a Lei nº 13.979, a qual dispõe sobre as
medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente

24 3
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

da pandemia do coronavírus. Dentre uma das medidas previstas, está a de-


terminação de realização compulsória de vacinação, consoante seu artigo
(art.) 3º, inciso (inc.) III, alínea “d”. Essa lei vigorará enquanto perdurar
o estado de calamidade pública que, segundo o Decreto Legislativo nº
6/2020, terá efeitos até 31 de dezembro de 2020.
Feita essa ressalva, em 21 de outubro de 2020 foi apresentado o Pro-
jeto de Lei (PL) nº 4992 pelos deputados Gleisi Hoffman (PT) e Enio
Verri (PR), o qual visa acrescentar à Lei nº 6.259/1975 (que dispõe so-
bre a organização das ações de vigilância epidemiológica e sobre o Pro-
grama Nacional de Imunizações) a obrigatoriedade da vacina contra o
COVID-19, desde que seja aprovada pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA).
Como justificativa, alegaram que a vacinação representa um dos ins-
trumentos de maior impacto positivo em saúde pública porquanto reduz
a mortalidade e aumenta a qualidade e expectativa de vida, sendo funda-
mental a imunização da população. Na enquete realizada no site da Câ-
mara dos Deputados, 93% das pessoas que votaram discordaram total-
mente da proposta sob o argumento de ser uma medida autoritária que
viola o direito à liberdade, representando uma conduta incompatível com
um Estado Democrático.
De modo contrário, em 08 de setembro de 2020, a Deputada Bia Ki-
cis já havia proposto o PL nº 4506, tendo como objetivo a alteração da Lei
nº 13.979, especificamente em seu art. 3º, inc. III, alínea “d”, que trata
da compulsoriedade da vacina. O referido PL visa manter a possibilidade
de se realizar medidas profiláticas obrigatórias, de modo a excluir apenas
a vacinação compulsória.
Em sua justificativa, a deputada concordou que a principal saída para
a pandemia do novo coronavírus parece ser uma vacina, mas uma vacina
segura e eficaz. Imediatamente, discorreu sobre as diversas etapas do pro-
cesso de regulamentação de um medicamento, desde a pesquisa pré-clíni-
ca até a pesquisa pós-comercialização. Dessa forma, concluiu que somente
após dez anos que será possível ter a devida comprovação científica da
vacina. Na enquete realizada, 92% das pessoas concordaram totalmente
com o PL alegando ser irracional a obrigatoriedade de uma vacina sem as
devidas comprovações.

24 4
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
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Não obstante esses projetos de lei, a vacinação obrigatória ensejou


o ajuizamento de duas ADIs por partidos políticos requerendo pedidos
totalmente opostos, mas que, além do assunto da vacina como causa de
pedir, possuem outro tema em comum: o direito à vida, que será visto no
próximo capítulo.

2. O DIREITO À VIDA

O PDT ajuizou a ADI 6586, pretendendo que o STF fixe a orienta-


ção de que compete aos Estados e Municípios determinarem a realização
compulsória da vacina, sob o argumento de que o direito à saúde instiga
essas medidas de proteção à integridade da pessoa humana. Em contra-
partida, o PTB, através da ADI 6587, almeja que a vacinação obrigatória
seja declarada inconstitucional por gerar violações irreparáveis ao direito à
vida, à saúde e à liberdade individual.
Percebe-se que em ambas as ações diretas o direito à vida fora susci-
tado, ainda que em contextos divergentes. Enquanto na primeira ação o
direito à saúde tenha servido de argumento com o intuito de se declarar
a constitucionalidade da vacina compulsória, pois dessa forma o Estado
consegue cumprir seu dever de propiciar aos indivíduos uma vida sem ne-
nhum comprometimento que afete seu equilíbrio físico ou mental (ação
positiva do Estado ao direito à vida que confunde-se com o direito à saú-
de, como será visto ao decorrer desse capítulo), na segunda ação empre-
gou-se a vida como mecanismo hábil a declarar a inconstitucionalidade
de tal conduta, sob o pretexto de que as vacinas anunciadas carecem de
comprovação da sua eficácia e segurança.
Diante esse cenário questiona-se: (a) o que seria exatamente o direito
à vida? (b) de quem seria esse direito? (c) há colisão com outros direitos?
(d) quais medidas possíveis a serem adotadas para se assegurar o direito
em questão? A vacinação compulsória seria uma delas? Trata-se de quatro
perguntas pertinentes ao tema, que serão respondidas continuamente.
O direito à vida, aparecendo pela primeira vez na Constituição da
República Federativa do Brasil (CRFB/88) no caput do art. 5º, o qual as-
segura a sua inviolabilidade, também considerado um direito social, nos
termos do art. 6º do mesmo documento, trata-se, dentre todos os direitos
fundamentais previstos na Constituição e dos decorrentes do regime e

24 5
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

dos princípios por ela adotados, ou mesmo dos tratados internacionais em


que o Brasil seja parte, do mais essencial (MORAES, 2017, p. 34). Sem a
preservação da vida não há sentido em se falar na preservação dos demais
direitos, pois seria utópico, por exemplo, preservar a liberdade de locomo-
ção de alguém que sequer está vivo.
Ademais, a concretização do direito à vida enseja a perfectibilização
do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual integraliza todos os
demais princípios dispostos no título I da CRFB/88, servindo como um
norte para o exercício das tarefas estatais e da cidadania em um Estado
Democrático de Direito. Tal princípio refere-se a um valor que justifica
a existência de um ordenamento jurídico. O Estado existe para garan-
tir condições ao desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, para
proteger a dimensão desse princípio e criar condições para que haja um
aparato estatal e material para a sua realização.
Isto posto, o direito à vida demanda duas condutas do Estado. Em um
primeiro momento, exige inércia deste, no sentido de que ele não interfira
na vida dos indivíduos, de que alguém não seja morto. Seria “o direito de
continuar vivo” (NUNES JÚNIOR, 2020, p.711). Tal imposição torna-
-se cristalina quando o ordenamento jurídico veda a pena de morte – ha-
vendo, como em toda regra, exceções.40
Por outro lado, também impõe uma conduta positiva do Estado, no
sentido de que este, além de não matar, de permitir que os indivíduos
continuem vivos, proporcione uma vida digna às pessoas, ao menos um
mínimo existencial de vida digna (NUNES JÚNIOR, 2020, p. 711).
Diante disso que o art. 196 da CRFB/88 assegura que a saúde, sendo um
dever do Estado, deve ser garantida mediante políticas sociais e econô-
micas que visem a redução do risco de doença, assim como a promoção,
proteção e recuperação de todos.
Políticas sociais e econômicas garantindo a promoção universal e
igualitária da saúde significa melhorar a saúde das pessoas; a proteção seria
evitar que a população ficasse doente e, por fim, a recuperação seria curar
os indivíduos doentes. O Estado, ao empregar recursos para o tratamento
universal e igualitário da saúde está agindo e, assim, possibilitando uma

40 Exceções atuais do direito à vida: pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5º,
inc. XLVII, alínea “a”, CF c/c art. 84, inc. XIX, CF), aborto humanitário (art. 128, inc. II, CP),
aborto em caso de feto anencéfalo (ADPF 54) e lei do abate (art. 303, §2º, Lei n. 7.565/86).

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
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vida digna aos indivíduos, pois sem saúde não há como se ter uma vida e
sem respeito à vida não há como se ter a dignidade da pessoa humana de-
vidamente respeitada. Possível dizer, então, que “o direito social à saúde se
confunde com o direito à vida, direito fundamental”. (SILVA, s.d., p. 7).
Elucidado sobre o que seria o direito à vida resta esclarecer de quem
seria este direito. Obviamente que será titular do referido direito o pró-
prio indivíduo no qual emana vida. No entanto, essa pergunta fora susci-
tada com o intuito de explicitar que o direito à vida não é algo tão simples
quando se vive em uma sociedade, composta por inúmeras pessoas tam-
bém titulares dos mesmos direitos.
Como dito acima, o direito à vida confunde-se com o direito à saúde.
Sua ligação é inevitável. Ocorre que, nos termos do art. 196 da CRFB/88,
a saúde é direito de todos, sendo que as ações e serviços realizados pelo
Estado devem ser de acesso universal e igualitário. O direito à saúde, por-
tanto, privilegia a igualdade, razão que permite a imposição de normas
jurídicas que limitem o comportamento humano (SILVA, s.d., p. 13), ou
seja, que limitem a sua liberdade.
Além do próprio indivíduo ser titular do direito à sua vida, são tam-
bém titulares o restante da sociedade, também titulares desse mesmo di-
reito, daí a sua complexidade. Nas circunstâncias atuais, diante uma pan-
demia decorrente de um vírus que muitas vezes se mostra letal para alguns
infectados, imprescindível falar no direito à vida de todos os brasileiros,
cenário que exige uma análise abrangente desse direito fundamental.
Tendo em vista que a resposta sobre de quem seria esse direito já res-
ponde a pergunta da colisão com outros direitos fundamentais, uma vez
que asseverou-se poder haver limitação do comportamento humano para
se assegurar o direito à saúde (interpretando-se como limitação à liber-
dade individual), mister destacar que a continuidade da resposta também
irá atender ao último questionamento: sobre quais medidas possíveis de
serem adotadas para se assegurar o direito em questão.
Em seguimento, para se efetivar o direito à saúde, em determinadas
circunstâncias será necessário a estipulação de restrições, pois trata-se de
um direito coletivo com reflexos no direito à vida – bem como no direito
geral de liberdade. Para resguardar a saúde da coletividade e, consequente-
mente, a vida destes, o ordenamento jurídico deverá dispor de instrumen-
tos capazes de impedir que terceiros facilitem o adoecimento de outros.

24 7
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Para se assegurar o direito à saúde, logo, o direito à vida, poderão ser


adotadas diversas medidas, tais como a vacinação obrigatória, especial-
mente quando se está diante uma doença pandêmica em uma realidade
de intenso fluxo de pessoas entre cidades, estados e países. Medidas como
essa são tão possíveis que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
prevê no seu art. 14, §1º, a obrigatoriedade de vacinação das crianças
quando recomendado pelas autoridades sanitárias.
Constatou-se, então, que: (a) o direito à vida representa o direito de
continuar vivo, de não ser morto pelo Estado, mas também o dever deste
proporcionar um mínimo existencial de vida digna; (b) cada indivíduo
possui esse direito, o qual, no entanto, adquire dimensões mais complexas
quando visto sob a perspectiva da sociedade, como um direito geral, espe-
cialmente de um direito coletivo à saúde para assegurar a vida dos demais;
(c) há, inevitavelmente, colisão com outros direitos fundamentais para ser
possível a sua efetivação, como é o caso da restrição à liberdade; (d) a va-
cinação compulsória é uma dentre as inúmeras medidas possíveis a serem
adotadas para se assegurar o direito à vida.
Assim, para se respeitar a dignidade que é inerente de certa pessoa
simplesmente por sua condição humana, imprescindível a disponibilida-
de da tutela adequada do direito à vida, bem como do direito à saúde,
os quais se confundem em determinadas situações. Caso contrário, além
de não ser possível efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana,
também será inviável a concretização de outros direitos fundamentais dela
decorrente, como é o caso do direito geral de liberdade, o qual será visto
imediatamente.

3. O DIREITO GERAL DE LIBERDADE

O art. 5º, caput, da CRFB/88, ressalta, dentre outros direitos, a garan-


tia da inviolabilidade da liberdade, sendo esta referente ao direito geral de
liberdade. Muito se fala em liberdade de expressão, liberdade de locomo-
ção e liberdade de manifestação do pensamento (havendo ainda outros di-
reitos específicos), mas não se deve esquecer, tampouco considerar menos
importante, o direito geral de liberdade.
Outrossim, apesar de nem todos os ordenamentos reconhecerem um
direito geral de liberdade, tal questão não se sustenta no ordenamento

24 8
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

jurídico brasileiro, tendo em vista que a liberdade, em seu sentido amplo,


fora positivada em todas as Constituições brasileiras (SARLET, 2019, p.
495-496). Também de se levar em consideração que a positivação de de-
terminados direitos será reflexo do momento da promulgação da Consti-
tuição, o qual irá abarcar todo o contexto histórico do país.
O sentido de um direito geral de liberdade encontrou inspirações nas
primeiras declarações de direito, assim como no catálogo de direitos da
pessoa humana, os quais foram propagados sob a perspectiva de um Estado
de matriz liberal (SARLET, 2019, p. 495). Isso demonstra que a liberdade
se baseia na convicção de respeito em relação ao indivíduo, em que cada
pessoa é um ser moral e racional que merece ser tratada com dignidade e,
para tanto, precisa ter sua liberdade respeitada.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu
art. 2º, assevera que “a finalidade de toda associação política é a conserva-
ção dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”. Consequentemen-
te, ressalta que essa conservação dos direitos naturais se refere à liberdade,
dentre outros direitos. Assim, a associação política, podendo-se entender
como os integrantes de partidos políticos, inclusive de partidos com repre-
sentação no Congresso Nacional que, em razão de possuir um Deputado
Federal ou um Senador no Congresso acaba tendo legitimidade ativa uni-
versal para o ajuizamento de ações de controle de constitucionalidade, tem
o escopo de atuar visando a conservação de direitos oriundos da própria
condição humana, como a liberdade.
Ato contínuo, o art. 4º esclarece que “a liberdade consiste em poder
fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos
naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram
aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”. Em um
Estado de Direito, a liberdade, ainda que em seu sentido amplo, não deve
ser vista como algo absoluto, onde o indivíduo estará livre para fazer – ou
mesmo não fazer –tudo o que desejar, tanto que o próprio artigo assinala
que há liberdade até o momento em que seu aproveitamento não traga
prejuízos a terceiros.
Deve-se atentar que a possibilidade de criação de limites ao exercício
da liberdade somente se dará por imposição da lei. Para tanto, importante
a compreensão da liberdade em conjunto com a legalidade, prevista no
art. 5º, inciso II, da CRFB/88, o qual suscita que “ninguém será obrigado

24 9
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Trata-se


do princípio da legalidade, onde a lei servirá como uma garantia consti-
tucional, baseada na organização político e administrativa dos poderes, do
direito geral de liberdade (SARLET, 2019, p. 500).
Sem demora, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
em seu art. 3º, enfatiza que “todo ser humano tem direito à vida, à li-
berdade e à segurança pessoal”, assim como explicita, em seu artigo 29,
item 2, que o indivíduo no exercício dos seus direitos e liberdades deverá
se submeter às limitações, mas somente às limitações previstas pela lei.
Outrossim, eventuais restrições devem ter o objetivo de “(...) assegurar o
devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de
satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar
de uma sociedade democrática”. A liberdade, nesse sentido, sofrerá limi-
tações quando da identificação de um bem maior a ser protegido.
A existência de um direito geral de liberdade adquire maior relevância
por servir de mecanismo de garantia de direitos não expressos, ou seja, de
garantia para a identificação de outras espécies de liberdades que não as
previstas ao decorrer do catálogo de direitos fundamentais. São os deno-
minados direitos fundamentais em sentido material, os quais mesmo não
positivados não perdem seu caráter de essencialidade aos indivíduos, daí a
necessidade de reconhecê-los, nos termos da cláusula de abertura disposta
no art. 5º, §2º, da Constituição Federal (SARLET, 2012, p. 75).
A CRFB/88 é um documento de alta carga valorativa que representa
uma ruptura do passado ditatorial com a consequente instituição de um
Estado Democrático, comprometida com o respeito à dignidade das pes-
soas através da efetivação dos direitos fundamentais, dentre os quais en-
contra-se a liberdade. Ocorre que seria utópico esperar a previsão exaus-
tiva dos direitos fundamentais – logo, de todas as espécies de liberdade
– necessários para a proteção do indivíduo. Ademais, apesar de sua su-
premacia, a Constituição representa uma parte do ordenamento jurídico,
necessitando, sob o viés interpretativo, de um complemento da doutrina
e, quando retirada da inércia, da própria jurisprudência.
À vista disso, o indivíduo, ao sentir sua liberdade restringida, não es-
tará limitado pela liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade de
locomoção, liberdade de informação, liberdade de profissão, liberdade de
associação, tampouco na liberdade de reunião, as quais estão previstas ao

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decorrer dos incisos do art. 5º da CRFB/88. A cláusula de abertura per-


mitirá uma construção jurisprudencial capaz de se aprofundar na interpre-
tação sistemática do direito suscitado pela parte, assim como acontecerá
pelo STF quando da análise das ADIs nº 6586 e 6587.
Pode-se dizer que o direito geral de liberdade provém do valor da
autonomia de escolha, da autonomia privada, tendo como ideia principal
a de que o Estado deve tratar as pessoas sob seu domínio como se res-
ponsáveis fossem para assumir decisões com reflexos a si mesmas (MAR-
MELSTEIN, 2019, p. 107-108). Deve o Estado permitir o livre-arbítrio
dos indivíduos sempre que possível, sendo a liberdade de poder fazer o que
se quer uma regra e eventual limitação uma exceção. Exceção que deverá
ser imposta por lei, como visto anteriormente.
Por outro lado, a lei não pode tudo. Todas as leis nascem com presun-
ção de validade, mas trata-se de uma presunção iuris tantum, pois apesar
de terem sido respeitados todos os procedimentos para a sua elaboração
– hipoteticamente –, ainda assim pode haver uma inconstitucionalidade
material, relativa ao vício de conteúdo. Daí a necessidade da existência
do controle de constitucionalidade, razão pela qual os partidos ajuizaram
as ADIs 6586 e 6587 em face da Lei º 13.979, especificamente devido ao
artigo 3º, inc. III, alínea “d”, que será visto detalhadamente a seguir.

4. EXAME DE VALIDADE DA LEI 13.979/2020,


RESTRITIVA DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE

A viabilidade de vacinação compulsória prevista no art. 3º, inc. III,


alínea “d”, da Lei º 13.979, representa uma nítida colisão de direitos fun-
damentais, uma vez que a obrigatoriedade da vacina, a qual objetiva ga-
rantir o direito fundamental à saúde – e, consequentemente, o direito à
vida –, oriunda da necessidade de evitar (ao menos tentar) a contaminação
das pessoas e a propagação do vírus, afeta o exercício do direito funda-
mental à liberdade.
Tem-se, com isso, uma limitação externa ao direito fundamental à
liberdade por meio da restrição imposta pela lei infraconstitucional su-
pracitada (NUNES JÚNIOR, 2020, p. 690). Resta verificar se essa re-
gra representa uma limitação válida, constitucional, que não extrapola os
limites oriundos do princípio da supremacia da Constituição, ou se essa

251
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

limitação do direito fundamental à liberdade, oriunda da vontade do le-


gislador, é inválida, inconstitucional, que excede na proibição do exercício
do direito fundamental. Essa verificação se dará através do princípio da
proporcionalidade41.
O exame da proporcionalidade representa ferramenta necessária para
decidir sobre determinado conflito, pois através da realização do seu esca-
lonamento, composto pela análise da adequação, necessidade e proporcio-
nalidade em sentido estrito, consegue-se verificar a inconstitucionalidade
ou mesmo constitucionalidade da lei restritiva de direitos fundamentais,
no caso, do direito à liberdade. Ademais, “(...) todas as limitações impos-
tas a um direito fundamental pelo legislador devem satisfazer o critério da
proporcionalidade que tutela conteúdos essenciais do direito limitado”.
(DIMOULIS; MARTINS; 2018, p. 196).
A apuração da proporcionalidade da Lei nº 13.979, que dispõe sobre
medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente
do coronavírus, servirá como um mecanismo de justificação para a in-
tervenção do direito à liberdade ao prever a compulsoriedade da vacina
ou, pelo contrário, servirá como um instrumento capaz de demonstrar a
interferência desnecessária do direito à liberdade em prol do direito à saú-
de – logo, à vida – ao impor a vacinação obrigatória, resultado da colisão
desses direitos fundamentais.
Previamente, antes de adentrar no escalonamento do exame da pro-
porcionalidade, Dimoulis e Martins (2018, p. 228-236) ressaltam que se
deve constatar a licitude do propósito perseguido (do fim) e, em seguida, a
licitude do meio utilizado para somente após, de forma sucessiva, passar ao
exame da adequação. Necessário, neste passo, saber se o fim almejado pela
lei, assim como o meio empregado para atingir o seu objetivo, são consti-
tucionalmente admitidos (DIMOULIS; MARTINS, 2018, p. 229).
No caso em questão, tem-se a Lei nº 13.979, a qual prevê a possi-
bilidade do Ministro da Saúde, bem como dos gestores locais de saúde,
adotarem, com base em evidências científicas, vacinação compulsória às
pessoas no intuito de evitar a contaminação e a propagação do vírus. O
propósito perseguido com essa medida encontra amparo no direito à vida
garantido no caput do art. 5º, no direito à saúde previsto no caput do art.

41 Este trabalho não objetiva discorrer acerca da discussão envolvendo a natureza da pro-
porcionalidade, se princípio, regra ou critério.

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6º, bem como no princípio da dignidade da pessoa humana, o qual abarca


ambos os direitos, previsto no art. 1º, inc. III, da CRFB/88. Tem-se, as-
sim, um propósito lícito.
O meio utilizado para a imunização das pessoas será a vacinação apoia-
da em evidências científicas, também se tratando de um meio lícito hábil
para perseguir o propósito almejado. A permissão do meio fica cristalina
quando relembrada a já existência da obrigatoriedade de vacinação no art.
14, §1º, do ECA, não havendo maiores dificuldades para essa avaliação.
De modo contínuo, deve-se verificar casuisticamente a adequação
que, como o próprio nome diz, sugere observar se a norma que restringe
determinado direito fundamental é adequada ao fim proposto. No caso,
imprescindível averiguar se a Lei n. 13.979, em especial seu art. 3º, inc.
III, alínea “d”, que prevê a vacinação obrigatória, é adequada para o fim
a que se destina, qual seja: proteger a coletividade do problema de saúde
pública decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, nos
termos dos seus arts. 1º, §1º, 2º, inc. I e II, 3º-H, 5º e 6º.
A compulsoriedade da vacina, que somente será imposta com base
em evidências científicas, consoante art. 3º, §1º, da lei em análise, fomen-
ta a concretização do objetivo de proteger a coletividade, tendo em vista
que a vacina obrigatória visará a imunização de toda a população brasileira
e, dessa forma, conseguirá, de forma efetiva, imunizar grande parte das
pessoas que, com receio das consequências pela abstenção, irão se vacinar.
Dessa maneira se consegue evitar novos surtos da doença pandêmica ou
mesmo reduzir a sua letalidade, protegendo-se, assim, o direito funda-
mental à vida que se dará através do direito fundamental à saúde concreti-
zado através da compulsoriedade da vacina.
Passa-se, agora, para a segunda fase do escalonamento da proporcio-
nalidade, ou melhor, para o exame da necessidade; momento dedicado
para estimar a imprescindibilidade da medida adotada pela lei, responsável
pela restrição do direito fundamental. Crucial averiguar se há outras me-
didas capazes de serem adotadas para atingir o objetivo pretendido, mas
que ao mesmo tempo sejam menos restritivas de direitos – menos lesivas
ao direito à liberdade, no caso, à liberdade individual de poder se recusar
a tomar a vacina. Um ponto importante: intensidade.
No caso em questão, campanhas de conscientização seriam mais be-
néficas ao objetivo buscado, uma vez que não iriam sequer restringir o

253
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

direito de liberdade das pessoas, as quais poderiam optar pela vacinação.


Através de campanhas de conscientização, de divulgações sobre os bene-
fícios e a necessidade da vacina, os próprios indivíduos se sentiriam pres-
sionados, mas de uma forma benéfica, a se vacinar para evitar novos surtos
do coronavírus e, assim, poder voltar normalmente à vida antes da doença.
Nada obstante, certamente que essa estratégia de campanhas de
conscientização não possuem a mesma intensidade que a compulsorie-
dade da vacina. De se levar em consideração a gravidade da doença, tan-
to que há quem faça comparações entre a pandemia atual com a de 1918
que ficou conhecida como “gripe espanhola”. Até o momento em que
este artigo é redigido, mais de 150.000 pessoas morreram em razão do
COVID-19 somente no Brasil. Quanto a forma de contágio, sabe-se
que alguém pode se infectar ao inalar o vírus se estiver perto de alguém
contaminado ou ao tocar em uma superfície contaminada, ou seja, basta
um descuido para se contaminar.
Não cabe ao intérprete da lei discorrer sobre a doença em si, apenas
dar o enquadramento legal, todavia, tais conhecimentos tornam-se im-
portantes no momento de verificar a necessidade da medida adotada pela
lei. Destarte, campanhas de conscientização para que a população resolva
tomar a vacina espontaneamente, considerando a gravidade, não parecem
dispor de intensidade suficiente para atingir o fim almejado de proteger a
coletividade, tendo em vista que campanhas levam tempo. Verifica-se, sob
esses argumentos, necessidade da compulsoriedade da vacina.
Passa-se, enfim, ao exame da proporcionalidade em sentido estrito,
momento em que se deve ponderar os interesses em conflito: de um lado,
o direito à liberdade individual, de optar pela vacinação ou não; de outro,
o direito à saúde da coletividade, que reflete no direito à vida. Ao que
parece, o direito tutelado pela norma legal (a saúde pública) retrata um
bem maior que o direito supostamente violado pela norma (a liberdade
individual), mas passar-se-á para a análise casuística.
O direito à vida, como visto anteriormente, é considerado um dos
mais relevantes do ordenamento jurídico brasileiro. De outra forma, a
intensidade com que a referida lei atinge o direito à liberdade não des-
fruta de gravidade, uma vez que a lei não está compelindo fisicamente
a vacinação às pessoas. A compulsoriedade será concretizada através de
consequências para quem não tomar a vacina, assim como já ocorre com

254
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

quem não vota, não justifica, tampouco paga a multa. Nada impede que,
no dia da eleição, o cidadão não compareça no local de votação, contudo,
em razão da obrigatoriedade do voto, este não poderá realizar uma série
de condutas previstas em lei, como a inscrição em concurso público, a
obtenção de passaporte e assim sucessivamente. O mesmo pode ocorrer
em razão da obrigatoriedade da vacina.
Portanto, foi possível averiguar, através do exame da proporcionalida-
de, que a vacinação compulsória prevista na Lei n. 13.979 serve, de fato,
como um mecanismo de justificação para a intervenção do direito à liber-
dade individual. Ao mesmo tempo, verificou-se que a limitação a este di-
reito fundamental constitui uma restrição válida, constitucional e que não
extrapola os limites oriundos do princípio da supremacia constitucional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Derivada da polarização evidente nos últimos anos no Brasil, a vaci-


nação compulsória tornou-se mais um assunto de discussão política que
contribuiu com o surgimento de dois grupos distintos: de um lado, os
que defendem vigorosamente a imposição de vacinação em massa e, em
lado oposto, os que contestam pela sua não obrigatoriedade. Como con-
sequência, além de projetos de lei, foram ajuizadas duas ADIs acerca desse
assunto, cabendo, de ora em diante, ao STF decidir a constitucionalidade
ou inconstitucionalidade da vacinação compulsória.
As referidas ações diretas tiveram como objeto a Lei nº 13.979, a qual
assevera, em seu art. 3º, inc. III, alínea “d”, a possibilidade de se adotar a
vacinação obrigatória como medida de enfrentamento de saúde pública
decorrente do coronavírus. Ao mesmo tempo, a lei condiciona essa con-
duta a evidências científicas, de modo a promover a saúde pública. Fica
perceptível a preocupação contida na lei: a de proteger a coletividade.
De modo coincidente, as ADIs ajuizadas possuem a mesma preocu-
pação, em que pese com pedidos divergentes. Ambas as ações visam a
preservação da saúde da população, que nesse caso, como visto no capí-
tulo dois, confunde-se com o direito à vida. Percebeu-se, contudo, que a
discussão advém, por parte da ADI 6587, do receio de ser imputada uma
vacina que não seja segura, tendo em vista a rapidez com que está sendo

255
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

cogitada a sua fabricação, bem como da falta de transparência, devendo-


-se, assim, ser resguardado o direito de liberdade individual.
Mesmo assim, após realizado o exame da proporcionalidade com o
seu escalonamento (adequação, necessidade e proporcionalidade em sen-
tido estrito), verificou-se a constitucionalidade da medida imposta pela lei
em questão, uma vez que a compulsoriedade da vacina possui intensidade
necessária para o fim buscado. A liberdade individual, neste caso, se res-
tringe minimamente para que a saúde da coletividade seja alcançada, vez
que nenhum dos direitos fundamentais são absolutos.
Portanto, a Lei nº 13.979 é clara ao assegurar que somente será possí-
vel adotar a medida de compulsoriedade da vacina com base em evidências
científicas. Enquanto não houver evidências empíricas sobre uma possível
vacina contra o COVID-19, capaz de repetição por outros cientistas, apta
a fornecer a devida segurança, não há que se falar em obrigatoriedade de
tal medida.

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258
A DEFESA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS COMO DISFARCE
PARA O EXERCÍCIO DO ATIVISMO
JUDICAL
Lucas Gabriel Ladeia Cirne42
Caroline Carneiro Gusmão43

INTRODUÇÃO

No contemporâneo contexto do direito, o Poder Judiciário assumiu a


condição de peça central na engrenagem do ordenamento jurídico. Nesse
sentido é certo que as raízes do atual panorama remontam a meados do
século XX, momento em que se transferiu para esse órgão a função de
principal ferramenta de reconstrução do Estado democrático após a Se-
gunda Grande Guerra. No Brasil esse fenômeno ganhou cores ainda mais
vivas a partir da promulgação da Constituição de 1988 que consagrou

42 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Uni-


versitário Guanambi (UniFG). Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Di-
reito Prof. Damásio de Jesus. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado
(UNIJORGE). Membro do Núcleo de Estudos de direito, economia e instituições (NEDEI).
Advogado.
43 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Uni-
versitário Guanambi (UniFG). Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia (UESB). Pesquisadora do SerTão – Núcleo Baiano de Direito e Literatura. Diretora
de Mulheres da Lei do Capítulo Salvador da J. Reuben Clark Law Society (http://www.jrcls.
org/). Advogada.

259
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

uma enorme lista de direitos fundamentais, inaugurando a obrigação do


Estado na tutela dessas demandas.
Conforme destacado, embora esse contexto não se restrinja ao Brasil,
encontra na sociedade do país um terreno fértil para o seu desenvolvi-
mento, notadamente em face das demandas sociais e formas de acesso à
justiça afirmadas no texto constitucional, promulgado após longo período
ditatorial (COSTA, 2017). Em face desse movimento, o poder das Cortes
é reforçado diuturnamente, em paralelo ao crescimento das doutrinas que
defendem uma postura ativa do Poder Judiciário na defesa dos direitos
fundamentais.
Ocorre que, na outra extremidade do Estado democrático de direito,
há a necessidade de se respeitar os limites constitucionais referentes ao
exercício de poder por parte dos juízes. Isso porque, ainda que os direi-
tos fundamentais possuam relevância indiscutível no atual paradigma, não
podem servir de justificativa para uma prática decisória desarrazoada e
discricionária dos tribunais. Tratar o tema desse modo obtuso e irredutí-
vel, apenas colabora para o aparecimento do malfadado ativismo judicial.
É justamente esse contexto que o presente artigo, a partir da revisão
bibliográfica, visa discutir: de que modo o Poder Judiciário deve agir para
tutelar os direitos fundamentais sem se transformar em legislador positivo
soberano? Nesse sentido, é necessário, além de analisar o diapasão no qual
se insere o protagonismo do Judiciário, reforçar o caráter constitucional
e imperativo dos direitos fundamentais dentro da contemporânea ordem
mundial. Além disso, válido também destacar as diferenças entre o que se
classifica como ativismo judicial e como judicialização da política, a fim
de estabelecer os parâmetros sobre os quais o texto será desenvolvido. Por
fim, como caráter ilustrativo, serão apresentadas decisões proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal, a fim de demonstrar de que modo a temática
discutida possui azo dentro dos tribunais pátrios.

1. A FORÇA NORMATIVA DAS CONSTITUIÇÕES E O


PROTAGONISMO DO PODER JUDICIÁRIO

Conforme sinteticamente salientado, o processo de reforço das Cons-


tituições e de redirecionamento do papel do Judiciário relaciona-se ao pe-
ríodo de reconstrução do mundo, a partir da segunda metade do século

260
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

XX. Com efeito, as barbaridades perpetradas durante a II Guerra Mun-


dial originaram a visão de que os direitos fundamentais de nada valeriam,
ainda que estivessem textualmente previstos, se não houvesse maneira de
efetivamente concretizá-los (SOARES; ANDRADE, 2019). Em razão
disso, após o conflito veio à tona um movimento de revisão do constitu-
cionalismo, pautado na tutela e na efetivação desses direitos (SOARES;
ANDRADE, 2019), transformando as Constituições reais “cartas de di-
reitos e garantias de direitos e garantias fundamentais, com força norma-
tiva e de aplicação imediata pelo Estado e pelos particulares” (SOARES;
ANDRADE, 2019, p. 197).
Inaugurou-se um arquétipo de ciência jurídica que definiu novas
funções para a legislação e realocou o Judiciário dentro do ordenamento
jurídico (ABBOUD, 2019), através do reforço normativo da Constituição
e da crença no Poder Judiciário como instituição certa para fazer valer os
postuldos do Estado de Direito.
Toda essa transformação social, que acabou por alçar o Judiciário a
protagonista, refletiu na jurisdição constitucional, especialmente em razão
da criação dos Tribunais Constitucionais que, de início, possuiam a fun-
ção específica de limitação do poder público, com espeque na teoria do le-
gislador negativo formulada por Hans Kelsen. Com efeito, vislumbrando
a impossibilidade de o Parlamento exercer as atividades de autocontrole,
Kelsen estabeleceu a necessidade da criação de um Tribunal Constitucio-
nal independente daquela autoridade (KELSEN, 2003), a fim de legitimar
toda e qualquer decisão. Nesse contexto, em que Kelsen “lança as premis-
sas teóricas fundamentais para a sistematização do controle de constitu-
cionalidade e da respectiva jurisdição constitucional” (ABBOUD, 2019,
p. 482), os Tribunais assumiram o papel de soberanos guardiões da Carta
Magna (PANSIERI, 2016).
Ocorre que, o modelo pensado por Kelsen, embora tenha reverbera-
do em grande parte do mundo pós-guerra, deixou de priorizar o aspecto
substancial da norma, uma vez que se centrou na questão formal do con-
trole de constitucionalidade, equiparando a função jurisdicional – liga-
da à criação de uma norma específica – à função legislativa – referente
à criação de uma norma geral (ABBOUD, 2019). Em razão disso, ino-
bstante a importância da teoria kelsiana como propulsora da construção
do controle de constitucionalidade, é indubitável que o modelo não mais

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coaduna com o contemporâneo paradigma constitucional, especialmente


em face das mudanças experimentadas pelo constitucionalismo a partir
da do seu enlace com a hermenêutica jurídica. Em uma palavra: a tese do
legislador negativo não possui aplicabilidade no atual cenário da jurisdi-
ção constitucional, porque o surgimento de novos fenômenos nos últimos
anos “parecem ter influenciado na sofisticação das técnicas de decisão dos
órgãos da jurisdição constitucional” (SGARBOSSA; IENSUE, 2016, p.
175). Dentre esses fatores, pode-se destacar, por exemplo, o surgimento
de demandas mais complexas que necessitam de nova abordagem inter-
pretativa por parte dos Tribunais Constitucionais para serem resolvidas,
(SGARBOSSA; IENSUE, 2016), assim como a exigencia de um novo
modelo de controle de constitucionalidade, antes inexistente, a partir da
incorporação de direitos por parte das Constituições (SGARBOSSA;
IENSUE, 2016).
No Brasil, somente com a Constituição de 1988 – instrumento ju-
rídico consagrador dos anseios sociais reprimidos durante a ditadura, a
partir de um catálogo de direitos fundamentais – é que se começou a vis-
lumbrar os direitos e garantias fundamentais como verdadeiros pilares da
democracia (STRECK, 2018).
Em paralelo a esse processo passou-se a discutir o papel do Poder Ju-
diciário na concretização dos ditames constitucionais. Como bem assinala
Streck (2018, p. 170) “a partir do quinto e sexto aniversário da Consti-
tuição que se intensificaram os debates acerca do papel da Constituição e
do Poder Judiciário, com a produção de intensa literatura”. Isso porque,
embora tenha havido a inauguração de um modelo de sociedade demo-
crática, baseado no respeito e concretização dos direitos fundamentais, o
Estado não foi capaz de atender as demandas sociais previstas no texto.
Dai nasce em solo nacional o processo de readequação do Poder
Judiciário que passa a ocupar lugar de destaque na efetivação desses di-
reitos fundamentais. Observa-se, porém, que para além de um natural
rearranjo de poderes pelo qual passava o mundo ocidental, a supremacia
dos Tribunais, especialmente no Brasil, perpassou pela ineficiência do Po-
der Executivo, especialmente porque o papel da jurisdição constitucional
na efetivação de direitos sociais/fundamentais pressupõe a inexistência da
efetividade da Constituição e/ou dos poderes públicos na implantação de
políticas voltadas à concretização desses direitos (STRECK, 2003). Des-

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tarte, como bem salienta Tassinari (2016, p. 192), a interferência do Ju-


diciário, notadamente da Suprema Corte, nas questões políticas e sociais,

é resultado da crise institucional pela qual passam as instituições


políticas, isto é, pelos fracassos de suas intervenções. Em outras
palavras, é preciso reconhecer as fragilidades do sistema político,
mas também suas responsabilidades na transferência da autoridade
política ao STF, sendo possível visualizar um governo de juízes.

É nesse panorama que se ergue o debate acerca do papel desempenha-


do pelo Judiciário na proteção e concretização dos direitos fundamentais e
dos limites a serem seguidos nesse ofício. Antes, todavia, é preciso destacar
a dimensão dos direitos fundamentais no atual cenário do direito.

2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DENTRO DO


MODELO CONSTITUCIONAL DE ESTADO

Para se falar em direitos fundamentais é preciso, primeiro, destacar a


pluralidade semântica do próprio termo. Isso porque, tanto na doutrina,
quanto na legislação é possível encontrar expressões diversas que são utili-
zadas, como sinônimos, para se referir a eles. (SARLET, 2012).
Tal confusão tem como principais vetores as expressões “direitos
fundamentais” e “direitos humanos”, utilizados muitas vezes em sentido
semelhante. Em verdade, não há como negar que, por um lado, os direi-
tos fundamentais são humanos, afinal de contas, são de titularidade dos
homens. Essa explicação, entretanto peca pela maneira simplista que se
apresenta, sendo certo que a mais habitual e conclusiva elucidação é a que
afirma que os direitos fundamentais são os direitos humanos reconhecidos
e positivados nas Constituições (SARLET, 2012).
Feita essa incial e sintética explanação, cumpre destacar que o desen-
volvimento da noção de direitos fundamentais está intimimante relacio-
nado ao Estado constitucional. Isso porque, a formação desse paradigma
ocorreu em consonância com o movimento de incorporação dos direitos
humanos – de caráter internacional – nas Constituições nacionais.
No Brasil, a Constituição de 1988, fazendo eco às transformações
ocorridas antes na Europa, inaugurou um novo modelo, alicerçado pelo

263
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

constitucionalismo democrático, originado na Constituição de Weimar


(ABBOUD, 2019). Nessa direção, a Constituição deixa de ser apenas um
documento de limitação de poder do Estado e passa a “perseguir um ob-
jetivo principal, qual seja: assegurar a existência de alguns princípios cons-
titucionais fundamentais” (ABBOUD, 2019, p. 449).
Outrossim, além da natureza limitadora dos direitos fundamentais, a
sua consagração na Constituição elevou esses direitos à condição de cria-
dor da legitimação do Estado. Isso, porque o poder apenas pode se justi-
ficar e legitimar caso seja exercido em prol da concretização dos direitos
fundamentais (SARLET, 2012). Essa barreira que reduz a possibilidade
de exercício dos poderes – especialmente o Legislativo – pauta-se no con-
teúdo dos direitos fundamentais. Nesse cenário, vislumbra-se um espaço
intangível no qual os direitos fundamentais se mantêm resguardados dos
abusos do Estado. Destarte, como explica Lopes (2004, p. 8), “o legisla-
dor, em matéria de direitos fundamentais – tem duas obrigações: o dever
de concretizar o conteúdo normativo desses direitos permitindo a sua real
aplicação e o dever de respeitar seu conteúdo essencial”.
E não é só. No Estado (democrático) constitucional, a natureza dos
direitos fundamentais não somente baliza a atividade estatal, como tam-
bém a vincula. Outrossim, é a partir dos direitos fundamentais que, em
teoria, a democracia se constrói e define como os governantes devem agir,
ou seja, o que eles não podem decidir e o que eles devem decidir (COPE-
TTI NETO, 2016). A base, pois, do modelo de Estado constitucional são
os direitos fundamentais, ou, de forma ainda mais específica, a necessida-
de imperiosa da sua proteção e concretização.
Diante do todo exposto não restam dúvidas acerca da importância ad-
quirida pelos direitos fundamentais no panorama do Estado constituional.
No caso do Brasil, que possui uma Carta analítica e repleta de garantias,
eles ganham ainda mais relevância, não apenas por estarem positivados e
pertecerem ao conteúdo constitucional, mas também pela sua natureza
cogente que obriga o Estado a agir em prol da sua tutela.
Em razão disso, é louvável e importante que o Judiciário se debruce
sobre questões relativas à proteção a efetivação de direitos fundamentais,
especialmente quando os demais poderes do Estado se mostrarem incapa-
zes. Não há como se vislubrar justiça social e desenvolvimento nas demais
áreas em um contexto de descrédito e falta de amparo das garantias cons-

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titucionais fundamentais. Essa tutela, entetanto, quando conferida pelos


Tribunais deve respeitar as balizas legais e constitucionais para que se evite
o desequlíbrio entre os poderes e instituições estatais, bem como a con-
solidação de uma instância soberana judiciária, capaz de agir de forma in-
discriminada e autoritária, sob o pretexto de estar prestando ums serviço
essencial à sociedade.

3. ATIVISMO JUDICIAL VS JUDICIALIZAÇÃO DA


POLÍTICA

Antes de adentrar a seara que entrelaça os direitos fundamentais e o


ativismo judicial é preciso estabelecer uma diferenciação conceitual de
suma importância entre dois institutos: a judicialização da política e o ati-
vismo judicial. Esse exercício inicial se mostra forçoso em razão da relação
existente entre ambos os conceitos que, por vezes, inebria os estudos sobre
a temática. Há, portanto de se desfazer a citada miscelânea de conceitos,
pois, ainda que haja semelhança entre eles, devem-se evitar confusões ca-
pazes de deturpá-los e/ou dificultar o entendimento (PENNA, 2017 a).
Falemos primeiro de judicialização da política, conjectura que se molda
a partir da assunção do protagonismo do Poder Judiciário dentro do ordena-
mento jurídico, da imperatividade dos direitos fundamentais ganham, e da
ânsia da população em buscar os Tribunais com o intuito de ver protegidas
suas demandas e concretizados seus direitos. O conceito de judicialização
surge juntamente com o conjunto de questões políticas ou sociais decididas
pelo Poder Judiciário, ao invés de serem analisadas pelas instâncias políticas
clássicas: o Poder Executivo e o Congresso Nacional (BARROSO, 2012).
Há, pois, um processo de transferência de legitimidade de poder para os
Tribunais, o que ocasiona uma mudança na decisão, na forma de participa-
ção da sociedade e na instituição dos direitos (BARROSO, 2012).
Veja-se que não há juízo de valor acerca da judicialização da política:
ela apenas acontece; é um fenômeno natural e esperado no contexto atual
que decorre um contexto social e político específico do Brasil (embora
existam fortes raízes europeias, especialmente alemãs), voltado a fazer va-
ler as promessas da Constituição (TASSINARI, 2016).
Por outro turno, o ativismo judicial, apesar de conviver no mesmo
ambiente da judicialização da política, não se confunde com ela, pelo fato

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de transitar em um campo de discricionariedade inaceitável no Estado


democrático. Nesse sentido, pode-se dizer que ativismo judicial surge
“quando juízos jurídicos são substituídos, por exemplo, por vontades po-
líticas” (TASSINARI, 2016, p. 112). Vê-se, desse modo, que ativismo se
relaciona com um problema interpretativo (STRECK, 2017) e diz respei-
to, em última análise, à decisão.
No cenário brasileiro esse instituto ganha facetas ainda mais cinzen-
tas, por causa, justamente, do processo de judicialização política que, con-
forme destacado, possui relação direta com o desejo da sociedade em ter
os direitos fundamentais protegidos e concretizados. Não à toa, Streck
(2017, p. 9) afirma que um dos rótulos modernos da discricionariedade –
que apenas muda a roupagem mantendo a sua essência – é o do “ativismo
judicial para defesa dos direitos fundamentais”.
É de bom alvitre esclarecer, para não deixar dúvidas, que a concreti-
zação e a proteção dos direitos fundamentais em face do Estado ou da pró-
pria sociedade, a partir de uma atitude contramajoritária, não configuram
ativismo (ABBOUD, 2019). O ativismo relaciona-se – frise-se – com o
abandono do direito e com a sua substituição por argumentos morais, po-
líticos, ideológicos, econômicos etc, no momento da decisão (ABBOUD,
2019). É por essa razão que se diz que o combate do ativismo equivale ao
combate à discricionariedade. (ABBOUD, 2019).
Perceba-se que, diferente da judicialização política – que ocorre como
fenômeno social – o ativismo é oriundo dos tribunais e está intimamente
ligado à postura arbitrária e subjetiva dos julgadores. É possível dizer, por-
tanto, que enquanto o primeiro instituto é um fato, o segundo é um ato.
O ponto nevralgico e problemático passa a existir a partir do momen-
to em que o Poder Judiciário, sob o manto da defesa dos direitos funda-
mentais, age de forma ativista. É nesse ponto que se abre espaço para a uti-
lização desarrazoada da discrionariedade e do subjetivismo, o que acarreta
sério perigo à estrutura democrática do Estado. Isso porque, os excessos
eventualmente praticados e o desrespeito à Constituição podem ser co-
bertos pela cortina de fumaça da tutela dos direitos fundamentais, como
alerta Tassinari (2016, p. 62), in verbis:

(...) juízes e membros de órgãos colegiados (especialmente, os mi-


nistros do Supremo Tribunal Federal) irão transformar o argumen-

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to constitucional de concretização de direitos em discurso para justi-


ficar os excessos de seus posicionamentos, seja pelo rótulo, muitas
vezes indevido, do que ficou conhecido como judicialização da
política ou mesmo através de posicionamentos que, incentivados
por um clamor populista, são contrários ao que está previsto no
próprio texto da constituição, o que, num plano simbólico, acaba
elevando o judiciário brasileiro à constituinte.

É de se observar que esse tipo de postura dos Tribunais, especial-


mente do STF, abre precedente para a consolidação de um modelo des-
regulado e autoritário. Além disso, cria-se um paradoxo teórico intrans-
ponível: o desrespeito aos limites da Constituição para emplacar uma
interpretação judicial sob a justificativa de defender e concretizar direitos
fundamentais previstos na própria Constituição. Ou seja, desrespeita-se
a Constituição para cumprir o que ela mesma determina. Desse modo,
caminha-se para autorizar a Corte Suprema a decidir qualquer coisa so-
bre qualquer tema.
Nesse ponto que se combate a tese – ainda defendida por muitos,
inclusive na Corte Maior – do “bom ativismo”. Não há bom, nem mau
ativismo: toda e qualquer postura que caminhe nessa direção é perigosa e
deletéria ao Estado constitucional democrático.

Todo ativismo é ruim para a democracia, porque em uma de-


mocracia constitucional, ao juiz é defeso trocar o direito por sua
convicção ideológica. No Estado Constitucional, progressistas e
conservadores devem divergir os aspectos políticos; contudo, na
solução de questões jurídicas, não deveria haver discordância acer-
ca de onde dar início à construção da decisão judicial, ou seja, as
leis e a Constituição (ABBOUD, 2019, p. 1295).

Diante do quadro apresentado se mostra ainda mais importante o


constante debate da questão cerne do presente trabalho: os direitos fun-
damentais devem ser protegidos e concretizados, na prática, pelo Poder
Judiciário, quando os demais poderes legítimos não se mostrarem capazes,
mas isso não pode servir de subterfugio para que se aplique um direito
discricionário e autoritário.

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4. A NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE A DEFESA DOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ATIVISMO JUDICIAL

Não se pretende nesse texto levantar argumentos contrários ao escor-


reito exercícío do Poder Judiciário na defesa dos direitos fundamentais.
Como diz o próprio nome, essas garantias são fundamentos do Estado
democrático constitucional de direito e devem ser encaradas como priori-
dade na formatação e desenvolvimento da sociedade. Nesse sentido, cabe
ao Estado concretizar o poder normativo da Constituição e as promessas
contidas em seu texto, seja através dos tradicionais poderes Legislativo e
Executivo, ou via judiciário.
O que se contesta é, no mesmo panorama, o exercício decisório irra-
cional por parte dos tribunais, notadamente quando se está diante de um
caso que envolva a tutela dos direitos fundamentais. Não se trata, pois de
minimizar a importância dos direitos, mas sim de batalhar para que eles
sejam concretizados dentro de um quadro vinculante e constitucional,
sem qualquer subjetivismo e discricionariedade.
A fim de aclarar ainda mais o debate utiliza-se, mais uma vez, das
lições de Abboud (2019, p. 1307) que exemplifica a questão de forma
didática. Vejamos.

Nesse ponto, não se pode perder de vista que a decisão de um


juiz que conceda tutela judicial atípica para fornecer remédio ou
tratamento a segurado do INSS não deve necessariamente ser
classificada como ativista. Pelo contrário, trata-se de decisão que
concretiza direito fundamental do cidadão à saúde. Essa decisão,
desde que devidamente motivada nos termos da CF 6º e 93 IX,
não deverá ser inquinada de ativista, porque está pautada na legali-
dade e na legitimação constitucional. Em contrapartdia, a decisão
judicial, que, a pretexto de assegurar direito à filiação e ao conhe-
cimento da paternidade biológica, ralativiza a coisa julgada, será
ativista. Isso porque referido julgado foi exarado com fundamento
em senso de justiça do magistrado em detrimentoda legalidade vi-
gente. Ou seja, cuida-se de decisão prolatada à custa da lei, com o
subterfúgio de asegurar, no caso concreto, o critério daquilo que
pareceria mais justo ao magistrado.

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Veja-se que não se trata de uma questão apenas teórica ou acadêmcia


referente à teoria da decisão ou ao asseguramento dos direitos fundamen-
tais. O assunto em tela possui condão de gerar consequências práticas e
concretas. Imaginemos que a atividade jurisdicional discricionária seja de
qualquer modo autorizada pela doutrina jurídica e pela sociedade. Qual
seria o limite, por exemplo, do STF no momento de decidir sobre temas
sérios e de ampla repercusão social? Quem (ou quais) seriam os seus fis-
cais? Passaria-se a viver em um Estado onde o Poder Judiciário se trans-
formaria em legislador superior, podendo criar e desfazer qualquer lei, a
partir da interpretação que, no momento do julgamento, fosse mais apete-
cível a cada juiz. Um verdadeiro caos e desmando!
É nisso que reside a importância de se definir os conceitos de ati-
vismo judicial e judicialização da política e de se analisar, caso por caso,
se há fundamentação jurídica nas decisões proferidas pelos Tribunais do
país. Isso porque o ativismo se manifesta quando menos se espera, traves-
tido, em grande parte, de cumprimento constitucional de defesa de direi-
tos fundamentais. Destarte, aproveitando-se do fato de os dois institutos
citados nem sempre serem vistos de maneira tão cristalina, o Judiciário é
ativista aparentemente concretizando direitos (TASSINARI, 2016).

Disfarçadas de uma espécie de ativismo própria de nossas terras,


verdadeiros álibis judiciais, vêm sendo utilizados para tentar dar ao
Judiciário atribuições que ele não possui, invadindo, inclusive, as
esferas de atuação dos demais poderes. Novos institutos oriundos
de sistemas alienígenas vêm sendo adaptados à nossa “realidade”
constitucional e à “vontade” de juízes e tribunais pátrios (PEN-
NA, 2017 a, p. 10).

No contexto atual da Suprema Corte brasileira encontram-se diver-


sos exemplos nos quais o ativismo judicial foi posto na mesa sob o argu-
mento de se estar decidindo em prol dos direitos fundamentais. Vejamos
dois desses casos, a título de explanação.
Em primeiro lugar, vamos à Ação de descumprimento de preceito
legal (ADPF) nº 347 (BRASIL, 2015), na qual o proponente requeria do
Judiciário o reconhecimento do chamado “Estado de Coisas Inconstitucio-
nal” em razão da realidade experimentada nos presídios do país, pleitean-

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do, em face disso, a adoção de medidas por parte do STF. Pois bem, diante
desse quadro, o relator da ação entendeu que “a forte violação de direitos
fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade da pessoa humana e
ao próprio mínimo existencial justifica a atuação mais assertiva do Tribu-
nal”. Nesse mesma senda, foi consagrado no citado voto que seria papel
do Judiciário “retirar as autoridades públicas do estado de letargia, pro-
vocar a formulação de novas políticas públicas, aumentar a deliberação
política e social sobre a matéria e monitorar o sucesso da implementação
das providências escolhidas”, a fim de garantir a concretização efetiva das
resoluções propostas.
De se observar que o voto do Ministro Relator escancara as maze-
las infindáveis do sistema penitenciário brasileiro, ressaltando o ataque
frontal e corriqueiro aos direitos fundamentais dos presos. Ocorre que,
tais circunstâncias não podem justificar uma judicialização das políticas
públicas, nem tampouco uma absorção de competências legislativas e/ou
executivas do Poder Judiciário. O ideal é que o voto proferido servisse “de
estímulo ao Executivo ou até mesmo como justificativa de projeto de lei
ou algo que o valha para o Legislativo. Porém não como função do Judi-
ciário, significando uma judicialização das políticas públicas, o que não se
deve aplaudir.” (PENNA, 2017 a, p. 15).
Embora seja indubitável a importância social da ação em comento,
ela não pode significar a quebra de todo limite na atuação do Poder Judi-
ciário. Não cabe, portanto, ao STF determinar medidas orçamentárias à
administração pública ou, ainda, ser fiscal coordenar a atuação de órgãos
do Estado, por exemplo, devendo o órgão se limitar somente a realização
de um julgamento jurídico (TASSINARI, 2016). As boas intenções e a
necessária defesa dos direitos fundamentais não podem, nesse diapasão,
servir para justificar uma postura ativista, desarrazoada, discricionária e
que, apesar de parecer prudente aos olhos da sociedade, nada faz além de
enfraquecer os laços democráticos, violando as atribuições imputadas pela
Constituição (PENNA, 2017 b).
Outro caso concreto que serve de paradigma exemplificativo é a
ADPF nº 132, cuja relatoria coube ao Ministro Ayres Britto. A ação ver-
sou sobre os direitos das pessoas homoafetivas e conteve como pedido
principal, a realização de uma interpretação conforme a Constituição do
art. 1.723 do Código Civil (BRASIL, 2002) no sentido de estender a

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proteção conferida à união estável (heteroafetiva) às relações homoafetivas.


Indiscutível, novamente, o caráter primordial da ação em tela e os direitos
fundamentais que ela buscou proteger.
Ocorre que, a interpretação conferida pelo STF para atender o pleito
do requerente ultrapassou o limite hermenêutico e constitucional. Veja-se:
o art. 1.72344 do Código Civil, em essência, apenas reproduz o mandamen-
to constante no §3º do art. 22645 da Constituição Federal (BRASIL, 1988),
que reconhece a união entre homem e mulher como entidade familiar. Ora,
se o Código Civil já coaduna com a diretriz constitucional não cabe confe-
rir uma nova interpretação ao seu artigo, ou melhor, uma interpretação que
exceda o que objetivamente encontra-se na Carta Magna.
Caberia, nesse caso, ao Poder Legislativo, via emenda constitucional,
garantir os direitos das pessoas homoafetivas. Mais uma vez, todavia, com
fundamentação em elementos não jurídicos, bem como na defesa dos di-
reitos fundamentais, o STF colaborou com a construção de um cenário
desarmônico dentro do contexto do Estado democrático.
As decisões como as citadas, ao mesmo tempo em que fortalecem o
poder criativo e discricionário dos tribunais, diminuem a força normativa
da Constituição, em sentido oposto ao que se espera em uma sociedade
democrática constitucional de direito.

5. CONCLUSÕES

Diante do todo exposto, verificam-se algumas premissas que devem


nortear o entendimento do exercício da atividade jurisdicional no mo-
mento da defesa dos direitos fundamentais. Em primeiro lugar, ressalta-se
que, frutos de uma construção histórica determinante, as garantias e di-
reitos positividados na Constituição assumem caráter vinculante e obriga-
tório no sistema do Estado democráticos de direito. Tanto assim que nada
mais correto do que a utilização da nomeclatura “fundamentais” para a

44 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família.
45 Art. 226,§ 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casa-
mento.

271
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eles fazer referência. Em face disso, a sua concretização e defesa deve ser
função prioritária dos poderes estatatais.
Ocorre que, essa tutela tem que respeitar os limites constitucionais.
Não se pode quebrar a arquitetura institucional do país sob o argumento
de defesa dos direitos funamentais, sob o risco de se construir e consolidar
um poder supremo capaz de ordenar todas as regras sem limitação.
O Poder Judiciário, alicerçado pelo diapasão de protagonismo alcan-
çado na contemporaneidade, em muitos momentos, parece esquercer des-
sa premissa básica do Estado, a partir da utilização dos direitos fundamen-
tais como subterfurgio necessário e sufiente na implantação de decisões
ativistas.
A concretização da Constituição buscada pela judicialização da po-
lítica não pode projetar o papel político dos Tribunais – notadamente o
STF – a um status soberano e ilimitado, a partir da não observância dos
ditames constitucionais.
Em síntese, cumpre não relativizar a importância dos direitos funda-
mentais como limitador e legitimador do poder, bem como consagrador
da existência dos cidadãos e da democracia. Por outro lado, a sua defesa
não pode ser cega e ilusória. Ora, se é a propria Constituição, que trans-
muta os direitos humanos em direitos fundamentais e garante a preserva-
ção e efetivação desses direitos, não pode ser violada para que se tutelem
essas garantias.
A intransigência em relação à defesa dos direitos fundamentais deve
ser igual àquela conferida para se proteger a Constituição, evitando detur-
pações conceituais e a utilização de justificativas para o exercício judicial
subjetivo e discricionário, sob pena de construir-se um esperial de contra-
dição dificil de ser vencido dentro do Estado democrático constitucional
de direito.

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275
A HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇAS
ESTRANGEIRAS COMO
INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Marco Bruno Miranda Clementino46
Bruno Pereira de Andrade47

INTRODUÇÃO

A globalização, fenômeno que marca o mundo atual, tem diariamen-


te exposto a contradição entre os avanços tecnológicos e a desigualdade
social, causadores de inúmeras crises e conflitos, em variados âmbitos.
Tal fato tem tornado cada vez mais frequente a presença de elementos
internacionais nas pautas prioritárias dos Estados, fazendo crescer, a ne-
cessidade de observância aos princípios das relações internacionais, como
a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, a prevalên-
cia dos direitos humanos, a defesa da paz, a igualdade entre os estados,
entre outros.
O Brasil sempre se mostrou atuante no cenário internacional, sen-
do um membro colaborativo em diversas organizações globais e regionais

46 Mestre em Direito Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Doutor em


Direito Penal pela Universidade Federal do Pernambuco - UFPE.
47 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. Es-
pecialista em Direito Processual Civil e Recursos pela Faculdade Educacional da Lapa/FAEL
(2019). Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido/UFERSA (2018).

276
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

como a antiga Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas, tendo
sido um dos fundadores de ambas.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), consolida,
em seu em seu artigo 4º, os princípios norteadores da política externa bra-
sileira, guiando as relações com outros Estados e as atribuições de natureza
internacional do Congresso Nacional e dos órgãos jurisdicionais.
Assim, o presente estudo tem como objetivo geral analisar aspectos da
cooperação jurídica internacional praticada no Brasil, destacando o papel
das sentenças estrangeiras homologadas, como instrumento de proteção
da dignidade da pessoa humana.
Para tanto, inicialmente, procede-se a uma exposição sobre a coo-
peração jurídica internacional e sua relação com a dignidade da pessoa
humana, a partir da CF/88.
Em seguida, passa-se à análise do procedimento de homologação de
sentenças estrangeiras, suas principais características e requisitos.
Por fim, examina-se o critério do respeito à dignidade da pessoa hu-
mana, analisando-se aspectos doutrinários relacionados à tal exigência e
sua construção na jurisprudência brasileira, refletida nas ações de homo-
logação de sentenças estrangeiras.
A pesquisa se justifica pelo compromisso constitucional assumido
pelo Brasil em observar o fundamento da dignidade da pessoa humana e o
princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
Assim, a problemática visa averiguar se o procedimento de homo-
logação de sentenças estrangeiras serve como mecanismo de proteção à
dignidade da pessoa humana, considerando as normas constantes na or-
dem jurídica pátria.
Tendo como referência os princípios insculpidos na CF/88, supõe-se
que o legislador constituinte pretendia que o País fosse internacionalmen-
te cooperativo, sem, contudo, olvidar princípios fundamentais de igual
importância.
Portanto, em reposta ao problema tratado, parte-se da hipótese de
que o procedimento de homologação de sentenças estrangeiras, mais que
um instrumento caracterizador da soberania estatal, pode servir como
mecanismo de proteção à dignidade da pessoa humana.
Para atingir os objetivos da pesquisa, realizou-se levantamento bi-
bliográfico, analisando-se obras relacionadas ao tema, como livros, teses

277
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

e artigos científicos, além da legislação e entendimentos jurisprudenciais


pertinentes.
O método utilizado no estudo foi predominantemente indutivo, ou
seja, após ser considerado um número suficiente de situações particulares,
relacionando teoria e casos concretos, foi traçada uma conclusão, conten-
do uma verdade geral sobre a problemática tratada na pesquisa.
Finalmente, como contribuição, o trabalho busca proporcionar aos
pesquisadores a oportunidade de aprofundar conhecimentos no campo
relativo ao tema. Para a Academia, a pesquisa pode servir como base teó-
rica, podendo ser aprofundada ou ampliada por outros pesquisadores. Para
a comunidade jurídica, o trabalho pode eventualmente ser útil como fonte
de conhecimentos e servir como parâmetro para outras análises, envol-
vendo a mesma temática.

1. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988

Visando alicerçar a construção de um Estado democrático de direito,


o legislador constituinte inseriu um vasto conjunto de princípios funda-
mentais na Carta Constitucional de 1988.
Em seu primeiro artigo, a CF/88 traz, entre os fundamentos da Re-
pública, a soberania (inciso I) e a dignidade da pessoa humana (inciso III),
como valores elevados do Estado brasileiro.
Por sua vez, o artigo 4º da referida Carta abarca um elenco siste-
matizado de princípios que tratam das relações internacionais do Brasil,
respeitando sua tradição histórica e observando valores que transcendem
os limites territoriais estatais, buscando irradiá-los no cenário interna-
cional, destacando-se a cooperação entre os povos para o progresso da
humanidade.
Segundo Eduardo Felipe Pérez Matias, após a Segunda Guerra Mun-
dial, os Estados foram tomando consciência de que não são autossuficien-
tes, de que o isolamento representa um retrocesso e de que o crescimento
está vinculado à cooperação. Além disso, a coexistência de múltiplos Es-
tados independentes gerou um aumento expressivo de nações e organiza-
ções cada vez mais atuantes no cenário internacional, bem como diversos

278
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

tratados visando mútuas colaborações, buscando estimular o progresso das


relações humanas (2014, p. 206).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH, datada de
1948, reconhece o compromisso de se promover, através da cooperação
com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fun-
damentais.
O documento defende o esforço nacional, através da cooperação in-
ternacional, conforme organização e recursos de cada país, para garantia
daqueles direitos e liberdades, refletindo o ideal de respeito à dignidade
inerente a cada ser humano.
Segundo o artigo 1º da DUDH, todos os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e de-
vem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Por sua vez, o artigo 22 da Declaração dispõe que toda a pessoa, como
membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitima-
mente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais in-
dispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de
harmonia com a organização e os recursos de cada país.
Para André de Carvalho Ramos, tanto nos diplomas internacionais
quanto nacionais, a dignidade humana é inscrita como princípio geral ou
fundamental, mas não como um direito autônomo. Ainda, a dignidade
humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um
substrato material para que os direitos possam florescer (2015, p. 7).
Certas disposições existentes nas Constituições nacionais são capa-
zes de indicar o grau de atenção à dignidade das pessoas, do respeito aos
direitos humanos e de cooperação de um Estado, a partir da inclusão de
expressões textuais que caracterizem tais compromissos perante a comu-
nidade internacional.
Em relação à cooperação, Peter Häberle defende que um Estado cons-
titucional não tem seu foco voltado apenas para si próprio, mas para a co-
munidade das nações, enxergando-a como visualiza a si mesmo, o que se
materializa através da previsão e consagração cada vez maior de princípios
gerais nesse sentido, como aqueles voltados aos direitos humanos e bens
universais como a paz, o meio ambiente, a cooperação entre os povos, a
saúde, educação, etc. (2016, p. 71).

279
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A Constituição brasileira descreve o País como um Estado Democrá-


tico de Direito, tendo a dignidade da pessoa humana como fundamento e
os princípios da prevalência dos direitos humanos e da cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade como valores que devem conduzir
sua atuação tanto interna quanto externamente.
Desse modo, visando elevar valores comuns às nações envolvidas, tais
princípios são tidos como verdadeiros faróis nas relações internacionais
brasileiras. Portanto, ao seguir aquelas diretrizes constitucionais, ante o
atual contexto de globalização, o Brasil se obriga a priorizar os direitos
humanos e a cooperar com outros países.
Marco Bruno Miranda Clementino assevera que, no art. 4º, IX, da
Constituição Federal, há enunciado do qual se extrai norma no sentido de
que o Brasil deve se projetar, nas relações internacionais, como um Estado
cooperativo, estando atento às necessidades existentes num contexto his-
tórico determinado (2016, p. 127).
Essa afirmação consubstancia o fato de que, na atualidade, proble-
mas globais não podem ser resolvidos por um Estado-Nação atuando em
solitário, tampouco por Estados que apenas lutam para ocupar lugar em
blocos regionais.
David Held afirma que à medida que aumentam as exigências ao Es-
tado, surgem problemas que não podem ser adequadamente resolvidos
sem a cooperação de outros Estados e atores não estatais (2012, p. 26).
Nesse contexto, os princípios da prevalência dos direitos humanos
e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade encon-
tram-se interligados, pois através deste último são concretizados diversos
aspectos do primeiro.
Exemplo disso é a cooperação humanitária, realizada através do
apoio em caso de calamidades sociais, como as decorrentes da atual crise
na Venezuela, na fronteira com o Estado de Roraima; em graves desas-
tres em outras nações como a recente explosão de depósito na região
portuária de Beirute, no Líbano; em catástrofes naturais como terremo-
tos; em missões de paz, as quais o Brasil participa junto à Organização
das Nações Unidas; e, finalmente, em modalidades mais específicas de
auxílio entre Estados, envolvendo o Poder Judiciário, como na coopera-
ção jurídica internacional.

280
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Esta última espécie de cooperação internacional tem crescido verti-


ginosamente, devido ao fluxo cada vez maior de pessoas e bens entre os
países, ampliando o leque de relações entre ordens jurídicas diversas.
Esse tipo de cooperação tem, como principal justificativa, o com-
promisso das nações com a realização da justiça e a proteção de direitos
fundamentais, assegurados em tratados internacionais, que tornam tais
ações um verdadeiro dever, haja vista constituir-se em instrumento im-
prescindível ao equilíbrio social, econômico e político no mundo con-
temporâneo.
Nesse processo, a homologação de sentenças estrangeiras é um dos
mecanismos utilizados no intercâmbio internacional para o cumprimen-
to extraterritorial de medidas processuais do Poder Judiciário de outros
Estados.
A seguir, são descritos aspectos gerais e requisitos acerca desse impor-
tante instrumento de cooperação jurídica internacional, em conformida-
de com as normas e doutrina pertinentes.

2. A HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS


E SEUS REQUISITOS

A cooperação jurídica internacional utiliza-se de diversos mecanis-


mos, sendo mais comuns as cartas rogatórias, as sentenças estrangeiras, o
auxílio direto, a extradição e as transferências de execução de penas, de
pessoas condenadas e de processos.
Nesse sentido, Marco Bruno Miranda Clementino afirma que não
há um rol numerus clausus de instrumentos de cooperação jurídica inter-
nacional, ao menos no plano teórico, sendo a cooperação estabelecida em
intrincada teia de relações entre ordens jurídicas (e de vários níveis), cada
tratado internacional, multilateral ou bilateral, assim como cada direito
positivo estatal ou regional pode prever instrumentos diferentes e melhor
adaptáveis à respectiva realidade com a finalidade de promovê-la (2016,
p. 149).
Não se busca, no presente estudo, detalhar os referidos instrumentos,
mas dar um especial enfoque ao procedimento de homologação de sen-
tenças estrangeiras.

281
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Para tanto, cabe inicialmente destacar que tal ato decorre da sobera-
nia, pois um Estado não poder praticar ato privativo do Poder Judiciário
de outro.
Segundo Nádia de Araújo, decorre do fato de o mesmo sofrer limita-
ção territorial de sua jurisdição, atributo por excelência da soberania esta-
tal, e precisar pedir ao Judiciário de outro Estado que o auxilie nos casos
em que suas necessidades transbordam de suas fronteiras para as daquele
(2013, p. 34).
No Brasil, a competência para homologar sentenças estrangeiras é cen-
tralizada, pois o Superior Tribunal de Justiça - STJ é o único órgão legiti-
mado a determinar seu cumprimento, nos termos do artigo 105 da CF/88.
No entanto, a execução daquelas sentenças ocorre perante juiz federal
de primeiro grau, conforme disposições do artigo 109 da Constituição
Federal e do artigo 965 do Código de Processo Civil - CPC, observan-
do-se, para isso, as normas estabelecidas para o cumprimento de decisões
nacionais.
Paulo Portela leciona que esse instituto visa estender territorialmente os
efeitos da sentença, sendo também conhecido como reconhecimento, rati-
ficação ou execução de sentença estrangeira. Uma vez homologada, aquela
produzirá os mesmos efeitos de uma sentença nacional (2017, p. 745).
Nesse processo, o Poder Judiciário realiza apenas um juízo de deliba-
ção, uma cognição não exauriente, pois apenas se verifica o preenchimen-
to dos pressupostos formais, previstos nas normas correlatas.
Portanto, não compete à autoridade judiciária brasileira analisar o
mérito da decisão do magistrado estrangeiro, mas apenas verificar sua
adequação e atendimento aos requisitos previstos na norma processual pá-
tria (ANDRADE, 2020, p. 138).
Em relação às exigências para a homologação de sentenças estrangei-
ras, destacam-se o artigo 15 da Lei de Introdução às normas do Direito
Brasileiro – LINDB e o artigo 963 do CPC.
Tais dispositivos apresentam requisitos idênticos, como a necessidade
de terem sido proferidas por autoridade judiciária competente; tenham
sido as partes regulamente citadas ou haver-se legalmente verificado à re-
velia; haja ocorrido seu trânsito em julgado e estarem revestidas das for-
malidades necessárias à sua eficácia e execução no lugar em que tenham
sido proferidas; serem traduzidas por intérprete autorizado, salvo dispensa

282
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

mediante tratado; além de terem sido homologadas pelo Tribunal com-


petente, que antes era o Supremo Tribunal Federal – STF, mas, após a
Emenda Constitucional nº 45/2004, passou a ser o STJ, excetuando-se os
pedidos de extradição, que permanecem sob competência do primeiro.
Alguns doutrinadores apontam críticas a esse mecanismo de coopera-
ção jurídica internacional.
Marco Bruno Miranda Clementino alega que o instituto não se reves-
te de praticidade, devido ao elevado grau de burocracia a que o submete a
legislação e em face dos requisitos exigidos, tornando-o incompatível com
as exigências de agilidade e eficiência no combate à criminalidade inter-
nacional. A necessidade de trânsito em julgado da sentença, por exemplo,
inviabilizava seu manejo, na maioria das vezes, para medidas de caráter
provisório, para cuja efetivação não havia no direito brasileiro nenhum
instituto disponível (2016, p. 135).
Além das exigências anteriormente citadas, o CPC ainda acrescenta
que as sentenças estrangeiras não podem ofender coisa julgada brasileira,
nem conter manifesta ofensa à ordem pública.
O Regimento Interno do STJ, seguindo esse padrão, em seu art.
216-F, estabelece que leis, atos, sentenças ou quaisquer declarações de
vontade de outro país, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem
a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana ou a ordem pública.
Verifica-se, portanto, a preocupação do legislador ordinário em es-
tabelecer requisitos formais para o processo homologatório das sentenças
alienígenas, destacando-se aspectos protetivos da ordem pública e da dig-
nidade da pessoa humana, afastando-se ameaças à soberania nacional ou
aos direitos fundamentais dos indivíduos que se encontrem no território
brasileiro.
A seguir, analisam-se aspectos doutrinários relacionados à dignidade
da pessoa humana e sua construção na jurisprudência brasileira, o que se
reflete nas ações de homologação de sentenças estrangeiras.

3. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA


HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS

O primado da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos


do Estado brasileiro, constitui-se em requisito obrigatório não apenas

283
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

ao processo de homologação de sentenças estrangeiras, mas em toda em


qualquer atividade pública ou mesmo privada.
De acordo com André de Carvalho Ramos, da mesma maneira que
o respeito à dignidade de todos (não só de nacionais) impulsiona a aceita-
ção pelo Brasil da aplicação do direito estrangeiro, essa mesma dignidade
pode servir para impedir a escolha de uma lei discriminatória ou uma
cooperação jurídica internacional na qual se solicite determinada medida
pré-processual ou processual em violação a direitos de determinado indi-
víduo (2015, p. 2).
Para Luiz Edson Fachin, é certo que a dignidade da pessoa humana
irradia seu conteúdo para todas as searas do Direito brasileiro, fazendo
com que todo o ordenamento jurídico seja interpretado conforme este
princípio constitucional, inclusive a homologação de sentença estrangeira
(2015, p. 1).
Portanto, os demais mecanismos de cooperação jurídica internacio-
nal também seguem tal parâmetro, como a extradição e a transferência
de pessoa condenada ao exterior, previstos na Lei 13.445/2017, conhe-
cida como nova lei de migração, em seus artigos 81 a 99 e 103 a 105,
respectivamente.
Apesar da aparente semelhança entre tais institutos, na extradição, se-
gundo Hildebrando Accioly, um estado entrega a outro estado indivíduo
acusado de haver cometido crime de certa gravidade ou que já se ache
condenado por aquele, após haver-se certificado de que os direitos huma-
nos do extraditando serão garantidos (2019, p. 510).
Em outubro de 2020, o STF indeferiu pedido de extradição (EXT
1.424 DF), realizado pela República Popular da China.  Nesse julgado,
prevaleceu o voto do ministro Celso de Mello, proferido em 2016 e se-
guido pela maioria. Em sua fundamentação, o ministro ressaltou que se
recusava a compactuar e a coonestar pretensões emanadas de Estados to-
talitários que desprezam, por força de sua natureza, direitos fundamentais
titularizados pela pessoa humana, ainda que esta eventualmente ostente a
condição jurídica de pessoa sob persecução penal no Estado requerente.
Por sua vez, na transferência de pessoa condenada ao exterior, segun-
do Vladimir Aras, o intercâmbio do condenado ocorre, principalmente,
em situações humanitárias, com foco na ideia de recuperação do interno e
de promoção de sua reinserção social. Deve ser requerida pelo apenado ou

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

seu representante, podendo ser ativa ou passiva. Apenas estrangeiros estão


sujeitos ao procedimento ativo. Quanto ao modo passivo (Brasil como
receptor), em regra, só se admite a transferência para cá de brasileiros ou
de estrangeiros já residentes (2016, p. 184).
Contudo, antes mesmo da inserção expressa da dignidade da pes-
soa humana como requisito à homologação de sentenças estrangeiras, tal
princípio já se refletia ainda que através de outros conceitos como o de
ordem pública.
Valério Mazzuoli exemplifica que foi negada homologação a sen-
tenças de países muçulmanos que admitiam o talak, instituto pelo qual o
marido repudia a mulher quando entende ter nela encontrado algo torpe
(2015, 120).
Constata-se que o talak, instituto empregado a título ilustrativo, pode
até ser aceito em outros ordenamentos jurídicos, mas não no brasileiro.
O mencionado exemplo tem origem em um país muçulmano, do-
tado de valores diferentes daqueles que alicerçaram as nações ocidentais-
-cristãs, no qual se inclui o Brasil, apesar da diversidade cultural que lhe
é característica. Tal fato de deve à construção histórica e cultural de cada
grupo social, influenciando nos seus diversos costumes e, consequente-
mente, em sua prática legislativa e jurisdicional.
De toda forma, a observância daqueles requisitos protegem bens
imateriais que se encontram cima da mera cooperação cega ou mesmo
subserviência a outros Estados economicamente mais poderosos, ao im-
pedirem que sentenças que ofendam a dignidade da pessoa humana sejam
homologadas e cumpridas no Brasil.
André de Carvalho Ramos identifica quatro usos habituais da digni-
dade humana, que podem servir de baliza a sua interpretação, na jurispru-
dência brasileira e que podem ser úteis ao direito internacional privado,
no âmbito da homologação de sentenças estrangeiras (2020, p. 59).
O primeiro uso ocorre através da fundamentação na criação juris-
prudencial de novos direitos, na chamada eficácia positiva do princípio da
dignidade humana (2020, p. 59).
Portanto, sentença estrangeira que ignore direito essencial não será
homologada, como a que, tratando de partilha de bens, exclua herdeiro
devido a sua orientação sexual, violando seu direito à preferência sexual.

285
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No segundo uso, referente à concretização da interpretação adequada


de um direito, a dignidade humana pode servir para condicionar a inter-
pretação do devido processo legal (2020, p. 59), por exemplo, em caso no
qual se discuta a corrupção do juízo estrangeiro que proferiu a sentença a
ser homologada ou a intensa desigualdade entre as partes.
O terceiro uso é o de se criar limites à ação do Estado, através da
eficácia negativa da dignidade humana, impedindo que seja homologada
sentença estrangeira de natureza penal que imponha medida de segurança
exagerada ou de natureza cível que imponha obrigação de fazer ou não
fazer de intensa restrição à liberdade de certa pessoa (2020, p. 59).
Por último, o quarto uso da dignidade humana é o de servir para
fundamentar juízo de ponderação, através da escolha da prevalência de
um direito em prejuízo de outro, como em sentença estrangeira que con-
traponha dignidade humana e liberdade de expressão, esta última mani-
festada através de discursos de preconceito, racismo ou incitação ao ódio,
sendo estes últimos inaceitáveis no ordenamento jurídico brasileiro (2020,
p. 60).
Desse modo, verifica-se que o procedimento de homologação de
sentenças estrangeiras serve como uma espécie de escudo em defesa da
dignidade da pessoa humana, valor fundamental da República Federativa
do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente estudo, verificou-se que, em um mundo de


intensas relações interestatais, com um fluxo de informações, pessoas e
bens como nunca visto em outra época da história, ganha destaque o pa-
pel da cooperação jurídica internacional como mecanismo de reequilíbrio
social, manutenção da ordem jurídica e de combate à criminalidade trans-
nacional.
Contudo, para que essa cooperação entre as nações se efetive, devem
ser respeitados certos critérios que vão desde a soberania, refletida na ju-
risdição estatal, até requisitos de ordem humanística, como a observância
da dignidade da pessoa humana no atendimento a pedidos diligências ou
cumprimento de decisões estrangeiras.

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No Brasil, a CF/88 evidencia ambos os requisitos citados, não tendo


validade o País as decisões ou sentenças estrangeiras, antes de sua homo-
logação pelo Tribunal competente. Por sua vez, a dignidade da pessoa
humana deve ser observada nesse processo.
Em seu artigo 4º, a Constituição Federal estabelece os princípios das
relações internacionais, como verdadeiros guias ao Estado brasileiro nessa
matéria, ocupando lugar privilegiado dessa Carta.
Destacam-se, entre tais princípios, a cooperação entre os povos para o
progresso da humanidade, que serve como subsídio à cooperação jurídica
internacional, auxiliando na atuação jurisdicional para além das fronteiras
estatais, através de cartas rogatórias, da extradição, do auxílio direto e da
homologação de sentenças estrangeiras, dentre outros.
Este último instrumento de cooperação internacional serve para dar
cumprimento a julgados estrangeiros em território brasileiro, desde que seja
respeitada a dignidade da pessoa humana, além de outros critérios formais.
Portanto, ante tudo foi exposto ao longo da pesquisa, conclui-se que
tal mecanismo serve como verdadeiro filtro para que sentenças oriundas
de outras nações, que desrespeitem aquele alicerce da República brasileira,
não surtam efeitos em nossa jurisdição.
Finalmente, espera-se que o estudo tenha contribuído para o conhe-
cimento sobre a homologação de sentenças estrangeiras como instrumen-
to de materialização da dignidade da pessoa humana.

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289
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
E O CONCEITO DE MORTE DIGNA:
REFLEXÕES JURÍDICAS A PARTIR DO
CASO RAMÓN SAMPEDRO
Bruno Pereira de Andrade48

INTRODUÇÃO

Questões relacionadas ao respeito, à manutenção ou mesmo à supres-


são da vida humana sempre tiveram lugar central nos mais variados ramos
da ciência, desde a Medicina, a Filosofia e ao próprio Direito.
Com o avanço da Medicina, muitas enfermidades de difícil diagnós-
tico ou até então incuráveis vêm sendo pesquisadas, descobrindo-se vaci-
nas, tratamentos ou curas cada vez mais acessíveis à população.
Todavia, há determinadas situações nas quais a Ciência atual é inca-
paz de oferecer soluções definitivas, suscitando dilemas que tangenciam
questões biológicas, éticas, morais, filosóficas e legais.
Ora, estaria uma pessoa obrigada a continuar a viver, mesmo em uma
realidade diária de sofrimentos físicos e mentais infindáveis? Valeria a pena
prolongar a vida de uma pessoa, forçosamente, sem garantir-lhe a devida
dignidade? Poderia alguém decidir sobre sua própria vida em casos extre-

48 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. Especia-


lista em Direito Processual Civil e Recursos pela Faculdade Educacional da Lapa/FAEL (2019).
Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido/UFERSA (2018).

290
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

mos, de grave doença ou estado físico, ou um terceiro, provocado por este,


intervir para que cessasse tal situação?
Nesse sentido, no presente estudo, traça-se uma exposição acerca do
conceito de morte digna, a partir do caso Ramón Sampedro, um homem
outrora ativo e independente, que passou a depender do auxílio de tercei-
ros para executar suas tarefas da vida diária.
Assim, o trabalho tem o objetivo geral de discutir, a partir do citado
caso, o que seria uma morte digna, sob a perspectiva da dignidade da pes-
soa humana. Como objetivos específicos, são descritos aspectos do caso
paradigma, bem como dispositivos legais, posições doutrinárias e juris-
prudenciais, em especial no direito brasileiro.
Para tanto, no primeiro capítulo é feito um resumo daquele caso e de
como tal questão foi tratada na Espanha, subsidiando as discussões ulte-
riores sobre o tema.
No segundo capítulo do estudo, são descritos aspectos jurídicos re-
lacionados ao tema em estudo, bem como dispositivos legais, posições
doutrinárias e jurisprudenciais pertinentes, especialmente no direito bra-
sileiro.
Finalmente, no terceiro capítulo, discute-se o conceito de morte dig-
na e sua correlação com outros princípios como a autonomia da vontade e
o primado da dignidade da pessoa humana, fundamento máximo e coro-
lário do Estado Democrático de Direito.
Assim, o estudo analisa se o direito à vida pode se contrapor ao prin-
cípio da dignidade humana e da autonomia privada, no momento em que
a morte passa a ser, para o indivíduo, mais relevante e justa do que viver
sem dignidade.
Trata-se de tema controverso na sociedade contemporânea, caracte-
rizada pelas constantes transformações, o que amplia as possibilidades de
abordagem, a partir de diferentes prismas sociais, éticos, morais, religio-
sos, políticos e jurídicos, sendo este último o principal foco deste estudo.
Como problemática, busca-se saber se o conceito de morte digna se
adéqua ao de dignidade da pessoa humana, ou seja, analisar-se-á o direito
à vida, enquanto direito fundamental contraposto ao princípio da digni-
dade humana e autonomia privada, no instante em que a morte passa a ser
mais importante e justo do que viver sem dignidade.

291
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Parte-se da hipótese de que, apesar de a vida ser um dos bens jurídicos


mais protegidos, em certas ocasiões, pode sofrer relativização.
A pesquisa justifica-se pelo embate jurídico, que envolve aspectos so-
ciais e religiosos, havendo posições variadas sobre o tema.
O método utilizado é predominantemente indutivo, ou seja, após
considerar um número suficiente de situações, há uma conclusão geral
sobre o tema estudado, a partir do levantamento bibliográfico realizado.

1. O CASO RAMÓN SAMPEDRO E SEUS


DESDOBRAMENTOS NA ESPANHA

Ramón Sampedro era um marinheiro e mecânico de barcos espanhol


que desde criança sonhava viajar pelo mundo. Aos dezoito anos, se tornou
marinheiro e, aos vinte, já havia viajado por vários países. Era um homem
saudável, inteligente e viril. Porém, aos vinte e cinco anos, sofre um trá-
gico acidente ao mergulhar em águas rasas, batendo a cabeça na areia ao
fundo e ficando tetraplégico.
Obrigado a viver, contra sua vontade, paralisado em uma cama, de-
pendendo da ajuda de familiares para todas as suas necessidades, Ramón
agora enxerga a vida como uma espécie de escravidão humilhante. Seus
únicos momentos de fuga dessa realidade são seus sonhos e a paisagem do
oceano através do vidro da janela de seu quarto.
Ele logo decide que não deseja viver mais naquela situação, não acei-
tando os motivos que lhe são apresentados para desistir de seu intuito de
pôr fim à própria vida.
Segundo Sampedro, “nunca me hão-de fazer crer com os seus fun-
damentos de direito que proteger a vida humana contra a vontade pessoal
é um ato nobre, racional, humano, justo e bom. E não é porque não tente
entendê-los, é porque quanto mais conheço, mais absurdas me são as ra-
zões deles!” (2005, p. 43).
Em regra, para uma pessoa em circunstâncias normais, existe um de-
sejo natural intenso de viver e se manter vivo, de modo que o intuito de
morte de Ramón pode parecer incompreensível, até se compreender que,
para ele, a liberdade era o sentido maior de sua existência e que, ao perdê-
-la, não lhe resta mais vida, mas migalhas.

292
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Diante disso, Ramón começa a pedir ajuda a amigos e familiares para


que o auxiliassem a morrer de alguma forma, sem infringirem a lei penal.
Tempos depois, conheceu Aurora Bau, diretora da Associação Direi-
to a Morrer Dignamente (ADMD), uma das maiores organizações não-
-governamentais que lutavam pela legalização da eutanásia. Em 1995, Au-
rora se dispõe a ajudá-lo, oferecendo-lhe tratamento psicológico e amparo
jurídico durante o processo judicial que seria ajuizado.
Por anos, Ramón lutou judicialmente, para realizar seu desejo, apesar
de o Código Penal espanhol prever a conduta como crime contra a vida
em seu art. 143, incisos 2 a 4:

Art. 143.

1. El que induzca al suicidio de otro será castigado con la pena de


prisión de cuatro a ocho años.

2. Se impondrá la pena de prisión de dos a cinco años al que coope-


re con actos necesarios al suicidio de una persona.(grifei)

3. Será castigado con la pena de prisión de seis a diez años si la


cooperación llegara hasta el punto de ejecutar la muerte. (grifei)

4. El que causare o cooperare activamente con actos necesarios y


directos a la muerte de otro, por la petición expresa, seria e inequí-
voca de éste, en el caso de que la víctima sufriera una enfermedad
grave que conduciría necesariamente a su muerte, o que produjera
graves padecimientos permanentes y difíciles de soportar, será cas-
tigado con la pena inferior en uno o dos grados a las señaladas en
los números 2 y 3 de este artículo. (grifei)

Confrontando questões morais, religiosas e sociais, ele se tornou o


primeiro cidadão da Espanha a pedir pela eutanásia, sob o argumento que
as pessoas devem ter o direito de decidir como querem viver ou morrer, de
forma digna e legalizada, sem que nenhumas das pessoas que as ajudarem
sejam prejudicadas por suas ações.
Depois de ter seu pedido julgado improcedente em primeira instân-
cia e após apelação, Ramón tirou sua própria vida no dia 12 de janeiro de
1998, por envenenamento ao ingerir cianeto de potássio através de canudo

293
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

e copo deixados ao lado de sua cama, supostamente por Ramona Manei-


ro, sua última namorada.
Dias após o fato, ela foi detida e julgada, mas absolvida devido
à falta de provas. Sete anos depois, quando o crime prescreveu, ela
admitiu ter facilitado a Sampedro o acesso à substância que o matou,
além de ter gravado um vídeo no qual o ex-marinheiro se despediu de
amigos e familiares.
Em livro de sua autoria, lançado no ano de 2005, Ramona Maneiro
diz que emprestou suas mãos a Sampedro para acabar com seus trinta anos
de sofrimento. Em suas palavras: “Como você pode ajudar a pessoa que
você ama a morrer? Tive de renunciar à presença física do Ramón para o
deixar ir com a outra, e a outra era a morte” (2005, p. 1).
A família de Sampedro sempre foi contra sua decisão de acabar com a
própria vida, acusando Ramona de homicídio.
Em 2005, esta história tornou-se mundialmente famosa, quando o
filme Mar Adentro ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Há quem afirme que a obra aborda o tema eutanásia. Contudo, se-
gundo Diaulas Costa Ribeiro, o caso se trata de um suicídio assistido, cri-
me previsto nos Códigos Penais da Espanha (art. 143), Brasil (art. 122) e
Portugal (art. 135). Registre-se que essa conduta é atípica no Código Pe-
nal alemão e em muitos outros sistemas europeus. Na Suíça, por exemplo,
há associações de apoio ao suicídio de pacientes terminais (2005, p. 5).
O mesmo autor lembra que o caso chegou a ser discutido no Tribunal
Constitucional Espanhol, sendo negado pelo Rei da Espanha o salvo-con-
duto ao profissional que viesse a realizar a eutanásia, conforme Ramón ha-
via pedido. Foi ainda levado à apreciação do Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem e, por fim, o Comitê de Direitos Humanos da ONU negou a
autorização solicitada, quando o autor já havia falecido (2005, p. 6).
Atualmente, há na Espanha um projeto de lei em avançada fase de
tramitação, objetivando legalizar, em certos casos, a eutanásia passiva, per-
mitindo que o doente interessado decida se continuará ou não o trata-
mento, sem que seu médico seja responsabilizado criminalmente.
O texto até então aprovado estabelece que um portador de doença
grave, incapacitante ou incurável, que cause sofrimento intolerável, pode
pedir para que outras pessoas cooperem para pôr fim à sua vida, cessando
seu martírio.

294
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Em sua exposição de motivos, o projeto de lei ressalta a necessidade de


equilíbrio e ponderação entre os direitos fundamentais à vida e à integri-
dade física e moral em relação outros bens constitucionalmente protegidos
como dignidade, liberdade e autonomia da vontade. O texto dispõe que:

”La legalización y regulación de la eutanasia se asientan sobre la


compatibilidad de unos principios esenciales que son basamento
de los derechos de las personas, y que son así recogidos en la Cons-
titución Española. Son, de un lado, los derechos fundamentales a
la vida y a la integridad física y moral, y de otro, bienes consti-
tucionalmente protegidos como son la dignidad, la libertad o la
autonomía de la voluntad.”

Todavia, os setores políticos conservadores e a Igreja Católica insur-


gem-se contra o projeto, por considerarem que os cuidados paliativos se-
riam suficientes nessas situações.
A posição desses grupos, especialmente da instituição religiosa, é cri-
ticada por inúmeros autores, como Jorge Reis Novais, que alegam que,
em certas ocasiões, ocorre um radicalismo em questões relacionadas à
bioética ou ao biodireito, ao tentarem sobrepor seus dogmas ao raciona-
lismo e à ciência.
Para o citado autor, com o mesmo radicalismo quando alguém se
encontre numa situação de doença terminal sem possibilidades de re-
missão e em sofrimento atroz, a ortodoxia católica recusa qualquer pos-
sibilidade de decisão autônoma dessa pessoa sobre as condições em que
pretenda libertar-se dessa existência terminal de sofrimento e sobre a
possibilidade de escolher autonomamente, perante a inevitabilidade de
uma morte dolorosa e de sofrimento prolongado sem qualquer esperan-
ça, a alternativa de uma morte digna, querida e organizada pelo próprio
(2015, p. 149).
No capítulo seguinte serão analisados aspectos relacionados à abre-
viação da vida, através da eutanásia, ortotanásia ou suicídio assistido, em
outros ordenamentos jurídicos no âmbito da Europa e da América do Sul,
definindo-se aqueles conceitos e destacando-se atuais posicionamentos da
doutrina e da legislação brasileira sobre o tema.

295
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

2. A ABREVIAÇÃO DA VIDA EM DIFERENTES ORDENS


JURÍDICAS

De modo geral, a eutanásia, assim como ocorre na Espanha, é consi-


derada ilegal na maioria dos ordenamentos jurídicos.
No entanto, há a tendência, especialmente na Europa, de uma maior
discussão ou mesmo autorização dessa prática em circunstâncias excep-
cionais.
A Holanda foi o primeiro país europeu a autorizar tal procedimento,
em 2002, ao aprovar uma lei de eutanásia. Apesar de ser crime matar uma
pessoa, ainda que a pedido dela própria, a eutanásia pode ser autorizada
desde que realizada por médico e obedeça a todas as exigências legais, de-
vendo o pedido ser aprovado por dois médicos. Crianças com pelo menos
doze anos podem requerer o ato, desde que com permissão dos pais.
A Bélgica aprovou a eutanásia em 2002, tanto para adultos, quanto
para menores emancipados. Porém, em 2014, seu Parlamento foi muito
criticado ao autorizar crianças de qualquer idade a requererem eutanásia,
caso haja consentimento de seus responsáveis.
Luxemburgo passou a autorizar a prática em 2008, em termos pareci-
dos com os da Holanda, tornando-se o terceiro país da Europa a autorizar
tal procedimento.
Na América do Sul, há discussões jurídicas sobre o assunto, embora
nenhum país tenha aprovado leis específicas.
Ao que se sabe, a Colômbia é o único país da América Latina a pos-
suir um movimento pelo direito de morrer com dignidade. Em 1997, sua
Corte Constitucional decidiu que ninguém pode ser responsabilizado cri-
minalmente por matar uma pessoa que tenha pedido para morrer e cuja
doença estivesse em fase terminal. No entanto, a decisão contrasta com o
Código Penal do país, que prevê o homicídio piedoso como crime.
O Código Penal do Uruguai, o prevê, desde 1934, que os juízes po-
dem isentar de pena quem cometa homicídio piedoso. Contudo, o suicí-
dio assistido é crime sob qualquer hipótese.
A referida lei dispõe em seu artigo 37, que “Los Jueces tiene la facultad
de exonerar de castigo al sujeto de antecedentes honorables, autor de un homicidio,
efectuado por móviles de piedad, mediante súplicas reiteradas de la víctima”.

296
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Por sua vez, no Chile, a eutanásia ativa e o suicídio assistido são ile-
gais. A eutanásia passiva é legal desde 2012. Há um projeto de lei em
discussão para permitir eutanásia ativa e suicídio assistido. Atualmente, a
Lei 20.584/2012 regula direitos de pacientes, dentre eles o consentimento
informado, que lhes permite recusar tratamento médico, quando estive-
rem em fase terminal. Segundo a referida norma:

Artículo 16. La persona que fuere informada de que su estado de


salud es terminal, tiene derecho a otorgar o denegar su voluntad
para someterse a cualquier tratamiento que tenga como efecto pro-
longar artificialmente su vida, sin perjuicio de mantener las me-
didas de soporte ordinario. En ningún caso, el rechazo de trata-
miento podrá implicar como objetivo la aceleración artificial del
proceso de muerte.

Quanto ao Brasil, a opção legislativa do País vai de encontro à des-


penalização da eutanásia verificada nas leis e jurisprudências de nações
europeias e latino-americanas.
Desse modo, contrariando a inclinação de tolerar o “homicídio pie-
doso”, o Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940) não explicita,
nem isenta de pena, a prática da morte por benignidade. Todavia, tal con-
duta pode ser enquadrada como espécie de homicídio privilegiado, com
redução de pena, conforme o art. 121, §1º do referido Código:

Art. 121 - Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte)


anos.

§1º se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante


valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo
em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a
pena de um sexto a um terço”.

Deve-se distinguir eutanásia e suicídio assistido, este último definido


como aquele perpetrado com a ajuda de outra pessoa, conforme ocorrido
no caso Ramón Sampedro.
Na maioria dos países, tal conduta é vedada, a exemplo do Código
Penal brasileiro, que em seu art. 122, tipificou as condutas de induzir ou

297
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe


auxílio material para que o faça. As penas variam a depender do resultado,
da motivação, da pessoa e do meio empregado.
Conforme ensina Matilde Carone Slaibe Conti, o suicídio assistido
se dá quando uma pessoa que não é capaz de proceder à própria morte,
solicita a ajuda de outra para a auxiliar nesse processo, estando consciente
ao manifestar sua opção pela morte; na eutanásia nem sempre é isso o que
acontece (2004, p. 149).
A Constituição Brasileira garante o direito à vida, visando protegê-la
de todo ato que contra ela atentar. Conforme seu art. 5º, todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos bra-
sileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Assim, o entendimento prevalecente no ordenamento jurídico brasi-
leiro é de que tal direito deve ser tutelado pelo Estado, detentor do dever
fundamental de zelar pela vida de todos os cidadãos, em face de quem
quer que seja.
A eutanásia continua sendo um tema nebuloso no Brasil devido a sua
controvérsia, bem como pela carência de normas específicas, verificando-
-se uma divisão da doutrina e da opinião pública em relação ao assunto.
Encontra-se em tramitação, na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania do Senado, o Projeto de Lei nº 236/2012, que visa incluir no
novo Código Penal Brasileiro a figura típica da eutanásia e, indiretamente,
da ortotanásia.
O projeto tipifica a conduta, imputando-lhe pena de prisão de dois
a quatro anos, contudo havendo possibilidade de o juiz deixar de aplicar
a pena e existindo ainda a hipótese de exclusão de ilicitude, observadas
certas circunstâncias. O texto prevê:

Art. 122 - Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado


terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofri-
mento físico insuportável em razão de doença grave. Pena – prisão,
de dois a quatro anos.

§1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do


caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afei-
ção do agente com a vítima.

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

§2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios


artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave
irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente ates-
tada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na
sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, compa-
nheiro ou irmão.

Para Luciano de Freitas Santoro, cabe distinguir a eutanásia ativa di-


reta, quando se provoca a morte do paciente através de medicamento le-
tal, da indireta, quando o médico aplica analgésicos para aliviar a dor e o
sofrimento do paciente o que, consequentemente, levará à abreviação da
sua vida.
Santoro entende que a eutanásia indireta não é punível no ordena-
mento jurídico brasileiro, pois não se poderia exigir outra atitude do mé-
dico, a qual se justificaria na necessidade de fazer o bem (princípio da be-
nevolência). O autor adverte que “não pode o médico permanecer inerte
enquanto o doente é submetido à verdadeira tortura, a qual, ainda que
não decorra de uma ação humana, é vedada constitucionalmente” (2010,
p. 119).
Segundo André de Carvalho Ramos, não se pode confundir euta-
násia com ortotanásia, esta regulada pelo Conselho Federal de Medicina,
através da Resolução nº 1.805/2006, que dispõe que, sendo o quadro irre-
versível, e caso o paciente o deseje, o médico está autorizado a não lançar
mão de cuidados terapêuticos que apenas terão o condão de causar dor
adicional ao paciente.
De acordo com essa Resolução, na fase terminal de enfermidades gra-
ves e incuráveis, é permitido ao médico limitar ou suspender procedimen-
tos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os
cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na
perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente
ou seu representante legal.
Ramos ressalta que, em 2006, o Ministério Público Federal do Distri-
to Federal, ajuizou ação civil pública impugnando tal Resolução, alegando
inconstitucionalidade e ilegalidade. Contudo, em 2010, o órgão reava-
liou o caso e entendeu que a ortotanásia não é vedada pelo ordenamento
jurídico, sendo após proferida sentença de improcedência daquela ação

299
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

civil, com base na nova posição do Parquet (ACP 2007.34.00.014809-3/


DF) (2020, p. 424).
Por fim, segundo Ana Carolina P. Melo, ante a omissão da lei bra-
sileira, há no meio jurídico, em especial no ramo do Biodireito, amplo
debate sobre a extensão da interpretação de princípios constitucionais,
atinentes às liberdades individuais, à dignidade da pessoa humana e se há
fundamento para dar ao indivíduo o direito de autorizar o fim de sua pró-
pria vida, garantindo a si uma morte digna, quando compelido por situa-
ção de saúde que lhe trará grande sofrimento por morte certa ou doença
incurável (2015, p. 16).

3. O CONCEITO DE MORTE DIGNA COMO ATO DE


DIGNIDADE HUMANA

Etimologicamente, o vocábulo eutanásia compõe-se de duas palavras


gregas (eu e thanatos), significando o ato de ser provocar uma boa morte ou
uma morte misericordiosa.
Por sua vez, a palavra ortotanásia também tem origem grega, (or-
thos e thanatos). Portanto, de acordo com Maria Elisa Villas-Bôas, a ori-
gem etimológica de ortotanásia seria a morte no tempo correto, nem antes
nem depois. Na ortotanásia, o médico não interfere no momento do des-
fecho letal, nem para antecipá-lo nem para adiá-lo. (2008, p. 66).
No âmbito do Direito, ao se tratar sobre tais práticas, também é pos-
sível fazer uma relação à preservação da dignidade humana, enquanto
princípio fundamental, previsto no art. 1º, III, da Carta Magna brasileira.
Para George Kateb, a dignidade humana é considerada como a base
dos direitos humanos, contudo, ainda há muito o que se falar sobre o que
seria dignidade humana e por que ela é tão importante para a reivindica-
ção de direitos, de modo geral. Para o autor, “Human dignity is thus perceived
tobe the basis for human rights. But not much is said about what human dignity is
and why it matters for the claim to rights” (2014, p. 1).
Segundo Yara Maria Pereira Gurgel, a condição humana é o único
requisito para se ter direito à dignidade: não está condicionada à moral ou
a comportamentos. Mesmo aqueles que cometem as maiores atrocidades
possuem dignidade. Todos os seres humanos têm o direito de serem tra-
tados dignamente. Daí porque a comunidade internacional em favor dos

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Direitos Humanos repudia a tortura, os castigos e o trabalho escravo como


instrumentos de sanção, por mais cruel que seja o sujeito (2007, p. 38).
Assim, entre outras acepções, tal dignidade se relaciona ao resguardo
da vida, desde seu início, manutenção e desenvolvimento das potenciali-
dades dos indivíduos enquanto seres humanos, protegendo ainda pessoas
cuja capacidade de responder por si mesmas esteja prejudicada ou quando
não possam agir para não sofrerem tratamento indigno.
Nesse contexto, partindo do entendimento de que o ser humano seja
dono de sua própria vida, deve-se aceitar, observadas certas circunstân-
cias, que também é dono de sua própria morte, o que se coaduna à ideia
de que viver é um direito e não uma obrigação.
Há, portanto, uma preocupação com a qualidade de vida dos indi-
víduos, mesmo na hora da morte, o que vincularia a dignidade da pessoa
humana como fundamento jurídico e ético do direito a uma morte digna.
Sabe-se que o direito à vida não é absoluto e que o próprio Estado, em
ocasiões excepcionais, admite sua relativização, como ao admitir a pena
de morte, abortos legais ou em situações extremas, ao exigir que pessoas
arrisquem suas vidas em nome da Pátria.
Ramón Sampedro, ao argumentar sobre seu direito à morte digna,
escreveu que quando um Estado declara uma guerra, sabe que morrerão
muitas pessoas contra sua vontade. A essas pessoas é exigido o sacrifí-
cio das suas vidas para defender um interesse coletivo (evitar a destruição
de sua cultura, de sua personalidade como povo, de seus bens, etc.). As-
sim sendo, se ao defender o bem coletivo, se justifica a morte, do mesmo
modo se poderia justificar a morte pessoal. O indivíduo também poderia
decidir sacrificar a sua vida para defender sua pátria pessoal da humilhação
e escravidão da dor (2005, p. 185).
Em muitos momentos, Ramón clama pelo exercício de sua autono-
mia da vontade, alegando que sua liberdade individual, de escolher con-
tinuar vivendo de forma degradante, deveria ser restringida apenas caso
violasse direitos de terceiros.
Nesse sentido, Sâmia Larissa Dias Barros afirma que o destaque dos
direitos defendidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cida-
dão de 1789 alicerça o porquê dessa limitação: “liberdade consiste em
poder fazer tudo que não prejudique outrem; assim, o exercício dos di-
reitos naturais de cada homem não encontra outros limites além daque-

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

les que asseguram aos outros membros da sociedade os mesmos direitos”


(2013, p. 40).
Nesse contexto, o respeito pela dignidade da própria vida conduz ao
reconhecimento de que tratamentos inúteis ou fúteis apenas estendem de-
masiadamente uma mera vida biológica, sem nenhum outro resultado, de
modo que o prolongamento artificial e reiterado do processo de morte
afetam aspectos subjetivos do indivíduo, atentando contra sua dignidade
enquanto sujeito de direitos.
Para Maria de Fátima Freire de Sá, a não intervenção médica, a pedido
do paciente, não seria uma forma de eutanásia, com provocação da mor-
te ou aceleração desta, mas o reconhecimento da morte como elemento
da vida humana, pois é da condição humana ser mortal. Seria condizen-
te com a dignidade humana permitir uma qualidade de vida ao paciente
na sua fase final, ou seja, que a morte aconteça sem meios artificiais que
prolonguem inutilmente sua agonia, através da distanásia ou obstinação
terapêutica, que enxergam a morte como grande e último inimigo (2010,
p. 67-68).
Contudo, Eduardo Luiz Santos Cabette considera os riscos sociais
dessa questão ao advertir sobre o quanto pode ser hipócrita, cruel e pe-
rigosa a preocupação de se oferecer uma morte digna às pessoas, princi-
palmente aos mais humildes, numa sociedade em que pouco se faz para
garantir a elas respeito pela dignidade humana. Deve-se, portanto, tomar
sérios cuidados para que não se enverede por um caminho seletivo em que
a alguns seja mantida e assegurada sua vida digna, reservando a outros, na
falta de melhor opção e para que não atrapalhem o bem-estar dos demais,
uma “morte piedosa” (2009, p. 32).
Para Carlos Alberto Bittar, pode-se depreender que, em conformi-
dade com o ordenamento jurídico brasileiro, ninguém poderia dispor do
direito à vida, pois se trata de “um direito à vida e não um direito sobre a
vida”. Seria esta, portanto, indisponível ao indivíduo, interessando à so-
ciedade em geral a proteção desse direito, haja vista o entendimento de
que o ser humano não vive apenas para si, mas para cumprir seu papel na
própria nessa comunidade (2015, p. 71).
Ramón Sampedro defende que a análise que o indivíduo faz de
suas circunstâncias pode determinar o conceito de sua própria digni­
dade. Para ele, apenas a consciência pessoal pode aceitar como digna e

302
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

tolerável uma circunstância dolorosa que outra consideraria irracional,


indigna e insuportável. Toda pessoa tem direito de rejeitar qualquer aná-
lise que lhe seja imposta por outra consciência, seja pessoal, coletiva,
teocrática ou democrática.
Para Sampedro, a pessoa só pode reger-se pela sua consciência e isso
significa algo mais que a liberdade de pensar. Reger-se pela consciência
têm implícito o direito a que a vontade seja escrupulosamente respeitada.
Só terá o justo limite que lhe impõe o direito de outra consciência a dis-
frutar da mesma liberdade. Não pode haver nenhum impedimento para
a liberdade operar em consciência, dentro dos limites éticos da igualdade.
Numa verdadeira cultura da vida, o direito à morte como ato de liberdade
de consciência é a conduta moral positiva (2005, p. 201).
De acordo com Yara Maria Pereira Gurgel, questões envolvendo o
direito à vida, à autonomia da vontade, ou mesmo à chamada morte dig-
na, como as que se referem à autorização para eutanásia e a proteção do
Estado à vida humana, revelam a existência de duas posições jurídicas de-
rivadas da dignidade: autonomia individual, advinda de sua vertente in-
dividual; e a proteção Estatal dos direitos fundamentais do indivíduo, em
razão da dignidade heterônoma (2018, p. 10).
Por fim, compreende-se que em situações de tamanha complexida-
de, como as analisadas no presente estudo, deve ser feita uma ponderação
de princípios, devendo prevalecer, em todo caso, aqueles que sejam mais
benéficos à promoção da dignidade da pessoa humana, fundamento maior
do Estado Democrático de Direito.

CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho foram estabelecidas distinções entre o direito


de morrer dignamente e o direito à morte, de forma indiscriminada.
O primeiro seria uma reivindicação, baseada em certos princípios ju-
rídicos que fundamentam os direitos individuais, como a dignidade da
pessoa humana, a liberdade, a autonomia, a consciência e os direitos de
personalidade, se referindo ao desejo de se ter uma morte natural e huma-
nizada, sem prolongar o sofrimento quando não existam tratamentos úteis
para certas enfermidades.

303
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Por sua vez, o mero direito de morrer relaciona-se a situações como


a eutanásia ou o auxílio ao suicídio, intervenções de terceiros que causam
a morte de uma pessoa.
Portanto, defender o direito a morrer dignamente não se trata de au-
torizar qualquer processo que cause morte do paciente, mas reconhecer
sua liberdade e autodeterminação.
Como visto, apesar das Constituições e tratados internacionais ga-
rantirem o direito à vida como valor universal, tal direito não é absoluto.
Assim, o que se é assegura é o direito à vida (e não o dever), não se
admitindo que o paciente seja obrigado a se submeter ou continuar em
tratamento médico contra sua vontade. Tal direito pode ser entendido
como consequência da garantia fundamental de sua liberdade física, de sua
liberdade de consciência e crença, de sua autonomia jurídica, bem como
da inviolabilidade de sua vida privada, intimidade e dignidade.
Nesse cenário, entende-se juridicamente viável, após profundas dis-
cussões técnicas e legislativas, a eutanásia passiva, quando realizada de for-
ma legítima pela medicina, mediante preenchimento de certos requisitos,
como realização através de médico autorizado, desde que a única intenção
seja cessar dor insuportável ou quadro clínico de total desesperança. Tal
ato, desde que consentido pelo interessado, além de lhe proporcionar um
fim digno, seria uma espécie de libertação do enfermo e de seus entes.
Sem intenção de impor resposta definitiva à questão complexa, con-
clui-se que a ortotanásia seria uma forma aceitável de atender aos anseios
do paciente, pois não há interrupção de vida, como na eutanásia ativa e
no suicídio assistido, nem prolongamento excessivo de tratamento, como
na distanásia. Ao contrário, tal prática permite que o processo de morte
ocorra de forma natural, sem interferências, fornecendo uma última qua-
lidade de vida ao indivíduo, reconhecendo sua autonomia e promovendo
sua dignidade.

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307
A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E A
IMPORTÂNCIA DO ESTADO LAICO
BRASILEIRO NA SUA COERÇÃO
Thais de Castilho Matos49
Ronny Cesar Camilo Mota50

INTRODUÇÃO

O Brasil, país multicultural, possuidor de uma pluralidade de povos


com suas respectivas crenças religiosas, detêm de questões a serem dis-
cutidas a respeito da importância de ser laico ao lidar com os conflitos
de intolerância religiosa, especificamente, àquela sofrida pelas religiões de
matriz africana.
A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988
(CF/88) destaca, no artigo 5º, inciso VI e artigo 19, a laicidade do Estado
e a garantia do direito à liberdade religiosa.
Entretanto, mesmo diante de tal segurança normativa, casos de vio-
lação a este direito fundamental ocorreram e ainda ocorrem. Exemplo
disso, veicula no site jornalístico O Globo, de alcance nacional, o caso
da TV Record e da Record News que foram condenadas, no início de
2019, por veicular agressões a religiões de Matriz Africana. Essas agressões

49 Acadêmica do 10º semestre do curso de Direito pelo UniCathedral – Centro Universitá-


rio.
50 Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universi-
dade Católica de Goiás, Brasil (2012) e Coordenador do curso de Direito do Centro Univer-
sitário Cathedral, Brasil.

308
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ocorreram de forma verbal durante os programas Sessão de Descarrego e


Mistérios da Igreja Universal do Reino de Deus exibidos pelas emissoras,
em que, segundo a ação, promoveram a demonização das religiões de ma-
triz africana, usando de termos pejorativos ao se referir a mães e pais de
santo, chamando-os de mães e pais de encosto, além de ridicularizar os ri-
tos sagrados das religiões com termos como bruxaria, feitiço e macumba.
Tal processo perdurou por aproximadamente 15 anos, este foi aber-
to em 2004 na Ação Civil Pública 0034549-11.2004.4.03.6100, pelo
MPF, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade
(CEERT) e o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro Brasileira
(Intecab), e terminou com um acordo firmado no Tribunal Regional Fe-
deral da 3ª região (TRF3), onde ficou definido que a emissora deveria dar
o direito de resposta aos praticantes da religião com a exibição de quatro
programas educativos sobre as religiões afro-brasileiras, como a umbanda
e o candomblé, além do pagamento de indenização no valor de R$ 600
mil (seiscentos mil reais), sendo metade do valor para o CEERT e outra
parte ao Intecab.
É importante destacar que esse assunto ainda não é tratado de forma
exemplificativa na esfera doutrinária, o que se faz necessária a utilização de
instrumentos jornalísticos, tanto físicos quanto eletrônicos, que repercu-
tem de forma nacional e internacional para aclarar e trazer casos concretos
a respeito do tema da pesquisa.
Além desse fato, casos de destruição de terreiros e agressão a pratican-
tes dessas religiões também se revelaram, e, nesse aspecto, é de se questio-
nar qual a relevância do Estado Laico nesses momentos, principalmente
quando o direito à segurança, que é outra garantia fundamental que deve
ser assegurada pelo próprio Estado, corre perigo iminente de violação.
Diante disso, o tema do estudo elaborado é a intolerância religiosa
contra as religiões de matriz africana e a importância do estado laico
brasileiro na sua coerção e tem como problema o seguinte questiona-
mento: qual a importância do Estado Laico na garantia do direito à
liberdade de crença?
Tal pesquisa traz à tona os principais aspectos que baseiam esses casos
de intolerância por meio do objetivo geral que é analisar qual o papel do
Estado Laico brasileiro mediante questões religiosas, já que a composição
estatal brasileira, atualmente, conforme a Constituição Federal de 1988,

309
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

visa a laicidade do Estado e asseguraria liberdade à população para que


exercitem seu credo.
Trata-se de uma pesquisa básica, que visa explorar e conhecer qual o
papel do Estado Laico ao coagir conflitos religiosos. Tem como forma de
abordagem a pesquisa qualitativa que, neste caso, vem afim de interpretar
os aspectos sociais a respeito da intolerância religiosa no Brasil, baseando-
-se em casos atuais a respeito do assunto.
Quanto aos objetivos, é uma pesquisa exploratória já que explicita
o problema, de forma a torná-lo familiar e acessível, para que continue
sendo discutido e disseminado. É, também, pesquisa bibliográfica por se
basear em doutrinas constitucionais e na legislação vigente, como a Cons-
tituição Federal de 1988, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código
Penal Brasileiro (artigo 208). Em concomitância, estudos de casos além
dos já divulgados, coletados em pesquisa de campo em forma de depoi-
mentos de líderes e praticantes religiosos das religiões de matriz africana,
onde a visão destes diretamente afetados é levada em consideração para
formação das conclusões.
O método de abordagem é o dedutivo, já que é feita uma análise
de conceitos gerais para se alcançar um conceito particular em relação ao
tema, e como método de procedimento o estudo monográfico pois se
trata de uma pesquisa acerca de um assunto específico e particular que é
a importância do Estado Laico na coerção da intolerância religiosa contra
as religiões de matriz africana, com finalidade de realizar observações e
obter conclusões.
E, quando se fala em laicidade do Estado brasileiro, é preciso a com-
preensão de determinados conceitos como a diferença entre Estado Laico
e Estado Confessional e acerca deste tópico, baseia-se o doutrinador de
Direito Constitucional André Ramos Tavares.
Após tais conceitos, há uma análise da atual composição estatal bra-
sileira, se esta se confere conforme a Constituição Federal leciona, como
um Estado Laico que assegura a livre manifestação religiosa ou, se não, se
se apresenta de forma diversa ao atribuído na fonte maior. Um ponto im-
portante dentro deste aspecto é a forma como os representantes públicos
se apresentam diante dos conflitos religiosos, o que, também, é discutido
na pesquisa em questão.

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Fontes como a Constituição Federal de 1988 e o Pacto de São José


da Costa Rica, são importantes instrumentos que asseguram o direito à
liberdade religiosa, ambos documentos vigentes e de extrema relevância
dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Outrossim, a forma como o Estado brasileiro age diante das ocorrên-
cias dos conflitos de intolerância religiosa e o que este pode fazer a respeito
da conscientização da sociedade sobre o assunto também é de suma im-
portância para que este fenômeno social seja compreendido.
Deste modo, entende-se a relevância acadêmica desta pesquisa já que
se trata de um assunto integrante da contemporaneidade, que engloba fa-
tores sociais, políticos e culturais, além de ser diretamente ligado ao or-
denamento jurídico brasileiro e o efetivo gozo, pelos brasileiros, de seus
direitos fundamentais.

1.ESTADO LAICO VERSUS ESTADO CONFESSIONAL

Ao se falar a respeito da liberdade religiosa dentro de uma nação, logo


se pensa sobre a postura que o governo daquele lugar adota, sendo Es-
tado Laico ou Estado Confessional. Considera-se de extrema relevância
conceituar estes dois institutos de forma a tornar-se possível uma plena
compreensão da importância do Estado enquanto mediador de conflitos
religiosos. Logo, antes de identificar qual a posição estatal brasileira, ana-
lisar-se-á as diferenças entre um e outro.
Estado Laico é aquele neutro, que não prioriza ou legisla em matéria
religiosa, dessa forma, teoricamente, é o Estado que permite que uma so-
ciedade, mesmo diversificada, consiga se desenvolver pacificamente, com
respeito as diferentes crenças. Portanto, além de não adotar nenhuma po-
lítica religiosa, o Estado também não adota nenhuma postura anti-reli-
giosa. Neste sentido, disserta um estudo legislativo feito pela Consultoria
Legislativa do Senado Federal, segue o trecho:

A laicidade deve ser compreendida, no seu verdadeiro conceito,


como autonomia entre a política e a religião, e também como
elemento de neutralidade que permite a manifestação das diver-
sas opiniões, seja de religiosos, agnósticos, ateus, ou de quaisquer
outras correntes políticas ou doutrinárias, desde que nenhuma

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opinião formulada por alguma das correntes de pensamento tenha


caráter vinculativo. (GANEM, 2008, p. 4)

Se tratando de Estado Confessional, é aquele que adota uma religião,


a chamada religião de Estado. Neste caso, tal religião é reconhecida pelo
Estado, o que não ocorre em um Estado Laico, como já supracitado.
Conforme um estudo realizado pelo Pew Research Center (centro de
pesquisa localizado na cidade de Washington DC, EUA) totalizam 22%
dos países do mundo que adotam oficialmente uma religião, denominados
Estado Confessional pela legislação oficial de cada país e 20% tem legisla-
ções e líderes que favorecem uma determinada religião.
Alguns países com religião oficial são os pertencentes ao Oriente Mé-
dio e parte da África, como por exemplo o Afeganistão que tem o Islã
como religião oficial. Dentro da América do Sul, a Argentina é um dos
países que possuem preferência à uma determinada religião. Mesmo que o
último não se considere um país confessional pela Constituição da Nação
Argentina, neste mesmo dispositivo consta, no artigo 2 que “el Gobierno
federal sostiene el culto católico apostólico romano” (Argentina, 1994), ou seja, o
governo federal argentino apoia o culto católico apostólico romano, o que
demonstra uma preferência religiosa.
Entretanto, mesmo que um país tenha adotado o Estado como con-
fessional, não significa que a liberdade religiosa seja proibida, mas, de certa
forma, é restrita. Neste tipo estatal existe a pluralidade religiosa, porém, não
há nenhum alicerce do governo para uma livre manifestação das crenças.
Acerca do assunto, o doutrinador André Ramos Tavares, diz:

Quer dizer que nos Estados confessionais pode haver, como afir-
mado anteriormente, liberdade religiosa, mas será ela mitigada em
virtude justamente do tratamento preferencial e privilegiado res-
guardado à religião oficial. Ter-se-á, nesta última hipótese, prova-
velmente, mais uma tolerância do que uma plena liberdade religio-
sa, especialmente no que tange à sua divulgação e práticas. Logo,
embora a neutralidade do Estado não seja essencial à existência de
pluralidade religiosa, esta só pode aflorar plenamente em Estados
que adotam o postulado separatista e a postura da neutralidade re-
ligiosa. (TAVARES, 2018, p. 503)

312
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Destarte, é possível compreender que, na verdade, em um Estado


confessional é difícil que a liberdade seja de fato exercida pelo povo do país
em questão. É preciso que haja um posicionamento neutro vindo do topo
do ordenamento jurídico do país para a plenitude da diversidade pacífica.
Exemplificando este assunto, a pesquisa feita pelo Pew Reseach Center
explica que dentro desses países que adotam uma religião oficial ou daque-
les que legalmente preferem e beneficiam uma religião ocorre a diferença
severa no tratamento entre uma religião e outra, dificultando e, alguns
casos, impedindo a livre manifestação do culto daquela não preferida.
Exemplo do caso do Laos, país asiático, que tem o Budismo como religião
apoiada pelo governo, conforme a pesquisa supracitada, onde o Estado
permite a impressão, importação e distribuição de materiais religiosos do
Budismo mas restringe a publicação de materiais de outras religiões.

2. A COMPOSIÇÃO ESTATAL BRASILEIRA E


FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Importante acentuar, agora, qual a posição estatal brasileira. É rele-


vante esclarecer este aspecto para que, de fato, seja possível analisar qual a
importância da atuação do Estado na coerção à intolerância religiosa.
Porque, se o Estado é considerado confessional, por exemplo, o al-
cance de suas ações é diferente de um Estado que se define como laico.
O último precisa agir de modo mais coercitivo em relação a violência do
que aquele, visto que garante uma liberdade de crença ao seu povo e para
a plenitude do gozo desse direito.
Cumpre salientar a diferença entre laicismo e laicidade. O Estado cuja
neutralidade religiosa é uma característica fundamental, é aquele que exis-
te com laicidade, já o laicismo é um termo que se refere aos Estados que vê
a religião de forma negativa e possui postura antirreligiosa.
Na Constituição Federal de 1988 dispõe, especificadamente no artigo
19, sobre a relação do Estado entre instituições religiosas. Segue:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municí-


pios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, emba-


raçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus represen-

313
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da


lei, a colaboração de interesse público; (BRASIL, 1988)

Deste modo, a organização político-brasileira considera o Estado


como Laico já que é estritamente vedado a filiação deste à religiões. Entre-
tanto, ressalva-se a possibilidade de parceria em caso de interesse público.
Todavia, é preciso que essa colaboração aconteça dentre todos os ramos
religiosos e não em um segmento específico, o que abalaria a questão plu-
ral da liberdade religiosa.
Um aspecto extremamente relevante que pode se interpretar deste
dispositivo é que há a especificação a respeito dos representantes estatais, e
não só do Estado em si. Estes também precisam ter uma postura laica no
exercício de sua função. Logo, entende-se que não basta apenas o Estado
ser declarado como laico em seu ordenamento jurídico, é necessário que
a postura daqueles que o representam, colocados na posição pública por
meio do povo, seja coerente e sem embaraçar o funcionamento de cultos
religiosos ou manter relações de aliança, conforme o artigo já citado.
O que se fala é proporcionar os mesmos benefícios, direitos e liberda-
de a qualquer ramo religioso que seja, independente da crença particular
do chefe de Estado ou de qualquer outro representante público.

2.1 Estado laico brasileiro: mito ou verdade

Como já citado, dentro da principal norma legislativa, a Constituição


Federal de 1988, o Estado brasileiro é laico. Entretanto, os choques entre
a realidade e a teoria vêm à tona sempre que tal assunto entra em pauta.
Na CF/88, em seu preâmbulo, a palavra “Deus” aparece claramente como
representação de sentimento religioso, o que traz contradições a laicidade,
já que, neste caso, o Estado laico não deveria mostrar uma preferência
religiosa, como ocorre na frase “[...]sob a proteção de Deus[...]” (BRA-
SIL,1988).
Ainda, vê-se nas notas da moeda brasileira em circulação os dizeres
“Deus seja louvado” em todas elas, o que caracteriza mais uma pontuação
de cunho religioso vindo do Estado laico. Ademais, a presença de sím-
bolos religiosos dentro de espaços políticos e públicos, como o próprio
Congresso Nacional por exemplo, reforçam, mais ainda, a ligação com

314
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

um determinado segmento religioso. A presença desses símbolos traz à


população a ideia de que o Estado é apoiador de uma religião específica,
no caso, as cristãs.
O que se fala neste sentido é que, com a pluralidade religiosa e cultu-
ral existente dentro do Brasil, muitos segmentos religiosos não se sentem
representados, ou até mesmo reconhecidos e respeitados quando tantos
símbolos do cristianismo estão ligados ao Estado brasileiro.
A respeito dos representantes do Estado, estes acabam por proferir
afirmações que reforçam uma posição contrária a disposição de um ver-
dadeiro Estado Laico. Tais situações ao invés de propiciarem a liberdade
de cada crença se manifestar, na verdade, as divide de forma a causar mais
atritos internos entre os diferentes segmentos religiosos.
Cita-se o caso do Presidente Jair Messias Bolsonaro que, em uma
de suas participações enquanto representante do Estado, afirmou “Deus
acima de tudo. Não tem essa historinha de estado laico não. O estado é
cristão e a minoria que for contra, que se mude.  As minorias têm que se
curvar para as maiorias” (PARAÍBA ONLINE, 2017). E é fundada nesse
tipo de afirmação que outros grupos religiosos não possuem segurança
para gozar dos direitos que lhes é dado na Constituição Federal.
Situações como essa acabam por, de certo modo, contradizer o
que consta na própria Constituição Federal no que tange à neutrali-
dade estatal, violando na íntegra a efetiva liberdade e desrespeitando
o papel do Estado enquanto assegurador das pluralidades culturais. A
posição de publicidade que qualquer representante eleito pelo povo
ocupa influencia, de maneira relevante, a forma como a população en-
tende e lida com um assunto.
A partir disso, diante de uma afirmação como essa feita pelo Chefe de
Estado endossa a ideia de que o Brasil na verdade não é um país de Estado
Laico, e sim um país que possui preferência religiosa e beneficia de manei-
ra diferente aqueles praticantes da religião cristã.

3. FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DA
LIBERDADE RELIGIOSA

A respeito da liberdade religiosa, este é considerado um direito fun-


damental, devidamente disposto no artigo 5º da Constituição Federal de

315
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

1988, no rol de garantias fundamentais, e é a base fundamental dessa dis-


cussão acerca da pluralidade religiosa.
Dessa forma, a Constituição brasileira dispõe:

[...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo asse-


gurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (BRASIL,
1988)

Além da CF/88 tratar sobre o assunto da liberdade de crença, a Con-


venção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto São José
da Costa Rica, que foi firmado em 1969 e tinha como finalidade estabele-
cer os direitos fundamentais da pessoa humana, buscando consolidar entre
os países do continente americano uma linha de justiça social e respeito à
dignidade humana, traz, também em seu enredo, um artigo direcionado
ao direito fundamental em questão. Tal tratado foi ratificado pelo Brasil
em 25 de setembro de 1992 e, dentro do ordenamento jurídico, tem força
de norma constitucional. Diz o artigo 12 da Convenção:

Liberdade de consciência e de religião

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião.


Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas
crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liber-
dade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual
ou coletivamente, tanto em público como em privado.

2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam


limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou
de mudar de religião ou de crenças. (OEA, 1969)

Deste modo, vê-se que a figura basilar das normas jurídicas brasileiras
dispõe da liberdade religiosa como direito fundamental, sendo inviolável
a liberdade de crença como, também, de não crer ou não seguir nenhum
dogma como doutrina.
Dessa forma, além de assegurar esta liberdade, o Estado precisa for-
necer a segurança, bem como espaços, para que esse direito seja de fato

316
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efetivado. É dentro desse aspecto que se vê relevante a análise do papel do


Estado ao manusear conflitos religiosos que acontecem no seio da socie-
dade brasileira e, até mesmo, até que ponto o Estado e seus representantes
influenciam, ou de certo modo, nada fazem para conter ou dirimir tais
ocorrências.

4. A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTRA AS RELIGIÕES


DE MATRIZ AFRICANA

Partindo a um campo religioso mais especifico, o das religiões de ma-


triz africana, este é, atualmente, considerado minoria dentre as religiões
praticadas na população brasileira. Entretanto, é um dos segmentos que
mais sofre com os impactos da intolerância religiosa e com a falta de pre-
sença do Estado na sua coerção.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 215 diz:

O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais


e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a va-
lorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,


indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional. (BRASIL, 1988)

Logo, entende-se como papel do Estado a preservação e garantia da


cultura afro-brasileira, o que inclui as religiões de matriz africana que são
repetidamente atacadas, tendo seus terreiros queimados e seus praticantes
discriminados. Dessa forma, compreende-se, também, a necessidade da
participação do Estado ao gerar conhecimentos e disseminá-los para que
todos os brasileiros e aqueles que vivem no país possam gozar efetivamente
de seu direito de liberdade à crença.
No decorrer dos últimos anos, as denúncias de casos de intolerância
religiosa cresceram de uma maneira muito significante. Conforme veicu-
lado pelo site de notícias O Globo, segundo o Disque 100 que é o canal
do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pelo qual
as denúncias desses casos em questão são feitas, “foram feitas 213 notifica-
ções de intolerância religiosa a matrizes africanas, de janeiro a novembro

317
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

de 2018. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informa-


ção”. (O GLOBO, 2019). E ainda é possível associar o aumento nestes
casos de intolerância no período eleitoral ocorrido no ano de 2018 em que
essas diferenças foram colocadas em evidência, o que reafirma o peso que
representantes do povo têm sob a atuação da população.
Todavia, mesmo com tantos casos de nítida violência e agressão às
religiões de matriz africana e seus praticantes, a maioria das denúncias
sequer viram processos. Como é o caso da Yalorixá (nome dado ao car-
go de mãe de santo dentro do Candomblé de nação Ketu) Claudia Rosa
que teve seu terreiro na Zona Leste de São Paulo invadido, com todas
as imagens e símbolos sagrados destruídos numa clara demonstração de
intolerância e desrespeito. Ao acionar a polícia, Claudia Rosa esperou por
dias, que não apareceu e nem sequer conseguiu registrar o boletim de
ocorrência, como conta a reportagem no site Gênero e Número, sobre os
ataques à terreiros de candomblé no Brasil.
Estes exemplos citados trazem à tona como, aparentemente, a violên-
cia religiosa não se trata de um assunto a ser tratado com prioridade para
o Estado, sendo este o mesmo Estado que se denomina laico pela maior
norma vigente do país, a Constituição Federal de 1988. Tantas denúncias
são registradas, com os números de violência que só aumentam e, especu-
la-se ainda, que muitos casos acabam não chegando aos dados divulgados
por não se tornarem denúncias de fato. E outra situação problemática se vê
no fato de que, por algum motivo, as pessoas vítimas de violência religiosa
decidem não levar o caso às delegacias.
Entre os atos violentos vê-se a invasão de terreiros de cultos de ma-
triz africana, a destruição de objetos sagrados, agressão física à praticantes
da religião, discriminação social, insultos em público desde graves xin-
gamentos até chacotas. Acontece muito a demonização dessas religiões,
como se existisse sempre um elo que associa os cultos ao mal, sem ne-
nhum motivo plausível e aparente para tal ligação.

4.1 O poder judiciário é laico

A petição inicial proposta pelo Ministério Público Federal na ação


civil pública em face das emissoras Record e Record News, dentro de
todas as argumentações apresentadas, também explicita o fato da laicidade

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do Estado precisar ser atuante no quesito intolerância religiosa, quando


diz “a omissão estatal no caso em análise acarreta o patrocínio ainda que
indireto da “verdade eterna e universal” em detrimento das “religiões do
mal” tão amplamente consagradas pelas religiões neopentecostais”(BRA-
SIL, 2004)
O que se discute, também, é a forma como o direito à liberdade de
expressão acaba sendo mal utilizado já que, nestes casos de intolerância,
a manifestação livre de discriminação não contempla tal direito funda-
mental e o preconceito destilado pela intolerância religiosa não deve ser
baseado neste direito fundamental tão importante.
O Código Penal brasileiro tipifica no artigo 208 a conduta da discri-
minação pública por conta de crença religiosa no capítulo I do título V
“Dos Crimes Contra O Sentimento Religioso”, segue o texto da lei:

Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou fun-


ção religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto
religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada


de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência. (BRA-
SIL, 1940)

Mais uma vez, reforçando que é vista a tentativa legislativa de asse-


gurar a liberdade, dispondo de normas do direito penal para atuar em ca-
sos de violência, entretanto, não se vê a efetiva atuação destes dispositivos
na vida prática do brasileiro, principalmente aquele brasileiro praticante e
pertencente de uma religião de matriz africana.

5 A VIVÊNCIA DO CANDOMBLÉ LOCAL

Partindo de uma pesquisa bibliográfica e fatos veiculados em site jor-


nalísticos, fez-se necessário um estudo mais prático da realidade das reli-
giões de matriz africana dentro da cidade de Barra do Garças e Pontal do
Araguaia/MT.
Em entrevista realizada no dia 06 de janeiro de 2020 com a Mamet’u
de Inkices (nome dado ao cargo de Mãe de Santo dentro do Candomblé

319
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

de nação Angola) Glaucia Lopes Moreira Paiva, que faz parte da religião
há 15 anos, ao ser questionada sobre o preconceito sofrido, afirmou que
existe uma certa censura quando se trata dos cultos de matriz africana,
“houve uma melhora nessa questão desde 2018, com bastante visibilidade,
mas ainda não é o suficiente pois se há a exposição dos cultos sente-se o
receio à represálias”, adiciona.
Em sequência, ao falar sobre a convivência em sociedade entre o
candomblé e as outras religiões, foi levantado o fato de que a ideia do
segmento cristão sempre é pregada com símbolos religiosos em espaços
públicos e sobre como as outras religiões sempre conseguem mais espaço
que o candomblé, “e nem sempre os direitos são os mesmos, por que ou-
tros conseguem e nós não?” questiona acerca dos privilégios que os outros
segmentos religiosos recebem, principalmente ao se tratar do respeito em
liberdade em cultos. Mamet’u Gláucia Lopes Moreira Paiva relata casos
de intolerância religiosa que sofreu dentro da própria família e de pessoas
próximas, baseados no mero preconceito à religião.
Ela contou que quando seu filho faleceu, no ano de 2009, ouviu de
muitas pessoas comentários ofensivos demonizando a religião e culpando
sua crença. Também acrescenta que é necessário se questionar mais para
entender qual o fundamento de tanto medo e discriminação em relação as
religiões de matriz africana e que a educação é a chave para que essa ideia
mude.
Também entrevistada no dia 22 de janeiro de 2020, Mamet’u de
Inkices Adélia Lopes Moreira, que faz parte da religião há 33 anos, conta
que sente que o candomblé não tem espaço na região e que ocorre muito
preconceito na sociedade, principalmente na vizinhança. A entrevistada
relata um caso de intolerância religiosa que sofreu em uma unidade básica
de saúde, em outubro de 2017, que, para ser atendida, precisou responder
a um questionário no qual uma das perguntas era a respeito de qual reli-
gião a mesma pertencia, porém, ao responder ser Candomblecista, Ma-
met’u Adélia Lopes Moreira presenciou comentários em tom de chacota
que representavam o preconceito religioso vindo do funcionário que a
atendia na unidade.
Além desse, foram relatados outros casos de intolerância religiosa pre-
senciados pela entrevistada que reforçam como a convivência do candom-
blé com outras religiões é cheia de preconceitos e discriminações. Estes

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outros casos sempre envolvem uma demonização da crença, com comen-


tários maldosos e ofensivos que partem de pessoas tanto conhecidas como
de desconhecidas. A entrevistada inclusive disse já ter sido alvo de “abaixo
assinado” iniciado por pastor para a retirada de sua casa do bairro em que
morava anteriormente, a cerca de 10 anos atrás.
Adentrando ao assunto tratado no tópico supracitado acerca das de-
núncias, Mamet’u Adélia também compartilhou uma situação que pre-
senciou de destruição de terreiro e que foi registrado um boletim de ocor-
rência e, até hoje, há cerca de 3 anos, não obteve nenhuma resposta do
poder público. Outrossim, ao ser questionada sobre o motivo pelo qual
muitos não levam os casos à delegacia acrescentou “há medo de denunciar
e sofrer preconceito das próprias autoridades”.
Por fim, ambas concordaram que não existem políticas públicas que
instruam a população acerca das diversas religiões e que a educação é a
base de tudo, inclusive, é a ferramenta considerada para erradicar a into-
lerância, todavia, expressam que não aparenta ser de interesse do poder
público acabar com a violência religiosa, na perspectiva de tudo que já
presenciaram e ainda presenciam.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com toda a coleta realizada durante este estudo, foi possível com-
preender de que maneira o Estado influencia nos aspectos de uma socie-
dade, incluindo os mínimos detalhes da relação entre indivíduos. Neste
caso, todo posicionamento do poder público em relação à violência re-
ligiosa reflete diretamente na forma como a própria população lida com
isso, ou seja, se parte intolerância daqueles que estão em posição de auto-
ridade, não se verá uma sociedade tolerante.
É clara a falta de suporte que as religiões de matriz africana vivenciam
já que, mesmo sendo o Brasil um Estado laico, existe uma preferência
religiosa que é pregada pelo poder público e disseminada pelas pessoas em
sociedade.
Uma das questões que mais foi encontrada ao realizar os estudos da
pesquisa é o fato de que religiões cristãs alcançam patamares de direitos
e privilégios que não são igualmente distribuídos às religiões como can-
domblé, por exemplo.

321
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O medo constante que os praticantes da religião sentem é revelador e


mostra o motivo pelo qual muitos deles acabam por recuar e não demons-
trar sua fé em público, ou até mesmo deixam de denunciar as violências
que sofrem. Muitos têm suas vidas retiradas, perdem seus familiares ou
têm seus objetos e cultos sagrados destruídos, interrompidos e impedidos
de serem praticados, o que é alarmante e nos diz muito a respeito da falta
de segurança pública, que também é um dever do Estado de fornecer.
A laicidade do Estado é extremamente importante para que haja uma
sociedade livre da intolerância e que valoriza a diversidade, todavia, é pre-
ciso que as letras saiam dos artigos fundamentais da legislação e se efetivem
em neutralidade e proteção aos diversos cultos. Se a liberdade religiosa é
um direito fundamental, como diz a própria Constituição Federal brasi-
leira, há então uma grave violação que, inevitavelmente, nos retoma ao
período colonial, em que a liberdade de crença nem existia e sempre era
imposto o cristianismo como forma de reeducação dos negros trazidos do
continente africano.
Esta pesquisa teve como problema entender qual a importância do
Estado laico na garantia do direito à liberdade de crença e, depois desses
estudos, vê-se que a posição do poder público é fundamental para os atos
da sociedade. O Estado, por sua vez, acaba por ser como um espelho do
que a sociedade é e segue, até mesmo porque as autoridades do poder
público são representantes do povo. Se a intolerância e a opressão parte
diretamente do Estado, não há como conscientizar a população a respeitar
a diversidade.
O que também se analisa de extrema relevância é o fato de que o
poder judiciário tem a força para manter o que a Constituição Federal de
1988 diz na vida real da sociedade brasileira. Todavia, o que foi visto é que
essa luta não aparenta ser relevante para o Estado, já que este raramente
se posiciona a respeito. Diante dos casos expostos e analisados é possível
resumir que a população não consegue exercer seu direito de liberdade
em sua plenitude, sempre há um medo à censura, mesmo com anos de
evolução história.
Ademais, é mister a consideração de que o assunto explorado foi ba-
seado em matérias jornalísticas online, de relevância e alcance nacional,
pelo fato de que pouco se fala nas doutrinas jurídicas de forma exemplifi-
cativa e acessível para a exposição de tais dados apresentados.

322
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Conclui-se este trabalho com a intenção de que tal problema conti-


nue sendo debatido e discutido com o intuito de alcançar novas respostas
e maneiras de se obter o respeito e o efetivo gozo do direito de liberdade
à crença, sem que haja o medo de o exercer com a segurança de que sua
fé será protegida por um Estado laico que é neutro e não tem preferências
religiosas.

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325
O DIREITO E A ACESSIBILIDADE DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA COMO
UM DIREITO FUNDAMENTAL
Lorena Chamone Vita51

INTRODUÇÃO

A vida da pessoa com deficiência ainda é uma corrida repleta de obs-


táculos, uma vez que, são muitas as dificuldades encontradas.
Existem muitas leis que atendem aos deficientes e, em meio a elas que
são alternadas diuturnamente, é comum que pessoas com deficiência ou
mesmo os seus responsáveis, desconheçam quais são os direitos ou bene-
fícios existentes que possam contribuir para melhorar a sua condição de
vida. Sendo assim, respeitar as pessoas com deficiência é reconhecer que
elas possuem os mesmos direitos aos bens da sociedade.
Neste sentido, a acessibilidade é um desafio não só para as pessoas
com deficiência, mas para toda a sociedade. A falta de acessibilidade nos
transportes públicos, nos prédios públicos e privados, restaurantes, teatros,
universidades, hotéis e espaços públicos em geral como calçadas é um di-
lema enfrentado pelas pessoas com deficiência todos os dias.
Sendo assim, é necessária uma maior fiscalização por parte do poder
público, no que concerne à acessibilidade e seus direitos previstos em lei,
para garantir oportunidades a todos, tanto das pessoas com deficiência
como das pessoas de um modo geral, uma vez que, estamos caminhando
rumo à democratização e o respeito.

51 Bacharela em direito. Pós-graduada em Direito Constitucional.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

2. Direito da Pessoa Com Deficiência Física

A legislação brasileira, ao chegar a uma conclusão sobre o conceito de


pessoa com deficiência, abrangeu todas as espécies de deficiência existen-
tes, conforme se nota em seu artigo 4º, inciso I, do Decreto Lei 3.298/99
que menciona o conceito de deficiência física, como sendo uma alteração
completa, reduzida ou parcial ou de mais de um segmento do corpo hu-
mano, que ocasiona o comprometimento físico do indivíduo, bem como
o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também elenca essa mesma concei-
tuação em seu art. 3º, inc. IX.
Nesse aspecto, é importante frisar que ao determinar a conceituação
de pessoa com deficiência, é um pouco controvérsia, no sentido de que a
terminologia correta é pessoa com deficiência e não “pessoa portadora de
deficiência”, uma vez que se porta uma carteira, um documento ou uma
bolsa, e não uma deficiência, além de ser uma conceituação um tanto
quanto preconceituosa e taxativa, algo que perdura até os dias atuais, in-
clusive por parte de doutrinas e jurisprudências.
Diante disso, a terminologia a ser usada, que será “pessoa com defi-
ciência”, dando-se ênfase, sempre, à palavra “pessoa” e não à deficiência,
por ser a maneira correta de designar a alguém, uma vez que nada obstante
esta última seja a adotada por toda a legislação, talvez porque acolhida pe-
los primeiros movimentos de defesa dos direitos desta classe minoritária.

2.1 Acessibilidade como um Direito

Nos dias atuais, fala-se muito em inclusão social e acessibilidade, mas


observamos vários setores, mesmo os públicos com nenhum tipo de ace-
sibilidade para pessoas com deficiência física, o que acaba se tornando um
dilema diário, uma vez que a maioria dos lugares ainda não possuem ele-
vadores ou rampas dignas e de acordo com a legislação para a promoção
do individuo no seio da sociedade.
Tarefas simples do cotidiano de um cidadão comum acabam se tor-
nando grandes obstáculos, sendo contornáveis por uma luta e um esfor-
ço individual que acabam transformando em grandes conquistas pessoais.
(CRUZ, 2003, p. 128).

327
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Sobre a conceituação da acessibilidade ela se torna ampla, em virtu-


de da demanda do cotidiano, com o escopo de eliminar barreiras sociais
sejam elas físicas, com o escopo de visibilidade às pessoas com deficiência
bem como igualdade de oportunidades para que exista certa independên-
cia e que estes possam participar do convívio social.

A acessibilidade abrangerá não apenas as estruturas físicas, mas


também todas as demais esferas de interação social. Em sua acep-
ção moderna, portanto, a acessibilidade pode ser descrita como a
adoção de um conjunto de medidas capazes de eliminar todas as
barreiras sociais - não apenas físicas, mas também de informação,
serviços, transporte, entre outras – de modo a assegurar às pessoas
com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades como as
demais pessoas, às condições necessárias para a plena e indepen-
dente fruição de suas potencialidades e do convívio social. (FER-
RAZ, et al, 2012, p. 177)

Nesse sentido, a acessibilidade é um direito que todos os partícipes


de uma sociedade possuem como sendo um direito fundamental, uma
vez que ela perpassa barreiras e passa a ser um direito de dignidade do
indivíduo.

2.2 Acessibilidade e seus benefícios

A acessibilidade é uma pré-condição ao exercício dos demais direitos


por parte das pessoas com deficiência. Sem ela não é possível que pessoas
com deficiência tenham acesso a qualquer ambiente físico. Por isso, a aces-
sibilidade é um direito em si e um direito instrumental aos outros direitos.
Impende salientar que a acessibilidade não abarca as estruturas físicas
dos espaços arquitetônicos, uma vez que seu maior objetivo é ultrapassar
barreiras que para alguns é algo invisível, mas também ela se trata de infor-
mação, serviços disponíveis e meios de transporte a fim de garantir e pos-
sibilitar igualdade de oportunidades para o bem estar e o convívio social.
Contudo, observamos que ainda existem locais de difícil acesso para
pessoas com deficiência, o que dificulta ainda mais sua vida no convívio
social. Esses fatores podem ser atribuídos também aos custos elevados para
a garantia desse direito que é tão fundamental.

328
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Todavia, partimos da premissa de que mais é menos. Assim, a pro-


moção da acessibilidade é estabelecer o bem estar de uma coletividade, é
proporcionar a todos os envolvidos, dignidade e inclusão social no âmbito
da sociedade, bem como preservação da história e de seu patrimônio.
Desta forma, incumbe ao Poder Público propiciar o cumprimento da
lei, assim como estabelecer que a acessibilidade apresenta-se em espaços
públicos, praças, shoppings ou onde se faça necessário, com o objetivo
de facilitar a locomoção desses indivíduos uma vez, que descumprir essa
norma previamente estabelecida é retroceder e proibir que pessoas com
deficiência participe de ambientes ou da vida em sociedade, sendo estes
assuntos inclusive, de interesse local.
De acordo com os autores Alves, Amoy e Pinto (2007), as questões
relacionadas à acessibilidade das pessoas com deficiência ao transporte
público coletivo urbano, como por exemplo, a construção de rampas e
à supressão de barreiras e obstáculos em logradouros, edificações e ou-
tros espaços públicos, visam a facilitar a lomoção desses indivíduos, esses
seriam assuntos de interesse local que podem ser regulamentadas pelos
Municípios.
Todavia, falta uma postura mais ativa por parte das autoridades pú-
blicas para que as construções sejam fiscalizadas e contem com adaptações
adequadas para o livre acesso das pessoas com deficiência, possibilitando
sua maior integração na sociedade como cidadãos e não como “um objeto
de tratamento diferenciado” frente aos obstáculos arquitetônicos existen-
tes nas cidades.

3. A Pessoa com Deficiência e o Princípio da Dignidade


da Pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana é um direito intrínseco e ao mesmo


tempo extrínseco com a finalidade de assegurar a todos condições míni-
mas para uma vida digna e saudável, promovendo uma participação ativa e
em comunhão com o respeito e empatia para com os demais seres huma-
nos que integram a sociedade.
Assim, para a promoção e efetivação desse direito constitucional pre-
visto, são necessárias que os Estados, juntamente com o poder público
adotem medidas necessárias com o intuito de fomentar esse princípio no

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

sentido de assegurar esse direito às pessoas com deficiência, adotando in-


clusive um padrão adequado de vida, tanto para a pessoa com deficiência
como para seus familiares, bem como alimentação, vestuário, moradia,
tudo em busca de condições melhores de vida.
Nessa ótica, os direitos fundamentais em caráter material se tornam os
direitos da dignidade da pessoa humana, uma evolução que ultrapassa barrei-
ras ao longo de todos esses anos e em virtude das necessidades que são apre-
sentadas todos os dias, mesmo que não positivadas no ordenamento jurídico.
Diante disso, a vigência dos direitos fundamentais se encontra res-
paldado no sentido de garantir a todos iguais condições, minimização de
preconceito, bem como erradicação da pobreza vigente, pois, ainda sim
nem todos possuem as mesmas condições e oportunidades.

3.1 Princípio da Igualdade como um Direito


Fundamental

Os direitos fundamentais são normas com o objetivo de declarar e


se encontra previsto na Constituição Federal, sendo direitos taxados por
alguns como vantagens previamente estabelecidas como o direito à vida,
à liberdade de manifestação de pensamento, ou o direito à liberdade de
locomoção, dentre outros. Já as garantias fundamentais são normas com a
finalidade de assegurar a todos os direitos por ela tutelados.
Vale a pena ressaltar que os direitos humanos estão elencados em di-
versos tratados, inclusive no que tange a tratados internacionais, enquanto
incumbe aos Estados a prestação desses direitos previamente estabelecidos
no ordenamento jurídico.

Podemos afirmar que direitos humanos são os direitos previstos em


tratados e demais documentos internacionais, que resguardam a pes-
soa humana de uma série de ingerências que podem ser praticadas
pelo Estado ou por outras pessoas, bem como obrigam o Estado a
realizar prestações mínimas que assegurem a todos existência digna
(direitos sociais, econômicos, culturais) (NUNES, 2019, p.786).

Nesta concepção, o princípio da igualdade frente à pessoa com defi-


ciência encontra-se estampado como um direito fundamental, pois, é um

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direito a existência digna a fim de possibilitar a inclusão e afastar porme-


norizadamente o preconceito, a desigualdade e até mesmo a discrimina-
ção, tentando combatê-las sempre que possível.

3.2 A Inclusão Social

A inclusão social assim como outros direitos fundamentais e sociais, é


um direito previamente estabelecido e que deve vigorar no ordenamento
jurídico.
A sociedade deve dispor de mecanismos para oportunizar a todos que
dela participam com a finalidade de proporcionar autonomia e participa-
ção em todos os âmbitos, trazendo segurança para as pessoas com defi-
ciência.
Logo, para que o indivíduo possa se sentir inserido no mercado de
trabalho ou em outras situações que a princípio cause certo desconforto,
é necessário que os ambientes construídos sejam confortáveis e acessíveis.
Em suma, um dos fatores que contribui para a inclusão social, no que
se refere à acessibilidade, é a retirada de qualquer obstáculo ou barreiras
construídas em ambientes físicos. Pode-se, desta forma, incluir todo o tipo
de pessoa a participar ativamente da vida, atuando em diferentes ramos da
sociedade, seja, trabalho, lazer, estudo, atividades esportivas e outros.

4. Discriminação e Diversidade

Torna-se conhecimento de que são realizadas várias campanhas, pro-


jetos e manifestações acerca da discriminação e da conscientização da di-
versidade, sejam nas ruas, nas mídias sociais, escolas, faculdades ou até
mesmo em espaços públicos.
Por sua vez, o que acontece é algo contrário, pois, todos os dias nos
deparamos com comentários, olhares e atitudes com um caráter previa-
mente preconceituoso e discriminatório com as classes minoritárias.
Nos últimos anos, as redes sociais tomaram uma proporção gigan-
tesca, trazendo em seu escopo informações relevantes, entretenimento,
informações falsas que são as denominadas fake news e também o precon-
ceito e a discriminação.

331
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Nesse aspecto, pessoas atrás de seus smartphones ou da tela de um


computador, através de suas contas virtuais ou de perfis fakes, demons-
tram através de suas palavras, discursos de ódio nos comentários de uma
foto ou em uma curtida, propagando o caos e, “achando” que determina-
das condutas ficaram impunes, bem como se sentem no direito de julgar
quem quer que seja.
Todavia, existem aparatos legais, como novas leis impostas para tentar
combater mesmo que de maneira leve, essas pessoas, inclusive as respon-
sabilizando penalmente ou civilmente por seus atos, através de indeniza-
ções, multas ou em alguns casos com a prisão desses envolvidos.
Desde logo, se faz necessário que medidas sejam impostas com o in-
tento de minimizar essas condutas, e trazer um pouco de empatia para
com o outro, uma vez que pessoas com deficiência sempre acabam sendo
alvo de bullyng, preconceito e que estes consigam um bom emprego sem
a necessidade de cotas para deficiente ou da artimanha imposta para que
empresas sejam isentas de alguns impostos, acatem esse público sem qual-
quer preparo.

4.1 Cotas para deficiente e empresas despreparadas

No contexto atual, para tentar reparar uma desigualdade existente


por muitos anos, a sociedade amparada pelo Poder Público, possibilitou a
aquisição de cotas para deficientes em concursos públicos, programas de
estágios, ingressos em algumas instituições de ensino, bem como estipu-
lou uma taxa proporcional para empresas que participassem do programa
de inclusão, para que estas não arquem com um custo extrondoso e colo-
quem nessa esfera, pessoas com deficiência em cargos totalmente irregula-
res e também para que sejam incluídas no mercado de trabalho.
Cumpre observar também que essas mesmas empresas acabam sendo
despreparadas para receber pessoas com deficiência, e acabam contribuindo
ainda mais para que o preconceito aconteça, pois trazemos conosco uma
carga de que não somos bem vindos em lugar nenhum e o mercado de tra-
balho é outro setor que se encontra totalmente desequilibrado e incapaz de
receber e fornecer recursos essenciais para pessoas com deficiência.
Nesse aspecto, antes do ingresso de pessoas com deficiência nos meios
corporativos ou em cargos públicos, é necessário cursos de aprimoração

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

para todos os funcionários, acessibilidade em todos os setores, não só em


banheiros, a conscientização de que o respeito e a empatia para com o
outro deve existir em qualquer aspecto e a possibilidade de pessoas com
deficiência ocupe cargos de chefia ou direção em qualquer ambiente que
este queira participar.

4.2 Políticas Públicas e a Pessoa com Deficiência

Na execução e cumprimento das leis, se faz necessário à participação


ativa do Poder Público e da sociedade para uma mudança significativa,
principalmente no que se refere ao paradigma constitucional, uma vez que
é importante frizar que algumas leis não são executadas muitas vezes por
ausência de regulamentação, se tornando assim, ineficaz no ordenamento
jurídico, inclusive sua implementação.
Nesse sentido devem-se adotar medidas para tentar modificar e corri-
gir esse quadro que acaba se tornando tão desigual. Assim, surge a neces-
sidade de políticas públicas de caráter satisfatório para tentar coibir essas
práticas que acontecem sempre.

O pressuposto analítico que regeu a constituição e a consolidação


dos estudos sobre políticas públicas é o de que, em democracias es-
táveis, aquilo que o governo faz ou deixa de fazer é passível de ser
(a) formulado cientificamente e (b) analisado por pesquisadores in-
dependentes. A trajetória da disciplina, que nasce como subárea da
ciência política, abre o terceiro grande caminho trilhado pela ciên-
cia política norte-americana no que se refere ao estudo do mun-
do público. O primeiro, seguindo a tradição de Madison, cético da
natureza humana, focalizava o estudo das instituições, consideradas
fundamentais para limitar a tirania e as paixões inerentes à natureza
humana. O segundo caminho seguiu a tradição de Paine e Tocque-
ville, que viam, nas organizações locais, a virtude cívica para promo-
ver o “bom” governo. O terceiro caminho foi o das políticas públi-
cas como um ramo da ciência política para entender como e por que
os governos optam por determinadas ações. (SOUZA, 2006, p. 22)

Ressalta-se que, por muitos anos imperava a ideia de que se “resol-


via” a deficiência através da intervenção dos profissionais da saúde, como

333
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

cirurgia para corrigir a imperfeição dita pela sociedade, e que deveríamos


nos adequar ao imposto, pois fomos e somos considerados imperfeitos
diante do que é realmente considerado normal e dentro dos padrões pre-
viamente imposto.
Ocorre que, somos feitos de várias metades e uma delas não é tão
“perfeita” e, não é por isso, que não devemos ocupar determinadas posi-
ções, ou que não devam nos tratar com o respeito que merecemos.
A sociedade anda na contramão ao estabelecer padrões e esquece o que
realmente é valioso e belo, ao ditar normas de como devemos ser e agir em
qualquer aspecto que nos encontramos. Ressalto que esse pensamento atri-
bui-se ao patriarcado e que os mesmos estão um pouco ultrapassados, em
consonância com o que deveria ser e o estado sequer tem interesse em re-
solver de forma definitiva esses dilemas que ora aparecem a todo o momen-
to para nós, pessoa com deficiência, além do pressuposto de que a falta de
informação por uma parcela da população é algo existente nos dias atuais.
Assim, essa mentalidade além de ser prejudicial a todos, exclui, di-
minui e inferioriza pessoas com deficiência ou qualquer classe que é dita
como minorias, pois, não estamos em lugares de grandes posições, alguns
ainda não estudam e sequer sabem ler, os espaços arquitetônicos como
bem ilustrado no presente artigo não estão preparados ou adequados para
termos acesso e os direitos fundamentais, infelizmente acabam ficando
ainda apenas no papel.
Nesse aspecto, ao analisar e se deparar com diversas desigualdades
existentes, vários movimentos sociais são criados, seja nas mídias sociais
mostrando o “invisível” do dia a dia, seja para cobrar mudanças significa-
tivas que deveriam ter acontecido há muito tempo, seja para informar e
conscientizar.
A caminhada é longa, mas sinto que estamos conscientizando mesmo
que de maneira pequena a todos que o preconceito é algo “demodê”, que
precisamos de grandes mudanças e que elas antes de tudo devem ser feita
por nós, uma colaboração do Estado e sociedade para que o bem-estar
ocorra e que a empatia prevaleça, dismistificando a ideia de que não é por-
que determinada situação não aconteceu comigo, que eu tenho que fechar
os olhos pra aquela situação.
Diante disso, a perspectiva inclusiva dentro da sociedade é fundamen-
tal para pessoas com deficiência e para os partícipes desta sociedade, pois

334
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

devemos ter voz e vez em qualquer ambiente e não sermos deixados de


lado como infelizmente em algumas situações ainda acontecem e a ado-
ção de políticas públicas é a democracia acontecendo uma vez que deve
existir o dialógo entre população e Estado para a eficácia do bem-estar
das pessoas com deficiência em busca de valorização e do respeito de suas
particularidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz das informações contidas, pessoas com deficiência são pessoas


como todas as outras, merecendo o mesmo respeito e consideração por
parte do Estado e da comunidade. A deficiência não se situa no corpo ou
na mente da pessoa que a possui, mas nos indivíduos que não enxergam
ou não querem enxergar por preconceito ou descaso, esta realidade.
Assim, o espelho do outro é necessário para que eu me afirme como
indivíduo. Preciso de que o outro me reconheça como igual, para que
possa participar ativamente da sociedade e que me sinta acolhida e am-
parada para que me reafirme como indivíduo e que me reconheça dentro
deste ceio de maneira a possuir uma identidade própria e não somente o
título de pessoa com deficiência física.
Nesta ótica, proteções e garantias existentes são idealizadas de várias
formas, podendo ser por meio de Decretos, Leis, Convenções, Estatu-
tos e Tratados. Uma vez, disponíveis, as proteções, garantias e direitos
devem ser utilizados da forma correta, sendo inclusive executados pelo
poder público.
Convém lembrar que o “problema” não é o deficiente físico possuir
dificuldades em subir escadas, ônibus ou adentrar em qualquer espaço que
deseja, sem ajuda de outras pessoas sempre, mas sim do Estado que apro-
vou e aprova de forma irregular construções sem rampas e quando apro-
vam essa rampa se torna um problema bem maior do que a escada, pois
ela é construída de maneira irregular, elevadores sem acesso, dentre outras
práticas que sempre acontecem, talvez com a finalidade de poupar os co-
fres públicos ou que a fiscalização não aconteceu como de fato deveria ser.
Nesse aspecto, não é o deficiente físico que precisa mudar ou se adap-
tar a algo e, sim, a sociedade brasileira que deve fazê-lo por meio de leis
que assegurem esses “dilemas”, que enfrentamos todos os dias, através de

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

políticas públicas e que o estatuto da pessoa com deficiência seja devida-


mente cumprido e posto em prática.
Contudo, é papel do julgador a tarefa de reconstruir e aprimorar a fim
de atender a demanda imposta dentro do ordenamento jurídico, ao passo
que é do legislador a tarefa de erguê-lo através de aparatos legais.
Desta forma, o presente artigo, não é apenas importante, para pessoas
com deficiência, mas para toda a sociedade, servindo também de alerta
aos entes públicos, uma vez que são esses os responsáveis por colocar em
prática tais proteções e fazer com a que lei seja aplicada em sua integralida-
de, pois, somente assim, as pessoas com deficiência estarão mais próximas
da Justiça.

REFERÊNCIAS

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bilidade das pessoas portadoras de deficiência e a atuação do
Ministério Público Estadual na cidade de Campos dos Goy-
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Nº 10 – Junho de 2007. Disponível em: <http://www.publicadireito.
com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/campos/leandro_alves_ro-
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BRASIL. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a


Lei nº 7853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacio-
nal para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as
normas de proteção, e dá outras providências. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm>. Acesso em: 06
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BRASIL. Lei 13.146/15. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa


com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/
l13146.htm>. Acesso em: 30 out. 2020.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações


afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres,

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ciologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45.

337
O DIREITO A MORADIA E A FUNÇÃO
SOCIAL DA PROPRIEDADE
Carlos Augusto Almeida de Jesus52

INTRODUÇÃO

O direito à moradia é um dos direitos fundamentais previstos na


Constituição Federal de 1988, todavia milhões de cidadãos brasileiros não
têm a devida efetivação desse direito fundamental social, provocando uma
séria violação deste direito. Paralelo a isso, existem no Brasil diversas pro-
priedades que não exercem sua função social, estão abandonadas, ou seja,
sem nenhuma utilidade de natureza pública ou privada.
No Brasil, milhões de famílias não tem uma casa para morar e nem
condições para realizar adimplemento do aluguel. Desta maneira, quais
políticas públicas o estado brasileiro vem utilizando para mudar o país des-
sa triste situação? Com a utilização destas políticas públicas, é possível a
efetivação do direito à moradia a famílias hipossuficientes?
Levando em consideração que o estado brasileiro, mais precisamente
o governo federal, criou o programa “Minha Casa, Minha Vida” em que
se objetivava fazer com que os cidadãos brasileiros tivessem uma casa, po-
de-se dizer que essa foi uma das políticas públicas criadas para mudança
social em que seria efetivado o direito à moradia, todavia muitas famílias
ainda vivem na rua e não foram contempladas com o programa.
Com a presente pesquisa, objetiva-se, de forma geral: compreender a
situação brasileira no tocante ao direito à moradia. Especificamente, ob-

52 Acadêmico em Direito pelo Centro Universitário AGES - UniAGES.

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jetiva-se: analisar o direito à propriedade a partir dos séculos; entender a


função social da propriedade e suas consequências jurídicas; exemplificar
maneiras de efetivação do direito a moradia, bem como as políticas públi-
cas criadas pelo governo brasileiro.
A pesquisa desenvolvida se demonstra: atual, pelo fato de existir, ain-
da, muitas famílias sem uma casa para morar e sem ter uma visão de que
ocorrerá mudança atualmente; pertinente, uma vez que é realizada uma
análise acerca do direito à propriedade no decorrer do tempo, juntamente
com sua função e, ainda, as políticas públicas criadas para fomentar o di-
reito à moradia.

2 METODOLOGIA

O presente trabalho utilizou da pesquisa bibliográfica para ser devi-


damente realizada. De acordo com Marconi e Lakatos (2003), em tal tipo
de pesquisa é realizada a reunião de material contidos em livros, revistas,
publicações avulsas, podendo ser obtidos por fotocópias, xerox ou micro-
filmes, assim, para realizar tal pesquisa, foi necessário reunir alguns livros,
artigos e legislações brasileiras, presentes por meio de livros físicos, foto-
cópia ou, ainda, em sites da internet.
Para ser realizada o trabalho, foi utilizada a pesquisa documental em
que a coleta de dados é restrita a documentos, constituindo as fontes pri-
márias (MARCONI: LAKATOS, 2003). Assim sendo, realizou-se o uso
de documentos escritos, primários e contemporâneos, uma vez que foram
utilizados documentos públicos, como, por exemplo: leis e documentos
jurídicos.

3 O DIREITO A PROPRIEDADE NO DECORRER DOS


SÉCULOS

A propriedade pode ser definida como um direito demasiadamente


complexo em que é instrumentalizado o domínio sobre o bem, assim o
titular poderá utilizar dos atributos consubstanciados, a exemplo das fa-
culdades do uso, gozo, disposição e reivindicação da coisa quando alguém
indevidamente a tenha (FARIAS; ROSENVALD, 2006).

339
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A propriedade sempre foi tratada como um dos pilares da sociedade


em que era/é dada extrema importância a esse instituto jurídico, ou me-
lhor, um direito, não sendo exagero comentar que a propriedade nasce
junto com o indivíduo, sendo que

[...] tanto o Império grego como o Império romano implicaram


a eventual liderança ideológica e, posteriormente, econômica ao
conceito de propriedade. Tanto é verdade que os jurisconsultos
romanos trazem à tona o conceito de direito de propriedade como
algo absoluto, indisponível, quase uma garantia fundamental do
indivíduo (ASSIS, 2008, p. 782).

Na Grécia e Roma antigas a propriedade era tratada como um direito


absoluto em que àqueles que tinham poder aquisitivo, poucos, tinham
grande parte das propriedades. Todavia, cabe ressaltar que a Roma anti-
ga evoluía lentamente para criação de uma função social da propriedade,
uma vez que a propriedade passou a ser tratada como um direito em que
há obrigações, deveres morais (MATIAS, ROCHA, 200?).
Na Lei das XII Tábuas (tábua 6ª, 5.), por exemplo, existia a possibi-
lidade da pessoa requerer a usucapião dos bens imóveis com o exercício
da posse por dois anos, enquanto os bens móveis era necessário demons-
trar tão somente um ano de posse (MEIRA, 1972), além de assegurar a
propriedade para áreas relacionadas a cultura. Desta feita, percebe-se que
em tal período histórico existia, ainda que pequena, uma relatividade do
direito à propriedade.
Durante o período da Idade Média a situação muda pouco e se asse-
melha melhor com o período da Grécia Antiga, haja vista que um peque-
no grupo de pessoas é quem tem o domínio das propriedades e ainda a
propriedade era mantida como condição de manutenção da divisão social
(ASSIS, 2008).
No estado liberal, em meados do século XVIII, o direito privado re-
gulava a propriedade privada em que era tratada também como absoluta
e não existia nenhuma intervenção do Estado sobre esta, todavia, com
a alteração do estado liberal para o estado social e o reconhecimento da
ampliação das desigualdades sociais, torna-se necessário a incidência do

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público sobre o privado, como forma de promoção de direitos individuais


e sociais dos cidadãos (JELINEK, 2006).
A partir de tais ideologias, o Estado Social passou a ser incumbido de
ter uma atuação mais ativa,

[...] no sentido de assegurar a fruição dos direitos individuais e so-


ciais pelos destinatários, diante da qualificação de direitos presta-
cionais, que exigem, mais que a abstenção necessária ao respeito
dos direitos-liberdade, também prestações estatais positivas para
sua concretização (JELINEK, 2006, p. 5).

O Brasil, antes dessa mudança paradigma, era influenciado pelos


ideais liberais, assim a propriedade era tratada como um direito absoluto
e individual, sem nenhuma interferência estatal e da coletividade, sendo
previsto isto no texto constitucional de 1824, que consagrava o direito à
propriedade de maneira plena. In verbis:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Ci-


dadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança indi-
vidual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio,
pela maneira seguinte.

[...]

XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitu-


de. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e empre-
go da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado
do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica
excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.

A Lei de Terras (1850) seguia ainda as mesmas disposições da Cons-


tituição de 1824, tratando o direito à propriedade como absoluto e pre-
vendo, por exemplo, sanções a quem apossasse de terras tanto devolutas
quanto de terceiros, assim era determinado, para o esbulhador, o despejo
da propriedade, bem como a perda de benfeitorias realizadas, prisão, o pa-
gamento de multa e, ainda, a indenização causada pelo tempo que apossou
do bem.

341
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

No Brasil, vigia o Código Civil de 1916 que ainda inspirava os anseios


do estado liberal em que era baseado na preservação dos direitos da bur-
guesia e na igualdade formal (não material – equidade), todavia, em razão
das mudanças sociais, tal regramento se tornou obsoleto, não servindo
mais para a sociedade a qual estava inserido em que se pensava, agora, em
dignidade humana e igualdade material (FEDERAL, 2012).
Com a promulgação da Constituição Federal (1988) e a entrada em
vigor do Código Civil (2002) ocorreu uma ruptura, real, com o Estado
Liberal, haja vista que tais legislações substituem o individual pelo cole-
tivo, preocupando-se com a efetivação dos direitos sociais e transindivi-
duais, bem como a asseguração do direito à moradia e a dignidade da pes-
soa humana. Desta feita, o Estado Social, em que são efetivados os direitos
individuais e coletivos, passa a ser o centro do estado brasileiro, uma vez
que o poder constituinte reconhece as desigualdades sociais existentes no
país, assim será analisado com maiores detalhes algumas implicações que
essa mudança de paradigma causou.
Percebe-se, assim, que o direito à propriedade passou por muitas mu-
danças no decorrer da história da humanidade, sendo que a visão indivi-
dual deste direito não é mais tão aceito, estando a visão liberal, que aceita
os desejos da burguesia, não está de acordo com os objetivos da sociedade
do século XXI, por estar mais preocupada com o meio ambiente e com os
direitos sociais (FEDERAL, 2012).

4 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O instituto da função social da propriedade é considerado como bas-


tante recente na legislação brasileira, uma vez que foi prescrito, pela pri-
meira vez no país, na Constituição Federal de 1934, ou seja, o Código Ci-
vil de 1916 não trazia esse instituto o que faz presumir que o proprietário,
mesmo sem exercer a função social, poderia continuar com a mesma para
usar, gozar, dispor e reaver (PEREIRA, 2016).
A propriedade, prevista no artigo 5 da Constituição Federal de 1988, é
considerada como um dos direitos fundamentais à pessoa humana, tendo,
dessa maneira, uma proteção especial por parte do ordenamento jurídico
desde que seja atendida a função social. Desta feita, o direito à propriedade
se faz importante pelo fato de estar atrelado ao direito à moradia, um dos

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direitos sociais previstos no artigo 6 da Carta Magna, e, juntamente, ao


direito de ter uma vida, no mínimo, digna.
A Constituição Federal de 1988 prevê no decorrer de seu texto legal
uma série de remições a função social da propriedade não como algo op-
cional, mas obrigacional. Veja-se dispositivos da Carta Magna, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a pro-
priedade atenderá a sua função social;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho


humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos exis-
tência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios: III - função social da propriedade;

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo


Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em
lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.      §
2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
plano diretor.

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para


fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo
sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos
da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, res-
gatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua
emissão, e cuja utilização será definida em lei.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural


atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

Percebe-se, com tais excertos dispositivos, que a Constituição Federal


promoveu a função social da propriedade como uma obrigação do pro-
prietário em que o direito à propriedade, como todo direito fundamental,

343
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

pode ser relativizado em razão, por exemplo, da ausência de função social


da propriedade. Assim sendo, constata-se que: a Constituição concede ao
proprietário diversos poderes sobre a propriedade e, ainda, exige que o
proprietário exerça deveres para operacionalizá-la (GUIMARÃES; OLI-
VEIRA; SALES; REIS, 2017).
Essa função social, de maneira simples, efetiva-se quando o proprietário
promove alguma finalidade para a propriedade, como, por exemplo: em
um terreno localizado na zona urbana, o proprietário, para exercer a função
social, pode realizar a construção de um imóvel; enquanto em um terreno
localizado na zona rural, o proprietário pode realizar o plantio de feijão e
milho para que a função seja devidamente exercida (TARTUCE, 2017).
O Código Civil (2002) seguiu as diretrizes da Constituição promul-
gada anos antes, assim consagrou a relatividade do direito à propriedade,
diferente do que fez o Código Civil anterior, o de 1916, que tratava a
propriedade como absoluta, individual e patrimonial, e ainda, o Código
Civil de 2002, consagrou a função social da propriedade, por exemplo,
incorporando princípios informativos da matéria (JELINEK, 2006).
O artigo 1.228 do Código Civil inaugura a previsão civilista quanto o
direito à propriedade, in verbis:

Art. 1228 - O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor


da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injus-
tamente a possua ou detenha.

§ 1° - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com


as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preser-
vados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a
fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histó-
rico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

O caput do referido artigo não define a propriedade em si, mas traz


as faculdades que o proprietário tem, assim existem as seguintes faculda-
des: 1) uso - em que é possível retirar da coisa toda utilidade que ela pode
oferecer; 2) gozo – possibilidade de perceber os frutos que a coisa oferece;
3) dispor – possibilidade do proprietário alienar, gravar ou auto delimitar a
coisa; 4) reaver – possibilidade do proprietário reivindicar a coisa de quem,
injustamente, possua ou a detenha (ZAKKA, 2007).

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A função social da propriedade foi unida por Carvalho (2011) com


a necessidade de políticas públicas e de ações para efetivar objetivos da
sociedade:

A função social é o poder que tem o titular do direito de atender,


cumprir e desempenhar os vários programas de ações e políticas
públicas, com vistas a atender os anseios da sociedade contempo-
rânea, fazendo com que todos sejam beneficiados com a prática e o
exercício dos direitos e deveres para cada um pertencente (CAR-
VALHO, 2011, p. 23).

Dessa forma, percebe-se que ocorreu uma constitucionalização do


Direito Civil, uma vez que se torna necessário analisar tanto as normas
contidas neste regramento como os preceitos fundamentais da Carta
Magna. Por conseguinte, o Código Civil, além de adotar a necessidade do
exercício de uma função social da propriedade, ainda traz a preocupação
com o meio ambiente, haja vista que levou em consideração as mudanças
climáticas que ocorriam no mundo e demonstrou a necessidade de preser-
vação da fauna, flora e o equilíbrio ecológico em diversos dispositivos no
decorrer do regramento (TARTUCE, 2017).
Por fim, constata-se a importância que o constituinte originário deu
a função social da propriedade, assim deve o proprietário exercê-la, pois,
do contrário, pode ocorrer uma série de sanções em face dele. Isso ocor-
re por causa da política urbana adotada, uma vez que é imprescindível a
efetivação do direito à propriedade, todavia também é necessário efetivar
o direito à moradia e, ainda, o mínimo existencial para viver, assim exis-
tindo diversas propriedades sem nenhuma função, sem usar e gozar dela,
seria promovido uma desproporcionalidade gritante no país: muitos ne-
cessitam de moradia e muitas propriedades sem uso, como será discutido
no próximo tópico.

5 O DIREITO À MORADIA COMO DIREITO


FUNDAMENTAL

A Constituição Federal (1988), conhecida como Constituição Cida-


dã, trouxe a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, CF/88), não bastando a in-
serção da dignidade na Carta Magna formalmente, mas sendo necessário
que o Estado assegure aos cidadãos acesso amplo aos órgãos, uma vez que
toda pessoa tem o direito de ser um sujeito de dignidade, podendo/deven-
do ter acesso as políticas públicas, a exemplo: educação, saúde, moradia e
alimentação (SOUZA, 2014).
Paralelo a esse dispositivo, o constituinte originário ainda prevê como
objetivo fundamental da República a redução das desigualdades sociais e
regionais existentes e prediz em seu artigo 6º que:

Art. 6º, CF São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação,


o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previ-
dência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição.            

A Lex Mater brasileira prevê em diversos dispositivos, como analisado


anteriormente, a necessidade de respeito à dignidade da pessoa humana, a
redução das desigualdades sociais e o direito à moradia como um direito
social (fundamental), todavia, embora com tais previsões constitucionais,
a realidade ainda é demasiadamente divergente, visto que muitas pessoas
ainda não tem uma moradia para viver e ter sua dignidade humana, por
exemplo, efetivada.
De acordo com dados do Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada - (2016), estudados por Marco Antonio Carvalho Natalino, no
Brasil:

Estima-se que existam 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil.


Deste total, estima-se que dois quintos (40,1%) habitem municípios
com mais de 900 mil habitantes e mais de três quartos (77,02%) ha-
bitem municípios de grande porte, com mais de 100 mil habitantes.
Por sua vez, estima-se que nos 3.919 municípios com até 10 mil ha-
bitantes habitem 6.757 pessoas em situação de rua, (6,63% do total).
Ou seja, a população em situação de rua se concentra fortemente em
municípios maiores (NATALINO, 2016, p. 25).

Seguindo números tão alarmantes quanto os dados fornecidos pelo


Ipea, o G1 (2018) noticiou que o Brasil tinha, no ano de 2018, 6,9 milhões

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de famílias sem casa para morar, enquanto existiam cerca de 6 milhões de


imóveis vazios, ou seja, sem exercer a função social da propriedade. Des-
ta forma, torna-se imprescindível analisar a criação de políticas públicas
para efetivação do direito à moradia, bem como analisar a possibilidade de
punição das pessoas que possuem imóveis e não exercer a função social, a
exemplo da desapropriação e usucapião.
Essa máxima de abandono de propriedade ocorre em diversos luga-
res brasileiros (a exemplo: São Paulo e Aracaju), assim muitos moradores
terminam por ocupá-los, tendo em vista a necessidade de um lugar para
morar, juntamente com a família. Assim sendo, os tribunais vem enten-
dendo que, em caso de abandono do bem, a parte que pretenda reivindicar
a propriedade não pode ter a sentença procedente, ficando o proprietário
sem o imóvel e sem o pagamento de qualquer indenização.
A título exemplificativo, pode ser citado o Caso dos Pulmann, locali-
zado na zona sul de São Paulo. Um loteamento foi inscrito em 1955 e em
1995 foi ajuizada uma ação reivindicatória, todavia nesse lapso temporal
de 40 anos muitas famílias passaram a morar no local, existindo três equi-
pamentos urbanos, a exemplo: água, iluminação pública e luz domiciliar,
assim, após tanto tempo que as famílias moram no local se transformou,
na realidade, numa verdadeira favela.
Após os proprietários ingressarem com ação reivindicatórias e existir
diversas decisões judiciais divergentes, o caso chegou ao Superior Tribu-
nal de Justiça (Recurso Especial Nº 75.659 – SP) que deu uma verdadeira
aula acerca da importância da função social da propriedade, tendo em vis-
ta que, quem não a exerce, acaba perdendo-a. Desta feita, era tamanha o
abandono da propriedade que não era mais possível distinguir os lotes de
terras e, inclusive, a perita levou aproximadamente quatro anos para con-
seguir encontrar as duas ruas que estiveram os lotes, ou seja, a mudança na
propriedade foi demasiada, resultado da ausência de exercer a propriedade
por parte do proprietário.
O Caso dos Pullman trata justamente acerca do direito à moradia
versus a função social da propriedade, haja vista que, caso os proprietá-
rios originários da propriedade não exerçam a função social devidamente,
pode ocorrer a perda da propriedade pelo abandono (artigo 1.275, III,
CC/02), assim “[...] quem não cumpre com essa função social não tem
domínio, não havendo sequer legitimidade ativa para a ação reivindica-

347
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tória. A função social ganha um sentido positivo, pois deve ser dada uma
utilidade coletiva à coisa” (TARTUCE, 2017, p. 996).
O Caso dos Pullman é um exemplo típico ao deliberar acerca da fun-
ção social da propriedade, sendo outro exemplo bastante corriqueiro o
de Guilherme Boulos, líder do MTST – Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto. Muitas famílias não participaram de programas habitacionais
oferecidos pelo governo federal e nem podem realizam o adimplemento
de alugueres, assim a única forma de poder ter uma casa, uma moradia, é
a ocupação de propriedades abandonadas.
De acordo com Boulos (2006), a ocupação não é uma escolha, nin-
guém escolhe ocupar uma casa, mas termina por ocupar em razão da fal-
ta de oportunidades existentes. Desta maneira, o MTST vem realizando
ocupações em diversos estados brasileiros e fazendo com que milhares de
famílias possam ter um moradia, combatendo o capital imobiliários e fa-
zendo com que as propriedades exerçam a função social.
Com isso, a ocupação é “produto da necessidade e da falta de al-
ternativas, a ocupação pode tornar-se uma escola de luta, um despertar
para muitos sujeitos tratados pelo capitalismo à ferro e fogo nas periferias.
Do chão da periferia segregada, muitos combates ainda poderão brotar”
(BOULOS, 2012, p. 66).
Constata-se que essas pessoas não ocupam por desejo, mas por ne-
cessidade e, embora tenha existido no Brasil programas habitacionais, elas
não foram beneficiadas. Existiram dois grandes programas habitacionais
brasileiros para que as pessoas pudessem ter o direito à moradia efetivado,
sendo eles: Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e
o Minha Casa, Minha vida.
O Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), criado
a partir da Lei nº 11.124, estabeleceu um processo de participação em que
fora elaborado um Plano Nacional de Habitação para constituir fundos
articulados em todos os entes da federação, sendo controlados por conse-
lhos da participação popular (FERREIRA; CALMON; FERNANDES;
ARAÚJO, 2019). Esta política habitacional deveria ser

[...] executada de forma concatenada pelas instâncias federal, es-


tadual e Política habitacional no Brasil urbe. Revista Brasileira de
Gestão Urbana, 2019, 11, e20180012 7/15 municipal, com seus

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

respectivos fundos e conselhos de participação social. Por conse-


guinte, foi previsto um sistema integrado de política pública, com
a inter-relação entre os planos nacional, estadual e municipal de
habitação. Essas medidas visavam ampliar a cooperação entre os
entes federados, buscando reduzir as sobreposições e os vazios ins-
titucionais (FERREIRA; CALMON; FERNANDES; ARAÚ-
JO, 2019, p. 6-7).

O SNHIS, no entanto, não logrou êxito em razão da alteração da


conjuntura política no ano de 2005, assim o ente federal negociou a am-
pliação da participação dos partidos no poder executivos. Desta maneira,
para não ocorrer um agravamento ainda pior da crise política, o governo
federal preferiu abdicar da proposta de desenvolvimento urbano, ficando o
SNHIS demasiadamente enfraquecido (FERREIRA; CALMON; FER-
NANDES; ARAÚJO, 2019).
Com o fracasso do SNHIS foi criado o programa “Minha Casa Mi-
nha Vida”, destinado para a população que tinha renda familiar igual
ou inferior a três salários mínimos. Este programa foi instituído atra-
vés da Lei nº 11.977/2009 e objetivava a construção de moradias para
a população de baixa e média renda, finalizando à melhoria do sistema
habitacional destas pessoas (CARVALHO; STEPHAN, 2016). Todavia,
a população atendida não foi a mais pobre, mas as famílias com renda
superior a 3 salários mínimos, haja vista que, aproximadamente, 75% do
recurso fornecido e 60% das habitações do programa foram para estas
famílias (BOULOS, 2012).
O programa terminou por não ter eficácia social, existindo uma pre-
cariedade de acesso aos conjuntos, haja vista que os locais ficavam de-
masiadamente distantes (trabalhos, hospitais e ambientes escolares, por
exemplo) e terminava por segregar um grupo de pessoas que já eram se-
gregadas anteriormente. Desta maneira, constata-se que o Programa fa-
lhou nesse sentido e, também, pela má qualidade da infraestrutura urbana
que isolam os moradores e reforçam tanto a segregação social quanto es-
pacial (CARVALHO; STEPHAN, 2016).
Guilherme Boulos caminha no mesmo ideal de Carvalho e Stephan
(2016) ao considerar que:

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

[...] não basta simplesmente construir conjuntos habitacionais.


Mesmo se aumentasse o recurso do programa para famílias mais
pobres - como prometeu a segunda fase do Minha Casa, Minha
Vida - permaneceriam grandes obstáculos. Enquanto não se com-
bater a especulação imobiliária, que faz valorizar artificialmente o
preço dos terrenos e, assim, joga os mais pobres para mais longe,
e se garantir outras condições básicas de vida (infraestrutura, ser-
viços, lazer, etc.) não se pode falar em moradia digna (BOULOS,
2012, p. 26).

Embora tenham existido diversos pontos negativos com o progra-


ma “Minha Casa, Minha Vida”, não se pode negar, conforme Pacheco e
Araújo (2017), que este programa ocasionou uma determinada melhoria
nas condições de vida de certo número de famílias, mesmo que estas sejam
famílias de renda média, sendo necessário questionar que tipo de cidade e
moradias estão sendo desenvolvidas e as consequências decorrentes disso.
Com isso, percebe-se que muitas são as possibilidade de efetivação do
direito fundamental à moradia, a exemplo: compra de propriedade; pro-
gramas habitacionais e a desapropriação de propriedades que não exercem
função social. Desta feita, torna-se imprescindível a criação de mais polí-
ticas públicas voltadas para as pessoas de baixa renda para que, dessa forma,
todos os cidadãos brasileiros tenham uma moradia para poder viver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à moradia é um direito previsto na Constituição Federal em


seu artigo 6º, devendo a República Federativa do Brasil procurar meios
para efetivar esse direito fundamental/social a todos os cidadãos, uma vez
que está incluso no mínimo existencial para viver e é um direito funda-
mental. Todavia, tal regramento não vem sendo efetivado na sociedade
brasileira.
Demasiados cidadãos brasileiros (mais de seis milhões de famílias)
não tem casa para morar, para ter sua dignidade humana devidamente
consolidada; por outro lado, existem milhões de imóveis vazios em que
não há nenhuma utilidade particular, nem muito menos pública, ficando,
desta forma, tal imóvel sem nenhum uso e sem nenhuma função para o

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poder público, pois muitas vezes não adimplem o IPTU (Imposto Predial
e Territorial Urbano).
Em razão da quantidade destes imóveis abandonados e do não
exercício da função social da propriedade, muitas pessoas acabam ocu-
pado os imóveis para poderem ter um tempo e assim poder viver. No
entanto, a sociedade brasileira, no geral, critica em demasia quem ocu-
pa tais imóveis por acreditar que se ocupa todo e qualquer imóvel,
sendo um ledo engano, uma vez que ocupam as propriedades que não
exercem a função social.
O Caso dos Pullman, em São Paulo, demonstra a possibilidade da
perda da propriedade por abandono, uma vez que os proprietários tinham
os lotes de terra e não promoveram nenhuma função social (não cons-
truíram imóveis, não plantaram, nada fizeram), assim como essas famílias
estavam há anos na propriedade, tiveram seu direito a usucapião reconhe-
cida e tendo, finalmente, o direito à moradia.
O governo brasileiro, entendendo a grave crise deste direito funda-
mental, criou algumas programas habitacionais, a exemplo: O Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social e o Minha Casa, Minha vida.
Porém, nenhum dos dois programas conseguiram, de maneira fática, efe-
tivar o direito à moradia, sendo demonstrado, na realidade, que tais po-
líticas almejavam tão somente o lucro das empresas, ainda mais quando
poucas famílias de baixa renda conseguiram a tão sonhada casa.
Por fim, constata-se que o Brasil é um país que necessita, com ur-
gência, de políticas públicas voltadas para a moradia, uma vez que muitos
cidadãos brasileiros não tem casa e não possuem condições econômicas
para realizar o adimplemento de alugueres. Desta feita, criar uma política
pública para a moradia não é uma tarefa simples, tendo em vista a quan-
tidade de detalhes que são necessários analisar, todavia, é imprescindível
observar os erros existentes nos programas habitacionais anteriores e pro-
mover o direito fundamental à moradia.
Ademais, torna-se ainda de extrema urgência que o poder público,
sobretudo o municipal, fiscalize as propriedades (rurais e urbanas) para
analisar se estas cumprem a função social, visto que, caso não a cumpra,
pode o poder público declarar a perda da propriedade pelo abandono, ten-
do um interesse social envolvido, qual seja: a concessão da moradia a quem
realmente utilizará, efetivando o direito fundamental à moradia.

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354
A VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO
DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL
À LIBERDADE E A AUTONOMIA
SINDICAL POR DECRETO
GOVERNAMENTAL: ANÁLISE DO
DECRETO Nº. 3808/2020 DO
ESTADO DO PARANÁ
Andréa Arruda Vaz53
Fabrício Gonçalves Zipperer54
Genilma Pereira de Moura55
Valquíria Gil Tisque56

1 INTRODUÇÃO

Inicialmente fora realizada análise dos decretos nº 3793/2019 (este


revogado pelo decreto 3808/2020), decreto nº. 3808/2020 e decreto

53 Doutoranda em Direito Constitucional pelo Centro Universitário do Brasil – UniBrasil,


Mestre em Direito pelo Centro Universitário do Brasil - UniBrasil, turma 2013.
54 Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UNIBRASIL (Turma 2010) e Douto-
rando em Direitos Fundamentais e Democracia pela UNIBRASIL (2019/2022).
55 Mestranda em Direito pelo Centro Uninter (linha de pesquisa: Jurisdição e processo na
contemporaneidade). Bolsista 100% no Programa de Excelência do PPGD-UNINTER.
56 Bacharel em Direito pela UNIFACEAR. Pedagoga pela FACIBRA. Escrivã da Polícia Civil do
Estado do Paraná. Secretária Geral do SINCLAPOL – Sindicato das Classes Policiais Civis do
Estado do Paraná. Presidente da ASSEPEP – Associação dos Escrivães de Polícia do Estado
do Paraná.

355
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

3978/2020 (que alterou o decreto 3808), ambos editados pelo Exmo.


Governador do Estado do Paraná, Sr. Carlos Massa Júnior. Tais decretos
foram publicados no diário oficial do Estado em 20/12/2019, 08/01/2020
e 07/02/2020, sucessivamente. Estes consistiam na determinação de um
recadastramento para todos os servidores públicos do Estado do Paraná.
Tal recadastramento deveria ser realizado pela internet, usando a se-
nha do servidor. O prazo estabelecido para realização desse recadastra-
mento foi de 04 (quatro meses). Na prática, servidores aposentados não
lembravam suas senhas e se quisessem atualizá-la, poderia ser por e-mail
cadastrado junto ao Paraná Previdência; todavia, quase a totalidade desses
servidores aposentados não possuíam tal e-mail; a única possibilidade en-
tão, era pessoalmente. E mais, ao longo dessa saga jurídica, a pandemia se
iniciou e com ela as restrições para comparecimento em estabelecimentos
também vieram.
A dificuldade na realização desse recadastramento era gigantesca. E
ainda havia um curtíssimo prazo a ser cumprido. Ou seja, ato comple-
tamente arbitrário do executivo estadual do Paraná. Onde o desrespei-
to a direitos fundamentais era nítido. Aposentados acamados, mulheres
grávidas, servidores que residem no interior do Estado sem condições
financeiras para deslocamento, entidades sindicais que ficariam sem au-
xiliar filiados que delas dependiam com ajudas assistenciais, financeiras,
médicas (planos de saúde). Entre inúmeros fatos ocorridos no período de
recadastramento, destarte se faz destacar os planos de saúde, nos quais ser-
vidores com severas doenças não seriam mais assistidos. Sendo o servidor
obrigado ao recadastramento, caso contrário, o Estado liquidaria automa-
ticamente os descontos das contribuições sindicais. Pois entenderia que o
servidor assim o desejava.
Ora, tal desconto, foi anteriormente autorizado pelo servidor por es-
crito, quando da opção pela associação sindical. E mais, sem a necessi-
dade de recadastramento, eis que integralmente inconstitucional, ilegal
e arbitrário, conforme se demonstrará de forma exaustiva nesta exordial.
Na realidade, importante mencionar que não se trata efetivamente de re-
cadastramento, mas medida para impedir a continuidade das atividades
sindicais.
Assim, conforme se demonstrará, o Estado do Paraná, por meio do
seu governador, ao editar decreto que inviabiliza as atividades sindicais,

356
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

está a violar o texto da constituição Federal, Estadual, assim como as nor-


mas internacionais que o Brasil é signatário, assim como normas que de
boa-fé e de forma livre internalizou. O presente artigo foi desenvolvi-
do com base na edição do Decreto Estadual nº. 3808/2020 e decreto nº.
3978/2020 (que alterou o decreto 3808), com o objetivo de analisar as
consequências de sua aplicabilidade, como o risco iminente do fechamen-
to das entidades sindicais e associativas de servidores públicos do Estado
do Paraná.
Após a análise e reflexão nos efeitos refletidos diretamente nas entida-
des e servidores, de forma abrupta, entende-se que a Administração Públi-
ca Estadual possui responsabilidade direta nos efeitos prejudiciais causados
à toda uma categoria. Ademais, a edição de Decreto que cria embaraços,
inviabiliza ou impede a realização da atividade sindical, se constitui nítida
prática antissindical e violação expressa a autonomia sindical, prevista no
texto constitucional. A atuação do Governador do Estado do Paraná pela
edição de Decreto que promove a desfiliação em massa dos servidores
públicos se configura ato antissindical, assim como se encontra em total
confronto com a autonomia sindical, além da violação aos princípios que
regem o direito sindical e normas internacionais que asseguram a ampla e
irrestrita liberdade sindical a todos os trabalhadores, inclusive servidores
públicos.

2 DA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA LIBERDADE E


AUTONOMIA SINDICAL

Inicialmente cumpre mencionar que ante a todo já o exposto, não é


difícil a percepção de que o Governador do Estado do Paraná viola direitos
humanos, quais sejam, princípios da autonomia e liberdade sindical, assim
como direitos relativos à vida e à personalidade de todos os associados dos
sindicatos de servidores públicos do Estado do Paraná. Ademais, ao pro-
mover a desfiliação compulsória e totalmente arbitrária, automaticamente
milhares de pessoas ficarão desassistidas de planos de saúde, odontológico,
atendimentos e tratamentos de doenças graves, atendimentos de planos
funerários e seguros de vida. Tais direitos são de cunho mínimo ao Estado,
que deveria fornecer, porém não fornece aos servidores. Sim, desfiliação
compulsória, tanto que ao acessar o site para preenchimento do formulá-

357
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

rio, que deveria ser impresso em duas vias para assinatura pessoal, aparece
primeiro a palavra ‘NÃO”. Logo, tudo foi sorrateiramente planejado para
acabar com os sindicatos.
Uma vez desprovidos de todos esses direitos, o servidor se socorre dos
sindicatos e associações, estes que de maneira expressiva colaboram com o
desenvolvimento social e econômico do Estado. Ademais, as entidades ao
propiciarem tais serviços retiram parte da carga estatal para fornecimento
desses serviços. Logo, as entidades possuem uma nítida função social e
participação ativa no desenvolvimento e na promoção de políticas sociais
no Estado.
Sob tal perspectiva, o Brasil é signatário da ONU desde a sua funda-
ção, logo tem o dever de cumprir os pactos desta instituição internacional,
sob pena de responsabilidade no plano internacional. Abaixo os princi-
pais artigos da Declaração de 1948, no que concerne ao tema, vejamos:

3 DO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL


VIGENTE NO QUE CONCERNE A AUTONOMIA E
LIBERDADE SINDICAL

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 versa que:

Artigo 2° Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as


liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção al-
guma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de re-
ligião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social,
de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além
disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto políti-
co, jurídico ou internacional do país ou do território da naturali-
dade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tute-
la, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

O ARTIGO 2º da declaração Universal de Direitos Humanos é in-


cisivo quanto à universalidade dos direitos humanos, e mais, do direcio-
namento da mesma, qual seja, para todos os seres humanos, logo legítimo
se invocar aqui uma norma internacional, assim como tem o país o dever
de cumprir. Não custa mencionar que o Governador do Estado, da mes-
ma forma deve agir de maneira democrática e pautada no ordenamento

358
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jurídico estrutural do país, inclusive as normas internacionais de direitos


humanos, sob pena de responsabilidade.
No mesmo sentido, o Artigo 20°, versa que “1. Toda pessoa tem di-
reito à liberdade de reunião e de associação pacíficas. 2.Ninguém pode
ser obrigado a fazer parte de uma associação”. A medida do presidente
da República contraria tal preceito, pois atenta diretamente ao direito de
associação, criando impasses e dificuldades que de plano aniquilarão as
atividades sindicais no país.
O Governador do Estado do Paraná nitidamente viola tal artigo da
carta das Nações Unidas ao obrigar e de forma sorrateira, arbitrária, in-
justificada e ditatorial a desfiliação em massa dos associados, causando um
enfraquecimento e mais, uma imediata paralisação, por falta de verba, das
atividades sindicais no Estado do Paraná.
Ainda, o artigo 23° da DUDH assegura que:

1.Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho,


a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção con-
tra o desemprego. 2.Todos têm direito, sem discriminação algu-
ma, a salário igual por trabalho igual. 3.Quem trabalha tem direito
a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à
sua família uma existência conforme com a dignidade humana,
e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção
social. 4.Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas
sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.

A declaração universal assegura em sua amplitude, o direito ao livre


exercício das atividades sindicais no plano interno dos países. No caso
em tela, o Governador do Estado está impedindo o desenvolvimento das
atividades sindicais no Estado, ao criar entraves injustificados e totalmente
arbitrários, ao exercício da atividade sindical. Viola, mais uma vez, dispo-
sitivo da declaração de direitos humanos de 1948, o governador do Estado.
Nesse mesmo sentido é o pacto adicional denominado Pacto Interna-
cional dos Direitos Civis e Políticos (1966) em seu Artigo 22:

§1. Toda pessoa terá o direito de associar-se livremente a outras,


inclusive o direito de constituir sindicatos e de a eles filiar-se, para
proteção de seus interesses.

359
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

§2. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições


previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade
democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança e
da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas
ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. O presente artigo
não impedirá que se submeta a restrições legais o exercício desses
direitos por membros das forças armadas e da polícia.

§3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que os


Estados-partes na Convenção de 1948 da Organização Internacio-
nal do trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito
sindical, venham a adotar medidas legislativas que restrinjam – ou
a aplicar a lei de maneira a restringir – as garantias previstas na
referida Convenção.

Neste artigo do pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos,


qual seja, o artigo 22, o Governador do Estado do Paraná incide de forma
drástica, pois em total contrariedade ao Pacto, ressalte-se o Brasil é signa-
tário da ONU, logo deve cumprir aos seus pactos integralmente. O Go-
vernador edita um decreto em total contrariedade aos preceitos contidos
no artigo 22, ou seja, um decreto que restringe a atividade sindical e mais,
as aniquila de modo a tornar sem nenhum impacto! Decreto totalmente
em contrariedade ao Pacto da ONU em menção. Violação de Direitos
Humanos pelo Governador do Estado do Paraná.
O Pacto verticaliza de maneira cirúrgica os direitos e garantias, reafir-
mando o direito à liberdade sindical, logo um direito elementar e basilar
da atividade sindical. Ainda, o parágrafo segundo assegura o direito do
trabalhador, assim como do sindicato, em não sofrer restrições em seus
direitos. Logo, não se pode a atividade sindical sofrer restrições, as quais
apenas podem ocorrer para um bem maior, qual seja, para manutenção de
Democracia. No caso em tela, o governador do Estado, em ato totalmente
ditatorial e antidemocrático, via decreto pretende aniquilar as atividades
sindicais no Estado.
O que no caso em tela, acontece ao contrário, pois o Governador do
Estado ao editar decreto inconstitucional e antidemocrático, atenta di-
retamente contra a democracia e mais, em face dos direitos e garantias
mínimas dos trabalhadores e das entidades associativas. O parágrafo 4§ do

360
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
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mesmo artigo chama a atenção dos Estados, os quais têm o dever legal de
adotar medidas para assegurar o livre exercício da atividade sindical. Em
tempo, o Estado está impedido de adotar medidas que restrinjam direitos
ou garantias previstas na Convenção.
No caso em tela, o governador do Estado age em total ofensa ao dis-
positivo acima ao editar em total irregularidade decreto que viola o direito
à liberdade sindical, assim como em total violação aos preceitos demo-
cráticos do país e da constituição da República. E mais, em total ofensa à
própria Constituição do Estado. Ao ofender tal pacto, o Estado viola Di-
reitos Humanos, ou seja, o Exmo., Governador do Estado do Paraná por
meio de medida legislativa viola Direitos Humanos, o que deve ser levado
inclusive a conhecimento das autoridades internacionais.
Neste mesmo viés, O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômi-
cos, Sociais e Culturais, também da ONU, versa que:

Artigo 6.º. 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem


o direito ao trabalho, que compreende o direito que têm todas as
pessoas de assegurar a possibilidade de ganhar a sua vida por meio
de um trabalho livremente escolhido ou aceite, e tomarão medidas
apropriadas para salvaguardar esse direito. 2. As medidas que cada
um dos Estados Partes no presente Pacto tomará com orientação
técnica e profissional, a elaboração de políticas e de técnicas capaz-
es de garantir um desenvolvimento econômico, social e cultural
constante e um pleno emprego produtivo em condições que ga-
rantam o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais
de cada indivíduo.

Ao Estado cumpre tomar medidas para assegurar direitos e garan-


tias laborais, assim como assegurar o exercício de direitos e garantias,
inclusive no contexto laboral e sindical. Logo, ao invés de dificultar as
atividades sindicais e tentar sucatear as atividades laborais no país, o Es-
tado Brasileiro e os Estados da federação deveriam buscar medidas que
melhorem as condições de vida do trabalhador, que proporcionem uma
vida melhor ao povo. Ao contrário não se está a falar em Estado Demo-
crático. No caso em tela, quando o Estado pretende em atividade total-
mente antidemocrática e com pretensões maiores, quais seja, a extinção
e o banimento dos sindicatos.

361
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A justiça do Trabalho e a proteção aos direitos laborais, seja no setor


público ou privado é uma conquista dos trabalhadores na luta pela Demo-
cracia e pela redução e proteção contra a exploração. Façamos uma breve
reflexão, se a Reforma Trabalhista reduziu direitos e extirpou outros, para
desenfreadamente reduzir a quantidade de demandas, que chegará ao ponto
que se justificará a extinção. Ainda em medida absurdamente antidemocrá-
tica. Ademais, se o trabalhador não tem quem lute por ele, não possui uma
entidade associativa que lhe acolha e lute quando das violações, certamente
estará a um passo da escravidão e outras insanidades graves.
Neste mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Eco-
nômicos, Sociais e Culturais, também da ONU, em seu artigo 8º, asse-
gura que:

1. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a asse-


gurar:

a) O direito de todas as pessoas de formarem sindicatos e de se


filiarem no sindicato da sua escolha, sujeito somente ao regula-
mento da organização interessada, com vista a favorecer e proteger
os seus interesses econômicos e sociais. O exercício deste direito
não pode ser objeto de restrições, a não ser daquelas previstas na lei
e que sejam necessárias numa sociedade democrática, no interesse
da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger os
direitos e as liberdades de outrem; b) O direito dos sindicatos de
formar federações ou confederações nacionais e o direito destas de
formarem ou de se filiarem às organizações sindicais internacio-
nais; c) O direito dos sindicatos de exercer livremente a sua ativi-
dade, sem outras limitações além das previstas na lei, e que sejam
necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança
social ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liber-
dades de outrem; d) O direito de greve, sempre que exercido em
conformidade com as leis de cada país.

O caso em tela, a ofensa e restrição a atividade sindical vem do go-


vernador do Estado, que atenta diretamente aos pactos da ONU. Sim, o
governador do Estado viola Direitos humanos e atenta diretamente em
face da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

No mesmo sentido o artigo 8º determina e proíbe a atuação do Esta-


do de forma a intervir nas atividades sindicais. Ao Estado cumpre o papel
de promover políticas que atuem de modo a auxiliar no desenvolvimento
das atividades sindicais, jamais medidas que impeçam ou dificuldades que
inviabilizem de plano as atividades sindicais, como é o caso em tela, do
Decreto nº. 3808/2020. Principalmente quando atua dolosamente e com
objetivo direto de aniquilar as atividades sindicais. O post do governador
no Instagram comemorando e acusando os sindicatos é a demonstração d
ação orquestrada e dolosa pra acabar com as atividades sindicais no Estado.
O Decreto, além de todos os vícios formais e inconstitucionalidades
já mencionadas, cria dificuldade para o exercício da atividade sindical,
além de nítida e direta intervenção em procedimentos administrativos
e financeiros do sindicato. Tais procedimentos de recadastramento, da
forma complexa como fora proposta, acabam por de imediato determi-
nar o fechamento da maioria dos sindicatos de servidores públicos do
Estado do Paraná.
Diga-se de passagem, atacar os sindicatos de servidores é uma estraté-
gia para o Estado, pois atualmente são os servidores públicos que possuem
os sindicatos mais fortes e com maior número de associados no país. Sem
sindicato não se pode falar em um exercício democrático do trabalho e
mais, nem em garantia de trabalho digno e livre. No Brasil o trabalhador
precisa e muito do sindicato, ademais, a baixa escolaridade, a escassez de
trabalho e o contexto de crise atual, sem a atuação sindical e de outros ór-
gãos como o MPT... o trabalhador fica em uma situação de precariedade
e de vulnerabilidade social e estrutural.
O decreto atenta para os preceitos fundamentais, sociais e de desen-
volvimento humano, ademais, sem sindicatos ou com estes respirando por
aparelho, as violações laborais atentarão diretamente na dignidade huma-
na e mais, consequentemente se terá um escárnio humano desenfreado.
As violações a direitos humanos serão evidentes. Sim, pois já aconteceu
por meio formal do decreto 3808/2020, porém em seguida haverá vio-
lações diretas a direitos e garantias laborais, decorrentes da vigência de
outros instrumentos que podem vir.
No mesmo aspecto, os Pactos DA OIT pelo Brasil ratificados, tam-
bém foram violados pela edição decreto nº. 3808/2020, vejamos:

363
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A Convenção 98 da OIT, que trata do direito a sindicalização e asso-


ciação para fins sindicais e internalizada desde 1952 pelo Brasil, versa que:
“Art. 1 — 1. Os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra
quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”.
O decreto nº. 3808/2020 é um atentado a autonomia e liberdade sin-
dical, e mais, ao artigo 1º da Convenção nº. 98 da OIT. A Convenção nº.
98 assegura, conforme acima, que os trabalhadores DEVERÃO gozar da
proteção adequada, ou seja, é uma norma imperativa impositiva, logo não
uma mera liberalidade do Estado, mas um dever, sob pena de violação à
presente convenção. No caso concreto, a edição de um decreto governa-
mental totalmente atentatório a preceitos constitucionais e internacionais,
inclusive norma em expressa e literal ofensa ao princípio da autonomia e
liberdade sindical.
No mesmo sentido o decreto ofende e atenta diretamente contra o ar-
tigo 2º da Convenção 98 da OIT, vejamos: “Art. 2 — 1. As organizações
de trabalhadores e de empregadores deverão gozar de proteção adequada
contra quaisquer atos de ingerência de umas e outras, quer diretamente
quer por meio de seus agentes ou membros, em sua formação, funciona-
mento e administração”.
Cabe ao Estado e a sociedade preservar e proteger o exercício de di-
reitos e garantias, inclusive sindicais. Mais uma vez, a edição do decreto
nº. 3808/2020 e nº. 3978/2020, está em total contrariedade aos preceitos
contidos no artigo 2º da Convenção nº. 98 da OIT, instituição internacio-
nal da qual o Brasil é membro desde a sua fundação.
Ainda, com relação a Convenção nº. 87 da OIT, ainda que a mesma
não tenha sido ratificada pelo Brasil, este tem o dever de respeita-la por
Força da Declaração de Direitos e Garantias de 1998, que está relacionada
ao próprio instrumento de fundação da OIT. O texto da Declaração men-
cionada é objetivo em mencionar que independentemente de ratificação
das convenções, os países têm o dever de cumprir e instituir no plano
interno o conteúdo das convenções de direitos humanos, cuja liberdade
sindical é a primeira frente.
A Convenção nº. 87 da OIT diz que “Considerando que a Declaração
de Filadélfia proclamou novamente que "a liberdade de expressão e de as-
sociação é essencial para o progresso constante";” Ainda, o Artigo 3 “1.
As organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito de re-

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

digir seus estatutos e regulamentos administrativos, o de eleger livremente


seus representante, o de organizar sua administração e suas atividades e o
de formular seu programa de ação.2. As autoridades públicas deverão ab-
ster-se de toda intervenção que tenha por objetivo limitar este direito ou
entorpecer seu exercício legal”.
Ou seja, cumpre ao Estado e as autoridades públicas o dever de abs-
ter-se de qualquer intervenção nos sindicatos, assim como na atividade
sindical como um todo. Viola o Estado do Paraná, por meio do seu gover-
nador Carlos Massa Júnior a Convenção nº. 87, nos termos acima. Ade-
mais, se a mesma é reconhecida pela Declaração de Direitos e Garantias
fundamentais de 1998 como integrante do pacto estrutural, o país tem o
dever de implementar e assegurar a liberdade sindical no país, nos termos
da Convenção 87 da OIT.
Ainda, na seara de violação aos tratados de Direitos Humanos, insta
mencionar que o Brasil é signatário da Organização dos Estados Ameri-
canos – OEA e o decreto em questão viola diretamente os seus pactos.
O decreto atenta diretamente ao artigo 1º do Pacto de San José da Costa
Rica, vejamos:

Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos 1. Os Estados-partes


nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liber-
dades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a
toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação
alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões
políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social,
posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

Ora, se o país é signatário da OEA e internalizou o Pacto acima,


tem o dever de assegurar medidas de modo a respeitar os direitos e ga-
rantias. Agora, se tal medida parte do chefe de Estado de maior Hierar-
quia, realmente a situação é muito grave e merece inclusive a notificação
do órgão internacional para que tome as medidas necessárias para inibir
tais violações.
Ainda, o Estado do Paraná viola diretamente o Artigo 16 do Pacto de
San José da Costa Rica, vejamos:

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com


fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, so-
ciais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza.

2. O exercício desse direito só pode estar sujeito às restrições


previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade
democrática.

Tal artigo vem a reiterar o direito à liberdade e o dever do Estado em


promover políticas para assegurar o exercício de tais liberdades. O que
também está assegurado no Protocolo adicional de San Salvador, vejamos:

Artigo 6, inciso 2. Os Estados Partes comprometem‑se a adotar


medidas que garantam plena efetividade do direito ao trabalho, es-
pecialmente as referentes à consecução do pleno emprego, à orien-
tação vocacional e ao desenvolvimento de projetos de treinamento
técnico‑profissional, particularmente os destinados aos deficientes.

O artigo nº. 8º do protocolo adicional de São Salvador, logo integran-


te do Pacto principal, logo normas de direitos Humanos, versa especifi-
camente a respeito do direito ao exercício da atividade sindical, vejamos:

1. Os Estados Partes garantirão:

a. O direito dos trabalhadores de organizar sindicatos e de filiar‑se


ao de sua escolha, para proteger e promover seus interesses. Como
projeção desse direito, os Estados Partes permitirão aos sindicatos
formar federações e confederações nacionais e associar‑se às já ex-
istentes, bem como formar organizações sindicais internacionais e
associar‑se à de sua escolha. Os Estados Partes também permitirão
que os sindicatos, federações e confederações funcionem livre-
mente; b. O direito de greve.

Aqui a violação se agrava ainda mais, uma vez que ao Estado-membro


cumpre o dever de zelar, garantir e promover os seus interesses. No Estado
do Paraná a edição do decreto 3808, ao contrário, restringe, em medida
totalmente antissindical a atividade sindical. O governador do Estado do
Paraná, ao invés de promover medidas para assegurar direitos e garantias,

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

arbitrariamente edita decreto que aniquila de forma instantânea os sindi-


catos e consequentemente a proteção social ao trabalhador, oferecida pelos
sindicatos. Aniquila a autonomia sindical e mais, afronta diretamente o
princípio da liberdade sindical no Estado. Tal violação é muito grave, me-
rece e necessita de uma resposta do poder judiciário, urgente.

4 DA VIOLAÇÃO A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO


PARANÁ PELO GOVERNADOR DO ESTADO POR MEIO
DE DECRETO LEGISLATIVO

Da mesma forma, em conduta totalmente antissindical e inconsti-


tucional o Governador do Estado do Paraná viola direta e literalmente a
própria Constituição do Estado do Paraná. Ademais, a Constituição do
Estado do Paraná, vestida da roupagem da democracia e da pluralidade de
fontes a que a assembleia Nacional Constituinte elaborou a Constituição
de 1988, a Constituição Estadual de 1989, da mesma forma assegurou o
princípio da liberdade sindical e associativa aos servidores.
Ainda, o governador violou diretamente os princípios basilares da
constituição do Estado, qual seja, impessoalidade, razoabilidade, eficiên-
cia, motivação e economicidade, conforme adiante se explana.
Nesse sentido, o artigo 27 caput da Constituição do Estado do Paraná
assegura que: “A administração pública direta, indireta e fundacional, de
qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios obedecerá aos princípios
da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, efi-
ciência, motivação, economicidade e, também, ao seguinte:” No caso em
tela, é evidente que o Governador do Estado viola também literalmente os
princípios da moralidade pública, ademais seu decreto possui unicamente
objetivo persecutório aos sindicatos e mais, tentativa escancarada de ani-
quilar as atividades sindicais. Tal resta demonstrado no post do Instagram
do governador que desrespeita, calunia, injuria e difama os sindicatos.
O Governador afirma que os trabalhadores eram obrigados a se sin-
dicalizar, como se os sindicatos usassem de artimanhas e ilegalidades para
conseguir filiados. Não, excelência, nenhuma prova o Estado terá de tal
grave acusação, mas ao contrário, se tem à grave violação à direitos huma-
nos pelo governador, ao impedir os servidores de continuar sindicalizado.
Sim, todos os sindicalizados são corretamente filiados, apresentaram
os documentos de filiação, cadastraram no PRCONSIG, ou seja, livre-
367
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

mente optaram. Ao contrário, a exclusão de todos os sindicalizados que


não se recadastraram é uma desfiliação compulsória dos mesmos. Viola-
ção ao princípio da liberdade sindical, violação à liberdade e autonomia
sindical entre outros.
Ainda, o decreto nº. 3808 está em total divergência aos princípios da
impessoalidade e da motivação. Ademais, tal decreto possui unicamente a
intenção de prejudicar os sindicatos e enfraquecer os mesmos de maneira
a inviabilizar seus funcionamentos.
Ora, o governador do Estado atenta diretamente ao preceito da mo-
tivação, pois a exposição de motivos não é válida, mas sim pautada em
questões que não se justificam, mas alheias a questão das contribuições
sindicais. O governador justifica sua medida na necessidade de promover
segurança e evitar fraudes, mas exclui os bancos. Ora, qual é o maior ín-
dice de fraudes em consignados? Com toda certeza, são os empréstimos
bancários! Estes não estão incluídos no recadastramento, pois tão somen-
te as associativas estão incluídas.
Ainda, no mesmo viés é o Artigo 27 da Constituição Estadual, “VI -
é garantido ao servidor público civil, estadual e municipal, o direito à livre
associação sindical”. O Governador ao editar o decreto em questão atenta
diretamente em face da autonomia e liberdade sindical previstos no texto
da Constituição Estadual.
O Decreto nº. 3808/2020 E Decreto nº. 3978/2020 estão maculados
por uma ilegalidade formal da mesma forma que a lei 13.740/2002 possui
uma ilegalidade evidente e nítida. Ademais, com base na hierarquia das
normas, uma lei não pode ser alterada por um decreto, de modo a criar,
retirar e excluir obrigações.
Ademais, a lei nº. 13.740/2002 não pode determinar que tal assunto
pode sofrer alterações via decreto. Ora, a hierarquia das leis e normas deve
ser respeitada. Nesse quesito, tal temática somente poderia ser alterada
por lei ordinária e jamais via decreto. Não se pode mudar o princípio da
hierarquia das normas por meio de lei ordinária. Não se pode mudar a
base principiológica por meio de ato legislativo estadual. Logo, totalmen-
te ilegal e inconstitucional a previsão para alteração por meio de decreto,
constante na lei nº. 13.740/2002.
E mais, não pode a lei ordinária prever que tal assunto pode ser alterado
por decreto, pois tal procedimento viola o princípio da hierarquia das nor-

368
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

mas. Em tempo, medida que se impõe é o reconhecimento da ilegalidade


do título da lei nº. 13.740. O referido decreto foi editado, publicado, porém
possuí uma irregularidade formal, qual seja, não havia possibilidade de fazer
o recadastramento no site mencionado, o que veio a ser possível vários dias
após a publicação do Decreto. Assim, evidente a violação ao princípio da
Liberdade Sindical pelo Governador do Estado do Paraná, ao editar me-
dida em total contrariedade a legislação interna do Estado, Constituição
de 1988, assim como a legislação internacional a que o Brasil é signatário,
internalizou e por força do aparato internacional, tem o dever de cumprir
com os tratados que de livre e espontânea vontade internaliza.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devidamente demonstrada a ilegalidade e inconstitucionalidade dos


Decretos Estaduais analisados no presente trabalho, ainda, arbitrária e in-
quisitiva. Em tempos de defesa da democracia, surge lei absurda como esta.
O que ser feito pelo povo liderado por um governo ditador? A espe-
rança há apenas no poder Judiciário. O que demanda conhecimento, tem-
po, dinheiro, profissionais adequados. O povo continua sendo oprimido
por lideranças inexperientes, egoístas e inconsequentes. Pois que paga a
conta continua sendo o povo.
Para Norberto Bobbio “o problema grave de nosso tempo, com rela-
ção aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de
protegê-los.” (BOBBIO, 1909, p.17). A que ponto se chega quando uma
democracia se impõe normas ilegais. A busca pela proteção dos direitos
fundamentais tem sido bandeira diária da sociedade, mais ainda, da socie-
dade paranaense. A finalidade do presente trabalho é despertar o conheci-
mento do mundo científico quanto a necessidade de se manter os direitos
fundamentais do ser humano. Temática necessária à uma sociedade justa,
harmônica e fraterna.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. DECRETO No 592, DE 6 DE JULHO DE 1992. Disponí-


vel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/
d0592.htm>. Acesso em: 20 de outubro de 2020.

369
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

BOBBIO, Norberto. 1909. A era dos Direitos/Norberto Bobbio; tradu-


ção Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 7ª impressão.

OEA. Pacto de San José da Costa Rica. Disponível em: <https://www.


cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>.
Acesso em: 19 de outubro de 2020.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, disponível em: <ht-


tps://www.ohchr.org/en/udhr/documents/udhr_translations/por.
pdf>. Acesso em: 20 de outubro de 2020.

OIT. Convenção nº. 98. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/


temas/normas/WCMS_235188/lang--pt/index.htm>. Acesso em:
25 de outubro de 2020.

PARANÁ. Decreto nº 3808/2020. Disponível em <https://www.legis-


lacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=exibir&codA-
to=230544&indice=3&totalRegistros=141&anoSpan=2020&ano-
Selecionado=2020&mesSelecionado=1&isPaginado=true>. Acesso
em: 02 de novembro de 2020.

PARANÁ. Constituição do Estado do Paraná, 1989. Disponível em:


<https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?ac-
tion=iniciarProcesso&tipoAto=10&orgaoUnidade=1100&re-
tiraLista=true&site=1>. Acesso em: 19 de outubro de 2020.

370
NEUROPRIVACIDADE: NOVOS
DIREITOS HUMANOS FRENTE À
EXPANSÃO NEUROCIENTÍFICA
Francisco José Borsatto Pinheiro57

INTRODUÇÃO

Antes mesmo da proclamação do direito humano de ir e vir; do reco-


nhecimento da família como grupo fundamental e natural da sociedade;
do direito à propriedade; do direito à liberdade de pensamento, consciên-
cia e religião; da liberdade de expressão, opinião, e da livre associação, a
Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu artigo 12 proclama,
por primeiro, o direito à privacidade.
A Declaração, datada de 1948, no entanto, não previa até onde o
avanço tecnológico poderia comprometer a privacidade humana. Era im-
possível, naquela época, para além da imaginação ficcional, prever que a
ciência atravessaria a fronteira tida até pouco tempo como intransponível:
a mente humana e sua privacidade, ou da neuroprivacidade.
A consagração do Direito Humano da privacidade ocorreu de forma
silenciosa, sem que houvesse uma reflexão profunda, aparente, da sua im-
plicação e da dimensão que tal proteção teria nos anos futuros.
Atualmente, graças ao avanço tecnológico a relação humana com a
privacidade constitui uma grande área cinzenta, um limite indefinido de

57 Advogado, especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Esta-


do do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal com ênfase
em Segurança Pública pela UniRitter.

371
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

a partir de que momento estamos vulneráveis e expostos a interferência de


terceiros com os mais diversos fins.
O último reduto da individualidade humana já foi rompido pelo
avanço tecnológico. O avanço da neurociência dá-se, em grande parte,
pelo avanço da neurotecnologia. Embora a neurotecnologia tenha atual-
mente sua pesquisa majoritariamente voltada para o uso da medicina a
existência de pesquisas de outras áreas humanas que utilizam ou utilizarão
a neurociência e sua tecnologia trazem o alerta de que é necessário definir
com urgência quais são os limites que ainda podem ou devem ser preser-
vados, e quais novos direitos surgem a partir deste novo cenário.
Tratar de novos Direitos Humanos exige uma abordagem diferencia-
da e coerente. Não é do espírito do direito antever-se às ameaças, porém,
em se tratando do Direito da Privacidade há um precedente histórico,
pois, conforme citado, a sua proclamação em 1948 precedeu a legislação
da maioria do países, que só vieram a proteger a privacidade nos moldes
atuais após a proclamação da UDHR. Assim, é possível que novos Direi-
tos Humanos sejam reconhecidos mesmo antes de futuras Leis Ordinárias
se sua proteção for voltada à Neuroprivacidade.

2. PRIVACIDADE: O RECONHECIMENTO SILENCIOSO


DE UM DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

Com a difusão do sistema de Direitos Humanos após a 2ª Guerra


Mundial apenas aspectos do direito de privacidade eram protegidos pelas
Constituições, como algumas garantias contra a violação de correspon-
dência, da residência e de revistas pessoais imotivadas.
No entanto, nenhuma garantia protegia a privacidade ou vida priva-
da com a adoção de uma expressão ‘guarda-chuva’, que poderia, assim,
abranger a totalidade de elementos a serem protegidos. (DIGGELMANN
e CLAIS, 2014)
O direito à privacidade, em especial, possui uma singularidade na sua
concepção.
Se em geral os Direitos Humanos são promovidos a partir dos Esta-
dos, quando já estão bem estabelecidos e a discussão em seu entorno já
atingiu certo tempo de maturidade, o direito à privacidade surgiu na con-
tramão deste caminho. Sua proteção internacional se deu antes de qual-

372
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

quer proteção nacional. Isto é, a Declaração de 1948 criou uma proteção


sem paradigma em qualquer Constituição nacional (DIGGELMANN e
CLAIS, 2014).
A proclamação deste direito deu-se com a redação do artigo 12 da
Declaração Universal de Direitos Humanos:
“Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua fa-
mília, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra
ou reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques.”
Hoje a privacidade é um direito-chave à convivência da sociedade e
ao mesmo tempo que é dotado de tal importância também possui uma
severa incerteza acerca de seu conceito.
Há um conceito binário de privacidade, nos quais ideias aparente-
mente opostas coexistem e ajudam a definir a ideia de privacidade: o pri-
meiro, é a ideia do espaço entre o indivíduo e a sociedade, um direito
de ser deixado sozinho. Isto é, privacidade como liberdade da sociedade
(DIGGELMANN e CLAIS, 2014).
O segundo trata a privacidade como proteção à normas elementais das
comunidades, como relações privadas ou reputação. Este segundo concei-
to trata a privacidade como dignidade. (DIGGELMANN e CLAIS, 2014)
Segundo os autores citados neste capítulo não é possível identificar a
idéia primária que deu azo ao reconhecimento da privacidade como Di-
reito Humano. Da analise efetuada dos rascunhos das sucessivas propostas
de redação da Declaração Universal de Direitos Humanos constatou ape-
nas que “two parcial guarantees were mentioned in almost all proposals:
the right to protection of the ‘home’ – or ‘house’ or ‘domicile’ – and
the right to protection of one’s correspondence. Protection of the home
meansprotection of physical distance from society. But that is not every-
thing. Protection of the house also means protection of close and intimate
relationships as far as they take place in the house. Accordingly, it also
means protection of some forms of participation on society. (…) So the
drafting history of the right to privacy does not allow for the conclusion
that one of the two competing ideas can claim the status of the primary
idea. Rather, it seems to support the view that every concept of privacy is
inextricably linked to more than one idea.”

373
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Evidentemente que a proclamação do Direito Humano da Privacida-


de com essa aparente obscuridade em sua gênese não levou em conta o de-
senvolvimento tecnológico que a sociedade alcançaria e que vivenciamos
hoje. Não fosse a inclusão da expressão “privacidade”, ampla e aberta,
no art. 12 da Declaração Universal de Direitos Humanos o resguardo da
vida privada estaria vinculado somente a elementos externos e materiais, e
portanto, descompassado do tempo atual, no qual a vulnerabilidade men-
tal dos indivíduos é cada vez mais explorada.

3. PRIVACIDADE E NOVAS NEUROTECNOLOGIAS

Com o avanço científico no campo da neurociência possibilitou a


tecnologia do escaneamento cerebral e o mapeamento de determinadas
funções e formas de funcionamento do cérebro dos indivíduos. A pesquisa
nesta área, com todas suas implicações morais e legais é denominada de
neuroética, e ocupa-se destas implicações focando nos objetivos e resulta-
dos do avanço neurotecnológico, propondo-se a responder perguntas tais
como: quais informações podem ser acessadas? Quem acessará tais infor-
mações? Como tais informações serão usadas? E ao fim, é claro, o tema
deste trabalho: qual o grau de privacidade que os indivíduos têm quando
se trata do seu cérebro. (MANDELL, 2005)
Tais questões são fundamentais e despertam uma preocupação que
nenhum outro do órgão humano apresenta. Foi essa preocupação bem
desposada por WILLIAM SAFIRE (2005): “What distinguishes us form
each other beyond or looks? The answer: our personalities and behavior.
And these are the characteristics that brain science will soon be able to
change in significant ways. Let’s face it: one person’s liver is pretty much
like another’s. Our brain, by contrast, give us our intelligence, integrity,
curiosity, compassion, and – here’s the most mysterious one – conscience.
The brain is the organ of individuality.”
Dito isto, passamos a analisar objetivamente quais são as principais
pesquisas neurotecnológicas e suas implicações ao direito de privacidade.

3.1. CAMPOS PRIMÁRIOS DE PEQUISA


NEUROTECNOLÓGICA

Atualmente a neurociência ocupa-se de três áreas primárias no campo


da pesquisa cerebral, quais sejam: “imaging of the brain and other neuro-

3 74
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

diagnostic techniques, exertion of influence of the brain, and design and


construction of the brain” (MANDELL, 2005).
Para a primeira área de pesquisa são utilizadas, em geral, as tecnolo-
gias comuns ao diagnóstico médico, sendo elas: Positron Emission Tomo-
graphy (PET); Single photom emission computed tomography (SPECT);
Magnetic Ressonance imaging(MRI); e Electroencephalography (EEG)
(MANDELL, 2005).
Contudo, exemplo da não exclusividade para fins de diagnóstico
médico da tecnologia de imagem cerebral é o surgimento do “neuro-
marketing”, tal como os estudos desenvolvidos no Brighthouse Institute
for Thoght Sciences at Emory University Hospital em Atlanta, que utili-
zam-se da Ressonância Magnética (MRI) para identificar o aumento de
atividade do córtex pré-frontal quando os sujeitos dos testes são expostos
a imagens de produtos, e assim identificar possível rejeição ou preferência
pelo produto apresentado. (ULMAN, 2014)
Esta área de pesquisa não é imune à críticas da própria área científica
(THOMPSON, 2003), que não confere credibilidade a tais métodos, po-
rém, sua mera existência cria os alertas à necessária proteção do acesso e
uso da informação que pode ser extraída do cérebro humano.
O ‘exercício de influência no cérebro’ é a área primária voltada para o
uso de drogas que afetam performance cerebral. Se por um lado elas têm
a capacidade de promover a cura desordens cerebrais outros aspectos da
pesquisa voltaram-se à promoção do realce ou da supressão de caracterís-
ticas funcionais. Exemplos disso são a memória, atenção e agressividade.
Para as duas primeiras há larga escala de comercialização de drogas que as
realçam. Para a última, há uma crescente pesquisa de diferentes formas de
inibição do comportamento violento (MANDEL, 2005)
Há também, as formas de influência tecnológica externa, para as quais
nos dedicaremos no capítulo seguinte.
A última área primária de estudo é aquela voltada para a estrutura e
design do cérebro. Teoricamente é ponto mais distante da evolução neu-
rotecnológica, pois trata da alteração da estrutura cerebral com implantes
tecnológicos. Inicialmente seus estudos são voltados para a cura de certas
enfermidades como danos decorrentes de acidentes vasculares cerebrais,
Mal de Alzheimmer, epilepsia e alívio de dores. Mas, seguindo a lógica
da pesquisa de fármaco-influência cerebral é de esperar que o campo de

375
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

pesquisa naturalmente se divida para almejar o realce de funções cerebrais.


(MANDEL, 2005) Sabidamente há projetos de grandes empresas para o de-
senvolvimento da interface cérebro-máquina, prometendo permitir as mais
diversas funções – não vitais - a partir do controle exclusivamente cerebral.

3.2. MAPEAMENTO CEREBRAL E A INFLUÊNCIA


EXTERNA

Um bom exemplo da capacidade de influência da tecnologia direta-


mente no cérebro, ainda que de forma não invasiva como pretendida pelas
estruturas cérebro-máquina, é o estudo promovido pelo Massachusetts
Institute of Technology – MIT – que foi divulgado no Brasil em 2010,
pela BBC: “Manipulação de atividade cerebral muda julgamento moral”
(DAMASCENA, 2013).
Em tal estudo, “os pesquisadores usaram um campo magnético apli-
cado no couro cabeludo dos voluntários. Tal magneto produzia uma
corrente fraca que bloqueava temporariamente a ação normal das células
dessa área do cérebro. Após algumas situações que reclamavam um jul-
gamento moral foram apresentadas a eles. Os cientistas descobriram que
quando a junção têmporo-parietal tem seu funcionamento afetado, as pes-
soas têm maior probabilidade de julgar tentativas fracassadas de prejudicar
outra pessoa como atos permissíveis. A habilidade de interpretar intenções
foi prejudicada e os voluntários se viram forçados a se concentrar mais nas
informações sobre o desfecho da história ao fazer um julgamento.”
O estudo demonstra um conhecimento da estrutura do cérebro e re-
dunda, mesmo que momentaneamente, num prejuízo à atividade cerebral
comum, pois essa afetação ao julgamento começa na afetação da leitura da
intenção de outras pessoas. Isto é a forma natural que os humanos têm de
“ler mentes”.
De acordo com GREELY (2005) “ We all read minds; we read minds
all the time. Humans are social animals, and reading the minds of the oth-
er humans is very important to us. We want to know wheter this person
is going do take a swing at us or hand us a glass of wine. And if he does
hand us a glass of wine, we want to know if it is because he wants us to
get drunk and make fools of ourselves or because he is just being friendly.
People who cannot read minds are at huge disvantage.”

376
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Assim, voltando ao que assevera DAMASCENA, “parte da doutrina


neurocientífica reconhece que muito sobre ele [o cérebro] se tem a conhecer
e a estudar. Dada à complexidade e às inúmeras possibilidades que caracteri-
zam o funcionamento cerebral, os cientistas iniciaram um processo de ma-
peamento do cérebro. Assim, o objetivo inicial das pesquisas e que deveria
durar décadas era, em princípio, desvendá-lo e compreendê-lo. Entretanto,
apesar da ausência de certezas com reação às consequências de determinadas
técnicas, a prudência vem sendo prescindida pela ciência do novo e do mais.”
Porém, como se percebe do estudo acima mencionado, esta não é a função
original dos estudos do mapeamento de cérebro, que deveria partir do estudo
da observação e estímulos que não alterem propositalmente a função cerebral.

3.2. POSSÍVEIS APLICAÇÕES FORENSES DA


NEUROTECNOLOGIA DE “BRAIN FINGERPRINTING”

A tecnologia de ‘impressão digital cerebral’ é um dos casos de pesqui-


sa decorrentes da tecnologia de imagem cerebral, mencionado no capítulo
3.1. Essa técnica tem como objetivo “to determine the truth by detecting
information stored in the brain. Using a EEG, it measures brainwave a
responses to words or pictures presented on a computer screen. A sub-
ject who has knowledge of the information being tested reportedly emits
a specific, measurable response, a brain wave know as P300/MERMER
(Memory and Enconding Related Multifaceted Electroencepholagraphic
Response). A subject who lacks such knowledge would not manifest this
response. (MANDELL, 2005)
O Comitê liderado por Mandell (2005) ainda elencou alguns casos
de Cortes Norte-Americanas que já usaram ou rejeitaram o testemunho
por meio de ondas P300. Um caso de aceite se deu em Iowa, em um caso
de homicídio no qual o acusado foi inocentado por não apresentar ondas
P300 quando imagens da cena do crime foram mostradas e que, por outro
lado, conteria informações coincidentes ao álibi apresentado.
Por outro lado, Oklahoma refutou tentativas de utilização do teste-
munho por meio das ondas P300 por considerar que tal estudo não é
dotado de expressão por parte da comunidade científica.
Esses cenários levam a algumas considerações sobre o futuro do pro-
cesso legal, especialmente o criminal, como um todo. Muito embora tal

377
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

assunto mereça um artigo apartado, mas com o viés demonstrativo da


gravidade do risco ao qual estamos expostos com o uso impensado da
neurotecnologia levanta-se algumas breves questões: A adoção integral de
um sistema testemunhal por aferição de ondas cerebrais, em um sistema
acusatório, supria o contraditório e até o processo em sua integralidade?
O processo penal retroagiria à busca da “Verdade Real”? O método seria
empregado apenas contra o réu? As testemunhas, tanto acusatórias como
defensivas, poderiam ou deveriam ser submetidas ao mesmo procedimento
ou procedimento similar que permita aferição de grau de confiabilidade e
pré-disposição contra ou a favor do réu? Havendo valores Constitucionais
concorrentes, tal como a imparcialidade do juiz, poderíamos submeter os
magistrados a exame cerebral para que seja certificada sua imparcialidade
ou não existência de outras causas impeditivas? Para além disso, existem
outras questões que demandariam maior incursão sobre o próprio estudo
das ondas P300, mas que passam ao largo do tema do presente trabalho.
A difusão de qualquer tipo de tecnologia cerebral não pode ser utili-
zada exclusivamente contra uma das partes do processo. Ao contrário, se
futuramente for implementada, deverá ser utilizada como ferramenta de
garantia a todos os atores jurídicos.

4. NEUROPRIVACIDADE – NOVOS DIREITOS


HUMANOS NEURO-ORIENTADOS

Conforme demonstrado nos capítulos anteriores e nos termos do


concluído por IENCA e ANDORNO (2017), os avanços neurotecno-
lógicos podem impactar não só a privacidade, mas também a liberdade de
pensamento, o direito da integridade mental, a liberdade da discrimina-
ção, o direito a julgamento justo e até mesmo violar o princípio vedante
da auto-incriminação.
Os autores sustentam duas questões prefaciais importantes para engen-
drar-se na luta por novos Direitos Humanos. O primeiro deles é que a re-
cente tendência de movimentação da Lei Internacional em matérias gené-
ticas pode indicar o mesmo rumo para a elaboração e definição de critérios
internacionais para as implicações neurocientíficas e neurotecnológicas. O
segundo, é que os Direitos Humanos são tradicionalmente protegidos de
insuflação indevida, sob pena de tudo ser considerado direito humano e o

378
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

verdadeiro cerne das proteções fundamentais cair em esquecimento. Po-


rém, de acordo com os critérios de ALSTON (1984), os novos Direitos
Humanos sugeridos por IENCA e ANDORNO atendem integralmente
os seguintes quesitos: refletir um valor social fundamentalmente impor-
tante; ser consistente, mas não meramente repetitivo quando comparado
aos atuais corpos de Leis Internacionais de Direitos Humanos; ser capaz de
alcançar um alto grau de consenso internacional, e por fim, ser suficiente-
mente preciso para dar azo a direitos e obrigações identificáveis.
Assim, passamos à análise dos quatro novos Direitos Humanos pro-
postos pelos autores referidos:

4.1. DIREITO À LIBERDADE COGNITIVA

A Liberdade Cognitiva surge por primeiro na concepção destes novos


direitos pois, ao mesmo tempo que é neuro-orientada é também essen-
cial para todas as demais liberdades. Pode ser considerada, inclusive, uma
atualização do Direito de Liberdade de Pensamento, fonte tradicional das
demais liberdades (IENCA e ANDORNO, 2017). Seus aspectos neuro-
-orientados são, para BUBLITZ (2003, apud IENCA e ANDORNO,
2017), divididos em dois princípios fundamentais: “the right of indivi-
duals to use emergente neurotechnologies” e a proteção dos indivíduos de
formas coercivas e não consensuais de uso dessas tecnologias.
Além dos dois aspectos citados, sua dificuldade conceitual da liberdade
cognitiva é multidimensional, sendo assim dividida BUBLITZ (2003, apud
IENCA e ANDORNO, 2017): “ (i) the liberty to change one’s mind or to
choose wheter and by which means to change one’s mind; (ii) the protec-
tion of interventions into other minds to protect mental integrity, and (iii)
the ethical and legal obligation to promoting cognitive liberty”.
A existência ou a atualização do direito à Liberdade Cognitiva, no en-
tanto, demanda a existência de novos direitos neuro-orientados: o direito
à privacidade mental, à integridade mental e à continuidade psicológica.

4.2. DIREITO DA PRIVACIDADE MENTAL

Este novo direito proposto remete às tecnologias de neuro-imagem


e neuromarketing referidas anteriormente no corpo deste trabalho. De
acordo com Nita Farahany não há proteções legais para a leitura involun-
379
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tária da mente. Como se sabe, as tecnologia é capaz de inovar muito mais


rapidamente do que o sistema regulatório pode adaptar-se (CHARO,
2005, apud IENCA e ANDORNO, 2017).
A privacidade, como já mencionado, no entanto, é o único desses
direitos que já possui reconhecimento internacional não neuro-orientado,
que para além da Declaração de Direitos Humanos é protegida também
pela Carta Européia de Direitos Fundamentais de 2000, que em seu ar-
tigo 7, parágrafo primeiro, assegura: Respect for private and family life.
Everyone has the right to respect for his or her private family life, home
and communications.
Neste contexto neuro-orientado de privacidade, levando-se em consi-
deração as demais proteções de liberdade de pensamento e dela decorrentes,
remonta-se um dos conceitos de DIGGELMANN e CLAIS (2014) que
classifica a privacidade como liberdade do indivíduo da sociedade.

4.3. DIREITO À INTEGRIDADE MENTAL

A proposta de um direito à integridade mental também parte de uma


necessária atualização neuro-orientada. No mesmo diploma internacional
citado, a Carta Européia de Direitos Fundamentais, em seu artigo 3, pará-
grafo primeiro prevê: Right to the integrity of the person. 1. Everyone has
the right to respect for his or her physical and mental integrity.
O direito da integridade mental em sua concepção neuro-orien-
tada tem a ver com o uso de tecnologias de estímulos físicos ou de
implantes cerebrais.
IENCA e HASELAGER (2016) cunharam o tema ‘malicious brain-ha-
cking’ para classificar condutas neuro-criminosas cometidas com a manipu-
lação indevida de interfaces cérebro-computador. Em casos como estes não
só a privacidade está comprometida, mas a segurança das vítimas também.
A reorientação da proteção internacional existente supriria esse lapso
legislativo, trazendo proteção específica contra intervenções não autoriza-
das no cérebro. Para classificar-se como comprometimento da integridade
mental um ato, segundo IENCA e ANDORNO (2017), deve preencher
três requisitos: (i) involve the direct access to and manipulation of neural
signaling (ii) be unauthorized; (iii) result in physical and/or psychological
harm. Exemplos de condutas criminosas que a reorientação desta pro-

380
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

teção pode conter vão desde a simples invasão da interface cérebro-má-


quina para assumir controles de redes sociais, ou o que quer que venha a
ser controlado por estes tipos de interface, mas até mesmo a controle de
cadeiras de rodas automatizadas ou implantes cerebrais promovidos com
finalidades médicas.
Com a inserção cada vez maior da neurotecnologia na infosfera a
integridade mental dos indivíduos estará cada vez mais ameaçada se não
forem tomadas medidas específicas de proteção (IENCA e ANDOR-
NO, 2017).

4.4. DIREITO À CONTINUIDADE PSICOLÓGICA

O direito à continuidade psicológica surge como completa inovação


ao rol dos direitos propostos. A sua origem remete às alterações de estru-
tura ou funções cerebrais, como o exemplo citado do estímulo magnético
transcraniano (TMS). Além deste método, outros dois: o estímulo de cor-
rente direta transcraniana (tDCS) e o estímulo cerebral profundo (DBS)
têm apresentados resultados médicos sensíveis (IENCA e ANDORNO,
2017). Em razão disto, sua evolução traz a tona os seus riscos. Para os
autores “changes in brain function cause by brain stimulation may also
cause unintended alterations in mental states critical to personality, and
can thereby affect and individual’s personal identity (Decker e Fleischer,
2008, apud, IENCA e ANDORNO, 2017).
Todos os métodos citados possuem casos constatados de alteração na
continuidade psicológica dos submetidos aos estímulos.
O DBS, por exemplo, conduziu a mudanças comportamentais, au-
mentando impulsividade e agressividade (Frank, Samanta, Moustafa, e
Sherma, 2007, apud Ienca e ANDORNO, 2017), ou ainda mudanças no
comportamento sexual (HOUETO, 2002, apud IENCA e ANDOR-
NO, 2017). Parte dos pacientes também relatou um estranho desconforto
consigo mesmo após o procedimento. Sensações de não sentir-se como a
si mesmo, sentir-se como um robô ou de não ter se encontrado foram re-
latos comuns após o tratamento com DBS (Schüpbach, 2006 apud IEN-
CA e ANDORNO, 2017).
O direito da continuidade psicológica pode ser tido como uma ins-
tância neuro-orientada do direito de identidade.

381
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Contudo, considerando as proteções existentes à identidade, o direito


da continuidade mental vai um passo além, pois busca garantir proteção
em um nível antecedente: no nível da atividade neural. Para promover
uma proteção em um nível tão íntimo é necessário o reconhecimento de
um completo novo direto, resguardando assim a mente de cada pessoa de
abusos e disrupções externas. (IENCA e ANDORNO, 2017).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fim do presente artigo, tomado pela noção de privacidade como o


direito que um indivíduo tem de permanecer livre da sociedade, resistin-
do a qualquer influência, intromissão ou alteração do cerne de sua cons-
ciência e individualidade a conclusão não poderia ser diversa do que a real
e urgente necessidade de um novo esforço internacional conjunto para a
elaboração de proteções da neuroprivacidade humana frente ao avanço
neurotecnológico.
Se por um lado os novos Direitos Humanos sugeridos podem ser ti-
dos ao mesmo tempo como desdobramentos ou evoluções de direitos já
assegurados, sua neuro-orientação os diferenciam. Cabe recordar que a
proteção à privacidade da Declaração Universal aos Direitos Humanos se
deu antes das proteções ordinárias por parte das nações. Isto é, a proteção
da neuroprivacidade como uma garantia fundamental humana manteria a
tradição de elaboração de proteções desta natureza na esfera internacional.
Não há que se olvidar também o exemplo da proteção aos dados genéti-
cos, que surgiram de forma contemporânea aos estudos genéticos e foram
concretizadas na Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos
Humanos, bem como a Declaração Internacional sobre os Dados Gené-
ticos Humanos.
Estudos da conexão destes novos direitos humanos com os direitos
existentes são imprescindíveis, porém, o consenso quanto a necessidade
da implementação destas proteções é urgente.

6. BIBLIOGRAFIA

ACQUISTI, Alessandro; BRANDIMARTE, Laura; LOEWENSTEIN,


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384
O EXERCÍCIO DO DIREITO
FUNDAMENTAL DE PERSONALIDADE
EM PÓS-PANDEMIA
Aline Pomodoro Dias58

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objeto, analisar o direito fundamental in-


dividual da personalidade e a construção de identidade humana, para, a
partir deles, verificar o reflexo no exercício da autonomia pessoal de todo
indivíduo.
O reconhecimento da importância do exercício da construção de
identidade como expressão do direito fundamental de personalidade sem-
pre esteve presente ao longo da História. Com nuances em sua forma de
normatização, a singularidade na pluralidade foi marcante até a Revolu-
ção Industrial. A mudança de paradigma veio e isso é bem demonstrado
por Foucault quando fala em rede institucional de sequestro em sua obra
“A verdade e as formas jurídicas”.
Essa captura da essência humana pelo Estado acabou se tornando um
meio eficaz de aprisionamento de toda autodeterminação do indivíduo, o
que faz com que nenhum questionamento seja feito, uma vez que o Es-
tado teria as melhores condições e conhecimento para decidir o que seria

58 Mestranda pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada em Direito Público. Bolsista


CAPES/PROSUP. Integrante do Grupo de Pesquisa Moral, Direito e Estado Democrático de
Direito. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social. Advo-
gada especialista em Direito Civil.

385
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

melhor para cada indivíduo, retirando de cada um, a autonomia neces-


sária para questionar sensos comuns e verdades absolutas, o que tornaria
desigual o jogo de forças, nomeado por Freud, de pulsão de vida e pulsão
de morte, que apenas se apresenta quando há experimentação humana
através da singularidade existencial.
Delegar a autodeterminação pessoal a quem quer que seja é um ato
de abrir mão da existência e da construção de identidade. Viver sob a
sombra estatal, através do normativismo, dá a falsa sensação de segu-
rança e não responde a questões existenciais, pois apenas mostra um
caminho a ser seguido cegamente. Freud demonstra claramente isso
quando fala do “Eu”.
Observar essas questões faz com que percebamos que o exercício do
direito da personalidade e a construção de identidade somente serão li-
vres, principalmente em momento pós-pandemia, quando tratarmos de
tais assuntos com a profundidade necessária. Apenas o conhecimento
pode oferecer os instrumentos para que o indivíduo se autodetermine e
seja sujeito ativo de sua história.

1. O DIREITO FUNDAMENTAL DA PERSONALIDADE


COMO FORMA DE EXISTÊNCIA

A questão da existência humana é um tema que transcende o passar


do tempo e tem sido objeto de pensamento filosófico, seja por sua com-
plexidade, seja pela constante lembrança da efemeridade da vida que tal
assunto remete.
Sartre, no livro “O existencialismo é um humanismo”, define que a
existência do ser humano precede a sua essência:

O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afir-


ma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a exis-
tência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser de-
finido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou como diz
Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a
existência precede a essência? Significa que, em primeira instân-
cia, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só
posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o

386
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concebe, só não é passível de uma definição, porque, de início, não


é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele
fizer de si mesmo59.

A visão relativista de Sartre traz em seu bojo a ideia de que o ser hu-
mano está constantemente condenado a fazer a sua existência, não haven-
do nada antes ou que tenha sido apenas planejado sem sua execução. O
ser humano seria produto de suas ações e somente assim se definiria no
mundo vivido.
Essa visão, desta forma, traz para dentro do ser humano a total e ir-
restrita responsabilidade de sua personalidade. Essa personalidade apenas
existe a partir das ações reais daquele indivíduo que foi lançado ao mun-
do como uma folha em branco a ser construída continuamente. Não há
qualquer ingerência direta nessa personalidade, pois seu exercício seria
autônomo e livre. Desta forma, o conteúdo do direito da personalidade
abarcaria apenas o direito de poder construir sua identidade de forma li-
vre, limitado apenas pela existência do terceiro, o que torna esse direito
da personalidade um dever de abstenção em sua essência, e de intervenção
em sua exceção.
A partir dessas ideias, pode-se afirmar que o direito da personalidade
seria marcado pela característica da pluralidade como singularidade.
Hannah Arendt, em seu livro “A condição humana”, sintetiza mui-
to bem essa ideia quando diz que “a pluralidade é a condição da ação
humana, porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal
que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá”.60
A partir daí, podemos afirmar que todo ser humano é único, mas a sua
singularidade somente se constrói através da teia de relações entre seres
humanos iguais, alertando-se para a ideia de que iguais são aqueles que
possuem a liberdade de manifestação independente de todas as suas dife-
renças inerentes. A igualdade se refere, apenas, ao acesso aos instrumentos
de manifestação e, nunca, aos resultados da condição humana.
Condição humana, segundo Hannah Arendt, não se confunde com a
ideia de natureza humana. De acordo com a filósofa, “os homens são seres

59 SARTRE, 1987, p. 5 e 6.
60 ARENDT, 2016, p.10.

387
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condicionados, porque tudo aquilo com que eles entram contato torna-se
imediatamente uma condição da sua existência”.61
O Brasil tem exemplo dessa linha filosófica quando em sua Consti-
tuição de 1988, no artigo 5º, II, diz que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa


senão em virtude de lei

Essa ideia de abstenção geral no exercício do direito da personalidade


é, sem dúvida, a efetivação dos pensamentos apresentados até aqui. As
ideias de liberdade e responsabilidade são concretizações do direito de
personalidade.
Liberdade, segundo Alexy (2006) é a liberdade fática, ou seja, aquela
que só se apresenta em face da rede de convívios sociais, com status posi-
tivus libertatis (liberdade como obrigação de entrega de prestações estatais
individuais para a garantia da liberdade e das suas condições essenciais).62
O homem, então, somente exerce a liberdade fática quando há campo
social propício para ele ser condicionado pelas experiências singulares que
experimenta e agir para a construção de sua identidade e para o exercício
do direito de personalidade, garantia individual fundamental.
Aliás, Sartre assevera que:

Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que


o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se
criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi
lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz.63

61 ARENDT, 2016, p. 11.


62 BARRETO, 2006, p. 244.
63 SARTRE, 1987, p. 9.

388
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Essa liberdade, contudo, não vem separada da ideia de responsabilida-


de, conforme asseguram os diplomas jurídicos, incluindo o nosso Código
Civil de 2002 que, em seu artigo 12, diz que: “Art. 12. Pode-se exigir que
cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e
danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.
Essa previsão veio para formalizar a liberdade do ser humano, liber-
dade essa limitada apenas pela existência da liberdade de terceiros. Em
outras palavras, essa previsão legal formaliza o instituto da autodetermi-
nação limitada por direito de autodeterminação de terceiros, prevendo
instrumentos de proteção e reparação como formas de manter a harmonia
social.

2. A LIVRE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE


COMO EXPRESSÃO GENUÍNA DO DIREITO DA
PERSONALIDADE EM TEMPOS DE PÓS-PANDEMIA

Uma vez entendida a importância do direito de personalidade como


forma de existência, faz-se necessário contextualizá-la na História que
queremos analisar.
O exercício do direito de personalidade comporta, como visto, o di-
reito de construção de identidade, através da liberdade e da responsabili-
dade. Condenados à liberdade, construímos a nossa história no mundo
através das experimentações que nos condicionam durante a nossa exis-
tência.
Esse protagonismo é um convite constante para que o indivíduo de-
senhe a sua história e a compartilhe com a sociedade. Cada existência
possui sua singularidade, tornando o mundo um local plural.
Esse entendimento guiou, primordialmente, a sociedade até o mo-
mento da Revolução Industrial. Até então, a singularidade era uma ma-
neira do indivíduo se perpetuar no mundo mesmo quando se retirasse
fisicamente. Suas ideias e suas vivências ficavam aqui e refletiam, mesmo
que indiretamente, na vida daqueles com quem ele dividiu a sua existência
ou que tiveram acesso aos pensamentos e objetos deixados por ele.
Contudo, essa singularidade que é sinônimo de pluralidade também
acabou por gerar uma falta de controle estatal, pois apenas o outro seria

389
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

capaz de limitar o exercício pleno e irrestrito da existência daquele indi-


víduo.
Uma sociedade que se pretende ter como base a economia e geração
de lucro não possui o controle necessário quando deixa que cada indiví-
duo exerça essa liberdade tão autonomamente.
Foi então, que com a Revolução Industrial, o modelo de produção
em massa não se limitou aos produtos, mas acabou por invadindo, através
das ideias, a forma de construção de existência humana.
Como Guy Debord afirma em seu livro “A sociedade do espetácu-
lo”: “É o momento histórico que nos contém”.64 Guy nos alerta, com essa
frase, para a inversão de parâmetros perante a construção da existência hu-
mana na sociedade a partir desse momento histórico. Ele nos alerta para o
início da passividade na narrativa individual. O ser humano deveria conter
a história, e não, ser contido. Ele deveria estar criando narrativas e não,
recebendo narrativas prontas a serem apenas performadas.
Desta forma, a singularidade humana encontrou-se em perigo de ex-
tinção pela sua não funcionalidade nesse modelo industrial que nos leva
a acreditar que a pluralidade não deve ser assegurada, pois sai do que é
desenhado pela linha de produção social. Toda relação humana que não
pode ser comercializada, consumida e extinta com sucesso passa a não ser
desejada. Como bem observado pela Hannah Arendt:

Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus mem-


bros certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas
regras, todas elas tendentes a “normalizar” os seus membros, a fa-
zê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha
extraordinária.65

Em outro trecho, ela fala que “é o mesmo conformismo, a suposição


de que os homens se comportam ao invés de agir em relação aos demais,
que está na base da moderna ciência da economia”.66 Por fim, ela alerta
que “o caráter monolítico de todo tipo de sociedade, o seu conformismo,

64 DEBORD, 2005, p. 11.


65 ARENDT, 2016, p. 50.
66 ARENDT, 2016, p. 51.

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que só admite um único interesse e uma única opinião, tem suas raízes
basicamente na unicidade da espécie humana”.67 Essa unicidade seria um
ser humano formado pela mesma condição humana, reproduzindo afetos
e desejos já experimentados e devidamente normatizados como certos e
corretos.
O desejo desse novo modelo social não comporta mais a singulari-
dade na pluralidade, pois ela não pode ser comercializada, conformada,
normatizada e controlada.
Tornar a existência humana em fonte econômica é a nova visão pós-
-Revolução Industrial, e exige, desta forma, uma obediência voluntária
que só pode ser conseguida através de uma prisão invisível, através de uma
sociedade panóptica, segundo Foucault, que seria erguida sob três aspec-
tos: vigilância, controle e correção.

O Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual


havia um pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em
pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exte-
rior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia segundo o objetivo
da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário
trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando
sua loucura, etc. Na torre central havia um vigilante. Como cada
cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar
do vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nela nenhum
ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o indivíduo
estava exposto ao olhar do vigilante que observava através de vene-
zianas, de postigos semi-cerrados de modo a poder ver tudo sem
que ninguém ao contrário pudesse vê-lo. Para Betham esta peque-
na e maravilhosa astúcia arquitetônica podia ser utilizada por uma
série de instituições. O Panopticon é a utopia de uma sociedade
que atualmente conhecemos – utopia que efetivamente se realizou.
Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panop-
tismo. Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo.68

67 ARENDT, 2016, p. 56.


68 FOUCAULT, 2002, p. 87.

391
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Essa rede institucional de sequestro, que é a visão panóptica de Fou-


cault, alicerçada nos pilares da vigilância, controle e correção, representa
bem o objetivo comercial da existência humana, e traz com ela, por sua
vez, a excessiva normatização e o reforço dos discursos hegemônicos. Não
há maneira mais eficiente de se controlar voluntariamente a existência de
alguém do que fazer essa pessoa reproduzir premissas inquestionáveis e
pensamentos que parecem vir do raciocínio livre, mas que, na verdade,
reflete um senso comum acrítico que nunca quis refletir verdadeiramente
a questão.
Como bem observa Habermas:

Quando esse discurso hegemônico opera, as partes envolvidas


na deliberação podem concordar sobre as premissas, aceitar uma
teoria sobre sua situação e apresentar as razões para propostas que
os outros aceitam, mas, mesmo assim, as premissas e as condições
dessa visão mascaram a reprodução do poder e da injustiça.69

O lucro não permite que se perca tempo em reflexões. Tempo sem


produção em massa é sinônimo de perda. Refletir é inimigo da urgência.
E onde não há reflexão, resta apenas o mecanicismo que retira a humani-
dade única que reside em cada um.
Esse círculo vicioso se retroalimenta e o ser humano acaba por viver
uma vida baseada em normatividades que o conformam à realidade dese-
jada por essa sociedade que não o representa, e acaba por se esforçar por
fazer com que isso dê sentido na sua narrativa existencial.
A autodeterminação é relegada a terceiros sob a promessa de se evi-
tar aquilo que faz parte da vida: sentir todos os afetos e ter a sua natureza
condicionada por essas experimentações. Logo, capturar os afetos e con-
trola-los é uma maneira de deixar de sentir todas as vicissitudes da vida.
A partir do entendimento de que a modernidade pressupõe uma so-
ciedade de massa que é composta por consumidores, a vida humana que
é justamente a interação entre a pluralidade fica relegada a uma sociedade
de descartáveis, ou seja, as ferramentas, os objetos de arte e até os seres hu-
manos são produtos perecíveis, e não, modos de manifestação única que
permanecem no mundo, através de sua singularidade. E a condição hu-

69 HABERMAS, 1996.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

mana fica ligada a uma linha de produção de massa de pensamentos, atos


e obras. Não há espaço para ações espontâneas ou a façanha extraordinária
que existe na vivência singular.
E mesmo com normas jurídicas que falem em autonomia, liberdade
e responsabilidade no exercício do direito da personalidade, muitas outras
normas sociais surgem, sob a alegação de melhor esclarecer esse corolário,
para limitar, redesenhar e recolocar na psique humana o que seria o real
exercício desse direito. A construção de identidade passa a ter contornos
rígidos e definidos, partindo de premissas irrefutáveis, constatações vicia-
das e autonomia relegada. Assim, mesmo em uma sociedade que tenha o
direito fundamental da personalidade positivado de forma abstrata, não
é difícil encontrar normas que detalhem como exercer esse direito e de
como construir a identidade pessoal. Há um excesso de normatividade
desse direito, que sob a alegação de elucidação, conforma, limita e dese-
nha o esperado, retirando os afetos do âmbito de existência do indivíduo
e condicionando a sua natureza ao normatizado e não, ao experimentado.
Imersos nessa realidade social, em 2020 o mundo parou por conta da
pandemia do coronavírus que impôs a todos a quarentena.
Essa medida de isolamento social parou todo esse processo automáti-
co de produção em série de modo de construção de identidade. De uma
hora para outra, tudo o que era considerado normal, esperado e até deseja-
do pelos indivíduos dessa sociedade de massa, ficou em suspenso. De uma
hora para outra, os indivíduos passaram a ter tempo para reflexão, pois não
estavam mais excessivamente ocupados reproduzindo socialmente ideias
normatizadas.
Houve uma parada obrigatória nesse processo desenfreado que aca-
bou por gerar as respostas sociais a esse novo momento que ainda não
estava previsto ou normatizado. As pessoas não tinham um manual se-
guro para seguir nesse momento único de existência, então, a saída seria
a experimentação desse afeto ou a negação da gravidade da doença com a
esperança de que esse isolamento duraria pouco tempo e tudo retornaria
ao normal já conhecido e normatizado.
Contudo, como a realidade demonstra, o enfrentamento de uma
pandemia não é uma corrida de 100 metros, mas uma maratona que exige
resiliência por parte de todos, como uma oportunidade de volta à singu-
laridade existencial.

393
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Mas engana-se quem acredita que bastava o pensamento de que é


preciso fazer diferente do que se tem feito. Uma sensação de poder reco-
meçar a vida, pós-pandemia, nunca pareceu tanto ser a solução de toda
essa questão existencial. Bastava apenas mudar o comportamento adotado
até a presente data e tudo estaria resolvido.
A Psicologia, contudo, mostra que a solução para as questões
existenciais, como a criação de identidade, é um processo mais lon-
go, mais incerto e mais doloroso do que o indivíduo deseja ou acre-
dita suportar. Soluções fáceis e rápidas baseadas no prazer aparecem
sempre como a solução para esse ser que quer se autônomo. Essa vi-
são rasa, não refletida, não traz à superfície que a solução para esse
indivíduo passa muito mais pela consciência do seu desamparo e da
limitação do controle das questões da vida, percepções essas que não
geram prazer ou contentamento.
Em um impulso comum de tentar simplificar questões complexas,
como ensinado por essa linha de produção em massa que se tornou a so-
ciedade que vivemos, o indivíduo tende a colocar as suas questões inter-
nas como objetos fora de si que ele pode descartar para poder seguir na
construção autônoma de sua identidade, nas bases anteriores, repetindo
discursos hegemônicos em sua base, mas com roupagem de originalidade
que, na verdade, não existe.
Freud, brilhantemente, trata do assunto, dizendo que

É assim que ao Eu se contrapõe inicialmente um “objeto”, como


algo que se acha “fora” e somente através de uma ação particu-
lar é obrigado a aparecer. Um outro incentivo para que o Eu se
desprenda da massa de sensações, para que reconheça um “fora”,
um mundo exterior, é dado pelas frequentes, variadas, inevitá-
veis sensações de dor e desprazer que, em sua ilimitada vigência,
o princípio do prazer busca eliminar e evitar. Surge a tendência
a isolar do Eu tudo o que pode se tornar fonte de tal desprazer,
a jogar isso para fora, formando um puro Eu-de-prazer, ao qual
se opõe um desconhecido, ameaçador “fora”. As fronteiras desse
primitivo Eu-de-prazer não podem escapar à retificação mediante
a experiência. Algumas coisas a que não se gostaria de renunciar,
por darem prazer, não são Eu, são objeto, e alguns tormentos que

394
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

se pretende expulsar revelam-se como inseparáveis do Eu, de pro-


cedência interna.70

Ele segue sua lição concluindo que

O fato de o Eu, na defesa contra determinadas excitações despra-


zerosas vindas do seu interior, utilizar os mesmos métodos de que
se vale contra o desprazer vindo de fora, torna-se o ponto de parti-
da de significativos distúrbios patológicos.71

O que Freud tenta alertar é que “podemos tão só nos ater ao fato
de que a conservação do passado na vida psíquica é antes a regra do que a
surpreendente exceção”.72
A partir desse entendimento, fica claro que o recomeçar na vida de
cada indivíduo leva toda a carga vivida e que, apesar de parecer simples a
solução de viver plenamente a construção de sua identidade, resgatando
a filosofia pré-Revolução Industrial, o desprazer do desamparo e da falta
de controle pode levar a esse indivíduo a uma nova normatização da sua
existência que repete o mesmo, pois esse lugar é conhecido e o tira do
desamparo e descontrole que é a existência humana de experimentação.
Como Freud mesmo conclui:

esse “eterno retorno do mesmo” não nos surpreende muito, quan-


do se trata de um comportamento ativo da pessoa em questão e nós
descobrimos o traço de caráter permanente de seu ser, que tem de
manifestar-se na repetição das mesmas vivências.73

Sendo assim, enquanto o indivíduo não abraça seu desamparo, sua


efemeridade e sua limitação do controle, toda oportunidade de se sentir
seguro e amparado será uma fuga para o prazer momentâneo, que tra-
rá uma falsa sensação de segurança, apresentando-se na forma de nor-
matização de sua existência, que não o permite uma construção livre de

70 FREUD, 2010, p. 18 e 19.


71 FREUD, 2010, p. 19.
72 FREUD, 2010, p. 24.
73 FREUD, 1920, p. 134.

395
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

identidade e de exercício do direito da personalidade. Se toda sua angús-


tia for personalizada em um objeto externo, a sua condição humana será
pauperizada e toda façanha extraordinária de existir será relegada a uma
nova linha de produção em massa que promete ter todas soluções para a
existência humana.
Uma pandemia que poderia ser uma oportunidade para mudar de
paradigma acaba sendo sufocada por uma nova ideologia de massa que
promete tirar do mundo tudo o que torna o indivíduo infeliz, oferecendo
uma felicidade modelada (normatizada), conformada e homogeneamente
criada.

CONCLUSÕES

O ser humano é um ser social.


Ao longo da História, a filosofia tem sido um instrumento de reflexão
sobre a construção identitária e o pleno exercício do direito fundamental
individual da personalidade.
A experimentação através da singularidade na pluralidade mostrou-se
como uma forma do indivíduo não apenas ter liberdade na construção da
sua identidade, mas também como uma forma de permanecer no mundo
depois da sua extinção física. Tornar a existência humana uma narrativa
permanente somente se demonstrou possível através do livre afeto. Sem o
exercício da liberdade fática, a existência humana se torna uma repetição
de afetos já vividos e a condição humana fica limitada a reprodução de
comportamentos e pensamentos normatizados.
Contudo, a segurança que se é prometida na área da existência, atra-
vés da excessiva normatividade em relação ao direito fundamental da per-
sonalidade é apenas produto da reprodução do pensamento acrítico de
que a vida pode ser uma linha de produção já conhecida.
Ao não olhar para o seu desamparo e controle limitado sobre a exis-
tência, o ser humano torna a sua jornada mais um produto a ser consumi-
do e extinto, não contribuindo em nada para a pluralidade. A sua singula-
ridade é trocada por uma adequação ao modelo apresentado como certo e
seguro, sob o manto de que o Estado sabe o que é necessário para se viver
bem. Como se a existência comportasse tal adjetivação.

396
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Há muito, a arte, por exemplo, na contramão dessa linha de produção


de pensamento e ação, tem mostrado que a existência humana é uma exis-
tência de pura experimentação, onde o ser humano pode comportar-se
como um rizoma. Prova disso, é a obra, até hoje reverenciada, do artista
Hélio Oiticica, chamada Parangolé. Segundo seu autor, essa obra só re-
vela sua estrutura quando o público a movimenta, tirando-a da inércia e
conformismo.
Com a aparição do coronavírus em 2020, o mundo se viu diante de
uma brusca parada nesse processo de reprodução em massa do pensamen-
to e da ação. E essa interrupção criou uma oportunidade de reflexão sobre
o que estamos fazendo do nosso direito fundamental da personalidade e
como estamos construindo nossa identidade.
Parece que há um despertar nesse processo, mas engana-se quem
acredita que a resposta a essa questão existencial é simples. Negar a doen-
ça, não respeitando a quarentena; ou respeitando a quarentena para poder
voltar a vida conhecida o mais rápido possível; ou até mesmo agindo de
forma a querer mudar tudo que incomoda a pessoa até aquele momento
para poder ter uma vida simples e gratificante, são a mesma resposta rasa
para o problema existencial. Parecem ser respostas diferentes, mas apenas
são materialização de pensamentos automatizados, uma vez que nenhuma
delas adentra o cerne da questão: o desamparo e a falta de controle sobre
questões da vida.
Todas essas respostas apenas tentam acalmar o indivíduo e restabele-
cer uma ordem segura que nunca existiu.
Como Freud bem alerta, há nessas opções uma externalização e ma-
terialização da questão em um objeto que pode ser repelido. Essas opções
nunca tratam essas questões como questões internas que devem ser anali-
sadas, criticadas e assimiladas.
Sendo assim, toda vez que o indivíduo tratar sua existência de forma
rasa, onde a solução encontra-se apenas no prazer, haverá o falso exercício
da liberdade e da responsabilidade que formam a construção de identidade
e possibilita o pleno exercício do direito fundamental da personalidade.
Logo, mesmo com a positivação desse direito fundamental, o Estado
de Direito ainda nos faz acreditar que liberdade e responsabilidade são si-
nônimos de normatização excessiva, condicionando a existência humana
a um único modelo. Perceber que a positivação de direitos fundamentais

397
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

individuais não é meio de limitação ou modelamento da existência hu-


mana, pois extingue a pluralidade e gera a normalização dos indivíduos,
fazendo-os comportarem-se conforme descrito e esperado, excluindo a
ação espontânea ou a façanha extraordinária (segundo Hannah) é o único
meio de efetivação real do direito da personalidade.
A condição humana, que torna a vida singular e plural, é produto des-
sas relações sociais singulares, o que somente se alcança através da liberda-
de fática e da responsabilidade. Ter consciência de que o pensamento, no
primeiro momento, traz a carga do que foi aprendido e que o retorno ao
mesmo é uma premissa de segurança, pode ajudar no trajeto de mudança
real de paradigma e de interrupção de reprodução acrítica e não inovadora
da existência humana. Olhar apenas para o prazer elimina a diversidade
que se pode experimentar na vivência humana. Retornar ao mesmo é
voltar ao que se conhece e abrir mão dos afetos não sentidos e das questões
não pensadas: desamparo e falta de controle existencial.
O direito fundamental individual da personalidade deve, então, ser
veículo garantidor da singularidade na pluralidade e não, instrumentos de
conformação e repetibilidade existencial, tendo aplicabilidade efetiva na
nossa sociedade, principalmente em momento pós-pandemia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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rense, 2016.

BARRETO, Vicente de Paulo Barretto (Coord.). Dicionário de Filo-


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Companhia das Letras, 2010.

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MIT Press, 1996.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. São


Paulo: Nova Cultural, 1987.

399
OS LIMITES JURÍDICOS DA
EXPOSIÇÃO DA IMAGEM DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES NAS
REDES SOCIAIS
Daniele Vedovatto Gomes da Silva Babaresco74
Vinícius Almada Mozetic75

INTRODUÇÃO

O direito à imagem nasceu após difíceis períodos enfrentados no


mundo e também em nosso país, quando sentiu-se a necessidade de pro-
teção a uma categoria básica de direitos à pessoa humana, dentre os quais
o direito à própria imagem. Embora os avanços tecnológicos tenham vá-
rios pontos positivos, por outro lado vêm colocando em risco os direitos
da personalidade, dentre eles a privacidade, a intimidade e a imagem. As
crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento, também acabam
inseridas nesse contexto pelos próprios pais, que disponibilizam nas pla-
taformas digitais a imagem de seus filhos. Por mais que esse ato seja po-
sitivo e cheio de afeto - afinal, que pai ou mãe não se orgulha de fatos ou

74 Graduada em Direito pela UNOESC (2011) e especialista em Direito Previdenciário pela


Universidade Anhanguera - Uniderp (2014). Advogada e Docente. Mestranda em Direito
pela UNOESC. Bolsista do PROGRAMA UNIEDU/FUMDES PÓS-GRADUAÇÃO.
75 Advogado. Pós-Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS-RS. Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNI-
SINOS-RS. Professor do Programa de Pós-graduação - Mestrado e Doutorado em Direito da
UNOESC - Universidade do Oeste de Santa Catarina.

400
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

conquistas relacionadas aos filhos? -, é preciso ponderar essa exposição e


filtrar o que está sendo publicado na rede, a fim de que, atual ou futura-
mente, este menor não seja motivo de ridicularização.
A pesquisa tem por problemática o conflito entre os limites jurídicos
do poder familiar para a liberdade de exposição, pelos pais, da imagem de
crianças e adolescentes nas redes sociais. Assim, o objetivo do presente ar-
tigo é perquirir os limites do poder familiar na publicação de imagem dos
filhos na internet, diante dos comandos normativos protetivos.
O método de abordagem utilizado é o dedutivo, ao passo que a aná-
lise da pesquisa será qualitativa e teórica, com revisão da literatura e da
legislação. Inicialmente, far-se-á uma análise a respeito do direito à ima-
gem e a tutela conferida pelo ordenamento jurídico brasileiro a este direito
da personalidade. Após, será tratado acerca da exposição da imagem de
crianças e adolescentes na internet, cuja prática é comum entre pais e mães
nas redes sociais. Por fim, analisar-se-ão os limites jurídicos do poder fa-
miliar para a liberdade de exposição, pelos pais, da imagem de crianças
e adolescentes nas redes sociais. Afinal, toda liberdade traz consigo uma
responsabilidade, que deve ser observada pelos pais quando publicam ima-
gens de seus filhos na internet.
Assim, justifica-se a importância do presente artigo, pois reflete em
uma prática cotidiana em muitas famílias, que é a utilização das redes so-
ciais e o compartilhamento da imagem, inclusive de crianças, cuja reper-
cussão deve ser ponderada pelos adultos responsáveis.

1. O DIREITO À IMAGEM

O mundo como um todo sentiu a necessidade de proteção a uma


categoria básica de direitos reconhecidos à pessoa humana após as atroci-
dades praticadas pelo nazismo contra a individualidade da pessoa humana
e contra a humanidade em geral. Assim, promulgou-se, após a Segunda
Guerra Mundial, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem. (FARIAS; ROSENVALD, 2017).
Em nosso país, o direito à própria imagem, que integra essa categoria
básica de direitos, surge em um contexto de mudança ideológica do Esta-
do Brasileiro, que deixava um cenário de supressão de direitos e liberda-
des públicas, que perdurou por 20 anos, para entrar em uma democracia

401
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

representativa que tem como um dos seus pilares estruturais os direitos e


garantias fundamentais. (CRUZ, 2017).
A Constituinte de 1988 contou com a participação de milhares de
sindicatos, entidades e associações. Nas audiências públicas, foram ouvi-
dos especialistas em determinadas matérias, como ocorreu com o jurista
Cândido Mendes em 24 de abril de 1987, na 8ª reunião da Comissão de
Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (subcomis-
são IC de Direitos e Garantias Individuais), quando discorreu sobre os
“Novos Direitos Humanos”. (CRUZ, 2017).
O direito à própria imagem foi abordado pelo jurista quando este te-
matizou o avanço tecnológico, dizendo que o problema fundamental trans-
cende a defesa do corpo. (CRUZ, 2017). “Hoje há o rapto da alma”, disse o
professor e relator do comitê da comissão que tratou dos direitos fundamen-
tais, Cândido Mendes, que defendeu a positivação dos “novos direitos”. Ele
propôs que a Carta Magna garanta ao cidadão o acesso aos registros infor-
máticos e o direito aos dados, em respeito à cidadania. Além disso, Cândido
Mendes afirmou que garantir a preservação da imagem do cidadão “é dar
a ele as condições para preservar o seu perfil, a sua personalidade, e agir em
sua defesa, quando a distorcerem, seja por motivos econômicos, político-i-
deológicos ou por ofensa moral”. (CONTREIRAS, 1986).
O direito à própria imagem é “a faculdade de aproveitar (positiva) ou
de excluir (negativa) a representação gráfica das expressões ou evocações
pessoais visíveis do aspecto físico externo que singularizam e tornam re-
conhecível a figura da pessoa humana” (CUNHA E CRUZ, 2017, p. 14).
A imagem integra os chamados direitos da personalidade, assim en-
tendidos como direitos subjetivos relacionados à própria condição de pes-
soa humana, em seus aspectos físico, psíquico, intelectual etc. Trata-se de
um conjunto de prerrogativas jurídicas reconhecidas à pessoa, referentes
aos seus diferentes aspectos em si mesma e às suas projeções e aos seus
prolongamentos. (FARIAS; ROSENVALD, 2017).
Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988, cujo texto-base foi
influenciado pelas Constituições de Portugal e Espanha (CRUZ, 2017),
consagrou os direitos da personalidade, dentre eles o direito à imagem, no
rol de direitos fundamentais, ao lado do direito à intimidade, à vida priva-
da e à honra, garantindo-se o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação. (BRASIL, 1988).

402
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

O Código Civil de 2002 dedicou um capítulo aos direitos da perso-


nalidade (artigos 11 a 21) e, especificamente quanto ao direito de imagem,
determinou que a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a
publicação, exposição ou utilização da imagem da pessoa não podem ferir
a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, salvo se autorizadas ou se ne-
cessárias à administração da justiça. Outrossim, também não podem ser
destinados a fins comerciais sem autorização. (BRASIL, 2002).
O direito à imagem pode ser estudado sob dois aspectos. O primeiro
diz respeito à imagem subjetiva, entendida como a projeção da pessoa no
contexto social, implicando em atributos como a boa fama, o crédito, a
respeitabilidade e tudo o que tiver relação com a forma como a pessoa
é reconhecida em seu meio social. O segundo é a imagem objetiva ou
imagem-retrato, que diz respeito ao controle da pessoa sobre a sua figura,
de modo que reproduções de sua imagem fiquem restritas à sua vontade.
(NETO; JESUS; MELO, 2017).
Ao tratar do direito à imagem, em seu art. 20, o Código Civil faz
menção à imagem-retrato. Contudo, o texto constitucional engloba, in-
distintamente, tanto a imagem subjetiva quanto a objetiva. (NETO; JE-
SUS; MELO, 2017).
Sobre a abordagem do direito à imagem pela codificação civil, Bel-
trão (2005, p. 123 apud CUNHA E CRUZ, 2017, p. 15) complementa:

A imagem que se protege como direito da personalidade é aquela


que pode ser reproduzida através de representações plásticas, com-
preendendo o direito que tem a pessoa de proibir a divulgação de
seu retrato. A imagem é a figura, representação, semelhança ou
aparência de uma pessoa ou coisa. Para o direito da personalida-
de, a imagem é entendida como a representação gráfica da figura
humana, mediante procedimento de reprodução mecânica ou téc-
nica. Juridicamente, é facultada exclusivamente à pessoa do inte-
ressado a difusão ou publicação de sua própria imagem e, com isso,
também o seu direito de evitar a sua reprodução, por se tratar de
direito da personalidade. Assim, a reprodução da imagem da pes-
soa não pode ser publicada ou exposta sem a devida autorização da
pessoa retratada. (BELTRÃO, 2005, p. 123).

403
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Para Cunha e Cruz (2017), o conceito constitucional do enunciado à


própria imagem não é bi ou tripartite, mas sim, único. Ao analisar as três
citações do direito à imagem no texto constitucional, o autor afirma que
no inciso X do art. 5º a intenção do constituinte foi inseri-la no contexto
da inviolabilidade pessoal, junto com os demais direitos da personalidade
ali mencionados (intimidade, vida privada, honra e imagem). Já no inciso
XXVIII, alínea “a”, do art. 5º a proteção da imagem ocorre no contexto
do direito de arena, de quem contribuiu em uma obra coletiva ou espetá-
culo . Por fim, o disposto no inciso V do art. 5º pretende garantir o direito
de resposta e a indenização pela violação ao direito à própria imagem, o
que se insere no próprio dano moral.
No que diz respeito à disposição da própria imagem, quando se tra-
ta de pessoa plenamente capaz para os atos da vida civil, nos termos do
art. 5º, do Código Civil, pode haver a autolimitação deste direito a partir
dos “contratos de licenciamento do uso de imagem celebrados por artistas
e atletas, além de situações mais extremas, como a dos contratos cele-
brados pelos participantes de reality shows como o Big Brother Brasil”.
(SCHREIBER, 2018 apud AFFONSO, 2019).
Quanto à utilização da imagem alheia para fins comerciais, necessária
a autorização do titular. Nos demais casos, de cunho cultural ou jornalís-
tico, por exemplo, a publicação não autorizada deve observar os preceitos
constitucionais e legais, no sentido de não atingir a honra, a boa fama ou
a respeitabilidade da pessoa. (BRASIL, 2002).
A questão da utilização da imagem alheia requer ainda mais cuidado
quando se trata de imagem de crianças, que possuem a condição peculiar
de pessoas em desenvolvimento (BRASIL, 1990). Soma-se a isso o fato
de serem civilmente incapazes e, portanto, impossibilitadas de dar o seu
consentimento.
A proteção legal das crianças e os limites para a utilização de sua ima-
gem na internet serão os temas abordados nos próximos tópicos.

2. A PUBLICAÇÃO DA IMAGEM DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES NA INTERNET

Com a popularização das mídias sociais, tornou-se comum as pes-


soas compartilharem na internet o seu cotidiano, as suas preferências e as

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coisas que amam, incluindo a imagem de seus filhos menores. Embora


essa prática seja mais comum entre os influenciadores digitais, ou digital
influencers, pessoas que não levam as mídias sociais como profissão tam-
bém têm o hábito de compartilhar fotos ou vídeos de seus filhos. Afinal,
qual pai ou mãe não sente orgulho com o nascimento do filho, com as
inúmeras descobertas de uma criança ou mesmo com coisas simples do
dia a dia? Nesse contexto, muitos deles acabam por compartilhar esses
momentos com seus amigos ou seguidores, publicando imagens dos filhos
nas redes sociais.
Antes de abordar o uso da imagem de crianças e adolescentes pelos
pais nas redes sociais, importante esclarecer que atualmente o filho não
é mais visto como um objeto de direito, mas sim, um sujeito de direito.
Consequentemente, houve uma modificação do entendimento a respeito
do poder familiar, que é um poder-função ou direito-dever, um encargo
imposto legalmente aos pais a ser exercido no interesse do filho. (DIAS,
2008).
O poder familiar pode ser conceituado como o poder exercido pelos
pais em relação aos filhos, dentro da ideia de regime de colaboração fami-
liar, de família democrática e de relações baseadas, sobretudo, no afeto.
(TARTUCE, 2017).
O poder familiar tem por finalidade alcançar o pleno desenvolvimen-
to e a formação integral dos filhos, seja físico, mental, moral, espiritual ou
socialmente, e compreende o conjunto de faculdades encomendadas aos
pais, como instituição protetora da menoridade. Pode-se dizer que a au-
toridade parental atua como instrumentalizador de direitos fundamentais
dos filhos, a fim de conduzi-los à autonomia responsável. (DIAS, 2008).
Nos termos do Código Civil vigente, os filhos, enquanto menores,
estão sujeitos ao poder familiar, que é exercido pelos pais. Na falta destes,
ficarão os filhos sob tutela, ao passo que o filho maior, mas incapaz, ficará
sob curatela, hipótese em que o pai ou a mãe poderá ser nomeado curador.
(BRASIL, 2002).
O hábito tão atual dos pais de publicar fotos, vídeos e relatos sobre a
vida dos filhos na internet recebeu o termo sharenting, uma combinação,
em inglês, das palavras share, que significa “compartilhar”, e parenting,
traduzido como “parentalidade”. (IDOETA, 2020). A palavra já foi de-
finida pelo Dicionário Collins como “the habitual use of social media to

405
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

share news, images, etc of one’s children” ou, em uma tradução livre, “o
uso habitual das mídias sociais para compartilhar notícias, imagens etc.
dos filhos”. (2020).
Ocorre que muitos adultos não filtram aquilo que será publicado, o
que pode gerar consequências não desejadas à imagem da criança, quando
a publicação se torna um “meme”, por exemplo. Em geral, os “memes”
são engraçados e geram grande interesse social, mas podem gerar cons-
trangimento à pessoa cuja imagem é utilizada, notadamente quando a pu-
blicação ganha maior notoriedade, na hipótese de o conteúdo se tornar
“viral”, por exemplo.
O termo “meme” foi criado pelo biólogo britânico Richard Dawkins,
um dos principais cientistas que estuda a evolução das espécies. O termo
foi utilizado em seu best-seller “O gene egoísta”, de 1976, quando nem
sequer existia internet. A referida obra popularizou a ideia de que a seleção
natural ocorre a partir dos genes, que buscam a sobrevivência por meio de
corpos capazes de sobreviver e de se reproduzir, para replicar os genes. A
ideia do biólogo era terminar o livro com a proposta de que, assim como
os genes, a cultura também se espalha. (2015). “O meme é o equivalente
cultural do gene, a unidade básica de transmissão cultural, que se dá por
meio da imitação”. (2015).
“Viral” é um termo geralmente utilizado para vídeos que alcançam
grande popularidade por adquirirem um alto poder de circulação na in-
ternet. (2020).
A imprevisibilidade da internet, ou seja, a aleatoriedade com que as
informações ganham importância e notoriedade, é um fator preocupan-
te, porque traz uma falsa sensação de segurança ao usuário da rede. Nes-
se contexto, não há como saber quando um conteúdo irá se tornar um
“meme” ou um “viral”. (MARQUES, 2015).
Nesse contexto, muitos pais não medem o alcance da internet e as
implicações que uma simples publicação pode gerar, tanto em relação a
adultos quanto em relação às crianças e adolescentes. Ocorre que estes são
“pessoas humanas em processo de desenvolvimento” (BRASIL, 1990) e
não têm o discernimento necessário para entender o que pode acontecer
no mundo on-line, positiva ou negativamente.
A psicóloga Genevieve von Lob, autora do livro “Happy Parent, Ha-
ppy Child: 10 Steps to Stress-free Family Life”, diz ser compreensível

406
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

que os pais queiram compartilhar o máximo possível sobre os filhos. Po-


rém, ao compartilhar uma infinidade de imagens, os pais criam uma es-
pécie de “tatuagem digital”, que pode acompanhar os filhos para sempre.
(WONG, 2019). A psicóloga Lob complementa:

Tatuagem digital essa que, dependendo das configurações de pri-


vacidade de sua conta, autoridades universitárias, recrutadores de
empregos, potenciais namorados ou namoradas e todo mundo
poderá visualizar pelo resto da vida de nossos filhos. Será que os
recrutadores do emprego dos sonhos de Aiden precisam realmente
ver uma foto de Aiden bebê sentado no peniquinho? (WONG,
2019).

A internet é um arquivo permanente, no qual as pegadas digitais du-


ram para sempre. O que entra na internet, continua na internet, a exem-
plo da imagem virtual. O histórico virtual de cada pessoa pode afetar
perspectivas de emprego e carreira, pois muitos empregadores e diretores
de admissão em universidades visitam os perfis dos candidatos nas redes
sociais. (KILBEY, 2018).
Os pais que decidem compartilhar na internet a imagem de seus fi-
lhos, devem refletir se determinada publicação pode trazer consequências
negativas à imagem da criança ou adolescente, ou seja, se o seu filho ou
sua filha pode se tornar motivo de piada, desprezo ou humilhação, por
parte de pessoas próximas ou de pessoas desconhecidas.

3. NORMAS PROTETIVAS À IMAGEM DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES ON-LINE E OFF-LINE

Em se tratando de um trabalho sobre o direito fundamental à ima-


gem em relação a crianças e adolescentes, imprescindível a abordagem,
além das normas gerais mencionadas nos tópicos anteriores, do diploma
protetivo das crianças e adolescentes no ordenamento jurídico brasileiro:
o Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei n. 8.069, de
13 de julho de 1990.
Antes disso, porém, importante lembrar que em nível global, a Con-
venção sobre os Direitos da Criança, ratificado por 196 países, dentre

407
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

eles o Brasil (internalizado no Direito Brasileiro por meio do Decreto n.


99.710, de 21/11/1990), reconhece que a criança necessita de proteção e
cuidados especiais, diante de sua falta de maturidade física e mental. Nesse
sentido, determina, em seu art. 16, que a criança tem direito à proteção
da lei contra interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular,
sua família, seu domicílio ou sua correspondência, bem como atentados
ilegais a sua honra e a sua reputação. (UNICEF, 1990).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho
de 1990), protege, a partir de seu art. 15, o direito à liberdade, ao respei-
to e à dignidade. Especificamente quanto ao direito ao respeito, o ECA
determina que a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da
criança abrange a preservação da imagem, da identidade, da autonomia,
dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (BRASIL,
1990).
O Marco Civil da Internet, que trouxe pouquíssimas previsões sobre
a utilização da internet pelos menores, deixou aos pais a livre opção de
restringir o acesso a determinados conteúdos por seus filhos. Ademais,
determinou ao Poder Público a promoção da inclusão digital das crianças
e adolescentes. (MARQUES, 2015):

Art. 29. O usuário terá a opção de livre escolha na utilização de


programa de computador em seu terminal para exercício do con-
trole parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a
seus filhos menores, desde que respeitados os princípios desta Lei
e da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e
do Adolescente.

Parágrafo único. Cabe ao poder público, em conjunto com os pro-


vedores de conexão e de aplicações de internet e a sociedade ci-
vil, promover a educação e fornecer informações sobre o uso dos
programas de computador previstos no caput, bem como para a
definição de boas práticas para a inclusão digital de crianças e ado-
lescentes.

Há situações em que a imagem da criança é utilizada para fins co-


merciais na internet, a exemplo de quando os pais trabalham como in-
fluenciadores digitais, uma nova profissão que vem crescendo com a po-
pularização das plataformas digitais.

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Em tal hipótese, subsistem as normas sobre representação e assis-


tência dos pais, que em razão do exercício do poder familiar, devem re-
presentar os filhos nos atos da vida civil até os 16 (dezesseis) anos e suprir
o consentimento nos atos em que forem partes, inclusive naqueles que
envolvem terceiros interessados no uso da imagem da criança e do adoles-
cente. (JÚNIOR, 2006).
Ademais, há situações que necessitam de autorização judicial, como
a entrada da criança em estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e tele-
visão, e a sua participação em espetáculos públicos e certames de beleza,
nos termos do art. 149, do Estatuto da Criança e do Adolescente. (BRA-
SIL, 1990).
A partir da 2ª Grande Guerra Mundial, os direitos da personalidade
ganharam importância e houve relevantes modificações no poder dos pais
sobre os filhos, que até então era de autoridade absoluta, no que se refere à
formação pessoal, aos sentimentos e à vida por inteiro. (JÚNIOR, 2006).
Conforme os filhos crescem, a capacidade de escolha e decisão destes
quanto aos atos relativos aos direitos personalíssimos aumentam, fazendo
com que conquistem, pouco a pouco, a independência quanto à educação,
religião, vida amorosa, amizades, intimidade, imagem, etc. Esse exercício
gradual e progressivo dos direitos fundamentais pela criança e adolescente
é importante para o bom desenvolvimento da personalidade e para a sua
formação como cidadão. (JÚNIOR, 2006).
Por outro lado, em matéria de internet, redes sociais e publicação da
imagem, mesmo que a criança já tenha idade “suficiente” para autorizar
os pais a postarem fotos dela, “será que uma criança de 5 ou 6 anos real-
mente compreende as complexidades de como as coisas são compartilha-
das, comentadas e como viralizam online?” (WONG, 2019).
A participação dos pais, aqui, é cuidar e colaborar para que isso acon-
teça sem risco de danos aos filhos, sempre com vistas aos interesses da
criança e do adolescente. (JÚNIOR, 2006).
Os pais, na era digital, têm a responsabilidade de ensinar os filhos a
controlar a sua identidade virtual assim como o fazem na vida real, pois
as crianças e adolescentes não possuem maturidade emocional para lidar
com as consequências de circular ou enviar imagens inapropriadas. (KIL-
BEY, 2018).

409
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A aparição da criança em fotografias, filmes, peças teatrais ou outros


espetáculos públicos ou privados não é proibida pelas normas de proteção
da infância e da juventude, que apenas determinam como e quando a ima-
gem da criança pode ser difundida, cuidando-se para que não haja danos
aos seus direitos da personalidade. (JÚNIOR, 2006).
Não seria adequado simplesmente omitir a figura das crianças nos
meios de comunicação ou na publicidade, afinal, elas não são e não me-
recem ser tratadas como seres invisíveis. O importante é que isso se dê de
forma saudável, adequada e própria para a sua idade. (JÚNIOR, 2006).
A tutela do direito à imagem acontece tanto on quanto off-line, par-
tindo-se da Constituição Federal e do Código Civil. A publicação de uma
imagem na internet, como por exemplo no Instagram, Flickr ou Snapchat,
não significa que qualquer pessoa poderá utilizá-la a seu bel-prazer, pois
a imagem colocada na internet recebe tutela jurídica. (ZANINI, 2017).
Sabe-se que a internet é um ambiente livre onde qualquer cidadão
do mundo pode produzir conteúdo. Porém, deve atenção às regras quanto
aos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição Federal,
seja sobre comunicação social, seja sobre a proteção aos direitos da per-
sonalidade, as quais são plenamente aplicáveis ao meio on-line. Assim,
ao mesmo tempo em que a liberdade de expressão é garantida pelo texto
constitucional, também fica limitada em respeito à intimidade, vida pri-
vada, honra e imagem das pessoas. (MARQUES, 2015).
Nesse contexto, o usuário da rede mundial de computadores deve
ter em mente que cada liberdade traz, em contrapartida, uma responsabi-
lidade. Desse modo, o uso da internet deve respeitar os limites existentes,
sem abuso de direito ou prejuízos a outras pessoas. (MARQUES, 2015).
Nas palavras de Antonio F. Costella (2002, p. 47):

Toda liberdade na vida social tem uma contrapartida: a responsabi-


lidade. A liberdade de cada pessoa deve ser exercida, tanto quanto
possível, sem prejuízo para os outros membros da sociedade ou
para a própria sociedade, como um todo. Em outras palavras: as
liberdades acarretam consequências para quem as exercita. É isso
que a Constituição está demonstrando, nesses mesmos incisos, ao
proibir o anonimato, garantir o direito de resposta, admitir a inde-
nização por dano, ressalvar a intimidade.

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Nas hipóteses de uso da imagem da criança, seja pelos pais ou por


terceiros (com autorização dos pais), com finalidade comercial ou não, na
internet ou fora dela, o cuidado e a responsabilidade são potencializados,
diante da condição de vulnerabilidade da criança.
Ademais, no mundo virtual, o risco de atentado ao direito à imagem
também é potencializado, pois os danos são maiores, em uma velocidade
acumentada e de difícil contenção. (ZANINI, 2017).
Em matéria de direitos infanto-juvenis, há uma tríade de princípios
que são pilares da doutrina e da legislação. São eles: a prioridade abso-
luta (art. 227, Constituição Federal, e art. 4º, do Estatuto da Criação e
do Adolescente), a proteção integral (art. 1º do Estatuto da Criança e do
Adolescente) e, por fim, o princípio do melhor interesse da criança, es-
tabelecido pela já mencionada Convenção Internacional dos Direitos da
Criança de 1989, vigente em nosso país por forma do Decreto n. 99.710,
de 21 de novembro de 1990. (JÚNIOR; RODRIGUES, 2018).
Nesse contexto, a publicação não pode infringir o direito fundamen-
tal à imagem, tutelado pela Carta Magna de 1988 em seu artigo 5º, incisos
V, X e XXVIII, alínea “a”.
Igualmente, não pode violar os direitos fundamentais determinados
pelos artigos 15 a 17 da Lei n. 8.069/90, como a dignidade, a honra, a
integridade moral ou psíquica. Além disso, não podem representar para
a criança situação desumana, violenta, aterrorizante, vexatória ou cons-
trangedora, nos termos do art. 18 do mesmo Estatuto. (JÚNIOR, 2006).
Bens jurídicos como a honra, a boa fama e a respeitabilidade também
devem ser preservados quando se trata da divulgação da imagem, em obe-
diência ao art. 20, do Código Civil.
Sendo assim, considerando-se o amplo alcance da internet e a incer-
teza quanto à percepção desse ser humano quando adulto a respeito da
publicação de sua imagem, imprescindível a observância, pelos pais, de
todas as regras e princípios que norteiam a proteção à criança e ao direito
fundamental à imagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao mesmo tempo em que facilitou a vida da humanidade, a internet


tem apresentado inúmeros desafios, questionamentos e incertezas, inclu-

411
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

sive no campo dos direitos da personalidade, cuja violação vem sendo no-
tada no meio on-line.
A situação fica ainda mais delicada quando se trata de crianças e ado-
lescentes, cuja imagem é exposta pelos pais nas redes sociais, seja enquan-
to influenciadores digitais, seja sem pretensão profissional ou comercial.
Geralmente esse compartilhamento de imagens é feito com a melhor das
intenções, mas ainda assim, requer certos cuidados a serem adotados pelos
adultos, a fim de não violar direitos fundamentais dessa criança ou mesmo
causar danos a ela no futuro.
Não se pode negar que esta geração já nasceu em meio a câmeras, in-
ternet e redes sociais. Porém, o conteúdo compartilhado no meio on-line
pode se perpetuar no tempo, de forma que não se sabe como a imagem
postada hoje será utilizada daqui a alguns anos. Da mesma forma, não se
sabe o que os adultos do futuro irão achar de suas imagens antigas serem
compartilhadas com todo o mundo, sem que pudessem ter consentido
para isso.
É preciso que os pais façam essa reflexão no momento de expor seus
filhos na rede e filtrem o que será compartilhado. A imagem de uma
criança brincando pode trazer consequências diferentes da imagem de
uma criança fazendo “birra”? Será adequado compartilhar a imagem de
uma criança no “peniquinho” ou tomando banho, expondo momentos
de sua privacidade?
O limite para a exposição da imagem de crianças nas redes sociais é,
portanto, marcado pela obediência aos seus direitos enquanto seres huma-
nos e à sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.
Se a imagem a ser compartilhada viola a dignidade, a honra, a boa
fama, a respeitabilidade, a integridade moral ou psíquica da criança, então
não deve haver essa exposição. De igual forma, a criança jamais pode ser
exposta a qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexató-
rio ou constrangedor, o que se aplica ao ambiente digital.
O dever dos pais, portanto, é cuidar, proteger, velar pelos direitos da
criança, tanto off quanto on-line.
Diante disso, verifica-se que o artigo 5º, incisos V, X e XXVIII, alí-
nea “a”, da Constituição de 1988, o art. 16 da Convenção sobre os Di-
reitos da Criança, vigente no Brasil por forma do Decreto n. n. 99.710,
de 21 de novembro de 1990, bem como o art. 15 e seguintes do Estatuto

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da Criança e do Adolescente, são os limites jurídicos do poder familiar.


Logo, configuram a base normativo-protetiva dos limites jurídicos da ex-
posição da imagem de crianças e adolescentes nas redes sociais.

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415
ACESSIBILIDADE DE PESSOAS COM
NECESSIDADES ESPECIAIS (PNE):
PROTEÇÃO DA DIGNIDADE E DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Claudia Rogéria Fernandes76

Introdução

A acessbilidade é um direito de todos e os Portadores de necessidades


especiais (PNE) tem enfrentado muitos problemas nesse sentido, uma vez
que nem todas as obras são adaptadas levando em consideração a NBR
9050.
Levando em consideração o fato de que os órgãos governamentais,
dentro de suas esferas legais, têm o dever de garantir a promoção da ci-
dadania, direito constitucional fundamental, sendo que a acessibilidade é
um de seus instrumentos, salienta-se a importância da ação dos Órgãos de
Controle Externo na promoção da acessibilidade.
O objetivo geral desse artigo é abordar a importância da acessibilida-
de das Pessoas com necessidades especiais e a necessidade de adaptação das
obras pública à NBR 9050. Como objetivos específicos espera-se: descre-
ver os elementos conceituais e o panorama dos Portadores de Necessida-
des Especiais no Brasil e no Mundo; abordar os Direitos das Pessoas com
Necessidades Especiais no que diz respeito á acessibilidade e descrever
como as obras públicas podem se adaptar à NBR 9050.

76 Mestranda na Universidade de Taubaté (UNITAU).

416
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Sua relevância consiste no fato de que a abordagem dessa temática


contribuirá para um melhor entendimento sobre a necessidade de a dap-
tação das obras públicas à NBR 9050, buscando propiciar maior acessibi-
lidade aos Portadores de Necessidades Especiais (PNE).
A pesquisa é descritiva e contou com um levantamento bibliográfico,
onde foram consultados livros, artigos e legislação sobre a temática objeto
desse artigo.

Os Direitos das Pessoas com Necessidades Especiais


(PNE)

A Constituição Federal de 1988 aborda os temas ligados a pessoas


que apresentem algum tipo de deficiência em várias passagens. Em seu
art. 7º § XXXI, proíbe a distinção no que diz respeito a estabelecimento
de criterios específicos de admissão, dentre os quais níveis salariais dife-
renciados para o trabalhador “portador de deficiência”. Por meio do art.
37 § VIII, determina que a lei deve reservar um percentual específico dos
cargos e empregos públicos para as pessoas que apresentam algum grau de
“deficiência”, estabelecendo preliminarmente os critérios de sua admis-
são. Dispõe ainda por meio do art. 203 § II, que a Assistência Social debe
habilitar e rehabilitar as pessoas “portadoras de deficiência” e promover
sua integração à vida comunitária (BRASIL, 1988).
Estabelece também, através do art. 227 § II, que o Estado tem o dever
de elaborar programas de globalização comunitária do adolescente emis-
sário de déficit a partir de treinamento para o trabalho e a coexistência,
e a facilitação da afluência aos bens e serviços coletivos, como a extinção
de preconceitos e obstáculos de acessibilidade. Além disso, o seu art. 244,
remete à lei as disposições acerca da transposição das ruas, dos prédios de
utilização pública e dos veículos de transporte coletivo, propiciando uma
maior acessibilidade às pessoas com algum tipo de deficiencia (BRASIL,
1988).
Nesse sentido, a intenção dos constituintes foi dar efetividade a esses
direitos e não transformá-los em letra morta. A leitura dos diversos incisos
do art. 5º deixam clara a existência de normas definidoras dos direitos das
pessoas com algum tipo de necessidade especial (FERREIRA FILHO,
2010).

417
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Buscando contornar as barreiras trazidas pelo veto ao art. 1º, IV,


da Lei n. 7.347/85 e antecipando-se à Lei n. 8.078, de 11/09/90, a Lei
n. 7.853/89 ratificou a atuação civil  pública como solução  procesual de
apropriar a proteção dos intereses coletivos ou difusos dos indivíduos com
alguma necessidade especial, pelo Ministério Público e  pelos indiví-
duos jurídicos de Direitos Públicos; assim como também por fundações,
empresas públicas, associações, além de  sociedades de economia  mista
(com a premissa que sejam incluídas, entre seus objetivos institucionais, a
proteção de pessoas com necesidades especíais) (ABREU, 2009).
Considerando a Lei n. 7.853/89, a partir de 1989, sob o prisma do
Direito do Trabalho, foi realizada uma propositura de uma ação  públi-
ca (ou coletiva) com o objetivo de defender os trabalhadores portadores
de necessidades especiais, tornando obrigatória a exigindo a construção
de rampas que propiciam uma maior acessibilidade de paraplégicos ao lo-
cal de trabalho (LORENTZ, 2006).
Ainda no âmbito do Direito do Trabalho, o art. 8 II, tipificou como
crime o ato de negar cargo público a pessoas que detén alguma necessi-
dade especial, exclusivamente por terem essa condição. Essas pessoas po-
derão ser punidas com detenção de quatro anos, além do pagamento de
multa (LORENTZ, 2006).
O Código Civil de 2002 assegurou um tratamento mais apropriado
às pessoas com necessidades especiais. Entretanto, com relação as nomen-
claturas utilizadas na designação daqueles que possuem deficiência, os ter-
mos utilizados como “deficiência mental”, “enfermidade” e “excepcional
sem desenvolvimento mental completo”, continuam ainda sendo insu-
ficientes para explicar o número elevado de casos, nesse sentido. Neste
âmbito, ainda existem pontos ligados a classificação e, mais especifica-
mente, nomenclatura, que mecerem uma maior apreciação por parte do
legislador (ABREU, 2009).
O legislador objetivou ao colocar a nomenclatura “pessoa portadora
de deficiência”, desvincular a palavra deficiência para a pessoa, no entan-
to, esse intuito não foi efetivado, visto que o foco acabou recaindo mesmo
é no termo portador, sugerindo que se trata de alguma patología. Nesse
caso, o termo mais usado passou a ser “pessoas com necesidades especiais”
(FÁVERO, 2004).

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No que tange à comparação do grupo dos relativamente incapazes,


no Código Civil de 2002 foram inseridos os que, “por deficiência men-
tal, tenham o discernimento reduzido”77, assim como “os excepcionais,
sem desenvolvimento mental completo”78. Esta mudança representou um
progresso considerável com relação à redação anterior, visto que foram
indicados graus de incapacidade e, dessa forma, propiciou-se ao indivíduo
a possibilidade de atingir a capacidade relativa, fato que antes não era pos-
sível (REQUIÃO, 2016).
Desse modo, reconhece-se a importância da concessão da autonomia
do indivíduo como um avanço no que diz respeito à manutenção da auto-
nomia das pessoas com necesidades especiais, permitindo a eles o alcance
da capacidade relativa (SCHREIBER, 2018).
Em julho de 2015 foi publicada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência (Lei nº 13.146/15), também denominada de “Estatuto
da Pessoa com Deficiência”. É inegavelmente um instrumento à proteção
dos direitos humanos, e

vem atender uma população de quase 46 milhões de pessoas no


Brasil, o que corresponde a 25% da população brasileira, que in-
tegram os 15% da população mundial, cerca de um bilhão de pes-
soas afetadas por algum tipo de deficiência (SCHREIBER, 2018,
p.111).

Com esse Estatuto, foram alterados dispositivos do Código Civil que


abordavam a capacidade civil. Os artigos 114 e 123, inciso II do referido
documento mudaram o caput e os incisos do artigo 3º do CC que tratam
da incapacidade absoluta foram revogados. Foram também modificados
os incisos II e III do artigo 4º do CC, ligado aos relativamente incapazes
(BRASIL, 2017).
Conforme o art. 3º. do Código Civil, somente os individuos menores
de 16 anos são consideradas absolutamente incapazes e relativamente inca-
pazes as pessoas entre 16 e 18 anos (art. 4º, I, CC) (SCHREIBER, 2018).
Anteriormente à introdução do supramencionado Estatuto ao or-
denamento jurídico brasileiro, a regra era pela incapacidade da pessoa

77 art. 4º, II, segunda parte, CC/02 (Redação antiga).


78 art. 4º, III, CC/02 (Redação antiga).

419
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

com deficiência. Entretanto, perante as mudanças trazidas por ele, as


pessoas com deficiência foram excluídas do conjunto das incapacidades
(SCHREIBER, 2018).
Neste sentido, de acordo com Oliveira (2016) ao não considerar os
portadores de deficiencia mental ou intelectual, como totalmente incapa-
zes, considera-se os mesmos incapazes de forma relativa, o que se mostra
um grande equívoco (artigo 4º, III, do CC).
As alterações oriundas do Estatuto consolidam e atendem os critérios
adotados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Tal documento representa um grande avanço para a proteção da dignidade
da pessoa com deficiência. Esas inovações são oriundas de um processo
intenso que teve como objetivo incluir socialmente as pessoas com nece-
sidades especiais, bem como da garantia do seu direito à cidadania efetiva
e plena (VORCARO; GONÇALVES, 2018).

A acessibilidade como Direito Fundamental das Pessoas


com Necessidades Especiais (PNE)

A acessibilidade, é sem dúvida, um dos instrumentos primordiais


que asseguram a inclusão social, uma vez que, busca garantir o acesso das
pessoas de forma imparcial aos outros direitos, mesmo que se enquadrem
como direitos fundamentais (Nishiyama et al, 2016). Trata-se de um ato
que está ligado à dignidade da pessoa humana, visto que propicia liberdade
quanto ao acesso à justiça, posibilitando o exercício pleno dos seus direitos
(SASSAKI, 2008).
A primeira previsão expressa no ordenamento jurídico do termo
acessibilidade ocorreu através da Emenda Constituição nº 12 promulgada
em 1967. O texto de referida emenda busca garantir às pessoas com ne-
cessidades especiais uma melhor qualidade de vida tanto económica como
social e econômica, especialmente no que tange à acessibilidade nas ruas
e edifícios. Embora ainda seja limitada, tal emenda representa um avanço
no que diz respeito à proteção dessa camada da população tendo servido
de base para a interposição de medidas judiciais para a que fossem im-
plantadas rampas que facilitam o acesso tanto em locais privados como
públicos (ARAÚJO, 2001).

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Entretanto, este direito só ganhou a devida relevância no ano de 2006,


quando ocorreu a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia em Nova Iorque. Preliminarmente, foi verificada a relevância de uma
maior acessibilidade aos locais da mesma forma que é importante o acesso
à saúde e educação (NISHIYAMA et al, 2016).
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência teve
como norte principal a acessibilidade. Isso ficou claro pelo fato que há um
artigo inteiro (artigo 9º) que aborda aspectos ligados a essa questão (BAR-
CELLOS; CAMPANTE, 2012).
O conceito de acessibilidade possui uma amplitude muito grande,
englobando todas as esferas de interação social e não somente as barreiras
de interação social. Neste contexto, é possível definir acessibilidade como
sendo: “o mecanismo por meio do qual se vão eliminar as desvantagens
sociais enfrentadas pelas pessoas com deficiência, pois dela depende a rea-
lização dos seus demais direitos” (BARCELLOS; CAMPANTE, 2012,
p. 177).
Lopes (2009) afirma que o “estado de acesso” que a Convenção In-
ternacional estabelece que todas as barreiras existentes que impossibilitem
o libre acesso das pessoas com necesidades especiais sejam extintas, e que
todas as readaptações necessárias sejam feitas, buscando facilitar o pleno
direito ao acesso a todos os locais. O Estado tem papel primordial na
garantía do acesso dessas pessoas, seja em locais privados como públicos,
visto que é sua obrigação a implantação e a fiscalização da aplicação da
norma.
O direito à acessibilidade está estabelecido na Constituição Fede-
ral e em várias normas infraconstitucionais, entretanto, nesse momen-
to é importante ressaltar que o princípio da acessibilidade não está li-
mitado à acessibilidade arquitetônica. Para tanto, é imprescindível um
maior planejamento político, para a inclusão da pessoa com deficiência
(OHLWEILER, 2014).
O acesso aos direitos que devem ser assegurados pelo Estado é feito
através de políticas públicas, uma vez que se trata de um “conjunto de
ações elaboradas pelo poder público para efetivar as indicações de bem
comum, justiça social e a igualdade dos cidadãos” (OHLWEILER, 2014,
p. 133).

421
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Cabe salientar que a acessibilidade, nada mais é do que um direito


primordial das pessoas com necesidades especiais. Nesse sentido, o aces-
so a acessórios, equipamentos e medicamentes que propiciam uma maior
qualidade de vida é um direito, sendo que isentá-las dos tributos cobrados
pela importação desses produtos é primordial para a maximização da sua
acessibilidade (BARCELLOS; CAMPANTE, 2012).
Buscando a garantía da dignidade da pessoa com deficiência é ne-
cessário que sejam respeitadas as condições para que sejam exercidos de
forma pelan seus direitos fundamentais (SILVEIRA, 2010). A pessoa
com deficiência tem sua dignidade humana assegurada quando os seus
direitos à individualidade e à integridade física e moral não são tirados
(NISHIYAMA et al, 2016).
Uma maior preocupação sobre a necessidade de uma maior inclusão
das pessoas com necessidades especiais ocorreu na década de 70 e isso
aconteceu porque vários segmentos organizados passaram a se mobilizar
e promover campanhas em nível mundial, objetivando destacar a neces-
sidade de ações para a remoção de barreiras de acessibilidade no ámbito
arquitetônico, que dificultam à locomoção e ao acesso dessas pessoas à
vida em sociedade (NISHIYAMA et al, 2016).
Embora essa preocupação tenha ocorrido nessa época, ainda são in-
cipientes o número de rampas tanto nas calçadas como nos edifícios, para
cadeirantes, além de pisos podotáveis e sonorização nos elevadores. A im-
plementação dos mecanismos de acesso começaram a ser implantados a
partir da década de 90 (OHLWEILER, 2014).

Obras Públicas e adequação à NBR 9050

A NBR 9050 (Adequação das Edificações e do Mobiliário Urbano à


Pessoa Deficiente) foi elaborada em 1985, sendo a primeira norma técni-
ca brasileira voltada para a acessibilidade e contou com a participação de
profissionais de áreas diversas, em conjunto com pessoas com deficiência
(IBAM, 1998).
Buscando uma ampliação do alcance e atualização da NBR 9050, a
ABNT instalou uma Comissão de estudos, e a referida norma em 1994
foi nomeada como Acessibilidade de pessoas portadoras de deficiência às
edificações e espaço, mobiliário e equipamentos urbanos. Posteriormente,

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

em 2004, a norma passou a estabelecer critérios e parâmetros técnicos a


serem observados quando do projeto, construção, instalação e adaptação
de edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos às condições
de acessibilidade (CALADO, 2006).
Para tornar possível o estabelecimento desses critérios e parâmetros
técnicos foram levados em consideração várias condições de mobilidade e
de percepção do ambiente, com ou sem a ajuda de aparelhos específicos,
como: próteses, aparelhos de apoio, cadeiras de rodas, bengalas de ras-
treamento, sistemas assistivos de audição ou qualquer outro que venha a
complementar necessidades individuais (CALADO, 2006).
Segundo o item 1.3.1 da NBR 9050/2004, todos os espaços, edifi-
cações, mobiliário e equipamentos urbanos, que forem projetados, cons-
truídos, montados ou implantados, bem como as reformas e ampliações
de edificações e equipamentos urbanos, precisam atender o que ela esta-
belece para serem considerados acessíveis.
Como verificado no artigo 12 da Lei Federal nº 8.666/1993, o pro-
jeto básico de uma construção ou reforma necessita cumprir com varios
requisitos, principalmente os relativos ao seu inciso II, que diz respeito
à funcionalidade e sua adequação ao interesse público. Para Justen Filho
(2005) respeitar o interesse público seria atribuir à Administração uma
competência discricionária para determinar o modo concreto de satisfa-
ção das necessidades coletivas.
Justen Filho (2005) deixa claro que o projeto básico não é destinado
a disciplinar a execução da obra ou do serviço, mas necessita demonstrar
a viabilidade e a conveniência de sua execução. Neste caso, não pode ser
viável ou conveniente a execução de obras públicas sem que todos possam
delas usufruir.
A revisão mais atual da NBR 9050 ocorreu em 2015, sendo que
seus objetivos são diferentes das versões anteriores, uma vez que passou
a abordar o meio rural e não somente o meio urbano. Além disso, são
apresentadas informações e ilustrações mais detalhadas, como também as
maneiras de fazer as devidas adaptações de acordó com a característica de
cada modelo (LIMA, 2016).
Salienta-se que o Decreto nº. 5296/2004, mencionado em parágrafos
anteriores, estabeleceu prazos para adequação de edifícios de uso coletivo
do país às normas que estabelecem critérios para a promoção da acessibi-

423
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

lidade de pessoas com deficiência, sendo o limite máximo de dezembro


de 2008 para o cumprimento de tal determinação. Perante o quadro nor-
mativo existente, é necessária a contratação de profissionais qualificados
buscando atender a tal demanda (NASCIMENTO, 2013).

Conclusão

Diante do exposto, conclui-se que a acessibilidade é direito de todos


e a observação dos parâmetros de acessibilidade previstos no Decreto Fe-
deral nº 5.296/2004 e na NBR 9050/2004, quando da análise dos projetos
de obras pública, garante o atendimento aos princípios da legitimidade e
da economicidade.
A verificação da acessibilidade na análise de editais, à luz dos princípios
constitucionais da legalidade, legitimidade e economicidade, tem como ob-
jetivo contribuir para a eficiência da Administração Pública, evitando des-
perdícios na aplicação de recursos destinados à execução de obras.
Entretanto, a legislação vigente não tem garantido de forma ampla
que as cidades possam ser utilizadas por todos os seus cidadãos, uma vez
que a transformação de atitudes e de parâmetros ainda é lenta e poucos são
os municípios que estão transformando o direito à acessibilidade.
Portanto, é necessária uma maior conscientização e para tanto é ne-
cessária uma disseminação maior de informações e conhecimentos téc-
nicos específicos e da legislação vigente quanto a esta questão, tanto ao
corpo técnico dos Tribunais de Contas, quanto aos seus jurisdicionados.

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426
O CONCEITO DE SUJEITO E A
OBJETIFICAÇÃO – OS CORPOS
ACEITOS E OS CORPOS REJEITADOS
Cibele Pavanatto Mereth79
Marco Antonio Lima Berberi80
Sandra Mara de Oliveira Dias81
Tais Martins82

INTRODUÇÃO

A vida social diante da nossa formação filogenética e ontogenética


permeia o meio social. A pessoa não se constitui um organismo isolado.
Possuímos a nossa individualidade, mas nossa característica coletiva é pre-
mente. O esteio cultural no circunda de modo indissociável – a história
nos apresenta um panorama a partir das relações culturais. A humaniza-

79 Especialista em Direito Público pela Fempar; Especialista em Direito Penal e Processo Pe-
nal pela Unicuritiba 2019-2020. Especialista em Direito empresarial pela Faculdade Legale.
Advogada. Graduação pela Faculdade Dom Bosco.
80 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2002). Doutor em Direito
pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2018). Professor na graduação e pós-gradua-
ção da UniBrasil.
81 Sandra Mara de Oliveira Dias, Doutoranda em Direitos Fundamentais e Democracia pelo
UniBrasil, Juíza do Trabalho no TRT9.
82 Doutoranda em Direito da Unibrasil. Advogada da Tavares, Martins & Rosa Advogados;
Coordenadora de Direito na UniFaesp; Escritora e fundadora da Calligraphie Editora. Psicó-
loga na Clínica Psicologia, Psicanálise e Bem Estar Inspirare.

427
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

ção não é um processo natural, mas sim histórico. O indivíduo é o ser


social – um ser que necessariamente se relaciona com outros indivíduos.
Dessa forma se faz pessoa e se humaniza. O desejo, a necessidade e a von-
tade produzem meios de vida que se prestam ao serviço individual, mas
também coletivo. Haja vista a relação do homem com a natureza. Essa
dinâmica já apresentada por Marx ao mencionar os debates sobre a socia-
bilidade humana. A pessoa é um animal social. A interação com as pessoas
e com o mundo é possível exercer a comunicação, os saberes, partilhar e
expressar desejos e vontades. No esteio social o “ser” se constitui atra-
vés de fatores hereditários, genéticos, morfológicos e físico-químicos. Em
suma a totalidade daquilo que somos apresenta algo que também pode ser
caracterizado como personalidade. Em que pese esse termo possuir con-
ceitos “tentaculares” na literatura, no direito, na psicologia e na história.
A pessoa é um ser de relacionamento seja devido ao afeto, as necessida-
des diárias e porque não dizer com auspícios de melhora nas condições
de vida. O coletivo desde os primórdios ilustra que há vantagens nessa
coabitação. As desvantagens outrora surgidas são minimizadas diante dos
aspectos da nossa conduta tendente a socialização.
Nesse sentido surge o culto ao corpo que é construído pela mídia. E
os padrões estéticos restam ligados com o consumo alimentar da popula-
ção, pois esse também recebe a interferência da mídia (Mendes e Vilhena,
2016), uma onda de internet fomentada pelas “blogueiras fitness” que esti-
mulam novos padrões de beleza e produzem conteúdos e contextos sobre
os hábitos alimentares.
Para Mendes e Vilhena (2016), há um corpo de consumo e um corpo
consumido que pode ser também compreendido através do comporta-
mento alimentar e dos hábitos de vida sedentários que geram a suscetibili-
dade à obesidade. O consumo surge como trâmite necessário com a possi-
bilidade de sanar as privações, no entanto essa afirmativa permite concluir
que a satisfação não é um objetivo fácil, bem como há muitas interfaces
de ordem psicológica que levam ao consumo exagerado e ao fracasso das
dietas em sua grande maioria.
As Representações Sociais da obesidade demonstraram um forte tra-
ço de preconceito, discriminação e uma constante busca por um corpo
magro, sem levar em conta o custo dessa busca por uma imagem corporal
socialmente aceita. A discriminação dos corpos acima do peso é conteúdo

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comum nos levantamentos e conclusões apresentados pela literatura e va-


riam nas conclusões sobre obesidade-beleza; obesidade-saúde; obesidade-
-discriminação; obesidade-medicalização; obesidade-cirurgia bariátrica;
obesidade-procedimento com argônio entre muitos outros recortes. Mas
esses conteúdos apontados puderam e foram comparados e analisados atra-
vés da sua conectividade de palavras, de sensações, de compreensões sobre
a representação da obesidade em suas vidas e o impacto desse constructo
para cada um dos entrevistados e que posteriormente foram comparados
de modo individual e posteriormente coletivo, pois é diante da cultura e
do contexto que as Representações Sociais fazem sentido.
O artigo apontará inquietações no campo de Direito, da Psicologia
e se espraia pelas políticas públicas e pelas lacunas sobre a proteção das
pessoas com sobrepeso e obesas através de suas vulnerabilidades. A in-
dústria da moda e do consumo que acabam se sobrepondo as questões
humanas e sociais. O sofrimento comercializado vai perdendo o contorno
de sofrimento e são oferecidas saídas de consumo para um problema que
apresenta dimensões complexas e que não se esgotam num único debate.

1. O PADRÃO DE BELEZA CORPORAL – ENTRE A


OBESIDADE E A CONDENAÇÃO SOCIAL

A vivência na coletividade e a busca de individualidade promovem


para a pessoa, conflitos filosóficos. Viver se constitui numa tarefa difícil,
mas ao mesmo tempo se perfaz numa tarefa simples. A manifestação da
angústia se dá diante da dificuldade do indivíduo em suportar a sua indi-
vidualidade e a individualidade do outro. A sociedade nos impinge um
coletivo. Mesmo diante do risco alertado por Nelson Rodrigues de que a
unanimidade é burra. Conviver em sociedade é diferente de acatar todas
as suas regras e preceitos.
Constata-se que elementos como saúde e emagrecimento conjugam
elementos físicos, psíquicos e afetivos. Para Justo (2016), a pessoa com
excesso de peso recebe muitas nomenclaturas, mas é notório que o sujeito
que apresenta sobrepeso costuma esquivar-se do termo obeso e prefere
substituí-lo por “gordinho(a)”, “fofinho(a)”, como se esses termos pudes-
sem colaborar para a aceitação desse sujeito na sociedade de acordo com as
convenções sociais estabelecidas sobre o corpo, seja ele magro ou obeso.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A dualidade entre a pessoa e corpo traz o perigo de incorrermos em


uma fragmentação da identidade humana.
Para Le Breton:

[...] Esquecemos com frequência o quão absurdo é nomear o corpo


como se fosse um fetiche, isto é, omitindo o homem que o encar-
na. É preciso ressaltar a ambiguidade que consiste evocar a noção
de um corpo que só mantém relações implícitas, supostas, com o
ator com quem faz indissoluvelmente corpo. [...] O próprio corpo
não estaria envolvido no véu das representações? O corpo não é
uma natureza. Ele nem sequer existe. Nunca se viu um corpo: o
que se vê são homens e mulheres. Não se vê corpos. Nessas condi-
ções o corpo corre o risco de nem mesmo ser um universal. [...] O
corpo não é uma natureza incontestável objetivada imutavelmente
pelo conjunto das comunidades humanas, dada imediatamente ao
observador que pode fazê-la funcionar como num exercício de so-
ciólogo (LE BRETON, 2007, p. 24).

Menciona ainda sobre a aparência corporal:

[...] A aparência corporal responde a uma ação do ator relacionada


com o modo de se apresentar e de se representar. Engloba a manei-
ra de se vestir, a maneira de se pentear e ajeitar o rosto, de cuidar
do corpo, etc., quer dizer, a maneira quotidiana de se apresentar
socialmente, conforme as circunstâncias, através da maneira de se
colocar e do estilo de presença. O primeiro constituinte da aparên-
cia tem relação com as modalidades simbólicas de organização sob
a égide do pertencimento social e cultural do ator. Elas são provi-
sórias, amplamente dependentes dos efeitos de moda. Por outro
lado, o segundo constituinte diz respeito ao aspecto físico do ator
sobre o qual dispõe de pequena margem de manobra: altura, peso,
qualidades estéticas, etc. São esses os traços dispersos da aparência,
que podem facilmente se metamorfosear em vários indícios, dis-
postos com o propósito de orientar o olhar do outro ou para ser
classificado, à revelia, numa categoria moral ou social particular
(LE BRETON, 2007, p. 77)

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A capacidade de refletir tem se tornado cada vez mais dolorosa e os


sofrimentos diversos são submetidos a uma sociedade de consumo. A efi-
ciência dos tratamentos farmacológicos e os escritos da neurociência mo-
derna ofertam uma ancoragem identitária fluida e dependente. Pois o que
causa sofrimento acaba medicalizado ou substituído por uma cirurgia que
busca a beleza e nem sempre a saúde. A moda e as modelos representam
muito bem o sofrimento da imposição de padrões e na rejeição social das
pessoas que não atendem ao padrão social. Trata-se de um julgamento
que não permite a ampla defesa, pois os corpos condenados pela obesidade
devem mudar seu padrão ou aceitar as piadas e a não inclusão. Numa linha
cruel que transita entre aceitação e fracasso através de padrões corporais.
Para Bauman:

[...] Para atender a todas essas novas necessidades, impulsos, com-


pulsões e vícios, assim como oferecer novos mecanismos de mo-
tivação, orientação e monitoramento da conduta humana, a eco-
nomia consumista tem de se basear no excesso e no desperdício
(BAUMAN, 2008, p. 53).

O sujeito obeso é tratado como pessoa fracassada ou incapaz. Situa-


ção essa que atenta contra sua dignidade humana. Através dos aspectos
biopsicoemocionais é possível avaliar a decepção com o aumento de peso e
a vivência desse reganho de peso, podem ser ocasionados pela instabilida-
de emocional que pode em alguns casos ser ocasionada pela decepção pelo
aumento de peso e pela necessidade de adequação a um padrão de beleza
que não é acessível a todos os corpos.

2. A PUBLICIDADE E O TÊNUE LIMITE ENTRE


CONSUMO E EXCLUSÃO

Nesse sentido surge o culto ao corpo que é construído pela mídia. E


os padrões estéticos restam ligados com o consumo alimentar da popula-
ção, pois esse também recebe a interferência da mídia (Mendes e Vilhena,
2016), uma onda de internet fomentada pelas “blogueiras fitness” que esti-
mulam novos padrões de beleza e produzem conteúdos e contextos sobre
os hábitos alimentares.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Os autores concluem que há escassez de dados sobre o tema, o que


faz crer que o peso no Brasil é um assunto envolto em preconceito e até
mesmo na inferiorização de um grupo sobre o outro, por exemplo, na su-
perioridade do grupo de pessoas magras sobre o grupo de pessoas obesas.
Para Koelzer et al. (2016) e Araújo et al. (2018), esse debate é mui-
to claro nas redes sociais. Diante das palavras de destaque, “medida”,
“vergonha”, “preconceito”, “triste”, “servir”, “feio”, “vestir”, “corpo”,
“obeso”, “gordo”, “triste”, “sentir”, “servir”, “comprar”. Essas palavras
apontam para as dificuldades acarretadas por um corpo que não veste
qualquer tamanho, bem como o sentimento sobre uma inadequação aos
padrões de vestimenta que culminam no mal-estar e na repressão de fi-
gurinos que não existem além dos tamanhos pequenos e médios. Resta
instaurado um sofrimento propulsionado pela frustração diante da inade-
quação aos padrões de moda e consequentemente de beleza.
No que concerne às Representações Sociais e à sua interação entre
imagem e corpo, bem como a interação do corpo com o espaço público,
seja esse corpo obeso ou não obeso, há uma descrição acerca dos padrões
estéticos sobre essas representações sociais e o estudo apresentado por
Goetz, Camargo, Bertoldo e Justo (2008) oferece um panorama sobre as
representações sociais do corpo na mídia impressa. Os autores apontam
que o corpo envolve muitas situações que transitam entre a esfera pública
e a privada. A mídia, a moda, as novelas e as relações socias são elementos
que revelam as várias formas de lidar com o corpo, seja ele obeso ou não.
Os padrões estéticos são estabelecidos socialmente e mesmo que velada há
uma intolerância com a fuga dos padrões.
Há um “poço” de necessidades que muitas vezes restam supridas
exclusivamente no consumo. A efemeridade recai também nas relações
matrimoniais, nas relações de trabalho, nos relacionamentos de amizade
e afeto. Pois a permanência perdeu o seu lugar de destaque. As coisas não
se prestam ao conserto, mas sim ao descarte. Substituir um produto ou
uma emoção por aquisições de carros, sapatos, móveis, viagens. Enfim
uma plêiade de substitutos consumeristas e pecuniários para as angústias
que se potencializam diante de relações rarefeitas. Tudo resta líquido, pois
se encapela nas relações de ordem econômica, o novo supera o antigo e o
valor não é sublimado, mas sim esquecido.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Na globalização as pessoas se veem jogadas ao exercício da singu-


laridade e esse eixo leva aos problemas com o consumismo, pois tudo é
prét-à-porter na sociedade moderna, mas essa confusão leva ao confronto
entre exclusividade e singularidade.
O sujeito tornou-se nada mais do que uma grife de luxo. Essa objeta-
lização vem de um discurso de suposta felicidade. E aparentemente tudo o
que falta ao sujeito pode ser suprido de alguma forma.
Nessa teia diáfana podemos invocar a comparação com a obra de Bo-
bbie Carlyle nominada Self Made Man. Onde a escultura lapidada em
pedra bruta, passa a ser uma auto-lapidação na busca incessante da beleza
estética. O corpo abandona o conceito de beleza divinal ou natural e se
torna uma estratégia consumista. O corpo lapidado que se torna mais um
objeto de aquisição e consumo.
Em suma, a busca da satisfação muitas vezes nominada como felici-
dade traz em seu bojo análises de cunho diagnóstico. O custo da satisfa-
ção pode galgar contornos de aquisição como é o caso do consumo. Bem
como pode enveredar para a medicalização para aplacar os medos e os ma-
les. Ou as plásticas, as bariátricas e os argônios para alcançar o corpo que
a sociedade deseja ver e não propriamente o corpo que o sujeito pretende
manter. As estratégias consumistas furtam a individualidade e o mercado
da beleza, da cosmética, da estética restam sustentados pelas “necessidades
construídas”. Diante desse panorama há uma inércia dos direitos do indi-
víduo diantes das garantias e possibilidades de consumo.
Nas palavras de Golberg:

[...] “O corpo é um corpo coberto de signos distintivos. Um corpo


que, apesar de aparentemente mais livre por seu maior desnuda-
mento e exposição pública, é, na verdade, muito mais constrangi-
do por regras sociais interiorizadas pelos seus portadores”. (Gol-
denberg, 2002, p. 38)

A saúde do indivíduo passou por muitas alternâncias históricas e le-


gislativas. A democratização incitou a ampliação de movimentos dirigidos
para as transformações, inclusive no campo da Saúde e da Beleza. Os as-
pectos políticos, sociais, culturais e econômicos passaram a ser cuidadosa-
mente considerados na construção das subjetividades, o que não implica-

433
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

vam negar o seu aspecto psíquico, ao contrário, permitia contextualizá-lo,


possibilitando a compreensão das múltiplas dimensões do sujeito.
Assevera Lipovetsky:

[...] Passa-se para o universo do hiperconsumo quando o gosto pela


mudança se difunde universalmente, quando o desejo de “moda”
se espalha além da esfera indumentária, quando a paixão pela re-
novação ganha uma espécie de autonomia, relegando ao segundo
plano as lutas de concorrência pelo status, as rivalidades miméticas
e outras febres conformistas (LIPOVETSKY, 2007, p. 44).

Gilles Lipovetsky (2006, p.160) faz uma reflexão sobre a sociedade


contemporânea, sobre uma nova geração de sociedades burocráticas e
democráticas que têm sua socialização pela escolha, pela imagem e pelo
sentido, através da comunicação publicitária, da sedução do consumo e
também do psicologismo. Mas possui um sentido mais amplo, manifesta-
do por qualquer necessidade do indivíduo, à medida e no momento que
elas fossem surgindo, como a fome, a sede, a sexualidade, a intelectuali-
zação etc.
Destarte Bauman é um crítico da socidade de consumo – e aponta
inclusive um viés pessimista sobre essa tratativa. Por sua vez Lipovetsky ao
falar do hiperconsumo tenta evitar esse viés pessimista destacando o que
haveria de positivo ou de negativo nesse universo (SATHLER, Conrado
Neves; REZENDE, Manuel Morgado, 2008. p. 4).

3. O CORPO TRANSITANDO ENTRE O SER SUJEITO E A


OBJETIFICAÇÃO

A ponte entre o direito e a psicologia tem como fito tratar do conceito


de civilização e do processo civilizatório. A condenação do social é clara
mesmo que seja permanente e constantemente refutada. O direito existe
para proteger as pessoas diante de seus direitos fundamentais. Condenar
as pessoas através de seus corpos sejam eles magros, obesos, naturais ou
reconstruídos por cirurgias vai na contramão da cultura e também na con-
traria os preceitos legais. A busca pela felicidade termina por esbarrar na
existência inegável de sofrimento.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Como escreve Theodore Adorno: “A felicidade está obsoleta: não


é rentável”. Justamente nos processos de exclusão existe uma busca por
compensações medicamentosas, cirúrgicas e até mesmo consumistas, pois
a aquisição de bens pode manejar o mal-estar.
Por sua vez a proteção dos direitos dos indivíduos cede espaço para a
indústria da beleza, através de produtos para manter a pele jovem para as
pessoas que buscam aceitação; ou fórmulas mágicas que podem promover
milagres de emagrecimentos numa busca incessante pela ascensão social.
Não se trata mais de um debate sobre a vaidade e o consumo, pois essa
indústria não está vontade ao bem estar de modo real.
A obesidade e a exclusão social, ensejam a construção de vários pano-
ramas interligados, pois a obesidade pôde ser analisada como saúde, medi-
calização, cirurgia bariátrica, procedimento com argônio, sofrimento, mas
acima de tudo foi preciso ver a obesidade e o sujeito que precisa lidar com
essa obesidade. Em muito se atribui a responsabilidade de acolhimento
dos sujeitos aos profissionais da psicologia. No entanto são os profissionais
do direitos os responsáveis para desenvolver cada vez mais a conexão en-
tre os temas de saúde, beleza, rejeição, aceitação e principalmente o apoio
para essas pessoas que constantemente lidam com a obesidade, para que
elas possam na medida de suas possibilidades encontrar a conexão entre o
peso corporal e o peso social, garantindo uma adequada qualidade de vida
e a garantia da dignidade humana.
Para Freud:

[...] Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos en-
sinou muita coisa que já não fosse conhecida. E se lhe dermos
prosseguimento, perguntando por que é tão difícil para os homens
serem felizes, a perspectiva de aprender algo novo também não pa-
rece grande. Já demos a resposta, ao indicar as três fontes de onde
vem o nosso sofrer: a prepotência da natureza, a fragilidade do
nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos
humanos na família, no Estado e na sociedade (Freud, 2011, p. 30).

As aflições humanas não possuem códigos únicos o que indica que


nem sempre podem ser codificadas. Para os sintomas é preciso ter res-
postas, mas se os corpos não respondem igualmente ao tratamento. Bem

435
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

como para o serviço de saúde é preciso um estudo aprofundado que possa


explicar quais os males que podem assolar um sujeito e se esse sujeito
“precisa” ou não de tratamento – e ainda assim não haverá uma única
forma de abordagem para a resolução, pois ela pode estar circundada por
aspectos psicológicos, fisicos ou agregados por patologias já existentes.

[...] Saúde e doença não se diferenciam por princípio, somente es-


tando separados por limites determináveis na prática. Não se pode
postular para o tratamento nenhuma outra meta senão a cura práti-
ca do enfermo, o restabelecimento se sua capacidade de rendimen-
to e gozo (FREUD, 1905[1904], p. 241, apud OCARIZ, 2003,
p. 24).

Para Freud, o que diferencia o patológico da normalidade, é como o


aparelho psíquico desta pessoa se estrutura, como a mesma consegue em
seu processo de desenvolvimento e constituição subjetiva administrar seu
universo de pulsões e desejos (Ocariz, 2003).
O que nos levará futuramente a debater sobre o poder das agências
reguladoras, o SUS, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitá-
ria) e as implicações sobre a questão da Obesidade, pois o cerne do debate
ultrapassa as questões de saúde e podem ser debatidas através do interesse
econômico enviesado pelos conglomerados farmacêuticos.

4. CORPOS ACEITOS E CORPOS REJEITADOS –


LINEAMENTOS ENTRE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS
DE PERSONALIDADE E AS GARANTIAS DO MERCADO
CONSUMIDOR

O peso e o descontrole sobre ele – seja no sobrepeso ou na obesida-


de – são os focos das frustrações, porém é certo que há outros problemas
que nem sempre surgem de maniera imediata quando investigamos esses
problemas que podem surtir impacto na ordem emocional e nem sem-
pre de imediato na saúde física. Ou seja, existe notoriamente uma fome
emocional que não resta aplacada com a bariátrica nem tampouco com o
procedimento com argônio. Nem tampouco resta solucionada pelas ci-
rurgias plásticas ou pelos milhares de medicamentos para controle de peso.
Tão logo o corpo magro, eleito pela sociedade, aparenta uma roupagem

436
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

de felicidade ou solução de todos e quaisquer conflitos humanos, o que


não resta comprovado pela literatura da psicologia e da medicina, segun-
do artigo elaborado por Cambi et al.(2014) e a pesquisa apresentada por
Kortchmar et al. (2018).
De um lado o corpo mais magro e de outros todas as frustrações que
num primeiro momento aparecem ligadas ao excesso de peso. Com-
preende-se que o comer e a comida estão diretamente relacionados. A
comida não se restringe ao seu caráter nutricional (Castro et al., 2016);
em alguns momentos ela pode ser constatada nos hábitos alimentares e
recompensas alimentares que surgem a partir de fatores emocionais. É um
“ganho” ilusório que apresenta a conta não quando se ingere o alimento,
mas quando o sujeito está combatendo a obesidade. A culpabilização e a
responsabilidade por engordar – são conjugadas, pois o preconceito, os
julgamentos e a rejeição acontecem e são percebidos através da culpabili-
zação e a responsabilidade por engordar.
No artigo publicado por Mendes e Vilhena (2016), merece destaque
o contorno sobre a bariátrica como forma de solução para a obesidade,
pois diante do sofrimento ocasionado pela rejeição social o indivíduo bus-
ca a bariátrica como forma de alterar a própria representação do seu cor-
po, fugindo dos estigmas da feiura e da infelicidade. Schencman (2013) e
Soratto (2009) partilham desse mesmo entendimento, pois a obesidade
insere o sujeito numa condição de repulsa e essa simbologia é perceptível
no contexto social.
Nesse sentido, Araújo et al. (2018) asseveram que os julgamentos so-
bre a obesidade e a discriminação centrada nos corpos acima do peso aca-
bam desdobrando uma sensação nos sujeitos obesos de inferioridade, pois
os corpos que não obedecem ao padrão de magreza padecem da rejeição
dos grupos diante dessa inadequação aos corpos magros e nessa conjuntu-
ra, é claro, surgem os preconceitos que geram impacto na vida social, na
esfera profissional e também nas relações afetivas.
Em suma o Direito tem o dever de retomar as tratativas sobre a dis-
criminação e preconceito contra as pessoas obesas, pois elas pertencem a
um grupo que apresenta vulnerabilidade e padece com constantes ataques
a dignidade humana.
Para Ingo Sarlet:

437
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

[...] Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a quali-


dade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Es-
tado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto con-
tra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa
e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos. (Sarlet, 2004, p. 39-60)

A indústria do consumo coloca em cheque os debates sobre a digni-


dade humana. Pois muitas condutas que parecem inofensivas conduzem a
obesidade, a depressão e a sensação de exclusão social. Uma análise singela
sobre os alimentos oferecidos sem restrição e que muitas vezes apresentam
uma qualidade duvidosa, mas adentram os hábitos alimentares através de
propagandas atrativas.
Camila Camacho Bohn já antecipava essa questão em 2004:

[...] “O padrão estético de beleza atual, perseguido pelas mulheres, é


representado imageticamente pelas modelos esquálidas das passarelas
e páginas de revistas segmentadas, por vezes longe de representar
saúde, mas que sugerem satisfação e realização pessoal e, principal-
mente, aludem à eterna juventude” (BOHM, 2004, p.19).

O preconceito é uma realidade vivida pelas pessoas com sobrepeso


ou obesas entrevistados em vários setores, mas a relação com a mídia a
corporifica. Os trabalhos de Araújo et al. (2018) e Koelzer et al. (2016)
falam sobre o preconceito e o olhar preconceituoso, respectivamente. Ou
seja, os padrões de beleza transitam entre o coletivo e o individual e entre
o público e o privado, pois não se podem descartar as interações sociais
quando falamos em corpo, obesidade e rejeição.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O carrossel de pensamentos encerra temporariamente a sua manobra.


A psicologia, a literatura, o direito, a sociologia, a antropologia e a história

438
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

foram reunidos num giro mágico de saberes. É preciso revisitar as propos-


ta, estratégias desenvolvidas para o enfrentamento da obesidade pelo SUS
(Sistema Único de Saúde) e pelo SISAN (Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional), pois a abordagem da obesidade não se restringe
as práticas alimentares e a diminuição de peso. Pois essas políticas são insufi-
cientes para observar o sofrimento das pessoas ocasionado pela exclusão so-
cial. A cobrança de um corpo magro permeia o consumo, a moda e a mídia
e nas cartilhas do SUS e nas Diretrizes do Sisan essa realidade fica diminuta
diante da sua complexidade e alcance, pois é preciso exigir uma efetividade
das políticas integradas, intersetoriais e entrassetorias para que sejam capazes
de alcançar as diretrizes da dignidade humana. A obesidade para além de ser
um problema de ordem individual vem se configurando como pandemia e
certamente deve ser encarada como um problema social.
O sentimento contundente que se instala nessas linhas finais merece-
ria um título já conhecido pelas mãos do poeta português Fernando Pes-
soa que resta parafraseado: o artigo do desassossego. Afinal sua gestação
nos impinge uma angustia e ao mesmo tempo uma satisfação. A bipolari-
dade das conquistas e os diagnósticos.
Assunto em tela não encontra ainda uma chancela definitiva. E que
seja capaz de tangenciar estudos completos e inquestionáveis em todas as
ordens. O que nos cabe aventar é a abordagem sobre o sujeito através de
sua contextualização.
A psicologia é uma ciência ampla e tendente a fagocitar conceitos
culturais, pois segundo o texto construído o processo de socialização está
diametralmente ligado a cultura do indivíduo. O que é característico e o
que é internalizado, vem de uma interação com os outros. No Direito por
sua vez é preciso ampliar o olhar sobre alguns sofrimentos que não huma-
nizam os processos e que se restringem ao pagamento de indenizações por
danos que nem sempre podem ser revertidos.
São tempos de crise e de revisões conceituais – sejam elas singulares
ou coletivas – melhor dizendo sejam elas individuais ou coagidas pelas
interferências do grupo social ao qual cada pessoa pertence. Encerramos
com as palavras de Machado de Assis no conto A Igreja do Diabo: Espécie
de fábula marcada pela tão peculiar ironia machadiana, conta do dia em
que o diabo resolveu fundar uma igreja, a fim de concorrer com as diversas
religiões. Dizia-se cansado de ser desorganizado, e de ficar com as circuns-

439
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tanciais sobras das diferentes manifestações de fé. Fundando uma igreja,


teria a vantagem de ser única nesse tipo de pregação, ao passo que para
adorar deuses havia várias: "... enquanto as outras religiões se combatem
e se dividem, a minha será única..." Sua doutrina era perfeita: aproveita-
mento de todos os prazeres mundanos. Em pouco tempo, a igreja contava
com milhares de fiéis, fazendo o que bem entendessem. O diabo notou,
porém, que às escondidas, seus fiéis praticavam boas ações. E o mesmo foi
derrotado pela contradição própria da natureza humana. Por fim, o diabo
volta a subir para ter com Deus, acreditando que este estava por trás dos
recentes deslizes de seus fiéis. O conto é finalizado então com palavras
que Deus disse ao Diabo: “que queres tu, meu pobre diabo. As capas de
algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de
algodão. Que queres tu meu pobre diabo. É a eterna contradição humana.

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442
A RESPONSABILIDADE DO
ESTADO NA DISTRIBUIÇÃO DE
MEDICAMENTOS
Pedro Augusto Rufatto Pizzatto83
Eduardo Fin de Figueiredo84

INTRODUÇÃO

No presente artigo será apresentado alguns casos e posicionamentos


dos tribunais superiores, onde, pelo fato do Brasil não oferecer uma ampla
e satisfatória cobertura de medicamentos para toda a sociedade, por força
de dois fatores principais que é o exercício fiscal do país e a dinâmica na
disponibilização dos medicamentos, causando uma série de divergência e
dúvidas com relação ao financiamento para com a saúde pública.
Também será retratado, com base na Vossa Magna carta, que todos
têm direito a um mínimo de qualidade existencial como garantia intrín-
seca a cada ser humano, em respeito à seu valor como cidadão, como tam-
bém, através de uma longa trajetória traçada pela Organização Mundial da
Saúde (OMS), reforçando esse mínimo de garantias, que na maioria das
vezes não é respeitado ou concretizado.

83 Graduando de Bacharel em Direito na Faculdade Mater Dei – Pato Branco/PR. Estagiário


do Ministério Público do Paraná em Coronel Vivida/PR.
84 Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Unicuritiba, Especialista em Direito
Contratual da Empresa e Processo Civil e Direito Civil pelo Unicuritiba, Advogado e professor
universitário na Faculdade Mater Dei.

443
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Posteriormente, será feito um relato do processo de medicamentos


no Brasil, e como é feito esse controle, pois sabemos que em um país que
está passando sequencialmente por gigantes mudanças, existe um extenso
processo burocrático até que se possa ter em disponibilidade nas bancas
farmacêuticas para livre acesso social, o que não ocorre e muitas vidas
acabam ficando pelo caminho.
Já em uma última e não menos importante abordagem, será tratado
a respeito dos posicionamentos exercidos através do Supremo Tribunal
Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, com um contexto voltado
a intervenção do Estado no meio de distribuição desses medicamentos e
qual a responsabilidade do mesmo neste meio, até porque, nem sempre o
direito do povo acaba sendo para o povo, por tamanha burocracia e im-
pedimentos.

1 – Princípios fundamentais relacionados à distribuição


de medicamentos

Os princípios fundamentais relacionados ao direito a saúde, pode ser


elencado em 03 tópicos e também algumas perguntas, ou seja, igualdade
de recursos e igualdade de oportunidades, universalidade dos direitos hu-
manos e titularidade do direito à saúde e sua extensão, os modelos de sis-
tema de saúde – seriam esses os tópicos propriamente ditos, consequente-
mente surgem alguns questionamentos a respeito, ou seja, o que compõe
a universalidade do direito à saúde? Quais são os seus desafios diante das
crescentes necessidades dos indivíduos em uma sociedade cuja concepção
liberal e de escassez de recursos pode reduzir a prestação dos serviços de
saúde?

1.1 - O Direito à saúde

Tem como principal ponto de estudo a sua efetiva distribuição de ele-


mentos que permitam à prevenção da obtenção dessa doença, pois o que
se torna mais benéfico, produção e distribuição efetiva de medicamentos
para prevenções.
Existe uma necessidade de configuração do direito a saúde não apenas
em prol de um público nacional e sim global ao reconhecer que a defini-

444
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

ção de saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), qual seja, o com-


pleto bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças,
depende de condições para o desenvolvimento das pessoas tais como, a
redução da violência, a eliminação da pobreza, a redução do desemprego,
a conservação do meio ambiente, dentre outras questões socioeconômi-
cas. (SENA, 2015); (LAGO; COSTA, 2008).
Diferentemente dos produtos ofertados pelo mercado, medicamentos
compõem um mercado onde existe pouca concorrência entre produtores,
pois é baseado na diferenciação de determinado produto conjuntamente
com um excessivo investimento continuado e de uma vasta continuidade
de pesquisas e desenvolvimento, claro que também resultando em um
bom investimento em marketing. (OLIVEIRA; LABRA; BERMU-
DEZ, 2006).

1.2 – A eficiência na prestação do serviço público

O principal papel dessas instituições na sociedade é reduzir a incer-


teza através do estabelecimento de uma estrutura estável, embora não ne-
cessariamente eficiente, para a interação humana. No âmbito brasileiro, a
orientação doméstica produzirá um conflito normativo em relação às re-
gras do comércio internacional para a política de assistência farmacêutica,
gerando um espaço de inovação na agenda da política pública brasileira.
(LAGO; COSTA, 2008).
A declaração de DOHA de 2001, trouxe uma abertura ao acordo
TRIPs (agrément on trade-releated aspects of intelectual property rights
– acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relaciona-
dos ao comércio), reconhece o direito dos países membros de estabelece-
rem medidas para a proteção da saúde pública, incluindo, em especial, o
acesso a medicamentos. Essa adesão do país ao TRIPs levou a promulga-
ção da Lei de Propriedade Intelectual Brasileira, de número 9.279/96, em
vigor desde 15 de maio de 1997. Esta lei determina que os medicamentos
resultantes de processo de inovação tenham suas patentes protegidas a par-
tir dessa data, se produzidos no Brasil ou não. (LAGO; COSTA, 2008).
Existem regularidades e irregularidades na distribuição de medica-
mentos na rede pública, e isso é algo que interfere na efetividade de um
programa de saúde, porém, um irregular abastecimento resultado em des-

445
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

contentamento da população, podendo gerar ainda problemas gravíssi-


mos. (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006).

1.3 – A dignidade da pessoa humana, existência e vida


digna

Direitos e princípios esses dispostos na Magna Carta, no artigo 1º


bem como em sequência do artigo 5º, sustenta-se a tese de que toda pes-
soa deve deter o mínimo existencial respeitado.
Em junção com o artigo 196 à artigo 200 da C.F, devendo ser ga-
rantido através de políticas sociais e econômicas que visem não apenas a
cura e o tratamento de doenças bem como a prevenção das mesmas. De
acordo com Krell, o TC (tribunal constitucional) Alemão, instaurou a
construção da ideologia do mínimo existencial sob duas premissas funda-
mentadoras de uma interpretação hermenêutica por assim dizer: o prin-
cípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida em sua magnitude
(integridade física e mental). A corte Suprema Alemã, sob essa nova visão,
declarou uma ajuda social – mais conhecida como, Sozialhilfe – baseado
em uma interpretação constitucional prospectiva, ou seja, fundamentan-
do que o Estado obrigatoriamente oferecesse uma contribuição social –
sob o método de transferência de renda – preenchendo a quem fosse de
certa forma “hipossuficiente”, o vazio deixado pelo texto constitucional,
no que pauta sobre os direitos sociais quando influenciado pela jurispru-
dência e a doutrina não apenas de seu país, como também em âmbito
internacional. Pouco após a segunda guerra mundial, Bachof surgiu com
um complemento a essa ideologia de Krell, onde aliava o direito civil e
político ao direito social, ou seja, ligando o mínimo existencial à liberda-
de humana, à um mínimo de segurança social como a saúde, educação e
moradia. (CUNHA, 2015).
A Reforma Protestante também foi fundamental para a consolidação
da visão individualista da sociedade. Conforme ensina Lopes,

A contestação à autoridade da Igreja, a tradução e o livre-estudo da Bíblia


permitiram, além da iniciativa individual, o pluralismo, o relativismo e a
tolerância. A secularização possibilitou, igualmente, que se procurasse não

446
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

mais em Deus, mas na natureza do homem, a ordem do mundo e as respos-


tas a todos os questionamentos. (2001, p.50).

Esse estudo em prol de que o Estado deve produzir tal segurança a


saúde e também gerar resultados, envolve a participação popular, onde
seja efetiva e determinante, auxiliando na orientação aos gestores nas pe-
culiaridades e nas necessidades de cada região. Através dessa participação,
dá-se a oportunidade para uma via política de efetiva transformação social,
no âmbito da saúde brasileira, e a transformação destas condições propicia
as demais alterações solicitadas pelo provo brasileiro através da nossa for-
ma de governo, ou seja, um país democrático. (KÖLLING; MASSAU,
2011) (CAVALCANTE, 2007).
Portando, a necessidade dessa ligação entre Estado – Particular e Par-
ticular – Estado, é resultado que dará concretização do direito à saúde se
coaduna, não por mera “boa vontade” interpretativa, mas à imperativida-
de de conformar a realidade social à ordem constitucional, ou seja, se és
nominado República, então que se realize uma. Podemos até fazer uma
breve passagem ligando a teoria do mínimo existencial, também conhe-
cido como “mínimo vital”, com o papel do Estado voltado aos direitos
fundamentais. (CUNHA, 2015).

2 – A Prestação da saúde no Brasil

O que prioriza o Brasil das demais nações em desenvolvimento é seu


faturamento de aproximadamente 12 bilhões, e faz as empresas transna-
cionais terem interesse nesse mercado gigantesco ofertado. O mercado
Brasileiro tem características oligopólicas onde acabam chamando a aten-
ção à concentração de classes terapêuticas e o domínio de empresas trans-
nacionais. (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006).
Algo que tem sido muito discutido no Brasil, é o superfaturamento
de matérias primas e os abusos nos preços de medicamentos, e isso tem
colocado o papel regulador do Estado de frente com o segmento indus-
trial, porém, não apenas isso, pois a atuação do Estado Brasileiro é justifi-
cável pela existência de inúmeras falhas de mercado no âmbito da saúde,
mais especificadamente, na distribuição medicamentosa, como uma for-

447
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

ma de diminuir e regular os efeitos negativos que recaem sobre a popula-


ção Brasileira.
Também como forma de justificar essa intervenção regularizadora do
Estado podemos citar: mercados concentrados, elevadas barreiras à entra-
da, demanda inelástica, variações nos preços dos produtos e assimetria de
informações. O Estado deveria, além de tudo isso, é claro, beneficiar in-
dústrias farmacêutica através da formação e atualização de recursos huma-
nos que lidam com dispensação e prescrição de medicamentos em farma-
coterapia, isenta do viés comercial hegemônico. (OLIVEIRA; LABRA;
BERMUDEZ, 2006).
Um ponto muito interessante sobre a indústria farmacêutica brasileira
é a existência do chamado “parque público” de laboratórios de abrangên-
cia nacional, onde volta-se sua atividade para a produção de medicamen-
tos primeiramente destinados a programas de saúde pública em assistência
farmacêutica, sob uma visão ampla, esse conjunto de laboratórios públicos
capaz de produzir cerca de 11 bilhões de unidades farmacêuticas por ano,
com 195 apresentações, abrangendo mais de 107 princípios ativos. Essa
produção, representa aproximadamente 3% da produção nacional em va-
lor e 10% em volume equivalente aproximadamente de 10% do total de
compras em medicamentos do Ministério da Saúde (MS). (OLIVEIRA;
LABRA; BERMUDEZ, 2006).

2.1 - A Política nacional dos medicamentos

Fazendo um breve relato histórico, Bermudez, grande destaque na


implementação de políticas de medicamentos essenciais, desde 1964 a
chamada Relação Básica e Prioritária de Produtos Biológicos e Matérias
para uso Farmacêutico, Humano e Veterinário (Decreto n. 53.612/1964).
Já na década de 70, surge ainda a Lei número 5.991/73, que se encontra
em seu regulamento pelo decreto número 74.170/74, discorrendo sobre
o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos far-
macêuticos e correlatos. A criação do chamado Central de Medicamentos
(CEME), pelo decreto 68.806/71, trouxe certo otimismo com sua inicia-
tiva de planejamento, pela sua atribuição voltada à assistência farmacêu-
tica e ao seu abastecimento de medicamentos essenciais à população. A
CEME atuava nos campos de pesquisa e incentivo ao desenvolvimento de

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fármacos, produção, padronização, aquisição e distribuição de medica-


mentos. (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006).
Em 12 de outubro de 1998, a Política Nacional de Medicamentos,
com um intuído de ampliar e diversificar os serviços prestados no âmbito
do SUS, suprir demandas derivadas e afins, também pelo envelhecimen-
to populacional e pressões da sociedade civil pelo cumprimento da vossa
Magna Carta, pela qual, assegura o direito universal a saúde. A PNM,
é considerada como um primeiro posicionamento sobre a questão dos
medicamentos quando falado da reforma sanitária, pois ela foi formulada
com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde e expressa os princi-
pais tópicos para o setor com o propósito de garantir a necessária seguran-
ça, eficácia e qualidade desses produtos.
Em 2000, formou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre
Medicamentos (CPI), que trata sobre a produção publica de medicamen-
tos que identificam diversos problemas, entre eles, diluição do poder de
compra do MS. Laboratórios públicos também acabam sendo envolvidos,
pois sofrem com a falta de flexibilidade e agilidade gerencial, ainda mais
com relação ao recebimento de insumos, o que acarreta em um compro-
metimento em prazos de entregas ou uma drástica diminuição em quan-
tidades preestabelecidas. (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006).

2.2 – O Controle de medicamentos

A C.F em seu artigo 197: “São de relevância publica as ações e ser-


viços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, so-
bre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser
feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou
jurídica de direito privado” – de acordo com o texto do citado, cabe não
somente ao estado sua disponibilização como também a sua regulariza-
ção no meio social dos medicamentos para toda a sociedade, não sendo
somente um texto sobre dever do estado e sim está diretamente ligado ao
capitulo dos direitos fundamentais do ser. (FABRETTI, 2014).
Como a Constituição Federal autoriza a prestação de serviço a assis-
tência à saúde pela iniciativa privada, acaba sofrendo uma extrema regu-
lação estatal, uma vez tal atividade está ligada a um bem essencial (saúde

449
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

e a própria vida em si), gerando reflexos na sociedade como um todo.


(FABRETTI, 2014).
Cita-se uma regulamentação de âmbito constitucional, porém, tam-
bém temos refúgio na legislação infraconstitucional de forma suplementar
através da lei de número 9.656/98 que trata especialmente dos contratos
de planos e seguros de saúde privados até a Agencia Nacional de Saúde
Suplementar (ANS) por meio da lei 9.961/2000 que regulamente espe-
cialmente a ANS, criada para tratar de relações de consumo entre os pla-
nos e seguros de saúde privados e os consumidores, mas com uma visão à
defesa do interesse público sendo sua natureza jurídica de autarquia com
vinculação direta ao Ministério da Saúde. (FABRETTI, 2014).
A partir do momento que essa descentralização de distribuição de ser-
viços ocorre, chama-se de neoliberalismo, ou seja, o Estado nesse momento
passa por uma mutação onde deixa de ter um comprometimento direto com
a economia por meio de privatização, liberação e desregulação fazendo com
que o Estado deixasse de ser um agente intervencionista e passando a ser re-
gulador da ordem social, garantindo assim sua universalização. Como o artigo
170 da vossa Magna Carta deixa explicito em que a iniciativa privada não
tem total liberdade para agir, porém, une a atividade econômica ao exercí-
cio de atividades que sejam benéficas à coletividade, e complementando com
o artigo 174, o estado atuara como poder normativo e regulador, através de
fiscalização, incentivo e planejamento. Todo esse poder regulador deverá ser
exercido com base no princípio da legalidade. (FABRETTI, 2014).

2.3 – O processo licitatório para a aquisição de


medicamentos

O artigo 22 do Código de Defesa do consumidor deixa claro que:

“Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,


permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento,
são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e,
quanto aos essenciais, contínuos. ”

Robert Alexy, deixa uma passagem muito aplicável ao vosso estado


em Madrid no Centro de Estudios Constitucionales: “Os direitos a pres-
tações em sentido estrito são direitos do indivíduo frente ao Estado a algo

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que – se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e se encon-


trasse no mercado uma oferta suficiente – poderia obtê-lo também de
particulares. Quando se fala em direitos sociais fundamentais, por exem-
plo, do direito à previdência, ao trabalho, à moradia e à educação, se faz
referência primordialmente a direitos a prestações em sentido estrito". Esta
mera transcrição não fica apenas presa aos direitos sociais e sim a todos os
direitos a prestações materiais do Estado, e ao que nos interessa, ao direito
à saúde e especialmente ao fornecimento de medicamentos, observa-se
estatisticamente essa demanda, quando aos anos noventa a busca pelo judi-
ciário em prol do fornecimento de medicamentos contra a AIDS e outras
doenças que atentam a vida como câncer, aumentou drasticamente e até
hoje grande porcentagem dos processos é a este respeito, ou seja, um gran-
de questionamento sobre a sindicabilidade, legitimidade passiva dos entes
de direito público entre outras. (GOUVEA, 2006).
Observando a nossa carta Constitucional, mais especificadamente do
artigo 196 ao 200, deixa claro a atuação do Estado na prestação de serviço
à saúde, sendo particularmente o artigo 198 a definição do famoso Siste-
ma Único de Saúde (SUS) – todos esses dispositivos são regulamentados
através da lei de número 8.080/90, pautando sobre a promoção, proteção
e recuperação da saúde e também da organização e funcionamento dos
serviços correspondentes. Vossa magna carta já citada deixando de ter um
esclarecimento mais dedutivo e específico, deixa estabelecido que “garan-
tido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação” – e essa falta de espe-
cificidade e esclarecimento, deixa a encargo da administração a promoção
de todos os reclamos referentes à saúde, sendo total irrealista quanto ao
“acesso universal igualitário”. (GOUVEA, 2006).

3 – O posicionamento dos tribunais superiores no


tocante a distribuição de medicamentos pelo estado.

3.1 - A Judicialização e intervenção estatal

As principais demandas que traziam consigo a discussão do direito à


saúde tiveram seu encontro nas cortes superiores por volta da década de

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

90. A partir disso, no início dos anos 2000, tivemos um aumento exces-
sivo em ações judiciais no mesmo sentido, pelos dados levantados pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2010 tramitavam no Poder Ju-
diciário – estadual e federal – cerca de 240.890 processos. (NETO, 2014).
Como citado o CNJ anteriormente, ele tomou algumas providencias
como por exemplo a criação do Fórum Nacional do Judiciário com o
intuito de monitorar e resolver as demandas de assistência à saúde, este
fórum é regulamentado pela resolução de número 107. Mas qual seria o
objetivo da criação deste fórum? Um dos principais motivos, é a proposi-
ção de rotinas processuais voltadas à organização de unidades judiciárias
especializadas e também interposição de medidas normativas para evitar
conflitos judiciários e a definição de estratégias relacionadas ao Direito
Sanitário. Além de todo esse aspecto do CNJ e do Ministério da Saúde,
diversas ações judiciais que envolvem determinados tipos de medicamen-
tos são ligadas a grupos fraudadores da saúde pública. (NETO, 2014).
É de salientar-se sobre a temática de que a quantidade de demandas
relacionadas a saúde é altíssima, ainda mais no que se refere a doenças que
muitas vezes é desconhecido algum tipo de tratamento eficaz e/ou pre-
ventivo, eis o ponto onde se leva em consideração a hermenêutica flexível
ao se ler na Constituição Federal em seu artigo 198, inciso II, que trata
sobre a integralidade de assistência, porém para não deixar esse dispositivo
tão vago perante fatores como esse, veio à tona a edição da Lei número
12.401/2011, pautando especificadamente sobre a integralidade na assis-
tência à saúde. (NETO, 2014).
Como forma de facilitar todos esses procedimentos, o caráter unifor-
mizador de jurisprudências dos tribunais superiores, criou uma espécie
normativa a ser seguida, fazendo com que o estudo sobre o STJ e o STF é
de essencial importância de estudo. (NETO, 2014).

3.2 - Posição do STJ

A partir de 2000, o entendimento jurisprudencial passou a ter uma nova


forma de interpretação desses casos, principalmente através também de um
mandado de segurança de número 11183/PR28, onde esse mandado impe-
trado no Tribunal de Justiça do estado do Paraná, tratava sobre o fornecimen-
to de um medicamento para combater uma doença neurológica chamada de

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esclerose lateral amiotrófica. De primeira mão a corte do estado denegou sob


o argumento de que a autora deveria apresentar laudos clínicos atualizados
como forma de comprovação de tal necessidade. Percebe-se que nesse segun-
do caso, a análise já se deu diferentemente, o STJ deu uma ênfase muito es-
pecial ao estado de saúde da autora, e ainda em seu voto final ele complemen-
tou com informações advindas pela Associação Brasileira de Esclerose Lateral
Amiotrófica e também pelo Congresso Internacional sobre Esclerose Lateral
Amiotrófica do Canadá, concluindo que realmente aquele medicamento dis-
cutido teria a eficácia desejada no tratamento da doença. (NETO, 2014).
Em constante evolução sempre, em 2009 percebe-se a evolução da
ideia de direito à saúde onde significaria um “direito a tudo”, através de
um mandado de segurança de número 8895/DF, onde foi discutido uma
solicitação ao SUS para que custeasse uma doença rara oftalmológica (re-
tinose pigmentar) em Cuba, de acordo com o autor somente naquele país
havia um tratamento que fosse eficaz para a sua doença. Porém, de primeira
mão, foi dado pareceres onde o tratamento naquele país não seria tão eficaz
quanto o alegado e que o SUS se restringia apenas ao território nacional.
Dessa maneira, observa-se que, por mais que denegado o pedido da
autora, começa a haver um avanço na interpretação dos casos relacionados
a tratamentos de saúde, prestação de serviço do estado em prol das pessoas
que realmente mais necessitam e uma pesquisa mais aprofundada da apli-
cação da norma vigente e o caso em concreto. (NETO, 2014).

3.3 - Posição do STF

Em 2000, uma questão nova chegou a recurso extraordinário de


número 195.192/RS26, que, em sua instancia a quo era tratado de um
menor que portava consigo uma doença denominada “fenilcetonuria”
(doença metabólica), requisitando ao estado do Rio Grande do Sul que
custeasse um medicamento pelo qual era importado dos Estados Unidos,
com êxito a autora teve seu pedido concedido. Já em questão do recurso
extraordinário não foi reconhecido pelo fato da Fazenda Pública Estadual
ter deduzido que o artigo 196 de vossa Magna Carta teria natureza pro-
gramática, não visualizando apenas do mínimo existencial ou da reserva
do possível, como já visto anteriormente, mas pautando que problemas
orçamentários não podem ser obstáculos para a aplicação daquilo que é
previsto na constituição. (NETO, 2014).
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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O que mais marcou o STF, ou melhor, um dos precedentes mais im-


portantes por assim dizer, foi o chamado Agravo Regimento no Recur-
so Extraordinário número 271286/RS30, onde pela primeira vez a corte
demonstrou uma preocupação em tratar a saúde como uma prerrogativa
indisponível. Como primeiro aspecto foi discutido a obrigação solidária
do estado do Rio Grande do Sul, no que cabe ao fornecimento de me-
dicamentos para portadores de AIDS, ou seja, seria feito a distribuição
gratuita de medicamentos para esse tratamento, para paciente que não dis-
pusessem de um setor financeiro para o mesmo. No recurso supracitado,
o município de Porto Alegre até alegou a violação do artigo 167 inciso I
da Constituição Federal, sob o apelo de que cabe ao Poder Executivo a
iniciativa da lei de orçamento da seguridade nacional. O relator da causa,
ministro Celso de Mello, ponderou em sua sustentação o direito à saúde
como direito fundamental, onde por sua razão, enfatiza o dever estatal de
criação de políticas públicas para sua proteção e aplicação. Percebe-se que
o STF adotou a ideia de que o direito à saúde é parte do mínimo existen-
cial e deve ser concretizado pelo poder público. (NETO, 2014).
No julgamento de Suspensão de Segurança número 3073/RN44
onde foi decidido monocraticamente, a possibilidade de cobrar do poder
público que seja fornecido medicamentos experimentais. Em especial-
mente nesse caso em prol do fornecimento do medicamento chamado
Mabithera. Na época até a presidente do STF Ellen Gracie, deu entendi-
mento de uma lesão à ordem pública, tanto pelo custo do medicamento
quanto por não constar na lista oficial de fármacos do SUS. Em seu relato
ainda falou que não estava deixando de lado o artigo 196 da C.F, mas que
o medicamento além de ser de um alto custo e não constar no rol do SUS,
se tratava de um medicamento ainda em estudo. Mas é aí que entra a parte
de judicialização da saúde, por óbvio de estar em experimento não cons-
tará na lista do SUS, mas também não podem ser dispensados por ordem
judicial. (NETO, 2014).

4 - A responsabilidade civil do estado na distribuição


desses medicamentos

De acordo com o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor,


cita-se:

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“Artigo 22 CDC: Os órgãos públicos, por si ou por suas empre-


sas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma
de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo
único: nos casos de descumprimento, total ou imparcial, das obri-
gações referidas nesse artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas
a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste
código.”

Complementando esse disposto com o Código Civil, cita-se o artigo


265: “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das par-
tes”. Ao que concerne ao fornecimento de medicamentos, nota-se que o
STF tem uma relação de obrigação solidária. Ao que se refere a distribui-
ção de medicamentos volta-se para o fato de que uma ou mais pessoas que
estejam precisando, podem requerer judicialmente unicamente de um dos
órgãos públicos ou de todos ao mesmo tempo, quem solicita tem a opção
de escolher aquilo que melhor lhe couber.
Para o Ministério Público Federal, a chamada responsabilidade so-
lidária deve ser levada em consideração apenas quando não existir uma
política pública para uma prestação específica de medicamentos, ou seja,
não estiver previsto em nenhuma lista de competência de nenhum ente.
Já do ponto de vista da OAB, só é levado em pauta quando os órgãos
da federação se esquivam de pacientes com doenças que sejam raras, onde
normalmente, os remédios que servem como tratamento tem um custo
muito alto.
Ao que concerne a Defensoria Pública da União, leva para o âmbito
de que a prestação desse serviço seja de forma mais célere o possível, pois
geralmente processos relacionados a esse fornecimento de medicamentos
tem uma demanda gigantesca o que gera filas e uma demora gigantesca.
Seguindo a conceituação, o doutrinador constitucionalista e ministro
do supremo, Luís Roberto Barroso, no que diz a respeito da solidariedade
passiva entre os entes da federação, ele considera isso como um grande
empecilho administrativo e um gasto desnecessário de recursos, pois o
processo completo passa por três estruturas completas que passam a fun-
cionar, sendo assim, ao que concerne o fornecimento de um fármaco, o
poder Judiciário teria como escopo a tarefa de reconhecer como parte

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

passiva legitima apenas aquele ente que, tem o dever de entregar o bem
jurídico em discussão, o que em casos que houvesse incerteza quanto a
responsabilidade a jurisprudência penderia para a solidariedade. De acor-
do com a Defensoria Pública, não deve ser utilizado da reserva do possível
como forma de restringir o direito a saúde. (OHLAND, 2010).

4.1 - O Código do Consumidor e o uso racional de


medicamentos

Muitas das demandas judiciais hoje existentes não estão diretamente


ligadas a medicamentos básicos e sim a medicamentos que se fazem ne-
cessário na vida de algumas pessoas e que não chegam a seu consumidor
final pois existe uma certa hierarquia na distribuição dos mesmos. No
que tange a esses medicamentos pré-selecionados, tem de se colocar na
balança em que, na falta desses é necessária uma indicação alternativa pela
qual não esteja listada e que venha saciar a necessidade do consumidor.
(SANT’ANA. PEPE. CASTRO. VENTURA, 2011).
Vossa Constituição Federal já deixa estabelecido a partir do seu ar-
tigo 196 que todo cidadão deve ter acesso a saúde e a prescrição médica,
e no mesmo sentido disso a ANVISA através da CP (consulta pública)
de 2012 propôs alterações a respeito do que tange as boas práticas farma-
cêuticas, discorrendo que medicamentos isentos de prescrição médica
estejam sempre a alcance do consumidor, hoje ainda de alcance primário
restrito aos funcionários farmacêuticos. Ai entra um contra posto, pois
se deixar a livre consumo do usuário final do medicamento como um
“self-service” o indivíduo sem a devida orientação de um farmacêutico
poderá utilizar de forma errônea o medicamento e acabar prejudicando
mais ainda a si mesmo, e não é isso que a C.F defende como uma ga-
rantia de todos. Sob isso cita-se o disposto na Portaria do Ministério da
Saúde nº 3916/98:

“O processo indutor do uso irracional e desnecessário de medi-


camentos e o estímulo à automedicação, presentes na sociedade
brasileira, são fatores que promovem um aumento na demanda por
medicamentos, requerendo, necessariamente, a promoção do seu
uso racional mediante a reorientação destas práticas e o desenvol-

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vimento de um processo educativo tanto para a equipe de saúde


quanto para o usuário”.

4.2 - Diálogo das Fontes

Até aqui foi falado em regulamentação pela Constituição Federal, Lei


8.078/90 que é o Código de Defesa do Consumidor, a lei dos planos de
saúde Lei 9.595/98, Código Civil, e as agências da ANS e ANVISA. Po-
demos tratar como um “microssistema”, hora em prol do consumidor
como quanto em prol de argumentos que venham a satisfazer as dúvidas
de falta de medicamentos ou aplicando como uma política de prioridades.
(BEREJUK, 2017. TAVARNARO, 2015).
O mais prático sistema de solução contra a antinomia, seria por cri-
térios cronológicos - “lex posteriori derrogat legi priori” - hierárquico - “lex
superior derogat inferior” - e também da especialidade – “lex especialis derogat
legi generali”.
Dito isto, vem a nomenclatura de apresentação do “diálogo das fon-
tes” no que tange a distribuição de medicamentos, ou seja, em uma época
de pluralismo de interpretações e aplicações, surge a necessidade de uma
coordenação das normas do ordenamento que rege esse meio social, em
busca de um resultado sistêmico jurídico eficiente e justo. Ou seja, evitar
conflitos, mas uma congruência aplicacional das normas, não esquecen-
do seus princípios, valores e objetivos, em prol de adaptação e coerência.
(BEREJUK, 2017. ANDRÉ 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se observar que por mais que o direito a saúde seja um princí-
pio fundamental regulamentado pela Constituição Federal, a distribuição
medicamentosa não é de grande eficiência, e cada dia mais pessoas acabam
perdendo suas vidas por falta dessa prestatividade estatal.
Existe diversas fiscalizações, um sistema burocrático de âmbito gi-
gantesco para que seja distribuído medicamentos, sejam por licitações ou
por medidas judiciais, que como bem sabemos não é nada célere como
deveria ser de fato, mas não existe uma grande importância com relação a
isso, mesmo na emenda constitucional de número 29º não prevê o fim da

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inovação do Poder Judiciário para dar efetividade ao direito fundamental


que é a saúde, em prol do mínimo existencial para o ser humano.
Por fim, o problema não se torna apenas das agências de prestação
medicamentosa ou reguladoras do mesmo, mas sim um problema que
vem lá de traz e afetando cada vez mais o dia a dia. Um conflito de inte-
resses de tamanho porte, deve ser analisado com mais seriedade, pois se a
preservação da vida e saúde humana não é vista como uma prioridade e
sim é deixado como último plano na grade de desenvolvimentos sociais,
como se pode falar de uma revolução econômica ou política social?
Como já estabelecido e comentado em momentos anteriores, o direi-
to vem do povo e deve ser para o povo. Já existe um sistema fiscal extre-
mamente alto no Brasil, desta forma, deveria ser reduzido ao menos para
a área da saúde e medicamentos, pois se estamos falando de saúde é por
que está tratando muitas vezes de uma questão até de morte, e falar de um
assunto que não é tratado como prioridade no país, mas que é regido por
princípios e direitos fundamentais inerente ao ser humano, regulamenta-
do por Direitos Humanos, acaba se tornando como uma hipocrisia estatal.

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460
O ESTADO DE EXCEÇAO NA VISAO
DE GIORGIO AGAMBEN E HANNAH
ARENDT: UMA ANÁLISE JURÍDICA A
PARTIR DA REALIDADE BRASILEIRA.
Amanda Pimentel de Souza85

INTRODUÇÃO

Giorgio Agamben traz em seu livro, Homo Sacer – O Poder Sobe-


rano e a Vida Nua, a diferença e a explicação entre zoé e bíos. A zoé é
vida privada de valor político, é a vida do prazer, do viver bem, essa vida
natural por sua vez é incluída na política e se transforma em Biopolítica.
Enquanto zoé, as vidas eram regidas pelas leis divinas, quando introduzida
na bíos, essas mesmas vidas passam para o controle Estatal e tornam-se su-
jeitos de direitos, direitos esses ocultos, apresentados muitas vezes apenas
em sua formalidade quando existentes. As pessoas nascem não mais como
objetos, mas com cidadãos de direitos, submissas aos ditames do Estado,
pertencem sem pertencer por não se sentirem inclusas no todo ao qual
fazem parte, e a vida nua continua a existir sobre forma de exceção, onde
é incluída somente através da exclusão.
Para Aristóteles, “por milênios o homem permaneceu um animal vi-
vente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um
animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente” (Fou-
cault, 1976, p.127).

85 Bacharel em Direito pela UniFBV Wyden.

461
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A partir desta passagem para a vida política, tem-se a transformação


do Estado territorial para o Estado população e consecutivamente o valor,
ou seja, a importância da vida, da saúde e a sua proteção. Houve, desta
forma, a politização da vida nua.
Vale ressaltar que a vida nua quando incluída na biopolítica passa a
ser também uma vida matável e insacrificável do homo sacer, e a função
desses cidadãos incluídos na pólis é a reinvindicação por ser uma exclusão
inclusiva a procura de direitos, permanece assim, uma verdadeira mata-
bilidade.
Segue a baixo um trecho da Política situe o lugar próprio da pólis,
nexo entre vida nua e política, homem como ser vivente:

Só o homem entre os viventes possui a linguagem. A voz, de fato, é


sinal da dor e do prazer e, por isto, ela pertence também aos outros
viventes (a natureza deles, de fato, chegou até a sensação da dor e
do prazer e a representa-los entre si), mas a linguagem serve para
manifestar o conveniente e o inconveniente, assim como também,
o justo e o injusto; isto é próprio do homem com relação aos outros
viventes, somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo
e do injusto e das outras coisas do mesmo gênero, e a comunidade
destas coisas faz a habitação e a cidade.

O homem passa a ser sujeito do poder político e o que entra em ques-


tão é a vida nua do cidadão, entrando, desta forma, também a democracia
moderna querendo encontrar a bíos da zoé, ou seja, os seus direitos, como
por exemplo, a liberdade e a não submissão. Com isso, entra os estados
totalitários nas sociedades pós-democráticas, havendo uma solidarieda-
de entre democracia e totalitarismo, o nazismo e o fascismo que haviam
feito decisões nas vidas nuas antepassadas permaneceram, mas de forma
pensada, usando da lei e onde também vão querer impor suas leis em uma
democracia em busca pela liberdade e direitos, esses, considerados atual-
mente, humanos. Percebe-se a existência de uma biopolítica totalitária
por conta da vida nua sobre forma de exceção, incluída através de uma
exclusão.

Até que, todavia, uma política integralmente nova, ou seja, não


mais fundada sobre a exceptio da vida nua – não apresente, toda

462
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

teoria e toda praxe, permanecerão aprisionadas em um beco sem


saídas, e o “belo dia” da vida só obterá cidadania política através
do sangue e da morte ou na perfeita insensatez a que a condena a
sociedade do espetáculo. (Agamben, 2007, p.19).

Esse trecho explica a busca pela voz, liberdade, os direitos, respeito,


tolerância, igualdade com a política, não encontrados pela via nua perten-
cente a biopolítica, quando se faz menção a política através do sangue e da
morte, não são os campos totalitários e desumanos nazistas do passado,
mas sim, atualmente, as greves, os protestos, as várias formas de reinvindi-
cações existentes, a desigualdade econômica, racial, de gênero, refugiados,
moradores de ruas e entre outros que se enquadram dentro de uma vida
nua e apenas vivem, tudo em prol de uma política de modo uniforme em
relação a igualdade no que diz respeito a população.
“A lei está fora dela mesma, ou então: eu, o soberano que estou fora
da lei, declaro que não há um fora da lei.” Esse paradoxo explica que nas-
cemos dentro da lei, mas não usufruímos dela em sua forma concreta, o
ser humano já nasce uma exceção. Para um melhor entendimento, segue
retro um trecho do paradoxo da soberania de Agamben:
“Ela é aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual pertence
e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído.”
Explicita as classes excluídas, onde apenas existem, ou seja, são mortos
viventes que nascem cidadãos de direitos, sem ter esses direitos de forma
concreta, é um pertencimento, sem pertencer.
No capítulo que trata do homo sacer, a morte é a regra e quem não
vive esse sacrifício é a exceção, o fora da lei, o vivente de uma vida nua,
pois o caráter da sacralidade liga-se a uma vida humana, na fase arcaica, o
religioso e o penal se fundiam e a condenação à morte era um sacrifício
à Deus. Para uma melhor explanação desses fenômenos sociais, no início
dos decênios XX, surge a “teoria da ambiguidade do sacro”, para tirar
dúvidas a respeito do homo sacer, considerado impuro e qualquer um
podia matá-lo sem cometer sacrilégio, situado entre uma matabilidade
e insacrificabilidade, não pertencente aos direitos humanos e nem ao di-
vino. De acordo com esta linha pensamento, surgi então distinção entre
ambos, o sacro e profano, religioso e jurídico. Para tanto, o homo sacer é
a exceção do sacrifício, da impunidade da matança. “Uma pessoa é posta

463
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para divina” (Agamben,


2007, p. 90).
O fragmento supracitado explica a importância da sacralidade da vida
humana quando na antiguidade existia uma dupla exceção do ius huma-
num e do ius divinum.
Algumas citações se fazem mister para um melhor entendimento, es-
tudo e aplicabilidade do sacratio:

Na exceção soberana, a lei se aplica de fato ao caso excepcional de-


saplicando-se, retirando-se deste, do mesmo modo o homo sacer
pertence a Deus na forma insacrificável e é incluído na comuni-
dade na forma da matabilidade. A vida insacrificável e, todavia,
matável, é a vida sacra (Agamben, 2007, p. 90).

Ambas as vidas se coincidem, cada uma no seu tempo, na divina a


morte para salvação e passando para vida em sociedade, passa a ser um
morto vivente, no sentido figurado, pode-se dizer que um fascismo por
parte do governo, o esquecimento dos vulneráveis, levando assim a morte
mesmo em vida. Atualmente, a vida sacra é uma vida nua incluída na po-
lítica. Fica aqui a teoria da ambivalência entre o profano e o sacro.
Em se tratando de Hannad Arendt e de uma forma breve explanando
uma de suas escrituras, como o Imperialismo, a autora deixa de forma
expressa o problema dos refugiados, também enquadrados nessa vida nua.
Na sua concepção deveriam ser homens de direitos.
Percebe-se, neste sentido, que são pessoas desprovidas de tutela e no
que tange ao pensar de Giorgio Agamben, coincide com o de Arendt por
trata-se de uma vida nua da Zoé, uma vida matável, cidadãos em busca de
direitos não amparados por lei, vida insacrificável e indigna. Em decor-
rência do vazio, surge o direito dos homens e também a inclusão da vida
nua na vida política - Direitos do Homem e a Biopolítica: “As declarações
dos direitos representam aquela figura original da inscrição da vida natural
na ordem jurídico política do estado-nação.” O simples nascimento já o
torna um cidadão de direitos, a vida natural sendo introduzida na bio-
política da modernidade, na antiguidade, a vida natural era pura criação
divina. No que tange Agamben e Hannad, ambos tratam da questão da

464
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

inclusão da vida nua na pólis, permanecendo o cidadão desde sempre um


morto vivente, nada muda neste sentido.
Algumas citações são de suma importância a respeito do capítulo 2 do
Homo Sacer, onde mostra que o direito dos homens ao mesmo tempo que
se mostra dentro, encontra-se fora da política, seguem retro:

Os direitos dos homens que faziam sentido apenas como pressupos-


to dos direitos do cidadão, separam-se progressivamente destes e são
utilizados fora do contexto da cidadania, como suposto fim de repre-
sentar e proteger uma vida nua que vem a encontrar-se, em proporção
crescente, expulsa às margens dos Estados-nação, para ser então poste-
riormente recodificada em uma nova identidade nacional.

Esse trecho faz menção aos povos que perderam sua nacionalidade,
em específico, os Judeus, refugiados para não serem mortos e quando em
outros países tinham que se naturalizar de acordo com a nação no qual
estavam inseridos, os apátridas e fora que teriam que se mostrar dignos da-
quela nacionalidade, por tanto, os direitos dos homens não se fez presente,
e os direitos inalienáveis totalmente desprovidos.
“O estatuto tem que ter caráter humanitário e social, não político.”
Ao mesmo tempo mostra a exceptio da vida nua, como o descontenta-
mento com a inclusão na vida política por falta dos próprios direitos que
lhes são dados.
Por outro lado, em se tratando dos Estados Totalitários, Hannad
Arendt se diferencia um pouco de Agamben. Não há a inclusão da zoé na
bíos. Ela tratou do totalitarismo no segundo pós-guerra e não viu qual-
quer perspectivada de introdução na biopolítica. Arendt, no “O totalita-
rismo”, escreveu um projeto de pesquisa sobre os campos de concentra-
ção, mas permaneceu sem seguimento, o objetivo era a dominação total
dos homens. É factual ser o campo do totalitarismo uma vida nua e não
política, eram cidadãos apenas viventes, desprovidos de direitos e procu-
ravam através desse ideal o reconhecimento dessa política totalitária. Esse
pensamento mudou quando ela se refugiou e começou enxergar o totali-
tarismo sobre uma nova ótica, e, com isso, percebeu a importância da sua
introdução na vida política, onde os povos desprovidos de direitos deve-
riam lutar pela igualdade de esferas.

465
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Vale ressaltar que o totalitarismo difere do despotismo, tirania e di-


tadura, a política totalitária adota receitas ideológicas. No que tange o
capítulo 4 do livro, Totalitarismo, vêm as seguintes explanações:
“Se a legalidade é a essência do governo não-tirano e a legalidade é
a essência da tirania, então o terror é a essência do domínio totalitário.”
Esse instituto não aceita adversários e por meio da violência, exterminam
todos que causam ameaça para o seu governo.
No que concerne a questão dos refugiados tratado por Hannad, onde
eram desnaturalizados e colocados em campos de extermínio caso não
fossem dignos de serem cidadãos, retoma o pensamento supracitado. Se
faz mister explanar que o teor de toda essa abordagem de Arendt se resu-
me, não em desumanidade, terror ou tortura, mas na falta de liberdade,
igualdade, tolerância e respeito que permeia a modernidade e consecuti-
vamente a falta de direitos.
Para finalizar, segue um trecho da Ideologia e Terror que retoma a
explicação anterior:

Uma nova forma de governo. Mas permanece também a verdade


de que todo fim na história constitui necessariamente um novo co-
meço; esse começo é a promessa, a única mensagem que o fim pode
produzir. O começo, antes do homem; politicamente, equivale à li-
berdade dos homens. Initium ut esset homo creatus est – (o homem foi
criado para que houvesse um começo), disse Agostinho. Cada novo
nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós.

Esse trecho retrata o desejo do homem ao nascer se tornar verdadei-


ramente um cidadão de direitos e com plena liberdade e não apenas ter
direitos e viver apenas com um ser vivente, como um nada no mundo,
sem poder de críticas, de querer mudanças, lutar pelo ideal almejado e ter
a sua igualdade garantida, esse é novo começo.

1. ESTADO DE EXCEÇÃO A PARTIR DE UMA LEITURA


DE GIORGIO AGAMBEN.

O Estado de Necessidade é o Estado de Exceção e não pode ter for-


ma legal, mas apresenta-se como tal. Pode ser considerado um ponto de

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desequilíbrio não amparado por lei, com por exemplo, a Guerra Civil, o
Nazismo e a própria resistência.
Os conflitos internos também são considerados um Estado de Exce-
ção por falta de lei, tem-se, desta forma, os protestos, as greves, a inexis-
tência de uma norma reguladora gera este cenário e é onde o Estado entre
em cena. Fica nítido uma terra de ninguém entre Direito Público, fato
político e a ordem jurídica.
Como supracitado, levando em conta a premissa do “Estado nazista”,
Agamben faz uma breve menção:

No dia 28 de fevereiro, Hitler promulgou o Decreto para a prote-


ção do povo e do Estado onde suspendia os artigos da Constituição
de Weimar relativos às liberdades individuais, o Decreto nunca foi
revogado e todo o Terceiro Reich pode ser considerado um Estado
de Exceção que durou doze anos.

Fica claro que toda exceção é uma regra e precisa da população, re-
voluções, guerras e principalmente de resistência pois, participam de atos
não amparados por lei. A greve dos policiais no Estado do Ceará, bem
atual e no ano vigente de 2020, noticiada pelas redes de televisão, é in-
constitucional, ou seja, não é permitida por lei, nem de forma constitucio-
nal e nem infralegal. Esses militares estão certos destas atitudes, onde estão
totalmente desprotegidos e sem a tutela do Estado? Os mesmos querem
um direito não amparado legalmente, para isso, precisa-se de resistência,
mas também da liberdade que o Estado não propicia, no Brasil nunca per-
dura por muito tempo e na maioria das vezes prevalece o que o Estado es-
tipula. No livro, Estado de Exceção de Giorgio Agamben, ele faz menção
a duas analogias referentes ao direito de resistência: “na visão de Giuseppe
Dossetti, prevaleceu a opinião de que era impossível regular juridicamente
alguma coisa que, por sua natureza, escapa a esfera do direito positivo e o
artigo foi rejeitado.” Por outro lado, a “Constituição da República Federal
Alemã, figura um artigo (o art. 20) que legalizava, sem restrições, o direito
de resistência, afirmando que – contra quem tentar abolir esta ordem – a
Constituição democrática – todos os alemães têm o direito de resistência,
se outros remédios não forem possíveis, nesse último caso, prevaleceu o
direito de voz da população, onde o que não for amparado por lei, possi-

467
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

velmente será por meio das revoluções populacionais, brigando por direi-
tos não amparados pelas normas. Será que no Brasil esta resistência per-
dura por muito tempo a ponto de uma greve, protestos e passeatas virarem
Decretos ou até mesmo Lei? A falta de liberdade citada anteriormente e
não resistência, não permitem esta procedência e dependendo da questão,
pode-se falar em até falta de igualdade quando relacionado a classe menos
favorecida, uma verdadeira exceção.
Partindo para outra premissa, no que tange ao Direito Ambiental,
para se tornar eficaz a proteção, prevenção desse meio, o que foi preciso?
Várias Guerras, Revoluções e Resistência. O Meio Ambiente é um assun-
to mundial, um dano causado em um país, pode gerar prejuízo em tantos
outros, ou seja, nenhum Estado pode permitir o uso do seu território para
receber lançamentos de emanações de outro, para isso, em 1941 surgiu o
Trail Smelter Case entre o Canadá e o Estados Unidos, onde ficou decidi-
da esta situação através de arbitragem. Tem-se também o surgimento da
Convenção Quadro no ano de 94 estabelecendo o Princípio da responsa-
bilidade comum, porém diferenciada, em seguida surgiu o Protocolo de
Kyoto e desta forma e com outros ganhos posteriores, o meio ambiente
que era exceção foi virando regra através de Declarações, Convenções e
Tratados. Por que não fazer como a República de Weimar, como cita
Agamben em seu livro, Estado de Exceção, onde estas medidas tempo-
rárias desempenhou um papel certamente mais determinante do que na
Itália, onde o instituto não era previsto explicitamente, ou na França, que
o regulamentava por meio de uma lei e que porém, recorreu amiúde e
maciçamente ao état de siége e à legislação por Decreto, isso quando a se-
gurança pública e a ordem (die offentliche Sicherheit um Ordnung) esti-
vessem ameaçadas. Para tanto, como sistema de governo, uma democracia
representativa e semi presidencial, onde existam as exceções, mas não se
sobreponham as normas, tudo de forma democrática e dando direito a voz
a quem se encontra na exceção, uma ligação entre povo e governo.
Fazendo uma retrospectiva ao mencionado anteriormente, é de suma
importância enfatizar que a greve dos policiais é um estado de exceção
pois, eles não têm tutela nenhuma do Estado, pode ser enquadrada tam-
bém como um grande campo de concentração feito de forma pensada e
democrática, vivendo uma vida nua, onde tentam impor a sua lei, mas essa
lei não existe por inexistência de amparo legal na Constituição, é uma lei

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

sem lei. Por lado, também vivem um verdadeiro estado de exceção, os


moradores de ruas, os refugiados e até mesmo os Estados que passaram por
desastres ambientais, como por exemplo, Brumadinho.
Várias exceções foram supramencionadas, tanto da antiguidade, as-
sim como, em dias atuais. Do ponto de vista humanitário, no passado as
exceções geravam guerras, conflitos internos, mortes e entre outros pois,
eram feitas sem pensar, a humanidade não era preservada, o egoísmo pre-
valecia, e não, o bem-estar social, eram feitas de forma irracional, ou seja,
sem pensar. Vale ressaltar que as menções anteriores ao passado foram ape-
nas para mostrar o poder de resistência daquele povo na luta por um ideal,
mas é óbvio que não serve de “espelho”.
Levando em consideração o Brasil em tempos atuais, percebe-se a
não existência dessa resistência acirrada, a luta por um ideal dura muito
pouco por falta de liberdade, ela não é absoluta, é posta na Constituição
brasileira e é um dos seus direitos fundamentais, trazido em seu art. 5º,
caput
É de suma importância citar a pandemia da COVID-19 em que o
Mundo está sendo acometido e em específico, o Brasil. O estado de ne-
cessidade está comprovado e, em ação, estão entrando as autoridades com
intervenções consideras exceções as regras normativas e algumas sendo
transformadas em Decretos. A tal pandemia do coronavírus virou uma
crise social, onde está trazendo prejuízo não só para a saúde, mas para o
comércio e entre outras áreas, especialidades. O direito à liberdade foi
proibido de forma racional e pensada, tudo para preservar a dignidade da
pessoa humana, um dos princípios fundamentais da Lei Maior do orde-
namento Brasil. Um exemplo claro e imposto pelo governo brasileiro: a
proibição dos voos internacionais, a população se manter em casa, escolas,
faculdades públicas e privadas fechadas, audiências e eventos suspendidos,
um total estado de calamidade social, afetando a todos de forma geral e
sem escolher classes, como sociais (nível social), homoafetivas, de raça,
cor, idade, religião, e assim por diante. É nesse sentido que a Constituição
traz em um dos seus objetivos fundamentais, o art. 3º, in verbis: “Pro-
mover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.
Com essa linha de pensamento, percebe-se o próprio estado de ex-
ceção sendo concretizado em sua materialidade não pela população, mas

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

pelo Governo pois, até eles estão sendo acometidos, estão vivendo o dra-
ma real em sua forma material, ou seja, também estão sendo prova viva
da situação crítica do país, onde está ganhando respaldo como esse cená-
rio, a prevalência dos direitos humanos, a igualdade, todos estão tendo o
mesmos tratamentos, independente de recorrerem a hospitais públicos ou
particulares. A prevenção está sendo aplicada através do estado exceção,
das diversas proibições estipuladas, gerando até multa em certos casos o
não cumprimento. Caso a situação não seja controlada, tanto os hospitais
públicos, assim como, os particulares, não vão suportar a demanda, por
isso ser melhor a prevenção abdicando de certos direitos trazidos por lei,
do que a reparação, essa sim, caso aconteça, será crucial, o fim, a arruina-
ção das vidas.
Como se tem uma “Lei Maior” para o controle populacional, para que
não haja algazarras, e o contexto crítico é mundial, pode-se recorrer a ex-
ceção através do objetivo fundamental específico que é a solidariedade, nas
suas relações internacionais, a defesa da paz, solução pacífica dos conflitos
e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. O quadro
é geral, os governantes estão vivendo de forma real e não virtual, por isso,
estão agindo muitas vezes por exceção, onde na verdade, o povo é que age
nesse sentido, na busca por direitos pois, são vistos na maioria da vezes de
forma virtual, e no contexto atual a prevalência é do bem comum, para to-
dos, princípio da igualdade de direitos aplicado de forma razoável.
Agamben também cita em paradoxo formulado por Schimitt, onde
se encaixa no pensar:

A situação, que vem a ser criada na exceção, possui, por tanto, este
particular, o de não poder ser definida nem como uma situação de
fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre estas
um paradoxal limiar de indiferença. Não é um fato, porque é cria-
do apenas pela suspensão da norma; mas, pela mesma razão, não é
nem ao menos um caso jurídico, ainda que abra a possibilidade de
vigência da lei.

Esse contexto explica o desencantamento de Schimitt com a reali-


dade e afirma que o fato só é concretizado quando virá norma, antes não
pode ser definido como fato por já ser uma exceção, e a exceção é tudo

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

que está fora, e fora do ordenamento, apenas pertence quem não tem di-
reito, e se não tem direito, não se tem fato para exprimir e normatizar.
Partindo para outra premissa, exemplo, a população carente, os mora-
dores de rua, os negros, a classe homoafetiva, citando também, a liberda-
de religiosa que está sendo impactada na contemporaneidade ainda forma
expressiva. Todos esses gêneros supracitados se encaixam no pertencer a
uma sociedade sem ser incluso, ou seja, nasce e vive sem ser incluído, mas
que pode vir a ser incluído através da exceção. “Ela é aquilo que não pode
ser incluído no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto
no qual está desde sempre incluído.” (Agamben, 2007, p.32). Os mora-
dores de rua citados anteriormente, é um exemplo nítido, apenas nascem
e vivem, não têm direitos pois, vivem uma exclusão e não sabem lutar por
seus direitos por falta de informação, subsistem de forma indigna, a ten-
dência é a crescente taxa de natalidade desse tipo de classe, acham normal
a vida vivida de forma precária, a culpa será do governo ou da geração que
vai se proliferando no tempo? O que fazer para tornar essa massa inclu-
siva? Existem políticas inclusivas para essa questão? É certo que a CF/88,
em seu art. 5º, inciso III, expressa que ninguém será submetido a trata-
mento desumano ou degradante, mas essa frase mencionada é formal, a
sua aplicabilidade deixa a desejar em alguns campos, essa população de rua
não vive de forma digna, onde fere de forma concreta a dignidade da pes-
soa humana. Esse conjunto de pessoas excluídas vive o que Badiou define
de: “excrescência, um termo que está representado, mas não apresentado,
(que está, assim, incluído em uma situação sem pertencer a ela), singu-
lar um termo que está apresentado, mas não representado.” (Agamben,
2007, p.31). Pode-se definir como uma vida nua, sem rumo e sem dire-
cionamento. Atualmente, o prefeito Geraldo Júlio86 colocou em ação um

86 No dia 24/12/2019 foi inaugurado um Abrigo Noturno Irmã Dulce para população em
situação de rua do Recife, fica no bairro de São José, área central do Recife. Prefeito do
Recife em seu segundo mandato, Geraldo Júlio é administrador formado pela Universidade
de Pernambuco, com especialização em gestão pública pela mesma instituição. Ingressou
no serviço público como concursado do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco em
1992. Trabalhou nos governos de Miguel Arraes e Eduardo Campos. Foi o responsável pela
implantação do Hospital da Mulher do Recife - o primeiro hospital construído pela Prefeitu-
ra do Recife -, dos Centros Comunitários da Paz (Compaz), do programa Robótica nas Escolas
e do Hospital Veterinário do Recife. Disputou eleição pela primeira vez em 2012, tendo sido
eleito prefeito do Recife no primeiro turno. Em 2016 foi reeleito com a maior votação da

471
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

projeto para moradores de ruas, terão onde dormirem e onde realizarem a


higienizaçao. Pensando como Bondin, ele faz uma contraposição ao menu
people, afirma que: “a sabedoria aconselha excluir o poder político.” Essa
propriedade irá atender a função social relativamente e as necessidades fi-
siológicas e de segurança dessas pessoas também de forma parcial, atitude
excelente do prefeito, mas o que essa população precisa para fazer parte da
sociedade, desse todo que faz parte sem está incluso, é a educação, onde
vem expresso na CF, em seu art. 5º.
Esse mesmo Diploma traz consigo o art. 6º, onde menciona o traba-
lho e a assistência aos desamparados.
Diante do supramencionada, ficam claras as melhoras formas desse
mínimo fazer parte de todo o conjunto de forma igualitária e com o res-
paldo constitucional, formas inclusivas e não paliativas, dar prevalência a
informação, tornar essas pessoas capazes de viverem de forma isonômica
e não apenas sobreviver como um nada pertencente a um Estado e onde
nunca será seu, vivendo, dessa forma, sempre na exclusão, na desigualdade
social, submissa ao ditames estatais e sem liberdade de expressão por não
saberem lutar por seus direitos. Dessa forma, nunca saberão da existência
do Princípio da Igualdade, da Liberdade, que o Brasil é uma democracia,
ensejando o direito voz. Falta o olhar humano, neste sentido, para essa
classe e para as outras supracitadas, acarretando a prevalência dos direitos
humanos, muito em alta em tempos atuais, mas não em sua totalidade
pois, no Brasil, nada é absoluto e sim relativo, até quando? Não se pode
mensurar.
Com isso, fica nítido que, difícil é quem vive a realidade, fácil é para
quem enxerga de forma virtual. O governo enxerga uma situação como
se estivesse por trás de um computador, mas não a vive de forma material.
Por tanto, a população pobre, assalariada ou que ganha até dois salários
mínimos, normalmente esse grupo é quem luta pelas omissões das leis,
assim como, a classe homoafetiva, população negra, refugiados e entre ou-
tros. Essas classes vivem uma verdadeira inclusão exclusiva, a lei põe um
direito e ao mesmo tempo tira.

história do Recife. (Prefeitura da Cidade do Recife).

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto nos capítulos anteriores, percebe-se que a necessi-


dade tem virado fundamento em decorrência dos acontecimentos atuais,
estado de necessidade se transformando em estado de lei. A modernidade
está conseguindo tirar essa intercessão que há entre direito público e po-
lítica, onde a exceção se encontra neste interstício, estes dois conjuntos
estão se unindo e formando apenas um, onde todos os elementos encon-
tram-se dentro de forma igualitária. Dessa forma, o estado de exceção se
tornará a própria lei, a exceção se tornará justiça. Os movimentos totalita-
ristas que é um estado de exceção, voltando-se ao passado, como: guerra
civil, a insurreição, a resistência. No decorrer do século XX aconteceu
uma guerra civil legal, uma espécie de totalitarismo moderno, guerra essa
sangrenta onde vários adversários políticos foram eliminados, assim como,
cidadãos contrários aos ditames. A partir de vários desses contextos de
estados de necessidades acontecidos na antiguidade e anterior a CF/88
e vem se tornando atualmente estado de emergência com a participação
democrática, mas não de forma irracional como no passado.
Vale ressaltar que em tempos modernos esse estado de exceção não é
um direito de guerra, é um vazio, uma falta de direito suportada por um
caos, esse caos surge pela falta de lei, onde há também exclusão, mas a ex-
ceção jamais suspenderá a norma ou se colocará acima. De forma racional
e pensada, a exclusão só procura a inclusão com o desejo de que vire regra
e talvez até lei em seu sentido formal e tenha a sua aplicabilidade no seu
sentido material, a intenção não é se sobrepor, mas se igualar, a procura é
pela uniformidade das regras.
O Brasil vive um estado de calamidade pública, onde teve que agir
muitas vezes por exceção nessa crise pandêmica em que o país se encontra.
Várias atitudes impostas pelo governo foram feitas de formas excepcionais,
percebe-se, nesse sentido, as autoridades fazendo da exceção à regras, re-
gras essas com força de lei sem ser lei, tudo para a proteção de um ideal
que é a vida, também um direito fundamental que vem de forma expressa
no art. 5º da CF. Não existe normalidade sem exceção, nem exceção sem
normalidade, uma complementa a outra, mas o patamar da uniformização
entre ambas traz a indiferença. É neste aspecto que o estado de exceção se
faz necessário, o seu espaço, mesmo não sendo legal se faz necessário pois,

473
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

o que caracteriza o excluído é a exceção, para tanto, ela não precede e nem
suspende a ordem, mas é na verdade o que foi colocado pra fora mesmo
estando dentro.
No que concerne a Schmitt, Agamben se volta muito para ele em seu
Livro Estado de exceção, e Schimitt diferencia anarquia e caos do estado
de exceção, afirma ter sentido jurídico e ordem mesmo não sendo uma
ordem jurídica e na verdade ele deseja fazer um paralelo entre essas duas
esferas, estado de exceção e ordem jurídica. Nesse contexto, se a suspen-
são da Constituição quanto a aplicabilidade for permitida sem deixar de
vigorar, fica evidenciado a exceção concreta. O Brasil está passando por
isso, onde o direito de ir e vir foram suspensos, mas não que a constituição
vá deixar de vigorar, presos tendo prisões relaxadas de forma temporária
por se enquadrar no quadro de risco, fechamento do comércio, e a liber-
dade? Tudo é constitucional e estão sendo retirados, aplicados de forma
concreta através da exceção, mas não que o nosso ordenamento vá deixar
de vigorar, mas o estado de calamidade pública em que o país se encontra
enseja muitas vezes medidas restritivas muitas vezes em detrimento à CF,
é o agir por exceção, onde a norma é anulada de forma provisória, com
isso, percebe-se o entrelaçamento do estado de exceção entre a norma e
a decisão.
Dessa forma, fica demostrada duas vertentes, a primeira no que diz
respeito ao Estado, o agir com extrema emergência, muitas vezes utili-
zando a exceção e a transformando em regra, tudo para garantir o bem
comum. O estado de extrema urgência e necessidade se faz presente e
entra em cena como um instituto do direito através da exceção, deixando
o direito de lado para que seja aplicada a exceção, ou seja, direitos concedi-
dos pelo ordenamento, mas retirados ou restringidos de forma temporária
para a prevenção de toda a população a brasileira, um exemplo nítido, que
é fato está acontecendo não só no Brasil, mas no Mundo, a proteção à
vida, onde se fez presente devido a pandemia do CODID-19. Com isso, o
estado de exceção afasta a norma para tornar possível a sua aplicação. Caso
essas exceções venham trazer benefícios para a população, muitas delas
poderiam virar regras permanentes. No livro, O estado de exceção, Gior-
gio Agamben, a primeira Guerra Mundial coincide, na maior parte dos
países beligerantes, com um estado de exceção permanente. No dia 02
de agosto de 1914, o presidente Poincaré emitiu um decreto que colocava

4 74
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

o país inteiro em estado de sítio e que, dois dias depois, foi transformado
em lei pelo Parlamento. O estado de sítio teve vigência até 12 de outubro.
A segunda vertente abrange os excluídos de forma geral, considerados
apenas seres viventes, onde pertencem sem pertencer, nascem e fazem
parte de um todo ao qual não pertencem. São considerados cidadãos de
direitos, mas não vivem esse direito e precisam ser incluídos através da
exclusão, vivem muitas vezes uma vida indigna e uma verdadeira mata-
bilidade, uma vida nua onde tem direito sem ter, agem por exceção sem
nenhuma proteção estatal, é uma agir na busca por direitos para o preen-
chimento de um vazio jurídico. O estado de exceção aqui não se relaciona
com a violência imposta na antiguidade, exemplo, ditadura. Agabem cita
em seu livro, Estado de Exceção, o caso do Estado Nazista:

Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a prote-


ção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição
de Weimar relativos às liberdades individuais, o decreto nunca foi
revogado, de modo que todo o Terceiro Reich pode ser considera-
do, do ponto vista jurídico, com um estado de exceção que durou
doze anos. Um totalitarismo com a eliminação física dos adversá-
rios políticos e cidadãos que não o seguissem.

Para tanto, essa ordem supracitada é ultrapassada, as lacunas do di-


reito devem sim ser preenchidas, mas não de modo antidemocrático, a
proteção da democracia é primordial e é regra.
A proposta é fazer com que os seres humanos deixem de ser apenas
seres viventes e submissos aos ditames do Estado, para Agamben, o ideal é
acabar com essa máquina biopolítica por ela ser a impulsionadora da vida
nua, com isso a satisfação das necessidades se torna imprescindível. Do
ponto de vista lógico, a imersão da exclusão na política de forma material
é o primeiro passo para a igualdade social, a formação de um único con-
junto onde todos são vistos de forma horizontal, onde essa igualdade e essa
liberdade trará críticas relevantes, mudança de cenário para os caos exis-
tentes através das criatividades, mudanças tanto no âmbito cultural, edu-
cacional, social, jurídico e político. O intuito é a obtenção de um governo
mais presente e uma população mais participativa, ouvida, com direito
voz e bem informada da situação do país em todos os níveis e a prevalência
da transparência.

475
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua


I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti.


São Paulo: Boitempo, 2004.

ARENDT, Hannad. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto


Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

476
CRISE DE REPRESENTATIVIDADE:
REFORMA POLÍTICA
Jeazi Almeida de Sousa

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por finalidade analisar objetivamente os as-


pectos históricos e jurídicos relevantes da crise na representatividade no
poder legislativo e também quanto a reforma política, abordando as alte-
rações na votação, havendo destaque nos fatores negativos que decorrem
desta modificação, além de facilitar a compreensão do desenvolvimento
da deliberação de candidatos, partidos ou, coligações.
A Reforma Política é um assunto que deve ser abordado para a so-
ciedade com clareza e objetividade, pois, está vinculado diretamente ao
exercício da cidadania, especialmente quanto ao direito de votar e ser vo-
tado. Atualmente, a mera conveniência eleitoral presente nos partidos e
coligações tem influído fortemente a população a manifestar-se seja por
meios de abstenção de votos ou protestando a partir do voto em um candi-
dato cuja capacitação não corresponde com a demanda real no eleitorado.
A ferramenta utilizada para a produção científica foi a documenta-
ção de dados a partir da seleção de autores que trataram do tema com
pertinência atingindo o objetivo defendido em tese neste artigo, sendo
predominante a pesquisa bibliográfica, havendo então a organização do
material documentado e das análises registradas em relatório de pesquisa
como componente do estudo que se pretende construir.
No primeiro capítulo, para análise contextual, é necessário entender
que uma das reformas políticas mais importantes para a história brasilei-

477
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

ra passou pela redemocratização e, consecutivamente, a promulgação da


Constituição de 1988 em que havendo a eleição indireta de José Sarney
para presidente da República consolidam-se os direitos e garantias fun-
damentais e direitos civis e políticos sendo marcado pelo fim da ditadura
militar.
No segundo capítulo, no entanto, apesar da elaboração de uma Cons-
tituição com fins programáticos que preservam um espírito democrático
ainda houve uma manutenção da tradição política predominantemente
clientelista, fisiologista e nepotista que colocou e ainda o faz que a repre-
sentatividade política entre em crise tornando escassos os meios necessá-
rios a existência de um governo para o povo.
No terceiro capítulo, considerando tal realidade que o trabalho pro-
duzido aborda sinteticamente as características gerais do funcionamento
quanto à votação em partidos, assim como sobre a formulação de listas
abertas e fechadas conforme a conjuntura situacional do quadro eleitoral
enfatizando a respeito da organização interna destes órgãos e sua impor-
tância para a seleção de candidatos que coadunem com seus ideais políti-
cos facilitando os consensos programáticos.

1. CONTEXTO HISTÓRICO – REDEMOCRATIZAÇÃO

O processo de redemocratização no Brasil é algo que não possui data


definida, mas, que é possível delimitar períodos a ponto que satisfaça o ob-
jetivo do presente artigo que pretende abordar a partir de meados de 1974
com o governo do general Geisel. Ora, o governo militar possuía tanto
características de autoritarismo como também preservava alguns traços do
regime democrático como defende Maria D’Alva G. Kinzo, Professora do
Departamento de Ciência Política da USP:

Por outro lado, tratava-se de uma situação que manteve em


funcionamento os mecanismos e os procedimentos de uma
democracia representativa: o Congresso e o Judiciário conti-
nuaram em funcionamento, a despeito de terem seus poderes
drasticamente reduzidos e de vários de seus membros serem
expurgados; manteve-se a alternância na presidência da Repú-
blica; permaneceram as eleições periódicas, embora mantidas

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

sob controles de várias naturezas; e os partidos políticos conti-


nuaram em funcionamento, apesar de a atividade partidária ser
drasticamente limitada. Em síntese, era um arranjo que com-
binava traços característicos de um regime militar autoritá-
rio com outros típicos de um regime democrático. (KINZO,
MARIA D'ALVA G., 2001)

Em termos de instituição política sempre houve instabilidades


para a instauração do regime militar, que no início de sua atuação
favoreceu a situação econômica do país nos três primeiros anos redu-
zindo a alta taxa de inflação que se apresentava na época, o chamado
milagre econômico. No entanto, passou a apresentar disputas inter-
nas quanto ao poder político o que gerou várias crises na gestão de
um governo autoritarista.
Então, a partir de 1974 com o governo Geisel é possível perceber tra-
ços mais latentes de uma redemocratização constantes na valorização das
eleições legislativas com seus sinais de liberalização política, além do con-
flito interno dentro das forças armadas caracterizado pela oposição militar
a abertura do regime político e continuidade da política de distensão e
processo sucessório. E, por fim, a crise econômica pautada numa política
de expansão econômica como resposta a primeira crise mundial de pe-
tróleo que gerou grandes empréstimos a países estrangeiros no governo
Geisel e que aumentou a inflação na época, o que gerou, então, uma res-
posta no Governo de Figueiredo para controlar a situação resultando em
aumento da taxa de desemprego.
Prosseguindo as novas eleições de 1982, com o avanço no processo de
liberalização, novos partidos foram criados, governadores estaduais foram
eleitos pelo voto direto, assim como o partido PMDB ganhou notoriedade
parlamentar fazendo oposição ao governo militar que estava no comando
do processo político até então. O período de 1982 a 1985 é marcado pelas
“Diretas Já” cuja pressão popular foi apoiada e incentivada também pelos
partidos de oposição como um meio de legitimar o voto direto através de
emenda constitucional, o que não logrou êxito devido à forte influência
do governo militar. No entanto, alternativamente, o PMDB logo lançou
a candidatura de Tancredo Neves que com apoio de alguns parlamentares
dissidentes do governo e a força popular alcançada com as “Diretas Já”

479
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

derrotaram o candidato do governo militar, possibilitando uma abertura a


avanços legítimos e representativos na política.
A eleição de Tancredo Neves para presidente e José Sarney como seu
vice marcou a Nova República a partir do restabelecimento do gover-
no civil, apesar do falecimento repentino do presidente. O Plano Real
foi uma das principais medidas para a estabilização econômica, além da
intensificação da democratização, especialmente, com o amplo direito
de voto e organização política e, principalmente, com a promulgação da
Constituição de 1988.
Segundo, ainda, Maria D’Alva Kinzo, cabe destacar características
importantes deste período político quanto as eleições de 1989:

A eleição de 1989  ­-  quando 72 milhões de eleitores foram às


urnas para eleger o presidente da República ¾ finalmente en-
cerrou a terceira e última fase da transição brasileira. A posse de
Collor marcava, simbolicamente, o final de um longo e compli-
cado processo de transição democrática. Porém, os desdobra-
mentos políticos que se seguiram demonstraram que a demo-
cracia emergente teve ainda que passar por vários testes antes
de chegar na presente situação. Entre os fatos marcantes que
tornaram o período uma sucessão de crises econômicas e polí-
ticas, alguns merecem destaque:

- as drásticas medidas econômicas do Plano Collor decretadas no


dia seguinte à sua posse - políticas que, apesar de sua radicalidade
em interferir arbitrariamente na poupança popular e investimentos
financeiros e em promover ampla liberalização comercial, logo se
mostraram ineficazes para conter a crise, levando à rápida erosão
do apoio popular do primeiro presidente eleito pelo voto direto;

- impeachment do presidente Collor em 1992, resultante de sérias


denúncias de corrupção, seguidas por uma expressiva mobilização
popular e da ação decisiva do Congresso Nacional em solucionar
a crise política;

- ascensão à presidência do vice, Itamar Franco, cuja liderança


vacilante contribuiu ainda mais para agravar a incerteza política e
econômica no país;

480
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

- realização de um plebiscito, em 1993, para definir se o país conti-


nuava presidencialista ou adotava o parlamentarismo como sistema
de governo;

- tentativa de revisão constitucional em 1994, que se arrastou por


meses e praticamente nada alterou, embora a necessidade de al-
gumas mudanças constitucionais fosse demanda de muitos setores
políticos;

- a famosa CPI do Orçamento, que pôs a público a deslavada prá-


tica de corrupção de alguns membros da Comissão de Orçamento
do Congresso;

- implementação, em 1993-94, do Plano Real - um arrojado pla-


no de estabilização econômica que finalmente conseguiu driblar a
inflação;

- eleição presidencial de 1994, que acabou se transformando num


plebiscito sobre a política econômica do governo, elegendo assim
Fernando Henrique Cardoso - arquiteto do Plano Real;

- sucessão de crises econômicas no mundo afora  ¾  México em


1995, Ásia em 1997, Rússia em 1998 - cujo impacto no Brasil qua-
se enterrou os esforços de estabilização do Plano Real e a popula-
ridade de Fernando Henrique Cardoso;

- realização, em 1998, sob o impacto da crise russa, da terceira


eleição presidencial, cujo desfecho foi a recondução de Fernando
Henrique Cardoso para um segundo mandato presidencial. (KIN-
ZO, MARIA D'ALVA G., 2001)

A intensa repressão promovida pelo regime militar conjuntamente


com a ação de partidos de oposição que além do interesse político che-
garam a atuar com representatividade ao ponto de abarcar movimentos
populares para aquisição de direitos e garantias fundamentais mostra que a
participação social na reivindicação de direitos políticos e manutenção da
ordem constitucional são os pilares principais para estabelecer a redemo-
cratização. Assim como se almeja um amadurecimento social nos tempos
atuais quanto a realidade precária dos partidos que estão envolvidos em
corrupção maculando e regredindo no processo institucional da demo-
cracia republicana.

481
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

2. SOCIEDADE E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL –


DEMOCRACIA

Após um longo processo de transição de um governo sob regime au-


toritarista para um regime democrático é notável que houve diversas con-
quistas fundamentais sob a perspectiva de uma aplicação de democracia
que não apenas funciona formalmente, porém, é vivida e praticada pela
sociedade no pleno exercício de seus direitos políticos. Tal qual se viu no
movimento das “Diretas Já” com uma conjuntura de interesses partidá-
rios e movimentos sociais.
No entanto, outros fatores devem ser considerados para avaliar a fra-
gilidade do processo de democratização plena, os quais foram abordados
anteriormente neste trabalho, mas, precisamente entre as décadas de 1970
e 1980 com as crises enfrentadas em cada governo. Ainda assim, a estru-
tura social brasileira mudou radicalmente após décadas do golpe militar
se tornando cada vez mais capitalista, estando inserida em um contexto
de avanço tecnológico, da informação, globalização entre outros que in-
terferiram diretamente na realidade política da época, como descrevem
Marilena Chauí e Marco Aurélio Nogueira:

Ao longo dos quarenta e poucos anos que o foram afastando do gol-


pe de 1964, o Brasil globalizou-se. Não somente aprofundou sua
inserção subordinada no mercado mundial, como também se co-
nectou ao mundo e se tornou mais condicionado pelo que acontece
no mundo. Passou a compartilhar os principais traços da época: a
mundialização das relações sociais, econômicas e políticas, a inter-
conexão global, a frenética mobilidade dos capitais, a financeirização
e a transnacionalização das economias, a segmentação e a expansão
da oferta de produtos, a perda de soberania por parte dos Estados, a
irresponsabilidade dos mercados, a crise da regulação e dos mecanis-
mos de financiamento do setor público, e assim por diante. Todos
esses fatores podem ser, sem dificuldade, associados a um quadro
geral (nacional e internacional) de turbulência, imprevisibilidade e
"descontrole", que teve extraordinário impacto sobre o político e a
política, atropelando governos, sistemas e partidos. (CHAUI, Ma-
rilena  and  NOGUEIRA, Marco Aurélio, 2007)

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

A intensa transformação social propiciada pelas relações sociais na-


cionais e internacionais, assim como a vivência presente das crises eco-
nômicas e políticas inseriram o processo político brasileiro em descrédito
pela sociedade. A globalização permitiu o subjetivismo social em que se
vive a própria realidade com seus obstáculos ao mesmo tempo em que se
conhece o que se passa em um outro contexto estrangeiro.
Esse processo de individualização social abstrai a identidade do indi-
víduo como ser social, cultural e político. Os avanços tecnológicos que
produzem alterações drásticas nas relações de trabalho e afins. Tais fatores
produzem o efeito de interferir diretamente em como o cidadão interage
com o Estado democrático. Ainda a considerar a ampliação do capitalismo
e, consequentemente a acentuação da pobreza e desigualdades sociais que
fragilizam ainda mais a consolidação da democracia e dificultam a efetiva-
ção da cidadania e seus direitos políticos.
Assim pontua Maria D’Alva G. Kinzo:

Vale lembrar, em primeiro lugar, a questão social, isto é, o pro-


blema da pobreza e da desigualdade. Não resta a menor dúvida
de que extremas desigualdades sociais são um fator que constran-
ge a consolidação da democracia, especialmente no que se refere
è efetiva participação política de todos os cidadãos. Os elevados
índices de pobreza e de concentração de renda no Brasil são um
legado do passado que os governos pós-regime militar não tor-
naram menos agudo, a despeito de avanços na área da educação.
Em segundo lugar, há problemas referentes à representação políti-
ca e ao processo de decisão democrático. A estrutura institucional
brasileira possui vários aspectos que dificultam o funcionamento
do sistema democrático-representativo.  Entre eles, vale destacar
a tão debatida questão partidária, que se resume na existência de
um sistema partidário que é, por um lado, altamente fragmenta-
do e, por outro, pouco nítido no que tange às opções oferecidas
ao eleitor no processo eleitoral. Trata-se de um contexto político
que dificulta enormemente a capacidade do eleitor de fixar as le-
gendas, distinguir quem é quem na competição e criar identidades
partidárias. Quanto à questão da representação política, este é um
contexto que possibilita a eleição de representantes pouco com-
prometidos com seu partido e com os eleitores que os elegeram,

483
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

mesmo porque muitos se elegeram com os votos excedentes dos


candidatos mais votados, os quais podem ser de um outro partido
pertencente à coligação eleitoral. (KINZO, MARIA D'ALVA G.,
2001, grifos nossos)

E necessário entender que o gozo dos direitos políticos é algo que deve
ser amplamente explorado pelos partidos que representam interesses diver-
sos, mas, que também esteja na consciência social do indivíduo que compõe
o Estado Democrático. Se os fins almejados pelas coligações partidárias não
estiverem alinhados as necessidades e precariedades sócias, então, não há
democracia. Assim como se não há uma pauta esclarecedora com a qual o
cidadão se identifique, este estará mais sujeito a indiferença política.
É interessante compreender como os mesmos mecanismos da política
tradicional ainda operam na atualidade em que os “representantes” polí-
ticos satisfazem os próprios interesses ratificando ainda mais um sistema
corrupto que desvaloriza o cidadão brasileiro subjugando a uma realidade
em que a educação, a saúde e a qualidade de vida como um todo não são
acessíveis. Então, é necessário quanto a participação popular que haja mais
engajamento nas questões sociais como defendido no sistema programáti-
co da Constituição Federal de 1988 e, portanto, mais criticidade nas pau-
tas partidárias em coerência com as demandas do povo, ainda atentando a
necessidade de uma reforma política em que os partidos possuam repre-
sentantes mais responsáveis com os objetivos do partido além de ser algo
mais coerente e claro para a sociedade que irá estabelecer uma identidade
partidária e assim exercer sua cidadania com plena consciência.

3. REFORMA POLÍTICA QUANTO A VOTAÇÃO

Quanto aos parâmetros definidos para a votação, compreende-se que


é proporcional e consiste na deliberação do eleitor em votar no partido
ou, coligação que terá estabelecido uma lista contendo os candidatos aptos
para os lugares em disputa. Em suma, não há individualização dos votos
para determinados candidatos quando se trata da distribuição das vagas em
disputa, pois, havendo uma repartição favorável destas para os candidatos
elencados na lista será sempre destinada a coligação ou, partido que os
escolheu.

484
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Atualmente, a lista formulada por tais partidos possui caráter aberto,


definindo os candidatos a partir da ordem decrescente dos votos, toda-
via, segundo a proposta de reforma política, considerando a lista fechada
a ordem seria estabelecida de antemão pelos eleitores sob o argumento
de reduzir a fragmentação partidária facilitando a formação de consensos
programáticos.
Neste aspecto, é necessário abordar sobre a organização interna dos
partidos como fator determinante que confere autonomia a estes em es-
colher criteriosamente os componentes da lista que os representará aos
seus eleitores, isto é, preponderante ao encargo legislativo para controlar
e minorar os obstáculos à formação programática partidária está à res-
ponsabilidade destes em garantir que os seus candidatos sejam, de fato,
fieis aos interesses políticos defendidos, correspondendo ao perfil do res-
pectivo partido.
Aliás, considerando tal contexto, há uma dualidade hipotética no
eleitorado que viabiliza o conflito entre o fato de partidos se fortalecerem
demasiadamente prejudicando as candidaturas individuais ou, a personali-
zação do candidato em detrimento da consolidação dos partidos, na qual,
este último torna-se mais provável para a configuração de um novo siste-
ma partidário.
Ratificando ainda a fundamentação quanto aos riscos, no caso, em
discordância com o sistema de lista fechada cita-se os Estados Unidos
que permitiu o sugestionamento dos eleitores nas decisões internas dos
partidos após a concentração partidária em torno de duas agremiações
muito restritas.
A partir do estudo realizado, compreende-se que a formulação de lista
fechadas para o quadro eleitoral não é interessante como objeto da refor-
ma política, pois representa um retrocesso histórico que limita a influência
social dos eleitores quanto a deliberação dos candidatos escolhidos para a
ocupação dos lugares em disputa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante a elaboração do estudo compreende-se que o processo de


redemocratização no Brasil foi permeado de muitas crises econômicas
e sociais, as quais permitiram uma transição de um governo de regime

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

militar, porém, ainda com algumas características democráticas para um


governo cujas garantias e direitos fundamentais se consolidaram com a
promulgação da Constituição Federal de 1988.
Que apesar dos avanços no processo político quanto a liberalização
em questão das conquistas jurídicas em termos de direitos civis, assim
como constitucionais, houve uma fragilização da democracia social em
virtude das crises já enfrentadas em governos militares que se acentua-
ram no período de 1988 em diante com a solidificação das desigualdades
sociais em meio a solidificação do capitalismo e manutenção da política
tradicional gerando crise na identidade social e dificultando o exercício
dos direitos políticos do cidadão.
Sobre a Reforma Política quanto a Votação, compreendeu-se que a
manutenção das listas abertas para a deliberação dos candidatos de deter-
minado Partido ou, Coligação promove mais amplamente a influência dos
eleitores para a ocupação das vagas em disputa, especialmente quanto à
estruturação desta organização política dentro do Poder Legislativo.
Assim como, referente a construção de partidos mais consistentes
programaticamente depende mais da organização interna destes do que
por força legislativa da norma, considerando que possuem mais autono-
mia para estabelecer critérios rigorosos na escolha dos candidatos que
comporão a lista que será submetida à votação.

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ASSÉDIO MORAL LABORAL POR
MEIO DE AGRESSÃO VERBAL:
EFEITOS-SENTIDO DE VIOLAÇÃO DE
UM BEM JURÍDICO TUTELADO
Thalyra Santana Silva Leão87
Maria da Conceição Fonseca-Silva 88
Jorge Viana Santos89

INTRODUÇÃO

Em 10 de maio de 1943, foi promulgada no Brasil a Consolidação das


Leis do Trabalho (CLT), que reuniu e unificou toda a legislação existente
na época em um único documento, e se consolidou como uma fonte pri-
mária do direito positivo trabalhista no Brasil. No entanto, as conquistas
sociais do trabalho se iniciaram um pouco antes, com as constituições
de 1934 e 1937, e os avanços legislativos relativos às relações de trabalho
continuaram após a promulgação da CLT e tiveram especial importância
com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CRFB/88). A nova ordem constitucional estabeleceu como fundamento

87 Doutoranda e Mestra em Linguística pelo Programa da Pós-Graduação em Linguística da


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – PPGLIN/UESB. Bolsista UESB.
88 Doutora em Linguística pela Universidade de Campinas - UNICAMP. Professora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Linguística – PPGLIN/UESB e do Programa de Pós-Graduação
em Memória: Linguagem e Sociedade – PPGMLS/UESB. PQ 2 CNPq.
89 Doutor em Linguística pela Universidade de Campinas – UNICAMP. Professor do Progra-
ma da Pós-Graduação em Linguística – PPGLIN/UESB.

492
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

da República, entre outros: os valores sociais do trabalho e a dignidade da


pessoa humana.
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é um prin-
cípio absoluto, ele é o alicerce de todo o ordenamento jurídico brasileiro
e, nesta qualidade, emana para todo esse ordenamento90, assegurando à
pessoa humana tratamento digno e a inviolabilidade de seus direitos e ga-
rantias fundamentais, que devem ser respeitados não somente pelo Estado,
mas também pelos particulares em suas relações. O princípio da dignida-
de da pessoa humana é amplo e alcança todas os aspectos da vida humana
em sociedade.
No que diz respeito à tutela jurídica dos direitos da pessoa humana
em suas relações de trabalho, a Emenda Constitucional (EC) nº 45, de
2004, estabeleceu que a Justiça do Trabalho teria competência material
para processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patri-
monial decorrentes das relações de trabalho. Desta forma, trabalhadores
vítimas de violação da sua dignidade no ambiente de trabalho podem ajui-
zar ações diretamente na Justiça do Trabalho buscando reparação pelos
danos sofridos.
Uma forma de violação da dignidade do trabalhador em seu ambiente
de trabalho que começou a ser percebida nas últimas décadas como um
problema foi denominada assédio moral, que se constitui como um tipo
de violência psicológica e se caracteriza como um conjunto de condutas
abusivas que de forma reiterada expõem o trabalhador a situações cons-
trangedoras, humilhantes e vexatórias, que têm o potencial de provocar
um desequilíbrio emocional e graves danos à saúde mental e física da ví-
tima, podendo levá-la à incapacidade laborativa (HIRIGOYEN, 1998).
Esse conjunto de condutas abusivas é amplo e, como salienta Silva-
-Leão (2020, p. 69), “[...] são diversas as práticas que caracterizam o as-

90 A respeito do princípio da dignidade da pessoa humana, manifestou-se o STF: [...] o pos-


tulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse
princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte
que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que
traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem
republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo [...].
(HC 95464, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/02/2009, DJe-
048 DIVULG 12-03-2009 PUBLIC 13-03-2009 EMENT VOL-02352-03 PP-00466).

493
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

sédio moral laboral, tais como: comunicação hostil e antiética, atos co-
missivos e/ou omissivos, gestos, palavras, comportamentos ou quaisquer
condutas abusivas [...]”. Neste sentido, as palavras empregadas por meio
de uma comunicação hostil e antiética podem se constituir como um ver-
dadeiro método de agressão verbal contra o trabalhador que podem causar
sérios danos à sua condição psíquica.
Levando em consideração que o assédio moral é um fenômeno social,
pois atinge diferentes áreas da vida do trabalhador e ultrapassa a esfera ju-
rídica trabalhista, interessa-nos pesquisar as práticas de assédio moral por
meio de agressão verbal contra trabalhadores em processos trabalhistas no
âmbito empresarial privado sob a perspectiva da Análise de Discurso (do-
ravante AD), num entrecruzamento com conceitos do campo jurídico.
Com o objetivo de identificar e analisar os efeitos-sentido das práti-
cas de agressão verbal contra trabalhadores encontradas em processos tra-
balhistas, fizemos um levantamento dos processos trabalhistas de assédio
moral laboral no âmbito empresarial privado na Comarca da Cidade de
Vitória da Conquista – BA, datados entre os anos de 2014 a 2018. Assim
como explicado em Silva-Leão (2020), o critério de escolha desse período
se deu: 1) porque os fatos geradores dos direitos pleiteados nesses proces-
sos e a data da propositura dessas ações foram posteriores à promulgação
da Constituição Federal de 1988; 2) o fator acessibilidade, fizemos o le-
vantamento apenas dos processos que já se encontravam em meio digital,
uma vez que a digitalização dos processos se iniciou, na Comarca, apenas
no ano de 2014, fazendo com que os processos anteriores à essa data e que
ainda se encontravam fisicamente nas Varas eram de difícil acesso.
Inicialmente, solicitamos autorização a cada um dos Juízes titulares de
cada uma das duas Vara trabalhistas da Comarca, o que foi autorizado. Em
seguida, um servidor público fez uma pesquisa por assunto “assédio mo-
ral” no sistema utilizado pela Justiça do Trabalho o PJe (Processo Judicial
Eletrônico) o que gerou uma lista com todos os processos que envolviam
a temática na Comarca.
A constituição do arquivo analítico se deu com o download de cada
processo da lista, com sua posterior leitura completa do conteúdo para
classificação e seleção dos processos que envolviam apenas empresas priva-
das, que é o nosso recorte. Encontramos 35 (trinta e cinco) processos tra-

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

balhistas de assédio moral em que ocorriam práticas assediadoras de agres-


são verbal contra o trabalhador, o que constitui nosso arquivo analítico.
Por fim, para constituição do corpus discursivo, operamos o gesto de
intepretação das materialidades encontradas nesses processos para selecio-
narmos as Sequências discursivas (doravante SDs) para análise. As SDs
foram retiradas da petição inicial no tópico denominado “Dos Fatos”, e
totalizaram 43 (quarenta e três) ocorrências de práticas assediadoras por
meio de agressão verbal contra o trabalhador.
Por conseguinte, apresentamos, no próximo tópico uma aproxima-
ção temática do assédio moral e com conceitos e pressupostos teóricos
da Análise de Discurso estabelecidos por Michel Pêcheux (1969, 1975,
1983,) e fundamentais para as análises empreendidas nas SDs apresentadas
no último tópico.

Dispositivos teóricos

O assédio moral é um fenômeno que vem sendo estudado por di-


versas áreas do conhecimento, como por exemplo: medicina, psiquiatria,
psicologia, psicanalise, direito e linguagem. No inicio da década de 80,
o psicopedagogo e psiquiatra alemão Heinz Leymann iniciou os estudos
na área a partir da percepção de que algo de errado estava acontecendo
dentro das relações de trabalho. O pesquisador notou o comportamento
de funcionários que se agrupavam, escolhiam um alvo e o perseguiam, o
submetendo a violência psicológica (LEYMANN, 1990). Foi então, que
o pesquisador nomeou o fenômeno com o termo mobbing, que signifi-
ca “assediar alguém ou aterrorizar psicologicamente outros no trabalho”
(LEYMANN, 1996, p. 165, tradução nossa)91.
Em 1984, Leymann e Gustafsson publicaram o primeiro relatório
científico a respeito do tema, o que despertou o interesse de pesquisadores
por toda a Europa92, dentre eles, se destaca a psicanalista e psicoterapeuta
francesa Marie-France Hirigoyen, que se tornou referencia no assunto

91 No original: “harassing ganging up on someone, or psychologically terrorizing others at


work” (LEYMANN, 1996, p. 165).
92 Matthiesen, Raknes e Rökkum (1989); Kihle (1990); Einarsen e Raknes (1991); Toohey
(1991); Mccarthy, Sheehan e Kearns (1995); Paananen e Vartia (1991); Becker (1993); Hala-
ma (1995),; Knorz e Zapf (1996); Nieldl (1995).

495
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

após provocar discussão sobre o fenômeno na sociedade francesa o que


culminou num projeto de lei que foi posteriormente aprovado pelo parla-
mento francês (HIRIGOYEN, 2001).
Já no Brasil, os estudos são recentes e abrangem diferentes áreas
da ciência como: direito (BARRETO, 2000, 2005; GUEDES, 2003;
PRATA, 2008; WYZYKOWSKI, BARROS, PAMPLONA FILHO,
2014; SOARES, 2015); sociologia (OSTRONOFF, 2015; OMENA,
2018); ciências sociais (AGUIAR, 2015); psicologia (SILVA, 2016); saúde
(COSTA, 2016) e linguística (SILVA-LEÃO, 2020).
O assédio moral é conceituado por Leymann (1996) como uma

[...] comunicação hostil e antiética, dirigida de forma sistemáti-


ca por um ou alguns indivíduos contra um indivíduo [...]. Devi-
do à alta frequência e à longa duração do comportamento hostil,
esses maus-tratos resultam em considerável miséria psicológica,
psicossomática e social. A definição exclui conflitos temporários
e focaliza no momento em que a situação psicossocial começa a
resultar em condições psiquiátricas ou psicossomáticas patológicas.
Em outras palavras, a distinção entre “conflito” e “assédio moral”
não se concentra no que é feito ou como é feito, mas na frequência
e duração do que é feito. (LEYMANN, 1996, p. 168 - tradução
nossa)93

Já Hirigoyen (2002) define o assédio moral laboral como:

[...] qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, ati-


tude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a
dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, amea-

93 No original: “[…] hostile and unethical communication, which is directed in a systematic


way by one or a few individuals mainly towards one individual […]. Because of the high
frequency and long duration of hostile behavior, this maltreatment results in considerable
psychological, psychosomatic, and social misery. The definition excludes temporary conflicts
and focused on a point in time where the psychosocial situation begins to result in psychiat-
rically or psychosomatically pathologic conditions. In other words, the distinction between
“conflict” and “mobbing” does not focus on what is done or how it is done, but in the fre-
quency and duration of what is done.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

çando seu emprego ou degradando o clima de trabalho (HIRI-


GOYEN 2002, p. 17).

Na bibliografia consultada94, existem 4 (quatro) tipos de assédio mo-


ral laboral: a) o vertical descendente, que é praticado pelo superior hierár-
quico contra o subordinado; b) o vertical ascendente, que é praticado pelo
subordinado contra o superior hierárquico; c) o horizontal, que é prati-
cado por trabalhadores do mesmo nível hierárquico; e, d) o misto, que é
praticado simultaneamente por trabalhadores do mesmo nível hierárquico
e de níveis diferentes de hierarquia.
Neste trabalho, tratamos sobre o assédio moral do tipo vertical des-
cendente, pois dos processos de assédio moral laboral no âmbito empre-
sarial que continham agressões verbais contra o trabalhador pertencentes
ao arquivo analítico, todos eram do tipo vertical descendente. Na análise,
mobilizamos pressupostos teóricos do quadro epistemológico da Análise
de Discurso (doravante AD), fundada por estabelecidos por Michel Pê-
cheux e seu grupo, na década de 60 do século XX, numa articulação entre
a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise (FONSECA-SILVA,
2007, p. 77-79).
Para a AD o discurso não é entendido como instrumento de trans-
missão de informação, mas sim como “efeito de sentido” entre posições-
-sujeito em uma determinada estrutura social (PÊCHEUX, 1969, p. 81).
Isto quer dizer, que a língua não é transparente, é opaca e o sentido não
é evidente nem está preso na literalidade das palavras, expressões ou pro-
posições. Fonseca-Silva (2007) afirma que “[...] significar está na ordem
do discurso, que tem uma ordem diferente da ordem da língua, sua base
material [...]” (FONSECA-SILVA, 2007, p. 95).
Sendo o discurso efeito de sentido, esse efeito que é produzido “[...]
põe em relação os sujeitos afetados pela língua e pela história, num com-
plexo processo de identificação de sujeitos, argumentação, subjetivação,
construção da realidade e etc”. (ORLANDI, 1999, p. 19). Para Pêcheux
(1983a) “[...] os sujeitos acreditam que ‘utilizam’ seus discursos quando
na verdade são seus ‘servos’ assujeitados, seus ‘suportes’” (PÊCHEUX,
1983a, p. 307).

94 Bibliografia consultada: Leymann, 1996; Hirigoyen, 1998, 2002; Wyzykowski; Barros;


Pamplona Filho, 2014; Guedes, 2005; Prata, 2008.

497
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Os sujeitos têm a impressão de serem a origem dos seus discursos


(a origem dos sentidos), pois esquecem que algo já foi dito anteriormente.
Pêcheux e Fuchs (1975) definiram esses esquecimentos pertencentes ao dis-
curso como sistema pré-consciente-consciente (a junção do inconsciente e da
ideologia) e o sistema inconsciente (junção do linguístico com a teoria do
discurso). Fonseca-Silva (2007, p.93) destaca que o esquecimento n01 “É o
lugar constitutivo da subjetividade, inacessível ao sujeito-falante que cria a
ilusão de ser um e de que é a origem do sentido”; e que o esquecimento n02
“É a zona dos processos enunciativos que fica no domínio do sujeito-fa-
lante [...]. O falante faz uma operação de seleção linguística entre o que é
dito e o que deixa de ser dito [...]”.
Essa é a chama evidência do sujeito (PÊCHEUX, 1983b, p. 139) que
cria a ilusão de que o sujeito sabe do que fala e de que ele é a origem
do dizer que cria uma falsa-aparência de que o sujeito detém o controle.
Conforme Orlandi (1999)

São essas evidências que dão aos sujeitos a realidade como sistema
de significações percebidas, experimentadas. Essas evidências fun-
cionam pelos chamados “esquecimentos”, [referidos anteriormen-
te]. Isso se dá de tal modo que a subordinação-assujeitamento se
realiza sob a forma de autonomia [...] a interpelação do indivíduo
em sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da
inscrição da língua na história para que ela signifique produzindo o
efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do sujei-
to ser a origem do que diz. Efeitos que trabalham, ambos, a ilusão
da transparência da linguagem (ORLANDI, 1999, p. 44-46).

Pêcheux (1975) afirma que:

[...] as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido


segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o
que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas
posições, isto é, em referencia às formações ideológicas [...] nas
quais essas posições se inscrevem [...] (PÊCHEUX, 1975, p. 147).

Portanto, não há um sentido que lhe sejam “próprios” das palavras ou


vinculados a sua literalidade, o sentido se constitui na formação discursiva

498
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

(doravante FD) que é o lugar que vai determinar o que pode e deve ser
dito pelo sujeito. Isso se dá por meio de um processo de identificação do
indivíduo com uma determinada formação ideológica (FI), e é daí que
as palavras, expressões e proposições adquirem seus sentidos. Pêcheux
afirma que “[...] os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em
sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na
linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊ-
CHEUX, 1975, p. 147).
Nesta mesma linha de raciocínio, Pêcheux continua

[...] se se admite que as mesmas palavras, expressões e proposi-


ções mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a
uma outra, é necessário também admitir que palavras, expressões
e proposições literalmente diferentes podem, no interior de uma
formação discursiva dada, “ter o mesmo sentido” (PÊCHEUX,
1975, p. 148).

Sendo assim, as mesmas palavras podem receber sentidos diferentes, e


palavras diferentes podem receber o mesmo sentido, a linguagem é opaca
e não transparente, já que ela não é vista da mesma forma por diferentes
sujeitos. Por isso o analista deve ter em mente, no momento da sua aná-
lise, que o discurso é um objeto linguístico-histórico em que o analista
recorta, por isso, “[...] os objetos de análises não são estanques, as ma-
terialidades discursivas possibilitam múltiplas possibilidades de leitura”
(SILVA-LEÃO, 2020, p. 40).
Isto posto, consideramos ser o processo judicial nossa materialidade
discursiva, e assim como em Silva-Leão (2020), tomamos o processo ju-
dicial como um espaço simbólico e significante, como um lugar de jogo
de sentidos para empreendemos, no próximo item, as análises das SDs
extraídas dos processos que fazem parte do corpus desta pesquisa.

Agressão verbal e efeitos-sentido de violação de um


bem jurídico tutelado

A agressão verbal, se praticada de forma repetitiva, caracteriza-se


como assédio moral. Esse tipo de conduta atinge a dignidade do traba-

499
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

lhador, o que é reprimido pelo sistema jurídico brasileiro. O inciso III,


do art. 10, da CRFB/88, protege a dignidade da pessoa humana, mas essa
proteção não se esgota nesse artigo, ela se inicia nele e emana para todo o
ordenamento jurídico. A Constituição de 88, em seu capítulo I “Dos Di-
reitos e Deveres Individuais e Coletivos”, garante no art. 50, inciso X que:
“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação” (grifo nosso).
O Código Penal (CP) também protege a dignidade da pessoa hu-
mana quando prevê o crime de injúria em seu art. 140: “Injuriar alguém,
ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”. Já a CLT, em seu art. 483, alínea
“e” protege a dignidade do trabalhador concedendo a ele prerrogativa de
rescindir o contrato de trabalho caso o empregador ou seus prepostos pra-
tiquem contra ele ato lesivo da honra e boa fama.
Apesar de não existir, até o momento da publicação deste trabalho,
nenhuma lei vigente com abrangência nacional que conceitue e regula-
mente o assédio moral nas relações de trabalho, o que se extrai desses
dispositivos legais supracitados que protegem a dignidade da pessoa hu-
mana é que: as condutas que se caracterizam como sendo assediadoras
são ilícitas e violam esses dispositivos legais, pois, essas condutas violam a
dignidade da pessoa humana, conforme veremos mais a frente.
Guimarães (2014, p. 425) conceitua a injuria como ato de

[...] irrogar a alguém, por escrito ou verbalmente, qualidades, ví-


cios ou defeitos vexatórios, ou ofender o decoro e a dignidade de
alguém. É qualquer ofensa à honra, à dignidade, à reputação ou boa
fama de pessoa.

Nesse sentido, a agressão verbal que reputa ao trabalhador vícios, de-


feitos, qualidades vexatórias, desqualificação, palavras de desprezo e indi-
ferença, ofensas à honra e à reputação em seu ambiente de trabalho num
contexto de assédio moral, reveste-se de gravidade, pois a repetição dessas
práticas tem um potencial lesivo à psique do trabalhador.
As consequências desse tipo de conduta para a vítima podem provo-
car enfermidades físicas e psicossomáticas que deterioram sua qualidade
de vida. O assediado perde: o equilíbrio emocional, capacidade de reagir

500
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

sob pressão, a acuidade mental e a espontaneidade. Desta forma, passa a


sofrer de: nervosismo, distúrbios alimentares, ansiedade, insônia, taqui-
cardia e etc. Todos esses sintomas podem evoluir para uma depressão, uma
síndrome do pânico e até alucinações, podendo, inclusive, levar ao suicí-
dio (PRATA, 2008).
Para Hirigoyen (1998) a vítima não sai ilesa dessa tortura psicológica pois
“[...] a rememoração das cenas de violência e humilhação se impõem”,
sendo assim, a vítima, traumatizada, não consegue se livrar delas e essa dor
permanece por muito tempo (HIRIGOYEN, 1998, p. 165). Para a pes-
quisadora, as sequelas, são, muitas vezes, irreversíveis culminando numa
inaptidão duradoura para o trabalho, ela explica que “[...] é como se o
corpo tivesse gravado involuntariamente a memória do traumatismo e que
este pudesse ser revivido eternamente e a todo instante” (HIRIGOYEN,
1998, p. 166).
A seguir, analisaremos SDs95 que contêm agressões verbais contra tra-
balhadores que foram selecionadas do corpus de pesquisa por amostragem
para este trabalho:

SD1 - Informa a Reclamante [autora da ação judicial] que não


raras vezes era chamada de "burra", "lerda" e "gorda", tudo isso na
presença de [...] e demais colegas de trabalho. Diante da situação
degradante, humilhante e vexatória a que estava submetida, sendo
advertida cotidianamente, de que “quem não estivesse gostando
que pedisse para sair”, a Reclamante se sentiu forçada a pedir des-
ligamento do trabalho [...] (P032-SD0396, p. 5, grifos originais).

95 Nas citações das SDs mantivemos ipsis litteris o texto como escrito no processo judicial.
Acrescentamos, para fins de melhor compreensão, quando estritamente necessário, pala-
vras e/ou expressões para, por exemplo, recuperar a completude de uma frase. Mantivemos
também os destaques em negrito, itálico ou caixa alta originais do texto.
96 Os processos trabalhistas são regidos pelo princípio de preservação do direito à intimi-
dade, extraído do art. 93, IX, da CRFB/88, e art. 4º, § 1º, inciso II da Resolução nº 121, de 5
de outubro de 2010, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que restringe a publicidade de
processos sujeitos à apreciação da Justiça do Trabalho na rede mundial de computadores.
Por esse motivo, fez-se necessária a criação de uma codificação única para cada processo
para que fosse possível citar o processo neste trabalho e identificá-lo no corpus, esse proce-
dimento adotado é similar ao adotado por Silva-Leão (2020). Foram omitidos os nomes das
partes envolvidas nos processos e/ou qualquer dado que possa identificar as partes.

501
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Nessa SD, as expressões: não raras vezes e sendo advertida cotidianamente


indicam a temporalidade das ações, não se trata de uma ação isolada, mas
sim de condutas repetitivas ao ponto de o trabalhador assediado pedir de-
missão. Os adjetivos desqualificadores atribuídos à vítima: burra, lerda e
gorda, indicam qual a imagem que o sujeito assediador enquanto superior
hierárquico atribui ao funcionário, o efeito-sentido que se constitui é o de
rejeição através do pressuposto do que seja um funcionário ideal: inteli-
gente, eficiente e com uma aparência física dentro dos “padrões” estabe-
lecidos como norma na sociedade.
A expressão quem não estiver gostando que pedisse para sair indica, por sua
vez, a FD que o sujeito assediador se identifica, qual seja o discurso liberal
que se manifesta no discurso da suposta liberdade do trabalhador: se ele
não estiver satisfeito pode sair e encontrar algo melhor ou sair e sua vida
pode piorar.
O efeito-sentido que se abstrai das agressões verbais encontradas nes-
sa SD indica a violação de um bem jurídico tutelado pelo ordenamento
jurídico brasileiro: o da dignidade da pessoa humana, que, enquanto tra-
balhadora, merece um ambiente de trabalho sadio, e a inviolabilidade da
sua imagem e da sua honra.
A próxima SD selecionada para análise é transcrição de um áudio
gravado pela trabalhadora em que o superior hierárquico a agride verbal-
mente, vejamos:

SD2 – FALA DO GESTOR [...] [nome do superior hierárquico]


EU NÃO SEI MAIS O QUE EU FALO CONTIGO, VOCÊ É
PIOR DA BAHIA DE NOVO [...] VOCÊ TÁ CORRENDO
UM SÉRIO RISCO. VOCÊ É A PIOR DO BRASIL HOJE
(P054-SD03, p. 11-12, grifo original).

Na SD2, os termos: pior da Bahia e pior do Brasil, indicam que o su-


jeito assediador fala do lugar de superioridade e adjetiva negativamente a
funcionária por esta não estar cumprindo com as expectativas da empresa,
o efeito-sentido que se produz é o de poder, pois estando nesse lugar de
superioridade é que é possível avaliar o funcionário. Ao empregador é
lícito cobrar por metas e desempenho satisfatório dos funcionários, pois o
cumprimento dos deveres por parte dos trabalhadores é inerente ao con-

502
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

trato de trabalho. No entanto, o empregador ou o superior hierárquico


não pode agredir verbalmente o trabalhador quando faz qualquer tipo de
cobrança, pois esse tipo de conduta ultrapassa o limite do poder diretivo97.
Outros dois efeitos-sentido produzidos por esses termos supracitados
é o de comparação e o de inferioridade, pois onde há um pior, há um
melhor. Ao que se refere a esses efeitos-sentido, eles são graduais, tanto no
sentido de intensidade da adjetivação negativa, pois atinge o nível máximo
indicando que a funcionária é inferior a todos os outros; quanto no sentido
espacial, uma vez que não é só a pior no estado, mas de todo o país.
Por fim, na formulação linguística você está correndo um sério risco produz
efeito-sentido de ameaça e indica que o superior hierárquico se sente desa-
fiado pelo trabalhador subordinado, que desafia seu poder, que é inerente
ao lugar de superioridade. Nessa formulação linguística, a ameaça emerge
na superfície linguística no não-dito mas que se faz presente, que quer di-
zer: o risco que essa funcionária corre é o de ser demitida, uma vez que ao
ser qualificada como a pior a funcionária do país, ela não está correspon-
dendo ao que se espera dela e por isso corre o risco de perder o emprego.
Assim como na SD1, as agressões verbais analisadas na SD2 também
produzem efeito-sentido de violação do bem jurídico tutelado pelo or-
denamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana. Nas duas
SDs, os trabalhadores vítimas de assédio moral por meio de agressão ver-
bal, foram qualificadas de maneira injuriosa e degradante ferindo valores
intrínsecos à natureza subjetiva do ser humano.

Considerações finais

Este trabalho está inserido no âmbito das pesquisas de assédio moral


nas relações de trabalho sob a perspectiva da Análise de Discurso num
entrecruzamento com as práticas discursivas que se desenvolveram após
a Constituição da republica Federativa do Brasil de 1988. Dessa forma, o
nosso objetivo foi identificar e analisar efeitos-sentido que se constituem

97 “O poder diretivo é uma prerrogativa do empregador que é o dono do negócio e assume


o risco de sua atividade econômica. Por esse motivo, o empregador tem o poder de dirigir,
organizar, controlar e disciplinar o modo como a sua atividade econômica será exercida por
meio de seus empregados em decorrência do contrato de trabalho” (SILVA-LEÃO, 2020, p.
64).

503
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

de condutas assediadoras por meio de agressão verbal em processos traba-


lhistas de assédio moral no âmbito empresarial privado.
Os resultados indicam que das condutas de assédio moral por meio
de agressão verbal identificadas em processos trabalhistas de assédio moral
no âmbito empresarial privado se constitui o efeito-sentido de violação de
um bem jurídico tutelado pelo ordenamento jurídico brasileiro: a digni-
dade do trabalhador.
As análises empreendidas nas SD1 e SD2 indicam que os diferentes
efeitos-sentido produzidos convergem para um efeito-sentido comum, o
de violação de um bem jurídico tutelado pela Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, um bem jurídico que ocupa o lugar de fun-
damento da república, o alicerce do ordenamento jurídico brasileiro, qual
seja, a dignidade da pessoa humana, na condição de trabalhador vítima de
assédio moral laboral.

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506
O PROCESSO ESTRUTURAL
ENQUANTO MECANISMO
DE PROTEÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS E PROMOÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS
Isabela de Araújo Zambon Elias98

INTRODUÇÃO

O princípio constitucional da eficiência administrativa - incluído


por intermédio da Emenda Constitucional n. 19 de 1988 - é uma norma
expressa que consta no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988.
Tal constitucionalização abriu margem para uma maior revisão jurisdi-
cional dos atos administrativos - tanto os vinculados (cujos elementos e
consequências são previstos em lei) quanto os discricionários (nos quais a
atuação da Administração Pública detém maior liberdade e subjetividade)
- quando da inobservância da eficiência administrativa, sobretudo quan-
do relacionadas a políticas públicas e escolhas orçamentárias. Até porque,
num Estado Social e Democrático de Direito, é imprescindível que o
princípio constitucional da eficiência seja observado pela Administração
Pública, com o intuito de alcançar de forma ótima a finalidade pública,
seja no âmbito de decisão vinculada expressamente à lei, seja no âmbito
de decisão discricionária. Nesse sentido, consoante Gabardo e Hachem
(2010, p. 283), ”de nada adianta os agentes e órgãos públicos cumprirem

98 Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

507
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

as suas funções se o exercício de tais competências der-se de forma moro-


sa, insatisfatória, perdulária e malsucedida”. Assim, o controle jurisdicio-
nal assume papel relevante na asseguração de tal compatibilidade entre o
ato administrativo praticado e o sistema constitucional brasileiro.
Contudo, em que pese a sua relevância, o que se observa hodierna-
mente na jurisprudência brasileira é um controle jurisdicional pautado na
adoção do modelo clássico e bilateral de litígio, não sendo esse o melhor
procedimento a ser adotado nos casos envolvendo direitos fundamentais e
políticas públicas, conforme será evidenciado.
Dessa forma, a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais deve ser
racionalizada, adotando-se um procedimento o qual leve em consideração
a natureza dos direitos envolvidos, a implementação adequada das deci-
sões proferidas, bem como o alto impacto social e econômico que acarre-
ta. Motivo pelo qual se faz imprescindível a adoção dos processos estrutu-
rantes nas demandas envolvendo a implementação de políticas públicas e
a proteção de direitos fundamentais, bem como compreendermos o papel
do Poder Judiciário nesse âmbito e sua legitimidade para o controle juris-
dicional de direitos prestacionais.

1. PROCESSOS ESTRUTURAIS

Primeiramente, importante ressaltar que a structural injunction (deci-


são estrutural) surgiu quando juízes federais procuraram implementar a
decisão da Suprema Corte de 1954, em Brown vs Board of Education (FISS,
2017, p. 25), decisão pela qual se declarou inconstitucional a segregação
racial de crianças em escolas públicas, o que deu ensejo ao início de uma
reforma institucional significativa.
Diante deste julgamento emblemático, casos complexos e multipola-
res como o de Brown vs Board of Education passaram a ser observados sob o
prisma de uma nova perspectiva processual: os processos estruturais.
Estes processos se diferem dos litígios clássicos, haja vista sua alta
complexidade, — normalmente envolvendo direitos fundamentais e polí-
ticas públicas - e a multiplicidade de interesses e pretensões em face de um
mesmo tema. Registre-se que, nesses casos, não há somente duas partes
contrárias que buscam ter suas pretensões deferidas pelo magistrado, mas
diversos atores influenciados pelo tema e que buscam ser ouvidos, com o

508
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

intuito de defender seus interesses e opiniões. Dessa forma, essa pluralida-


de de agentes e posições torna a atuação do Judiciário ainda mais delicada,
haja vista a necessidade de observação não só do princípio do contraditó-
rio, senão da representação processual adequada dos participantes.
As decisões estruturantes, por conseguinte, devem voltar-se à preser-
vação do interesse público, sobrepujando-se sobre os interesses individuais
e particulares. Por fim, a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais
“[…] deve, como regra, partir de provimentos coletivos e de interesse pú-
blicos (portanto, estruturantes), em contraposição a uma tutela individual
e privada, que deve ser cada vez mais excepcional” (FACHIN; SCHINE-
MANN, 2018, p. 215).

1.1. Critérios processuais que justificam a adequação


dos processos estruturais na tutela jurisdicional de
direitos fundamentais e políticas públicas

1.1.1. Eficiência da tutela jurisdicional estruturante

Como dito anteriormente, é imprescindível que a natureza dos di-


reitos envolvidos seja levada em consideração, isto pois, a eficiência juris-
dicional é tão relevante quando tratamos de processos que versem sobre
direitos fundamentais e políticas públicas, na medida em que o pedido
exarado pela parte nada mais é do que o reflexo da necessidade de reestru-
turar organizações e instituições sociais as quais prestam serviços impres-
cindíveis à coletividade (VITORELLI, 2020).
Assim, quando o controle jurisdicional envolve direitos prestacionais,
os processos estruturais são os mais adequados para o processamento da
demanda, pois o principal foco dos litígios estruturantes é chegar a uma
solução adequada que consiga alterar de fato o status quo da situação pro-
blemática existente. Assim, diferentemente do que ocorre nos litígios clás-
sicos, nos processos estruturantes não se busca apenas atender a um deter-
minado interesse, recortando drasticamente a complexidade do conflito.
Outrossim, os processos de caráter estrutural não se limitam tão so-
mente em resolver um problema do passado. Muito pelo contrário, eles
se projetam para o futuro, proferindo decisões as quais tem como objetivo
uma mudança estrutural - realizando alterações na própria raiz do problema

509
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

-, a fim de erradicar o conflito, ou seja, “implantar uma reforma estrutural


(structural reform) em um ente, organização ou instituição, com o objetivo
de concretizar um direito fundamental, realizar uma determinada política
pública ou resolver litígios complexos” (DIDIER JR; ZANETI JR; OLI-
VEIRA, 2017, p. 355). Dessa maneira, as decisões estruturantes buscam
- através da afirmação de valores constitucionais e levando em consideração
todos os agentes participantes do conflito - a melhor forma de garantir uma
reforma estrutural, fazendo com que os direitos sejam assegurados e efetiva-
dos em sua totalidade. Tal enfoque dado à eficiência jurisdicional demonstra
apenas um dos grandes motivos pelos quais os processos estruturantes se
fazem adequados ao controle jurisdicional em discussão.

1.1.2. Permeabiliade da demanda e discricionariedade


jursdicional no âmbito estruturante

Ademais, consoante ensinamentos de Owen Fiss (2017), as decisões


estruturantes não devem ser fundamentadas em um “acordo entre dois vi-
zinhos”, ou seja, na pacificação de conflitos individualizados. Em verdade,
quando estamos tratando de litígios multipolares e de alta complexidade,
nem sempre um acordo entre as partes é a melhor via para solução de con-
flitos. Isto pois, os acordos celebrados pelas partes nem sempre abrangem
os interesses de todos os agentes envolvidos – ainda que de forma indire-
ta - ou apenas solucionam os conflitos em caráter momentâneo. Contu-
do, registre-se que a cooperação processual entre as partes é de extrema
importância em qualquer tipo de litígio, seja ele individual, coletivo ou
estruturante.
Sob esse prisma, verifica-se que a atuação do magistrado nos proces-
sos estruturantes não se limita aos pedidos formulados pelas partes, deven-
do o juiz moldar suas decisões com base na realidade fática e identificar as
pretensões que se chocam, a fim de garantir a concretização e tutela efetiva
dos direitos demandados. Para isso, no âmbito estrutural, relativiza-se o
princípio da congruência, relativização a qual é possível extrair do art. 493
do Código de Processo Civil.

Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitu-


tivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento

510
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a


requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.

Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as


partes sobre ele antes de decidir.

Tal discricionariedade concedida ao Judiciário - a fim de decidir de


que maneira os direitos em tela serão melhor tutelados e quais reformas
institucionais deverão ocorrer para que isso seja possível - amplia a prote-
ção de direitos fundamentais e políticas públicas, se comparado aos pro-
cessos individuais, e concede maior legitimidade aos processos estruturais
para tutela jurisdicional de direitos prestacionais. Até porque, não seria
aceitável o proferimento de decisões prejudiciais à coletividade e contrá-
rias ao interesse público, haja vista a má formulação do pedido ou a falta
de representação processual adequada das partes (FACHIN; SCHINE-
MANN, 2018). Nesse sentido:

A possibilidade de mitigar os princípios da demanda e da adstrição


decorre do próprio direito à tutela jurisdicional adequada, o qual
pressupõe a primazia do mérito em relação ao instrumento (FA-
CHIN; SCHINEMANN, 2018, p. 232).

1.1.3. Factibilidade e mutabilidade dos remédios


estruturantes

Além disso, se os processos estruturais permitem essa flexibilidade no


que tange à fase de conhecimento, nada menos admissível que sua adoção
também na fase de execução, cuja atipicidade já é prevista dentro do Có-
digo de Processo Civil.
Assim, considerando que os processos estruturantes visam solucio-
nar conflitos extremamente complexos e de natureza delicada, as deci-
sões exaradas pelos magistrados devem constantemente adequar-se ao
direito tutelado e ao contexto fático enfrentado. Inclusive, nem sempre
uma decisão estruturante será o suficiente para a resolução do litígio.
Com efeito, e segundo Sérgio Cruz Arenhart (2013), no âmbito estru-
tural há o que o autor chama de “provimentos em cascata”, isto é, uma
decisão principal a qual pode ser complementada por outras, dependen-

511
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tes do resultado inicial obtido e das informações decorrentes do cumpri-


mento da decisão anterior.
Resta evidente, por conseguinte, que as decisões estruturais buscam
trazer concretude aos direitos fundamentais e às políticas públicas e, para
isso, faz-se necessária a adoção e implementação de diferentes condutas
ao longo do tempo, não se limitando somente a uma única decisão. Des-
sa forma, os processos estruturais dispõem de um complexo de decisões
que podem ser exigidas “para solução de problemas e questões pontuais,
surgidas na implementação da ‘decisão-núcleo’, ou para a especificação de
alguma prática devida” (ARENHART, 2013, p. 12).
Dessa maneira, a tutela jurisdicional garantida pelos processos estru-
turantes também se mostra mais eficiente, pois se molda de acordo com
a mutabilidade fática intrínseca aos direitos prestacionais e não limita o
litígio a uma decisão específica, visto que o remédio estruturante sugerido
pode perder sua eficácia no momento de sua aplicação.

1.1.4. Representação processual ampla e adequada

Como se não bastasse, considerando que os processos estruturais tra-


tam de conflitos multipolares, envolvendo interesses de diversos grupos
da sociedade, é de suma importância que seja garantida não só uma repre-
sentação adequada a todos os interessados, mas também uma proteção ao
princípio do contraditório, a fim de possibilitar que todos os agentes en-
volvidos tenham seu momento de fala dentro do trâmite processual. Para
isso, todas as partes devem ser constantemente ouvidas – instrumentos
como as audiências públicas e amicus curiae são duas formas interessantes
que possibilitam uma participação satisfatória dos envolvidos - para que
seja proferida uma decisão justa e democrática.
Dessa maneira, considerando que os processos estruturais oferecem
amplo espaço para defesa e representação processual, e também trazem
certa pacificação social - uma vez que a decisão decorre de um amplo
envolvimento de todos os interessados -, mais um motivo pelo qual eles
se mostram como melhor alternativa para efetivar direitos fundamentais e
implantar políticas públicas, quando da ineficiência legislativa e executiva.
Por fim, conforme leciona Sérgio Cruz Arenhart (2017, p. 448):

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Se o Judiciário deve chamar para si a difícil tarefa de interferir em


políticas públicas ou em questões complexas no plano econômico, social
ou cultural, então é certo que o processo empregado para tanto deve ser-
vir como ambiente democrático de participação. Simulando o verdadeiro
papel de um parlamento, constrói-se uma ferramenta adequada ao debate
esperado, que legitima a atividade judicial.

2. LEGITIMIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL DE


POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
ATRAVÉS DOS PROCESSOS ESTRUTURAIS

Embora a judicialização individual de direitos prestacionais comporte


em um grande impacto orçamentário, conforme demonstrado acima, os
processos estruturais são altamente complexos e, por isso, também aca-
bam gerando efeitos sociais e econômicos substanciais. Tal complexidade
suscita a observância de princípios como o da proporcionalidade e da sub-
sidiariedade, sendo que a adoção dessas medidas deve prevalecer quando
esgotadas as tentativas menos gravosas de promoção de políticas públicas e
proteção de direitos fundamentais.
Dessa forma, tais provimentos de natureza estrutural apenas devem
ser adotados quando os mecanismos políticos ordinários falharam reite-
radamente, ou seja, quando a promoção de direitos por meio de políticas
públicas advindas do Poder Executivo e do Poder Legislativo não fun-
ciona ou quando não há interesse político em concretizá-la (FACHIN,
SCHINEMANN, 2018).
Nesse sentido, e nas palavras de Marco Félix Jobim (2013, p. 104,
apud DIDIER JR.; ZANETI JR.; OLIVEIRA, 2017, p. 356-357):

Quando o Poder Legislativo não consegue atribuir ao povo novas


leis que possam modificar esse ambiente ou quando o Poder Exe-
cutivo fica inerte em seu dever de administrar, é o Poder Judiciário
que deverá intervir, em ambos os casos, por meio de processos in-
dividuais ou coletivos. A esse fenômeno dá-se o nome de ativis-
mo judicial, em contraposição à autocontenção judicial, o que, em
alguns casos, pode trazer benefícios e em outros prejuízos, sendo

513
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

que o que ora se defende é que num ativismo judicial equilibrado a


tendência de acerto é maior que a de erro.

Entretanto, não se afigura acertado justificarmos a atuação do Po-


der Judiciário no controle de direitos fundamentais e políticas públicas
tão somente em função do desserviço praticado pelo Poder Legislativo e
pelo Poder Executivo. Com efeito, tal justificação se encontra também na
própria função do magistrado em atuar como intérprete da Constituição,
buscando efetivá-la da melhor maneira possível.
Nesse diapasão, sua atuação decorre não só da necessidade de suprir a
escassez da atividade legislativa e/ou executiva, mas também do seu papel
enquanto aplicador da Constituição Federal e protetor dos direitos funda-
mentais. É, portanto, o Judiciário que tem como função a efetivação de
direitos colocados em xeque devido a insuficiente proteção a que estavam
submetidos inicialmente.
Atualmente, verifica-se uma tendência do Judiciário em reafirmar
seu papel frente à promoção de políticas públicas e à garantia de direitos
fundamentais no âmbito estrutural, bem como em reforçar o caráter co-
laborativo dos processos estruturantes, nos quais há de prevalecer a coo-
peração processual e os diálogos interinstitucionais, tornando-os cada vez
mais legítimos.
Nesse sentido, veja-se os seguintes precedentes do Superior Tribunal
de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO


ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REFORMA E ME-
LHORIAS EM HOSPITAL PÚBLICO. CONTROLE JUDI-
CIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. IMPOSSIBILIDADE GE-
NÉRICA. DESCABIMENTO. PROCESSO ESTRUTURAL.
PEDIDOS DIVERSOS E COMPLEXOS. POSSIBILIDADE.
APRECIAÇÃO DE VIOLAÇÕES LEGAIS ESPECÍFICAS.
OMISSÃO. NULIDADE. 1. O controle judicial de políticas
públicas é possível, em tese, ainda que em circunstâncias
excepcionais. Embora deva ser observada a primazia do admi-
nistrador na sua consecução, a discricionariedade cede às opções
antecipadas pelo legislador, que vinculam o executor e autorizam

514
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

a apreciação judicial de sua implementação. 2. A existência de pe-


didos diversos e complexos não significa automática pretensão de
substituição do administrador. Ao contrário, pressupõe cuidado
do autor diante de uma atuação estruturante, que impõe tam-
bém ao Judiciário a condução diferenciada do feito. 3. Nos pro-
cessos estruturais, a pretensão deve ser considerada como
de alteração do estado de coisas ensejador da violação dos
direitos, em vez de se buscar solucionar pontualmente as
infringências legais, cuja judicialização reiterada pode re-
sultar em intervenção até mais grave na discricionarieda-
de administrativa que se pretenderia evitar ao prestigiar as
ações individuais. 4. No caso concreto, a consideração genérica
de impossibilidade de intervenção judicial nas falhas de prestação
do serviço de saúde configura efetiva omissão da instância ordiná-
ria quanto às disposições legais invocadas que, acaso mantida, pode
inviabilizar o acesso das partes às instâncias superiores. 5. Recurso
especial provido, para determinar o retorno do feito à origem para
afastamento do vício. (STJ, 2019, on-line) (grifou-se).

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE MENOR POR
PERÍODO ACIMA DO TETO LEGAL. DANOS MORAIS.
JULGAMENTO DE LIMINAR IMPROCEDÊNCIA DO
PEDIDO. IMPOSSIBILIDADE. QUESTÃO REPETITIVA
QUE NÃO FOI OBJETO DE PRECEDENTE VINCULAN-
TE. EXISTÊNCIA DE INÚMERAS AÇÕES CIVIS PÚBLI-
CAS NO JUÍZO ACERCA DO TEMA. IRRELEVÂNCIA.
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS HIPÓTESES AU-
TORIZADORAS DO JULGAMENTO PREMATURO.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA QUE ENVOLVE LITÍGIO DE
NATUREZA ESTRUTURAL. NECESSIDADE DE DILA-
ÇÃO PROBATÓRIA. INCOMPATIBILIDADE, EM RE-
GRA, COM O JULGAMENTO DE IMPROCEDÊNCIA
LIMINAR DO PEDIDO OU COM O JULGAMENTO AN-
TECIPADO DO MÉRITO. PROCESSO ESTRUTURAL.
NATUREZA COMPLEXA, PLURIFATORIAL E POLI-
CÊNTRICA. INSUSCETIBILIDADE DE RESOLUÇÃO

515
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

PELO PROCESSO CIVIL ADVERSARIAL E INDIVI-


DUAL. INDISPENSABILIDADE DA COLABORAÇÃO
E PARTICIPAÇÃO DO ESTADO E DA SOCIEDADE
CIVIL NA CONSTRUÇÃO DE SOLUÇÕES PARA O
LITÍGIO ESTRUTURAL, MEDIANTE AMPLO CON-
TRADITÓRIO E CONTRIBUIÇÃO DE TODOS OS
POTENCIAIS ATINGIDOS E BENEFICIÁRIOS DA
MEDIDA ESTRUTURANTE. NECESSIDADE DE
PRESTAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL DIFE-
RENCIADA E ADERENTE ÀS ESPECIFICIDADES
DO DIREITO MATERIAL VERTIDO NA CAUSA,
AINDA QUE INEXISTENTE, NO BRASIL, REGRAS
PROCEDIMENTAIS ADEQUADAS PARA A RESOLU-
ÇÃO DOS LITÍGIOS ESTRUTURAIS. ANULAÇÃO DO
PROCESSO DESDE A CITAÇÃO, COM DETERMINA-
ÇÃO DE INSTRUÇÃO E REJULGAMENTO DA CAUSA,
PREJUDICADO O EXAME DAS DEMAIS QUESTÕES. 1-
[…] 2- […] 3- […] 4- Por se tratar de regra que limita o pleno
exercício de direitos fundamentais de índole processual, em es-
pecial o contraditório e a ampla defesa, as hipóteses autorizadoras
do julgamento de improcedência liminar do pedido devem ser
interpretadas restritivamente, não se podendo dar a elas ampli-
tude maior do que aquela textualmente indicado pelo legislador
no art. 332 do novo CPC. 5- [...]. 6- Os litígios de natureza
estrutural, de que é exemplo a ação civil pública que ver-
sa sobre acolhimento institucional de menor por período
acima do teto previsto em lei, ordinariamente revelam
conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntri-
ca, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil
clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial
e individual. 7- Para a adequada resolução dos litígios es-
truturais, é preciso que a decisão de mérito seja construí-
da em ambiente colaborativo e democrático, mediante a
efetiva compreensão, participação e consideração dos fa-
tos, argumentos, possibilidades e limitações do Estado em
relação aos anseios da sociedade civil adequadamente re-
presentada no processo, por exemplo, pelos amici curiae e

516
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

pela Defensoria Pública na função de custos vulnerabilis,


permitindo-se que processos judiciais dessa natureza, que
revelam as mais profundas mazelas sociais e as mais som-
brias faces dos excluídos, sejam utilizados para a constru-
ção de caminhos, pontes e soluções que tencionem a reso-
lução definitiva do conflito estrutural em sentido amplo.
8- Na hipótese, conquanto não haja, no Brasil, a cultura
e o arcabouço jurídico adequado para lidar corretamen-
te com as ações que demandam providências estruturan-
tes e concertadas, não se pode negar a tutela jurisdicional
minimamente adequada ao litígio de natureza estrutural,
sendo inviável, em regra, que conflitos dessa magnitude
social, política, jurídica e cultural, sejam resolvidos de
modo liminar ou antecipado, sem exauriente instrução e
sem participação coletiva, ao simples fundamento de que
o Estado não reuniria as condições necessárias para a im-
plementação de políticas públicas e ações destinadas a re-
solução, ou ao menos à minimização, dos danos decorrentes do
acolhimento institucional de menores por período superior àque-
le estipulado pelo ECA. 9- Provido o recurso especial para anular
o processo desde a citação e determinar que seja regularmente
instruída e rejulgada a causa, está prejudicado o exame da alega-
da violação aos demais dispositivos legais do ECA indicados nas
razões recursais. 10 - Recurso especial conhecido e provido, para
anular o processo desde a citação e determinar que sejam adota-
das, pelo juiz de 1o grau, as medidas de adaptação procedimental
e de exaurimento instrutório apropriadas à hipótese. (STJ, 2020,
on-line) (grifou-se).

Observa-se, portanto, que tanto a doutrina, quanto a própria juris-


prudência vêm reconhecendo a legitimidade e a adequação dos processos
estruturantes para a promoção de políticas públicas e proteção de direitos
fundamentais. Isto claro, se observada a subsidiariedade da intervenção
judicial – em respeito ao princípio da separação dos poderes e à discri-
cionariedade administrativa -, assim como as características processuais
intrínsecas à demanda estrutural – as quais tornam a tutela jurisidicional
mais justa, efetiva e democrática.

517
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a intenção de promover modificações institucionais exitosas, os


processos estruturais, por intermédio de suas especificidades processuais,
possibilitam que as decisões proferidas pelo Judiciário comportem alto
grau de legitimidade e sejam o procedimento mais adequado para prote-
ção de direitos fundamentais e promoção de políticas públicas.
Em verdade, a reafirmação de direitos fundamentais e/ou da imple-
mentação de políticas públicas só são possíveis com tamanho êxito se pre-
sente i) a eficiência da tutela jurisidicional, ii) a permeabilidade da deman-
da, iii) a plausibilidade e factibilidade dos remédios proferidos, e iv) a vasta
participação popular e sua representação adequada; características as quais
são garantidas pela demanda estrutural.
Diante do exposto, é possível observarmos o papel fundamental que o
Poder Judiciário possui - através dos processos estruturais - na proteção de
direitos prestacionais. Os magistrados atuam de forma legítima ao coloca-
rem em prática a nossa Carta Magna, implementando políticas públicas as
quais possam efetivamente tutelar e garantir direitos constitucionalmente
assegurados.
Por fim, é através de um tratamento factível, efetivo, adaptável, demo-
crático, pautado no princípio do contraditório, na representação adequada
e na busca pela pacificação social, que as decisões estruturantes se legiti-
mam e se demonstram adequadas ao determinar reformas estruturantes
as quais, convencionalmente, caberiam aos demais poderes implementar.

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cutivas atípicas. 2. ed., rev. e atual. - Salvador: Juspodivm, 2020.
519
MÍNIMO EXISTENCIAL COMO UMA
DAS CONDIÇÕES BÁSICAS PARA
O EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA
E A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA
BRASILEIRAS
Anderson Allan Damasceno de Medeiros99

INTRODUÇÃO

O Brasil é uma República Constitucional Federativa que se constitui


em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos a sobe-
rania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político. Também se sabe que,
no Brasil, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de repre-
sentantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição Cidadã, de
1988. Assim, o Chefe do Estado e seus funcionários são considerados re-
presentantes do povo, devendo governar de acordo com as pretensões dos
cidadãos que os elegem.
Entretanto os cidadãos brasileiros parecem não exercer plenamente
seus direitos democráticos, dentro da democracia representativa brasileira.
As estruturas política e social brasileiras fazem com que a população não
tenha seus interesses atendidos por seus representantes com efetividade.

99 Graduado em Direito pela UERN e Pesquisador do projeto intitulado “CIDADANIA, DE-


MOCRACIA PARTICIPATIVA E AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NO ÂMBITO DO PODER LEGISLATIVO DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE– ETAPA I”.

520
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Isso acontece, entre outros motivos, por causa das falhas existentes no sis-
tema representativo de democracia brasileira e, também, pela condição
socioeconômica da maioria da população em nosso país, que não conse-
gue exercer seus direitos por não os conhecer, ou por não ter meios aces-
síveis para reivindicá-los.
É a falta do mínimo existencial, ou da mínima condição de dignida-
de da pessoa humana, que afasta os cidadãos do exercício de seus direitos
políticos, e que reduz sua possibilidade de reivindicá-los.
De acordo com a própria Declaração dos Direitos Humanos da
ONU de 1948, todo ser humano e seus familiares têm direito a uma qua-
lidade de vida tal, que lhes sejam assegurados saúde, alimentação, habita-
ção, vestuário e serviços de previdência social. A Carta Magna também
eleva a educação à categoria de direito fundamental, contudo, como infe-
lizmente pode-se perceber, o Brasil não oferece esses benefícios aos seus
cidadãos, tal qual deveria ser feito, por lei.
Nosso modelo de democracia representativa distancia os cidadãos
da participação no poder público, mesmo que elejam seus representantes,
por sufrágio universal. O modelo eleitoral brasileiro não possibilita que
os legítimos representantes do povo sejam eleitos, para governar, porque
os partidos políticos e as regras eleitorais, ou mesmo a mídia, distanciam
os escolhidos, nas eleições, das verdadeiras pretensões do eleitorado, em
relação aos seus candidatos.
A filiação partidária prévia como condição para elegibilidade mo-
nopoliza a eleição aos partidos políticos. Os grandes partidos brasileiros
têm um poder de grande controle político em nosso país. Além do mais, o
sistema eleitoral proporcional do legislativo faz com que candidatos, sem
maioria de votos, possam ser eleitos.
Além disso, apesar de algumas tentativas de solucionar o problema
da influência financeira nas campanhas eleitorais, como as novas regras
da reforma política de 2017, que aprovou o estabelecimento do limite de
gastos por candidato nas campanhas eleitorais, a influência financeira con-
tinua exercendo papel decisivo em tais campanhas.
O autofinanciamento e as doações, nas campanhas eleitorais, per-
manecem; além do tempo desigual, para os candidatos, de participação no
horário eleitoral; e da cláusula de barreira, que é uma regra que limita a
possibilidade de participação no horário eleitoral, como também limita o

521
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

direito a uma parcela do fundo partidário, que está ligada à representativi-


dade dos partidos na Câmara dos Deputados.
As grandes empresas nacionais e estrangeiras também exercem in-
fluência decisória no cenário político brasileiro. Essas pessoas jurídicas de
direito privado influenciam as campanhas políticas, escolhendo represen-
tantes de seus próprios interesses para concorrerem nas campanhas elei-
torais.
Caso seja feita, por exemplo, uma comparação simples entre o Brasil
e outros países, nos quais a população tem uma participação democrática
mais eficiente, coincidentemente na grande maioria desses países são en-
contradas algumas características em comum, tais como: baixos índices
de corrupção, educação de boa qualidade, serviços públicos bem estrutu-
rados e desigualdades sociais pequenas. De certa forma, o mínimo exis-
tencial é mais amplamente presente na a população em países nos quais a
participação dos cidadãos no regime democrático é mais eficiente.
Entre as opções atuais de participação cidadã no cenário político
brasileiro, têm ganhado destaque o instituto do Amicus Curiae, a parti-
cipação popular em Audiências Públicas parlamentares e a experiência do
Orçamento Participativo.

1 EFICIÊNCIA DA DEMOCRACIA EM OUTROS PAÍSES


E OS MOTIVOS QUE TORNAM O BRASIL POUCO
DEMOCRÁTICO EM COMPARAÇÃO A TAIS PAÍSES

Mundialmente existem alguns países que são considerados exemplos


de participação democrática popular, estando entre eles: Noruega, Fin-
lândia, Dinamarca, Nova Zelândia, Suécia, Austrália, Canadá, Islândia e o
Uruguai. Analisando-se a razão que faz com que a democracia em outros
países seja considerada mais eficiente do que a brasileira, importa, portan-
to, analisar países localizados na Europa, nas Américas do Norte e do Sul,
e na Oceania, abrangendo várias partes diferentes do Mundo.
Entre alguns desses países usados como exemplo existe uma caracte-
rística em comum: Noruega, Dinamarca, Nova Zelândia, Suécia, Austrá-
lia e Canadá são monarquias constitucionais. Possuem regimes de gover-
no diferentes do adotado no Brasil. A Islândia e a Finlândia são Repúblicas
Parlamentares, e o Uruguai é uma República Representativa Presiden-

522
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

cialista, assim como a brasileira, mas com algumas peculiaridades que a


tornam mais eficiente que a Democracia do Brasil, em termos de partici-
pação de cidadania, ou de efetividade democrática.
A Noruega é considerada um dos países onde a democracia é mais
eficiente em todo do mundo. Entre as características analisadas para se
chegar à tal eficiência democrática, podem ser citadas: o processo eleitoral
e pluralismo, as liberdades civis, o funcionamento do governo, participa-
ção política da população e cultura política (ÍNDICE DA DEMOCRA-
CIA. WIKIPEDIA A ENCICLOPÉDIA LIVRE). Lembrando que esses
dados também são considerados para os outros países citados no exemplo,
além da própria Noruega. Na verdade, a Noruega foi considerada o país
mais democrático do mundo, por vários anos, e em vários estudos.
O que se sabe a respeito dos fatores que fazem da Noruega esse
exemplo de democracia é que: o Estado norueguês é forte, todavia tem
pouca corrupção. Além disso, a confiança da população no governo, alia-
da aos altos impostos, criam bons serviços públicos. Então, percebe-se
que a corrupção não desvia os recursos públicos de sua finalidade, crian-
do os serviços que atendem bem a população. Adicionalmente, a cultura
igualitária norueguesa é bastante forte, o que se atribui a sua religião de
origem protestante, provavelmente, de modo que essa igualdade promova
a ocorrência do mínimo existencial, possibilitando à população exercer
seus direitos democráticos (CHAMY, 2015).
A Finlândia é uma república parlamentar, onde os finlandeses des-
frutam de um dos melhores sistemas de educação do mundo, de uma das
menores taxas de corrupção do mundo, de um eficiente modelo de justiça
e igualdade social, que procura oferecer saúde, educação e moradia para
todos, generosas licenças-paternidade100 para cuidar das crianças, e creches
altamente subsidiadas ou até gratuitas, além de uma vasta e solidária rede
universal de proteção aos cidadãos (WALLIN, 2018). Desse modo, perce-
be-se que os finlandeses têm acesso a um mínimo existencial proporcio-

100 Quando uma criança nasce na Finlândia, a mãe tem direito a 105 dias úteis de licen-
ça-maternidade. O pai recebe outros 54 dias úteis de licença. Além disso, os casais podem
dividir entre si um período adicional de mais de cinco meses de licença parental. Fonte:
WALLIN, Claudia. Como oportunidades iguais a ricos e pobres ajudaram Finlândia a virar
referência em educação. BBC NEWS | Brasil. 18 set. 2018. Disponível em: <https://www.
bbc.com/portuguese/internacional-45489669>. Acesso em 11/11/2020.

523
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

nador de dignidade e participação política. A democracia finlandesa tem


eficácia participativa.
A Dinamarca é uma monarquia constitucional baseada em uma de-
mocracia parlamentarista. Tem uma das menores desigualdades sociais
do mundo, contando um com bem-sucedido Estado de bem-estar so-
cial e uma baixa incidência de corrupção. Na Dinamarca existe o maior
peso tributário da União Europeia (UE) a um sistema que ajuda a mão de
obra desempregada a encontrar trabalho e aprimoramento (O GLOBO
ECONOMIA, 2014). A corrupção baixa não desvia os recursos públicos
de seus interesses, e as necessidades populacionais são bem atendidas. O
mínimo existencial oferecido à população contribui para a boa eficiência
democrática dinamarquesa.
A Nova Zelândia é uma democracia parlamentar independente; e é
uma monarquia constitucional oficialmente. Tem uma renda média do-
méstica per capita de US$ 21.773 por ano. Além disso, tem baixos índices
de desemprego, associados a índices de escolaridade razoáveis. A expec-
tativa de vida no nascimento, na Nova Zelândia, é de 81 anos, um ano a
mais do que a média da OCDE, de 80 anos. A Nova Zelândia é pratica-
mente empatada com a Dinamarca em relação à corrupção: é considerada
um dos países menos corruptos do mundo (MARQUES). Isso demonstra
que o mínimo existencial está presente neste país, para que os neozelan-
deses exerçam plenamente seus direitos democráticos.
A Suécia é uma monarquia constitucional parlamentarista. Atual-
mente, impostos mais altos e uma luta implacável contra a desigualdade
estão fazendo com que a Suécia volte a ser grandiosa. O modelo de im-
postos altos e muito bem-estar, também em uma economia globalizada,
proporciona a obtenção do mínimo existencial necessário ao exercício dos
direitos de participação democrática dos suecos (O GLOBO ECONO-
MIA, 2018).
A Austrália é uma monárquica constitucional parlamentarista. Lá
existem muitos poucos pobres e a diferença salarial entre as pessoas é bas-
tante baixa. Também existem saúde e segurança pública de qualidade,
além de boa educação. A corrupção é baixa, estando a Austrália entre os
11 países menos corruptos do mundo. Portanto, o mínimo existencial da
população é atendido (JERRYSTRAZZERI).

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O Canadá é uma monarquia constitucional, e é considerado um


dos países que mais progridem socialmente no mundo. Para embasamento
dessa informação, são considerados fatores como o acesso a necessidades
básicas (comida e moradia), bem-estar, a igualdade de oportunidades na
educação e liberdade pessoal (GUIMARÃES). Então, o Canadá também
oferece condições para que sua população alcance o mínimo existencial, e
exerce uma participação democrática mais efetiva.
A Islândia é uma república democrática representativa parlamen-
tar. O país detém os menores índices de criminalidade do mundo. Nesse
país, quase não há diferença entre as classes sociais, em termos de padrão
de vida. Por causa disso, praticamente inexiste tensão econômica entre
classes. Os sistemas de serviços públicos e de educação do país promovem
a igualdade. Assim, pode-se concluir que a população islandesa, afastada
de crimes, e beneficiada de igualdade e justiça social, alcança o mínimo
existencial desejado, para exercer seus direitos democráticos. (MUNDO,
2014).
O Uruguai é uma república representativa presidencialista. O Uru-
guai possui o menor índice de percepção da corrupção da América Latina,
segundo o relatório anual da ONG Transparência Internacional. O índice
de corrupção do Uruguai tem classificação praticamente idêntica a dos
Estados Unidos (PALACIOS, 2018). Isso demonstra que nesse país está
presente um dos fatores que, também presente nos outros países mencio-
nados, auxilia na eficiência do regime democrático e na oferta do mínimo
existencial para os cidadãos poderem exercer seus direitos democráticos: o
baixo índice de corrupção.
No Uruguai, há uma democracia estável, com regras que são cum-
pridas, sem hipótese de violência, com diálogo e confiança nas regras ins-
titucionais. O Uruguai é o país latino-americano com o maior índice de
democracia e do qual os habitantes estão mais satisfeitos com essa forma
de governo, onde a corrupção é baixa, e a democracia é mais efetiva; e
existe uma abertura em combinação com políticas trabalhistas e sociais
progressistas. Nesse país, considera-se que existe uma política de inclusão
e de direitos em todos os sentidos.
O mínimo existencial para que a população uruguaia possa exercer
seus direitos democráticos está presente nessa sociedade; e, para demons-
trar isso, analisando esse país, se entende que a corrupção baixa, as polí-

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

ticas de inclusão e de direitos, a satisfação da população, sua confiança no


governo e o fortalecimento dos trabalhadores e dos sindicatos, além de
altos índices de alfabetização, considerados os mais altos da América La-
tina (EDUCAÇÃO NO URUGUAI. WIKIPEDIA), possibilitam que
a condição mínima de dignidade da própria pessoa humana seja atingida,
alcançando-se o mínimo existencial, e permitindo-se que a democracia
seja efetivamente plena.
Um jornal britânico intitulado “The Economist” elabora um
ranking do “Índice de Democracia”, no qual o Uruguai, na América do
Sul, e os demais países analisados juntamente com o Uruguai, são consi-
derados muito mais democrático do que o Brasil. O índice leva em conta
cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcio-
namento do governo, participação política e cultura política.
No Brasil o processo eleitoral é considerado limitador das liberdades
democráticas, em virtude da existência de partidos políticos poderosos,
mídia atuante e influente no cenário político, de forma decisiva; e elite
monopolizadora de interesses. As liberdades civis da população também
são limitadas, em virtude de seu baixo poder aquisitivo e da grande desi-
gualdade social. A participação política e a cultura política são baixas, já
que a escolarização, e o nível de esclarecimento da população são precá-
rios, e as condições necessárias para que seja atingido o mínimo existencial
não são alcançadas.
Como consequência disso, o funcionamento do governo, não cor-
responde às necessidades da população, não atendendo seus interesses. O
governo não direciona sua atuação a fim de solucionar plenamente os pro-
blemas sociais no Brasil, mas procura cumprir seus compromissos com a
mídia, a elite, os próprios partidos políticos, ou mesmo grandes empresas
internacionais. O regime representativo presidencialista brasileiro não pro-
porciona a participação política efetiva da população, de modo que a contra-
prestação dos governantes brasileiros aos seus eleitores é insuficiente.
A corrupção de elite governante associada à baixa escolaridade da
população são fatores decisivos para que uma grande parte dos cidadãos
brasileiros não tenha alcançado o estágio de mínimo patamar de dignida-
de, mínimo existencial, para que, assim, possa exercer influência efetiva
no poder público, que parece ser sempre um governo distante dos eleito-
res que elegem seus “representantes”.

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Todavia falta ainda compreender o que está em comum em países


como Noruega, Finlândia, Dinamarca, Nova Zelândia, Suécia, Austrália,
Canadá, Islândia e Uruguai, que estão espalhados pelos continentes Ame-
ricano, Europeu e da Oceania, e que têm regimes de governo diferentes,
sendo: monarquia constitucional, república parlamentar e República Re-
presentativa Presidencialista. O que aproxima esses países a ponto de fazer
que eles tenham um sistema democrático considerado mais eficiente do
que o brasileiro?
Apesar do sistema de governo ser variado entre eles, pode-se cons-
tatar que todos apresentam escolaridade da população bem mais elevada
do que a brasileira, além disso os índices de corrupção são acentuada-
mente mais baixos, a desigualdade social também é bem menos acen-
tuada do que a desigualdade social brasileira, que é muito elevada; os
serviços públicos são mais eficientes e o nível de renda da população é
mais elevado.
Esses fatores em comum nesses países oferecem o mínimo existen-
cial à população de cada um deles. Os cidadãos têm dignidade, segurança,
saúde, educação, trabalho, lazer, moradia e os demais fatores necessários
para que possam existir com dignidade: o mínimo existencial é alcançado
pelos cidadãos, e mantido pelo governo.
O mínimo existencial possui, nesses países privilegiados, uma re-
lação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de
Direito, no comprometimento que este deve ter com a concretização da
ideia de justiça social (FILHO, 2016).
Assim, os cidadãos participam mais do governo e, em contrapartida,
o governo realiza políticas voltadas para os cidadãos em geral, e não volta-
das para os interesses da elite, que nesses países, não está tão distante dos
cidadãos mais pobres, como acontece no Brasil.

2 LIBERDADE DOS CIDADÃOS COMO PRINCIPAL


DIREITO DEMOCRÁTICO, OU MERA ILUSÃO?

Na sociedade brasileira o poder de influência social da mídia e a força


política da elite, engrandecida pela desigualdade social, fazem com que a
suposta liberdade de escolha dos cidadãos, principalmente em termos po-
líticos, seja manipulada, atendendo aos interesses de determinados grupos

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

de pessoas, que se distanciam muito das necessidades básicas da popula-


ção, quando detém em suas mãos o poder público.
Quando os eleitores brasileiros vão às urnas, exercer seu direito de su-
frágio universal, imaginam que estão escolhendo democraticamente seus
candidatos, mas, na verdade, isso não acontece plenamente. Os cidadãos
devem votar naqueles candidatos vinculados à partidos políticos, que, por
sua vez, têm sua filiação a tais partidos bastante planejada. Os partidos,
além do mais, são instituições poderosas e influentes, que estão fortemen-
te ligados à elite. Além disso, a própria competição entre os partidos é
desigual, porque depende da representatividade política do partido, do
acesso ao fundo partidário de campanha, do financiamento de campanha
ou da participação na propaganda eleitoral gratuita (que é desigual).
Por isso, quando aparece uma lista de candidatos a serem voltados
em uma campanha eleitoral qualquer, os eleitores não tiveram, no caso
do Brasil, a completa liberdade de escolha entre esses candidatos, por-
que eles já foram selecionados previamente por outros grupos de pessoas,
que detêm em suas mãos os poderes econômico e político brasileiros. Os
eleitores não escolhem exatamente o candidato que eles querem, mas sim
aquele que é indicado pelo poder econômico.
A liberdade de escolha dos cidadãos é muito limitada, em termos
políticos. Além disso, as campanhas eleitorais são excessivamente caras,
dependendo de uma grande quantidade de dinheiro investido pelos can-
didatos, para que aja a certeza de competitividade ente eles. Um candidato
sem recursos tem chances muito limitadas no cenário eleitoral brasileiro.
O capital é um fator decisivo, para a escolha dos candidatos, em campa-
nhas eleitorais no Brasil.
Sob essa ótica, pode-se entender que a liberdade de escolha dos ci-
dadãos, que é um direito democrático constitucionalmente reconheci-
do, não atinge sua plenitude, porque, antes do eleitor escolher, já houve
uma escolha prévia, que selecionou candidatos mais adequados aos inte-
resses de outros grupos de pessoas, divergentes, geralmente, da maioria
dos cidadãos.
Portanto, a liberdade que os cidadãos brasileiros imaginam ter, no
exercício de seus direitos democráticos, na verdade é restrita. Não é plena.
É uma ilusão de liberdade. Meramente, uma ilusão.

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Através, contudo, do uso de alguns instrumentos que enfatizam e


viabilizam a participação popular, seria possível reagir a essa realidade
macabra, sendo alguns deles: representação política; plebiscito; coleta de
opinião; debate público; audiência pública; colegiado público; cogestão
paraestatal; assessoria externa; delegação atípica; provocação de inqué-
rito civil; denúncia aos tribunais ou conselho de contas; e reclamação
relativa à prestação de serviços públicos (LEITE; MENEZES; ALCO-
FORADO, 2017).
Também podem ser lembrados outros instrumentos, que têm a ca-
pacidade de elevar a participação democrática dos brasileiros: o instituto
jurídico do Amicus Curiae, a participação popular em Audiências Públi-
cas parlamentares e o Orçamento Participativo. Entretanto, a população
brasileira parece não se importar com o contexto social de exclusão. Não
procura fazer uso efetivo desses instrumentos importantes.
A educação da maioria dos cidadãos em nosso país ainda não conse-
guiu esclarecê-los a respeito desses instrumentos. Ainda não tornou pos-
sível que o pensamento crítico influa em quantidade suficiente em suas
opiniões, a ponto de fazer com que exerçam mais intensamente seus di-
reitos democraticamente, que são constitucionalmente assegurados. Nes-
se sentido, podem opinar David de Medeiros Leite, Patrícia Moreira de
Menezes e Rogério Emiliano Guedes Alcoforado:

Esta não é apenas uma garantia formal. O princípio constitucional


da participação popular é uma prerrogativa do Estado Democrá-
tico de Direito, dado que sua finalidade é o aperfeiçoamento da
democracia, visto postular o equilíbrio (ao menos teórico) entre a
representatividade e a ação direta dos cidadãos. (LEITE, MENE-
ZES, ALCOFORADO, 2017, p. 133).

Se a população em geral no Brasil ainda não usufrui sequer de seu


mínimo existencial para que tenha dignidade suficiente para viver, tam-
bém não consegue exercer seus direitos de participação política, porque
está privada de educação suficiente para obter esclarecimentos, não tem
o atendimento público necessário em muitas áreas, como saúde ou se-
gurança e, além do mais, não confia no governo, porque o poder público
parece não estar interessado em governar para a população mais pobre, e,

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em vez disso, parece tentar beneficiar a elite, em uma troca interminável


de favores e acordos.

3 MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO CIDADÃ

Em uma sociedade em que seus cidadãos têm consciência, esclarecimen-


tos e condições dignas para exercer plenamente seus direitos políticos demo-
cráticos, existe eficiência democrática, e também existe, de um modo geral,
o mínimo existencial ofertado a todos os cidadãos, a fim de que dignamente
possam exercer sua participação política, de acordo com seus direitos.
Dessa forma, o uso dos mecanismos que a própria legislação nacional
oferta é realizado e a sociedade em geral interage politicamente, partici-
pativamente. No Brasil existem vários instrumentos que poderiam estar
sendo mais eficientemente usados pelos cidadãos, a fim de questionarem
os atos do poder público, assim como também de participarem de suas de-
cisões, democraticamente. Entre eles, podem ser mencionados: plebiscito,
referendo e iniciativa popular, presentes na Constituição Federal (CF/88,
14, I, II E III), accountability, instituto do amicus curiae, audiência públi-
cas e orçamento participativo.
Esses instrumentos podem ser referenciados como alguns dos mais
efetivos para a realização da participação popular juntamente ao poder pú-
blico, no pleno exercício dos direitos cidadãos democráticos dos brasilei-
ros. A Carta Magna diz em seu artigo 14 que:

A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo


voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da
lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular.

O plebiscito consiste em fazer uma consulta prévia à sociedade, sendo


que, a depender dos resultados obtidos, poderão ser adotadas providências
na esfera legislativa; o referendo pode ser compreendido como sendo uma
consulta à população, com a finalidade de obter sua opinião, autorizando
ou não, determinadas normas legais, que estejam relacionadas ao interesse
dos cidadãos; a iniciativa popular é a possibilidade dos cidadãos exercerem
seus direitos democráticos, através da manifestação de seus interesses aos
governantes.

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Nesse contexto, o accountability está perfeitamente bem inserido,


porque esse mecanismo é uma ferramenta eficaz, no controle, fiscalização,
responsabilização, ou ainda prestação de contas, por parte do poder públi-
co, aos cidadãos. Essa ferramenta torna mais difícil que políticos em geral,
ao assumirem cargos públicos representativos, tomem decisões de quais-
quer espécies, sem que a população seja informada, ou ainda sem que haja
preocupação com a opinião dos cidadãos. No Brasil o Tribunal de Contas
da União (TCU) o Ministério Público (MP) são instituições públicas que
exercem o controle e fiscalização de outras instituições, consistindo em
uma espécie de accountabiliy das ações públicas.
Todavia, a população também pode fazer uso dessa ferramenta, fisca-
lizando, através de todas as formas disponíveis, as ações do poder público
que possam ser significativas socialmente. Existem alguns mecanismos à
disposição da sociedade, que tornam mais transparentes os atos do go-
verno, como o próprio portal transparência, da Controladoria-Geral da
União, que é uma ferramenta desenvolvida para permitir que a sociedade
acompanhe o uso dos recursos públicos e tenha uma participação ativa na
discussão das políticas públicas e no uso do dinheiro.
Apesar do accountability realizado pela sociedade não ser dotado da
capacidade de aplicação de sanções contra governantes transgressores das
normas legais, essa ferramenta fiscalizadora funciona como instrumento
de participação, esclarecimento e cobrança social, sobre o poder público.
Em países onde a democracia é considerada mais eficiente e participativa
do que no Brasil, como no caso do Uruguai, o accountability é um ins-
trumento muito mais popular e incidente do que no território brasileiro.
Já o instituto do Amicus Curiae é considerado um dos instrumentos
de efetivação da democracia deliberativa no âmbito da jurisdição consti-
tucional, porque, com um processo qualquer em tramitação na justiça o
juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do
tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, pode-
rá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de
quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa
natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representativi-
dade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
Assim, é possível identificar que o instituto do Amicus Curiae (amigo
da corte), insere, no âmbito da Suprema Corte, elementos da democracia

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

deliberativa, tornando-a mais permeável aos múltiplos valores e anseios


sociais (JUNIOR, 2018).
Com relação às audiências públicas parlamentares, sabe-se que con-
tribuem para a transcendência do sistema representativo para o participa-
tivo. Dentre os institutos existentes na ordem constitucional hodierna, as
audiências públicas, enquanto eventos políticos abertos à população, pos-
sibilitam que pessoas físicas, entidades e órgãos sejam chamados a debater,
criticar e posicionar-se a respeito de algum tema de interesse público ou
para emitir opinião técnica que possa contribuir com o exercício da ativi-
dade estatal, podendo ser realizadas em todos os entes federativos, em suas
esferas executiva, legislativa e judiciária (JUNIOR, 2018).
O Orçamento Participativo é um instrumento de Democracia Par-
ticipativa, promovendo a participação decisória no orçamento municipal.
Em função disso, é preciso saber se ele está devidamente institucionaliza-
do ou se a não regulamentação em nível nacional obsta a sua efetividade,
já que o seu conteúdo jurídico decorre da normatividade dos princípios
constitucionais. Entretanto, em termos de participação da população no
orçamento municipal, o orçamento participativo é um instrumento ge-
nuinamente democrático e que efetiva a participação cidadã. Tem uma
significativa relação com o regime participativo (JUNIOR, 2018).
O plebiscito, o referendo, a iniciativa popular, o accountability, o
instituto do amicus curiae, as audiências públicas e o orçamento partici-
pativo não incluem todas as alternativas de participação cidadã, através da
democracia, nas tomadas de decisões do poder público. Todavia, mesmo
essas alternativas mencionadas não são totalmente exploradas pela popu-
lação, porque, além dos cidadãos não confiarem no governo, por serem
decepcionados com sua atuação, não encontram, em sua grande parte, o
amparo dentro dos princípios da dignidade da pessoa humana, para que
atinjam o mínimo existencial necessário para que coloquem em prática os
mecanismos de participação democrática, que estão ao seu alcance.

4 CIDADANIA E CONSTITUIÇÃO DESRESPEITADAS NO


BRASIL

Constitucionalmente temos leis brasileiras que protegem os cidadãos


e conferem a eles o mínimo existencial, de modo que tenham a condição

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mínima de dignidade necessária para poderem exercer seus direitos de


participação democrática cidadã. Entretanto, apesar dos direitos existirem
em nossa própria Carta Magna, eles não são exercidos pelos cidadãos, ou
não são efetivados.
Um exemplo bastante esclarecedor desse fato está no nível de renda
de alguns cidadãos brasileiros, que vivem com um salário mínimo somen-
te, tendo uma vasta família para sustentar. De acordo com e Lei Maior, em
seu artigo 7º, inciso IV:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de ou-


tros que visem à melhoria de sua condição social: (...) IV - salário
mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender
a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte
e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o
poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Entretanto, quando o Estado se depara com um direito fundamental


amparado pelo mínimo existencial, ele alerta que deve ser observada a re-
serva orçamentária que tem disponível, ou seja, o Estado realiza somente
o que está dentro de sua capacidade econômica ou possibilidade financeira
(PIRES). Assim, mesmo que a Carta Magna determine certos limites mí-
nimos de dignidade para a população, o Estado só pode cumprir isso caso
tenha recursos financeiros para tal.
Assim, no Brasil o exercício da cidadania é limitado pela falta de atri-
buição do mínimo existencial à população, de modo que a mesma possa
exercer sua participação democrática efetivamente. Sem educação, não há
esclarecimento; sem assistência social, não há saúde ou segurança de qua-
lidade, o que deixa os cidadãos insatisfeitos com o governo e se sentido
ameaçados; sem trabalho, não há condições para obtenção de dignidade,
nem que seja através dos próprios esforços dos cidadãos.
Há, entretanto, a justificativa de que o Brasil não pode cumprir com
essas obrigações, sem que tenha recursos para tal. Hodiernamente, exis-
tem o entendimento de que os cidadãos somente podem requerer do Es-
tado prestações que estejam dentro do limite do razoável. Porém, se o que
falta são recursos, os índices de corrupção brasileiros também não estão

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dentro do limite do razoável, extrapolando o limite da reserva do possível


em tolerância, por parte da sociedade.
Educação de baixa qualidade cria eleitores “analfabetizados”101, ou
seja, cidadãos sem senso crítico nem esclarecimentos suficientes para po-
derem exercer seu direito de escolha adequadamente. Além disso, a cor-
rupção elevada desvia recursos, que poderiam melhorar as condições so-
ciais da população, que sofre com saúde e segurança precárias. Portanto, a
elite brasileira dominante parece, na verdade, se beneficiar dos problemas
sociais brasileiros, a fim de se perpetuar no poder.
A constituição não é respeitada em nosso país. Não é cumprida como
deveria ser. E a inexistência de recursos para efetivar o cumprimento da
Constituição, não justifica e ineficiência do governo brasileiro, ao não
possibilitar que a população alcance o mínimo existencial necessário, para
o exercício de seus direitos democráticos. Isso porque os recursos públi-
cos brasileiros são mal administrados, tendo a corrupção como um dos
principais problemas consumidores desses recursos, fazendo com que as
riquezas do Brasil continuem sendo extremamente mal distribuídas, e a
injustiça social prospere.

CONCLUSÕES

A participação popular é um instrumento cidadão, constitucional-


mente amparado. Legalmente, o Brasil permite que os cidadãos exerçam
participação política, existindo para essa finalidade vários mecanismos,
tais como o instituto do amicus curiae, as audiências públicas, o orça-
mento participativo, o accountability, e outros tantos mecanismos, tais
com: representação política; plebiscito; coleta de opinião; debate público;
audiência pública; colegiado público; cogestão paraestatal; assessoria ex-
terna; delegação atípica; provocação de inquérito civil; denúncia aos tri-
bunais ou conselho de contas; e reclamação relativa à prestação de serviços
públicos.
Apesar de tantas opções de mecanismos de participação política, a
grande maioria dos cidadãos não faz uso deles. Isso demonstra que a de-
mocracia brasileira não tem grande eficiência, até mesmo se comparada

101 Analfabetizados, nesse contexto, quer dizer analfabetos em termos de direitos eleito-
rais.

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com a democracia de outros países. Sabe-se que a desigualdade social, a


assistência social precária e os altos índices de corrupção brasileiros preju-
dicam a população e privam uma grande parcela dela do mínimo existen-
cial, que é diretamente ligado ao princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana.
O mínimo de dignidade, representado pelo mínimo existencial, se
ausente na população, faz com que a confiança que a sociedade tem pelo
governo, se torne ínfima.
Sabe-se, através de dados confiáveis, que, em outros países nos quais
o mínimo existencial é ofertado igualitariamente à população, a democra-
cia é considerada muito mais eficiente do que a brasileira. Também se sabe
que nesses países os índices de corrupção são baixos, a educação é de boa
qualidade, os serviços públicos são bem estruturados e as desigualdades
sociais são pequenas. Esses fatores em conjunto possibilitam que a popula-
ção atinja o mínimo existencial digno, que está inserido no próprio direito
fundamental da dignidade da pessoa humana.
Como no Brasil a educação e os serviços públicos são precários, a
desigualdade social é elevada e os índices de corrupção são muito altos, a
população é mal assistida, os recursos públicos são desviados para outras
rotas diferentes do interesse cidadão, e a democracia tem baixa eficiên-
cia. Como consequência a participação e a cidadania são irrelevantes. O
mínimo existencial da população é amesquinhado, diante do quadro de
problemas sociais e políticos brasileiros.
Dessa forma, para que a sociedade brasileira possa exercer plenamen-
te a participação no poder público, da qual tem direito; além de se bene-
ficiar de uma cidadania justa, no quadro da democracia brasileira; é es-
sencial que os cidadãos passem a atingir socialmente a condição chamada
de mínimo existencial, porque, relacionada a essa condição, está a própria
eficiência da democracia brasileira.

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537
OS EFEITOS DA VULNERABILIDADE
DO POSTULADO DO ESTATUTO
DO IDOSO E A CONTRIBUIÇÃO
DOS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA
NA PROTEÇÃO E DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA.
Camila de Carvalho Guimarães Ouro102
Flavia Lima Xavier103
Viviane Mello de Oliveira Spena104

INTRODUÇÃO

Esse estudo tem por finalidade realizar uma pesquisa aplicada, uma
vez que utilizará conhecimento da pesquisa fundamental para resolver o
problema da pesquisa. E, para melhor tratamento dos objetivos, será uti-
lizada a metodologia exploratória, com método de pesquisa bibliográfica,
com uso de materiais já elaborados - livros, artigos científicos, revistas,
documentos eletrônicos -, como forma de expandir os conceitos e abor-
dagens do assunto já trabalhados por outros autores.
A Pesquisa apresenta uma ordem na relação dos conceitos, primei-
ramente em torno da pessoa idosa, em seguida a Vulnerabilidade, num

102 Mestre.
103 Graduanda.
104 Mestre.

538
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

posterior tópico serão delimitados os princípios da Bioética e por último


a Dignidade Humana.
O problema foi direcionando para uma pesquisa voltada a área de
Proteção do idoso, a fim de responder: quais os principais impactos do
contexto atual de modernidade e avanço tecnológico na velhice?
O presente trabalho tem como objetivo geral apresentar a importân-
cia do ser humano conceituado como “idoso” que, diante de sua idade
cronológica, desenvolveu-se em uma sociedade com valores e tecnologias
diversas da sociedade atual, e, assim conscientizar esta sociedade sobre a
necessidade de protegê-lo e buscar meios de incluí-lo em sua cultura.

1. A PESSOA IDOSA

No contexto da História, desde a antiguidade, é possível observar que


os idosos eram pessoas respeitadas. Para essa pesquisa entende-se que pes-
soa idosa é aquela que possui idade igual ou superior a 60 anos.
Esse conceito sofreu variações ao longo das civilizações.
A história indica que as pessoas viviam menos em épocas passadas, em
razão da condição humanitária precária que lhes eram oferecidas. Acredi-
tava-se que as pessoas com idade mais avançada eram sábias, em razão das
experiências por elas já vividas, de modo que, assim, estas eram tidas como
referências a serem seguidas.
Nesta época, era como se os cabelos brancos ostentados demonstras-
sem muito mais do que os anos já vividos. Como se cada um desses fios
contasse, por si só, uma experiência. Cada ruga era como um reflexo das
diversidades enfrentadas. E a condição de “idoso”, era um agradecimento
pela história vivida.
Portanto, as pessoas idosas eram tidas como modelos a serem segui-
dos, os que os jovens respeitavam e recorriam a eles para ouvirem seus
conselhos e confiarem seus negócios.
Seguindo esse pensamento, José Reinaldo de Lima Lopes (p. 07,
2008) traz em sua obra:

A valorização das particularidades, valorização da vida material,


quantificações, percepção de ruptura, percepção de continuidades
e finalmente lembro um recurso usado por Braudel: distinguir um

539
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

nível do tempo longo e preguiçoso, o nível das civilizações. Em se-


guida, um nível mais acelerado de tempo, o tempo das sociedades
ou formações sociais. Em terceiro lugar, o ritmo nervoso do tempo
dos acontecimentos conjunturais e cotidianos. Movemo-nos três:
pertencemos a grupos de vidas cotidiana submetidos à conjuntura,
ao ritmo das redações dos jornais cotidianos (LOPES, 2008).

Com o tempo, as transformações sociais refletiram nas relações e va-


lores, alterando o tratamento dado aos idosos.
A população idosa que antes era titulada como sábia e exemplo a ser
seguido, na atualidade, um mundo cada vez mais capitalista, passou a ser
vista como seres incapazes de produzirem e colaborarem com o mercado,
necessitando serem “sustentados” pela população mais jovem, tornaram-
-se cidadãos inativos.
Sandra Márcia Ribeiro Lins de Albuquerque (p. 79, 2003) traz:

A “qualidade de vida na velhice” é uma meta a ser alcançada ado-


tando-se medidas e programas para que os idosos sejam vistos como
um recurso valioso para a sociedade e não como um fardo confor-
me afirmou o Diretor da Divisão de Desenvolvimento e Políticas
Nacionais da ONU, Johan Scholvinck, durante a 2º Assembléia
Mundial das Nações Unidas sobre o Envelhecimento, ocorrida em
Madri, em abril de 2002. (ALBUQUERQUE, 2003).

No Brasil, em 1994, foi criada a Política Nacional do Idoso, regula-


mentada pela Lei 8.842/94, na qual traz em seu texto o objetivo de asse-
gurar os direitos sociais das pessoas idosas. Assim, surge a regulamentação
das formas e condições de tratamento que devem ser dispensadas por essas
pessoas. Criou-se a possibilidade de promover sua autonomia, integração
e participação efetiva na sociedade.
Já em 2002, o Decreto 4.227, de 13 de maio de 2002, instituiu o
Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, órgão vinculado ao Ministé-
rio da Justiça, cuja sua competência consiste em supervisionar e avaliar a
Política Nacional do Idoso, entre outras funções relacionadas à matéria.
Contudo, para muitos, somente com a Lei nº 10.741/03 é que se con-
sidera o verdadeiro início da história dos Direitos Especiais aos Idosos no
Brasil, sendo intitulada como Estatuto do idoso.

540
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O Estatuto do idoso entrou em vigor no dia 4 de janeiro de 2003 e


é considerada um marco na história dos idosos, em razão de que nela fo-
ram estabelecidas regras de direito público, privado, previdenciário, civil
e processual civil, incluindo ainda a proteção penal do ancião. Portanto, o
referido texto legal constitui, sem dúvida alguma, a consagração legal da
Política Nacional do Idoso.

2. VULNERABILIDADE

A exigência de proteção aos indivíduos vulneráveis aplica-se às pes-


soas incapazes de exercer sua liberdade, por contingências físicas, naturais
e a grupos incapazes por consequências sociais e políticas.
Encarada como capacidade ou liberdade limitada, a ideia de vulnera-
bilidade aplica-se aos grupos que por alguma circunstância física, psíquica
ou social (incluindo também o aspecto econômico) poderão ser conside-
rados vulneráveis, sendo importante a exigência ética de sua defesa.
O aspecto fundamental da vulnerabilidade como princípio ético seria o
de formular essa obrigação de ação moral. A vulnerabilidade como princí-
pio obrigaria a reconhecer que todas as pessoas são vulneráveis em essência e
podem ser feridas por outrem, exigindo-se, portanto, respeito para a absten-
ção de qualquer prejuízo (ação negativa), mas também uma ação positiva na
exigência de zelo, cuidado e solicitude para com a vulnerabilidade inerente.
Existem dois tipos de vulnerabilidade, a relativa, em que a pessoa
possui certa autonomia, e a absoluta em que a pessoa carece um amparo
total para reger sua vida, sendo uma questão de interpretação (BITEN-
COURT,2012).
Todo princípio exprime uma obrigação que se impõe à consciência
moral sob a forma de um dever a ser cumprido.
A vulnerabilidade absoluta e a vulnerabilidade relativa não devem ser
confundidas com presunção absoluta e relativa de vulnerabilidade. Exis-
tem dois juízos de cognição, em que primeiro se avalia a presunção ab-
soluta e relativa de vulnerabilidade, que é a natureza da presunção legal
(explícita ou implícita), em que na presunção absoluta de vulnerabilida-
de presume-se que a pessoa é, sem discussão, vulnerável, sem que haja
nenhum questionamento sobre tal fato, pois se trata de uma presunção
que não admite prova em sentido contrário, enquanto que na presunção

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

relativa de vulnerabilidade, a pessoa pode ou não ser vulnerável, ao que o


caso concreto deve ser analisado, admitindo prova em sentido contrário
(BITENCOURT,2012).
Com relação à vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa, por
sua vez, esta se trata de um segundo juízo de cognição, em que o questiona-
mento que se faz, partindo do pressuposto que a vulnerabilidade existe, seja
relativa ou absoluta, tem-se que valorar o grau de vulnerabilidade da pessoa.
Para tanto, o legislador elenca algumas situações, como o fator idade, para
caracterizar a pessoa vulnerável e a necessidade de proteção estatal sobre ela,
o que será verificado de acordo com o caso concreto. A vulnerabilidade é
uma expressão genérica e por isso não se aplica ao Direito diretamente, pois
este requer noções precisas, instituídas e estatutárias (FAVIER, 2012).
Os direitos das pessoas são provenientes, inicialmente, da qualidade
distintiva que elas possuem diante dos demais seres, a dignidade humana.
Na atualidade, as Declarações de Direitos existentes no plano interna-
cional e as Constituições dos países livres trazem em suas disposições um
capítulo ou artigo referente aos direitos e garantias fundamentais do ho-
mem, como sendo uma condição essencial da manutenção da vida.
Desta forma, reconhecem o princípio da dignidade da pessoa huma-
na como fundamental para a existência de vida com dignidade e, para
tanto, o inserem em suas legislações na busca de uma maior proteção às
pessoas em situação de vulnerabilidade e fragilidade social (GUERRA;
EMERIQUE, 2006).
Assim, a vulnerabilidade humana deve – por princípio – ser tomado
em consideração, o que corresponde ao seu reconhecimento como traço da
condição humana, considerando a finitude e fragilidade de todos os seres,
cuja existência é marcada pela exposição permanente a ser ferido. Essas con-
dição e situação, que funcionam como pedido de apoio ou de ajuda deve ser
entendido como condição persistente (enquanto seres limitados e mortais) e
como situação dada (nas quais limites e feridas se verificam concretamente).

3. PRINCÍPIOS ÉTICOS E DIGNIDADE DA PESSOA


HUMANA

O princípio do respeito pela autonomia sustenta muitas regras mo-


rais, tais como: “dizer a verdade.”, “respeitar a privacidade” “proteger

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

informações confidenciais.”, “obter consentimento para intervenções nos


pacientes.” E “quando solicitado, ajudar os outros a tomar decisões im-
portantes”.
Paralelamente à transformação da prática médica, advinda da incor-
poração das exigências científicas e, posteriormente, tecnológicas, hou-
ve também uma “transição paradigmática” no campo da ética. Nesta,
os antigos princípios de não maleficência e de beneficência via de regra,
os únicos a reger o ato médico até então já não podiam ser aceitos con-
sensualmente como válidos a priori e em qualquer situação, nem como
suficientes para garantir a eticidade do ato médico; nem, a fortiori, para
garantir a eticidade da pesquisa envolvendo seres humanos.
De fato, a historiografia da prática científica e médica ao longo do
século XX evidencia a crescente prática de abusos contra os sujeitos hu-
manos, aparentemente justificados pelo interesse científico.
Por outro lado, os acontecimentos que precedem o surgimento da
Bioética, especialmente os avanços tecnológicos na área da saúde e o clima
cultural do final dos anos 60, acabam por jogar por terra toda pretensão de
suficiência desses dois princípios tradicional.
No campo específico da ética aplicada, as práticas em pesquisa envol-
vendo seres humanos deverão lidar pelo menos em sociedades democráti-
cas seculares e pluralistas com o fato e ter que ser orientadas, também, por
outros princípios éticos ou até com concepções éticas estranhas ao modelo
dos princípios.
Dentre os princípios, destacam se o princípio da autonomia pessoal e
o princípio de justiça – conhecido também como princípio de equidade
e referido à escolha dos sujeitos, objeto de pesquisa, com particular aten-
ção aos sujeitos e populações denominados “vulneráveis”, que deverão
ser objeto de medidas especiais de amparo ou proteção. Assim sendo, ao
integrar esses outros princípios éticos num modelo de princípios válidos
prima facie, sem nenhum princípio tendo uma prioridade léxica sobre os
demais princípios, acontece àquela transição paradigmática em ética que
dará origem a vários modelos normativos, dentre os quais se destacará o
modelo principialista padrão, baseado numa matriz formada pelos qua-
tro princípios prima facie da beneficência, não maleficência, autonomia e
justiça. Este modelo está no fundamento de muitas resoluções e diretrizes
acerca das condições éticas necessárias para desenvolver pesquisas.

543
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Nas palavras do jurista Sarlet:

A dignidade da pessoa humana é um limite e uma tarefa estatal.


Pertence a cada indivíduo isoladamente, não podendo ser aliena-
da, violada ou perdida. Como prestação ativa imposta ao Estado,
o respeito à dignidade isoladamente, obter as condições para a rea-
lização de suas necessidades existenciais básicas, necessitando-se
aí do concurso de ações do Estado e da sociedade como um todo.
(SARLET, 2006).

4. A QUALIDADE DE VIDA E O ENVELHECIMENTO

Conforme descreve o doutrinador Garcia, sobre o processo de enve-


lhecimento de nossa população, sendo que este:

Processo de envelhecimento é uma etapa da vida do homem mar-


cado por várias mudanças físicas, sociais, afetivas, psicológicas e
que notadamente, acomete obliquamente o modo de vida daquele
da terceira idade. (GARCIA, 2020)

A qualidade de vida e o envelhecimento saudável requerem uma


compreensão mais abrangente e adequada de um conjunto de fatores que
compõem o dia a dia do idoso. Desta forma, a prioridade ao acesso à justi-
ça pelas pessoas da 3ª (terceira) idade é uma necessidade para consubstan-
ciar direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, previsto
em nossa Lei Maior.
Não há como, atualmente, pensar a sociedade sem observar que a
expectativa de vida aumentou, entretanto, faz-se necessário que se crie
mecanismos para que o idoso tenha seus direitos garantidos.
O idoso teve, também, nesta mesma legislação, garantidos os seus di-
reitos no que se refere à Saúde, Previdência Social, Habitação, Educação,
Cultura e Esporte. O Capítulo IV, do Estatuto do Idoso versa sobre o
direito à Saúde, conforme o artigo 15:

É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do


Sistema Único de Saúde, SUS, garantindo-lhe o acesso universal
e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e servi-

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

ços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde,


incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencial-
mente os idosos. (BRASIL, 2003).

Deveria não ser necessário ter que especificar através do postulado


Estatuto que o idoso é um ser humano que precisa ser tratado com digni-
dade. Deveria estar claro que a pessoa humana não pode ser excluída por
suas características, trocadas por tecnologia, ela é merecedora de respeito e
proteção por parte do poder público e também da sociedade, tem direitos
e deveres que lhes devem ser assegurados para que possam ter garantidos as
condições mínimas de sobrevivência, incluindo as, proporcionando uma
vida saudável, participação ativa e convivência com a sociedade.
O papel do idoso como um indivíduo que carrega a “bagagem” da
sabedoria, da vida, experiências e marcadas no tempo, na sua memória e
em seu próprio corpo, como elucida Silveira (2009, p. 14):

Comumente os idosos não são vistos, ouvidos, tocados, mas rejei-


tados, não desejados e, muitas vezes, ridicularizados pelas marcas
que o tempo cronológico deixou e que se evidenciam em seu cor-
po, em sua motricidade. Suas dificuldades são consideradas insu-
peráveis ou se constituem em obstáculos em relação a valores como
produtividade, rapidez e destreza. (SILVEIRA, 2009).

A participação do idosos na vida social está sempre em constante mu-


dança, variando de cultura para cultura, ao longo das diferentes épocas.
Mas, na verdade, apesar de poderem ser menos fortes, as pessoas mais ve-
lhas são, sem dúvida, um oceano de experiências e sabedoria que podem
servir como exemplo para gerações atuais.
As pessoas idosas deveriam desempenhar um papel fundamental na
transmissão de valores e na preservação de tradições, pois, são eles os guar-
diões de uma rica herança que poderia contribuir de forma cultural.
Que as novas gerações possam ser ensinadas a cultivar o respeito pelos
mais velhos, com o objetivo de agregar valores das gerações mais antigas.
No fundo, a ideia de aprender com os outros são cada vez mais desejados
por algumas pessoas da sociedade, ainda, e que se estenda para todos.

545
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O processo de envelhecimento constitui um fenômeno biopsicosso-


cial fortemente influenciado pela cultura e pelas condições e contextos de
vida.
Para além da heterogeneidade resultante das influências sociocultu-
rais, os pesquisadores enfatizam o fato de o envelhecimento ser um pro-
cesso altamente individualizado, pelo que variáveis pessoais diversas têm
um peso cumulativo no percurso de vida de cada um e, também, nos
limites e contornos do seu envelhecimento.
Assim, acresce ao contexto cultural e social no qual o desenvolvimen-
to ocorre, a qualidade das relações estabelecidas, as características biológi-
cas e psicológicas da pessoa (Bronfenbrenner, 1979/1996).
Apesar disso, a tendência humana a categorizar simplificadamente
os fenômenos leva a que a velhice seja externamente percebida como
homogênea e, assim, observa-se, sobretudo, a valorização das perdas e
do declínio associados ao envelhecimento e o preconceito que lhes é
correlativo.
Não se pode no atual contexto deixar passar despercebido que nossa
população está conseguindo envelhecer e que o idoso não pode, conforme
já mencionado anteriormente e como no passado, ser discriminado. No
atual contexto, a velhice se separa da idéia de inutilidade, para associar-se
à idéia de pessoa humana com dignidade. O Brasil caminha a passos lentos
para aplicação da previsão contida no art. 35, da Lei nº 10.741/2003.
São de suma importância, nesse sentido, a participação dos Poderes
Executivos Municipais, Estaduais e Federais, e toda a sociedade, promo-
vendo ações, fazendo cumprir a lei preconizada nos Direitos Universais
do Homem, na Constituição Federal, no Postulado Estatuto do idoso a
partir de parcerias, para que estas se tornem realmente efetivas.
Em sua dissertação de Mestrado, O “morar” na velhice, Martines
(2008, p.27) explica:

Desses espaços, o que mais marca nossa vida – nossa identidade - é


a casa; seus cômodos, cantos e labirintos. Entre nós e a casa - das
mais simples às mais sofisticadas – temos lócus existenciais. [E a
autora acrescenta mais]: A casa não é um espaço indiferente; nela
temos nossos “cantos prediletos”, espaços onde sentimos que so-
mos mais “nós”. Espaços onde nosso “eu” experimenta o doce sa-

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

bor de sermos alguém em um mundo onde reina a impessoalidade.


Espaço de intimidade! (MARTINES, 2008).

Nessa direção, Costa; Mercadante, apud Lima (2013, p.215), expli-


citam o que representa na vida de uma pessoa a mudança de condição na
família e sociedade trazida pela entrada na velhice:

Ao longo da nossa vida, criamos hábitos, adaptamos e transforma-


mos o nosso espaço, possuímos nossos objetos pessoais e construí-
mos uma rede de relações. A nossa história é construída, a partir de
todas essas construções simbólicas e, caso haja uma perda total ou
parcial delas, para o idoso representa um corte com o seu mundo
de relações e com sua história. Portanto, o idoso tem dificulda-
de em assumir aspectos da sua vivência, enquanto pessoa plena,
isolando-se afetiva e socialmente, negando ou desvalorizando as
suas capacidades. Essa adaptação a uma nova situação marcada pela
velhice leva a pessoa a uma perda de posições na família, na socie-
dade, que é mais ainda sentida por ocasião da transferência para um
asilo. A partir do momento em que o sujeito é considerado velho,
novo organizações da vida são pensadas para ele, começando pelo
espaço na própria casa, entre seus familiares. (COSTA; MERCA-
DANTE Apud LIMA, 2013).

Sobre a perda de lugares, como marca da velhice, costa & Mercadan-


te, apud Martines (2013, p. 216), acrescentam:

Pode-se afirmar, desde logo que uma das marcas da velhice é a per-
da de “lugares”: lugares sociais, relacionais, afetivos, econômicos e
espaciais ou físicos. A perda desses “lugares” faz com que muitos
idosos passem a residir por imposição ou “opção” em espaços di-
versos: uma dependência isolada da casa, uma cadeira bem no can-
tinho da sala ou, o que é bastante comum, uma casa “de repouso”,
longe dos olhos dos familiares. O próprio idoso aceita sua condição
de velho e, debilitado, dá se conta de que não pode ficar entre os
familiares, porque pode “atrapalhar”. (COSTA; MERCADAN-
TE Apud LIMA, 2013).

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A depressão é uma das doenças mentais que mais atinge os idosos. A


prevalência da doença e como ela se manifesta pode variar de acordo com
a situação vivida pelo idoso. Para aqueles que vivem com a família e está
inserida na comunidade, a prevalência de sintomas depressivos gira em
torno de 15% da população idosa. Esse número pode dobrar quando nos
deparamos com idosos institucionalizados, que estão em casas de repouso
ou asilos.
Em pacientes hospitalizados por problemas de saúde, a prevalência
chega a quase 50%, explica Fabio Armentano, coordenador da equipe de
psicogeriatria do AME Psiquiatria Dra. Jandira Masur. 
Além de fatores ambientais, inerentes ao envelhecimento, à depressão
em idosos pode se manifestar a partir de uma série de queixas referente a
problemas relacionados à terceira idade: Afastamento da família, a per-
da do papel social com a aposentadoria, falecimento do cônjuge, solidão.
Inutilidade, dentre outros. Limitações físicas e fatores clínicos como AVC,
infarto e doenças cardiovasculares também podem contribuir para o de-
senvolvimento de um quadro de depressão. 
Além da qualidade de vida, a doença pode também interferir em as-
pectos físicos à medida que leva o indivíduo a uma menor disponibilidade
para colocar em prática medidas essencial para a manutenção de uma boa
qualidade de vida e para controle de outros problemas de saúde, tais como
manter uma dieta saudável e praticar exercícios físicos regularmente. O
psiquiatra alerta para o fato de que a depressão dificulta o tratamento de
outras doenças físicas.
O especialista Fábio Armentano continua:

O envelhecimento saudável não acontece aos 60 anos de idade, acon-


tece aos 30, 40. É fruto do que e de como vivemos nossas vidas e
cuidamos da nossa saúde. Se nos tornaremos idosos cheios de doenças,
frágeis física e emocionalmente ou se vamos envelhecer de forma sau-
dável e ativa, dependerá muito de como cuidamos do corpo, da mente
e do ambiente onde estamos inseridos. Colhemos aos 60 aquilo que
plantamos ao longo da nossa juventude. (ARMENTANO, 2020).

Por isso, o amplo debate sobre a importância da qualidade de vida


dos indivíduos, pois o cuidado com a saúde, alimentação, corpo e mente

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

trará resultados positivos no futuro. E esta qualidade de vida perpassa


pela relação interpessoal do idoso com seus familiares e/ou cuidadores,
para o ideal acompanhamento de sua rotina e, especialmente, para com-
preender suas necessidades e elaborar um planejamento adequado do
suporte a ser oferecido.

CONCLUSÕES

Com o presente estudo conclui-se que a pessoa idosa teve seu papel
social ressignificado ao longo dos tempos, deixado o status de individuo
experiente e transmissor de conhecimentos para assumir o título de de-
pendente, passivo e retrógado.
Essa mudança não foi por escolha, mas por medo, dificuldade e re-
sistência em acompanhar as transformações da sociedade e o avanço tec-
nológico que, diante da velocidade com que ocorrem, representam um
desafio também para as gerações mais novas.
O desenvolvimento tecnológico é o marco da sociedade contempo-
rânea e, também, seu maior divisor. Não compreender o funcionamento,
não ter acesso ou não utilizar a tecnologia é se tornar incapaz de participar
da vida social que, especialmente no ano de 2020, aconteceu por meios
virtuais face às medidas de prevenção e combate à COVID-19.
Foi criado um estigma para o idoso, colocando-o na posição de vul-
nerável, improdutiva e dispendiosa, sendo necessário o socorro das leis
para paralisar foi ainda mais impactado por esta mudança. Com o texto
constitucional e o advento do Estatuto do Idoso se abriu espaço para os
debates sobre a necessidade de proteção destas pessoas e para criação de
meios para seu desenvolvimento e produção social, cognitiva e cultural.
Com o interesse e empenho da sociedade, os idosos também podem se
adaptar e participar desta evolução e, diante do cenário atual, com o con-
trole da vida social pela tecnologia, necessário possibilitar a interação entre
os idosos e a nova sociedade a fim de que não se perca o elo entre gerações.
O uso da tecnologia em prol das pessoas idosas também é um cami-
nho para que a sociedade aprenda com as experiências e os saberes acu-
mulados ao longo da vida destas pessoas e, para o idoso, uma forma de po-
tencializar os próprios recursos e atuar na autoconstrução da subjetividade
e da identidade.

549
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

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551
ESTADO DE COISAS
INCONSTITUCIONAL NOS
PRESÍDIOS BRASILEIROS
Jaquelina Leite da Silva Mitre105

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso III, dispõe


que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou
degradante. Da mesma forma, o inciso XLVII afirma que não haverá pe-
nas cruéis, sendo assegurado pelo inciso XLIX o respeito à integridade
física e moral dos presos. Ambos, ainda que nos seus patamares mínimos
(mínimo existencial), são direitos fundamentais o direito a saúde, digni-
dade da pessoa humana.
O presente artigo pretende demonstrar como uma simples ação do
Estado pode contribuir para não violação dos direitos humanos. Em de-
terminados estados do Brasil, as condições climáticas deixam de ser amena
para ser bastante fria e, com isso, as vulnerabilidades aumentam no sistema
carcerário, a começar por disseminação de doenças como: tuberculose,
pneumonia e, recentemente, o Covid -19.
Para tanto, a simples mudança de hábito, nos cárceres já traz consigo
uma proteção a tais doenças, como, por exemplo, o banho quente. Sabe-
-se que em todas as penitenciárias brasileiras o banho frio é considerado
normal, entretanto, de acordo com as Regras de Mandela para tratamento

105 Graduada em Direito e em Economia - Especialista em Direito Tributário. Curso


de extensão em Direito Público e Privado –FESUDEPERJ.

552
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

de pessoas privadas de liberdade, o banho frio pode ser considerado como


tortura a depender do clima onde se encontra o cárcere, principalmente
nos dias mais frios. A omissão sistemática do Poder Executivo é inconsti-
tucional, por violar a regra jurídica constitucional que assegura o mínimo
de respeito à dignidade da pessoa humana.
A contenda demonstra a necessidade de intervenção do Poder Judi-
ciário, para que os direitos fundamentais dos presos sejam observados, tais
como o direito à saúde, à integridade física e o direito à vida. A nova po-
sição do Poder Judiciário, qual seja, o ativismo judicial, deu-se a partir da
postura da Suprema Corte dos EUA na proteção dos direitos dos negros
e dos presos, garantindo os direitos fundamentais à luz de um dos funda-
mentos do Estado, a dignidade da pessoa humana.
As discussões sobre o assunto vêm tomando grandes proporções e os
questionamentos acerca do enfrentamento daquelas foram norteados pelo
REsp. 1.537.530/SP, julgado pelo STJ.
Neste contexto, não existem dúvidas de que é responsabilidade de
todos os órgãos, funções e atividades estatais manter a dignidade dos pre-
sos, por estarem vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Trata-se, portanto, de um dever de respeito.
Dessa forma, percebe-se que a violação de direitos no âmbito do sis-
tema prisional consiste na concretização do próprio Estado de Coisas In-
constitucional, gerando um verdadeiro massacre aos direitos humanos dos
indivíduos encarcerados.

ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

O Estado de Coisas Inconstitucional caracteriza-se, segundo enten-


dimento do Supremo Tribunal Federal, pela violação generalizada e sistê-
mica de direitos fundamentais. O exemplo mais contundente é o sistema
penitenciário. Para que haja funcionamento adequado quanto à tutela dos
direitos da população carcerária e dos direitos humanos, são necessários
inúmeros melhoramentos, e não somente o banho de água quente como
citado anteriormente.
Como foi verificado na ADPF 347/DF, constatou-se um alto índice
de violação aos direitos fundamentais na população carcerária em nos-
so país, tendo sido comprovada a omissão de diversos entes federativos

553
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

quanto ao cumprimento de suas obrigações de proteção aos direitos fun-


damentais. Ademais, evidenciou-se a falta de estrutura na política e admi-
nistração, foi detectado que há omissão não em apenas um dos Poderes, e
sim nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como de órgãos
e autoridades.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possui três
vertentes principais: há um extenso rol de direitos fundamentais, repar-
tição de poderes entre Legislativo, Executivo e Judiciário e distribuição
vertical de competências entre os diferentes níveis federativos (CAMPOS,
2015).
É oportuno mencionar que, na prática, nem sempre os direitos fun-
damentais encontram efetivação. Para justificar tantas omissões, o Estado
invoca a teoria da reserva do possível. Tal teoria consiste na ideia de que,
para que haja a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo os de cará-
ter prestacional, deve haver recurso disponível nos cofres públicos. Desse
modo, haveria certa discricionariedade estatal quanto à decisão sobre essa
disponibilidade. A reserva do possível é também conhecida como reserva
do financeiramente possível ou ainda reserva da consistência. Tal teoria
nasceu na Alemanha, após o julgamento do caso “Numerus Clausus I”, de
1960. Sob o fundamento da reserva do possível, o Estado alega que difi-
cilmente terá condições de promover um atendimento integral e eficiente
para todos que dependam de seu auxílio.
Em contraponto a esse argumento estatal, surgiu a ideia de mínimo
existencial. Segundo Sarlet, o princípio da dignidade humana pode ser
usado como parâmetro para a identificação do mínimo existencial (SAR-
LET, MATSUDA, MARUYAMA, 2017, p.35):

“Neste contexto, cumpre registrar que o reconhecimento de di-


reitos subjetivos a prestações não se deverá restringir às hipóteses
nas quais a própria vida humana estiver correndo o risco de ser
sacrificada, inobstante seja este o exemplo a ser referido. O prin-
cípio da dignidade da pessoa humana assume, no que diz com este aspecto,
importante função demarcatória, podendo servir de parâmetro para avaliar
qual o padrão mínimo em direitos sociais (mesmo como direitos subjetivos in-
dividuais) a ser reconhecido. Negar-se o acesso ao ensino fundamental
obrigatório e gratuito (ainda mais em face da norma contida no ar-

554
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
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tigo 208, § 1º, da CF, de acordo com o qual se cuida de direito pú-
blico subjetivo) importa igualmente em grave violação ao princípio
da dignidade da pessoa humana, na medida em que este implica
para a pessoa humana a capacidade de compreensão do mundo e
a liberdade (real) de autodeterminar-se e formatar a existência, o
que certamente não será possível em se mantendo a pessoa sob o
véu da ignorância”.

Relacionada ao tema acima, a teoria do Estado de Coisas Inconstitu-


cional surgiu na jurisprudência da Corte Constitucional da Colômbia. Na
ocasião, foram constatadas violações reiteradas dos direitos fundamentais.
A ideia principal de tal teoria é a criação de soluções estruturais ao
Estado para extinguir situações de inconstitucionalidade que violem os
princípios fundamentais tutelados pela Constituição Federal quanto aos
indivíduos mais vulneráveis, diante das omissões do Poder Público em
cumprir seu papel.
O tema foi enfrentado pela Corte supramencionada pela primeira
vez em 1997, quando do questionamento acerca da perda dos benefícios
sociais garantidos aos professores da educação pública. Tal decisão abriu
precedente para que outras demandas coletivas fossem deferidas, tendo
ocorrido a extensão dos seus efeitos a um número indeterminado de pes-
soas daquele país.
Segundo Vieira, o objetivo da teoria do estado de coisas inconstitu-
cional foi estabelecer um diálogo entre os Poderes da República, de forma
a tutelar determinado direito fundamental. Para tanto, agiriam em con-
junto, para dar soluções a eventual omissão na efetivação dos direitos e
garantias fundamentais (VIEIRA, 2016).
Na Colômbia, esse diálogo entre as instituições públicas ficou co-
nhecido como ordem de desbloqueio, posto que o intuito era desburocra-
tizar a máquina estatal a fim de garantir a tutela dos direitos daqueles que
se encontrassem em maior situação de vulnerabilidade.
No Brasil, a matéria foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal
quando do julgamento da ADPF n. 347/DF106, no caso da violação sistê-

106 BRASIL. ADPF n. 347/DF. Relator Ministro Marco Aurélio de Melo. Disponível em: <http://
www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4783560#>. Acesso
em: 27 set. 2020.

555
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

mica dos direitos da população carcerária. A petição inicial dispunha acer-


ca de uma mudança na administração dos presídios brasileiros, os quais
possuem problemas de ordem administrativa, financeira e estrutural.
A título de exemplo, o Ministro Relator Marco Aurélio de Mello
afirmou que há superlotação nos presídios, torturas, homicídios, violência
sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocon-
tagiosas, comida imprestável, falta de água potável, ausência de produtos
higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde
e ao trabalho, assim como o amplo domínio das celas por organizações
criminosas, falta de controle quanto ao tempo de cumprimento de pena,
discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual.
Em sede de medida cautelar, o STF realizou algumas determinações.
A primeira delas foi a realização de audiências de custódia em todo o país,
para viabilizar o comparecimento do preso em, no máximo, vinte e quatro
horas, a partir da prisão. A segunda foi o dever dos juízes de, se possível,
estabelecer penas alternativas à prisão, diante das péssimas condições do
sistema carcerário. Ademais, foi estabelecida a liberação imediata do saldo
acumulado no fundo penitenciário nacional para restauração, reforma e
adequação dos presídios brasileiros, de forma a possibilitar melhores con-
dições aos detentos.
Portanto, a ADPF foi proposta para garantir a aplicação, nos presídios
brasileiros, de todos os meios necessários ao respeito do princípio da dig-
nidade da pessoa humana. O sistema carcerário, no Brasil, além de muito
precário, é um dos sistemas mais falhos e agressivos aos direitos humanos.
Em péssimas condições de uso, o tratamento conferido aos presidiários é
no mínimo ultrajante.
Segundo Barroso (BARROSO, 2020, p.272),

“O constitucionalismo democrático tem por fundamento e objeti-


vo a dignidade da pessoa humana. Após a Segunda Grande Guerra,
a dignidade tornou-se um dos grandes consensos éticos do mundo
ocidental, materializado em declarações de direitos, convenções
internacionais e constituições. Apesar do grande apelo moral e es-
piritual da expressão, sua grande vagueza tem feito com que ela
funcione, em extensa medida, como um espelho: cada um projeta
nela a sua própria imagem, os seus valores e convicções. Isso tem

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

feito com que a ideia de dignidade seja frequentemente invocada


pelos dois lados do litígio”.

Nesse contexto, surge a importância do Poder Judiciário na efetiva-


ção dos direitos fundamentais, diante da reiterada omissão perpetrada pe-
los demais Poderes.
O Supremo Tribunal Federal declarou o Estado de Coisas Inconsti-
tucional e amparou-se deste tipo de instrumento para proteger os Direitos
Fundamentais dos presidiários, o que configurou o ativismo judicial dia-
lógico.
Acontece que vários doutrinadores questionaram a legitimidade de
tais medidas, alegando lesão ao Princípio da Separação dos Poderes. Den-
tre eles, pode-se citar o doutrinador Lenio Streck. Sustentaram, ainda,
que o Judiciário está criando falsa esperança de que as moléstias estruturais
brasileiras seriam resolvidas por meio de sentença (STRECK, 2015).
Vale destacar que, segundo Lenio, no Brasil, a questão pode ser in-
terpretada como uma forma de ativismo judicial camuflado ou disfarçado.
Para ele, isso pode ser demonstrado através de uma boa ideia, cujo objeto
seja agradável e, que todos possam facilmente se colocar a favor; a ideia
logo deve ser transformada em tese e bem defendida, sendo assim, todos
que escreverem contra ela serão tachados de conservadores. E, ainda, se-
gundo ele (Id, 2015, p.1),

“O próprio nome da tese (Estado de Coisas Inconstitucional —


ECI) é tão abrangente que é difícil combatê-la. Em um país conti-
nental, presidencialista, em que os poderes Executivo e Legislativo
vivem às turras e as tensões tornam o Judiciário cada dia mais forte,
nada melhor do que uma tese que ponha “a cereja no bolo”, vita-
minando o ativismo, cujo conceito e sua diferença com a judiciali-
zação estão desenvolvidos em vários lugares, (..). A origem do ECI
é a Corte Constitucional da Colômbia, cujas decisões não serão
debatidas aqui. Não me parece que a questão colombiana seja apli-
cável no Brasil. Aliás, a Colômbia continua tendo muitos estados
de coisas inconstitucionais e já há alguns anos não aplica a tese.”

Certo é que a Constituição de 1988 tem como um dos princípios a


separação de poderes, que é tratada como cláusula pétrea, insculpida no

557
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

art. 60, §4º, III. Barroso explicita tal princípio através de duas concepções
básicas: a divisão de funções entre órgãos diversos e controles recíprocos.
Extraem-se de tal conteúdo a especialização funcional e a necessidade de
independência orgânica de cada poder em relação aos demais (BARRO-
SO, op. cit., 2009).
Em que pese a existência da separação de poderes, quando há dis-
plicência nos atos dos demais Poderes, por vezes, faz-se necessária uma
intervenção, o que tem sido feito pelo Poder Judiciário através do deno-
minado ativismo judicial.
Para Barroso, essa conduta pode se manifestar da seguinte forma
(BARROSO, 2009, p.31):

“(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressa-


mente contempladas em seu texto e independentemente de ma-
nifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitu-
cionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base
em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação
da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções
ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas”.

Assim, pode-se conceituar ativismo judicial como uma conduta ativa


do Poder Judiciário referente a funções que, a princípio, caberiam a outros
poderes. O magistrado utiliza-se da interpretação da Carta Magna para
aumentar as chances de alcance das normas. Existe uma atuação do Poder
Judiciário em assuntos que seriam do Poder Legislativo, como, por exem-
plo, a aplicação da Constituição a situações implícitas em seu texto, sem
que necessariamente haja pronunciamento deste Poder.
Em suma, explicita Ramos (BRAIDOTTI , 2016, p.1):

“O exercício da função jurisdicional para além dos limites impos-


tos pelo próprio ordenamento, que incumbe, institucionalmente,
ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições sub-
jetivas (...) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos
normativos). Essa ultrapassagem das linhas democráticas da função
jurisdicional se faz em detrimento, particularmente, da função le-
gislativa, não envolvendo o exercício da legiferação (ou de outras
funções não jurisdicionais) e sim a descaracterização da função tí-

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pica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo


essencial de funções constitucionais atribuídas a outros poderes”.

Voltando ao caso julgado pelo STF na ADPF n. 347/DF, percebe-


-se que há inércia ou incapacidade reiterada e inflexível das autoridades
públicas em transformar a circunstância. Os cárceres brasileiros, além de
não servirem à ressocialização dos presos, promovem o aumento da cri-
minalidade, pois transformam pequenos delinquentes em “profissionais
do crime”. Nessa esteira, o sistema carcerário tornou-se uma verdadeira
“universidade do crime”.
Segundo dados do CNJ, atualmente, a população carcerária bra-
sileira é de 711.463 presos, sendo que apenas 147.937 pessoas es-
tão em prisão domiciliar. De acordo com as novas estatísticas, o Bra-
sil possui a terceira maior população carcerária do mundo, segundo
dados do ICPS, sigla em inglês para Centro Internacional de Es-
tudos Prisionais, do King’s College, de Londres. As prisões domi-
ciliares fizeram o Brasil ultrapassar a Rússia, que tem 676.400 presos
(FRANCESCO, 2016).
Vale destacar que as condições precárias dos estabelecimentos penais
podem ser entendidas como um dos fatores que dificultam a ressocializa-
ção e reforçam a necessidade de penas alternativas. Outro fator que pode
ser citado é a quantidade de presos que não deveria estar nas prisões. As-
sim, segundo Rocha, conselheiro do Conselho Nacional do Ministério
Público (VITAL, Agência Câmara de Notícias, 2015, p.1)

“Outro fator responsável pelo índice de criminalidade no país,


ao mesmo tempo em que complica a gestão do sistema pri-
sional: o número de presos que não deveria estar nas prisões.
Dos mais de 600 mil detentos do país, 40% são presos provisó-
rios, ou seja, estão aguardando julgamento. E 40% destes devem
ser condenados a regime aberto ou absolvido. O encarceramento
não diminui a violência. Não há condições de ressocialização na
maioria dos presídios, e o número de prisões só aumenta porque o
clamor público exige cada vez mais prisões”.

Ademais, o sistema carcerário não tem cumprido com seus objeti-


vos principais, que seriam os de possibilitar a reinserção do indivíduo na

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

sociedade. Pelo contrário, a tutela estatal aos detentos é completamente


ignorada e os direitos fundamentais têm sido aviltados constantemente
pelos agentes públicos que deveriam garantir tais benesses. Na maioria
das penitenciárias brasileiras não há acesso à saúde de qualidade, formação
intelectual e incentivo ao trabalho, o que impossibilita que o ex detento
consiga alcançar um futuro melhor para si e para sua família (CYPRIA-
NO; LEMOS, 2014).
E, ainda, ensinam Cypriano e Lemos que (CYPRIANO; LEMOS,
2014, p.1):

“No Brasil falta gerenciamento de qualidade dentro das peni-


tenciárias, a precariedade das instalações físicas culmina com
diversos processos judiciais acusando o Estado de ser displicente
quanto aos direito humanos. O sistema penal se apresenta sob a
roupagem de instituição responsável promotora de avanços so-
ciais que contribui para a plena socialização do indivíduo infrator.
Mas o que se apresenta não condiz com a realidade. As prisões
nem sempre cumprem os objetivos propostos teoricamente alme-
jados em termos de discurso: ‘ressocializar aquele que cometeu o
desvio social” .

A prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública


está nas altas taxas de reincidência. E o reincidente passa a cometer crimes
ainda mais graves. Assim, apenas transformações estruturais da atuação do
Poder Público e a performance de uma pluralidade de autoridades podem
transformar a situação inconstitucional.
Cabe destacar que a responsabilidade por essa situação deve ser atri-
buída aos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), tanto da
União como dos Estados-Membros e do Distrito Federal.
A ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias
eficazes representa uma verdadeira "distorção estrutural" que gera ofensa
aos direitos dos presos, além da perpetuação e do agravamento da situação.
Sendo assim, cabe ao STF a função de afastar os demais poderes da inércia,
coordenar ações dispondo-se a resolver a contenda e monitorar os resulta-
dos alcançados. A intervenção judicial é necessária diante da incapacidade
demonstrada pelas instituições.

560
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

No entanto, o Plenário entendeu que o STF não pode suprir o pa-


pel do Legislativo e do Executivo na consecução de suas tarefas próprias.
Ademais, o Judiciário deverá superar bloqueios políticos e institucionais
sem apartar, entretanto, esses poderes dos processos de formulação e im-
plementação das soluções necessárias.
Nesse sentido, não lhe incumbe definir o conteúdo próprio dessas
políticas e os detalhes dos meios a serem empregados.
Em razão da gravidade excepcional do contexto, o Judiciário reco-
nheceu sua legitimidade para interferir na formulação e implementação
de políticas públicas, bem como nas alocações de recursos orçamentários,
resguardando jurisdição para coordenar as medidas concretas necessárias à
superação do estado de inconstitucionalidades (CAMPOS, 2015).
Vale ressaltar que, para Campos, são três os pressupostos ensejadores
do estado de coisas inconstitucional (Id, 2015, p.55):

“(a) A constatação de um quadro não simplesmente de proteção


deficiente, e sim de violação massiva, generalizada e sistemática de
direitos fundamentais, que afeta a um número amplo de pessoas;

(b) A falta de coordenação entre medidas legislativas, administra-


tivas, orçamentárias e até judiciais, verdadeira “falha estatal estru-
tural”, que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a
perpetuação e agravamento da situação;

(c) A superação dessas violações de direitos exige a expedição


de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a
uma pluralidade destes – são necessárias mudanças estruturais,
novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação de
recursos, etc”.

Dessa forma, verifica-se que o Judiciário não elabora propriamente


políticas públicas, mas funciona como um coordenador institucional,
com efeito bloqueador. Ademais, interfere excepcionalmente nas esco-
lhas orçamentárias e na formulação, implementação e avaliação de polí-
ticas públicas. Porém, o detalhamento deve ficar sob a responsabilidade
dos demais Poderes da República, cabendo à Corte Constitucional a sua
fiscalização.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Portanto, as determinações da Corte devem ser maleáveis, para que


não haja engessamento ou mesmo violação à separação dos poderes. Há
margem para a inovação legislativa e para a execução quanto aos demais
Poderes. Assim, cabe à jurisdição a fiscalização em relação ao cumprimen-
to da decisão.
Note-se, assim, que o estado de coisas inconstitucional implica uma
decisão dialógica entre os Poderes, retirando a possibilidade de uma atua-
ção isolada por parte do Poder Judiciário. Longe de um protagonismo
judicial, as Cortes devem fomentar o diálogo com as demais instituições
para a busca das melhores soluções, tornando o ativismo judicial, nessa
perspectiva, dialógico.

DAS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS DO PRESO

São inúmeras as violações aos direitos dos presos, a maioria das peni-
tenciárias possui infiltração nos respectivos aposentos, como, por exem-
plo, o presídio de Água Santa no Estado do Rio de Janeiro, passando a
ameaçar a saúde dos detentos. Não obstante, há reiteradamente foco de
doenças contagiosas, como a tuberculose.
Recentemente, fora divulgado que a penitenciária de Pedrinhas, no
Maranhão, possui caso de hanseníase e esses presos não são separados, o
que pode ocasionar um verdadeiro surto na penitenciária. Logo, é latente
a violação do direito à saúde do preso, além de enfrentamento da superlo-
tação, insalubridade e a lentidão da Justiça.
Na mesma esteira, as doenças de pele são detectadas no presídio de
Papuda, no DF, tendo a doença atingido quase 700 detentos. O Tribu-
nal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) divulgou nota,
informando que recebeu, em maio de 2017, denúncias anônimas sobre
um possível surto. Segundo a Secretaria de Saúde do Distrito Federal,
trata-se de uma doença chamada escabiose (nome científico da sarna),
doença contagiosa causada por um ácaro e que provoca coceira intensa e
impetigo. Já o impetigo é uma infecção bacteriana que atinge as camadas
superficiais da pele, causando aparecimento de bolhas com pus.
No presente caso, é notória a violação ao direito de saúde dos presos
e, consequentemente, a vulneração da dignidade da pessoa humana. As

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

moléstias proliferam-se com maior facilidade em ambientes com aglome-


ração de pessoas, tais como escolas, quartéis e presídios.
Do mesmo modo, em um presídio de Roraima, detentos estão sendo
afetados por uma bactéria desconhecida. Em 2020, ao menos 24 presos
foram infectados por tal moléstia.
De acordo com o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil,
seccional de Roraima (OAB-RR), Ednaldo Vidal, a chance de a doença
contaminar outros presos, agentes penitenciários e funcionários da cadeia
é grande. Segundo ele (LEITE. Correio Brasiliense, 2020, p.1),

"O presídio não é muito diferente de um campo de concentração,


é um local com zero higiene. Por isso vamos pedir a interdição
imediata. A situação é de descontrole total, um caldeirão de desu-
manidade".

CONCLUSÃO

Recentemente, no REsp 1537530, a Segunda Turma do Superior


Tribunal de Justiça (STJ) restabeleceu, em decisão unânime, uma liminar
para que o Estado de São Paulo disponibilizasse banhos aquecidos em to-
das as suas unidades penitenciárias no prazo máximo de seis meses.
No presente caso, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo pro-
pôs uma Ação Civil Pública, comprovando que os presos do referido Es-
tado contam apenas com água gelada para sua higiene pessoal, mesmo que
em períodos mais frios, o que torna o tratamento a estes presos degradan-
te, cruel, que pode gerar doenças como a tuberculose e facilitar o contágio
para o Covid -19, uma vez que este necessita de um ambiente propício
para proliferação, bastando que a imunidade do sujeito esteja mais baixa.
Sugere-se, para a solução da problemática, a instalação de equipa-
mentos para o fornecimento de banho dos detentos em temperatura ade-
quada ao clima. Segundo TALON (TALON, 2017, p. 1),

“O objetivo da decisão não é proporcionar algum luxo aos apena-


dos ou fazer com que tenham privilégios que os indivíduos soltos
não têm, mas apenas possibilitar que, nos períodos frios, tomem

563
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

banho em temperatura adequada, evitando doenças, o que, conse-


quentemente, impacta nas despesas com a saúde dos reeducandos.”

Não há de se falar em resolução imediata dos problemas que, ao lon-


go dos anos, foram enfrentados ou até mesmo deixados de lado por nítida
omissão estatal. Contudo, o caso enfrentado pelo STJ possui um direcio-
namento para se sanar algumas das constantes violações aos encarcerados
do Brasil.
Aos poucos, a Defensoria Pública dos Estados e da União, juntamen-
te com o Ministério Público, vão delineando e detectando as possíveis so-
luções e contendas para que o Estado de Coisas Inconstitucional não seja
um marco nas penitenciárias nacionais, que os Direitos Humanos sejam
sempre respeitados ou, pelo menos , haja um norte para que não sejam
banalizadas tais ocorrências.
A atuação ou omissão política dos poderes Legislativo e Executivo
encontra limites de validade no respeito ao mínimo existencial, que é o
núcleo essencial dos direitos fundamentais, ancora-se na ética e tem como
fundamento as liberdades, os princípios da dignidade humana, da igualda-
de e do Estado democrático de direito (TORRES, 1989).

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567
A (IN)CONSTITUCIONALIDADE
DO DECRETO PRESIDENCIAL DE
INDULTO: DIREITO FUNDAMENTAL
OU PRIVILÉGIO RETRÓGRADO?
Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida 107

INTRODUÇÃO

Por séculos, coexistiu na maioria dos ordenamentos jurídicos mun-


diais um instituto de controversos nuances. Trata-se do indulto, majori-
tariamente entendido como causa de extinção de punibilidade, capaz de
minar os efeitos principais de sanções penais, mesmo nos casos de senten-
ças condenatórias já transitadas em julgado.
Desde os tempos antigos, tal conceito, abordado sob distintas no-
menclaturas – graça, perdão, anistia, clemência, perdão natalino etc –, en-
contrava guarida e aplicabilidade em diferentes cenários político-sociais.
Exemplo claro disto pode ser encontrado em livros históricos, sejam de
aplicação filosófica, sejam de cunho religioso; como a Bíblia, que no capí-
tulo 27, verso 15, do livro de Mateus, assim descreve: “ora, por ocasião da
festa, costumava o governador soltar um preso, escolhendo o povo aquele
que quisesse”.

107 Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Especialista


em Ciências Penais e em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera. Professor
convidado em Projetos de Extensão, pela Universidade Federal do Amazonas. Promotor de
Justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas. Manaus, Amazonas, Brasil.

568
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Dessa ilustração, já é possível perceber as peculiaridades relacionadas


ao indulto, o qual, embora sempre tenha carregado um forte viés de dis-
cricionariedade – e mesmo de política criminal –, desde as eras clássicas
era concedido pelo governante soberano, ora de ofício, ora por provoca-
ção, de forma parcial ou total, condicionada ou incondicionada; e, como
principal fator, ora como dúbio benefício pessoal, ora como ato de cle-
mência coletiva.
Nesse âmago, o indulto será aqui abordado sob o prisma de sua cons-
titucionalidade nos tempos contemporâneos, em especial diante dos reite-
rados decretos presidenciais concessivos daquele.
Sua periodicidade anual, somada à questionável extensão de sua be-
nesse a certas categorias de apenados – como aqueles sentenciados por
crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e afins – justifica a escolha do
presente tema, sob o objetivo de se buscar aclarar os critérios de controle
de constitucionalidade da temática exposta, tudo com fulcro na funda-
mentação teórica a seguir delineada.
O presente trabalho utilizará os métodos indutivo-dedutivo e siste-
mático na análise hermenêutica do objeto de estudo, dividida em dois
setores principais: o conceito do indulto e sua análise constitucional. De
igual forma, utilizará a pesquisa documental e bibliográfica para obtenção
de dados e informações atualizadas sobre o tema.
Contudo, para buscar melhor defini-lo, será realizado um significati-
vo corte epistemológico histórico, previamente ao exame da sua definição
jurídica.

1. DA ANÁLISE HISTÓRICO-CONCEITUAL DO INDULTO

Antônio Rosa (1995, p. 432) explicita a origem histórica do elemento


jurídico acima indicado, nos seguintes dizeres:

(...) geralmente em épocas de Natal, Semana Santa, Semana da


Pátria, ou quando se comemoram os grandes acontecimentos na-
cionais, o Presidente da República, seguindo uma tradição, conce-
de indulto a presos que preencham determinadas condições prefi-
xadas no decreto. Esse ato de clemência do governante inspira-se
naqueles gestos idênticos aos dos reis de antigamente, que, quando

569
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

suas mulheres davam à luz um herdeiro, ou recebiam a notícia da


vitória de seu exército em acirrada batalha, ou ainda festejavam a
visita do chefe de governo de uma nação amiga, enfim, ante fatos
que reputavam de excepcional significação para a vida do seu país,
resolviam, num rasgo de generosidade, abrir as portas das cadeias,
para que os prisioneiros participassem, irmãmente, da alegria na-
cional.

Faz-se possível, então, destacar que indultar significava, já àquela épo-


ca, perdoar, agraciar um número definido ou não de beneficiados com a
extinção de uma pena anteriormente imposta. Essa conclusão coincide
com a origem etimológica do termo em análise, uma vez que ‘indulto’ de-
riva do latim indultus, sendo uma variação de indulgere, termo que significa
perdão, concessão, permissão ou clemência.
Contextualizando o aludido elemento em conjunto com seu equiva-
lente individual, tradicionalmente denominado de ‘graça’, Artur Souza e
Carlos Japiassú (2011, p. 549) mencionam que “indulto e graça – também
chamada de indulto individual – são atos de clemência ou indulgência que
se perdem na história da disciplina. Desde a antiguidade, há registros de
atos de soberano concedendo clemência a um ou diversos condenados”.
Desse modo, “era costume, no passado, indultarem-se todos os que se
encontravam presos no dia do coroamento de um novo rei”.
No cerne específico do indulto, instituto coletivo por essência, há
extensas raízes culturais e religiosas, delimitando, nos dias atuais, um novo
viés com conotação destacadamente político-penitenciária. No próprio
cenário brasileiro, “é praxe a edição regular de indultos natalinos, por
ser forma de enfrentamento da questão da superpopulação carcerária”
(SOUZA e JAPIASSÚ, 2011, p. 550). No Brasil, como não haveria de ser
diferente, diversos são os exemplos de aplicação do indulto; remontando
seu uso desde os primórdios do Império até os recentes tempos moder-
nos, onde a prática se tornou usual, diante da figura dos ditos “indultos
natalinos”.
Malgrado a constante aplicação atual da citada figura, nem sempre
pedidos coletivos de perdão foram tidos como prometidos privilégios ou
asseguradas benesses. Em muitos casos, sua não concessão se tornou mais
famosa do que a deliberação em favor.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

É esse o exemplo que Souza e Japiassú fornecem, a respeito de um


famoso e histórico caso judicial de pedido coletivo de indulto, feito na
era imperial pátria, que possuía como um dos interessados Manuel Motta
Coqueiro, conhecido à época como “Fera de Macabú”. Os autores assim
relembram:

Em que pese ser prevista no Código de 1830, a pena de morte foi


gradativamente deixando de ser executada ao longo do Segundo
Império. Contribuiu para a sua abolição, na prática, o famoso erro
judiciário de 1855, que levou à forca o fazendeiro Manuel Motta
Coqueiro, em Macaé (Rio de Janeiro). Coqueiro fora acusado de
ter matado, com o auxílio dos escravos Faustino e Florentino, em
1852, em sua fazenda na localidade de Conceição de Macabu, o
colono Francisco Benedito e toda a sua família, de quem teria se
vingado em razão de uma suposta oposição à sua relação amorosa
com uma das filhas do colono. Submetido ao Tribunal do Júri,
Motta Coqueiro – denominado, pelo povo, de “Fera de Macabú”
–, foi condenado, em dois julgamentos, por unanimidade, à forca,
não obstante seus reiterados e veementes protestos de inocência.
Houve mais um recurso de revista, interposto por Motta Coqueiro
ao Supremo Tribunal de Justiça, também denegado por acórdão
de 12/05/1854. Já em fevereiro de 1854, todos os sentencia-
dos endereçaram petições de graça ao Imperador. Porém,
o pedido de indulto de Motta Coqueiro foi denegado e, em
agosto de 1855, ele foi executado. (SOUZA e JAPIASSÚ,
2011, p. 330 - grifo nosso)

Da mesma forma, Hannah Arendt (1973, p. 132) cita, em obra clás-


sica, a incorreta utilização do instituto, ao descrever o “drama de Drey-
fus”, fato que ensejaria a expansão socialista no cenário europeu, no início
do Século XX. Com efeito, a denegação em tais casos, quando ocorria,
minorava e criticava a justificativa ainda hoje utilizada por parcela doutri-
nária, qual seja, a da necessidade de conceder “novas oportunidades aos
que se mostram recuperados para o convívio social, como estímulo ao
esforço de proceder com dignidade e ser útil ao próximo” (FERREIRA
e KUEHNE, 2003, p. 16).

571
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Nessa esteira, sempre houve inúmeras vozes críticas, contrárias à apli-


cação do indulto nos modernos ordenamentos jurídicos, diante da alegada
incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito e com os con-
temporâneos princípios que o regem.
Tais vozes ganharam força diante do silêncio a um intrigante ques-
tionamento: se o Estado funciona em normalidade, com seus Poderes,
instituições e órgãos democraticamente estabelecidos, e visando a justa
aplicação do direito – norma abstrata – aos variados casos concretos apre-
ciados, qual seria a razão de ser de um instituto que concede clemência
a quem já fora processo, julgado e condenado por delito anteriormente
cometido? Não seria isso um reflexo da falência estatal e um inequívoco
reconhecimento de fragibilidade de todo o direito?
É nessa mesma trilha que Gustav Radbruch critica a origem his-
tórica e a perpetuação do uso do referido instituto, no âmbito dos re-
gimes jurídicos modernos. Antes mesmo da proliferação no uso do
indulto, fator mais destacado nos últimos anos, o autor já delineava
que “todas as épocas de tendências dogmáticas que prestaram culto à
soberania absoluta e única da Razão, como a época do direito natural
e do Iluminismo do século XVIII, combateram sempre o direito de
indulto, a começar em Beccaria, seguido por Kant” (RADBRUCH,
1997, p. 335), o qual, segundo o autor, “via no perdão e no direito de
perdoar o criminoso ‘o mais escandaloso de todos os direitos do sobe-
rano’” (RADBRUCH, 1997, p. 335).
Após citar jusfilósofos como Kant e Beccaria – que por diversas vezes
apresentaram ideais contrários ao ato de indulgência da soberania estatal,
inerente ao indulto –, o jurista trata o perdão como um elemento de fra-
gilização jurídica, a fragmentar todo o arcabouço do direito. Igualmente,
o favor rei da concessão da benesse apenas a sujeitos determinados, ainda
que embasada supostamente em fatos – e não em pessoas predefinidas –,
poderia ser utilizado para beneficiar os “amigos do soberano”, represen-
tando assim uma medida antidemocrática, parcial e nitidamente abusiva;
a transpassar todos os limites de justeza constitucional nos ordenamentos
jurídicos contemporâneos.
Fato é que o indulto, enquanto perdão concedido por vontade sobe-
rana, encontra atualmente expressa previsão no art. 84, inc. XII, da Cons-

572
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

tituição da República (CRFB/88)108, como ato privativo do Presidente


da República que, em sua essência, representa um “ato de clemência do
Poder Público (...) tradicionalmente concedido quando da comemoração
do Natal, que consiste em perdoar a condenados, extinguindo as suas pe-
nas ou diminuindo-as (comutação)” (FERREIRA e KUEHNE, 2003,
p. 15).
A respeito de sua específica conceituação jurídica, mostra-se necessá-
ria uma breve análise em apartado, seja para defini-lo o mais objetivamen-
te possível, segundo parâmetros de cientificidade; seja a fim de delimitá-lo
e, ao menos por categóricos elementos doutrinários, diferenciá-lo dos seus
institutos afins, a saber, a graça e a anistia.

1.1 DA DEFINIÇÃO JURÍDICA DO INSTITUTO

Em termos conceituais, o indulto pode ser atualmente definido como


um ato de “clemência concedida pelo Presidente da República, por decre-
to, a condenados em geral, desde que preencham determinadas condições
objetivas e/ou subjetivas” (NUCCI, 2019, p. 247). Destarte, a natureza
jurídica do instituto em tela é tratada, pela doutrina majoritária, como
causa de extinção de punibilidade, tal como a Lei igualmente estabelece,
no teor do art. 107, inc. II, do Código Penal brasileiro, ao fixar que “ex-
tingue-se a culpabilidade (...) pela anistia, graça ou indulto”.
Na mesma toada, Luiz Prado et al (2017, p. 334) arremata que tal ato,
privativo do Presidente da República e causa extintiva de punibilidade,
difere-se da graça “não só por ser medida de caráter coletivo, mas também
por se tratar de ato espontâneo do Presidente da República, que edita,
anualmente, os decretos concessivos (...), beneficiando um grupo de sen-
tenciados que preencham os requisitos”.
Porém, como a abordagem comparativa assim demonstra, as caracte-
rísticas inerentes ao instituto por diversas vezes se confundem com duas
figuras jurídicas em muito equivalentes àquele, a saber, a graça e a anistia.
Destarte, para completa análise conceitual, mostra-se salutar a breve dife-
renciação destes, em comparação com o ato aqui examinado.

108 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) XII - conceder indulto
e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei.

573
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

1.2 DA ANISTIA, DA GRAÇA E DO INDULTO

Nos regimes jurídicos hodiernos, os três referidos elementos – indul-


to, graça e anistia – são ora abordados como institutos similares ou mesmo
equivalentes, ora diferenciados em aspectos pontuais; sempre destacando
a noção axiológica e comum de perdão estatal, destinado ao beneficiado
pela benesse.
Mas, afinal, qual seria a diferença dogmática entre os citados institu-
tos?
Na autoexplicativa conceituação de Bento de Faria (1960, p. 90),
anistia é, em essência, “um ato do poder social editado com a finalidade
de extinguir o delito, impedindo o exercício da ação penal, tenha sido ou
não intentada, ou tornando sem efeito as condenações que por ventura já
tenham sido proferidas por motivo da mesma infração”.
Na atualidade, por força das disposições constitucionais vigentes, a
anistia é (a) um ato político de perdão coletivo com embasamento cons-
titucional; (b) de competência concessiva exclusiva da União (art. 21,
inc. XVII); (c) atribuição parlamentar do Congresso Nacional (art. 48,
inc. VII) e; (d) inaplicável a crimes hediondos e equiparados (art. 5º, inc.
XLIII, da CRFB/88).
Além disso, Renato Marcão (2019, p. 322) lembra que, apesar de
mais utilizado para crimes políticos e militares, nada impede sua aplicação
para delitos comuns, dirigindo-se a fatos – não pessoas –, extinguindo
com efeito ex tunc todas as consequências penas dos fatos abrangidos – não
afeta os efeitos extrapenais – e exigindo, como os demais institutos, o ato
judicial de declaração da extinção de punibilidade para que surta os devi-
dos efeitos.
Em um segundo plano, a graça é outra causa extintiva de punibilida-
de, também prevista no art. 107, inc. II, do Código Penal, cuja iniciativa
se dá por ato privativo do presidente da República (art. 84, XII, da CF),
sendo direcionada a crimes comuns. Logo, mostra-se possível delimitar o
indulto como o “perdão concedido pelo Presidente da República, divi-
dindo-se em individual (também conhecido por graça) e coletivo” (NUC-
CI, 2019, 247). Em linhas conceituais detalhadas, graça é “o ato do Chefe
do Poder Executivo pelo qual certo condenado ou a determinados conde-

5 74
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

nados, por sentença irrevogável, a extinção, diminuição ou a comutação


de uma pena” (FARIA, 2011, p. 310).
Ao comparar as figuras jurídicas, Masson (2011, p. 862) explicita que
“a graça individual e o indulto coletivo (...) são modalidades do poder de
graça do Presidente da República (art. 84, Xll)”. O jurista conclui que
ambos os institutos, confundíveis entre si, sofrem a mesma restrição do
art. 5°, XLIII, da CRFB/88, que exclui a possibilidade de sua concessão a
crimes hediondos ou equiparáveis.
Ademais, a benesse da graça (a) é concessível apenas após uma con-
denação; (b) é medida de caráter individual, por beneficiar pessoas de-
terminadas, e não uma coletividade – atinge a pessoas, não a fatos –; (c)
exige em regra provocação do interessado, apesar do art. 314, fine, do
CPP, possibilitar sua concessão espontânea, sempre por ato de atribuição
do Presidente da República e; (d) faz-se inaplicável a crimes hediondos e
equiparados (art. 5º, inc. XLIII, da CRFB/88).
Por fim, o indulto propriamente dito – indulto coletivo ou indulto
lato sensu – é modalidade de clemência igualmente concedida pelo Presi-
dente da República, mas sempre de modo espontâneo, destinado a todo
um grupo de condenados que preencham os requisitos apontados pelo
decreto presidencial que o oferta.
Sua utilização exige como elementos condicionantes (a) a publicação
da concessão do indulto, a qual, apesar de ser atribuição do Presidente da
República (art. 84, inc. XII, CRFB/88), pode ser delegado “aos Minis-
tros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral
da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações”
(art. 84, parágrafo único, CRFB/88); (b) o enquadramento da situação
do apenado em requisitos objetivos e subjetivos determinados pelo ato
de concessão; (c) a declaração por decisão judicial, de ofício ou a requeri-
mento, como estabelece o art. 193 da Lei de Execução Penal.
No tocante ao primeiro ponto, José Afonso da Silva (1995, p. 107) o
utiliza como principal exemplo de mitigação à estrita separação dos Po-
deres, argumento deveras utilizado pelos defensores da constitucionalida-
de dos recentes decretos de indulto. Ademais, conforme bem estabelece
Masson (2011, p. 861), não se faz necessário o trânsito em julgado da
sentença condenatória para sua concessão, sendo apenas necessária a fi-
xação de uma pena em sentença recorrível pela defesa; haja vista que o

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

indulto leva em consideração a duração da pena aplicada, em conjunto


com o preenchimento de determinados requisitos subjetivos, como a pri-
mariedade do agente, e objetivos, como um percentual do cumprimento
da pena ou a destinação a certos crimes.
Quanto à classificação doutrinária, o indulto pode ser total, com ex-
tinção integral da punibilidade, ou parcial, hipótese em que há diminui-
ção ou comutação da pena imposta pela condenação anterior. Pode ainda
ser condicional ou incondicional, conforme a imposição de elementos
condicionantes ao beneficiado. De mais a mais, assim como o indulto
individual (graça), o coletivo é ato formal de nítida atividade discricionária
do Presidente da República, atualmente embasado – ao menos, em tese –
em critérios razoáveis de política criminal.
Também nos dizeres da jurisprudência do Supremo Tribunal Fede-
ral, o indulto é “instrumento de política criminal de que dispõe o Chefe
do Poder Executivo, configurando o seu emprego típica sanção premial,
decisão esta sujeita a critérios de conveniência e oportunidade, a ser em-
preendida sob a ótica da prevenção criminal”109.
Quanto ao procedimento utilizado, fixa o art. 193, da LEP, que, se o
sentenciado for beneficiado por indulto coletivo, o juiz, de ofício ou por
requerimento, providenciará a concessão judicial da medida. Como en-
sina Roberto Marcão (2019, p. 328), o Conselho Penitenciário pode ser
acionado para emissão de parecer (art. 70, inc. I, da LEP) e, em qualquer
hipótese, antes da concessão judicial, deve ser ouvido o Ministério Públi-
co (art. 112, §2º, da LEP).
O modus operandi da concessão do instituto é tratando pela Lei de Exe-
cução Penal em conjunto com os demais, nos seus arts. 187 a 193. Porém,
há especificidades relacionadas ao indulto que podem ser claramente ob-
servadas e enumeradas, tais como:
(a) O indulto é um dos raros exemplos de exceções à imutabilidade
da sentença penal transitada em julgado. Sobre tal ponto, Reis e Gon-
çalves (2012, p. 460) ensinam que, não recorrida a sentença, “salvo em
raras exceções, a sentença se torna imutável, não podendo ser novamente

109 Referente ao julgamento do HC 90.364/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal


Pleno, Julgamento em 31.10.2007, noticiado no Informativo n. 486. Disponível em <http://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/pagina dor.jsp?docTP=AC&docID=497480>. Acesso em:
02.07.2020.

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discutida a matéria nela tratada”, contudo apresentam-se como exceções


a tal princípio “as hipóteses de anistia, indulto ou unificação de penas, se
a sentença era condenatória”.
(b) Entende-se majoritariamente aplicável nos casos de suspensão
condicional da pena, livramento condicional, pena pecuniária, crimes mi-
litares, crimes de ação penal privada, dentre outros que sejam abrangidos
pelo decreto presidencial concessivo, desde que não afrontosos às veda-
ções previstas em Lei e na Constituição da República, tal como a regra
obstativa de seu uso em crimes hediondos e equiparáveis.
(c) Feito de modo parcial, gera a comutação da pena, na qual “não
há extinção da pena, implicando mera redução ou substituição da repri-
menda”. Assim, se verificada, “impõe a retificação da conta de liquidação,
para ajustá-la à nova realidade no tocante ao quantum, nos termos do de-
creto que a concedeu” (MARCÃO, 2019, p. 330).
(d) Traz consigo uma série de discussões sobre a (in)constituciona-
lidade em casos concretos, mormente nos últimos anos, onde o instituto
aparentemente se afastou das premissas objetivas a ele inerentes a fim de,
segundo parcela doutrinária, visar beneficiar agentes políticos específicos.
Sobre tais incisivos debates, passa-se a abordar.

2. DA CONTROVERSA DESTINAÇÃO HISTÓRICA DO


INDULTO

Para fins de análise deste ponto, faz-se mister a abordagem histórica


dos atos concessivos de indulto, em especial aqueles de mais recente ela-
boração.
Como delimita a doutrina especializada, no cenário pátrio, a clemên-
cia é tradicionalmente concedida por “ato presidencial que normalmente
é exarado ao final de cada ano” (PRADO et al, 2017, 336), possuindo uma
série de requisitos objetivos e subjetivos para sua concessão. Exemplos dis-
to se mostram no bojo dos Decretos n. 7.873/12, 8.172/13, 8.380/14, den-
tre tantos outros.
Ocorre que, não raras vezes, tais atos são objeto de Ações Diretas
de Inconstitucionalidade (ADI) – em geral, movidas pela Procuradoria-
-Geral da República (PGR) –, como igualmente se ilustra por meio das
ADI n. 5.343/DF de 2015 e da mais recente ADI n. 5.874/DF de 2017.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Naquela, o ponto de realce é a extensão, tida como indevida, do instituto


do indulto a penas de multa, a apenados portadores de doenças graves, a
medidas de segurança e a condenados que tiveram suas penas de privação
de liberdade substituídas por penas restritivas de direito; inclusive quanto
a crimes hediondos ou equiparados a estes.
O processo em voga foi julgado prejudicado, por perda de objeto, em
28.02.2018, com publicação datada de 01.03.2018110. Todavia, mostra-se
esclarecedor o parecer exarado naquele pela PGR, nos autoexplicativos
termos:

CONSTITUCIONAL E PENAL. AÇÃO DIRETA DE IN-


CONSTITUCIONALIDADE. PARTE DO ART. 9o, PA-
RÁGRAFO ÚNICO, DO DECRETO PRESIDENCIAL
8.380/2014. INDULTO NATALINO E COMUTAÇÃO DE
PENAS. CONCESSÃO A CONDENADOS POR CRIMES
DE TORTURA, TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS, TER-
RORISMO E HEDIONDOS. AFRONTA AO ART. 5º,
XLIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. É inconsti-
tucional, por violação ao art. 5º, XLIII, da Constituição da Repú-
blica, norma de decreto presidencial que permita indulto natalino
ou comutação de pena de pessoas condenadas por crimes de tor-
tura, tráfico ilícito de drogas afins, terrorismo e aqueles definidos
como hediondos (também conhecidos como crimes impeditivos).
2. Consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o in-
dulto está abrangido pela vedação da norma constitucional, pois
constitui espécie do gênero “graça”.

Dois pontos principais se destacam. O primeiro diz respeito à pací-


fica corrente jurisprudencial que entende pela inconstitucionalidade de
decretos presidenciais que permitam “indulto natalino ou comutação de
pena de pessoas condenadas por crimes de tortura, tráfico ilícito de drogas
afins, terrorismo e aqueles definidos como hediondos (também conheci-
dos como crimes impeditivos)”. O derradeiro se refere à nomenclatura

110 Conforme informação disponível no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, Dis-
ponível em: <http://portal.stf.jus.br/ processos/detalhe.asp?incidente=4795375>. Acesso
em 05.07.2020.

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utilizada pela jurisprudência da Suprema Corte que, ao inverso da dou-


trina majoritária, inverte as premissas e trata o ‘indulto’ como espécie do
gênero ‘graça’.
Entretanto, é no tocante à segunda ADI, n. 5.874/DF de 2017, que
repousa o principal embate constitucional. Nesta, a PGR apresentou irre-
signado entendimento contra o Decreto de “indulto natalino” n. 9.246,
de 21.12.2017, alegando um considerável rol de afrontas à Constituição da
República.
Em suma, a PGR apresentou suas razões jurídicas, aduzindo que o
ato de clemência presidencial fora além dos limites da discricionariedade,
alcançando o status de arbitrário. Ademais, a parte autora apresentou três
distintas e basilares teses: (a) a de que o decreto foi exarado com desvio de
finalidade do ato, em conflito com o Princípio da Moralidade Adminis-
trativa; (b) a de que o decreto violava frontalmente a separação dos Pode-
res, haja vista competir ao Judiciário – e não ao Executivo – decidir sobre
a imputação penal e exercer o jus puniendi como atividade primária e; (c)
a de que o ato violou o Princípio da Proibição da Proteção Deficiente,
expressando uma desproporcionalidade da medida.
Nos termos da própria parte requerente, “não é dado ao Presidente da
República extinguir penas indiscriminadamente, como se seu poder não
tivesse limites: e o limite do seu poder, no caso de indulto, é o livre exercí-
cio da função penal pelo Poder Judiciário”. Por outro lado, expôs que, dos
históricos decretos de indulto, apenas o de 2017 não fixou limitação de
patamar máximo de pena aplicada, para concessão da benesse. Com base
em tais razões, concluiu que o citado decreto “será causa única e precípua
de impunidade de crimes graves, como aqueles apurados no âmbito da
‘Operação Lava Jato’ e de outras operações contra a corrupção sistêmica e
de investigações de grande porte ocorridas nestes últimos anos”111.
Todavia, não é uníssono o entendimento sobre o tema. Diversas vozes
pregam que o indulto, enquanto tipo de “clementia principis” historicamen-
te adotada pelo Brasil, é medida humanitária de extinção da punibilidade,
conferida à discricionariedade do chefe do Poder Executivo. Estudos e

111 Para consulta integral ao teor da ADI, vide: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.


asp?incidente=5336271>. Acesso em 07.07.2020.

579
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

artigos jurídicos foram elaborados por diversos juristas, desde as primeiras


impugnações judiciais, buscando fortalecer tal entendimento112.
De igual modo, em defesa do viés de faculdade discricionária, Ives
Gandra (1997, p. 315) há muito já ressalta que o indulto apresenta como
“tradição mundial o apelo ao Chefe da Nação. Cabe a ele, qualquer que
seja o sistema, examinar se seria ou não o caso de indulto”. Assim, longe
de ser uma ingerência indevida no Judiciário, seria o ato um “gesto de
magnanimidade do Chefe da Nação”, conhecido “de priscas eras, tendo
a Constituição de 1988 incorporado regra que não é novidade no direito
pátrio e no comparado”.
O impasse de pronto se sobressai. Como se não bastasse, diversos
atos de indulto já foram objeto de análise de controle difuso de consti-
tucionalidade em pretórios nacionais, divergindo opiniões. Um clássico
leading case pode ser observado no julgamento do processo n. 5034205-
88.2018.4.04.0000, pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região.
Em tal acórdão, o entendimento do órgão colegiado daquela Corte
foi de que o chefe do Poder Executivo federal, ao fixar normas reduto-
ras de penas que possuam natureza geral e abstrata, por meio de decretos
de indulto periódicos, persiste em violar a norma constitucional que lhe
proíbe legislar sobre Direito Penal, presente no art. 62, § 1º, alínea ‘b’, da
CRFB/88. Nas linhas do desembargador relator113, Leandro Paulsen, a
benesse possui modernos nuances de inconstitucionalidade, in verbis:

O perdão irrestrito de delinquentes por mera vontade política de


um único governante (chefe do poder executivo) viola a Constitui-

112 Como exemplo, podem ser citados os artigos “PGR e ADI 5874: os limites do indulto
e os reflexos nas ações penais de combate à corrupção política brasileira”, disponível em:
<https://www.migalhas.com.br/ dePeso/16,MI271752,41046-PGR+e+ADI+5874+os+limi-
tes+do+indul to+e+os+reflexos+nas+acoes+penais>. Acesso em 08.07.2020.
113 Para consulta processual, vide: <www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consul-
ta_ processual_ resultado_pesquisa&txtPalavraGerada=bMsw&hdnRefId=887fea44a0cc-
13726cefcc242b2559f1&selForma=NU&txtValor=50342058820184040000&chkMos-
trarBaixados=1&todasfases=&todosvalores=&todaspartes=&txtDataFase=&selOrigem=-
TRF&sistema=&codigoparte=&txtChave=&paginaSubmeteuPesquisa=letras>. Acesso em
10.07.2020. Para detalhamento sobre o julgado e nota crítica ao mesmo, vide: <https://
www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI294126,21048-TRF%20da%204%20regiao%20decla-
ra%20indult o%20natalino%20de%202013%20inconstitucional>. Acesso em 10.07.2020.

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ção Federal por fazer letra morta inúmeras garantias da sociedade”,


afirmou o magistrado, acrescentando que o indulto vem sendo
“ampliado sem qualquer justificação a cada ano. (...) A ordinariza-
ção do instituto é demonstrada pela própria alcunha a ele atribuída
pela doutrina de direito penal: ‘indulto de natal’, porquanto be-
nesse sistematicamente concedida na época das comemorações da
data cristã. Identifica-se de forma clara que o figurino constitucio-
nal do indulto, instrumento excepcional para correção de pontuais
e eventuais falhas no sistema de persecução criminal do Estado
Democrático de Direito, vem sendo banalizado e utilizado como
verdadeiro método de administração da população carcerária.

Assim, para a citada jurisprudência, o indulto não apenas incentiva-


ria a impunidade, como também sua concessão não abalizada por limites
constitucionais afrontaria os próprios princípios democráticos. Ocorre
que a mencionada ADI, mais recentemente ajuizada, já fora julgada pela
Magna Corte, em 09.05.2019, sendo declarada constitucional por sete
votos a quatro. Em tal julgamento, foi reconhecida a constitucionalidade
do decreto de indulto natalino de 2017, assinado pelo então presidente da
República Michel Temer, sendo ratificado o direito de o chefe do Poder
Executivo Federal editar decreto concedendo o benefício, desde que não
afrontoso aos (raros) limites constitucionais.
Ao contrário do voto do relator, ministro Roberto Barroso, a Corte
não encampou o entendimento de exclusão, da incidência do indulto,
dos “crimes de peculato, concussão, corrupção passiva, corrupção ativa,
tráfico de influência, os praticados contra o sistema financeiro nacional,
os previstos na Lei de Licitações e os crimes de lavagem de dinheiro”114.
Também rejeitou a não aplicação do indulto à pena de multa, como pre-
tendia corrente minoritária do Tribunal, a fim de confirmar a maior ex-
pansão possível do campo de abrangência do perdão presidencial.
Nas palavras do voto divergente vencedor, de lavra do ministro Ale-
xandre de Moraes, o indulto não feriria o Princípio da Separação de Po-
deres, haja vista existirem limites à discricionariedade do chefe do Poder

114 A Suprema Corte divulgou nota pública sobre o julgamento em seu sítio eletrôni-
co, disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu-
do=410684>. Acesso: 12.07.2020.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Executivo, reiterando a impossibilidade de concessão de indulto a crimes


hediondos e equiparáveis.
Assim, editado o decreto no âmbito das hipóteses legais concessivas,
ainda que socialmente discordante, o mérito do ato não poderia ser mino-
rado ou atacado pela análise judicial, visto que “não pode o subjetivismo
do chefe do Poder Executivo ser trocado pelo subjetivismo do Poder Judi-
ciário”, como destacou o ministro relator.
Na atualidade, após a mudança no posto presidencial, o fluir de opi-
niões acima exposto ainda se mostra mais acalorado, especialmente após
diversas declarações do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, so-
bre a não concessão e utilização da benesse em seu mandato; conclusão
que, se visto o indulto como privilégio descabido, mostrar-se-ia salutar e
bem-vinda, mas caso interpretado como instrumento necessário às polí-
ticas públicas de não encarceramento, seria sem embargo um descabido
ideário.

CONCLUSÃO

Diante desse intrincado cenário, é possível constatar a evidência de


que tais impasses não possuem um fácil ou breve deslinde. A benesse em
tela, de peculiar origem histórica e secular aplicação nos ordenamentos
jurídicos mundiais, ora se mostra como uma útil medida de política cri-
minal – mormente no Brasil, o país que detém a terceira maior população
carcerária de todo o globo terrestre115.
Por outro lado, não raras vezes a clemência parece ser utilizada para
atacar o combate à repressão da prática de crimes de vieses comuns, ou,
mesmo, para beneficiar uma classe específica de apenados.
A despeito de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, o perdão
se apresenta, na atualidade, como um instituto jurídico periodicamente
aplicado, um nítido ato – ora arbitrário, ora discricionário – do soberano
em prol dos apenados que atendam a requisitos objetivos e subjetivos pre-
cisos e fixados na medida concessiva.

115 Em dados precisos, o Brasil possui cerca de 726 mil presos. Para consulta aos dados da
pesquisa, vide: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carcera-
ria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas>. Acesso em 20.07.2020.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Sua previsão constitucional, no âmbito da CRFB/88, é indiscutível.


Contudo, a decisão do Poder Constituinte de não delimitar, de modo
detalhado, a figura jurídica – bem como o indulto individual e a anistia –
acaba por gerar diversos impasses, frutos das lacunas constitucionais, dos
hiatos normativos que, de per si, geram uma aparente incompletude no
próprio ordenamento constitucional do qual a norma emana.
Como arremate final, delineou-se que cabe ao intérprete constitu-
cional, a par de tantos fatores, posições, ideários e entendimentos sobre
o tema, sempre buscar ponderar sua conclusão – seja favorável à plena
utilização, seja limitadora ao uso do instituto – com fulcro nos limites
constitucionais existentes; sem receio de buscar que se complete a norma,
pelas vias constitucionais para tal, caso esta se mostre inócua, ineficaz ou
incompatível com os modernos e mutáveis traços da nossa contemporânea
sociedade.
Por todo o exposto, ainda que de inegável previsão constitucional, o
que se destaca é ter sempre em mente os limites constitucionais de apli-
cação do indulto, balizas essas a serem respeitadas integralmente, a fim
de que um louvável instrumento de política criminal não seja maculado
por eventual imoralidade ou parcialidade, em favor de escusos benefícios a
terceiros, os famosos “amigos do rei”.
Superada tal dificuldade, constantemente presente no histórico na-
cional, é possível alicerçar o instituto – seus limites, efeitos e extensão
– sobre a base dos mais fundamentais princípios do Estado Democrático
de Direito.

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586
A POSSIBILIDADE DAS
CANDIDATURAS AVULSAS NO BRASIL
FRENTE AO PACTO DE SAN JOSE DA
COSTA RICA
Bárbara Jacyntho dos Santos116

1. INTRODUÇÃO

O cenário político no Brasil há décadas encontra-se em crise, den-


tre vários apontamentos sobre as possíveis soluções, para a população, a
mais frequente é o revezamento de poder entre partidos de ideais opostos,
partindo-se do pressuposto que se o próximo candidato a ser eleito tiver,
teoricamente, ideais antagônicas ao precedente, os problemas governa-
mentais ocorridos anteriormente não se repetirão. A outra sugestão que
vem veementemente sendo reiterada como solução para essa crise, é o
fortalecimento dos partidos. Todavia, a troca de candidatos filiados à par-
tidos diferentes, através das supostas eleições democráticas que ocorrem
no Brasil, até o presente momento em nada tem modificado esse cenário,
e a insatisfação da sociedade com os desdobramentos políticos vai de mal
a pior.
Neste sentido, não recentemente, surgiu no Supremo Federal, nas
respectivas casas do legislativo, e ainda em meio acadêmico e doutrinário,
a discussão sobre a possibilidade de que as candidaturas eleitorais sejam
realizadas independentemente de filiação partidária. O assunto vem se

116 Graduanda em Direito pela Universidade Pulista – Campus Limeira/SP.

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reiterando há alguns anos, entretanto sem que seja lhe dispensado a devida
importância e urgência que pede o cenário político atual do Brasil.
Atualmente o assunto continua em pauta por meio do Recurso Es-
pecial (RE) nº 1.238.853 no Supremo Tribunal Federal (STF) que visa a
reforma da decisão proferida pelo TSE no sentido de não autorizar a can-
didatura avulsa de dois cidadãos brasileiros sem a necessidade de filiação
partidária. O principal fundamento jurídico alegado, também reivindica-
do em outras discussões acerca do tema, é a incorporação do Pacto de Santo
Jose da Costa Rica na interpretação da regulamentação eleitoral fornecida
pela Constituição Federal de 1988.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso é
o relator do caso e reconheceu a repercussão geral estabelecida sobre o
referido RE, motivo pelo qual convocou uma plural quantidade de aca-
dêmicos e representantes de instituições cujo interesse ou conhecimento
seja expressivamente pertinente ao tema, para discutirem sobre as questões
democráticas e de direitos fundamentais que envolvem a possibilidade das
candidaturas avulsas, em audiência pública realizada em 09 de dezembro
de 2019.
Embora a discussão explanada na referida audiência tenha sido, nas
palavras do próprio relator, “um debate verdadeiramente plural, com ex-
posições extremamente bem fundamentadas, de pessoas que se prepara-
ram e vieram contribuir para o país e para o Supremo, para que possamos
tomar uma decisão devidamente esclarecida”(BARROSO, Luís Rober-
to, 2019, online [s.p]) o julgamento do Recurso Especial ainda encontra-se
pendente, e o assunto ainda parece estar na esfera utópica do ordenamento
jurídico brasileiro.
Sobretudo, salienta-se que assim como a intenção do relator ao con-
vocar a audiência supra mencionada, o intuito do presente artigo não con-
siste em sugerir ou defender a extinção dos partidos políticos do sistema
eleitoral brasileiro, mas apresentar uma breve reflexão sobre viabilidade
das candidaturas avulsas, como um meio alternativo tanto aos elegíveis
quanto aos eleitores, proporcionando uma concorrência política que es-
timule os partidos políticos à buscarem com mais ímpeto a satisfação das
necessidades da sociedade, e por fim, com o objetivo prioritário de alcan-
çar a plena garantia do exercício democrático da cidadania, na medida que
se mostrará a conveniência dessas candidaturas à demanda populacional e

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à realidade político-social do Brasil, de acordo com os motivos e funda-


mentos jurídicos que serão demonstrados nos itens à seguir.

2. FONTES NORMATIVAS

A regulamentação constitucional delimitada pela Carta Magna de


1988 pauta-se, sobretudo, no sufrágio universal e na soberania popular
que devem ser exercidas pela cidadania democrática, de acordo com o
disposto no caput do artigo 14 do texto constitucional. Neste panorama,
importa destaque o apontamento desses conceitos, para que a análise sobre
as suas aplicações possa ser devidamente realizada de acordo com contexto
do país.
Com relação ao sufrágio universal, consiste no direito conferido aos
cidadãos maiores de idade e alfabetizados de serem eleitores ou elegíveis à
cargos de representação política, independente de classe, gênero etnia ou
qualquer tipo de discriminação. Já a soberania popular advém da doutri-
na contratualista formulada por Thomas Hobbes, Jean Jaques Rousseau
e John Locke, de que os representantes do Governo, sendo escolhidos
pela sociedade, devem condicionar-se as vontades e necessidades dos in-
divíduos pertencentes a esta sociedade, uma vez que todo poder político
estatal emana e pertence ao povo.
Neste prisma, com relação a soberania popular Jairo Gomes deli-
mita que “O poder é soberano quando não está sujeito a nenhum ou-
tro. É o que dita e comanda sem que possa ser refreado. Soberano é o
poder supremo.” (GOMES, 2016, p.71). Ora, então como garantir que
o poder do povo é soberano se ele está sujeito ao monopólio de poder
dos partidos políticos? E está sujeito porque ao povo não é conferido
nenhuma outra alternativa legal que possibilite a não perpetuação desse
monopólio no poder.
Os conceitos de cidadania e democracia estão intimamente ligados
entre si, na medida que a primeira é o meio pelo qual se efetiva a segunda.
A cidadania é a condição que se proporciona ao cidadão a participação
da vida política do Estado. Entende-se que a cidadania pode ser exercida
quanto aos direitos eleitorais por meio do sufrágio universal, com o fim de
alcançar um efetivo Estado Democrático de Direito.

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A democracia por sua vez, possui um núcleo conceitual mais com-


plexo, uma vez que nela se verificam o exercício dos demais conceitos
supra citados, pois consiste em uma forma de governo gerido, direta ou
indiretamente, do povo para o povo, que se converge na soberania popu-
lar. O conceito de democracia se altera no decorrer do tempo devendo se
adaptar às transformações da sociedade.
No mesmo sentido, Norberto Bobbio:

[...] O problema da Democracia, das suas características, de


sua importância ou desimportância é, como se vê, antigo. Tão
antigo quanto a reflexão sobre as coisas da política, tendo sido
reproposto e reformulado em todas as épocas. De tal maneira
isto é verdade, que um exame do debate contemporâneo em
torno do conceito e do valor da Democracia não pode prescin-
dir de uma referência, ainda que rápida, à tradição. (BOBBIO,
2000, p.320)

O conceito de democracia também não pode restringir-se à delimi-


tação quantitativa de maioria, haja vista, de acordo com os ensinamentos
de José Afonso da Silva, tal elemento não constitui-se em dogma ou prin-
cípio da democracia, mas tão somente mera técnica utilizada para aferir a
representatividade popular, que inclusive pode ser substituída por outras
técnicas mais adequadas (SILVA, 2013, ).
Assim, o sistema democrático atual deve atentar-se as problemáti-
cas estabelecidas na seara política do país e dar voz a todos os indivíduos,
independente de maiorias ou minorias, devendo atender as necessidades
da população de acordo com a proporcionalidade de sua necessidade e
representatividade no atual momento histórico.

2.1 Sistema eleitoral e o atual cenário político brasileiro

Dito isso, quanto à formalidade do sistema eleitoral, a CF/88, em seu


artigo 14, §3, V, aponta a necessidade da filiação partidária como condição
obrigatória para candidatura à cargos políticos. Neste sentido, segundo a
Lei 9.096/1995, que dispõe sobre a filiação partidária, os partidos políticos
devem ter fulcro no interesse do regime democrático, buscando sempre a

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autenticidade do sistema representativo e a defesa dos direitos fundamen-


tais definidos na Constituição Federal.
Todavia, embora a ideia primária da obrigatoriedade dos partidos
políticos no Brasil tenha intenção de assegurar o exercício da democra-
cia, atualmente é fato que a maioria dos países democráticos permitem a
candidatura independente dos partidos políticos. Neste sentido segundo
dados da Ace Assentment117, de 122 países, apenas 23 não possibilitam as
candidaturas avulsas, dentre eles o Brasil, enquadrando-se, portanto, no
salvante 10% que ainda não aderiram essa possibilidade.
Foi visando este panorama, e o notório interesse público acerca des-
ta questão, que o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto
Barroso, convocou a audiência pública para debater o tema, antes de qual-
quer eventual decisão sobre o RE nº 1.238.853. Participaram da discussão
membros do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, da Advocacia-
-Geral da União, da Procuradoria-Geral da República, dos partidos po-
líticos, de movimentos sociais e acadêmicos. Dentre várias divergências
acerca da questão, é inegável que ao menos a admissão de que os moldes
atuais do sistema partidário já não atendem mais os anseios da sociedade,
a necessidade de reforma é evidente.
Frise-se o importante discurso do subprocurador geral Brasilino Pe-
reira dos Santos que representou a Procuradoria-Geral da República, no
sentido de defender a flexibilização de interpretação de Constituição para
admitir as candidaturas avulsas. Para tanto, foi feita a leitura de trechos
do parecer do procurador-geral Augusto Aras defendendo que a adoção
desse modelo não trará qualquer prejuízo para a democracia representati-
va e poderá coexistir com as candidaturas vinculadas a partidos políticos
(SANTOS, Brasilino Pereira dos, 2019).
Em contrapartida, dentre as críticas levantadas à possibilidade das
candidaturas avulsas, citam-se o enfraquecimento dos partidos políticos,
que no Brasil já é ruim e as dificuldades de recursos financeiros que en-
contraria o candidato avulso na vigência de sua campanha eleitoral, como
por exemplo nas propagandas eleitorais em emissoras de televisão. Porém,
na mesma linha dos discursores favoráveis à questão em audiência, enten-

117 Organização da ONU que elabora levantamento de dados acerca da democracia e dos
sistemas eleitorais dos países por ela registrados. Os dados podem ser verificados em ONU
ACEPROJECT: <https://aceproject.org/epic-en/>.

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de-se que quanto ao primeiro ponto, as consequências serão inversas do


que as temidas, uma vez que a liberal idade de uma nova opção de voto
aos eleitores, forçará os partidos políticos a saírem de seus confortáveis lu-
gares de poder, nos quais estão estagnados há décadas. Quanto ao segundo
ponto, é inegável que a possibilidade financeira do candidato avulso possa
ser inferior à dos partidos, entretanto, uma vez que o debate em questão
não propõe a extinção dos partidos, em havendo a possibilidade de can-
didatar-se independentemente de partido político, o indivíduo, em pleno
exercício de sua cidadania, poderá escolher entre filiar-se ou não, optando
de maneira completamente livre e voluntária.
Outro questionamento, um tanto quanto mais subjetivo do que os
anteriores, é apontado, qual seja, a possibilidade de que as candidaturas
avulsas propiciem o chamado messianismo personalíssimo, isto é, o fana-
tismo popular em um indivíduo, incentivando a ideia de autoritarismo.
Todavia, tal entendimento não deve prosperar pois, embora seja sempre
possível que tal fanatismo ocorra, tal situação não está condicionada à can-
didatura avulsa, haja vista os grandes exemplos de populistas no Brasil e
no mundo eram filiados à partidos, a exemplo de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT118) que governou o Brasil de 2003 à 2011; Vladimir Putin (RU119) no
poder da Rússia desde 2000 e, Adolf Hitler (PNSTA120), que governou a
Alemanha Nazista de 1934 a 1945, e que inclusive pode ser citado dentre
os mais perversos dos governadores autoritários.
Como adendo, ressalta-se que, apesar da filiação partidária, o popu-
lismo nos exemplos citados é extremista, e que mesmo com governantes
que tenham sido eleitos pela maioria popular, é possível constatar, tanto
nos governos usados como exemplo na grande maioria dos não citados, a
ocorrência de situações envolvendo corrupção e afronta aos direitos fun-
damentais, motivo pelo qual a democracia não deve restringir-se aos con-
ceitos de populismo, ou tão somente à representatividade da maioria, haja
vista todos os cidadãos devem ser considerados, inclusive os pertencentes
aos grupos minoritários.

118 Partido dos Trabalhadores.


119 Rússia Unida.
120 Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores.

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Como argumento contra às candidaturas avulsas, critica-se ainda,


quanto ao andamento do RE 1.238.853, a incompetência do STF para
julgar questões pertinentes a organização político-eleitoral, sob a alega-
ção de que a alteração legislativa compete somente ao Poder Legislativo e
quanto às decisões jurídicas a respeito de direito eleitoral somente ao TSE.
Neste ponto, a tripartição dos poderes na teoria de Montesquieu não
pode ser contorcida no sentido de que a independência entre Executivo,
Legislativo e Judiciário representa um paralelismo entre tais Órgãos e que
cada um pode tomar as decisões que por bem entender, sob o seu único
ponto de vista; muito ao contrário disso, a ideia da tripartição dos poderes
surge para que a desconcentração do poder impeça (ou ao menos dificulte)
o abuso deste poder, a corrupção deliberada e o autoritarismo, podendo e
devendo, um poder fiscalizar e intervir no outro, sobretudo quando pro-
vocado, e neste caso, o Supremo Tribunal Federal foi provocado quando
da interposição do RE 1.238.853, e tendo em vista a urgência do tema e
a omissão do Poder Legislativo, pode e deve decidir sobre a questão das
candidaturas avulsas.
Para finalizar a questão da competência, não é correto delegar somen-
te ao TSE questões pertinentes ao direito eleitoral, uma vez que a base
essencial de tal matéria encontra-se disciplinada na Constituição Federal,
e é o STF o guardião legítimo da Lei Maior.
Pois bem, uma vez apresentados os debates que enlaçam o tema, bem
como o fundamento jurídico da obrigatoriedade da filiação partidária
contida na Carta Magna, analisar-se-á o fundamento jurídico pelo qual se
embasa a possibilidade das candidaturas avulsas no Brasil.

2.2 Os direitos Políticos no Pacto de San Jose da Costa


Rica

Afastando-se do capítulo político-eleitoral da Constituição Federal,


e retornando ao rol de direitos fundamentais elencados pelo artigo 5º da
Carta Magna, frisa-se que, em 1969 o Brasil assinou o Pacto de San Jose da
Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH), e ratificou-a em 1992. Em seu bojo, o referido tra-
tado internacional, regulamenta os direitos políticos no artigo 23, o qual

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vale a pena ser transcrito, com grifo nosso, pela pertinência dos termos ali
tratados, in verbis:

Artigo 23 - Direitos políticos

1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e opor-


tunidades:

a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou


por meio de representantes livremente eleitos;

b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas


por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garan-
tam a livre expressão da vontade dos eleitores; e

c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções pú-


blicas de seu país.

2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a


que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivo de ida-
de, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil
ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo pe-
nal. (PGE, Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969,
online [s.p]).

No que concerne ao grifo do parágrafo 1, letra “b”, fica evidente a


prioridade que o sistema eleitoral deve dispensar na garantia da liberdade
de voto dos eleitores. Dito isso importa observarmos que, no atual sistema
de regulamentação partidária nem sempre um pretendente à candidatura
que possua potencial representatividade de eleitores consegue se candida-
tar, seja porque não se filiou à um partido político ou porque o próprio
partido impôs-lhe impecílios, situação a qual prejudica o efetivo direito de
livre expressão de escolha dos eleitores.
Cabe destaque o disposto no parágrafo 2 do referido artigo, na medi-
da que, expressamente elenca um rol exclusivo de possíveis condiciona-
mentos às candidaturas que eventual lei interna poderá regular, isto é, tra-
ta-se de rol taxativo, e por isso os países signatários do tratado, em teoria,
só poderiam regular as condições previstas no referido dispositivo, no qual
não se inclui a filiação partidária.

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2.3 Da interpretação dos tratados internacionais sobre


Direitos Humanos no Brasil

Sob o prisma do cenário anteriormente apresentado, segundo o prin-


cípio da autodeterminação dos povos em conjuntura com o princípio da
soberania igualitária dos Estados, cada país signatário de um tratado in-
ternacional deve introduzir este em seu ordenamento jurídico de maneira
que se adeque à realidade social, jurídica e às normas de direito interno
do país.

2.3.1 Do monismo e do dualismo

No direito internacional, não é possível identificar uma autoridade


superior que prevaleça sobre os Estados, com a autoridade de tornar obri-
gatório o cumprimento da ordem jurídica internacional e de cominar san-
ções caso esta não seja cumprida. Não há, pois, um órgão legislativo que
faça valer a vontade da maioria no direito internacional, pois este regula as
relações entre os Estados, com base no consentimento, motivo pelo qual
cada Estado tem direito a não-intervenção no seu sistema jurídico. Assim,
sobre a relação existente entre Direito Internacional e Estado, surgiram
duas correntes doutrinárias, o monismo e o dualismo.
A teoria dualista, o direito internacional e o direito interno são sis-
temas independentes e distintos. Por isso, uma norma de direito interno
não se condiciona à norma internacional e nem vice-versa. Atualmente,
embora a doutrina se divida em relação a qual teoria deve prevalecer no
nosso sistema, podemos destacar que o STF tem se posicionado no senti-
do da teoria dualista moderada que, divergente do dualismo radical, con-
sidera que a internalização de uma norma internacional pode ocorrer por
meio de ato infralegal, como por um decreto presidencial, devendo passar
por apreciação do Congresso Nacional.
Para a teoria monista, essa divisão prática da aplicação das normas
não existe, caracterizando-se, portanto, pela unicidade da ordem jurídica
interna e da internacional, devendo ambas estarem sempre alinhadas. Esta
teoria se dividiu em duas correntes. A primeira se caracteriza pela prima-
zia do direito internacional sobre o direito interno; e a segunda, em senti-
do oposto, pela primazia do direito interno sobre o direito internacional.

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Todavia, para Mazuolli, no que tange a interpretação dos tratados in-


ternacionais sobre direitos humanos, existe ainda uma terceira vertente do
monismo chamada pelo renomado autor de monismo internacional dia-
lógico, que, considerando que no monismo clássico a norma internacional
se sobrepõe a norma de direito interno, as normas referentes à direitos
humanos devem dialogar entre si (MAZUOLLI, 2011), uma vez que a
coexistência entre normas internas e internacionais que versem sobre este
tema apenas reforça a prioridade que deve ser dispensada à tutela dos di-
reitos humanos.

2.3.2 Aplicação da EC nº 45 de 2004 ao Pacto de San


Jose da Costa Rica

Neste sentido, o Brasil editou a Emenda Constitucional (EC) nº


45/2004 que inseriu o §3º ao artigo 5º da Constituição Federal, para dis-
por acerca dos tratados internacionais sobre direito humanos dos quais o
Brasil faça parte, nos seguintes termos: “os tratados e convenções inter-
nacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos res-
pectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRA-
SIL, Constituição Federal, 1988).
Ocorre que, insurgiu-se quanto à referida EC, acentuada dúvida so-
bre o tratamento dispensado aos tratados internacionais sobre direitos hu-
manos aprovados pelo Brasil antes da vigência da referida Emenda, inclu-
sive sobre o Pacto de San Jose da Costa Rica. A questão foi levada ao STF pelo
RE 466.343-SP e decidida, por quatro votos a um, no sentido de que os
tratados já vigentes no Brasil possuem valor supralegal, isto é, abaixo das
normas constitucionais e acima das leis ordinárias.
A tese vencida foi a do ministro Marco Aurélio de Mello, de que
tais tratados deveriam ter reconhecido o seu valor constitucional. Todavia,
embora vencido, tal posicionamento ainda possui força expressiva entre
os experts do direito, dentre eles Sylvia Steiner, Antônio Cançado Trin-
dade, Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, Ada Pellegrini Grinover, dentre
outros.
Neste sentido, frise-se o entendimento de Antônio Augusto Cançado
Trindade:

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Já observamos que, em matéria de tratados sobre proteção dos di-


reitos humanos, a reciprocidade é suplantada pela noção de ga-
rantia coletiva e pelas considerações de ordre public. Tais tratados
incorporam obrigações de caráter objetivo, que transcendem os
meros compromissos recíprocos entre as partes. Voltam-se, em
suma, à salvaguarda dos direitos do ser humano e não dos direitos
dos Estados, na qual exerce função-chave o elemento do ‘interesse
público’ comum ou geral (ou ordre public) superior. Toda a evolução
jurisprudencial quanto à interpretação própria dos tratados de pro-
teção internacional dos direitos humanos encontra-se orientada
nesse sentido. Aqui reside um dos traços marcantes que refletem a
especificidade dos tratados de proteção internacional dos direitos
humanos. (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, p. 10-11)

Em consonância Flavia Piovisan, ao discorrer sobre a Corte Intera-


menicana:

Compartilha-se da visão de Cançado Trindade de que este dispo-


sitivo constitui um anacronismo histórico, que deve ser superado,
a fim de que se consagre o “automatismo da jurisdição obrigatória
da Corte para todos os Estados-partes da Convenção”. Isto é, todo
Estado-parte da Convenção passaria a reconhecer como obriga-
tória, de pleno direito e sem convenção especial, integralmente e
sem restrição alguma, a competência da Corte em todos os casos
relativos à interpretação e aplicação da Convenção. (PIOVISAN,
Flávia, 2013, p.356).

Destarte o próprio julgamento do RE 466.343 reconheceu a possi-


bilidade de prisão de depositário infiel ainda que a Constituição Federal,
em seu artigo 5º, inciso LXVII, não admita esse tipo de prisão, tomando
como principal fundamento o Pacto de San Jose da Costa Rica. Além disso,
essa linha interpretativa já foi reforçada em outros julgados da Corte Su-
prema, a exemplo do RE 80.004, dos HC 72.131 e 82.424, e pelo voto do
ministro Celso de Mello no HC 87.585-TO.
Desta forma, fica evidente que nos mencionados casos o STF adap-
tou-se à utilização da CADH na interpretação das normas de Direito In-
terno, inclusive frente às normas constitucionais. Neste sentido, é possível

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analisar que, se consonante com essa linha interpretativa, fica claro que
a não previsão da filiação partidária no rol taxativo da CADH como re-
quisito à candidatura de cargo político, converge para a permissibilidade
das candidaturas avulsas no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista a
incorporação do Pacto de San José da Costa Rica não pode valer-se somente
em casos de conveniência.
Neste ponto, ressalte-se o ensinamento de Buergenthal:

Os Estados-partes na Convenção Americana têm a obrigação não


apenas de ‘respeitar’ esses direitos garantidos na Convenção, mas
também de ‘assegurar’ o seu livre e pleno exercício. Um governo
tem, consequentemente, obrigações positivas e negativas relativa-
mente à Convenção Americana. De um lado, há a obrigação de
não violar direitos individuais; por exemplo, há o dever de não
torturar um indivíduo ou de não privá-lo de um julgamento justo.
Mas a obrigação do Estado vai além desse dever negativo e pode
requerer a adoção de medidas afirmativas necessárias e razoáveis,
em determinadas circunstâncias, para assegurar o pleno exercício
dos direitos garantidos pela Convenção Americana (BUERGEN-
THAL, Thomas, 1984, p. 442.)

Para finalizar a questão, ainda que o entendimento sobre a aplicação


do referido tratado internacional frente as normas constitucionais não seja
plenamente majoritário, cabe ressaltar que a referida listagem elencada no
artigo 14, §3º não constitui-se de cláusula pétrea121 da Constituição Fede-
ral, motivo pelo qual a sua alteração é possível, se não pela incorporação
da CADH, pelo interesse sociedade e necessidade político-social do país
as quais o atendimento constitui a razão primordial de existência da Lei
Maior pátria.
Sobretudo, há de se relembrar que não é somente de maiorias que
se sustenta a Democracia, e sim de uma ideia de governo que atenda as

121 Dispositivo constitucional que não pode ser alterado nem mesmo por Proposta de
Emenda à Constituição (PEC). As cláusulas pétreas inseridas na Constituição do Brasil de
1988 estão dispostas em seu artigo 60, § 4º. São elas: a forma federativa de Estado; o voto
direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias
individuais. Fonte: Agência Senado

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necessidade da sociedade como um todo, garantindo prioritariamente os


direitos dos cidadãos, e neste ponto a necessidade prática das candidaturas
avulsas se mostra urgente e inegável, conforme se demonstrará no contex-
to apresentado a seguir.

3. DA AFRONTA AOS DIREITOS E GARANTIAS


INDIVIDUAIS PELA OBRIGATORIEDADE DA FILIAÇÃO
PARTIDÁRIA

A ideia central de um partido político dentro de um Governo Repu-


blicano é oferecer aos candidatos a possibilidade de se filiar à uma associa-
ção de indivíduos que partilham dos mesmos ideais de política e gover-
nança estatal. Em teoria, o partido político deve orientar seus candidatos,
garantir os seus direitos como cidadãos, e dar voz a esses ideais.
Há tempos esse ideal de conceito partidário vem se esvaindo no Bra-
sil, haja vista os escândalos de corrupção identificados na famosa Operação
Lava Jato, que já apurou mais de 30 partidos com membros participantes
(sendo 33 o total de partidos políticos ativos atualmente) do mesmo es-
quema de lavagem de dinheiro, inclusive conspirando uns com os outros.
Este é só um (grande) dos exemplos de que o partido político no Brasil
deixou de ser essencialmente um formulador de ideias e propostas para
constituir um monopólio de poder político, pois embora, teoricamente,
possuam ideias diferentes, criam regras para se perpetuarem no poder e
oprimirem qualquer grupo de indivíduos livre que tente estabelecer uma
ideia diferente ou que ameacem a plenitude de seu poder (PASCHOAL,
Janaína, 2019).
Conforme narrado no início deste artigo, a democracia é alcança-
da através da cidadania, e esta é exercida no Brasil por meio do sufrágio
universal, ou seja, é exercida principalmente na possibilidade de votar e
ser votado. Todavia, não é possível no atual sistema eleitoral brasileiro, a
plena garantia do direito essencial ao exercício da cidadania, uma vez que entre
o eleitor e o candidato existem os partidos, os quais muitas vezes impõe os
seus candidatos na medida do que lhes convém.
É necessário observar-se que, neste sistema, o direito de identidade dos
candidatos vinculados aos partidos políticos é violado, na medida que a sua
própria imagem pessoal se associa imediatamente à sigla daquele partido,

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e consequentemente, os atos praticados por outros membros deste partido


também lhe serão associados.
Por conseguinte, uma vez no exercício de seu mandato, muitos po-
líticos passam a policiar-se sobre suas manifestações, no intuito de que a
sua expressão não recaia sobre outro membro do mesmo partido, ou não
contrarie o estipulado por este, o que recai diretamente na supressão de
seu direito de liberdade de expressão, que não obstante, também é suprimido
do eleitor na medida que dele é retirado o direito de votar em um indiví-
duo de mente livre.
Mais grave entende-se tal situação, na medida que essa vinculação aos
atos praticados pelos membros do mesmo partido político, além de en-
clausurarem a liberdade de expressão dos mesmos, constitui-se em plena
injustiça para com esses cidadãos, uma vez que a filiação partidária não foi
uma escolha para nenhum deles, mas uma imposição estipulada no orde-
namento jurídico brasileiro, ou pela interpretação que vem se fazendo do
mesmo.
Ora, esse cerceamento da cidadania atinge não somente o eleitor, mas
também o candidato, que uma vez vinculado ao partido, não a exerce
mais pelas próprias convicções, mas sob uma opressão que direciona o
exercício de sua cidadania em nome de um partido que muitas vezes não
abrange a maior pare dos valores e princípios daquele candidato, que de
maneira intrínseca, deixa de ter um papel individualmente relevante na
sociedade (PASCHOAL, Janaína, 2019).
Tornou-se portanto inegável que a prática atualmente estabelecida
sob tal sistema afronta contra os direitos e garantias fundamentais previsto
na Constituição Federal de 1988 e contra a soberania popular, e que a via-
bilidade das candidaturas avulsas no Brasil, em respeito ao próprio prin-
cípio da primazia da norma mais favorável ao indivíduo, é, não somente
perfeitamente possível, como urgentemente necessária.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na conjuntura sobre o atual contexto político social do Brasil, de-


monstrou-se extremamente pertinente a possibilidade das candidaturas
avulsas no sistema eleitoral brasileiro. Quanto à fundamentação, ficou
demonstrado os motivos práticos pelos quais o exercício da cidadania do

600
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

povo brasileiro não vem sendo eficazmente alcançado, na medida que a


obrigatoriedade da filiação partidária restringe a plenitude do poder de
escolha dos cidadãos, tanto como eleitores quanto como elegíveis.
Quanto aos fundamentos jurídicos, evidenciou-se a possibilidade da
modificação constitucional quanto ao artigo 14, §3º, V, frente aos termos
estabelecidos no Pacto de San José da Costa Rica, tendo em vista a juris-
prudência já consolidada sobre sua aplicação e a prioridade que a própria
Constituição Federal de 1988 confere aos direitos e garantias individuais e
sobre o pleno exercício da cidadania.
Nenhuma democracia pode prosperar eficazmente em um sistema
político eleitoral que não satisfaz e não proporciona segurança jurídica e
social a seu povo. A partir do momento que o povo não confia mais em
seus representantes e somente os elege porque já não há outra opção, a de-
mocracia está prejudicada em seu núcleo primordial. A partir do momen-
to que o elegível, não pode se candidatar com ideais livres e independentes
de qualquer partido político, o seu direito de livre expressão foi cerceado,
o direito de livre escolha dos eleitores foi mitigado, e o poder emanado
povo já não pode mais ser considerado soberano.
Diferente seria se o povo fosse defensor da perpetuação isolada dos
partidos. Ao revés, o povo brasileiro clama por mudanças políticas e elei-
torais porque os moldes atuais há décadas já não lhe satisfazem mais e, se
há de fazer valer o fundamento basilar da soberania popular previsto na Lei
Maior, a necessidade de reforma no sistema político eleitoral não pode ser
ignorada. Neste prisma, as candidaturas avulsas não se apresentam como
imposição para extinção dos partidos político, quanto menos como insti-
tuto salvador de todos os problemas de governança estatal, mas consolida-
-se como uma alternativa juridicamente possível de ser implementada no
ordenamento jurídico brasileiro, que contribuirá para um sistema eleitoral
mais democrático.
Por derradeiro, entende-se que a permissibilidade das candidaturas
avulsas no Brasil, além de aproximar o sistema eleitoral das garantias dos
direitos fundamentais, as quais tanto preza a Lei Maior vigente no país,
também proporciona uma livre concorrência em âmbito político, o qual
tende a incentivar a melhoria dos partidos já constituídos e, consequente-
mente, a qualidade de um efetivo Estado Democrático de Direito.

601
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

5. REFERÊNCIAS

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STF. HC: 87585 TO. Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Jul-
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Data de Julgamento: 01/06/1977, Tribunal Pleno, Data de Publica-
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TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional


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básicos. São Paulo: Saraiva, 1991.

604
A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
DIREITO CONTRATUAL
Maximiano Dias Rosa122

1. INTRODUÇÃO

As transformações sociais que impactaram o campo do jurídico para o


desenvolvimento constitucionalismo trouxeram uma releitura do direito
privado no ordenamento jurídico mundo à fora. No ordenamento brasi-
leiro, cada vez mais o direito privado tem sido interpretado e aplicado à
luz do direito constitucional, como recomenda a ordem jurídica vigente.
A influência do liberalismo econômico já não possui o mesmo efeito,
hodiernamente, a intervenção estatal ultrapassou o campo político e se
inseriu na ordem jurídica, através da Constituição, integrando a essen-
cialidade de um Estado Democrático de Direito, e de modo a garantir e
assegurar garantias mínimas aos tutelados e a finalidade do Estado.
Há circunstâncias em que, acaso se ignore a incidência dos direitos
fundamentais nas relações privadas, incorre-se em flagrante falta a ordem
constitucional, por vezes, as garantias de proteção contra o Estado se ir-

122 Possui graduação em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2013),
pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil (2014) e Direito do Trabalho e Processo do
Trabalho (2016) pela UCAM, e graduação em Administração de Empresas pela Universidade
Estácio de Sá (2015). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (2016).
Advogado (OAB/RJ 187.564).

605
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

radiam nas relações privadas ou a ela se assemelham, sendo necessária a


intervenção das normas públicas cogentes.
O constitucionalismo, de maneira geral, trouxe a todos os ramos au-
tônomos do direito a força da Constituição, fundindo dois ramos desta
ciência que ao longo de sua história já foram ditos incomunicáveis, o Di-
reito Publico e o Privado. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais
é uma dessas expressões da Constituição no direito privado, entretanto
trata-se de instituto de peculiar contorno, que possui aplicabilidade ainda
pouco difundida nas práticas dos tribunais.
Apesar da doutrina jurídica brasileira aceitar imperiosidade da inci-
dência dos direitos fundamentais nas relações de direito privado, a questão
é como isto se dará e, sobretudo, qual a dimensão de tal aplicação. Quer
dizer, o debate cientifico gira com mais vivacidade em torno do plano da
eficácia da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.
No campo direito contratual o tema já foi enfrentado pelos Tribunais
em medida sufieciente para traçarmos, a partir das jurisprudências e da
visão doutrinária sobre o tema, quais os fundamentos desta aplicabilidade
e como isto se dá na prática.
Ao longo deste artigo a problemática será examinada amiúde, ressal-
tando-se a experiência jurisprudencial brasileira e seu plano de eficácia na
perspectiva do direito contratual.

2. EFICÁCIA HORIZONTAL NO DIREITO CONTRATUAL

O contrato clássico era plenamente influenciado pelo liberalismo eco-


nômico vigente, refletindo seus ideais fundamentais. Este modelo guia-se
estritamente nos seguintes princípios: autonomia da vontade, consensua-
lismo e força obrigatória dos contratos.
A autonomia privada e a força obrigatória dos contratos são os princi-
pais institutos em evidência no tema da eficácia horizontal nos contratos,
pois tratam-se dos pilares do direito contratual que são frontalmente atin-
gidos pela eficácia horizontal.
À luz do direito contratual hodierno, a incidência dos direitos fun-
damentais assume feições salientes e significativas, pois que a autonomia
privada atua neste ramo do direito com maior nitidez. Compare-se por
exemplo as limitações impostas pela legislação à formulação de um con-

606
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

trato atípico face ao estatuto de uma sociedade cooperativa. Há muito


mais autonomia na celebração de um contrato.
As mudanças que tal ingerência causa ao ramo do direito contratual
são tamanhas, pela intervenção estatal que até pouco tempo, em diversos
Estados, era nula ou insignificante.
Ou seja, o direito contratual abrange matéria eminentemente de au-
tonomia privada, instituto que é objeto direto da limitação causada pela
incidência dos direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, bem constitu-
cionalmente protegido como aquele.
Não há na Constituição Federal dispositivo explícito vinculando os
particulares aos direitos fundamentais, a vincunlação advém da herme-
nêutica e unidade constitucional, refletidas no Direito Privado em razão
da supremacia e força normativa da Carta Política. Como sublinha Daniel
Sarmento (2006), “a linguagem adotada pelo constituinte na estatuição
da maioria das liberdades previstas no art. 5o do texto magno transmite a
idéia de uma vinculação passiva universal”.
Acrescenta ainda o autor (SARMENTO, 2006), já numa perspectiva
social, que “a sociedade brasileira é muito mais injusta e assimétrica do
que as da Alemanha, dos Estados Unidos ou qualquer país desenvolvido,
justificando, em nosso país, um reforço na tutela dos direitos humanos no
campo privado, onde reinam a opressão e a violência.”
Logo no primeiro título, a Carta Magna estabelece diretrizes basila-
res à legitimidade da eficácia dos direitos fundamentais no Direito Priva-
do, que recaem de forma direta no direito contratual, sobretudo quando
estabelece a dignidade da pessoa humana, ao lado de valores sociais do tra-
balho e da livre iniciativa, como fundamento da República, em seu art. 1º.
Também percebe-se adesão à vinculação dos direitos fundamentais,
por parte do poder constituinte, na definição dos objetivos fundamentais
da República: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, ga-
rantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e marginali-
zação e redução das desigualdades sociais e regionais; promoção do bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
A Constituição Federal de 1988 ainda dispõe que a República Fede-
rativa do Brasil tem como fundamentos a busca da redução das desigual-
dades sociais e da construção de uma sociedade justa e solidária, sendo

607
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

uma Constituição progressista, que visa promover a liberdade, a justiça


e a emancipação social dos excluídos, logo, só existirá efetivamente au-
tonomia privada quando o agente tiver mínimas condições materiais de
liberdade, o que não ocorre na maioria dos casos, em que a manifesta
desigualdade entre as partes obsta, de fato, o exercício dessa autonomia.
É claro o posicionamento do constituinte quanto a limitação da au-
tonomia privada, que ensejaria a aplicabilidade dos direitos fundamentais,
isto é, não se poderia idealizar um contrato atentatório à tais princípios,
uma vez que incapaz de coexistir com os fundamentos do ordenamento
jurídico pátrio.
A autonomia privada encontra manifestas limitações de ordem jurí-
dica, embora não diretamente, pois não pode ser exercida em detrimento
ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente os
positivados em sede constitucional, pois esta não confere aos particula-
res, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou
de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja
eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito
de suas relações privadas, sobretudo, em tema de liberdades fundamentais.
A questão, portanto, atinge o direito contratual, como já abordado,
na forma da mitigação ao princípio da autonomia privada, à luz de uma
perspectiva civil-constitucional. Tal princípio, embora garantido expres-
samente na Constituição Federal, não pode ser adotado de per si, isto é, à
margem de outros princípios fundantes.
A seguir passamos a analisar mais profundamente como isto se dá.

2.1. A ponderação de interesses

Quando a Constituição protege, simultaneamente, dois valores que


são aplicáveis ao mesmo contexto, haverá colisão de direitos fundamen-
tais. A eficácia horizontal cria situação de conflito entre bens constitucio-
nalmente protegidos, porquanto a autonomia privada também tem assen-
to constitucional.
Deste modo, o sopeso do instituto da autonomia privada frente aos
princípios e normas constitucionais chega facilmente aos direitos funda-
mentais (normas materialmente constitucionais), e a vinculação daquele,
por sua vez, surge como consectário dentro do ordenamento jurídico bra-

608
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

sileiro, sendo mister modularem-se os efeitos e limites de tal incidência,


de acordo com o caso concreto.
A doutrina pátria aponta para a ponderação de interesses como meio
de efetivação da aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações
privadas, ponderando os direitos fundamentais com a autonomia privada.
Extrai-se da exegese constitucional, então, como o próprio legislador
preocupou-se em sublinhar o haver de uma ponderação de interesses, que
vai além da dicotomia do princípio da supremacia do interesse público
sobre o interesse privado, assentando-se na axiologia e teleologia estru-
tural do Estado, de modo a inviabilizar a aplicação absoluta da autonomia
privada – e de qualquer outro princípio – sob pena de desconstituir-se a
essencialidade do Estado, a ponto de tornar inócuos os seus fins.
Para Barroso, a ponderação entre os direitos fundamentais e a auto-
nomia privada deve considerar a desigualdade material entre as partes, a
razoabilidade, o prestígio dos valores existenciais e a dignidade da pessoa
humana. Assim, quanto maior o grau de desigualdade entre os envolvidos,
mais intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo e menor a
tutela da autonomia privada e vice-versa.
A doutrina de Daniel Sarmento ensina que a Constituição de 1988
está alicerçada sobre princípios e regras jurídicas e foi desenvolvida sobre
bases pluralistas, contendo princípios e diretrizes normativas não conver-
gentes. Assim, a melhor maneira para solucionar os conflitos entre os prin-
cípios seria através da ponderação de interesses pois, em certas situações,
o intérprete será levado à conclusão de que dois princípios são igualmente
adequados para incidir sobre determinado caso e terá de buscar uma solu-
ção que, à luz das circunstâncias concretas, sacrifique o mínimo possível
de cada um dos interesses salvaguardados pelos princípios em confronto.
Acrescenta, ainda, que os direitos fundamentais incidem, também, na hi-
pótese de relações jurídicas em que não se observa a desigualdade entre as
partes, em razão da aplicabilidade universal do princípio da dignidade da
pessoa humana.
A jurista Cristiane Alves (2012) faz interessante análise do tema:

“Vivemos um momento histórico no qual a constitucionalização


de todo o Direito é um fenômeno que torna imprescindível que
as relações jurídicas privadas mostrem-se coerentes com os valores

609
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

constitucionais, essencial se demonstra a adequada compreensão


e o domínio da técnica da ponderação de interesses, como meca-
nismo de solução dos cada vez mais numerosos casos de conflito
entre princípios constitucionais, que decorrem exatamente da apli-
cabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais às relações
privadas”.

Outrossim, Robert Alexy desenvolveu a conhecida regra da propor-


cionalidade, da qual se vale a ponderação, subdividindo-a nos institutos da
adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. A
adequação visa buscar uma exata correspondência entre meios e fins, de
modo que os meios empregados sejam compatíveis com os fins adotados,
a necessidade impõe o emprego de um meio que, limitando-se ao estri-
tamente necessário para a consecução do fim buscado, resulte na menor
restrição possível a outros direitos fundamentais. E, finalmente, a propor-
cionalidade em sentido estrito impõe uma correspondência jurídica entre
meios e fins, no sentido de estabelecer as vantagens e desvantagens no
emprego dos meios, à luz de outros fins envolvidos na questão.
Para este doutrinador a estrutura da ponderação envolve três estágios:
o grau de não satisfação, ou de interferência em um primeiro princípio;
depois, avalia-se a importância de se satisfazer o princípio concorrente;
e por fim observa-se se a importância de se satisfazer o último princípio
justifica a interferência ou não satisfação do primeiro.
A eficácia dos direitos fundamentais no direito contratual traz à tona
uma colisão de direitos, vez que, conforme examinamos anteriormente,
todas as partes da relação jurídica contratual são destinatárias das garantias
constitucionais. Portanto, para dirimir o conflito faz-se necessária adoção
de alguns critérios, seria o caso da ponderação de direitos, de modo a
sopesar os direitos e garantias fundamentais dos tutelados (e contraentes)
face aos direitos contratuais envolvidos – e a autonomia privada.
Por exemplo, numa celebração de um contrato atentatório a um di-
reito fundamental de liberdade, como a previsão de uma cláusula de en-
cargo, num contrato de doação de um terreno feito por um politico a um
jornalista, exigindo deste que não mais escreva sobre seu partido, nota-se
clara ofensa à liberdade de expressão. Tal ofensa não poderia ser tolerada

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

em nossa ordem jurídica, só porque praticada entre particulares, já que


manifestadamente atentatória ao sistema constitucional vigente.
Assim a autonomia privada e a horizontalidade constitucional dos di-
reitos fundamentais, uma vez em conflito, podem gerar a anulabilidade ou
nulidade do contrato, dependendo do caso, tal como se estivesse viciado.
É pela ponderação de interesses e por meio dos princípios da proporcio-
nalidade e razoabilidade, analisada no caso concreto, que se poderá cons-
tatar pela nulidade ou não do instrumento contratual ou de determinada
cláusula.

2.2. Os limites impostos pela dignidade da pessoa


humana

Os direitos fundamentais estão intimamente ligados à dignidade da


pessoa humana. A propósito disto, é justamente a força do referido princí-
pio que dá substrato à aplicabilidade dos direitos fundamentais à qualquer
relação jurídica ocorrida dentro do Estado Brasileiro e, por sua vez, a efi-
cácia horizontal, sobrevindo inclusive nas relações privadas.
O artigo 1o da Constituição, como já referido, ao constituir como
fundamento da República a dignidade da pessoa humana, vetoriza todo
ordenamento jurídico pátrio à axiologia proveniente do instituto, encon-
tra-se no epicentro da ordem jurídica brasileira tendo em vista que conce-
be a valorização da pessoa humana como sendo razão fundamental para a
estrutura de organização do Estado e para o Direito.
Jorge Miranda sistematizou características da dignidade da pessoa hu-
mana, como segue: “a) a dignidade da pessoa humana reporta-se a todas
e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta;
b) cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui
é dela mesma, e não da situação em si; c) o primado da pessoa é o do ser,
não o do ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade; d) a proteção da
dignidade das pessoas está para além da cidadania portuguesa e postula
uma visão universalista da atribuição de direitos; e) a dignidade da pessoa
pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativa-
mente ao estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas.”
Eduardo C.B. Bittar, em importante lição, disserta sobre esse man-
damento nuclear:

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

“Só há dignidade, portanto, quando a própria condição humana


é entendida, compreendida e respeitada, em suas diversas dimen-
sões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência
ética como prática diuturna de respeito à pessoa humana, [a digni-
dade da pessoa humana é] a meta social de qualquer ordenamento
que vise a alcançar e fornecer, por meio de estruturas jurídico-po-
lítico-sociais, a plena satisfação de necessidades físicas, morais, psí-
quicas e espirituais da pessoa humana.”

A dignidade da pessoa humana é a razão da existência do Estado, já


que é o axioma que sustenta a máquina administrativa, isto é, a dignidade
impõe restrições, funcionalidade e objetividade as regras jurídicas.
Desta feita, a dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial de
todos os direitos fundamentais, o que significa que o sacrifício total de
algum deles importaria uma violação ao valor da pessoa humana.
Por consectário, tal qualidade atinge a autonomia privada e o direito
contratual, que a sua forma e limites estão integrados ao Estado, e não
acima deste. Assim, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais atua
forte e eficazmente através do princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamental tanto às garantias e direitos fundamentais, quanto ao existên-
cia do Estado Democrático de Direito.
Igon Wolfgang Sarlet (2010) assevera que:

“(...)também a ordem comunitária e,portanto, todas as entidades


privadas e os particulares encontrma-se diretamente vinculados
pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, por
sua natureza igualitária e por exprimir a ideia de solidariedade en-
tre os membros da comunidade humana, o princípio da dignidade
da pessoa vincula também no âmbito das relações entre os parti-
culares. No que diz com tal amplitude deste dever de proteção e
respeito, convém que aqui reste consignado que tal constatação
decorre do fato de que há muito já se percebeu – designadamente
em face da opressão socioeconomic exercida pelos assim denomi-
nados poderes sociais – que o Estado nunca foi (e cada vez menos
é) o único e maior inimigo das liberdades e dos direitos fundamen-
tais em geral. “

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No mesmo sentido, Daniel Sarmento (2006) advoga que o princípio


da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da or-
dem constitucional, irradiando efeitos sobre todo ordenamento jurídico e
balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de rela-
ções privadas que se desenvolve no seio da sociedade civil e no Mercado.
Existem, inclusive, correntes doutrinárias que entendem que os di-
reitos fundamentais nascem a partir do princípio da dignidade da pessoa
humana, ou, nas palavras de um destes doutrinadores, Ricardo Nakahira
(2007), “o direito só será fundamental se seu conteúdo material concreti-
zar aquele princípio”.
Sem embargos, o referido princípio será sempre vetor legítimo à
qualquer norma de Direito Privado ou cláusula contratual, dada a rele-
vância aqui esboçada, a de epicentro axiológico da ordem constitucional,
que irradia efeitos sobre todo ordenamento jurídico.
Nesse sentido, os contratos entre particulares devem observar to-
dos os direitos fundamentais compatíveis e zelar pelo seu cumprimento e
efetividade, sob pena de serem objeto de anulação ou revisão judicial em
eventual litígio.

2.3. A jurisprudência dos Tribunais

Conforme tratado anteriormente, a eficácia horizontal dos direitos


fundamentais, de uma maneira geral, e principalmente no que pertine
ao direito contratual, é passível de análise caso a caso, quando há conflito
entre a autonomia da vontade e os direitos fundamentais estabelecidos na
Constituição.
Dessa forma, para melhor compreensão deste tema, é imprenscin-
dível uma análise da jurisprudência dos Tribunais, a fim de que se possa
analisar, de uma perspectiva mais prática, como a eficácia horizontal inci-
de no direito contratual.
No ano de 2005 o STF adotou exepressamente em um julgado a
teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Foi no julgamento
do RE/201.819, em que se discuia a exclusão de um associado da União
Brasileira de Compositores (UBC), que como pena o excluíra, sem asse-
gurar-lhe defesa.

613
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Dos votos deste julgado, merece destaque, o voto do então Min.


Joaquim Barbosa, que rechaçou por completo a state action doctrine, do
direito norte-americano, se posicionando claramente contra a não-vincu-
lação dos direitos fundamentais às relações privadas. Há certa predileção
pela teoria da eficácia horizontal imediata em seu voto:

“Da minha parte (...) penso (...) que os direitos fundamentais têm,
sim, aplicabilidade ao âmbito das relações privadas. Tomo a cautela
de dizer que não estou aqui a esposar o entendimento de que essa
aplicabilidade deve verificar-se em todas as situações. No campo
das relações privadas, a incidência das normas de direitos funda-
mentais há de ser aferida casa a caso, com parcimônia,a fim de que
não se comprima em demasia a esfera da autonomia privada do
indivíduo (...) Assim, na linha do que foi sustentado no voto di-
vergente, e em virtude da natureza peculiar da associação em causa
(que tem natureza ‘quase pública’), peço vênia à Ministra Ellen
Gracie para dela divergir, concordando que os princípios constitu-
cionais da ampla defesa e do devido processo legal têm aplicabilida-
de imediata para fins de exclusão do sócio da sociedade.”

O Min. Celso Mello acompanhou o posicionamento de Barbosa, à


favor da vinculação, aderindo expressamente à teoria da eficácia horizon-
tal imediata, como é possível extrair de seu voto:

“Cumpre considerar, neste ponto, até mesmo para efeito de exame


da questão ora em análise, a advertência de INGO WOLFGANG
SARLET (...): ‘uma opção por uma eficácia direta traduz uma
decisão política em prol de um constitucionalismo da igualdade,
objetivando a efetividade do sistema de direitos e garantias fun-
damentais no âmbito do Estado Social de Direito, ao passo que a
concepção defensora de uma eficácia apenas indireta encontra-se
atrelada ao constitucionalismo de inspiração liberal-burguesa (...)
É por essa razão que a autonomia privada –que encontra claras li-
mitações de ordem jurídica – não pode ser exercida em detriment
aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positi-
vados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não
confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação,

614
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

o poder de transgredir ou de se ignorar as restrições postas e de-


finidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa
também se impõem aos particulares, no âmbito de suas relações
privadas, em tema de liberdades fundamentais.”

Enfim, a Turma, por votação majoritária, conheceu e negou provi-


mento ao recurso extraordinário, vencidos a Ministra-Relatora e o Mi-
nistro Carlos Velloso, enxertando importante posicionamento à jurispru-
dência brasileira, que demonstra se alinhar à teoria da eficácia horizontal,
ao conclamar que:

“As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no


âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente
nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito pri-
vado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constitui-
ção vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando
direcionados também à proteção dos particulares em face dos po-
deres privados.”

Este julgado é histórico no direito brasileiro, e tem embasado diver-


sas decisões judiciais que aplicam a eficácia horizontal não só no ramo do
direito contratual, mas em diversos ramos do Direito.
Com relação ao direito contratual especificamente, é interessante
destacar este julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que in-
clusive se fundamentou no julgado acima exposto do STF para funda-
mentar sua decisão pela horizontalidade dos direitos fundamentais no caso
concreto.
Na apelação cível nº 0707022-51.2018.8.07.0007 a 5ª Turma Cível
do TJDF julgou os recursos de apelação interpostos por Uber do Brasil
Tecnologia Ltda.(ré) e Carlos Alexandre Souza Vianna (autor) contra sen-
tença que julgou parcialmente procedentes os pedidos do autor para con-
denar a empresa ré a restabelecer o cadastro do autor em sua plataforma.
A empresa Uber alega nos autos do processo é livre para contratar
e optar por manter ou não contratos com aqueles interessados em atuar
como motoristas parceiros, e ainda que não houvesse qualquer obrigação
em expor os motivos que levaram a se desinteressar pela parceria outrora

615
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

estabelecida, foi demonstrado que o encerramento se deu por culpa exclu-


siva do autor da ação.
A 5ª Turma se fundamentou no julgado do STF para decidir que é
garantido ao motorista de aplicativo (autor da ação) o direito ao contradi-
tório antes da empresa rescindir unilateralmente o contrato, ainda que a
entidade seja de natureza privada, pois os direitos e garantias fundamentais
previstos constitucionalmente não cedem diante de princípios que regem
as relações jurídicas firmadas entre particulares, por força da aplicação da
teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que foi albergada
pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente por oca-
sião do julgamento do RE 201.819/RJ.
Consignou-se no acórdão ainda que a convergência das disposições
constitucionais no âmbito do direito civil se trata de um novo caminho
doutrinário, denominado de Direito Civil Constitucional, o qual ganha
maior prestígio com a aplicação dos direitos e garantias fundamentais às
relações entre particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).

3. CONCLUSÃO

Inegável que a Constituição Federal de 1988, ao definir os objetivos


fundamentais da República (a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, garantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e
marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; promoção
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação) cria uma ordem jurídica de
viés social, e humana, que se emana por toda Carta, sendo imperioso,
então, admitir a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.
A teoria da eficácia horizontal é a que mais se coaduna ao direito
constitucional contemporâneo, nas raias do constitucionalismo, uma vez
que afastar os princípios fundantes de um Estado democrático de parcela
da ordem jurídica, é incorrer em incoerência suficiente à descaracterização
do mesmo, dada a sensibilidade do deslinde, sobretudo no caso brasileiro.
Tal aplicabilidade é perfeitamente compatível com a ordem constitu-
cional brasileira, ainda que nossa Constituição não faça menção expressa
ao instituto.

616
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

No caso do direito contratual especificamente, a eficácia horizontal


dos direitos fundamentais se dará na prática pela relativização da autono-
mia privada, aplicando-se a ponderação de interesses para que seja possível
solucionar o conflito, a fim de se preservar nos contratos entre particulares
todos os direitos fundamentais compatíveis.
Uma vez constada a violação a um direito fundamental no âmbi-
to contratual, é perfeitamente possível o pleito de revisão contratual, que
pode inclusive culminar com a declaração de nulidade da cláusula ou mes-
mo de todo instrumento contratual.
Como foi possível observar, a relação entre particulares muitas vezes
pode gerar situações injustas que atingem os direitos fundamentais das
partes. Por isso, como nos ensina Daniel Sarmento (2006) justifica-se, em
nosso país, um reforço na tutela dos direitos humanos no campo privado,
onde reinam a opressão e a violência , uma vez que a sociedade brasileira é
muito mais injusta e assimétrica qualquer país desenvolvido.

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

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619
POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO
INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER:
AVANÇOS E RETROCESSOS DOS
PROGRAMAS BRASILEIROS SOB O
ENFOQUE DOS DIREITOS HUMANOS
Bianca Alves Castro123

1. INTRODUÇÃO

O direito à saúde é amplamente reconhecido como um direito fun-


damental. Seja no contexto internacional de direitos humanos, seja no
contexto nacional com o direito constitucional, a saúde é um importante
direito a ser assegurado. Para que a saúde seja garantida de forma integral,
é preciso que as peculiaridades dos grupos sociais sejam levadas em con-
sideração.
Por isso, temas como saúde da população negra, saúde da população
indígena e saúde da mulher se fazem relevantes. No Brasil, a Constituição
Federal de 1988 prevê expressamente o direito à saúde em seu teor. A vio-
lação desse direito afeta mandamentos fundamentais previstos na Consti-
tuição Brasileira, como o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Homens, mulheres, crianças, idosos, indígenas, cada grupo possui
especificidades a serem consideradas nas políticas públicas de atenção à
saúde. Considerando essa pluralidade, é justo que cada categoria de indi-
víduo receba atenção especializada conforme suas necessidades.

123 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Apesar da relevância de diversos grupos, a saúde das mulheres precisa de


um estudo mais detalhado. Isso porque as políticas feitas para a saúde da mu-
lher são, por vezes, focadas apenas na maternidade. A saúde integral deve en-
volver os diversos aspectos que permeiam a saúde da mulher, desde questões
como materninade até questões como violência doméstica, diferenças salariais
e quaisquer questões que possam afetar a saúde física e mental da mulher.
O presente artigo busca analisar os avanços e retrocessos das políticas
públicas de atenção à saúde da mulher sob a perspectiva dos direitos hu-
manos. A pergunta que norteia o estudo é: Quais os avanços e retroces-
sos das políticas públicas de atenção integral à mulher? Para responder tal
questionamento, serão analisadas de forma breve e sucinta as diretrizes de
saúde da mulher constantes no governo brasileiro.
O objetivo geral do presente trabalho é analisar a evolução das políticas
públicas de saúde da mulher, considerando sua evolução, seus avanços e re-
trocessos para a saúde verdadeiramente integral da mulher. Os objetivos espe-
cíficos são: analisar a inserção do direito à saúde no rol de direitos humanos
fundamentais, analisar as políticas públicas de atenção integral à saúde da
mulher e identificar os avanços e retrocessos nas medidas de implementação
de saúde da mulher no Brasil, sempre sob a ótica dos direitos humanos.
A pesquisa tem como principais referenciais teóricos o trabalho de
Souto (2009) e Dal Bosco (2010). A metodologia de pesquisa utilizada foi
predominante de cunho bibliográfico, realizada através de análise biblio-
gráfica e de produções acadêmicas.
Justifica-se o presente estudo por sua relevância social, vez que as mu-
lheres são mais da metade da população brasileira, e suas condições de saúde
apresentam particularidades de saúde, sobretudo pelo contexto social em
que as mulheres estão inseridas. Desse modo, a relevância vai muito além do
volume populacional que as mulheres representam, mas também do con-
texto social em que diversas questões arraigadas na sociedade afetam a saúde
da mulher, gerando problemas de importância social altíssima.

2. O DIREITO À SAÚDE DA MULHER COMO PARTE DOS


DIREITOS HUMANOS

O direito à saúde é inerente ao bem-estar físico e mental do indi-


víduo. Contudo, seu reconhecimento somente adquiriu proporções

621
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

maiores no mundo inteiro em meados do Século XX, com o término da


Segunda Guerra Mundial. O fim desse conflito marcado por bárbaras vio-
lações contra os direitos humanos, deu início a um movimento em prol do
reconhecimento de direitos sociais, impulsionado pela Liga das Nações,
organização internacional criada durante as discussões que encerraram o
conflito e que veio a se tornar a Organização das Nações Unidas – ONU.
A ONU, na busca de estabelecer normas de direitos humanos am-
plamente implementadas, editou a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos (DUDH) em 1948. Dessa forma, diversos temas adquiriram status
de direitos fundamentais a todos os seres humanos, sem qualquer distin-
ção de raça, cor, origem e etnia. Apartir de então, houve a consagração da
universalização dos direitos humanos, e sua consequente necessidade de
proteção através de um sistema normativo internacional com vigência erga
omnes. (GODINHO, 2006)
A saúde foi incluída neste rol, e passou a ser reconhecida como um
direito humano fundamental, conforme previsão explícita da DUDH:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe


assegurar e à sua família a saúde e o bem–estar, principalmente
quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência
médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direi-
to à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez,
na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por
circunstâncias independentes da sua vontade.

Neste contexto, foi criada uma organização com finalidade específica


sobre a saúde, a Organização Mundial de Saúde – OMS, reforçando a
importância do reconhecimento do direito à saúde direito como direito
humano fundamental. (CARVALHO 2003). Especificamente em relação
aos direitos da mulher, em 1979 foi criada a Convenção Sobre a Elimina-
ção de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW),
sendo o primeiro documento que tutelou o acesso à saúde, considerando
assistência ao período gestacional, parto, puerpério e lactância, evidencia-
dos em seu artigo 12, ratificada pelo Brasil em através do :

622
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Artigo 12: 1. Os Estados-parte adotarão todas as medidas apro-


priadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos
cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade
entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os
referentes ao planejamento familiar. 2. Sem prejuízo do disposto
no parágrafo 1º, os Estados-parte garantirão à mulher assistência
apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior
ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for ne-
cessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gra-
videz e a lactância.

Diante das novas diretrizes internacionais, as Constituições europeias


do pós-guerra passaram a tutelar os direitos sociais, incluindo o direito à
saúde. No Brasil a contemplação constitucional dos direitos sociais ocor-
reu de forma mais lenta, concretizando-se somente no processo de rede-
mocratização após o regime militar, como o advento da Constituição de
1988, incluindo o direito à saúde no rol de direitos fundamentais (CAR-
VALHO, 2003).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) faz levantamentos sobre
questões que envolvem a saúde de meninas e mulheres e que precisam ser
trabalhadas em todos os países para que o direito à saúde seja garantido a
esse grupo. Dentre os itens que devem ser estudados por gestores de polí-
ticas públicas para garantir o direito integral estão:

1 desigualdades socioeconômicas

2 papeis produtivos

3 papeis reprodutivos

4 (in)adequação dos sistemas de saúde às questões de gênero

5 acesso à educação, ao trabalho e outros fatores sociais que afetem


a saúde física e mental de meninas e mulheres.

Assim, desde a DUDH, o entendimento sobre o espectro do direi-


to à saúde e o direito à saúde da mulher vem sendo ampliado para que
os mais diversos aspectos que permeiam a vida da menina e da mulher
sejam considerados e políticas públicas sejam postas em prática. Essas po-

623
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

líticas devem mitigar os efeitos que a posição social da mulher causa em


sua saúde. Políticas públicas que considerem apenas o papel reprodutivo
da mulher está, na verdade, dando continuidade ao problemas que afetam
a saúde feminina.

3 3. O DIREITO À SAÚDE COMO PARTE DO PRINCÍPIO


DA DIGNIDADE HUMANA

A saúde é um dos direitos mais ligados ao princípio fundamental


da dignidade humana. Sem o direito à saúde assegurado, o gozo de to-
dos os outros direitos fica comprometido. Conforme enfatizam Gabrielle
Kolling e Guilherme Camargo Massaú (2010): “[...] pensar no direito à
saúde, necessariamente, nos remete a pensar nos direitos humanos, visto
que se deve conceber o direito à saúde não só como um direito fundamen-
tal, mas sim como um direito humano, essencial à vida”.
Na nossa Constituição Federal, a saúde é considerada um direito so-
cial fundamental, sempre relacionado às “[...] necessidades mínimas para
que se tenha dignidade e sentido na vida humana [...]”, e por tal razão,
para sua realização precisa de atuação do Estado, através de políticas públi-
cas que visem superar carências individuais e sociais (ARAÚJO; NUNES
JÚNIOR, 2010). Desta forma, o direito à saúde é um direito público
subjetivo, intrínseco ao indivíduo, e, por isso, exigível ao Estado pelos
instrumentos judiciais adequados (OLIVEIRA, 2001).
Apesar de a DUDH ter disposto sobre o direito à saúde, o processo
de agregação dos direitos humanos foi mais lento no Brasil. Somente com
o fim do regime militar, que também violou muitos direitos humanos, é
que o direito à saúde passou a ser contemplado a partir da Constituição
Federal de 1988, que torna a saúde um dos direitos fundamentais do País
(CARVALHO, 2003).
Assim, esse direito é disposto no art. 196 da Constituição de 1988,
que dispõe o seguinte: [a] saúde é direito de todos e dever do Estado, ga-
rantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Conforme texto constitucional, a saúde é um direito de todos, e deve
ser prestada conforme o princípio da integralidade previsto no art. 198, I

6 24
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

da Constituição Federal, que definido segundo Carvalho (2006), “tem


duas dimensões: a vertical e a horizontal. A vertical inclui a visão do ser
humano como um todo, único e indivisível. E a horizontal é a dimensão
da ação da saúde em todos os campos e níveis”.No mesmo sentido, con-
forme o entendimento de Medeiros e Guareschi (2009):

A integralidade tem repercussão em vários níveis das políticas pú-


blicas em saúde, sendo um princípio doutrinário, tanto no sentido
de um saber que se produz sobre saúde quanto no de um campo de
estruturação de práticas. Como princípio doutrinário, a integrali-
dade torna-se uma evidência no campo da saúde coletiva: tomar
um campo social como uma evidência é estabelecer um campo de
verdades.

Ainda segundo Medeiros e Guareschi (2009): “saúde passa a ser en-


tendida como resultante de políticas sociais e econômicas , como direito
do cidadão e dever do estado,[...]”. Desta forma, a integralidade conforme
a Constituição Federal de 1988 permite que sejam consideradas subjeti-
vidades relativas ao indivíduo, bem como valores ao qual a Magna Carta
se sujeita, como direitos humanos, reafirmando a saúde como dever do
estado em prol da construção da cidadania.
Nesse sentido, considerando particularidades em relação a determi-
nados grupos, como as mulheres, devem ser analisados temas relativos à
gravidez, parto, lactação, prevenção de gravidez, controle de natalidade,
prevenção de doenças, acrescentando-se as vulnerabilidades que as mu-
lheres são alvo, em questões como violência sexual, violência doméstica,
violência obstetrícia e aborto, por exemplo.
Desta forma, fez-se necessária a edição de uma diretriz de saúde que
contemplasse todas estas variáveis. O primeiro programa com objetivo de
assegurar as particularidades femininas foi o Programa de Assistência In-
tegral à Saúde (PAISM), em 1983, nascido antes mesmo da Constituição
de 1988 e da implantação do Sistema Único de Saúde (SOUTO, 2009).
De acordo Souto (2009):

O marco referencial do PAISM rompia com o paradigma mater-


no-infantil, onde a mulher era vista pelo sistema de saúde como

625
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

produtora e reprodutora de força de trabalho, isto é, na sua condi-


ção de mãe, nutriz e cuidadora da prole, contrapondo-se às políti-
cas formuladas até então, voltadas primordialmente para garantir o
bem-estar dos recém-nascidos e crianças.

4. PROGRAMA DE ASSISTÊNCIA INTEGRAL À SAÚDE


(PAISM)

O PAISM ampliou o conceito de saúde da mulher, incluindo em suas


diretrizes ações educativas, preventivas, assistência em clínica ginecológica
no pré-natal, parto, puerpério, climatério, planejamento familiar, preven-
ção de doenças sexualmente transmissíveis, câncer de colo de útero e de
mama, possibilitando meios de diagnóstico, tratamento e recuperação.
Desse modo, o Brasil acompanhou o reflexo de uma mudança a nível
mundial nos paradigmas no tratamento de saúde da mulher, pois a partir
de 1984, diversas convenções como o Encontro sobre Direitos Reprodu-
tivos em Amsterdã, representaram avanços na área de direitos reproduti-
vos, Convenção do Cairo em 1994 e Conferência da Mulher em Pequim,
em 1995, fomentando novos questionamentos e reflexões acerca das pers-
pectivas do gênero feminino na formulação de políticas que envolvam
usuários, gestores e profissionais de saúde (SOUTO,2009).
Contudo, como se pode ver a partir da lista de diretrizes educativas,
muitos dos programas de atenção à saúde da mulher estão muito mais
voltados para o cuidado pré-natal do que para as peculiaridades sociais
das mulheres. Apesar de vitórias como o tratamento do câncer, questões
sociais como violência doméstica e mulheres transgênero ainda dão passos
tímidos.
Ainda assim, a inclusão de direitos sexuais e reprodutivos nos pro-
gramas de assistência à saúde da mulher com enfoque no gênero contri-
buiu para o desenvolvimento de políticas mais voltadas às particularidades
femininas, considerando sua raça/etnia, classe social, idade e orientação
sexual, respeitando a perspectiva da saúde como um direito humano e
fundamental (SOUTO,2009).
A adoção das políticas de saúde com enfoque no gênero permitiu
uma especialização nas estruturas e práticas de cuidado integral, o que
reforçou a humanização da saúde, bem como atendeu ao preceito de saúde

626
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

integral. O reconhecimento das desigualdades de gênero e a consequente


implementação de políticas públicas e ações afirmativas são elementos es-
senciais para um melhor atendimento de saúde da mulher, uma vez que a
Constituição Federal de 1988 é rica em instituições que assegurem amplo
direito de cidadania, entretanto, os mecanismos econômicos, políticos e
sociais que visam pôr em prática tais direitos muitas vezes são mera letra
morta de lei.
Além disso, os instrumentos internacionais que asseguram direitos
humanos essenciais como a DUDH têm sido cada vez mais especializados
pelas organizações como a OMS para atender às demandas sociais de cada
grupo. Assim, ainda que o PAISM tenha significado grandes avanços na
política de atenção integral à saúde da mulher, maiores avanços se viram
necessários.
Por isso, em 2004 constatou-se que o Programa de Assistência Inte-
gral à Saúde da Mulher (PAISM) não contemplava mais todo o espectro
da saúde da mulher. Assim, foi criada a Política Nacional de Atenção In-
tegral a Mulher (PNAISM), identificando novas demandas e necessidades
femininas, considerando fatores sociais e culturais.

POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À


MULHER (PNAISM)

Conforme visto acima, o PNAISM surgiu em resposta à carência


identificada nos programas de atenção à saúde da mulher. Na busca pelo
provimento de políticas de saúde pública realmente integrais e que contem-
plem os direitos previstos pelos instrumentos internacionais, o PNAISM
surge para atender a novas demandas e abranger um espectro mais amplo
dos direitos das mulheres.
Dentre os objetivos do PNAISM, podem ser citados: buscar a inte-
gralidade da saúde, promover melhorias nas condições de vida e saúde das
mulheres brasileiras, garantindo os direitos de saúde constitucionalmente
previstos, contribuir para a redução da morbidade e mortalidade feminina
em todos os ciclos da vida e em todos os grupos populacionais, sem discri-
minação de qualquer espécie, sempre buscando a implementação de uma
saúde integral e humanizada.

627
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A nova Política acrescentou disposições que contemplam a realida-


de da mulher negra, trabalhadora rural, adolescentes, idosas, indígenas,
presidiárias, deficientes, lésbicas, bissexuais, considerando suas atividades
e inserção no meio ambiente. Também previu especificamente a implan-
tação da assistência em planejamento familiar direcionadas a homens e
mulheres, adultos e adolescentes, mais um reflexo da previsão de atenção
integral à saúde.
Outras menções específicas constam na PNAISM, como atenção
clínico-ginecológica à portadoras de HIV/AIDS e Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs), bem como estímulo à prevenção e controle das
mesmas, atenção às mulheres e adolescentes em situação de violência do-
méstica e sexual, e atenção à saúde mental com enfoque no gênero.
A Política Nacional de Atenção Integral a Mulher representou um
avanço na abordagem de gênero e integralidade da saúde, trazendo um
breve diagnóstico das condições da saúde da mulher, destacou as princi-
pais causas de morte da população feminina, que são as doenças cardio-
vasculares.
Entretanto, apesar de diversas considerações inovadoras, transformar
as propostas da Política Nacional de Atenção Integral a Mulher em ações
concretas ainda é um desafio. Diversas limitações permanecem no trata-
mento da saúde feminina, sendo uma delas, conforme entendimento de
Maria Goretti dal Bosco( 2010), em países como o Brasil:

[...] os direitos fundamentais sociais, em especial o direito à saúde,


permanecem à margem de um modelo distanciado da realidade
social, sendo constantemente violados sob as mais diversas formas,
numa espera surda e de poucas perspectivas de que o Estado seja
capaz de modificar.

Algumas lacunas constantes da Política Nacional de Atenção Integral


a Mulher funcionam como verdadeiro retrocesso, pois não criam progra-
mas específicos necessários diante da extensão de todas as necessidades
elencadas e não abrangem todos os pontos dispostos pela política anterior.
Pode-se citar o fato de que apesar de no documento constar um indi-
cador de que doenças cardiovasculares figuram como uma das principais
causas de mortalidade feminina, sem que exista uma única proposição de

628
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política pública em concreta exista. Questões relacionadas com violência


sexual e doméstica são citadas diversas vezes. Entretanto, poucas políticas
de atenção à saúde de mulheres em situação de violência foram implemen-
tadas e tais absurdos continuam afetando a saúde e a realidade como um
todo da mulher brasileira sem maiores ações.
A violência obstetrícia é pouco abordada nas políticas públicas de
saúde feminina e caracteriza uma profunda afronta aos direitos humanos
da mulher. Sobre violência obstetrícia, Venturi (2013), dispõe:

As práticas descritas implicam violações de direitos humanos, entre


as quais se incluem o direito à integridade corporal, à autonomia,
à não discriminação, à saúde e a garantia do direito aos benefícios
do progresso científico e tecnológico. A frequência dos comporta-
mentos aferidos aponta para uma banalização dessa violência, indi-
cando a relevância de problematizá-la em programas de formação e
capacitação profissional com vistas ao seu enfrentamento.

A omissão com violência obstetrícia é tão grande que o Brasil já foi


denunciado e condenado por tal violação pelo Comitê da Convenção so-
bre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
– CEDAW, no caso Alyne Pimentel, em razão de sua morte provocada por
negligência das instituições de saúde. Nesse sentido, conforme Silva ( 2017):

O tema da violência obstétrica é complexo e ainda pouco discuti-


do, sendo desconhecido para muitas mulheres. Na realidade, nem
mesmo as normas que abordam o tema da gestação e do parto são
amplamente conhecidas, dificultando a reivindicação de sua apli-
cação.[...] muitas mulheres desconhecem o assunto ou não se en-
xergam como vítimas em razão da naturalização do sofrimento do
parto, de modo que resta claro que muitas das ocorrências acabam
ficando fora das estatísticas. As poucas normas que tratam do tema
são, na maioria das vezes, descumpridas, ainda que existam cam-
panhas atuais com o escopo de informar as mulheres para que estas
possam se conscientizar e, assim, exigir seu cumprimento.

Deve-se ressaltar que a violência obstetrícia não se restringe ao mo-


mento do parto, ela pode ocorrer durante os atendimentos da mãe na gra-

629
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

videz, se configurando até quando ausente vaga para atendimento. Neste


sentido, Figueiredo e Lansky (2014):

A peregrinação da gestante em busca de vaga durante as urgências


na gravidez e durante o trabalho de parto é vivido concretamente
pela população e identificada pelos trabalhadores, gestantes e pes-
quisadores como problema recorrente e determinante para a aten-
ção oportuna de saúde e prevenção da morbimortalidade materna,
fetal e infantil evitáveis.

Outro ponto que mostra que as políticas públicas relativas à saúde da


mulher não é integral ainda é a falta de diretrizes no sentido de orientar a
formação de profissionais de saúde, através da abordagem humanizadas e
livres de julgamentos em temas normalmente permeiam a saúde da mu-
lher, como o estupro e o aborto.
Do mesmo modo, as leis e políticas públicas não acompanham na
prática o que é proposto em teoria. Sobretudo em questões que envolvam
temas polêmicos, os gestores de políticas públicas tendem a se esquivar dos
assuntos e manter o status quo para evitar maiores comoções e reverbera-
ções na política.

5 CONCLUSÃO

Após breve estudo, conclui-se que a saúde é objeto complexo de


ser implementado de forma satisfatória e justa a todos os brasileiros. Não
obstante as previsões legais de ordem constitucional e internacional, a rea-
lidade manifesta uma crescente demanda no sentido de ampliar gradativa-
mente a tutela de saúde da mulher.
No Brasil, as políticas públicas representam um grande papel no sen-
tido de concretizar o direito à saúde, principalmente em se tratando de
indivíduos que apresentem tamanhas especificidades como as mulheres. A
saúde da mulher demanda uma estruturação que alie um bom atendimen-
to ao respeito da mulher como ser sujeito de direitos humanos, vez que
são constantes as violações de direitos em razão do gênero.
Em regra, as questões de saúde feminina promovem grande impac-
to social, primeiramente, porque é através da mulher que uma nova vida

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se manifesta. Partindo deste ponto, devem ser discutidos o direitos re-


produtivos, políticas sobre aborto, violência sexual, violência doméstica
e violência obstetrícia, sem esquecer outros temas particulares à realidade
feminina que já foram discutidos no presente trabalho.
Contudo, as políticas de saúde de atenção à mulher não podem se
limitar à mulher como gestante. A realidade social imposta às mulheres
cria diversas particularidades que influenciam em sua saúde física e men-
tal. Além disso, não se pode esquecer da mulher transgênero e de outros
temas que permeiam a vida e a saúde feminina.
Percebe-se que a Política Nacional de Atenção Integral a Mulher
(PNAISM), implementada no Brasil em 2004, precisa ser atualizada de
forma a considerar as evoluções sociais e legislativas brasileiras. A concre-
tização do direito à saúde feminina é tarefa árdua, ainda mais analisando o
tema sob a ótica dos direitos humanos.
Apesar da permanência de questões que dificultam a implementação
da saúde integral da mulher, percebe-se que o PNAISM procurou esta-
belecer prioridades, sem esquecer de mencionar questões como saúde da
mulher indígena, lésbica e trabalhadora rural, por exemplo. A elaboração
de tal documento foi bem intencionada, entretanto, a constante evolução
das demandas sociais faz surgir uma necessidade urgente de atualização do
programa, assim como a criação de novos meios que permitam a implan-
tação e avaliação de tais políticas.
Por fim, cabe ressaltar que ainda estamos longe de uma política de
atenção à saúde da mulher verdadeiramente integral. Dentre avanços e
retrocessos nas políticas públicas, leis e instrumentos nacionais, as políticas
públicas brasileiras sempre foram defasadas tanto em teoria contraposta
à realidade quanto em saúde integral da mulher contraposta à saúde da
mulher como progenitora. Uma saúde integral da mulher não pode se
resumir a seu útero.

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633
A PONDERAÇÃO DE VALORES
FUNDAMENTAIS EXERCIDA PELO
CHEFE DO PODER EXECUTIVO NA
EDIÇÃO DE ATOS DISCRICIONÁRIOS
Paulo Arthur Germano Rigamonte124
Thiago dos Santos Almeida125
Moacyr Miguel de Oliveira126
Vladimir Brega Filho127

INTRODUÇÃO

O princípio da legalidade proporciona segurança jurídica e previsibi-


lidade na atuação do Administrador Público, definindo as competências e
os limites que devem ser respeitados na gestão pública. Ocorre que, con-

124 Mestre em Direito pela UNIMAR de Marília/SP. Coordenador do Núcleo de Prática Jurí-
dica do Centro Universitário Toledo Araçatuba-SP. Coautor da obra "Liberdade de Expressão
e Humor - O exercício da livre comédia e a escalada judicial de processos na visão do STF".
125 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Toledo – UniToledo, Araçatuba/SP.
Membro de Grupos de Pesquisa na área do Direito Constitucional, Direito Internacional e
Direitos Humanos no UniToledo de Araçatuba/SP.
126 Doutorando e Mestre em Direito - UENP. Professor do curso de Direito do Centro Uni-
versitário Toledo - UniToledo - Araçatuba/SP. Advogado.
127 Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino. Doutor em Direito pela PUC-SP.
Pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Atualmente é professor adjunto da Universida-
de Estadual do Norte do Paraná e promotor de justiça do Ministério Público do Estado de
São Paulo.

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

temporaneamente, diversas situações extraordinárias causam instabilidade


na sociedade, no mercado e especialmente no governo, o que exige inter-
venção do Estado através de medidas de enfrentamento céleres e juridica-
mente válidas.
O Estado Democrático de Direito impõe a observância irrestrita a
constitucionalidade e legalidade dos atos administrativos e, especialmente
no caso do Brasil, calcado na dignidade da pessoa humana, qualquer me-
dida de enfrentamento de situações extraordinárias, de qualquer Poder
em questão, não poderá violar o ordenamento jurídico. Afinal, o Estado
pode muito, mas não pode tudo.
Abordar-se-á como os chefes do Executivo brasileiro podem agir
em situações de atipicidade. Será observado se devem fazer um “juízo de
ponderação” na edição dos atos administrativos, acerca dos direitos fun-
damentais, a fim de proteger à coletividade e o interesse público, exami-
nando se este exercício pode gerar alguma arbitrariedade e quais os meca-
nismos de combate a excessos.
De início, parte-se do exame da teoria da ponderação de princípios
elaborada por Robert Alexy, apontando-se algumas críticas que têm re-
caído sobre o efetivo exercício dessa técnica pelo Supremo Tribunal Fe-
deral (STF), especialmente sob a ótica do Caso Ellwanger (HC nº 82.424,
STF).
No segundo tópico, analisar-se-á a influência que as técnicas de her-
menêutica dos direitos fundamentais exercem sobre os atos administrati-
vo, expondo-se as dicotomias com que esses atos se apresentam e apro-
fundando-se sobre a discricionariedade. Paralelamente, também serão
tangenciados os elementos dos atos administrativos e as interferências de-
les no processo hermenêutico.
Na sequência, investigar-se-á, de forma mais aprofundada, quais ele-
mentos devem ser considerados no exercício da hermenêutica dos atos
administrativos discricionários, observando-se, em especial, o respeito
aos direitos fundamentais. Além do comando constitucional que exige
aplicação imediata a estes direitos (art. 5º, §1º, CRFB) não se pode des-
considerar a complexidade das técnicas de ponderação/sopesamento que
exigem uma sofisticada argumentação jurídica. Logo após, analisaremos
as medidas restritivas que a hermenêutica pode exercer em detrimento dos
direitos fundamentais, construídas através dos atos administrativos.

635
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O método utilizado aqui será o dedutivo, com apoio na pesquisa do-


cumentoscópica indireta, assim porque referente à análise bibliográfica de
livros, artigos científicos e demais obras acadêmicas.

1. A PONDERAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE


ALEXY E O EXERCÍCIO DESSA TEORIA PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, diante da apuração dos efeitos


nocivos de um Estado absolutamente legislativo, o Direito Constitucional
desenvolveu teorias a fim de que situações como as vividas anteriormente
não mais ocorram. Logo, os textos constitucionais contemporâneos dei-
xaram de ser apenas documentos estruturantes dos Estados e passaram a
ser normas consagradoras de direitos fundamentais (BRANCO, 2009).
Nesse cenário, a hermenêutica jurídica, sobretudo a hermenêutica
constitucional, foi aos poucos deixando de lado os chamados métodos
clássicos de interpretação em deferência a métodos mais voltados ao con-
teúdo axiomático, valorativo e principiológico dessas constituições, do
que propriamente aqueles fundados numa subsunção lógica.
Exatamente nesse contexto de construção de novos métodos e téc-
nicas de interpretação e aplicação do Direito, Robert Alexy desenvolveu
a sua teoria geral dos direitos fundamentais, objetivando uma aplicação
analítica, prática e jurídica desses direitos. Alexy se debruçou nela sobre os
esforços de definir e distinguir princípios e regras.
Com efeito, regras e princípios ostentam força normativa, de modo
que os princípios são dotados de caráter mais amplo e menos denso, en-
quanto que as regras são mais densas e concretas, então, distinguem-se de
forma qualitativa (ALEXY, 2015).
Apesar de os princípios e as regras constituírem normas jurídicas, am-
bos devem ser observados de formas distintas, essencialmente quanto: (a)
à generalidade; (b) a natureza qualitativa e gradual; (c) e a amplitude fática
e jurídica dos princípios em relação as regras (ALEXY, 2015).
Essa distinção é necessária porque o autor discorre sobre duas linhas
de solução quando houver conflitos (regras vs. regras) ou colisões (princí-
pios vs. princípios) normativas. No caso das regras, para que um conflito
seja solucionado, existem dois métodos: a inserção de uma exceção em

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uma das regras conflituosas ou a declaração de invalidade de uma das nor-


mas (ALEXY, 2015).
De outro lado, para a ponderação de princípios colidentes, não é pos-
sível a aplicação dos mesmos preceitos destinados aos conflitos entre re-
gras. Deve se proceder à escolha de um princípio em detrimento de outro,
sem que haja uma declaração de invalidade (ALEXY, 2015, p. 93-94).
Alexy desenvolveu a ponderação em três etapas, que são: a adequação,
a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, durante as quais
existe uma relação de prejudicialidade.
Na adequação, deve-se observar se o meio para a realização em maior
medida do princípio preponderante e, de outro lado, se a restrição do prin-
cípio não-preponderante, são os meios mais indicados para esse resultado.
A necessidade é a preponderância de determinada medida em rela-
ção, segundo a qual a medida acolhida reflete numa maior otimização do
princípio impactado, sem que seja excluído o outro princípio inserido na
mesma relação fática e jurídica (ALEXY, 2015). A análise da necessidade
ocorre quando a medida adotada reflete no maior alcance de um dos prin-
cípios em comento.
Finalmente, a proporcionalidade em sentido estrito é a ponderação, o
sopesamento das interferências restritivas e valorativas de um princípio em
relação ao outro. Logo, superado o sopesamento, ter-se-á um maior grau
de satisfação de um princípio em relação ao outro. Com efeito, “quanto
maior é o grau de não satisfação ou de prejuízo de um dos princípios, tan-
to maior deve ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, 2015,
p. 168).
À luz dessas premissas, para que se possa dizer que um princípio pre-
pondera, concretamente, sobre outro e em determinadas circunstâncias,
vertida na fórmula (P1 P P2) C (ALEXY, 2015), antes deve ser feita uma
análise da máxima da proporcionalidade sobre seus espectros de adequa-
ção, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
No caso do Poder Executivo, se, de fato, for ele legítimo para efetivar
esse juízo de valores, medidas apressadas de edição de atos por este Poder
podem deflagrar atos revestidos de inconstitucionalidades, ferindo direitos
fundamentais, o que exigirá intervenção judicial.
Por vezes, percebe-se que, em alguns casos, o Supremo apenas lança
mão da submáxima da proporcionalidade em sentido estrito, afastando-se

637
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

da adequação e da necessidade; noutros casos, ele sequer aponta os passos


percorridos nesse exercício. Tanto é assim que se encontra na doutrina,
críticas ao Tribunal Constitucional como a de Fausto Santos de Morais na
obra Ponderação e Arbitrariedade: a inadequada recepção de Alexy pelo
STF.
Morais (2018), ao analisar 189 decisões do STF, onde a proporciona-
lidade era invocada, apontou nada menos do que doze incongruências en-
contradas no método. O autor observou que: (a) os julgadores não iden-
tificaram os princípios em colisão; (b) não haviam apenas colisões entre
princípios, mas entre interesses, valores etc.; (c) não foram aplicadas as
submáximas da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido
estrito em algumas decisões; (d) não foi dado atenção à lei da colisão; (e)
razoabilidade e proporcionalidade foram apontadas como sinônimos; (f) a
proporcionalidade foi confundida com a aferição da proibição do excesso
ou a proteção ineficiente; dentre outras incongruências (MORAIS, 2018,
p. 260-261).
O mesmo problema é desenvolvido por Daniel Barile da Silveira e
Paulo Arthur Germano Rigamonte (2019, p. 22), que acrescentam o fato
de que “a jurisprudência brasileira insiste em julgar conflitos envolvendo
liberdade de expressão e direitos da personalidade com supedâneo na sub-
sunção, ainda que disfarçada pelo uso de uma pseudoproporcionalidade”.
Um exemplo de inadequada aplicação da teoria da ponderação
pelo Supremo é o famigerado caso Ellwanger, onde os ministros Gil-
mar Mendes e Marco Aurélio, realizando o mesmo juízo de ponderação,
chegaram a resultados diametralmente opostos. Tanto é que Sapucaia
(2013), através de um estudo aprofundado da aplicação da máxima da
proporcionalidade no caso Ellwanger, em especial nos votos dos minis-
tros Gilmar Mendes e Marco Aurélio, observou que nos votos dos mi-
nistros não foi aplicada a máxima da proporcionalidade construída pelo
Tribunal Constitucional Alemão.
A partir dessas observações, é possível afirmar que existem incon-
gruências na aplicação da regra da proporcionalidade pelo STF, o que nas
palavras de Virgílio Afonso da Silva “Aí começam os problemas, pois nem
sempre o recurso à regra da proporcionalidade é justificado nas decisões do
Supremo Tribunal Federal” (2002). Tal problemática impactará de forma
negativa para o Administrador Público que, ao não ter um norte seguro

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na jurisprudência, pode enfrentar dificuldades para realizar, corretamente,


a ponderação. No mais o autor ainda sugere que a aplicação da regra da
proporcionalidade pelo STF consiste apenas a um apelo a razoabilidade.

2. OS PARÂMETROS DE INTERPRETAÇÃO EXERCIDOS


PELO PODER EXECUTIVO: PARA ALÉM DA
OPORTUNIDADE E CONVENIÊNCIA.

Com a consolidação do Estado de Direito os ramos do Direito Positi-


vo passaram a possuir autonomia para longe das arbitrariedades do indiví-
duo e para o império de um sistema jurídico organizado e independente.
No Direito Administrativo não foi diferente. Di Pietro (2019, p. 1) ex-
plica que o direito administrativo calcou status de ramo autônomo do di-
reito esposado nos ordenamentos jurídicos e nas Constituições dos países
especialmente pela construção do princípio da legalidade e da separação
de poderes.
A normatividade ou vinculação é a pré-disposição dos elementos
do ato administrativo disposta em lei, aquém de qualquer juízo de valor
realizado pelo administrador, que apenas deve observar o preenchimento
dos requisitos do ato para então validá-lo. Diante de um ato vinculado, o
preenchimento dos requisitos concede ao indivíduo o direito subjetivo de
exigir um determinado comportamento da administração (DI PIETRO,
2019). Trata-se, portanto, de uma atividade de subsunção propriamente
dita.
Contudo, a lei não é capaz de determinar todas as situações da vida
privada, justamente por haver um dinamismo muito maior da sociedade
frente a legislação. Para isso, e a fim de evitar um engessamento da admi-
nistração diante das necessidades e velocidades do meio social, a discricio-
nariedade está disposta para que o administrador, pautado na sua oportu-
nidade e conveniência, corrija pequenas distorções (DADALTO, 2018).
No entanto, a dinamicidade não é a única explicação trazida para
a discricionariedade, que também se justifica em razão do princípio da
tripartição dos poderes, pois, se o legislador tivesse que resolver todas as
controvérsias meramente administrativas através da lei, invadiria a com-
petência do administrador, além de deixar a natureza de generalidade e a
abstração da lei prejudicados (FERRARI, 2003).

639
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A discricionariedade pode ser conceituada como “a faculdade que a


lei confere à Administração para apreciar o caso concreto, segundo cri-
térios de oportunidade e conveniência, de escolher uma dentre duas ou
mais soluções, todas válidas perante o direito” (DI PIETRO, 2001, p. 67).
Portanto, são elementos essenciais: (a) a autorização legislativa para o ato;
(b) a multiplicidade de alternativas juridicamente válidas; (c) o critério de
mérito que é a oportunidade e conveniência.
No primeiro item, o que se opera é a legalidade do ato administrativo,
que será sempre vinculado por tratar dos requisitos de competência, fina-
lidade e forma do ato administrativo. De outro lado, nos itens seguintes é
que se opera o mérito do ato, vertidos sob os requisitos motivo e objeto.
Mello (2000) apresenta as decorrências da aplicação da discriciona-
riedade quando (a) houver uma imposição do administrador na descrição
dos fatos; (b) quando houver uma autorização da norma para esta atuação
optativa por parte do administrador; (c) quando para o atendimento da
finalidade da norma na aplicação de seus conceitos. Conclui-se, então,
que sobre a discricionariedade sempre pairará uma espécie de “zona de
penumbra” a ser resolvida pelo administrador.
Portanto, para que a discricionariedade seja aplicada, deve-se obser-
var o mérito administrativo, sendo justamente sobre ele que os preceitos
da ponderação têm guarida. Mérito são os critérios de oportunidade e
de conveniência reconhecidos pelo administrador, aplicados, assim, nos
requisitos motivo e objeto do ato administrativo. Ademais, a conveniência
é a medida adequada para a produção de um resultado, enquanto a opor-
tunidade é o momento em que o ato seria editado (DI PIETRO, 2019).
Com efeito, a discricionariedade possui limites, inicialmente extraí-
dos do ordenamento jurídico. Apesar disso, a discricionariedade decorre,
também, da indeterminação de certos institutos, não havendo, a princí-
pio, um parâmetro de análise dessa discricionariedade na legislação, justa-
mente ante a ausência de uma conceituação clara.
Waline (1963) aponta cinco restrições em face da discricionariedade,
a saber: (a) a competência; (b) a forma; (c) o próprio conteúdo da norma;
(d) o motivo; (e) e o interesse público. Outrossim, a doutrina, de modo
geral, aponta o desvio de poder como vício, consubstanciado no uso da
competência para atingir fim diverso do interesse público (MELLO,
1975).

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

No mais, a discricionariedade deve ser observada através dos prin-


cípios de direito. Nardi (2009) acentua a necessidade de observância sis-
temática do direito e reconhece que em havendo um menosprezo destes
valores o judiciário deve ser chamado para dirimir estas questões e obrigar
o poder público a seguir as diretrizes principiológicas adequadas
Destarte, os princípios são elementos intrínsecos da discricionarieda-
de e devem ser valorados para que o ato seja adequado. Igualmente, o inte-
resse público, assim como todos os princípios indeterminados de direito,
deve ser submetido a uma análise valorativa diante de todo o ordenamen-
to jurídico. É nesse cenário que os direitos fundamentais se apresentam
como chaves de leitura hermenêutica sobre a discricionariedade.

3. A PONDERAÇÃO EXERCIDA PELO PODER


EXECUTIVO: UM JUÍZO INICIAL ACERCA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS

Diante de um ato administrativo discricionário qualquer, o adminis-


trador, na figura do Chefe do Poder Executivo, opera como verdadeiro
hermeneuta para a aplicação/interpretação de princípios indeterminados,
fazendo, um juízo de ponderação. Contudo, é necessário que se determi-
ne que discricionariedade e interpretação não se confundem, na medida
em que a interpretação está contida na discricionariedade (LEITES, 2008)
O mesmo, não ocorre diante dos atos vinculados, em razão da sua
descrição pela lei, onde atendidos os requisitos pertinentes, o direito sub-
jetivo daquele que está praticando o ato se impõe sobre a vontade do ad-
ministrador.
Para o exercício hermenêutico sobre o mérito, primeiro deve ser tra-
çado minimamente os parâmetros para a interpretação, pois o uso técnico
destes mecanismos reduz de maneira significativa um ato arbitrário.
Ademais, como critérios para a aplicação hermenêutica no Direito
Administrativo, deve-se observar: (a) os princípios explícitos e implícitos
da Administração; (b) os princípios gerais de Direito; (c) os direitos hu-
manos fundamentais.
Os princípios de Direito Administrativo devem ser considerados para
a edição de um ato discricionário, a exemplo do art. 37, caput, CRFB. Para
Iserhard (2010) o princípio da legalidade deve sempre ser abordado com

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

um cuidado mais especial. Com efeito, a discricionariedade não é uma


liberdade absoluta do administrador, visto que limitada pela Constituição
da República e demais atos normativos infraconstitucionais.
Além dos princípios explícitos consagrados no texto constitucional,
há também os ditos princípios implícitos, que devem sempre ser observa-
dos quando da interpretação para o exercício da discricionariedade, prin-
cipalmente os da proporcionalidade e da razoabilidade.
A razoabilidade é o juízo dos critérios aceitáveis do ponto de vista
racional, ou seja, conforme o cidadão médio. Trata-se de um termo po-
lissêmico, porque relacionado aos mais variados campos do Direito e da
sociedade. A fim de esclarecer sobre o tema, Ávila (2005) avalia a razoa-
bilidade em três deveres, sendo eles o de equidade, o de congruência e o
de equivalência.
Na equidade, o que ocorre é uma harmonização entre as normas ge-
rais nos casos concretos. Primeiro, a razoabilidade deve ser apurada diante
do que geralmente acontece, do que corriqueiro e, sob à luz dela, um de-
terminado comportamento é avaliado como aceitável ou não. Depois, o
mecanismo se inverte, pois como no primeiro momento a norma é avalia-
da em situações normais, neste, em razão da excepcionalidade da situação,
a aplicação fria da norma acabaria por tornar-se desarrazoada (ÁVILA,
2005). Diante da congruência, a razoabilidade sai do campo do caso con-
creto e sofre incidência de fatores externos.
Feitas essas considerações, é indispensável traçar as distinções entre
proporcionalidade e razoabilidade. Ávila (2005) se aproxima do que é tra-
zido por Alexy especialmente acerca da adequação, necessidade e pro-
porcionalidade onde (a) adequação observa o meio utilizado para um fim
especifico; (b) na necessidade julgam-se os meios e então se escolhem os
menos intervencionistas nos direitos fundamentais e (c) a proporciona-
lidade em sentido estrito julga o resultado onde as vantagens da medida
superam as desvantagens.
A razoabilidade não se presta ao exercício de meio e fim, e, sim, de
observância a partir dos seus deveres, que não ensejam um conflito en-
tre os princípios, como se opera na proporcionalidade. Na equidade não
há relação de causalidade horizontal entre um meio e um fim, apenas o
enquadramento da realidade diante do caso concreto; na congruência,
observa-se os fatores externos de aplicação diante da norma através dos

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critérios de qualidade e da medida adotada; enfim, na equivalência opera


a relação de equivalência entre a medida e o critério novamente longe do
meio e do fim (ÁVILA, 2005).
Em razão da incidência maior da razoabilidade sobre os casos práticos
é que se pode afirmar que a discricionariedade encontra limitações pela
razoabilidade, pois impõe ao administrador determinada conduta longe
da arbitrariedade da vontade.
Derradeiramente, o último freio da atuação discricionária são pro-
priamente os direitos fundamentais, que exigem “o conhecimento de que
a atuação da Administração Pública lida continuamente com a hierar-
quização de valores, que se manifestam de modo prático nas implicações
entre os diferentes direitos fundamentais dos administrados” (LEITES,
2008, p. 80).
A relevância dos direitos fundamentais para o exercício correto, ra-
zoável e proporcional da discricionariedade é absolutamente reconheci-
da, na medida em que um ato administrativo que não se encontre em
conformidade com os direitos fundamentais invariavelmente está fadado
a inconstitucionalidade. Inobstante a importância desses direitos, é ine-
vitável que, em determinadas situações, os direitos fundamentais acabem
colidindo.
Nestas situações, as regras de ponderação devem deflagrar um juízo
mais adequado e razoável sobre o modo em que a Administração agirá,
pois, se a discricionariedade se vincula a razoabilidade e a proporciona-
lidade em sentido amplo enquanto analisa os direitos fundamentais, uma
aplicação técnica da teoria da ponderação trará um juízo de valor acerca
dos princípios que estão em conflito.
Essa definição é mais complexa do que parece, especialmente quando
atinge direitos fundamentais individuais, conforme Leites (2008) a unida-
de na forma de interpretar nem sempre é alcançada onde cada hermeneuta
partirá de uma premissa sendo assim a atividade de interpretação não é
absoluta, mas deve se dedicar a alcançar a melhor decisão possível.
A questão que se coloca é que, considerando a possibilidade de falhas
do Poder Judiciário, mormente do STF, na aplicação da teoria da ponde-
ração, refletida na falta de determinação clara de quais seriam os princípios
colidentes, é preciso que, desde o início da formação do ato, seja procedi-

643
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

da à definição do que está em jogo. Tendo isto claro o Poder Judiciário e


a Administração saberão de onde partir.
Tal abordagem observa os direitos fundamentais diante de um caráter nor-
mativo e de suas consequências. Estas se dividem em técnicas de estudo onde
na primeira se observa os conceitos essenciais e as técnicas de harmonização
dos direitos em conflito; na segunda o direito fundamental é individualmente
considerado e se extrai a sua dogmática especial; na terceira a exposição da justi-
ficativa dos motivos destes direitos fundamentais (LEITES, 2008).
Sobre as limitações genéricas aos direitos fundamentais, são as con-
tidas na norma geral, sobretudo no texto constitucional, enquanto que as
casuísticas estão submetidas ao conflito entre dois bens jurídicos, onde a
Administração ou o Judiciário deve escolher uma, restringindo a incidên-
cia, naquele caso concreto, de outra (DIMOULIS, 2006).
As restrições genéricas são as que estão expressamente previstas na
legislação (MENDES, 2012), a exemplo dos dispositivos de defesa do es-
tado e das instituições democráticas do Título V, Capítulo I, da Consti-
tuição Federal, contudo estas restrições ainda observam a necessidade do
estado de defesa ou de sitio. Já as restrições casuísticas estão intimamente
relacionadas com os exercícios hermenêuticos já apresentados, como a in-
terpretação sistemática do texto constitucional e o princípio da proporcio-
nalidade (LEITES, 2008).
Agora é preciso voltar os olhos para os requisitos exigidos para que o
administrador possa restringir direitos fundamentais. Esses requisitos são
essenciais para que se possa delimitar onde cada técnica de hermenêutica
deve ser aplicada. Segundo Georges Abboud:

Nossos requisitos são os seguintes: (a) a restrição deve estar cons-


titucionalmente autorizada; (b) a limitação deve ser proporcional;
(c) restrição deve atender ao interesse social, privilegiando assim
outros direitos fundamentais; (d) o ato do poder público que res-
tringe direito fundamental deve ser exaustivamente fundamenta-
do; (e) o ato do poder público que restringe direito fundamental
pode ser amplamente revisado pelo Poder Judiciário (2011, p. 16).

Em primeiro lugar, a restrição deve estar autorizada pelo ordena-


mento jurídico e isso se dá em razão do caráter analítico do nosso texto

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constitucional. A propósito, essa autorização não precisa ser apenas a


expressa (através das limitações genéricas), podendo ser extraída através
da interpretação do texto constitucional diante de situações concretas
(limitações casuísticas).
Em segundo, a restrição também deve se mostrar razoável e propor-
cional, o que já foi argumentado anteriormente. De todo modo, a obser-
vância desses preceitos se extrai da Constituição.
O que se deve buscar é efetivamente a proteção dos demais direitos
fundamentais, onde a preservação do núcleo essencial do direito funda-
mental se resplandece de notável importância justamente para que não
ocorra o perdimento do conteúdo da norma e se preserve a melhor inter-
pretação (BRANCO, 2009).
Trata-se de apenas uma das noções que podem ser observadas Ha-
chem (2011), ao se debruçar sobre o princípio do interesse público res-
salta a necessidade de autorização legal para tanto e que a sua restrição
em suma só pode ser realizada quando for imperiosa para a concretização
de outros direitos fundamentais ou para efetivação de valores constitu-
cionais definidos.
Nas dimensões do interesse público, Hachem (2011) segue afirman-
do que a abordagem pode se dar primeiro de forma negativa onde o
interesse geral é observado antes dos individuais. Contudo também há
um aspecto positivo onde o interesse geral é definido pela Constituição
então nessa o interesse público só se presta a preservar e harmonizar os
direitos fundamentais.
Apesar disso, essas colocações devem ser observadas com cuidado de
não se operar uma confusão entre o interesse público e os direitos funda-
mentais, mesmo que os temas possuam certa dose de relação.
O penúltimo dos requisitos trata da necessidade de fundamenta-
ção para que a restrição ocorra onde está restrição deve estar lastreada
também por outros direitos fundamentais e não só o interesse público
(ABBOUD, 2011)
Com efeito, a fundamentação é a condição indispensável para qual-
quer ato administrativo, inclusive porque a teoria da transcendência dos
motivos determinantes se apoia justamente sobre este elemento tão im-
portante do ato.

645
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Finalmente, os atos restritivos de direitos fundamentais podem ser


sempre apreciados pelo Poder Judiciário, inclusive na análise da discricio-
nariedade, o que pode ser extraído para preservação o princípio de inafas-
tabilidade de jurisdição (ABBOUD, 2011). A afirmação de que inexiste
discricionariedade em matéria de restrição de direitos deve ser encarada
como uma ausência de mera vontade do administrador.

CONCLUSÃO.

A técnica de ponderação é complexa e exige um estudo muito cui-


dadoso para que seja aplicada de maneira correta. Ao lidar com os direitos
fundamentais a ponderação deve ser muito precisa, pois, caso se destoe do
que deve ser realizado, pode-se acabar por gerar arbitrariedades e juízos
equivocados.
Estes juízos equivocados já foram perpetrados pelo próprio Judiciário,
resultando em aplicações destoantes daquilo que Alexy escreveu. Em ca-
sos tais, o tribunal ou aplicou a técnica de maneira errada e camuflada em
subjetivismos extremados, ou a aplicou de forma incompleta.
Diante de um ato administrativo discricionário, o estudo de suas pe-
culiaridades faz com que a responsabilidade do administrador seja acentua-
da, afinal discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Assim,
a conduta discricionária deve ser pautada nos critérios de oportunidade
e conveniência, que, não são tão livres, pois carregam um axiologismo
próprio observado junto da técnica jurídica.
Oportunidade e conveniência em respeito a unidade do Direito de-
vem ser estudadas a partir de uma hermenêutica de direitos fundamentais,
dentre outros fatores limitadores da discricionariedade. Esses limites serão
encontrados nos princípios de direito administrativo, nos princípios gerais
de direito, e nos próprios direitos fundamentais. Isso porque a discricio-
nariedade, por vezes, reside em conceitos indeterminados, exigindo que a
sua estruturação seja mais responsável.
Diante desses conceitos jurídicos indeterminados é que a observância
do arcabouço normativo se faz necessária, mormente para afastar eventual
imposição da vontade pessoal do administrador. Para tanto, o administra-
dor afigura-se como verdadeiro intérprete do Direito, próximo daquilo de
Peter Haberle (2003) construiu de interpretação aberta da Constituição.

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O administrador público, na qualidade de hermeneuta, submete-


-se à construção da hermenêutica jurídica na aplicação do Direito, isso
através dos atos administrativos editados. Assim, ele deve observar o
conteúdo jurídico daquilo que orienta o seu juízo de oportunidade e
conveniência.
Vencido o juízo dos princípios da administração é que se passa para os
princípios gerais de Direito, afinal, diante do interesse da administração,
podem haver circunstâncias que colidem com esses valores, especialmente
no que tange a razoabilidade do que se pretende, bem como da vedação
da proteção insuficiente.
Por fim, um juízo de ponderação de direitos fundamentais deve ser
realizado para que sejam fixadas de maneira clara as razões fático-jurídicas
pelas quais o ato foi editado bem como os princípios envolvidos na sua
edição. Estes, então, seriam os parâmetros de análise e ponderação que
partiria o Poder Judiciário em caso de judicialização da questão.
Essa ponderação passa pela superação dos requisitos para restrição de
direitos fundamentais, onde, neste momento, é que se selecionam os di-
reitos e sobre eles se aplicam os requisitos de restrição. Resultando num
saldo positivo para a obtenção do fim almejado longe da arbitrariedade, o
ato pode ser considerado válido.
Em apertada síntese, primeiro se observa a conformidade com os
princípios da administração pública. Num segundo momento, deve-se
analisar o ato a partir dos princípios gerais do direito, em especial a ra-
zoabilidade o princípio da proibição do excesso e da vedação da proteção
insuficiente. Por fim, a análise do impacto sobre os direitos fundamentais
em discussão, diante do estudo dos requisitos de restrição de direitos fun-
damentais, para somente então ser realizado um último juízo de pondera-
ção com o uso das técnicas trazidas por Alexy.
Evidente a complexidade da matéria, sobretudo em relação ao pro-
cedimento que deve operar o administrador público. Significa dizer que
é preciso preparo e fôlego suficiente para tanto. Pode até parecer exagero
ou mero capricho, mas, ao lidar com direitos fundamentais, bem como
os interesses da administração, todo e qualquer cuidado se revela indis-
pensável, sobretudo para evitar eventuais responsabilizações e prejuízos
aos administrados, mormente quando vertidos na violação de direitos
fundamentais.

647
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650
PRECEITO CONSTITUCIONAL DA
IGUALDADE DE GÊNERO: REFLEXOS
DE UM DIREITO FUNDAMENTAL NA
TRIBUTAÇÃO BRASILEIRA
Pryscilla Régia de Oliveira Gomes128

INTRODUÇÃO

Hodiernamente, a sociedade brasileira enfrenta o desencanto do re-


sultado da aplicação de um sistema tributário cujas normas são extrema-
mente complexas, as quais exprimem, em seu conjunto, um teor regres-
sivo e implícito acerca do que nos assegura a constituição de um Estado
Democrático de Direito.
O princípio constitucional da igualdade de gênero, um direito funda-
mental, se encontra embiocado na legislação tributária nacional. A busca
pela conquista de uma tributação equânime para homens e mulheres tem
sido uma temática rebuscada e debatida com a finalidade de concretizar
na sistemática de tributação a efetividade da justiça social, dos direitos das
mulheres, da segurança jurídica e, por que não, o respeito ao princípio da
dignidade da pessoa humana.
A famigerada equanimidade de gênero na aplicabilidade das normas
tributárias reverbera uma luta secular do movimento feminista que re-

128 Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-Graduanda em


Direito e Processo Tributários na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogada OAB/CE.
Membro Efetivo da Comissão de Direito Tributário da OAB/CE.

651
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

percute em muitas instâncias. O movimento sufragista é apenas um dos


marcos pela conquista do direito de igualdade entre os sexos, a isonomia
tributária é um deles, haja vista as profundas desigualdades estruturais so-
ciais e econômicas oriundas da desconsideração de um preceito constitu-
cional instituído há décadas.
Desta forma, reafirma-se a necessidade de que esta correlação en-
tre as normas se faça de forma explícita, ratificando segurança jurídica
às mulheres mediante justiça fiscal, com equilíbrio, viabilizando a pro-
porcionalidade, correspondendo o princípio da capacidade contributiva,
da progressividade, via tributos diretos e indiretos, assumindo a legislação
tributária a posição que lhe cabe de vetor transmutador imprescindível da
realidade da sociedade brasileira.

1. O DIREITO FUNDAMENTAL DA IGUALDADE DE


GÊNERO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988 assegurou a conquista de grande


parte do ideário do movimento feminista no âmbito jurídico-normativo
interno após o período de democratização brasileira pós ditadura militar.
No contexto nacional, a proteção dos Direitos Humanos teve grande in-
fluência dos instrumentos internacionais, especialmente no que se refere
ao direito das mulheres, incluindo o grande marco da garantia do direito
de igualdade de gênero como direito fundamental, art. 5º, I, CF/88.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos


termos desta Constituição.

Homens e mulheres são considerados iguais em direitos e obriga-


ções na Carta de 1988, constituição cidadã e democrática a qual buscou
via princípio da igualdade concretizar ampla evolução nos cenários legis-
lativo, social, político e cultural. Sendo inegável que a partir do princípio
da igualdade de gênero, um direito fundamental, afloraram-se demais

652
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

instrumentos de proteção da mulher na sociedade, na família e no plane-


jamento familiar, e no mercado de trabalho, mediante dispositivos mais
notáveis como, por exemplo, o art. 7º, XX, XXX, art. 226, parágrafos
3º, 5º, 7º e 8º, e ainda a Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006, que
além de haver sido alcançado constitucionalmente o direito de igual-
dade, conquistou-se também um instrumento de proteção da mulher
contra diversos tipos de violência.
Os instrumentos internacionais tiveram grande influência sobre o
progresso da conquista dos direitos das mulheres no Brasil, assim como
ocorreu com a adoção da proteção aos direitos humanos e diversos trata-
dos foram ratificados no país:

Na experiência brasileira, há que se observar que os avanços ob-


tidos no plano internacional foram e têm sido capazes de impul-
sionar transformações internas. Nesse sentido, cabe destaque ao
impacto e à influência de documentos como a Convenção sobre
a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, de 1979, a De-
claração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direi-
tos Humanos de Viena, de 1993, o Plano de Ação da Conferência
Mundial sobre População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994,
a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, de 1994 e a Declaração e a Plataforma
de Ação da Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim, de
1995. Esses instrumentos internacionais inspiraram e orientaram o
movimento de mulheres a exigir, no plano local, a implementação
de avanços obtidos na esfera internacional. (PIOVESAN, 2008)

Cabe trazer a reflexão de que dos objetivos fundamentais da Repúbli-


ca Federativa do Brasil se refuta que haja diferenciação entre os sexos, uma
vez que se consagra a promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade, ou demais formas existentes de discrimina-
ção. Ou seja, certifica-se não apenas o direito fundamental, mas obsta-se
toda e qualquer intolerância, art. 3º, IV, CF/88: “IV – Promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”.

653
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

A garantia dos direitos fundamentais caminha de mãos dadas com


uma sociedade democrática pautada no alicerce da justiça social, da se-
gurança jurídica, do respeito à dignidade da pessoa humana, à legali-
dade, à igualdade, à divisão de poderes e do pluralismo político. Uma
contemplação pertinente acerca da relação entre direito fundamental
e democracia é que ambos são aspectos positivos, contudo, uma visão
menos ingênua e mais idealista de correlação entre eles se traduz clara-
mente em uma sociedade mais sólida. Por consequência, a análise que
mais se adequa à realidade é a de que, juntos o direito fundamental e a
democracia promovem o desenvolvimento social na mesma medida em
que o direito fundamental inquieta-se com relação às particularidades
do processo democrático, devendo tornar-se ele próprio um mecanismo
de proteção da democracia.

Os direitos fundamentais são extremamente democráticos por-


que com a garantia dos direitos de liberdade e igualdade eles as-
seguram a existência e o desenvolvimento das pessoas, que são
capazes de manter vivo o pro?cesso democrático, e porque com
a garantia das liberdades de opinião, de imprensa, de transmissão
por radiodifusão, de reunião e de associação, as?sim como com o
direito de voto e com as outras liberdades políticas eles asseguram
as condições de funcionamento do processo democrático. (ALE-
XY, 2014).

É necessário paralisar o automatismo do círculo vicioso de exclusão


da figura da mulher na generalização da leitura do texto normativo, per-
mitindo-se firmar apenas o sexo masculino como referência de todos os
padrões. A defesa da aplicabilidade e afirmação do direito fundamental
de igualdade, partindo da Constituição Federal para todas as normas hie-
rarquicamente inferiores, traduz consonância, coerência e harmonização
entre teoria e prática jurídica, seja no âmbito material ou formal. A pro-
mulgação da Constituição Cidadã, há 32 anos, trouxe ao país muitas con-
quistas, porém ainda enfrenta graves contradições, e a discriminação e a
desigualdade são pontos em desequilíbrio os quais estacionam o avanço do
que acredita-se ser democracia.

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2. REFLEXOS DA IGUALDADE DE GÊNERO NA


TRIBUTAÇÃO BRASILEIRA

Cada sistema de tributação deve consagrar a efetivação da justiça me-


diante uma política fiscal que reduza toda forma possível de desigualdade,
não observando somente os focos social e regional, mas intensificando
sempre mais a perspectiva sobre a desigualdade de gênero. Tais despro-
porções são agravadas pela própria sistemática complexa da estrutura tri-
butária a qual está erguida sobre um prisma já carente de reforma e que
precisa contemplar toda a relação entre o fisco e o contribuinte, a fim de
que a resposta arrecadatória seja proporcional ao desenvolvimento de toda
a sociedade e, sem deixar de mencionar, do setor econômico que trans-
cende a esfera nacional.
Ademais, a relação entre fisco e contribuinte demanda uma apre-
ciação sensível, uma vez que não está desassociada do caráter histórico
e social, pois a conquista do direito de igualdade de gênero não exclui o
tratamento tributário adequado e coerente à própria evolução jurídico-
-normativa, ressaltando primordialmente a garantia de se constituir soli-
damente um verdadeiro Estado Democrático de Direito que possui como
basilar e estruturante o princípio da igualdade.
Deste modo, quando abordamos o tema tributação e gênero, rela-
cionamos tanto o avanço da legislação tributária quanto o progresso da
conquista dos direitos das mulheres na história do Brasil e no mundo. Não
obstante a ascensão da matéria no âmbito nacional ainda possua atuação
deveras comedida, findando por gerar grandes impactos em muitas ins-
tâncias. Uma tributação justa para homens e mulheres é relevante ferra-
menta histórica de luta por direitos os quais abrangem o desenvolvimento
de toda a sociedade.
O dever de pagar tributos, ocupando as mulheres o papel de contri-
buinte, nos leva a um marco registral que é o movimento sufragista o qual
ocorreu nos Estados Unidos e no Reino Unido, locais de maior noto-
riedade da causa. Embora o reflexo do patriarcado e demais mecanismos
excludentes relativos à participação da mulher em espaços de decisão e
poder remonte à Grécia antiga (MIGUEL, BIROLI, 2014), o movimento
sufragista marca a primeira onda do feminismo a qual visava dar às mu-

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P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

lheres o direito de voto e carrega em sua história a relação direta entre o


sufrágio e a exação tributária.
Diversos jornais de Nova York, na época, já registravam um notório
e incômodo posicionamento das mulheres sufragistas em pagar impostos
caso não conquistassem o direito de voto. O jornal Courrier and Union
(1864, apud GROSS, 2012) chegou a citar anônima e ironicamente uma
sufragista que se recusava a pagar os tributos que lhes eram cobrados, uma
vez que ela defendia que a falta de representação era um ultraje à liberdade
civil das mulheres e sua propriedade foi confiscada. Da mesma forma,
no jornal The Naples de Nova York (1873, apud GROSS, 2012) citou o
nome de uma mulher que se negava a pagar tributos a menos que a ela
fosse permitido o direito de votar.
Uma contraditória e relutante contribuição anti sufragista no jornal
nova iorquino The Hudson Evening Register (1911, apud GROSS, 2012)
citou “Sem voto, sem tributo” e reforçava que os fundamentos utilizados
pelas mulheres que aclamavam pelo direito de voto relacionado à tribu-
tação sobre suas propriedades eram incoerentes, equiparando o direito
feminino de sufrágio a um mero privilégio e que era por si só inconstitu-
cional, não devendo nem a constituição nem as leis serem vencidas. Desta
forma, o bordão político "Não há tributação sem representação" se firmou
no tempo. O primeiro país a conquistar o direito de voto foi Nova Ze-
lândia, em 1893, já o Brasil registra o mesmo fato apenas no ano de 1932.
A discussão acerca da desigualdade de gênero e do sistema de tributa-
ção da mulher ganhou o seu espaço e foi conquistando registro, com ime-
diata correlação ao termo “Pink Tax” ou “Taxa Rosa”, que faz referência
ao movimento de caráter consumerista, o qual tem apoio estratégico de
marketing e design sobre os produtos consumidos especificamente por
mulheres, e trata da tributação sobre o consumo desses itens que acabam
recebendo uma precificação superior aos similares masculinos.
Assim dizendo, por questão de gênero, a mulher já encontra um
obstáculo no seu poder de aquisição, valendo mencionar, a título de co-
nhecimento, a atual e coerente reflexão registrada na página oficial do
Congresso dos Estados Unidos – Junta do Comitê Econômico, United
States Congress Joint Economic Comittee, de que “Gender-based pricing that di-
sadvantages women extends beyond the pink tax” (MALONEY, 2016), ou seja,
“a precificação baseada em gênero a qual traz desvantagens às mulheres

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vai além do imposto rosa” (MALONEY, 2016, tradução nossa), uma vez
que as mulheres sempre pagaram valor superior não apenas por produtos
referentes a consumo, mas também por variados serviços.
A tributação das famílias é outro contexto no qual se confirma que as
mulheres são mais tributadas do que os homens, estendendo o raciocínio
para a sistematização da tributação direta do Imposto de Renda de Pes-
soa Física, o IRPF, recrudescendo a estatística de desigualdade de gênero.
A figura da mulher no planejamento familiar se torna cada vez mais ex-
pressiva e indispensável, especialmente em famílias mais numerosas. Por
exemplo, no estado de São Paulo, segundo levantamento da Fundação
Sistema Estadual de Análise de Dados – SEADE, 4 em cada 10 lares são
comandados por mulheres (CUT, 2020). Com relação ao Estado do Cea-
rá, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua –
PNAD, o percentual de lares chefiados por mulheres cresceu em 47% no
período de 6 anos (PNAD, 2019). Isso gera impacto direto na capacida-
de contributiva, expressa na Constituição Federal, art. 145, §1º, indo em
contramão à justiça fiscal, pois o princípio da capacidade de contribuição
está intimamente interligado com o da igualdade.

Constitui a diretriz para a modulação da carga tributária em ma-


téria de impostos, porquanto sendo esses tributos não vinculados
a uma atuação estatal, sua graduação deve levar em conta circuns-
tância que diga respeito ao próprio sujeito passivo. A noção de
igualdade está na essência do conceito de capacidade contributiva,
que não pode ser dissociada daquela. Podemos dizer que a capaci-
dade contributiva é um subprincípio, uma derivação do princípio
da igualdade, irradiador de efeitos em todos os setores do Direito.
(COSTA, 2017).

Da mesma forma, pondera acerca da correlação capacidade econômi-


ca do sujeito passivo ao princípio fundamental da igualdade:

Realizar o princípio pré-jurídico da capacidade contributiva abso-


luta ou objetiva retrata a eleição, pela autoridade legislativa compe-
tente, de fatos que ostentem signos de riqueza. Esta é a capacidade
contributiva que, de fato, realiza o princípio constitucionalmen-
te previsto. Por outro lado, também é capacidade contributiva,

657
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

ora empregada em acepção relativa ou subjetiva, a repartição da


percussão tributária, de tal modo que os participantes do acon-
tecimento contribuam de acordo com o tamanho econômico do
evento. Quando empregada no segundo sentido, embora revista
caracteres próprios, sua existência está intimamente ilaqueada à
realização do princípio da igualdade, previsto no art. 5º, caput, do
Texto Supremo. (CARVALHO, 2019).

Lamentavelmente, o atual mercado de trabalho acaba por ter forte in-


fluência sobre a renda familiar e tributação direta sobre a renda da mulher,
haja vista que no Brasil as mulheres possuem rendimento médio mensal
até 30% a menos do que os homens e, por outro lado, acabam consumin-
do mais em razão da tributação elevada sobre o consumo de produtos
femininos e significativa responsabilidade familiar.
No que tange à tributação indireta de ICMS e IPI refletora de dispa-
ridades sociais e econômicas por motivo de gênero, realidade de diversos
países, amplifica o distanciamento da conquista do direito fundamental
de igualdade constante na Constituição Federal vigente, como exemplo
temos a famigerada tributação sobre absorventes higiênicos, que no Brasil
pode chegar até a estimativa de 34% (IMPOSTÔMETRO, 2020). Ade-
mais, conforme a Escola Superior de Propaganda e Marketing, já no ano
de 2017, as mulheres eram tributadas 12,3% a mais que os homens por
produtos idênticos, seja no vestuário, produtos de higiene, brinquedos e
até corte de cabelo (ESPM, 2017).
Em contrapartida, é positivo a jurisprudência da Suprema Corte bra-
sileira já firma evolução em seu entendimento, relativa ao RE 576.967,
Tema de Repercussão Geral nº 72, com julgamento encerrado em 5 de
agosto de 2020, quando resta declarado pelo Ministro Luis Roberto Bar-
roso que declarou ser inconstitucional a incidência da contribuição pre-
videnciária patronal sobre o salário-maternidade, uma controvérsia da
seara tributária a qual foi dirimida satisfatoriamente como fundamento
do princípio constitucional da isonomia que norteia a relação entre fisco e
contribuinte. (STF, 2020).
Grande reflexo do preceito constitucional da igualdade de gênero no
sistema tributário nacional é o princípio da isonomia tributária, previsto
no art. 150, III da Constituição Federal, in verbis:

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Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contri-


buinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se en-


contrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em
razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, inde-
pendentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos
ou direitos. (BRASIL, 1988)

O princípio da isonomia tributária estabelece como critério uma si-


tuação equivalente e não idêntica, devendo considerar a interpretação da
norma no sentido de que seja respeitado o mesmo parâmetro utilizado
para o princípio da igualdade fora do âmbito tributário, qual seja a neces-
sidade de haver motivação para a justificação do tratamento diferenciado
(SCHOUERI, 2019).
Todavia, ainda que o constituinte tenha fixado expressamente pon-
tos fatoriais para tal vedação, o princípio da isonomia se mostra implícito
no que se refere ao tratamento desigual em razão de gênero. A tratativa
da sistemática de tributação desigual existente aplicada aos homens e às
mulheres não é garantida de forma cristalina na redação do dispositivo
constitucional.
O princípio fundamental da igualdade entre homens e mulheres rege
e resguarda hierarquicamente a aplicação das leis sem permitir dubieda-
des, de modo semelhante se exigiria que o princípio norteador da norma
tributária na Carta Magna também buscasse impossibilitar qualquer inter-
pretação debilitadora à conquista da equidade de gênero, não permitindo
nenhum caráter implícito acerca da matéria. Tal raciocínio resguardaria
todo fundamento de relevância prática existente em matéria tributária em
busca de um sistema bem estruturado, mais justo e equânime.
O sistema tributário deve ser constituído de um complexo de nor-
mas cuja finalidade seja dotada de explicitude, ponderação que vale para
normas de âmbito federal, estadual e municipal. Somente desprovida de
legislações com teores implícitos é que a tributação poderia ser concreta-
mente uma ferramenta potencial de promoção de igualdade, de justiça e
desenvolvimento social e econômico. Normas implícitas não oferecem ao

659
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

contribuinte completa segurança jurídica, também princípio estruturante


do Estado Democrático de Direito.
Considera-se também que o desenvolvimento nacional é afetado pela
desigualdade de gênero na tributação, especialmente o desenvolvimento so-
cial e o econômico. O sistema tributário nacional pode ser vetor de justiça
social e é capaz de reduzir as desigualdades regionais e sociais no país. O art.
170 da Constituição Federal, que trata da ordem econômica, possui como
um de seus princípios, no inciso VII, um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, e o teor do dispositivo trata precisamente
do efeito positivo decorrente da aplicação harmonizada do princípio funda-
mental da igualdade de gênero no sistema tributário nacional.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho


humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos exis-
tência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios: VII - redução das desigualdades regionais e
sociais. (BRASIL, 1988)

É cabalmente possível inviabilizar a concentração injusta de riqueza


pelos motivos expostos, já não fosse suficiente o tão expressivo caráter
regressivo da tributação brasileira a qual faz perpetuar inconsistências in-
compatíveis com os princípios do Estado Democrático de Direito e com
os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil os quais são
diretamente correspondentes a uma sociedade economicamente bem es-
truturada, art. 3º da CF/88, in verbis:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federa-


tiva do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualda-


des sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,


raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
(BRASIL, 1988)

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Valer-se de uma reforma tributária a qual rearquitetasse uma base


sólida, respeitando princípios basilares como o da igualdade e isonomia
tributária e capacidade contributiva, o país lograria êxito na construção
de uma sociedade justa, na garantia do desenvolvimento nacional, na er-
radicação da pobreza e da marginalização, na redução de toda forma de
desigualdade social e regional, promovendo o bem de todos os cidadãos,
pondo em pauta específica a supressão do preconceito em razão de gêne-
ro, em diversas instâncias. Longe de parecer utópico, é inconteste que o
sistema tributário nacional é em si um potencial remodelador da realidade
brasileira.

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

O universo do direito tributário contemporâneo constata ainda mais


fortemente a viabilidade da característica da transversalidade de suas res-
pectivas normas e cujo papel de intermediar mudanças significativas na
estrutura do país é irrefutável.
O direito fundamental de igualdade entre os sexos não é preponde-
rante na tributação brasileira, muito se discute acerca da tributação indi-
reta sobre o consumo onde as mulheres pagam em torno de 12% a mais
em produtos similares masculinos, sem deixar de mencionar a tributação
das famílias e da própria regressividade tributária que acomete os cidadãos
economicamente menos favorecida, sabendo que o mercado de trabalho
permite que a população feminina receba um rendimento médio mensal
quase 30% a menos que a masculina, havendo pouca variação a depender
do ente federativo.
Ademais, o princípio da isonomia tributária expresso na Carta Mag-
na fixa de forma abrangente a figura de “contribuintes” sem distinção
de sexo, oportunizando insegurança jurídica de todo o sistema legislati-
vo infraconstitucional que deve se pautar na constituição federal vigente.
Lamentavelmente, ainda encontram-se lacunas e muito a argumentar nas
entrelinhas da literalidade normativa vigente.
A resposta à sutileza dos hiatos constitucionais é a excessiva desigual-
dade social, concentração irregular de riqueza, tributação mais incidente
às mulheres e às classes mais pobres, injustiça fiscal e entraves ao progresso
do desenvolvimento nacional. Torna-se urgente reformar a sistemática de

661
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tributação com foco na perspectiva de gênero e fazer cumprir um preceito


constitucional fundamental o qual se faz consonante com todos os prin-
cípios do Estado Democrático de Direito e é parte dele. E uma tributação
efetivamente justa não habita somente o campo das aspirações, mas sim
também no campo da realidade e é uma norma de caráter constitucional,
devendo assim ser devidamente executada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

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STF. RE 576967 - Recurso Extraordinário, 2020. Acesso em:


12/12/2020.

663
A SEGURANÇA PÚBLICA COMO
DIREITO FUNDAMENTAL SOB A
ÓTICA CONSTITUCIONAL
Jocilene Costa Vanzeler129
Emmanuelle Ferreira Ribeiro130

INTRODUÇÃO

A definição de segurança pública não é uma tarefa simples, apesar de


ser um tema bastante presente no cotidiano das pessoas, principalmente
na mídia e nos discursos de políticos em eleição. Além disso, o conceito
de segurança pública é muitas vezes distorcido ou simplista, visto que ge-
ralmente está vinculado a temas que envolvem violência e crime. Porém,
vai muito além de discursos vazios, a segurança pública é uma política que
deve ser desenvolvida pelos órgãos e pela sociedade, garantindo cidadania
a todos. Ressalta-se ainda, que o direito à segurança abrange um direito
à proteção contra atos do poder público (GRACIANO, MATSUDA e
FERNANDES, 2009; SARLET, 2012).

129 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduada em Direi-
to pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Pós-graduada em nível de Especialização em
Educação Ambiental, Cidadania e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do
Pará (UFPA). Pós-graduanda em nível Mestrando em Segurança Pública pela Universidade
Federal do Pará (UFPA).
130 Graduada em Ciências Contábeis pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Pós-gra-
duada em nível de Especialização em Estratégias de Gestão pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).

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A segurança pública sob a perspectiva constitucional tem base na


própria constituição da república federativa do Brasil de 1988, ao atribuir
um sentido valorativo ao direito à segurança no preâmbulo, bem como ao
proteger este direito com o princípio da intangibilidade no art. 5º, além
de defini-lo no art. 6º, caput, como direito social. E, especialmente, no art.
144, caput, em que apresenta o direito à segurança pública propriamente
dito de forma expressa e bem definida, atribuindo-se a responsabilidade
para toda sociedade e dever do Estado (BRASIL, 1988).
O termo segurança constante do preâmbulo e dos arts. 5º, caput, e
6º, caput, da constituição federal, deve ser interpretado como relativo ao
direito à segurança pública, componente importante para a proteção da
dignidade da pessoa humana (art. 1º) e exercício dos direitos sociais e in-
dividuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, preservação da harmonia
social e solução pacífica das controvérsias (SANTIN, 2013).
Destarte, apesar de não estar descrito no título V da constituição fe-
deral, o art. 144, caput, pode ser entendido como direito fundamental ao
ser interpretado sob a ótica da cláusula de abertura, visto que a segurança
pública possui relação direta com a ideia de dignidade humana que é o
fundamento maior dos direitos fundamentais. Isto deflui tanto de uma
série de previsões expressas e específicas no texto constitucional (despon-
tando aqui a formulação genérica adotada pelo constituinte no artigo 5º,
caput, da CF), quanto do reconhecimento de deveres gerais e especiais
de proteção que resultam diretamente da dimensão jurídico objetiva dos
direitos fundamentais, na condição de expressões de uma ordem de va-
lores comunitária e que, pelo ângulo subjetivo, levou expressiva parte da
doutrina a reconhecer a existência de correspondentes direitos à proteção
(SARLET, 2012).
Nessa perspectiva, a segurança pública deve ser compreendida à luz
dos princípios fundamentais da constituição federal, quais sejam a repú-
blica, a democracia, o estado de direito, a dignidade da pessoa humana, a
cidadania e o respeito aos direitos e garantias fundamentais, irradiando a
sua eficácia por todo o sistema jurídico-constitucional para orientar, in-
clusive, as políticas públicas de segurança e a atuação cotidiana do aparelho
de gestão securitária. Com isso, a afirmação de um direito fundamen-
tal à segurança pública ocupa lugar privilegiado nesse contexto (SOUZA
NETO,2007).

665
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Todavia, ainda há bastante divergência doutrinária sobre o caráter


de direito fundamental atribuído a segurança pública, mas essa discussão
deve ir além do superficial para deixar de ser um assunto muito falado e
pouco compreendido.

1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CLÁUSULA DE


ABERTURA

Os direitos fundamentais têm surgimento com a necessidade de pro-


teção do homem contra o poder estatal, por meio dos ideais do Ilumi-
nismo nos séculos XVII e XVIII e foram incorporados ao patrimônio da
humanidade de forma que são reconhecidos internacionalmente pelos ór-
gãos e instituições internacionais, e passaram a ser vistos numa perspectiva
também de globalidade, enquanto chave de libertação material do homem
(BONAVIDES,2002).
Embora os direitos fundamentais tenham antecedentes histórico na
doutrina estóica greco-romana e cristã da Antiguidade e desenvolvimento
nas doutrinas jusnaturalistas e previsão de direitos estamentais na Idade
Média, a sua consagração ocorre apenas com o constitucionalismo na Ida-
de Moderna, pelo reconhecimento nas principais cartas e constituições.
No Estado Moderno, a evolução dos direitos fundamentais se liga ao pro-
cesso histórico de reivindicações sociais e contrastes de regimes políticos,
bem como, o processo de desenvolvimento econômico, científico e polí-
tico, que resulta em um primeiro momento na tensão dialética e harmo-
nização entre liberdade e igualdade, direitos individuais e direitos sociais
(CARVELLI e SCHOOL, 2011; LUÑO, 2004; ANDRADE, 2001;
SARLET, 2012).
No que se refere ao aspecto conceitual, os direitos fundamentais são
normas jurídicas que se ligam à ideia de dignidade da pessoa humana e de
limitação do poder que fundamentam e legitimam o ordenamento jurí-
dico. Por meio desse entendimento, os direitos fundamentais estão rela-
cionados aos valores básicos para uma vida digna em sociedade, portanto,
possuem um sentido valorativo, um conteúdo ético voltado para a prote-
ção dos seres humanos contra qualquer ato de autoritarismo do Estado.
Por isso, são tão necessários para a garantia da dignidade dos seres huma-
nos que são inegociáveis no jogo político recebendo posição privilegiada

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na constituição federal de 1988, onde o constituinte adotou uma postura


inovadora, inserindo os direitos fundamentais nos artigos iniciais da cons-
tituição federal, havendo, neste caso, uma quebra da tradição constitucio-
nal brasileira, já que, historicamente, as constituições anteriores coloca-
vam os direitos fundamentais nos capítulos finais do texto constitucional
(MARMELSTEIN, 2016).
No texto constitucional, os direitos fundamentais, estão previstos no
título II que trata dos direitos e garantias fundamentais, o qual é dividido
em cinco capítulos específicos que correspondem a sequência que vai do
artigo 5º ao artigo 17, onde estão intitulados no capítulo I como Direitos
e Garantias Individuais, no capítulo II como Direitos Sociais, no capí-
tulo III com Direitos de Nacionalidade, no capítulo IV como Direitos
Políticos e no capítulo V referente aos direitos à participação em partidos
políticos (BRASIL, 1988).
Todavia, a compreensão que se tem é a de que os direitos fundamen-
tais não se esgotam nesses dispositivos citados, visto que o artigo 5ª, §4º
da constituição federal traz a previsão da cláusula de abertura dos direitos
fundamentais demonstrando que estes podem ser encontrados em outros
dispositivos em simetria aos artigos do título II. Neste caso, os direitos
previstos na constituição federal que possuem o mesmo valor dos direi-
tos fundamentais podem ser protegidos e garantidos do mesmo modo
(CUNHA JÚNIOR, 2015).
Destarte, no que se refere à análise do referido dispositivo, a concep-
ção de segurança pública como direito fundamental deve ser interpretada
sob a ótica da cláusula de abertura em que se permite entender que mes-
mo não fazendo parte do rol dos direitos fundamentais de forma literal, a
segurança pública pode ser entendida como direito fundamental por meio
de uma interpretação teleológica que permite enxergar de maneira aberta
dependendo do conteúdo a ser analisado (SARLET, 2012).
A cláusula de abertura pode ser extraída do art. 5º, §2º do texto cons-
titucional, onde dispõe que outros direitos previstos podem ser interpreta-
dos como direitos fundamentais, ao prever que os direitos e garantias ex-
pressos no texto constitucional não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte (BRASIL, 1988).

667
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagra-


do pelo art. 5º, §2º, do texto constitucional, aponta para a existência de
direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional
e até mesmo em tratados internacionais, bem assim para a previsão expres-
sa da possibilidade de se reconhecer direitos fundamentais não escritos,
implícitos nas normas do catálogo, bem como decorrentes do regime e
dos princípios da constituição federal (SARLET, 2012).
Nesse sentido, há direitos fundamentais que estão previstos no de-
correr do texto constitucional, mas não estão no rol expresso do título
II, onde estão previstos expressamente os direitos e garantias fundamen-
tais, porém são decorrentes do regime e dos princípios constitucionais.
Com isso, pode-se dizer que existem direitos fundamentais decorrentes
do regime e dos princípios adotados pela constituição federal, que são jus-
tamente aqueles direitos constitucionais, expressos ou implícitos, que pos-
suem forte vinculação com o princípio da dignidade da pessoa humana ou
com a necessidade de limitação do poder. Disto depreende-se que a prin-
cipal relevância da cláusula de abertura é permitir que novos direitos sejam
descobertos e protegidos, ainda que não estejam expressamente previstos
naquele título constitucional (MARMELSTEIN, 2016).
Dessa forma, é possível dizer que a segurança pública por mais que não
esteja elencada no título dos direitos e garantias fundamentais previstos na
constituição federal, pode ser caracterizada como direito fundamental de
sorte que a interpretação das normas voltadas à segurança pública propor-
cionam o exercício efetivo dos direitos individuais, sociais e coletivos, o
que demonstra a relação direta com a ideia de dignidade humana que é o
fundamento maior dos direitos fundamentais (SARLET, 2012).

2. O NOVO CONCEITO DE SEGURANÇA PÚBLICA


ATRIBUÍDO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Ao analisar o tema da segurança pública, deve-se adotar uma visão


necessariamente holística, de forma a associar com outros ramos do sa-
ber e assim enxergar de forma ampla, sem especificidades e restrições,
com intuito de entender dentro de um conjunto de outros fatores que
de maneira geral influenciam no correto entendimento do tema (FA-
BRETTI, 2014).

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Nesse sentido, ao desmistificar a concepção de segurança pública, ob-


serva-se que o conceito vai além do que se pensa a princípio, pois perpassa
por uma ideia de todo, logo não está restrita a uma área específica nem
a uma categoria de pessoas, de sorte que todas as pessoas necessitam de
segurança (GRACIANO, MATSUDA e FERNANDES, 2009)
No Brasil, a segurança pública constitui tema relevante no longo
da história, especialmente após a promulgação da constituição federal
de 1988, quando a redemocratização do país possibilitou discussões e
debates sobre as políticas públicas, dentre elas a de segurança pública
(AVELINE, 2009).
Com isso, a carta magna de 1988 representou grande evolução para
o tema da segurança pública em comparação às constituições anteriores
visto que introduziu uma série de mudanças que se iniciou com a nomen-
clatura até aquele momento tida como defesa social, passando a ser tratada
como segurança pública propriamente dita. Porém, deve-se ter em mente
que a mudança na nomenclatura não tem significado algum se não houver
a efetivação deste direito na realidade, mudança esta que interfira na or-
ganização e estrutura do sistema de segurança pública do país. Portanto, o
desafio do estado brasileiro na gestão da segurança pública é conseguir se
desvencilhar da ideia de segurança pública como manutenção da ordem e
se preocupar mais em efetivar políticas de segurança no âmbito do estado
democrático de direito, isto é, com o respeito à legalidade e garantia uni-
versal dos direitos humanos (FABRETTI, 2014).
Dessa abordagem, é possível notar que a constituição federal inovou
no tema, pelo menos em termos normativos, mas ainda carece de efetiva-
ção voltada para a segurança de todos e no sentido de substituir o “inimi-
go” que deve ser eliminado por um “cidadão” que deve ter seus direitos
respeitados e, assim, “substituir” o controle militar pela integração com
políticas sociais, por medidas administrativas de redução de riscos e pela
ênfase na investigação criminal (SOUZA NETO, 2007).
Todavia, a superação da visão de segurança pública pautada na manu-
tenção da ordem e na proteção de um falso direito fundamental à segu-
rança é o desafio imposto ao estado democrático de direito do século XXI
(FABRETTI, 2014).
Dessa forma, um conceito de segurança pública adequado é que se es-
teja em plena conformidade com o princípio democrático, com os direitos

669
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

fundamentais e com a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que


os princípios fundamentais produzem eficácia irradiante sobre os demais
preceitos que compõe a constituição federal (SOUZA NETO, 2007).

3. SEGURANÇA PÚBLICA COMO DIREITO


FUNDAMENTAL POR MEIO DA ANÁLISE DO TEXTO
CONSTITUCIONAL

As bases normativas para a atribuição do status de direito fundamental


à segurança pública estão presentes na própria constituição federal de 1988
como previsto de forma geral no preâmbulo, bem como disposto no art.
5º, caput; no art. 6º, caput e especialmente no art. 144, caput, que apresenta
o direito à segurança pública propriamente dito de forma expressa (BRA-
SIL, 1988).
Desse modo, a constituição federal concedeu à segurança valor supre-
mo e fundamento que condiciona a atuação estatal. Incluiu, ainda, a segu-
rança entre os direitos fundamentais e os direitos sociais, fazendo com que
o direito à segurança seja visto como cláusula geral, sujeitando o Estado
a um dever de concretização e realização do direito fundamental em suas
diversas dimensões (AVELINE, 2009).
O preâmbulo da carta magna, mesmo não tendo força normativa,
apresenta o fundamento da constituição federal, por isso deve ser obser-
vado dentro do ordenamento jurídico como uma carta de intenções que
tem por objetivos básicos explicitar o fundamento da legitimidade da or-
dem constitucional e explicitar as finalidades da Constituição. Assim, o
direito à segurança apresentado no preâmbulo da carta magna tem valor
relevante, pois corresponde um dos fundamentos da constituição federal
(MORAES, 2000).
Com relação ao art. 5º, caput, da constituição federal, evidencia-se a
garantia da inviolabilidade do direito à segurança ao dispor que todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e garantindo aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. No que se
refere à análise do art. 6º, caput, do texto constitucional, pode-se verificar
que a segurança se apresenta como direito social ao dispor que a educa-
ção, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a


assistência aos desamparados, são direitos sociais (BRASIL, 1988).
De certa forma, pela análise dos artigos 5º, caput e 6º, caput, do texto
constitucional, pode-se dizer que há um tratamento geral e abrangente do
direito à segurança, não necessariamente do termo segurança pública, mas
desta como direito de toda e qualquer pessoa, sendo direcionado tanto
ao direito público quanto ao privado. Nesse sentido, a palavra segurança
assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de situação ou
pessoa em vários campos, independente do adjetivo que a qualifica (SIL-
VA, 2009).
Ao tratar do tema da segurança pública, propriamente dito, a consti-
tuição federal no art. 144, caput, define que a segurança pública é dever do
Estado, além de direito e responsabilidade de todos, bem como deve ser
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pes-
soas e do patrimônio Nesse sentido, a segurança pública é apresentada de
forma específica tendo como responsável a figura tanto do Estado quanto
de toda sociedade, atribuindo ao Estado o dever pela segurança pública
reconhecendo esse direito como direito inalienável de todos os cidadãos
(SANTIN, 2013)
Por meio da interpretação do artigo 144, caput, da norma constitucio-
nal, que consagra a segurança pública como dever do Estado, direito e res-
ponsabilidade de todos, verifica-se o direito à segurança pública por meio
de uma visão valorativa que condiciona e legitima a atuação e a própria
existência do Estado e impõe a este não só que se abstenha de intervenções
indevidas na esfera desse direito, mas também que adote medidas com o
intuito de protegê-lo e de promovê-lo (AVELINE, 2009).
Os dispositivos constitucionais citados encontram correspondência
em alguma das funções atribuídas aos direitos fundamentais:

[...] A previsão do art. 5º se relaciona com a primeira função dos


direitos fundamentais – função de defesa ou de liberdade – que é
a defesa da pessoa humana e da sua dignidade frente os poderes do
Estado; A previsão do art. 6º se vincula à segunda função – fun-
ção de prestação social -, o que significa o direito do particular a
obter algo através do Estado (saúde, educação, segurança social).
São bens sociais que podem ser obtidos no mercado privado pelas

671
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

pessoas com mais capacidade econômica (saúde privada, educação


privada, previdência privada). Por fim, ao artigo 144 é possível re-
lacionar a terceira função dos direitos humanos – função de prote-
ção perante terceiros. Esses direitos impõem um “dever do Estado
(poderes públicos de forma geral) no sentido de “proteger” perante
“terceiros” os titulares de direitos fundamentais. Nesse sentido o
Estado tem o dever de proteger o direito à vida perante eventuais
agressões de outros indivíduos (é a ideia representada pela doutrina
alemã na expressão schuzpflicht (FABRETTI, 2014, p. 113).

Como observado, o direito à segurança e demais direitos são enten-


didos por meio de uma visão pautada nos valores supremos. Além disso,
pode-se acrescentar que a submissão das leis e outras normas ao que está
disposto na norma constitucional deve ser entendida de forma sistêmica
visto que não só o cumprimento às regras é importante, mas a obser-
vância aos princípios constitucionais fundamentais sustentados pela Carta
Magna como o estado de direito, a cidadania, a democracia e a dignidade
da pessoa humana e os direitos fundamentais (SANTIN, 2013 ).
Desse modo, as leis e atos administrativos que tratam da segurança pú-
blica não se limitam apenas às normas previstas no art. 144, caput, do texto
constitucional, mas a todo sistema constitucional, de forma que devem
ser especialmente observados os princípios constitucionais fundamentais,
bem como os direitos fundamentais. Assim, para compreender, normati-
vamente, o conceito de segurança pública, o art. 144 deve ser interpretado
por meio da ideia de valores do sistema constitucional, em que se situam
esses princípios fundamentais, pois somente assim será possível a formula-
ção de um conceito constitucionalmente adequado (FABRETTI, 2014).
Em contraposição à ideia de segurança pública como direito funda-
mental, há duas vertentes, de um lado defende que a segurança pública é
uma necessidade humana, e de outro uma função geral do sistema jurídi-
co, mas em qualquer dos casos, a segurança é uma necessidade secundária,
logo um direito secundário e não direito fundamental. Todavia, a necessi-
dade de segurança não é uma necessidade primária, mas acessória, sendo
que o que deve ser tutelado juridicamente são as necessidades humanas
como a vida, a liberdade e a integridade física (BARATTA, 2004).

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Diante disso, pode-se inferir que o direito a segurança pública deve


ser visto pelos moldes da constituição federal que atribui à segurança pú-
blica status de direito fundamental, pois não há outro caminho possível
entre a eficácia das políticas de segurança e as garantias dos direitos funda-
mentais e de cidadania que não a estrita observância às normas constitu-
cionais (FABRETTI, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da análise do texto constitucional, pode-se dizer que a segurança pú-


blica sob a perspectiva constitucional tem base na própria constituição da
república federativa do Brasil de 1988 ao se atribuir sentido voltado para
os valores dado à segurança no preâmbulo, bem como ao proteger este
direito com a intangibilidade no art. 5º, caput; além de defini-lo no art.
6º, caput, como direito social e especialmente no art. 144, caput, apresentar
o direito à segurança pública propriamente dita de forma expressa e bem
definida como responsabilidade de todos e dever do Estado.
Destarte, apesar de não estar relacionado no título V do texto cons-
titucional, o art. 144, caput, pode ser entendido como direito fundamen-
tal se interpretado sob a ótica da cláusula de abertura prevista na própria
constituição federal no art. 5°, §2°, o qual permite o entendimento por
meio da interpretação teleológica das normas constitucionais.
Nesse sentido, ao atribuir ao Estado o dever pela segurança pública,
reconhece-se esse direito como direito inalienável de todos os cidadãos.
Já no que se refere a responsabilidade de todos pode ser interpretada pelo
incentivo à participação social nas políticas públicas, visto que a sociedade
tem um papel importante na participação e controle das políticas públicas.
Diante do que foi abordado, pode-se inferir que o direito à segurança
pública deve ser visto pelos moldes da constituição federal, pois não há
outra forma de efetivar as políticas de segurança e as garantias dos direi-
tos fundamentais e de cidadania se não houver observância plena à Carta
Magna.
Dessa forma, a visão de segurança pública voltada estritamente ao Es-
tado e as instituições criminais foi desmistificada aqui, pois apresentou-se
uma perspectiva constitucional em que atribui status de direito funda-

673
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

mental à segurança pública visto que possui relação direta com a ideia de
dignidade humana que é o fundamento maior dos direitos fundamentais.

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675
RESUMOS

677
CONFLITOS ENTRE DIREITOS
FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE
PANDEMIA
Camila Pereira Cavalcanti Souza131

INTRODUÇÃO

Com a inserção do conhecido vírus Covid-19 na população mundial,


observa-se uma diferenciação de estabelecimento de normas para a po-
pulação, mesmo tendo um órgão mundial ajudando a regular tais regra-
mentos, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e tendo em vista
que o ordenamento pode tomar certas posições para proteger a sociedade
como um todo.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Deve-se considerar uma atenção maior aos decretos sancionados e


também nos ater para as novas tecnologias para assim respeitar-se e acabar
com tantas restrições, principalmente o direito à liberdade, que é por lei
um direito fundamental de primeira geração ou dimensão.

METODOLOGIA

No presente trabalho foi utilizado o estudo qualitativo, com o objeti-


vo de abordar sobre os conflitos dos Direitos fundamentais em tempos de

131 Estudante de Direito da Faculdade Três Marias.

679
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

pandemia, mais concretamente como a Constituição da República Fede-


rativa do Brasil pode restringir ou ao menos abrandar princípios substan-
ciais para a população Brasileira diante a disseminação do Covid-19.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com a atual disseminação do vírus Covid-19, ou novo Corona Vírus,


vê-se uma variação nas reações de toda população, até mesmo dos gover-
nantes, porém existem direitos e garantias estabelecidas no ordenamento
jurídico, que visam equilibrar a relação existente entre o homem e a so-
ciedade.
Tais direitos e garantias são divididas em gerações ou dimensões,
onde surgiram na Revolução Francesa e Americana, no final do século
XVIII, onde a primeira geração ou dimensão está ligado a liberdade, ou
seja, a autonomia do homem em definir sobre sua vida e pensamento.
Seguindo com o surgimento da segunda geração ou dimensão, na qual
está ligada a igualdade, como a saúde, educação, trabalho, lazer, v.g. .Já,
a terceira geração ou dimensão está ligada a fraternidade representando a
evolução dos direitos fundamentais de uma sociedade organizada, como a
paz, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a comunicação, v.g.,
principalmente para os mais vulneráveis. Com o avanço da tecnologia,
surgiu uma nova geração ou dimensão, os chamados direitos tecnológicos,
que são elencados como o direito de informação e o biodireito.
A Constituição Federal organiza e rege toda a legislação do Estado
brasileiro e, diante dessa grande pandemia, o direito pôde tomar certas
posições para proteger a sociedade como um todo, mas logicamente existe
uma necessidade de filtrar e ajustar para o caso concreto, impondo diver-
sos modos de enfrentamento e colocando outros princípios fundamentais
como segunda opção. Um bom exemplo de decisão para o combate da
disseminação do Covid-19, está em resguardar a vida e a saúde dos apena-
dos, onde ver-se na decisão do Superior Tribunal de Justiça, STJ - PET no
HABEAS CORPUS Nº 568.693 - ES (2020/0074523-0): “(...) por meio
de habeas corpus coletivo, determinar a liberdade, independentemente do
pagamento da fiança, (...) tendo em vista os riscos advindos da pandemia
causada pelo novo coronavírus (COVID-19)”.

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Em face de todos os decretos, um deles foi a Medida Provisória (MP)


936, com aplicação durante o estado de calamidade pública (situação atí-
pica) reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020,
com validade até Dezembro de 2020, com objetivos de preservar o em-
prego e a renda, garantir a continuidade das atividades laborais e empre-
sariais e reduzir o impacto social. Vale lembrar que “lei provisória” na lei
constitucional brasileira, é uma legislação executiva que deve ser aprovada
pelo Congresso Nacional, mas produz efeitos imediatos até que seja con-
firmada ou rejeitada pela legislatura.
Diante a MP 936, surgiu uma necessidade de declarar quais ativi-
dades eram indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam
em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população e com isso
surgiu o decreto Nº 10.282, de 20 de março de 2020, na qual regulamen-
ta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Em seu artigo 3º, §1º foi
definido os serviços públicos e atividades essenciais, tais como: assistência
à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares; Atividades de pes-
quisa, científicas, laboratoriais ou similares relacionadas com a pandemia
de que trata este Decreto,  (Incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020),
dentre outros. E, segundo o artigo 3º, § 2º do mesmo decreto: “Também
são consideradas essenciais as atividades acessórias, de suporte e a disponi-
bilização dos insumos necessários a cadeia produtiva relativas ao exercício
e ao funcionamento dos serviços públicos e das atividades essenciais”.
Com tais decretos, vê-se uma urgência em resolver tais problemas
do ponto de vista constitucional, como afirma Ingo Sarlet (2020), de-
sembargador aposentado do TJ-RS, que o fato de “(...) inexistir Estado
Democrático de Direito sem direitos e garantias fundamentais, do mesmo
modo que na ausência ou grave comprometimento desses implode a or-
dem constitucional democrática (...)”.
Segundo Konrad Hesse (1998, p. 257), a tarefa das limitações de
direitos fundamentais é de coordenar mutuamente as condições de vida
garantidas pelos direitos de liberdade, ou seja, quando em um dado mo-
mento as condições de vida estão sendo atacadas e juntamente os direitos
fundamentais, todo o restante dos direitos se tornam mais frágeis, mais
restritas para preservar o princípio fundamental, que é a vida.

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Um princípio bem relevante e bastante utilizado diante esta pande-


mia, é o princípio da isonomia, onde deve se analisar cada caso concreto
e visualizar cada necessidade da população, e um ato feito pelo represen-
tante em razão de tal princípio da isonomia, foi decretar um auxílio emer-
gencial para ajudar com um valor pecuniário, os trabalhadores formais
ativos, informais, intermitente ativo, desempregados e família monopa-
rental com mulher provedora, decreto Nº 10.316, de 07 de Abril de 2020,
que regulamenta a Lei Nº 13.982, de 02 de Abril de 2020 e também foi
concedido um crédito ao Ministério da Economia pela medida provisória
Nº 935, de 01 de Abril de 2020, no valor de R$ 51.641.629.500,00 para
benefício emergencial de manutenção do emprego e da renda.
Neste diapasão, o grande jurista e professor Miguel Reale (2002, p.
304) esclarece com enorme brilhantismo que: “(...) o legislador, por con-
seguinte, é o primeiro a reconhecer que o sistema das leis não é suscetível
de cobrir todo o campo da experiência humana, (...), algo que era impos-
sível ser vislumbrado se quer pelo legislador no momento da feitura da lei
(...)”.
Mas, com tanta mitigação, pode-se legitimar tal façanha pelo juízo de
ponderação, que nada mais é do que balancear as colisões entre tais princí-
pios fundamentais, tentando colocar em paridade, ou ao menos, diminuir
os efeitos causados pelas restrições dos direitos fundamentais.
Diante posto, por estar em uma situação atípica, na qual a saúde da
população se encontra em uma verdadeira guerra mundial, com isso, de-
ve-se precipitar algumas ações, como o isolamento social, o fechamento
de comércios, v.g., para assim tentar dizimar o Covid-19 concomitante
com as restrições das repercussões principiológicas do estado de direito,
em que, direitos e garantias fundamentais são indispensáveis à pessoa hu-
mana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, com liber-
dade e igualdade.

CONCLUSÕES

A Constituição é um texto normativo que contém normas de va-


riadas especificidade, onde se adequa aos acontecimentos e exigências da
sociedade. Para que elas, sobretudo as que consagram os direitos funda-
mentais possam cumprir suas funções, devem ser formuladas de maneira

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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

generalizada, pois assim podem ter sua aplicabilidade imediata, ajudando


a resolver mais rapidamente o problema em questão.
Como em qualquer situação de conflito entre princípios constitucio-
nais, os critérios tradicionais de hierarquização de resolução de conflitos
normativos geralmente são insuficientes para resolver as anomalias entre
princípios constitucionais, o que deve surgir um novo meio de legitimar
tais colisões, como por exemplo o juízo de ponderação.
Perfaz que quando existe uma inconformidade entre princípios cons-
titucionais, sempre irá prevalecer aquele mais fundamental, que é a vida,
mesmo que com isso tenha que afetar a economia, os princípios funda-
mentais, os direitos humanos de liberdade, igualdade e fraternidade.

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manda hospital divulgar casos de coronavírus. Gazeta do Povo.
Brasília. 24 de Março de 2020. Disponível em: <https://www.gaze-
tadopovo.com.br/republica/coronavirus-hospital-nomes/>. Acessa-
do em: 26/04/2020.

683
DIREITO À ALIMENTAÇÃO E MÍNIMO
EXISTENCIAL
Cláudia Toledo132
Giovanna Freitas133
Larissa Duque134

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa objetivou examinar o enquadramento do direito à ali-


mentação no mínimo existencial brasileiro. O direito à alimentação é
direta e essencialmente relacionado com o direito à vida, sem o qual é
impossível realizar outros direitos. A garantia do direito à alimentação é
condição de possibilidade da vida humana com integridade. Não há que
se falar no exercício dos demais direitos fundamentais, sem que o indi-
víduo tenha acesso a alimento qualitativa e quantitativamente adequado.
Argumenta-se que o direito à alimentação se apresenta, então, como ne-
cessário para que se alcance grau elementar de dignidade humana, e por
isso deve ser considerado como direito integrante do mínimo existencial
brasileiro, assim como ocorre na Alemanha e em Cuba.

132 Professora associada da Faculdade de Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora


(UFJF), coordenadora do projeto de pesquisa Direito à Alimentação e Mínimo Existencial.
133 Graduanda em Direito, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e integrante do
projeto de pesquisa Direito à Alimentação e Mínimo Existencial.
134 Graduanda em Direito, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e integrante do
projeto de pesquisa Direito à Alimentação e Mínimo Existencial.

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A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A compreensão dos direitos fundamentais, no presente estudo, tem


como marco teórico Robert Alexy, especialmente sua obra Teoria dos Direitos
Fundamentais (2015). Conforme Alexy (2015), as normas de direitos funda-
mentais sociais possuem a estrutura de princípios, os quais estipulam direi-
tos subjetivos prima facie, que são delimitados a partir das condições fáticas e
jurídicas de cada caso concreto, tornando-se então direitos definitivos. Os
princípios declaradores de direitos fundamentais frequentemente entram em
colisão quando de sua aplicação, requerendo a utilização da máxima da pro-
porcionalidade para a solução de seu conflito. Direitos fundamentais sociais
são direitos a prestações fáticas (produtos, serviços, auxílios pecuniários). Sua
prestação demanda, portanto, considerável investimento financeiro do Esta-
do e, consequentemente, encontra-se sujeita a suas limitações econômicas.
Há, no entanto, um direito fundamental que apresenta estrutura distinta
da supracitada, requerendo abordagem diversa. O direito ao mínimo exis-
tencial é objeto de norma do tipo regra, que deve ser imediatamente apli-
cada mediante subsunção no caso concreto. Mínimo existencial é o núcleo
essencial dos direitos fundamentais sociais considerados indispensáveis para
a garantia de nível elementar de dignidade humana (TOLEDO et al., 2019).
O conteúdo do mínimo existencial deve abranger o núcleo essencial
daqueles direitos fundamentais sociais mínimos, imprescindíveis não ape-
nas à manutenção da vida humana sob a perspectiva fisiológica, mas tam-
bém sob a perspectiva social. Nessa linha, o ordenamento jurídico brasi-
leiro vem caminhando na construção do âmbito de proteção do mínimo
existencial no país. Embora seu conteúdo seja controverso na doutrina e
na jurisprudência pátrias, pacífica é a consideração de que os direitos à
saúde e à educação o integram. Porquanto o direito à saúde é indissocia-
velmente ligado ao direito à alimentação, a pesquisa desenvolvida levantou
a hipótese de que este direito também deve integrar o mínimo existencial
brasileiro, como já o fazem a Alemanha e Cuba.

METODOLOGIA

Para elaboração deste trabalho, realizou-se pesquisa bibliográfica, in-


vestigando-se o tratamento doutrinário do direito à alimentação, sua re-

685
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

lação com o mínimo existencial e a delimitação do seu núcleo essencial.


Foram estudados diversos artigos na doutrina brasileira e estrangeira, que
incluiu artigos de origem espanhola e inglesa.
Em seguida, executou-se pesquisa empírica, tendo como recorte
institucional os Tribunais Constitucionais do Brasil, Alemanha e Cuba, nos
quais foram selecionadas apenas as decisões colegiadas, utilizando-se, como
termos de busca respectivamente: “direito à alimentação”, “right to food”
e “derecho a la alimentación”. O recorte temporal foi de 2004 (ano em
que houve a primeira referência expressa a “mínimo existencial” pelo Su-
premo Tribunal Federal) a 2019 (ano de início da pesquisa). Em razão
da indisponibilidade pública da jurisprudência cubana, passou-se ao es-
tudo de decisões da Colômbia, bem como expandiu-se o levantamento
da jurisprudência europeia, com a inclusão de decisões da Espanha e de
Portugal.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Na pesquisa bibliográfica, verificou-se que a doutrina não avança na


delimitação conceitual do direito à alimentação e de seu núcleo essen-
cial, relacionando timidamente esse direito e o mínimo existencial. Não
obstante, do conjunto de informações reunidas na doutrina investigada,
identificaram-se como elementos centrais do direito à alimentação (i) o
acesso ininterrupto ao alimento (ii) qualitativa e quantitativamente ade-
quado. Elaborou-se então o conceito do direito à alimentação como o
acesso ao alimento, ininterruptamente e em qualidade e quantidade adequadas para
a satisfação das necessidades nutricionais do indivíduo.
Tendo em vista que o mínimo existencial assegura apenas o núcleo
essencial de um determinado direito fundamental social, buscou-se a de-
limitação do núcleo essencial do direito à alimentação, o qual foi definido
como acesso ao alimento, ininterruptamente e em qualidade e quanti-
dades adequadas para a satisfação das necessidades nutricionais mínimas
do indivíduo. Este, portanto, apresenta-se como conteúdo elementar do
direito à alimentação necessário para a garantia de patamar básico de dig-
nidade humana.
Em relação ao (i) acesso ininterrupto ao alimento, importante ressal-
tar que a acessibilidade se traduz na possibilidade de obtenção do alimento

686
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

por meio do acesso físico ou econômico imprescindível para concretização


do direito à alimentação. Ademais, a acessibilidade deve ser ininterrupta,
tendo em vista que a escassez de itens alimentares específicos durante cer-
to lapso temporal se consubstancia em Insegurança alimentar.
Por seu turno, (ii) a adequação qualitativa e quantitativa do alimento
exige o consumo de porções diárias para a manutenção da vida humana
(CAVALHEIRO, 2016), o que requer a realização de estimativa da quan-
tidade de calorias necessárias, em média, para o funcionamento do corpo
humano (BEURLEN, 2008). Daí se falar em quantidade ou quantum ca-
lórico necessário como um dos elementos centrais para a formulação do
conceito citado. Além da quantidade calórica ou nutricional, é imperativo
reconhecer que a qualidade do alimento é essencial para a satisfação do
direito à alimentação, sendo imprescindível a presença de uma série de
elementos qualitativamente específicos nos alimentos. Por fim, fatores
como as condições sociais, culturais, ecológicas e climáticas devem ser
considerados na análise de adequação do alimento.
Na pesquisa empírica, do levantamento das decisões dos Tribu-
nais Constitucionais, chegou-se aos seguintes números: 70 (Brasil), 13
(Colômbia), 16 (Alemanha), 49 (Espanha), 01 (Portugal). Contudo,
constatou-se que a alusão ao direito à alimentação é feita majorita-
riamente apenas como obiter dictum. Sendo assim, identificou-se seu
tratamento como o objeto da ação em apenas 06 decisões no Brasil, 13
na Colômbia, 04 na Alemanha, 01 na Espanha e 01 em Portugal. Da
análise desses julgados, verificou-se a concessão do direito à alimen-
tação somente em 07 decisões na Colômbia e 03 na Alemanha, tendo
sido relacionado ao mínimo existencial em 03 decisões no Brasil, 04
na Colômbia e 03 na Alemanha, inexistindo tal relação nas decisões da
Espanha e de Portugal.

CONCLUSÕES

Na pesquisa bibliográfica, constatou-se a insuficiência no desenvolvi-


mento teórico-conceitual do direito à alimentação. Do conjunto da pro-
dução científica investigada, elaborou-se o conceito do direito à alimen-
tação supra citado, o qual é imprescindível para sua exigibilidade perante
o Estado.

687
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Na pesquisa empírica, observou-se que o direito à alimentação ra-


ramente é abordado como objeto da ação, mas geralmente apenas como
obiter dictum. Nas decisões das ações em que ele é o objeto pleiteado, seu
tratamento carece de desenvolvimento teórico, demonstrando que a deli-
mitação conceitual majoritariamente utilizada não é pautada por parâme-
tros bem definidos.
A positivação do direito à alimentação no artigo 6° da Constitui-
ção Federal de 1988, em 2010, pela Emenda Constitucional n° 64,
evidenciou sua essencialidade para a concretização de uma vida digna e
conferiu ao poder público o dever de sua prestação. Enquanto aos Po-
deres Legislativo e Executivo cabe a sua efetivação, o Poder Judiciário
foi responsabilizado por sua tutela jurisdicional, vez que sua disposição
em norma constitucional como direito fundamental social lhe conferiu
justiciabilidade.
Passados dez anos desse marco legal, nota-se que a sociedade bra-
sileira permanece carente de respeito, proteção e realização do direi-
to à alimentação. Nesse sentido, faz-se necessária a investigação de
instrumentos sólidos para a efetividade do direito à alimentação, para
a qual se pretendeu contribuir, mediante o desenvolvimento teórico
e aprofundamento do conhecimento científico desse direito funda-
mental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Ma-


lheiros, 2015.

BEURLEN, Alexandra. O direito humano à alimentação adequada


no Brasil. Curitiba: Jurua Editora, 2008.

CAVALHEIRO, Larissa D. B. C. Direito à alimentação: uma análise


das principais políticas públicas no combate a fome. Trabalho
de Conclusão de Curso – Centro Universitário Eurípides de Marília,
Marília, 2016. 

TOLEDO et al. Direitos fundamentais sociais e mínimo existencial na


realidade latino-americana – Brasil, Argentina, Colômbia e México.

688
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Direitos Fundamentais & Justiça, ano 13, n. 41, jul./dez., 2019,


p. 213-240.

TOLEDO, Cláudia. MÍNIMO EXISTENCIAL – A Construção de um


Conceito e seu Tratamento pela Jurisprudência Constitucional Bra-
sileira e Alemã. In: MIRANDA, Jorge et al. Hermenêutica, Jus-
tiça Constitucional e Direitos Fundamentais. Curitiba: Juruá,
2016, p. 821-834.

689
PANDEMIA COVID-19 E DIREITO
À VIDA – RESPOSTAS DISTINTAS
CONFORME O SISTEMA DE SAÚDE
DO ESTADO: ESTUDO COMPARADO
EM DIFERENTES REALIDADES
Ian Botelho de Abreu 135

INTRODUÇÃO

Este resumo apresenta resultados parciais de projeto de iniciação cien-


tífica BIC-UFJF 2020, de mesmo título, coordenado por Cláudia Toledo,
professora associada da Faculdade de Direito da UFJF. O projeto encon-
tra-se em sua fase inicial.
Diante da declaração de situação pandêmica pela Organização Mun-
dial de Saúde em março de 2020, diversas respostas e providências têm
sido adotadas por diferentes países, levando a resultados distintos na pro-
teção do direito à saúde e à vida de sua população.
A despeito da dificuldade de levantamento de produção científica so-
bre o tema, em virtude da eminente atualidade da pandemia (que segue
em curso no presente momento), pretende-se realizar pesquisa compara-
tiva da realidade de diferentes países afetados. Visa-se a identificar o nível
de sucesso de cada Estado na garantia dos direitos fundamentais à saúde e
à vida dos seus cidadãos.

135 Aluno do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista de iniciação
científica.

690
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Dessa forma, o projeto objetiva comparar as realidades de países do


continente americano (Brasil, Estados Unidos e México); do continente
europeu (Alemanha, Espanha, Itália, Inglaterra e Portugal); do continente
africano (África do Sul); e do continente asiático (China). A investigação
dará enfoque especialmente aos seguintes prismas: (i) sistema de saúde
nacionalmente adotado (público ou privado); (ii) medidas governamentais
tomadas no combate à pandemia; (iii) índices de contaminação e letalida-
de da população.
Conforme o cronograma de pesquisa, na presente fase estão sendo
levantados dados dos países selecionados no continente americano. Brasil
e México já foram analisados.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O marco teórico da pesquisa é o pensamento do jusfilósofo Robert


Alexy, especialmente a sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais (2008),
na qual se pautam os conceitos dos direitos fundamentais à saúde e à vida
que serão estudados. Embora o direito à vida seja um direito fundamental
individual, caracterizando-se, portanto, como direito a prestações estatais
negativas, todo direito fundamental possui ambas as dimensões negativa
e positiva. A distinção entre direitos a prestações negativas e a prestações
positivas reside no que imediata e diretamente é demandado do Estado,
isto é, sua abstenção ou atuação. Assim, os direitos fundamentais indivi-
duais exigem, imediatamente, a abstenção estatal. Diversamente, os di-
reitos fundamentais sociais, como direitos a prestações positivas estatais,
requerem, diretamente, a ação estatal para sua implementação.
No entanto, como esta se trata de pesquisa empírica, de caráter explo-
ratório e natureza qualitativa, a investigação não se centrará no desenvolvi-
mento teórico a partir de pesquisa bibliográfica, mas no levantamento de
dados descritivos da realidade, a serem pesquisados em sites oficiais de (i) orga-
nizações internacionais, (ii) órgãos institucionais de cada país, (iii) instituições pú-
blicas e privadas nacionais, bem como organizações não governamentais (ONGs).
Em virtude de seu caráter exploratório, a pesquisa busca levantar dados
sobre um problema que se apresenta como novo, como é o caso da pande-
mia, fenômeno de proporções inéditas em um mundo globalizado.

691
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Em face de sua natureza qualitativa, a pesquisa realizará a descrição dos


aspectos observados, buscando sua compreensão, explicação e, por conse-
guinte, o aprofundamento do conhecimento.
Após o levantamento dos dados empíricos referentes às realidades nacio-
nais pesquisadas e a análise dos resultados obtidos, serão extraídas conclusões
sobre qual tipo de sistema de saúde e quais medidas protetivas foram os mais
eficazes na garantia dos direitos fundamentais à saúde e à vida da população
afetada, proporcionando-se assim contribuição para a realidade brasileira.

METODOLOGIA

Como exposto acima, trata-se de pesquisa empírica, de caráter explo-


ratório e natureza qualitativa. Para o levantamento de informações sobre a
pandemia, fenômeno novo a ser explorado qualitativamente, serão inves-
tigados dados fornecidos em sites oficiais de:
a) Organizações internacionais, como OMS, ONU, OCDE, Banco
Mundial;
b) Órgãos institucionais de cada país pesquisado, como Ministérios, Se-
cretarias ou
Departamentos de Saúde;.
c) Instituições públicas e privadas nacionais, ONGs, como Conselho Na-
cional de
d) Justiça, Health System Tracker, Medical Care Organization.
Da análise dos resultados alcançados, serão indutivamente extraídas
conclusões acerca do sistema de saúde e das medidas protetivas estatais
mais eficientes na garantia dos direitos fundamentais à saúde e à vida.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Importante parâmetro comparativo da garantia do direito à vida du-


rante a pandemia COVID-19 é a funcionalidade dos sistemas de saúde.
O Brasil tem sistema público de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo relatório do Banco Mundial (2020), o SUS é comumente refe-
renciado como o maior sistema de saúde pública do mundo, gozando de
financiamento por impostos gerais e ofertando acesso universal e gratuito
aos seus beneficiários.

692
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MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Por outro lado, o sistema de saúde mexicano tem caráter misto, com-
preendendo esfera pública e privada. No setor privado, funcionam segura-
doras, clínicas e hospitais particulares. No âmbito público, estão presentes
instituições de seguridade social e instituições e programas que prestam
serviços à população sem seguridade social (DANTES et al., 2011). Con-
tudo, dados do Consejo Nacional de Evaluación de la Política de Desar-
rollo Social, CONEVAL (2020) indicam que cerca de 20,2 milhões de
mexicanos não contavam com acesso a serviços de saúde no ano de 2018.
Outro aspecto para a avaliação da garantia do direito fundamental à
vida em tempos de pandemia, são as medidas governamentais adotadas.
Encontra-se como aspecto comum ao Brasil e ao México: a flexibilização
de medidas restritivas, medidas de suporte financeiro a empresas e a gru-
pos de vulneráveis (IMF, 2020).
No Brasil, outras medidas emergenciais foram adotadas como: (i)
declaração de estado calamidade pública que permite que o governo não
cumpra os objetivos fiscais em 2020; (ii) deferimento de gastos adicionais
no valor de 6% do PIB, sendo 0,4% atribuído ao sistema de saúde; (iii)
realização pela União de transferências monetárias para estados e muni-
cípios; (iv) autorização do uso da telemedicina; (v) aquisição de leitos de
UTI e respiradores; (vi) aumento do número de médicos, por meio do
novo Programa Mais Médicos; (vii) construção de hospitais de campanha;
(viii) eliminação da alíquota fiscal sobre produtos essenciais no combate à
pandemia (OECD, 2020).
No México, medidas fiscais estão sendo implementadas para dimi-
nuir a burocracia na obtenção de equipamentos médicos. Também foram
realizadas chamadas para garantir a disponibilidade de testes, bem como
o recrutamento de profissionais de saúde. Outrossim, concretizaram-se
acordos com hospitais privados visando reduzir a pressão em hospitais pú-
blicos (OECD, 2020).
Apesar das medidas adotadas, os Estados brasileiro e mexicano so-
frem as consequências de políticas neoliberais e de austeridade adotadas.
No Brasil, a Emenda Constitucional nº 95/2016, denominada “Emenda
do Teto”, congelou os gastos da União em despesas primárias, ocasionan-
do notória redução nos investimento sociais e marcante perda financei-
ra no custeio da saúde pública. Os especialistas em direitos humanos da
ONU (2020) Juan Pablo Bohoslavsky e Philip Alston arguem o papel de

693
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

medidas de austeridade, como a Emenda do Teto, no enfraquecimento e


sobrecargarga de sistemas públicos de saúde.
De forma semelhante, o México enfrenta problemas com seu siste-
ma de saúde excludente, que não garante acesso a serviços de saúde para
parcela expressiva da população. Segundo a OMS (2016), no período de
2000 a 2013, os gastos públicos em saúde no país variaram de 2,6% a
3,3% do PIB, inferiores ao 6% recomendado pela Organização Paname-
ricana de Saúde (OPAS).
Ademais, a reação dos presidentes do Brasil e México que minimiza-
ram o coronavírus e enfatizaram o funcionamento da economia em detri-
mento de orientações sanitárias (STOTT, 2020) demonstra o que Nunes
(2020) chamou de neoliberalismo epidemiológico, pelo qual a economia,
no contexto neoliberal, não poderia resistir à suspensão da circulação de
pessoas, mesmo que com isso se provoque -o adoecimento e morte da
população.
Em última análise, segundo dados da OPAS do dia 18/10/2020, o
Brasil, encontra-se na terceira posição mundial no número de contami-
nados pelo novo coronavírus (5.200.300 casos), e em segundo lugar no
número de mortes (153.214 mortes). Já os mexicanos ocupam a décima
colocação em casos de contaminação (841.661 casos) e a quarta colocação
no número de mortes (85.704 mortes) (PAHO, 2020).

CONCLUSÕES

Por estar o estudo em fase inicial, somente são possíveis conclusões


parciais. A análise dos dados relativos ao Brasil e ao México demonstra
a marcante influência do modelo neoliberal de Estado no insucesso da
contenção da pandemia. As consequências da priorização da austeridade
fiscal em prejuízo da expansão de gastos sociais e do equilíbrio econômico
em detrimento do direito à vida ficam evidenciadas nos elevados índices
de contaminação e óbitos nos respectivos países.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de


Virgílilo Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

694
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

CONEVAL. La política social en el contexto de la pandemia por el


virus SARS-CoV-2 (COVID-19) en México. 2020. Disponível
em: <https://www.coneval.org.mx/Evaluacion/IEPSM/Documents/
Politica_Social_COVID-19.pdf>. Acesso em: 21 out. 2020.

OECD. Country Policy Tracker. 2020. Disponível em: <https://www.


oecd.org/coronavirus/country-policy-tracker/>. Acesso em: 22 out.
2020.

PAHO. Cumulative confirmed and probable COVID-19 cases


reported by Countries and Territories in the Region of the
Americas. Disponível em: <https://ais.paho.org/phip/viz/COVID-
19Table.asp>. Acesso em: 18 out. 2020.

WORLD BANK. COVID-19 no Brasil: impactos e respostas de políti-


cas públicas, 2020. Disponível em: <http://documents1.worldbank.
org/curated/en/106541594362022984/pdf/COVID-19-in-Brazil-
-Impacts-and-Policy-Responses.pdf.> Acesso em: 20 out. 2020.

695
DIREITOS HUMANOS DE DEFESA E A
LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
NO BRASIL
Gabriela Almeida Marcon Nora136
Denise Teresinha Almeida Marcon137

A terminologia dos Direitos Humanos diz respeito às garantias uni-


versalmente aceitas na ordem internacional, mas que são matéria central
no ordenamento jurídico pátrio, eis que o conteúdo jurídico dos direitos
fundamentais positivados na Constituição da República de 1988 não se
afasta daquelas garantias, objetivando, no âmago, a proteção da dignidade
humana (SARLET, 2004; BARRETO, 2012).
O conceito de dignidade não encontra definição fechada, embora
possa ser caracterizada enquanto qualidade intrínseca e distintiva de cada
pessoa, que impede a discriminação odiosa, independentemente de gê-
nero, cor, origem etc., bem como o tratamento degradante, nisto com-
preendidas as condições hígidas de sobrevivência (RAMOS, 2014).
A estrutura normativa dos Direitos Humanos é composta, essencial-
mente, de princípios fundamentais, dotados de normatividade aberta, isto
é, são mandados de otimização aplicados por ponderação de interesses,
não havendo falar em subsunção a um preceito determinado.
Nesta senda, pode-se classificar os direitos humanos em negativos (ou
de defesa) e positivos (ou prestacionais). No primeiro caso, trata-se de um

136 Mestre. Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.


137 Mestranda. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

696
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

conjunto de garantias contra arbítrios estatais, resguardando os indivíduos


de desmandos e intervenções em sua liberdade.
Quanto aos direitos humanos prestacionais, situam-se no plano da
promoção da igualdade, dado que a dignidade humana pressupõe o trata-
mento equivalente a todos os indivíduos, de modo que lhes cabe a prer-
rogativa de demandar ao Estado prestações positivas que concretizem di-
reitos essenciais à higidez de suas condições de vida, tais como saúde e
educação.
A intimidade e privacidade são historicamente, desde a Declaração
Universal de Direitos Humanos em 1948, consideradas direitos humanos
de defesa, isto é, negativos, de liberdade em face do Estado. Do artigo 12
da mencionada Declaração Universal, colhe-se: “Ninguém será sujeito
a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua
correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem
direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” (UNITED
NATIONS, 1948).
O uso dos meios de comunicação na era da informação é exponen-
cial. Bilhões de pessoas estão atualmente conectadas à internet, fornecen-
do dados diariamente para acessar conteúdos diversos. A proteção de da-
dos pessoais é corolário da preservação da intimidade e da privacidade dos
indivíduos e, por esta razão, deveria ser considerada um direito humano
de defesa tal qual a privacidade.
É necessário compreender os dados de cada indivíduo como a este
pertencentes, de sorte que o uso por terceiros não possa ser realizado sem
seu consentimento, uma vez que o operador de dados possui apenas sua
custódia.
A Carta dos Direitos Fundamentais da UE estabelece que todos os
cidadãos da UE têm direito à proteção dos seus dados pessoais e, com
este espírito, o Regulamento Europeu de Proteção de Dados (GDPR)
ou 2016/679 – aprovado pelo Parlamento Europeu e Conselho, em 27
de abril de 2016, com vigência em 2018 – , relativo ao tratamento e livre
circulação de dados pessoais, intui reforçar os direitos fundamentais dos
cidadãos na era digital. Consentimento é a base para que os dados pos-
sam ser tratados por terceiro. O GDPR não se aplica ao tratamento de
dados pessoais de pessoas falecidas ou de pessoas coletivas (EUROPEAN
UNION, 2016).

697
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Inspirado neste regramento também com ideal de resguardo ao indi-


víduo enquanto detentor de seus próprios dados e digno da proteção de
sua intimidade e privacidade, com abrangência extraterritorial, o Brasil
publicou a Lei n. 13.709, de 14 de agosto 2018 (LGPD), com vacatio legis
de vinte e quatro meses para a maior parte do texto (BRASIL, 2018).
A LGPD considera dado pessoal a informação relacionada a pessoa
natural identificada ou identificável, sendo titular, para os efeitos da lei,
consequentemente, aquele a quem se referem os dados pessoais que são
objeto de tratamento. Controlador, na LGPD, é a pessoa natural ou jurí-
dica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referen-
tes ao tratamento de dados pessoais (BRASIL, 2018).
O reconhecimento da proteção de dados enquanto corolário da pri-
vacidade, intimidade, liberdade e, consequentemente, dos direitos huma-
nos vem explicito no texto da LGPD, basta verificar o texto do artigo 2º e
incisos, com destaque para o I, II, III, IV e VII, colaciona-se:

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fun-


damentos:

I - o respeito à privacidade;

II - a autodeterminação informativa;

III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e


de opinião;

IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;

V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;

VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumi-


dor; e

VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personali-


dade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
(BRASIL, 2018)

Nessa senda, o artigo 17 da LGPD assegura a toda pessoa natural a


titularidade de seus dados pessoais e os direitos fundamentais de liberdade,
de intimidade e de privacidade (BRASIL, 2018).

698
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

A conexão entre as liberdades individuais – contexto em que se situa


a vida privada e a proteção dos dados pessoais – e a democracia é inegável.
É importante que o indivíduo possa livremente expressar seu pensamento
e suas idiossincrasias. A democracia floresce em ambientes nos quais o
Estado não exerce coerção sobre as pessoas e suas ideias.
Acesso a dados pessoais e tratamento destes dados confere poder
ao controlador. Por razões de saúde e segurança, entre outras questões,
os cidadãos conscientemente fornecem seus dados ao Governo, alme-
jando obter direitos prestacionais. O uso destes dados, de todo modo,
deve ser limitado e proporcional à necessidade envolvida na concreti-
zação destas prestações aspiradas, sendo vedada a interferência lesiva
do Estado na vida dos indivíduos por intermédio da manipulação de
suas informações.
É necessário reconhecer a proteção dos dados pessoais enquanto direi-
to humano de defesa dos indivíduos, decorrente da tutela de sua persona-
lidade, privacidade, intimidade e liberdade de expressão do pensamento.

REFERÊNCIAS

BARRETTO, Rafael. Direitos Humanos. 2ª Ed. Salvador: Editora


JusPodvim, 2012.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.709, de 14 de agosto


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pealing Directive 95/46/EC (General Data Protection Regulation).
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Human Rights. Paris. 1948. Disponível em: <https://www.un.org/
en/universal-declaration-human-rights/>. Acesso em: 10 set. 2020.

700
EFEITOS DE MEMÓRIA E EFEITOS-
SENTIDO DE VIOLÊNCIA FÍSICA
CONTRA EMPREGADA DOMÉSTICA
NO DIREITO TRABALHISTA E
CRIMINAL DA LEI MARIA DA PENHA
Nayane de Macedo138
Maria da Conceição Fonseca Silva139
Joseane Bittencourt140
Jorge Viana Santos141

INTRODUÇÃO

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que existem


67 milhões de trabalhadores domésticos no mundo, sendo 80% mulheres.
No dia 25 de Outubro de 2020, o Programa Fantástico, da TV Globo,
divulgou vídeo do circuito de segurança da embaixada, em Brasília, que
flagrou a embaixadora da Filipinas no Brasil, Marichu Mauro, agredindo

138 Doutoranda e Mestre em Linguística. Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso (GPA-


Dis). Laboratório de Pesquisa em Análise de Discurso (LAPADis). UESB.
139 Doutora em Linguística. Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso (GPADis). Laborató-
rio de Pesquisa em Análise de Discurso (LAPADis). UESB. CNPq.
140 Doutora em Linguística. Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso (GPADis). Laborató-
rio de Pesquisa em Análise de Discurso (LAPADis). UESB. CAPES.
141 Doutor em Linguística. Grupo de Pesquisa em Estudos da Língua(gem) (GPEL). UESB.
CAPES.

701
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

fisicamente, no interior da residência diplomática, a sua empregada do-


méstica, também filipina, que, em decorrência da denúncia, foi autoriza-
da pelo governo Filipino a retornar ao país, dia 21 do mesmo mês. Por ter
imunidade diplomática, o governo filipino determinou que a embaixado-
ra retornasse ao país, onde será conduzida a investigação sobre o caso, já
que, pelo acordo de Viena, embaixadores são processados e julgados pelo
país de origem. Segundo a OIT, o Brasil é o país com o maior número de
empregados domésticos do mundo. Apesar da repercussão, o caso de vio-
lência contra a mulher filipina que ocupava a função social de empregada
doméstica deveria ter sido aproveitado para chamar a atenção da situação
de vulnerabilidade dramática e perversa de quem ocupa a função social de
trabalho doméstico no Brasil, no que tange à dignidade da pessoa humana
que engloba proteção da integridade física e psíquica. Pouco foi abordado
à respeito da proteção criminal, em face: i) da violência contra o traba-
lhador, considerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948; os Pactos de 1966, sobre Direitos Civis e Políticos e Direitos Eco-
nômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Americana de Direitos Hu-
manos (1969); a Convenção 189 aprovada pela Organização Internacional
do Trabalho (OIT), em 2011; ii) da violência doméstica e familiar contra
a mulher em conformidade com a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei
Maria da Penha (LMP), cuja emergência, no nosso ordenamento jurídico
brasileiro, ocorreu devido ao questionamento feito pelo Direito Interna-
cional “no que diz respeito aos direitos humanos da mulher e [...] em
decorrência da condenação do Brasil por atraso injustificado e tramitação
negligente” (FONSECA-SILVA e SILVA, 2014, p. 114).
Segundo a Lei Maria da Penha, “Considera-se violência doméstica e
familiar contra a mulher, qualquer ação ou omissão, que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimo-
nial” (Lei 11.340/2006, art. 5º). Os campos de abrangência são: i) a unida-
de familiar; ii) qualquer relação íntima de afeto; e iii) a unidade doméstica,
que é “o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vín-
culo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas” (Lei 11.340/2006,
art.5ª, inciso I), incluindo-se nesse rol as empregadas domésticas. Ainda, a
Lei Complementar nº 150 de 2015 estabelece que o empregado domésti-
co pode solicitar a rescisão do contrato de trabalho por justa causa quando
o empregador “[...] praticar qualquer das formas de violência doméstica

702
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

ou familiar contra mulheres de que trata o art. 5º da Lei no 11.340, de 7 de


agosto de 2006 (LMP)” (LC 150 de 2015, art. 27, parágrafo único, inciso
VII). Tal previsão na lei dos domésticos, combinado com o que dispõe a
lei de 2006 a respeito da unidade doméstica, indica que a mulher empre-
gada doméstica pode ser vítima de violência doméstica no ambiente de
trabalho doméstico. Resultados parciais de pesquisa, que temos desenvol-
vido, no entanto, indicam silenciamento sobre essa questão na sociedade
brasileira, pois os casos de violência contra empregada doméstica não têm
sido tratados como violência doméstica, mas somente como dano moral
na esfera trabalhista.
Isso posto, neste trabalho, analisamos, sequências discursivas de um
processo trabalhista de dano moral de autoria de empregada doméstica
contra empregador(a), para mostrar o funcionamento do efeito de memó-
ria e de efeitos-sentido de violência contra empregada doméstica no âm-
bito jurídico trabalhista, mas que tem efeito no criminal, especificamente,
na Lei Maria da Penha, por se caracterizar como violência doméstica con-
tra empregada doméstica.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Na análise, mobilizamos princípios e procedimentos da Análise de


Discurso (AD), em cujo escopo teórico, há uma exterioridade na língua
que não está fora, mas dentro da própria língua. Esse fora que está dentro
é o discurso, definido como efeito-sentido produzido entre posições-
-sujeito numa estrutura social determinada (PÊCHEUX,2006 [1983];
ORLANDI, 2005).
Pêcheux (2006 [1983]) questiona a aparente univocidade dos discur-
sos tratando dos espaços discursivos logicamente estabilizados e dos
não logicamente estabilizados. Mostra que todo enunciado é suscetí-
vel de tornar-se outro e que mesmo em espaços discursivos como o ju-
rídico, onde existe uma aparente homogeneidade lógica, podem ocorrer
deslizamentos de sentido.
Dessa forma, neste estudo, tratamos o jurídico como um espaço dis-
cursivo “logicamente não estabilizado”, pois tratamos de um mesmo caso
de agressão física sob a perspectiva de diferentes posições-sujeito: traba-
lhista e criminal especial da LMP.

703
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

METODOLOGIA

A pesquisa que resultou este trabalho é de abordagem qualitativa.


Quanto aos objetivos, são de natureza descritiva/interpretativa. E quanto
aos procedimentos, análise discursiva de materialidades significantes de
processos trabalhistas.
O arquivo analítico é composto de processos trabalhistas da Justiça do
Trabalho, em que as vítimas de agressões ocupam a posição social de em-
pregadas domésticas. Para este trabalho, selecionamos um processo codifi-
cado no corpus como P.06 e recortamos duas sequências discursivas (SDs)
de petição inicial, mais precisamente do item denominado “dos fatos”.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com base em postulados da Análise de Discurso, analisamos duas


SDs extraídas de petições iniciais de um processo trabalhista, a seguir:

SD1: A Reclamante reclamou à Reclamada sobre as atitudes do


seu filho, já que o mesmo estava lhe agredindo e cuspindo várias
vezes (P.06, SD2, p. 2).

SD2: Diante da situação, as partes começaram a se desentender e


passaram a ter problema de relacionamento no dia 01/01/2015. No
dia 09/01/2015 a discussão entre as partes ficou acalorada e para
surpresa da Reclamante, que estava em viagem com a família e
amigos da Reclamada, esta lhe agrediu verbal e fisicamente, che-
gando a lhe bater contra a parede [...] (P.06, SD5, p. 2).

As SDs 1 e 2 mostram o funcionamento discursivo da violência contra


pessoa que ocupa a posição social empregada doméstica e que se identifica
com a posição-sujeito vítima de agressões praticadas por pessoas que ocu-
pam a posição social de empregador(a) e familiares d(a) empregador(a).
De um lado, as SDs 1 e 2 produzem um efeito de memória da “Casa
Grande e Senzala”, de agressões praticadas contra as escravas pelas suas
sinhás, de estruturas hierárquicas oriundas do sistema escravocrata, de
violação da dignidade humana, reforçando a vulnerabilidade das mulheres
que precisam, ainda, no século XXI, ocupar a função social de empregada

704
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

doméstica, cujo exercício está mais sujeito às regras da unidade doméstica,


que é privada, do que às normas públicas cogentes.
De outro lado, as SDs 1 e 2 marcam uma atualidade política, jurí-
dica e social em que os direitos fundamentais necessários à afirmação da
dignidade humana são expressos positivamente no ordenamento jurídico
interno e reconhecidos pelo Estado Democrático de Direito brasileiro.
Neste sentido, da posição-sujeito do Direito Trabalhista, o efeito-sentido
de agressão física no trabalho caracteriza dano moral que justifica o pro-
cesso trabalhista impetrado pela vítima da agressão no trabalho. Mas da
posição-sujeito do Direito criminal na LMP, o efeito-sentido de agressão
física, na unidade doméstica, contra a empregada doméstica sustentaria
uma denúncia criminal de violência doméstica contra o(a) empregador(a)
na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), ou na delegacia
geral, em cidades em que não têm Deam, pela vulnerabilidade reconhe-
cida em razão do gênero e da unidade onde as agressões foram praticadas,
independentemente de quem ocupa a posição-sujeito autor das agressões
na unidade doméstica: mulher e/ou homem.

CONCLUSÕES

Nas materialidades significantes das SD1 e SD2, ocorre o encontro


de uma memória, marcada pelo efeito histórico-discursivo de violência
identificada no passado escravista e se mantém no “pós-libertação”; e de
uma atualidade em que as agressões contra a mulher na unidade domésti-
ca violam os direitos humanos reconhecidos como direitos fundamentais
que protegem a dignidade humana e estão positivados no ordenamento
jurídico interno e reconhecidos pelo Estado Democrático de Direito bra-
sileiro. Nesse movimento discursivo de memória e atualidade, no entanto,
o “tronco”, ainda, não deixou de existir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Lei das


Empregadas Domésticas. Brasília, DF, jun. 2015.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha.


Brasília, DF, ago. 2006.

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In: Rita Maria Radl-Philipp; Maria da Conceição Fonseca-Silva.
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Compostela; Servizo de Publicacións e Intercambios, 2014, v. 1, p.
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ORLANDI, Eni P. Michel Pêcheux e a Análise de Discurso (Michel Pê-


cheux et l’Analyse de Discours).Estudos da Língua(gem), [S.l.],
v. 1, n. 1, p. 9-13, jun. 2005. ISSN 1982-0534. Disponível em:
<http://periodicos2.uesb.br/index.php/estudosdalinguagem/article/
view/973>. Acesso em: 18 jun. 2020. doi: https://doi.org/10.22481/
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PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento? Tradu-


ção de Eni P. Orlandi. São Paulo: Pontes, 2006. Edição original:
1983.

706
O DANO MORAL ÀS FAMÍLIAS
VÍTIMAS DE DESAPROPRIAÇÃO: UMA
ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DO
DIREITO À CIDADE
Chimênia Corrêa Pinheiro142
Laércio Lima Vulcão143
Prof. Dra. Luciana Albuquerque Lima144

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa discutir se é cabível a indenização por dano


moral às famílias que sofrem desapropriações promovidos pelo Poder
Executivo, no âmbito de intervenções ou projetos de ordem urbanística,
por meio do instituto da desapropriação, uma vez que as indenizações
costumeiramente recebidas em tais situações são de cunho exclusivamen-
te patrimonial, muitas vezes se referindo tão somente aos materiais das
construções edificadas nos imóveis, considerando que majoritariamente
as intervenções ocorrem em áreas de irregularidade fundiária, onde os
moradores não são os proprietários dos imóveis que ocupam. Assim, todo
um complexo de outros direitos violados de natureza extrapatrimonial
acabam restando sem compensação, ganhando relevância nesse contexto
as violações referentes ao direito à cidade e ao meio ambiente urbano.

142 Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA. Belém – PA.


143 Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA. Belém – PA.
144 Professora, doutora, Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA. Belém – PA.

707
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

Neste contexto, questiona-se: é cabível a indenização por dano moral


às famílias que sofrem despejos forçados promovidos pelo Poder Executi-
vo, por meio do instituto da desapropriação, considerando todas as viola-
ções de direito envolvidas, em especial às relacionadas ao direito à cidade?

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A cidade representa o marco do desenvolvimento social e humano


em todas as suas vertentes, uma vez que o contexto no qual solidifica seus
pilares deve coexistir de maneira harmoniosa na relação dialógica entre os
sujeitos. Contudo, vive-se um movimento inverso, à medida que o tex-
to social se redefini diante da forma, função e estruturas da cidade, pois
o processo de afastamento social, experenciado em uma sociedade dita
evoluída, reflete a violação do direito básico à moradia. Por isso, segundo
Henri Lefebvre (2001), o direito à cidade deve assegurar a não exclusão da
sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida urbana, posto que as
necessidades sociais urgem e a cidade está morta, porque negar o direito
do mínimo existencial à parcela significativa da população vulnerável eco-
nomicamente, ainda que o "urbano" insista em resistir na contemporanei-
dade estratificada.
Para este filósofo francês, o direito à cidade deve ser considerado e
interpretado como um aspecto em hierarquia superior de outras garantias
fundamentais, como à liberdade e a individualização. Há importância de
socializar o habitat e o habitar. E é por isso que se faz necessária a discussão
do fenômeno da desapropriação e o direito à cidade.
Vainsencher(2005), aduz que o instituto da desapropriação, é um
procedimento estatal administrativo, que através do Poder Público, me-
diante os requisitos de necessidade ou utilidade pública e interesse social,
impõem a um particular a perda do bem imóvel. Se fala em uma justa
indenização, em razão da intervenção do Estado. Logo, a posse mansa e
pacífica curva-se ao interesse público. Todavia, não se fala em uma inde-
nização decorrente de danos morais.
Os danos morais incidem sobre os direitos da personalidade, segundo
a doutrina brasileira, e, em especial, Tartuce (2018) , e isso, factualmente,
garante que a reparação se corporifique nas esferas sociais como um di-
reito capaz de atenuar o esfacelamento das memórias afetivas das famílias

708
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

envolvidas nos processos de desapropriações urbanas. Ainda que não seja


possível mensurar um valor para a dor ou o sofrimento ocasionado pela
ação do Poder Executivo, de acordo com Farias, Nelson e Netto (2018),
há a possibilidade de reduzir as consequências imateriais decorrentes dessa
ação, posto que a reparação não pode ser confundida com ressarcimento.
Para tanto, o Enunciado nº 445 V Jornada do direito Civil ratifica que
“o dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de
sentimentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento”. É necessá-
ria a análise concreta e dinâmica dos interesses contrapostos, para se aferir
onde há interesse digno de proteção. Assim, a Constituição assegura que a
personalidade humana ultrapasse a esfera patrimonial, pois é uma dimensão
existencial, sendo a dignidade um valor fonte que irradia em todo o ordena-
mento jurídico, por isso ela deve ser vista como um referencial tanto para o
Poder Legislativo, como para as ações do Poder Executivo.
Nesse contexto, o STJ elucida “sempre que demonstrada a ocorrência
de ofensa injusta à dignidade da pessoa humana, dispensada a comprovação
de dor e sofrimento para a configuração do dano moral”. Por isso, a remo-
ção estatal de um número expressivo de famílias residentes em áreas urbanas
vulneráveis exige a tutela jurisdicional, haja vista que além de envolver um
congelamento urbanístico, conforme Mariana Medeiros (2013), também
viola direitos fundamentais dos cidadãos: morar e construir.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e documental de


abordagem qualitativa, com o objetivo de analisar, inicialmente, como são
realizadas as indenizações de cunho patrimonial, além da relevância do
conceito de dano moral, a fim de atenuar o esfacelamento das memórias
afetivas das famílias envolvidas nos processos de desapropriações no meio
ambiente urbano.

RESULTADOS ALCANÇADOS

Se o acesso à moradia não constitui o mínimo existencial que deveria


ser garantido pelo Estado, como não assegurar aos cidadãos, sobretudo em
condições de vulnerabilidade social, o direito de morar, uma vez que as

709
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

mazelas econômicas submetem esses indivíduos a uma situação de pobre-


za extrema. Historicamente, o fosso que separa ricos e pobres no Brasil se
ramifica, evidenciando práticas influenciadoras de marginalização desde o
processo de colonização – com a expulsão dos índios do seu território de
origem –, perpassando pela deformação das relações de favelização – ini-
ciada com a promulgação da Lei Áurea que “liberta” negros escravos sem
condições de moradia – até as ocupações “modernas” e preocupantes,
para as gestões públicas, que desequilibram o cenário falacioso de isono-
mia social e, ainda, refletem os processos históricos de violação dos direi-
tos fundamentais preconizados com a “descoberta” do Brasil e a aparente
finalização de uma sociedade escravocrata.
Factualmente, a relação entre território e territorialidade há muito
envolve os cidadãos brasileiros e sustenta questionamentos que direciona-
rão este trabalho, haja vista que há necessidade de se desconstruir o enten-
dimento pelo qual uma ação estatal automaticamente deve ser dotada de
legalidade (HARVEY, 2012).
Por isso, faz-se imprescindível ressignificar o processo de indeniza-
ção, atribuindo um caráter humanizador que discorre acerca da justa in-
denização de cunho afetivo, e não somente material, a fim de conceber à
territorialidade do indivíduo tutela jurisdicional com o reconhecimento
da indenização de cunho moral, para, assim, atenuar o vazio existencial
(LEFEBVRE, 2001).
Assim, projeta-se possibilidade de uma reflexão acerca da aplicabili-
dade de dano moral, que não agrega, segundo Schreiber (2013), dor, so-
frimento e humilhação. O texto constitucional elucida de forma expressa
a proteção de prerrogativas que ultrapassam a esfera individual. Logo, a
tutela da Moralidade Administrativa reflete o interesse da coletividade ou
de uma sociedade, e, sua violação é expressamente vedada. Nesse contex-
to, para prevenir ou remediar a lesão de tais interesses, a ordem jurídica
decorrente de uma ação do Estado, a qual tem caráter lesivo significante
contra o patrimônio dos removidos, apresenta um arcabouço legal brasi-
leiro, remédios específicos, como a ação de reparação de danos.
Para Schreiber (2013), há inúmeras discussões que ainda são contro-
versas nos Tribunais Superiores, o que dificulta assim, o consenso quanto
a reparabilidade dos danos sofridos que ultrapassam a mera discussão de
direitos individuais, o que afeta, assim, a dinâmica social contemporânea,

710
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

arraigada a uma concepção ultrapassada, sobretudo em relação a mudança


de consciência, segundo José Nalini (2011), afinal esse é um dano irrever-
sível, traumático, de difícil reparação que desagua sobre os rios da contex-
to amazônico, especificamente na região metropolitana de Belém.

CONCLUSÕES

Portanto, o direito à moradia não se constitui apenas no aspecto fí-


sico, formal, mas se corporifica na territorialidade inerente ao sujeito em
relação ao viver, independentemente do lugar, gozando de segurança, paz
e dignidade. Ressignificar a mentalidade jurídica é possibilitar o “direito
à cidade” aos “excluídos da cidade”, corporificado pelo complexo de re-
lações desenvolvidas no ambiente urbano, que habitam. Nesse contexto,
torna-se relevante reconhecer que a ação estatal viola a premissa de morar
e o “direito à cidade” em razão de sua ínsita relação com o princípio da
dignidade da pessoa humana, o qual se configura como direito fundamen-
tal, ensejando a possibilidade jurídica de reparação por dano moral.
Dado o exposto, é possível vislumbrar a necessidade de se analisar em
um caso concreto a possibilidade de legitimidade à indenização por dano
moral às famílias que sofrem desapropriações promovidas pelo Poder Exe-
cutivo, no contexto de intervenções urbanísticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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to Braga. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 5. ed.
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SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. rev. e


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Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/13070/da-
no-moral-em-sede-de-desapropriacao-ou-um-confisco-sentimen-
tal>. Acesso em: 01 set. 2020.

712
LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
E A PROTEÇÃO AOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE
MASSIFICAÇÃO DE DADOS
Marlene Aparecida Alves Pedrosa145

INTRODUÇÃO

Este estudo objetiva verificar, com base na doutrina, legislação e ju-


risprudências se a proteção trazida pela LGPD tem sido suficiente para
resguardar o direito fundamental à privacidade em tempos de massifica-
ção dos dados e evolução tecnológica.
O interesse pelo tema surgiu, pois, não se pode negar que a Internet,
propiciou a aproximação virtual dos indivíduos, alterando substancial-
mente a forma como as pessoas (naturais e jurídicas) se relacionam. No
entanto, pela perspectiva jurídica – notadamente, no que tange à proteção
de dados pessoais em escala mundial, percebe-se que esta evolução tecno-
lógica, não veio acompanhada da respectiva evolução jurídica que permita
identificar e punir de forma adequada aqueles que atentam contra a honra,
privacidade e dignidade de outrem.
O conjunto de direitos fundamentais em determinado momento
entrou em conflito. O mesmo ocorreu com o direito à privacidade e à
informação; eles também entraram em conflito. No entanto, existe toda
uma dogmática de interpretação e ponderação desse conflito. Assim, é

145 Graduanda em direito, Centro universitário UNA Belo Horizonte, Minas Gerais.

713
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

bom conhecer o que a LGPD não conseguiu trazer para racionalizar esse
problema, pois, mesmo a lei não tendo disciplinado algo em específico,
existe uma dogmática constitucional, civil e penal que pode, complemen-
tarmente, ser empregada.
Entende-se que as novas tecnologias transformaram as relações so-
ciais e, assim como já ocorre em outras áreas da ciência, o Direito precisa
examiná-las com o objetivo de assegurar o seu desenvolvimento (espe-
cialmente econômico) sem violar as garantias individuais e coletivas dos
cidadãos.
Assim, busca-se demonstrar que toda evolução econômica apenas se
justifica se estiver afinada com os axiomas mais expressivos do sentimento
jurídico atual e promoção e proteção da pessoa, seus valores e direitos
essenciais, no qual se inclui, inafastavelmente, a tutela dos dados pessoais.
O estudo se mostra relevante, pois, seja qual for a forma encontrada
para se alcançar a satisfatória regulamentação sobre os impactos que a so-
ciedade da informação proporciona no seio das relações que envolvem os
indivíduos, é pacífico que esta é uma tarefa que ainda requer ampla con-
tribuição da doutrina, além de diálogo entre os ordenamentos dos mais
diversos países, a fim de que seja possível se chegar a um ambiente norma-
tivo harmônico e capaz de atuar de forma conjunta e eficaz.

FUNDAMENTAÇÃOTEÓRICA

A LGPD ingressa tardiamente no ordenamento pátrio, porque so-


mente após mais de quinze anos da criação da RIPD, talvez porque o
Brasil integra somente como país observador. Entretanto, a LGPD teve
sua tramitação relativamente rápida no Poder Legislativo nacional, ingres-
sando no final de maio de 2018 e sendo sancionada em agosto do mesmo
ano. A rapidez dessa tramitação deveu-se aos ataques cibernéticos ocorri-
dos recentemente em diversas redes privadas e públicas, especialmente em
anos anteriores.
A finalidade da LGPD é a tutela da privacidade, pois neste contex-
to dominado pelas tecnologias informativas os riscos de invasão da esfe-
ra particular do indivíduo se acentuam, tornando a esfera da privacidade
mais vulnerável a invasões indevidas e injustificadas.

714
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Sobre a abrangência do direito à proteção de dados pessoais, apresen-


tam-se as seguintes condições:

[...] (a) o direito ao acesso e ao conhecimento dos dados pessoais


existentes em registros (bancos de dados) públicos ou privados; (b)
o direito ao não conhecimento, tratamento e utilização e difusão
de determinados dados pessoais pelo Estado ou por terceiros, aqui
incluído um direito de sigilo quanto aos dados pessoais; (c) o di-
reito ao conhecimento da identidade dos responsáveis pela coleta,
armazenamento, tratamento e utilização dos dados; (d) o direito ao
conhecimento da finalidade da coleta e da eventual utilização dos
dados; (e) o direito à retificação e, a depender do caso, à exclusão
de dados pessoais armazenados em bancos de dados (SARLET;
MARINONI; MITIDIERO, 2017, p.473-474).

Questão importante é a delimitação da titularidade do direito à pro-


teção de dados pessoais. Parece não haver dúvidas em relação à condição
da pessoa natural como destinatária imediata desta modalidade de tutela.
Porém, não são estes os únicos merecedores de proteção em relação aos
seus dados, pois, como bem explana Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2017),
as pessoas naturais (e inclusive os entes despersonalizados) também são
merecedores de atuarem como destinatárias das normas sobre a adequada
gestão de dados.
Quanto à aplicação desta Lei, se prevê que esta é aplicável em qual-
quer operação em que os dados pessoais sejam tratados por pessoa natural
ou jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio,
país de sua sede, ou país em que os dados estejam localizados. Entretanto,
tal aplicação observa o aspecto da territorialidade quando alcança somen-
te: 1) as operações efetuadas no território nacional (critério objetivo); 2)
quando a operação a ser tratada for realizada fora do território nacional,
mas os dados sejam de pessoas que estão no território nacional (critério
subjetivo); ou 3) independentemente do local em que esses dados serão
tratados, a coleta destes deve ter ocorrido em território nacional (critério
objetivo) (MÈLO, 2019).
Faz necessário observar que quando a Lei estabelece que “conside-
ram-se coletados no território nacional os dados pessoais cujo titular nele

715
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

se encontre no momento da coleta”146 (BRASIL, 2018), o aspecto da lo-


calização do indivíduo, mediantes os protocolos de Internet, conhecidos
como a sigla IP147, é um referencial necessário para se aferir se houve ou
não essa violação dos direitos tutelados pela LGPD.
Em uma sociedade na qual as informações se tornam a riqueza mais
importante, a tutela da privacidade com base nos dados pessoais que tran-
sitam na Internet contribui decisivamente para que os poderes alcancem
equilíbrio. Poder que migrou da mão do soberano e constitucionalmente
foi sendo atribuído ao povo. Por isso, o fim da privacidade não represen-
taria somente um risco para as liberdades individuais, seria efetivamente
conduzir ao fim da democracia (RODOTÀ, 2008).
A LGPD buscou estabelecer um sistema de proteção constituído por
representantes do Estado e da sociedade civil. Entretanto, a efetividade
dessa proteção vai depender do quanto o indivíduo esteja informado de
que instrumentos dispõem para que sua privacidade não seja violada sem
que saiba, por meio das diversas interfaces tecnológicas que o atual mundo
informatizado oferece para o consumo de uma maneira geral e a como-
didade.
Assim, essa proteção prevista na Lei visa à proteção da privacidade
que é direito da personalidade. Nesse âmbito de proteção, a dignidade da
pessoa é o princípio de valor absoluto, conforme argumentado por Ale-
xy (2008) ao elaborar as equações para solução da colisão de princípios.
Chega a ser afirmado por Rodotà (2008) que a proteção de dados não
constitui somente um direito fundamental entre outros: é o mais expres-
sivo de condição humana contemporânea, e que essa proteção pode ser
compreendida como a junção de direitos que fundamentam a cidadania
do novo milênio.
No que tange à eficácia territorial, como expõe Mèlo (2019), a lei se
aplica a operações de tratamento que acontecem no território brasileiro,
estendendo-se a operações de tratamento que: acontecem fora do país,

146 § 1º do art. 3º da Lei 13.709/2018.


147 (...) é o principal protocolo de comunicação da Internet. É o responsável por endereçar
e encaminhar os pacotes que trafegam pela rede mundial de computadores. Pacotes são
os blocos de informações enviados na Internet e podem ser considerados como as cartas
enviadas pelo serviço de correios. Informação disponível em: <https://www.techtudo.com.
br/artigos/noticia/2012/05/o-que-e-ip.html>. Acesso em: 10 out. 2020.

716
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

mas que os dados foram coletados no Brasil; se os dados se relacionarem a


pessoas localizadas no território brasileiro; e se os dados pessoais tratados
tiverem sido coletados no Brasil.

METODOLOGIA

Com vistas a alcançar os objetivos propostos nesta monografia foi em-


pregada a pesquisa teórico-dogmática, tendo em vista que foi realizada
uma revisão de literatura em doutrinas, legislações e jurisprudências com
o intuito de responder ao problema apresentado com vistas a encontrar
uma solução para mitigar o conflito que se formou em torno do direito à
privacidade e o direito à informação.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Sabe-se que a LGPD ingressa tardiamente no ordenamento pátrio e


visa à proteção de dados pessoais do indivíduo. Para isso trouxe diversos
fundamentos relacionados com a personalidade, especialmente o respeito
à privacidade, à autodeterminação informativa, proteção da intimidade,
honra e imagem, além de proteção aos direitos humanos, dignidade e
exercício da cidadania das pessoas naturais. Esses fundamentos estão inti-
mamente ligados à cidadania do novo milênio.
A criação de uma estrutura estatal com órgão regulador, pela LGPD,
sinaliza a proposta do Estado de estabelecimento de uma política públi-
ca relacionada essa cidadania do novo milênio. O exercício dessa cida-
dania deve ocorrer também por meio dos instrumentos oferecidos por
esse avanço tecnológico. Porém faltam instrumentos para esse exercício
e, nas mesmas circunstâncias falta conhecimento desse cenário por parte
dos cidadãos. Portanto, o Direito deve mostrar-se capaz de responder às
novidades propostas pelas tecnologias da informação, com a reafirmação
de seu valor fundamental: a dignidade humana.
Com a LGPD o Brasil ganhou uma nova estrutura legal para a prote-
ção de dados; uma estrutura que ultrapassa o alcance setorial inclui todo o
processamento e coleta de dados no território nacional.
Apesar de ainda não se vislumbrar uma quantidade significativa de jul-
gados após o advento da Lei n.13.709/2018, visto tratar-se de uma Lei re-

717
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

cente e que entrou em vigor em agosto de 2020, espera-se que seja levada
em conta a necessidade de proteger esse direito, sempre levando em conta
que na era da evolução tecnológica em que se vive, os “dados são o novo
petróleo”, essenciais ao desenvolvimento de qualquer país, visto que estão
ligados às tecnologias que fazem a diferença no mundo moderno atual.
O desafio mostra-se imenso, mas percebe-se que o Brasil caminha e
dá seus passos no sentido de proteger os dados dos seus cidadãos, ao mesmo
tempo em que permite a continuação da evolução tecnológica pela qual se
passa atualmente. No entanto, para que essa efetividade aconteça, é neces-
sária a implementação de políticas públicas, a exemplo da criação de plata-
formas educacionais com vistas à educação e conscientização da sociedade.

CONCLUSÕES

As empresas brasileiras e os cidadãos precisam assimilar a cultura da


proteção de dados pessoais e devem entender o direito à privacidade como
um princípio e não como uma obrigação. É princípio da lei o desenvolvi-
mento econômico e a inovação e não apenas a proteção de dados.  Então
não se pode permitir que certas atividades inovadoras sejam impedidas
pela LGPD.  O que é preciso é estabelecer responsabilidades para essas
pessoas que querem avançar e desenvolver o país, mas que agora, com a
LGPD precisarão fazer isso de forma responsável, levando em conta as
boas práticas, com governança e segurança.
Do exposto conclui-se que com a positivação dessa norma/direito e
a conscientização e educação da sociedade quanto ao tema, o direito será
capaz - como já vem se esforçando - de responder às novidades propostas
pela tecnologia da informação, com a realização do seu valor fundamental:
a pessoa humana e sua dignidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Vir-


gílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. (Coleção teoria
& direito público).

MÈLO, Augusto. Proteção de Dados Pessoais na Era da Informa-


ção. Curitiba: Juruá Editora, 2019.

718
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade


hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de
Moraes. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIE-


RO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revis-
ta dos Tribunais, 2017.

719
A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS
COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Ana Amelia Geleilate148

INTRODUÇÃO

Está vigente em nosso ordenamento desde agosto de 2020, a Lei Ge-


ral de Proteção de Dados, Lei 13709/2018. Derivada da GDPR europeia,
veio consagrar um direito também derivado de direitos fundamentais as-
segurados pela Nossa Carta Magna.
A referida norma veio regular com especialidade o tratamento de da-
dos pessoais, entendido como coleta, transferência, manipulação, descarte
por empresas privadas e ógãos públicos.
A necessidade dessa regulamentação advém da importância dos da-
dos pessoais para cada cidadão, tendo em vista que dados não são so-
mente métricas, dados são a própria pessoa e devem estar no rol dos
direitos da personalidade, como direito positivo, pois identificam e in-
dividualizam o ser humano, tendo mais eficácia até mesmo do que uma
impressão digital, que pode ser extraída ao extrair-se um membro do
corpo. Além da identificação objetiva, também identifica hábitos e pre-
ferências, deixando nas mãos de quem os detém verdadeiro poder sobre
as decisões de uma pessoa.
Através da coleta de dados realizada em cadastros diversos aos quais o
cidadão está exposto todos os dias, há ainda a retenção de dados compor-
tamentais e de geolocalização nos diversos aplicativos a que temos acesso

148 Advogada formada pela Unifor.

720
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

e nas redes sociais. Estamos vivendo na era da vigilância e não há plausi-


bilidade para não termos uma proteção maior contra abusos das grande
companhias e órgãos públicos, que seja do mesmo calibre do problema a
que estamos suscetíveis.
Há que ser reivindicada portanto a necessidade de se incluir o referido
direito no rol dos direitos fundamentais do cidadão, já que é perfeitamente
comparável aos direitos a privacidade, honra e liberdade.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O direito à privacidade, previsto no artigo X do artigo 5º da Consti-


tuição, emerge da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
como direito humano fundamental.
O direito à privacidade, mesmo tratando-se de um direito negativo,
ou seja, que pauta a não atuação na esfera íntima do cidadão, era o ali-
cerce que tinha o cidadão para lançar mão da defesa de seus direitos ao
ter seus dados pessoais expostos de maneira ilegítima ou não autorizada.
Atualmente com a vinda da legislação infraconstitucional, gozamos de
regra mais específica no combate aos abusos advindos da falta de trans-
parência na coleta de dados dos cidadãos, porém nao temos ainda um
respaldo constitucional explícito que garanta segurança jurídica que o
tema merece.
Citando Aranha e Ferreira (2020), com o advento da internet e cada
vez mais presente o espaço digital, surgem novas ameaças a vida privada,
relacionadas à coleta e ao uso de dados e informações pessoais e compor-
tamentais, emergindo um novo e mais amplo conceito de privacidade:
a privacidade informacional, que roga pelo direito de autodeterminação
informacional.
Somente o direito a privacidade não é mais suficiente para nos pro-
teger de eventuais abusos e nos garantir ciência de quem e do que saberão
sobre nós, do quanto de nós poderão “acessar”. Se antes o direito a priva-
cidade nos protegia da exposição de nossa intimidade, diante do binômio
exposição-não exposição, hoje, com a exposição a redes sociais, preci-
samos de uma proteção que nos garanta o controle da circulação dessas
informações, ja que a privacidade em sentido estrito se torna cada mais
incompatível com a evolução social.

721
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

O que se tem hoje é a defesa de um direito essencial, e que já é reco-


nhecido, porém de forma implícita. Para exemplificar temos o julgamento
da ADI 6387 DF, julgada em maio 2020 suspendendo a eficácia da Me-
dida Provisória 954/2018 que obrigava as operadoras de telefonia móvel a
entregarem dados pessoais de seus usuários ao IBGE.
Mas não se pode com isso dizer que houve defesa de um direito fun-
damental, mas sim de um direito fundamental em “ricochete”, que advém
do desdobramento de outros direitos fundamentais, conforme se aduz de
trecho do julgado, segundo Ministro Gilmar Mendes:
A autonomia do direito fundamental em jogo na presente ADI exorbita, em essên-
cia, de sua mera equiparação com o conteúdo normativo da cláusula de proteção ao sigilo.
A afirmação de um direito fundamental à privacidade e à proteção de dados pessoais de-
riva, ao contrário, de uma compreensão integrada do texto constitucional lastreada (i) no
direito fundamental à dignidade da pessoa humana, (ii) na concretização do compromisso
permanente de renovação da força normativa da proteção constitucional à intimidade (art.
5º, inciso X, da CF/88) diante do espraiamento de novos riscos derivados do avanço
tecnológico e ainda (iii) no reconhecimento da centralidade do Habeas Data enquanto
instrumento de tutela material do direito à autodeterminação informativa.
A doutrina especializada bem como as cortes em seus julgados, já
reconhecem o direito a proteção dos dados pessoais como direito funda-
mental implícito ou derivado dos direitos a privacidade, á liberdade e inti-
midade. Esse entendimento majoritário a esse respeito claramente confere
ao direito a proteção de dados, o status de direito da personalidade, no
mesmo patamar da honra e vida privada.
Por que não, então, atribuir status constitucional expresso a tal direi-
to, tão caro ao cidadão? Trata-se de tutela essencial á vida contemporânea,
digital e de compartilhamento fácil e rápido.
Segundo Doneda (2010, pag.49) o reconhecimento da proteção de
dados como um direito autônomo e fundamental, não deriva de uma dic-
ção explícita e literal, infere-se da consideração dos riscos que o trata-
mento automatizado traz à proteção da personalidade à luz das garantias
constitucionais de igualdade substancial, liberdade e dignidade pessoal
humana, juntamente com a proteção da intimidade e da vida privada.
Ainda citando Doneda (2010, pag 15), nesse sentido, recentemente,
uma decisão do STF, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, reco-
nheceu expressamente a inexistência de uma garantia de inviolabilida-

722
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

de sobre dados armazenados em computador com fulcro em garantias


constitucionais, endossando tese de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, se-
gundo a qual o ordenamento brasileiro tutelaria o sigilo das comunica-
ções – e não dos dados em si. Nesta decisão fica latente a dificuldade em
tratar do tema da informação pessoal saindo do simples paradigma sigilo
- abertura, publico – privado – de maneira a alcançar a circulação desses
dados da maneira como funciona hoje, numa sociedade da vigilância. O
direito que não segue a evolução social não se presta mais ao seu papel.
Fica inoperante.
A questão da regulamentação infraconstitucional foi sanada, falta
agora o aparato constitucional específico. Paradoxal inclusive que haja a
garantia constitucional a esse direito, no caso o instrumento do habeas
data, sem haver o direito constitucional análogo e protegido por este.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada neste trabalho é exploratória e descritiva,-


com fontes bibliográficas primárias e secundárias.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A discussão abordada com este tema é atual e necessária no cenário da


informação veloz que nós vivemos hoje.
Infere-se desse cenário que é essencial uma normatização em caráter
constitucional do direito à proteção de dados pessoais e comportamentais,
a fim de evitar burlas as mais variadas legislações, como a consumerista,
e afronta em efeito cascata, de direitos ja previstos, como vida privada,
honra e liberdade, dos quais a proteção de dados é espécie.
Conclui-se portanto que a elevação da proteção de dados a status
constitucional é necessária; Um marco da era digital.

CONCLUSÕES

Se atendo a essa necessidade, já está em tramitação a PEC 17/19 que


altera o inciso XII do artigo 5° além de acrescentar ao artigo 22 ou inciso
XXX (proteção e tratamento de dados pessoais como matéria de compe-

723
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

tência legislativa privada da União). A pretensão é de que o texto fique da


seguinte forma:
Artigo 5º ...

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações


telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no úl-
timo caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei es-
tabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal, bem como é assegurado, nos termos da lei, o direito
à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais;

REFERÊNCIAS

ARANHA, Estela.; FERREIRA, Maria. Lucia.O Direito Fundamental à Proteção de da-


dos e a importância da Emenda Coonstitucional n 17/2019. In: OABRJ. Disponível
em: <htpps//www.oabrj.org.br/noticias/artigo-direito-fundamental-proteção-dado-
simportancia-proposta-alteração-constitucional>.

DONEDA, Danilo. A proteção de dados com um direito fundamental. In: Dialnet. Dis-
ponível em: <file///CUsers/Ana/Downloads/Dialnet-AProteçãoDosDadosPessoais-
ComoUmDireito Fundamental-4555153.pdf>.

DONEDA, Danilo. A proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da
informação creditícia. In: Defesa do consumidor.gov.br. Disponível em: <http//
www.defesadoconsumidor.gov.br/images/manuais/vol_2_protecao_de_dados_pes-
soais.pdf>.

UNIÃO, Constituição Federal,1988

UNIÃO, Proposta de Emenda à Constituição n° 17, 2019.

7 24
PRINCÍPIO A CAPACIDADE
CONTRIBUTIVA E A PROTEÇÃO AO
MÍNIMO EXISTENCIAL: A SOLUÇÃO
PARA VAGUEZA DA DEFINIÇÃO DO
MINÍMO EXISTENCIAL.
Lívio Augusto de Carvalho Santos149
Manuela Saker Morais150

1 INTRODUÇÃO

O mínimo existencial é um tema muito debatido tanto no âmbi-


to acadêmico/científico quanto no âmbito dos tribunais considerando a
preocupação de como protege-lo de forma a garantir o princípio consti-
tucional da dignidade da pessoa.
Ocorre, que Estado tem o dever de promover a proteção do míni-
mo existencial, tanto com prestações positivas como de forma negativa,
devendo se abster de realizar determinadas atividades que coloquem em
risco o mínimo existencial e a dignidade humana.
Vale destacar, que o supracitado debate acerca do tema concentra-se
mais nas prestações positivas do Estado, restringindo às questões dos di-

149 Doutorando em Direito da Universidade de Marília – UNIMAR. Mestre em Direito pela


Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Advogado. Professor da Graduação e da Pós-
-Graduação em Direito no CESVALE – Centro de Ensino Superior do Vale do Parnaíba. Profes-
sor do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade do Piauí – FAPI.
150 Graduada em Administração pelo CESVALE. Graduanda em Direito pela CESVALE.

725
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

reitos sociais, ficando de lado as questões sobre o dever do Estado se abster


de realizar determinadas ações de forma a proteger o mínimo existencial e
a dignidade humana, carecendo de mais pesquisas, por exemplo, tal pro-
teção no plano tributário.
Neste contexto, surge a problemática: diante da vagueza da definição
de mínimo existencial, como a aplicação do princípio da capacidade con-
tributiva pode proteger os elementos que compõe o mínimo existencial
no plano tributário?
Portanto, o objetivo do presente trabalho é identificar uma solução
para a aplicação do princípio da capacidade de forma a proteger o mínimo
existencial diante da vagueza de sua definição.
Para o desenvolvimento do presente estudo, divide-se o trabalho em
pontos basilares, quais sejam: A resposta à vagueza da definição do míni-
mo existencial e o princípio da capacidade contributiva e a proteção ao
mínimo existencial.
Para a elaboração do presente trabalho, a pesquisa desenvolvida foi
qualitativa do tipo documental bibliográfica, o método de abordagem es-
colhido foi o dedutivo e como método de procedimento será adotado o
método monográfico, comparativo e funcionalista.

2 A RESPOSTA À VAGUEZA DA DEFINIÇÃO DO MINÍMO


EXISTENCIAL.

A priori cumpre destacar que não é pacífico na doutrina o conceito


de mínimo vital, e quais seriam os elementos, direitos, que compõe este
mínimo para uma vida digna, some-se a esta imprecisão da definição de
mínimo existencial apresentada pela doutrina à ausência de dispositivo
constitucional delimitando o seu conteúdo.
Em relação à vagueza da definição de mínimo existencial e a falta
de previsão expressa desta definição na Constituição Federal, Vasconcelos
(2012, p. 86) leciona que “na atual constituição brasileira, o princípio, ao
contrário do que ocorreu nas constituições de 1946 e de 1967, não está
expresso, mas tem sido deduzido como desdobramento de outros prin-
cípios previstos no texto constitucional”, apontando como exemplo de
princípios que se extraem a definição do mínimo vital a dignidade da pes-
soa humana, a igualdade e a erradicação da pobreza.

726
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Na mesma linha de pensamento, Gregório pronuncia-se sobre a difi-


culdade em aferir o mínimo existencial e aponta a necessidade de “elabo-
ração de elementos capazes de definir o que vem a ser o mínimo existen-
cial de um cidadão” (GREGÓRIO, 2011, p. 139).
Diante dessa dificuldade apresentada de definir o conceito e o con-
teúdo do mínimo existencial é necessário encontrar ferramentas para
superá-las e conseguir proteger os elementos que compõe este mínimo
existencial.
Segundo Vasconcelos (2012) é necessário definir quais os elementos
compõe este mínimo existencial, tal definição deve ser realizada tanto o
prisma objetivo quanto sob o aspecto subjetivo e acrescenta que “do pon-
to de vista do elemento objetivo, entende-se que esse mínimo deverá ser
um bem jurídico que expresse aptidão para satisfazer a uma necessidade
básica, elementar para a sobrevivência do ser humano” (VASCONCE-
LOS, 2012, p. 87).
Assim, como não há previsão expressa na atual constituição federal do
conteúdo do mínimo existencial cabe ao legislador infraconstitucional o
importante papel de definir e da necessidade de definir quais os elementos
compõe este mínimo existencial.

3 O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E A


PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL.

Por oportuno, é de suma importância analisar a relação entre o prin-


cípio da capacidade contributiva e o respeito ao mínimo existencial e à
dignidade humana.
Klaus Tipke (2002) sustenta que o mínimo existencial decorre da
dignidade humana, sendo a capacidade contributiva instrumento de pro-
teção do mínimo existencial.
Na mesma linha de pensamento, Ricci (2015) ressalta que a capaci-
dade contributiva é pressuposto da tributação, só devendo ser compelido a
contribuir com as despesas estatais o cidadão que manifesta riqueza, bem
como, que não é qualquer manifestação de riqueza que indica riqueza
tributável.
Este também é o pensamento de Regina Helena Costa (2012), que
pondera que na verificação da capacidade contributiva no caso concreto

727
P E R S P E C T I VA S D O S D I R E I TO S F U N D A M E N TA I S

devem ser excluídos os recursos empregados na sua manutenção, afirman-


do que “pensamos seja imperioso remarcar que tal noção implica, tam-
bém, sejam dedutíveis as despesas necessárias à manutenção do contri-
buinte, seja pessoa física ou jurídica” (COSTA, 2012, p. 71). Arremata
a autora consolidando o entendimento de que só há que se falar em ca-
pacidade contributiva se o contribuinte auferir alguma riqueza acima do
“mínimo vital”, sendo este intocável.
Então, constata-se que existe uma relação entre a capacidade contri-
butiva, o mínimo existencial e a dignidade humana, ao passo que estes se-
riam os indicadores de onde inicia a capacidade contributiva e ao mesmo
tempo limites para a imposição de encargo tributário.
Ocorre, que a dificuldade em definir o conteúdo do mínimo existen-
cial implica numa dificuldade em aferir a riqueza utilizada para suprir as
necessidades básicas do indivíduo e de sua família, por conseguinte mani-
festa-se a dificuldade de delimitar o início da capacidade contributiva, ou
seja, a dificuldade em identificar a parcela da riqueza que se destina a ga-
rantir uma vida digna torna inviável mensurar a capacidade contributiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações apresentadas até aqui demonstram o quanto amplo


é o conteúdo do mínimo existencial, devendo então ser delimitado apon-
tado quais elementos compõe o mínimo existencial e diante da falta de
previsão expressa na atual constituição federal do conteúdo do mínimo
existencial, cabe ao legislador infraconstitucional o importante papel de
definir quais os elementos compõe este mínimo existencial.
Acrescenta-se, que considerando que o mínimo existencial e a dignida-
de humana seriam os indicadores de onde inicia a capacidade contributiva
ao definir os elementos que compõe o mínimo existencial o legislador in-
fraconstitucional deve instituir isenção para os elementos escolhidos como
forma de proteger o mínimo existencial no campo do direito tributário.

REFERÊNCIAS

COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 4. ed. São


Paulo: Malheiros, 2012.

728
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

GREGÓRIO, Argos. A capacidade contributiva. São Paulo: Quartier Latin,


2011.

RICCI, Henrique Cavalheiro. Direito tributário ambiental e isonomia fiscal:


Extrafiscalidade, limitações, capacidade contributiva, proporcionali-
dade e seletividade. Curitiba: Juruá, 2015.

TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacida-


de contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002.

VASCONCELOS, Inessa da Mota Linhares. Efetivação da justiça tributá-


ria: a constitucionalidade da dedução de despesas com medicamentos
adquiridos pelo contribuinte da base de cálculo do IRPF. 369 f. Tese
(Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional – Mestrado
e Doutorado) – Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2012.

729
ENVELHECER PARA VIVER E NÃO
PARA MORRER: PROJETO AMIGOS
DA PRAÇA
Mônica Geralda Palhares151

INTRODUÇÃO

Todos temos o conhecimento que vamos envelhecer, sendo uma fase


inerente e a vida humana, um fato consciente de todos. Envelhecer com
uma qualidade de vida é o sonho de todos os idosos. A responsabilidade
social desta qualidade de vida é de todos, observando a necessidade de
ação conjunta, para a valorização e desenvolvimento do idoso este projeto
foi criado. Objetiva proporcionar ao idoso a sua inclusão, lazer, acessibili-
dade e sua prioridade com a valorização da sua vida, no olhar do Direito a
aplicação do Estatuto do Idoso.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Conforme Estatuto do Idoso no artigo ; Art. 2o O idoso goza de todos


os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da prote-
ção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhe, por lei ou por outros
meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde
física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social,
em condições de liberdade e dignidade., e art. 3o É obrigação da família,
da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com

151 Graduanda do 2º Período de Direito. Centro Universitário Iptan – UNIPTAN – São João
Del Rei – MG.

730
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à


educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberda-
de, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitário (BRA-
SIL, 2019). Sabe-se que este direito é garantindo e se faz necessário a cons-
ciência social de todos para realização. Este projeto trabalha a viabilização
de formas alternativas de participação, ocupação e convívio dos idosos com
as demais gerações conforme a garantia de prioridade (MINAYO, 2009).

METODOLOGIA

Estudos bibliográficos sobre a realidade do idoso, observação, pesqui-


sa e coleta de dados do local e frequentadores.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram feitas visitas as praças nos horários que os idosos estão pas-
seando, interação, bate papo informal das necessidades dos Idosos. Pro-
gramação de assistência informacional; possibilitar a interação através de
atividades recreativas, bate-papo, sorteio de brindes e comemoração de
aniversários. Ocorreu uma maior interação entre os participantes, maior
conhecimento adquirido na troca de informações e experiências, valori-
zação da vida e união entre os idosos e conscientização dos mais novos.

CONCLUSÕES

Ao final do projeto foi alcançado o objetivo proposto onde a meto-


dologia foi suficiente, a bibliografia é recomendada e foi verificado que
há uma intensa preocupação com a saúde e vida entre eles e mesmo com
alguns desentendimentos, há um cuidado e respeito pelo outro. Gostam
de muito de piadas, sorrir e se divertirem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Senado Federal. Estatuto do idoso. 3. ed., Rio de Janeiro:


Senado Federal, 2019.

MINAYO, M. C. S. Antropologia, saúde e envelhecimento. Rio de


Janeiro: Fiocruz, 2009.

731
OS DIREITOS HUMANOS EM
ANGOLA: UMA ANÁLISE DA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO
DIREITO FUNDAMENTAL

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo principal analisar o processo


democrático dos direitos, liberdades e garantias fundamentais em Ango-
la, na qual abordaremos as tendências do período pós-guerra civil. Neste
aspecto, a matéria dos direitos e liberdades individuais e coletivas pela sua
envolvência na vida das pessoas, merece uma atenção muito especial, so-
bretudo em países como Angola que viveram anos a fio de guerra civil
(1975/2002), fator que criam um ambiente favorável a violação de direitos
humanos. Em Angola, destarte o silêncio das armas da guerra civil en-
tre o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA
(União Nacional para a Independência Total de Angola), que marcou o
início da era de paz efetiva, as a violações persistentes dos direitos huma-
nos no país continuaram ocorrendo. Os defensores dos direitos humanos,
os jornalistas, os críticos do governo e os manifestantes pacíficos têm vin-
do a morrer pela violência das armas governamentais ou a sofrer a muti-
lação pela crueldade dos cassetetes e dos ataques com cães. Os que ainda
estão vivos continuam a ser intimidados e ameaçados para os fazer calar.

732
A R T H U R B E Z E R R A D E S O U Z A J U N I O R , LU C A S M A N O E L D A S I LVA C A B R A L ,
MAURÍCIO PIRES GUEDES, ROBERT SEGAL (ORG.)

Especificamente a pesquisa visa (i) analisar como os direitos humanos e


a liberdade de expressão são tratadas na Constituição de Angola, e que
ações o governo tem feito para que elas se efetivem (ou não); (ii) entender
o que são direitos humanos, porque e como eles emergiram no sistema
internacional; (iii) compreender o papel da policia quanto a segurança e
a proteção dos direitos humanos no país; (iii) identificar as diferentes for-
mas de liberdade de expressão e de manifestação na antiga governação do
ex-presidente José Eduardo dos Santos e na atual governação. Por ser uma
pesquisa qualitativa, ainda em fase de execução a metodologia está baseada
na análise de fontes documentais, relatórios institucionais, além de revisão
bibliográfica.

733
PERSPECTIVAS DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Arthur Bezerra de Souza Junior,


Lucas Manoel da Silva Cabral,
Maurício Pires Guedes, Robert Segal (orgs.)

Tipografias utilizadas:
Família Museo Sans (títulos e subtítulos)
Bergamo Std (corpo de texto)
Papel: Offset 75 g/m2
Impresso na gráfica Trio Studio
Abril de 2021

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