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Fórum Nacional de Gestão

da Ética nas Empresas Estatais


Ética e Direitos Humanos no Ambiente Corporativo
Diretor-Presidente
Sr. Jair de Melo Gonçalves

Diretor Vice-Presidente
Sr. Leonardo Barbosa Gonçalves

Editora América

Editor Presidente do Conselho Editorial


Prof. Ms. Gil Barreto Ribeiro

Assessora-membro do Conselho Editorial


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Conselho Editorial
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Prof. Dr. Antonio Pasqualetto - IF/Goiás
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Prof. Dr. Jadir de Moraes Pessoa - UFG
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Prof. Dr. Luiz Carlos Santana - UNESP/Rio Claro
Profa. Dra. Maria José Braga Viana - UFMG
Prof. Dr. Pedro Guareschi - UFRGS
Deusilene Silva de Leão
Cristiano Santos Araujo
(Organizadores)

Fórum Nacional de Gestão


da Ética nas Empresas Estatais
Ética e Direitos Humanos no Ambiente Corporativo

1ª Edição

Goiânia - Goiás
Gráfica e Editora América Ltda.
- 2014 -
© 2014, Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610 de 19/02/1998, ar-


tigo 29 e seus incisos. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por
escrito do autor(a), poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem
os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográfico, gravação ou quais-
quer outros.

Projeto gráfico e capa: Franco Jr.

Revisão: Cristiano Santos Araujo

Impressão e acabamento: Gráfica e Editora América Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C84 Fórum nacional de gestão da ética nas empresas


estatais : ética e direitos humanos no ambiente
corporativo / Organizadores Deusilene Silva de
Leão e Cristiano Santos Araujo. – 1º ed. – Goiânia :
Gráfica e Editora América, 2014.

127 p.

Inclui referência bibliográfica


ISBN: 978-85-8264-081-4

1. Empresas – Ética – Direitos Humanos. 2. Ética.


I. Leão, Deusilene Silva de (org.). II. Araujo, Cristiano
Santos (org.).

CDU 658.115:17

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2014
Prefácio

É com grande alegria que apresentamos, pela primeira vez, em


dez anos de realização do fórum, suas palestras e temas discutidos
no formato de livro. A ideia de organizar os anais do X Seminário do
Fórum Nacional de Gestão das Empresas Estatais, partiu da premissa
de termos em registro escrito este grande acontecimento, sendo em es-
pecial, neste ano, organizado pela Eletrobras Eletronorte onde em cada
ano uma das empresas signatárias tem a responsabilidade de organi-
zação do Seminário.
Sentimo-nos honrados em apresentar a todos vocês, de forma es-
crita, os anais deste X Seminário que ficará como registro de memórias,
vários textos e ferramentas apresentados pelos palestrantes convida-
dos, discorrendo sobre o tema central do X Seminário: Ética e Direitos
Humanos no Ambiente Corporativo.
O Fórum Nacional de Gestão das Empresas Estatais é composto
de dezenove empresas que firmaram um convênio objetivando a cria-
ção e manutenção do Fórum Nacional de Gestão da Ética nas Empresas
Estatais. Tem como objetivo geral buscar o desenvolvimento e fortale-
cimento dos princípios governamentais e empresariais de gestão da
ética, visando aprimorar o relacionamento das empresas estatais com
os seus diversos públicos e com a sociedade em geral.
Como objetivos específicos o Fórum busca:
I - Desenvolver conhecimento sobre Ética nos aspectos conceitu-
ais, filosóficos, doutrinários, legais e administrativos, e estimular capa-
citação e instrução em Ética Pública;
II - Promover o permanente debate de questões sobre gestão da
ética e dilemas éticos, como conflito de interesses, assédio moral e dis-
criminações;

5
III - Compartilhar modelos e práticas de gestão da ética, envi-
dar esforços para o constante aprimoramento dos Códigos de Ética e
de Conduta de cada um dos convenentes e estudar o desenvolvimen-
to de indicadores objetivos de efetividade dos Programas de Gestão
da Ética;
VI - E promover, anualmente, o Seminário de Gestão da Ética nas
Empresas Estatais. 

Nosso objetivo principal com o lançamento desses anais do X


Seminário é aprofundar o conhecimento sobre ética nos aspectos con-
ceituais, filosóficos, doutrinários, legais e administrativos e estimular a
troca de experiências entre as empresas, quando serão debatidos esses
temas atuais sobre ética nas organizações.
Sabe-se que na antiguidade não se concebia um sistema de cos-
tumes em oposição a um sistema filosófico. Toda filosofia tinha antes
uma finalidade a sua aplicação direta e nenhum pensador se gabava de
falar de um modo e agir de outro. Isto é unicamente próprio da época
moderna. Ética ou Moral, ou antes, a teoria e a prática eram dois aspec-
tos da mesma coisa, dois atalhos do mesmo caminho. Podemos perce-
ber que a ética nas várias roupagens que tem, sustenta princípios que
levam a atitudes que não ferem o outro em nenhum aspecto, como, res-
peitar a vida, rejeitar a violência, ser generoso, ouvir para compreen-
der, preservar o planeta, redescobrir a solidariedade.
Este é o caminho de debate e discussão que apresentamos, agora
com reflexão mais profunda também de forma escrita. Esperamos que
todos possam aproveitar de forma significativa este material produzi-
do pelos diversos palestrantes que compõem o X Seminário do Fórum
Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Nacional de Gestão das Empresas Estatais.

Boa leitura, bom Fórum.

Rosa Maria de Sousa e Albuquerque Barbosa


Coordenadora do X Seminário do Fórum das Empresas Estatais
Eletrobras Eletronorte

6 Prefácio
Sumário

• Prefácio....................................................................................................... 5

• DESAFIOS ÉTICOS E DIREITOS HUMANOS..................................... 9


Leonardo Boff

• E VOCÊ, QUAL O SEU COMPROMISSO COM A ÉTICA?............. 27


Iradj Roberto Eghrari

• DESCOLONIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS NA


EDUCAÇÃO............................................................................................ 39
Alípio Casali

• A ÉTICA DO RESPEITO........................................................................ 63
George Barcat

• ÉTICA EMPRESARIAL E DIREITOS HUMANOS............................ 69


Heloisa Covolan

• DESAFIOS DA GESTÃO EM RESPONSABILIDADE SOCIAL:


UM ENFOQUE DE GARANTIAS DE DIREITOS HUMANOS....... 77
Laís Abramo, José Ribeiro e Camila Almeida

• ÉTICA COMO ARTE E GARANTIA DE CONVIVÊNCIA............... 89


Deusilene Silva de Leão

• ÉTICA E DIREITOS HUMANOS NO MODELO DE


EXCELÊNCIA DA GESTÃO (MEG) DA FUNDAÇÃO
NACIONAL DA QUALIDADE (FNQ).............................................. 101
Jairo Martins

• FERRAMENTAS ELETROBRAS ELETRONORTE:


“GAME” - CENÁRIOS DA ÉTICA..................................................... 105

• FERRAMENTAS BANCO DO BRASIL............................................. 111

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DESAFIOS ÉTICOS E DIREITOS HUMANOS

Leonardo Boff1

Hoje nos encontramos numa fase nova na humanidade. Todos es-


tamos regressando à Casa Comum, à Terra: os povos, as socieda-
des, as culturas e as religiões. Todos trocamos experiências e va-
lores. Todos nos enriquecemos e nos completamos mutuamente.
Vamos rir, chorar e aprender. Aprender especialmente como ca-
sar Céu e Terra, vale dizer, como combinar o cotidiano com o
surpreendente, a imanência opaca dos dias com a transcendência
radiosa do espírito, a vida na plena liberdade com a morte sim-
bolizada como um unir-se com os ancestrais, a felicidade discreta
nesse mundo com a grande promessa na eternidade. E, ao final,
teremos descoberto mil razões para viver mais e melhor, todos
juntos, como uma grande família, na mesma Aldeia Comum, ge-
nerosa e bela, o planeta Terra.
(Casamento entre o céu e a terra. Salamandra, Rio de Janeiro,
2001, p. 9).
1

O obstáculo básico à luta pelos direitos humanos

O tema dos direitos humanos é uma constante em todas as agendas.


Há momentos em que se torna um clamor universal como atualmen-
te com a criação do Estado Islâmico que comete sistemático genocídio
das minorias. Por que não conseguimos fazer valer efetivamente os di-
reitos não só humanos mas também os da natureza? Onde reside o im-
passe fundamental?
1
Teólogo, Escritor e Ecologista. Os textos que compõem este capítulo do livro foram extraídos
dos sites oficiais do autor, e com a devida autorização: www.leonardoboff.com (e) leonardoboff.
wordpress.com

9
A Carta da ONU de 1948 confia ao Estado a obrigação de criar
as condições concretas para que os direitos possam ser realizados
para todos. Ocorre que o tipo de Estado dominante é um Estado
classista. Como tal é perpassado pelas desigualdades que as classes
sociais originam. Concretamente: a ideologia política deste Estado
é neoliberalismo que se expressa pela democracia representativa e
pela exaltação dos valores do indivíduo; a economia é capitalista
que operou a “Grande Transformação”, substituindo a economia de
mercado pela sociedade de mercado para a qual tudo vira mercado-
ria. Por ser capitalista vigora a hegemonia da propriedade privada,
o mercado livre e a lógica da concorrência. Esse Estado é controla-
do pelos grandes conglomerados que hegemonizam o poder econô-
mico, político e ideológico. Em grande parte é privatizado por eles.
Usam o Estado para a garantia de seus privilégios e não dos direitos
de todos. Atender os direitos sociais a todos seria contraditório com
sua lógica interna.
A solução que as classes subalternas encontraram para enfren-
tar essa contradição foi de elas mesmas se organizarem e criarem as
condições para seus direitos. Assim surgiram os vários movimentos
sociais e populares por terra, por teto, por saúde, por escola, pelos ne-
gros, índios e mulheres marginalizadas, por igualdade de gênero, por
respeito do direito das minorias etc. É mais que uma luta pelos direi-
tos; é uma luta política para a transformação do tipo de sociedade e do
tipo de Estado vigentes porque com eles seus direitos nunca irão ser
reconhecidos. Portanto, a alternativa à democracia reduzida, é a demo-
cracia social, participativa, de baixo para cima, na qual todos possam
caber. O Estado que representa esse tipo de democracia enriquecida Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
teria uma natureza nitidamente social e se organizaria para garantir os
direitos sociais de todos. Enquanto isso não ocorrer, não haverá uma
real universalização dos direitos humanos. Parte dos discursos oficiais
são apenas retóricos.
As classes subalternas expandiram o conceito de cidadania.
Não se trata mais daquela burguesa que coloca o indivíduo diante
do Estado e organiza as relações entre ambos. Agora se trata de cida-
dãos que se articulam com outros cidadãos para juntos enfrentarem o
Estado privatizado e a sociedade desigual de classe. Daí nasce a con-
cidadania: cidadãos que se unem entre si, sem o Estado e muitas ve-
zes contra o Estado para fazerem valer seus direitos e levarem avante

10 Leonardo Boff
a bandeira política de uma real democracia social, onde todos possam
se sentir representados.
Esses movimentos fizeram crescer mais e mais, a consciência da
dignidade humana, a verdadeira fonte de todos os direitos. O ser hu-
mano não pode ser visto como mera força de trabalho, descartável,
mas como um valor em si mesmo, não passível de manipulação por ne-
nhuma instância, nem estatal, nem ideológica, nem religiosa. A digni-
dade humana remete à preservação das condições de continuidade do
planeta Terra, da espécie humana e da vida, sem a qual o discurso dos
direitos perderia seu chão.
Por isso, os dois valores e direitos básicos que devem entrar mais
e mais na consciência coletiva são: como preservar nosso esplêndido
planeta azul-branco, a Terra, Pachamama e Gaia? E o segundo: como
garantir as condições ecológicas para que o experimento homo sapiens/
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demens possa continuar, se desenvolver e co-evoluir? Esses dois dados


constituem a base de tudo mais. Ao redor desse núcleo, se estrutura-
rão os demais direitos. Eles serão não somente humanos, mas também
sócio-cósmicos. Em outras palavras, a biosfera da Terra é patrimônio
comum de toda vida em sua imensa diversidade, e não apenas da vida
humana. Então, mais que falar em termos de meio-ambiente, deve-se
falar em comunidade de vida, ou ambiente inteiro. O ser humano tem
a função, já assinalada no Gênese, a de ser o tutor ou guardião da vida,
o representante legal da comunidade biótica, sem a pretensão de supe-
rioridade, mas se compreendendo como um elo da imensa cadeia da
vida, irmão e irmã de todos. Daqui resulta o sentimento de responsabi-
lidade e e de veneração que facilita a preservação e o cuidado por todo
o criado e por tudo o que vive.
Ou faremos essa viragem necessária para essa nova ética, funda-
da numa nova ótica, ou poderemos conhecer o pior, a era das grandes
devastações do passado. A reflexão sobre os direitos humanos de pri-
meira geração (individuais), de segunda geração (sociais), de tercei-
ra geração (transindividuais, direitos dos povos, das culturas, etc), da
quarta geração (direitos genéticos) e da quinta geração (da realidade
virtual) não podem desviar nossa atenção dessa nova radicalidade na
luta pelos direitos, agora começando pelos direitos da Terra e das tri-
bos da Terra, base para todos os demais desmembramentos.
Até hoje todos davam por descontada a continuidade da nature-
za e da Terra. Não precisavam se preocupar delas. Esta situação se mo-

Desafios éticos e direitos humanos 11


dificou totalmente, pois os seres humanos, nas últimas décadas, pro-
jetaram o princípio de auto-destruição. A consciência desta nova situ-
ação fez surgir o tema dos direitos humano-sócio-cósmicos e a urgên-
cia de que, se não nos mobilizarmos para as mudanças, a contagem
regressiva do tempo se coloca contra nós e pode nos surpreender com
um bio-eco-enfarte de consequências devastadoras para todo o sistema
da vida. Devemos estar à altura desta emergência.

As ameaças da Grande Transformação (I)

A Grande Transformação consiste na passagem de uma econo-


mia de mercado para uma sociedade de mercado. Ou em outra formu-
lação: de uma sociedade com mercado para uma sociedade só de mer-
cado. Mercado sempre existiu na história da humanidade, mas nunca
uma sociedade só de mercado. Quer dizer, uma sociedade que coloca a
economia como o eixo estruturador único de toda a vida social, subme-
tendo a ela a política e anulando a ética. Tudo é vendável, até o sagrado.
Não se trata de qualquer tipo de mercado. É o mercado que se
rege pela competição e não pela cooperação. O que conta é o benefí-
cio econômico individual ou corporativo e não o bem comum de toda
uma sociedade. Geralmente este benefício é alcançado às custas da de-
vastação da natureza e da gestação perversa de desigualdades sociais.
Nesse sentido a tese de Thomas Piketty em O capital no século XXI é
irrefutável.
O mercado deve ser livre, portanto, recusa controles e vê o
Estado como seu grande empecilho, cuja missão, sabemos, é ordenar Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
com leis e normas a sociedade, também o campo econômico e coorde-
nar a busca comum do bem comum. A Grande Transformação postula
um Estado mínimo, limitado praticamente às questões ligadas à infra-
-estrutura da sociedade, ao fisco, mantido o mais baixo possível e à se-
gurança. Tudo o mais deve ser buscado no mercado, pagando.
O gênio da mercantilização de tudo penetrou em todos os seto-
res da sociedade: a saúde, a educação, o esporte, o mundo das artes e
do entretenimento e até grupos importantes das religiões e das igrejas.
Estas incorporaram a lógica do mercado: a criação de uma massa enor-
me de consumidores de bens simbólicos, igrejas pobres em espírito,
mas ricas em meios de fazer dinheiro. Não raro no mesmo complexo

12 Leonardo Boff
funciona um templo e junto a ele um shopping. Enfim, se trata sempre
da mesma coisa: auferir rendas seja com bens materiais seja com bens
“espirituais”.
Quem estudou em detalhe este processo avassalador foi um his-
toriador da economia, o húngaro-norte-americano Karl Polanyi (1886-
1964). Ele cunhou a expressão ‘A Grande Transformação’, título do livro
escrito antes do final da Segunda Guerra Mundial em 1944. No seu
tempo a obra não mereceu especial atenção. Hoje, quando suas teses se
vem mais e mais confirmadas, tornou-se leitura obrigatória para todos
os que se propõem entender o que está ocorrendo no campo da econo-
mia com repercussão em todos os âmbitos da atividade humana, não
excluída a religiosa. Desconfia-se que o próprio Papa Francisco tenha
se inspirado em Polanyi para criticar a atual mercantilização de tudo,
até do ser humano e órgãos.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Essa forma de organizar a sociedade ao redor dos interesses eco-


nômicos do mercado cindiu a humanidade de cima a baixo: um fosso
enorme se criou entre os poucos ricos e os muitos pobres. Gestou-se
uma espantosa injustiça social com multidões feitas descartáveis, con-
sideradas óleo gasto, não mais interessante para o mercado: produzem
irrisoriamente e consomem quase nada.
Simultaneamente a Grande Transformação da sociedade em
mercado criou também uma iníqua injustiça ecológica. No afã de acu-
mular, foram explorados de forma predatória bens e serviços da na-
tureza, devastando inteiros ecossistemas, contaminando os solos, as
águas, os ares e os alimentos, sem qualquer outra consideração ética,
social ou sanitária.
Um projeto desta natureza, de acumulação ilimitada, não é su-
portado por um planeta limitado, pequeno, velho e doente. Eis que
surgiu um problema sistêmico, do qual os economistas deste tipo de
economia, raramente se referem: foram atingidos os limites físico-quí-
mico-ecológicos do planeta Terra. Tal fato dificulta senão impede a re-
produção do sistema que precisa de uma Terra, repleta de “recursos”
(bens e serviços ou ‘bondades’ na linguagem dos indígenas).
A continuar por esse rumo, poderemos experimentar, como já o
estamos experimentando, reações violentas da Terra. Como é um Ente
vivo que se auto regula, reage para manter seu equilíbrio afetado atra-
vés de eventos extremos, terremotos, tsunamis, tufões e uma completa
desregulação dos climas.

Desafios éticos e direitos humanos 13


Essa Transformação, por sua lógica interna, está se tornando bio-
cida, ecocida e geocida. Destrói sistematicamente as bases que susten-
tam a vida. A vida corre risco e a espécie humana pode, seja pelas ar-
mas de destruição em massa existentes seja pelo caos ecológico, desa-
parecer da face da Terra. Seria a consequência de nossa irresponsabili-
dade e da total falta de cuidado por tudo o que existe e vive.

As ameaças da Grande Transformação (II)

Analisamos no artigo anterior, as ameaças que nos traz a trans-


formação da economia de mercado em sociedade de mercado com a
dupla injustiça que acarreta: a social e a ecológica. Agora queremos nos
deter em sua incidência no âmbito da ecologia tomada em sua mais
vasta acepção, no ambiental, social, mental e integral.
Constatamos um fato singular: na medida em que crescem os da-
nos à natureza que afetam mais e mais as sociedades e a qualidade de
vida, cresce simultaneamente a consciência de que, na ordem de 90%,
tais danos se tributam à atividade irresponsável e irracional dos seres
humanos, mais especificamente, àquelas elites de poder econômico,
político, cultural e mediático que se constituem em grandes corpora-
ções multilaterais e que assumiram por sua conta os rumos do mundo.
Temos, com urgência, fazer alguma coisa que interrompa este percur-
so para o precipício. Como adverte a Carta da Terra: “ou fazemos uma
aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscamos a
nossa destruição e a da diversidade da vida”.
A questão ecológica, especialmente após o Relatório do Clube de Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Roma em 1972 sob o título “Os Limites do Crescimento”, tornou-se tema
central da política, das preocupações da comunidade científica mundial
e dos grupos mais despertos e preocupados pelo nosso futuro comum.
O foco das questões se deslocou: do crescimento/desenvolvi-
mento sustentável (impossível dentro da economia de mercado livre)
para a sustentação de toda a vida. Primeiro há que se garantir a susten-
tabilidade do planeta Terra, de seus ecossistemas, das condições natu-
rais que possibilitam a continuidade da vida. Somente garantidas estas
pré-condições, se pode falar em sociedades sustentáveis e em desen-
volvimento sustentável ou de qualquer outra atividade que queira se
apresentar com este qualificativo.

14 Leonardo Boff
A visão dos astronautas reforçou a nova consciência. De
suas naves espaciais ou da Lua se deram conta de que Terra e a
Humanidade formam uma única entidade. Elas não estão separa-
das nem justapostas. A Humanidade é uma expressão da Terra, a
sua porção consciente, inteligente e responsável pela preservação
das condições da continuidade da vida. Em nome desta consciência
e desta urgência, surgiu o princípio responsabilidade (Hans Jonas),
o princípio cuidado (Boff e outros), o princípio sustentabilidade
(Relatório Brundland), o princípio interdependência, o princípio
cooperação (Heisenberg/Wilson/Swimme/Morin/Capra) e o princí-
pio prevenção/precaução (Carta do Rio de Janeiro de 1992 da ONU),
o princípio compaixão (Schoppenhauer/Dalai Lama) e o princípio
Terra (Lovelock e Evo Morales).
A reflexão ecológica se complexificou. Não se pode reduzi-la
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

apenas à preservação do meio ambiente. A totalidade do sistema mun-


do está em jogo. Assim surgiu uma ecologia ambiental que tem como
meta a qualidade de vida; uma ecologia social que visa um modo sus-
tentável de vida e uma sobriedade compartida (produção, distribui-
ção, consumo e tratamento dos dejetos); uma ecologia mental que se
propõe erradicar preconceitos e visões de mundo, hostis à vida e for-
mular um novo design civilizatório, à base de princípios e de valores
para uma nova forma de habitar a Casa Comum; e por fim uma ecolo-
gia integral que se dá conta que a Terra é parte de um universo em evo-
lução e que devemos viver em harmonia com o Todo, uno, complexo
e perpassado de energias que sustentam a vitalidade da Terra e carre-
gado de propósito.
Criou-se destarte uma grelha teórica, capaz de orientar o pen-
samento e as práticas amigáveis à vida. Então se torna evidente que a
ecologia mais que uma técnica de gerenciamento de bens e serviços es-
cassos representa uma arte, uma nova forma de relacionamento com
a vida, a natureza e a Terra e a descoberta da missão do ser humano
no processo cosmogênico e no conjunto dos seres: cuidar e preservar.
Por todas as partes do mundo, surgiram movimentos, institui-
ções, organismos, ONGs, centro de pesquisa, cada qual com sua sin-
gularidade: quem se preocupa com as florestas, quem com os oceanos,
quem com a preservação da biodiversidade, quem com as espécies em
extinção, quem com os ecossistemas tão diversos, quem com as águas
e os solos, quem com as sementes e a produção orgânica. Dentre todos

Desafios éticos e direitos humanos 15


estes movimentos cabe enfatizar o Greenpeace pela persistência e co-
ragem de enfrentar, sob riscos, aqueles que ameaçam a vida e o equilí-
brio da Mãe Terra.
A própria ONU criou uma série de instituições que visam acom-
panhar o estado da Terra. As principais são o PNUMA (Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a FAO (Organização das
Nações Unidas para a alimentação e a agricultura), a OMS (Organização
Mundial para a Saúde), a Convenção sobre a Biodiversidade e es-
pecialmente o IPPC (Painel Intergovernamental para as Mudanças
Climáticas) entre outras tantas.
Esta Grande Transformação da consciência opera uma complicada
travessia, necessária para fundar um novo paradigma, capaz de trans-
formar a eventual tragédia ecológico-social numa crise de passagem que
nos permitirá um salto de qualidade rumo a um patamar mais alto de
relação amistosa, harmoniosa e cooperativa entre Terra e Humanidade.
Se não assumirmos esta tarefa o futuro comum estará ameaçado.

Brasil: de empresa internacionalizada à uma


sociedade biocentrada

Há interpretações clássicas sobre a formação da nação-Brasil.


Mas esta do cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima é segura-
mente singular e adequada para entender o Brasil no atual processo de
globalização: A Refundação do Brasil: rumo a uma sociedade biocen-
trada (Rima, São Carlos 2011). Seu ponto de partida é o fato brutal da
invasão e expropriação das terras brasileiras pelos “colonizadores” à Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
base da escravidão e da super exploração da natureza.
Não vieram para fundar aqui uma sociedade mas para montar
uma grande empresa internacional privada, uma verdadeira agro-in-
dústria, destinada a abastecer o mercado mundial. Ela resultou da ar-
ticulação entre reinos, igrejas e grandes companhias como a das Índias
Ocidentais, Orientais, a Holandesa (de Mauricio de Nassau), com na-
vegadores, mercadores, banqueiros, não esquecendo as vanguardas
modernas, dotadas de espírito de aventura e de novos sonhos, buscan-
do novos conhecimentos e enriquecimento rápido.
Ocupada a terra, para cá foram trazidas matrizes (cana de açú-
car e depois café), tecnologias modernas para a época, capitais e escra-

16 Leonardo Boff
vos africanos. Todos eram considerados “peças” a serem compradas
no mercado e como carvão a ser consumido nos engenhos de açúcar.
Com razão afirma Souza Lima: “o resultado foi o surgimento de uma
formação social original e desconhecida pela humanidade até aquele
momento, criada unicamente para servir à economia; no Brasil nasceu
o que se pode chamar de ‘formação social empresarial”.
A modernidade no sentido da utilização da razão produtivista,
da vontade de acumulação ilimitada e da exploração sistemática da
natureza, da criação de vastas populações excluídas, nasceu no Brasil
e na América Latina. O Brasil, neste sentido, é novo e moderno desde
suas origens.
A Europa só pôde fazer a sua revolução, chamada de moderni-
dade, com seu direito e instituições democráticas, porque foi susten-
tada pela rapinagem brutal feita nas colônias. Com a independência
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

política do Brasil, a formação social empresarial não mudou sua na-


tureza. Todos os impulsos de desenvolvimento ocorridos ao longo de
nossa história, não conseguiram diluir o caráter dependente e associa-
do que resulta da natureza empresarial de nossa conformação social.
A tendência do capital mundial global ainda hoje é tentar transformar
nosso eventual futuro em nosso conhecido passado. Ao Brasil cabe ser
o grande fornecedor de commodities para o mercado mundial, sem ou
com parca tecnologia e valor agregado.
A empresa Brasil é a categoria-chave, segundo Souza Lima, para
se entender a formação histórica do Brasil e o lugar que lhe é assinala-
do no processo atual de globalização desigual.
O desafio consiste em gestar um outro software social que nos
seja adequado, que nos desenhe um futuro diferente. A inspiração
vem de algo bem nosso: a cultura brasileira. Ela foi elaborada pe-
los escravos e seus descendentes, pelos indígenas que restaram, pe-
los mamelucos, pelos filhos e filhas da pobreza e da mestiçagem.
Gestaram algo singular, não desejado pelos donos do poder que sem-
pre os desprezaram e nunca os reconheceram como sujeitos e filhos
e filhas de Deus.
O que se trata agora é refundar o Brasil, “construir, pela primei-
ra vez, uma sociedade humana neste território imenso e belo; é habitá-
-lo, pela primeira vez, por uma sociedade humana de verdade, o que
nunca ocorreu em toda a era moderna, desde que o Brasil foi fundado
como uma empresa; fundar uma sociedade é o único objetivo capaz de

Desafios éticos e direitos humanos 17


salvar nosso povo”. Trata-se de passar do Brasil como Estado economi-
camente internacionalizado para o Brasil como sociedade biocentrada.
Ao refundar-se como sociedade humana biocentrada, o povo
brasileiro deixará para trás a modernidade apodrecida pela injustiça e
pela ganância e que está conduzindo a humanidade para um abismo.
Não obstante, esta modernidade entre nós, bem ou mal, nos ajudou a
forjar uma infra-estrutura material que pode permitir a construção de
uma biocivilização que ama a vida em todas as suas formas, que convi-
ve pacificamente com as diferenças, dotada de incrível capacidade de
integrar e de sintetizar os mais diferentes dados e valores.
É neste contexto que Souza Lima associa a refundação do Brasil
às promessas de um mundo novo que deve suceder a este que está
agonizando, incapaz de projetar qualquer horizonte de esperança para
a humanidade. O Brasil poderá ser um nicho gerador de novos sonhos
e da possibilidade real de realizá-los em harmonia com a Mãe Terra e
aberto a todos os povos.

A Sociedade Mundial da Cegueira

O poeta Affonso Romano de Sant’Ana e o prêmio Nobel de lite-


ratura, o português José Saramago, fizeram da cegueira tema para crí-
ticas severas à sociedade atual, assentada sobre uma visão reducionis-
ta da realidade. Mostraram que há muitos presumidos videntes que
são cegos e poucos cegos que são videntes.
Hoje propala-se pomposamente que vivemos sob a sociedade do
conhecimento, uma espécie de nova era das luzes. Efetivamente assim Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
é. Conhecemos cada vez mais sobre cada vez menos. O conhecimento
especializado colonizou todas as áreas do saber. O saber de um ano é
maior que todo saber acumulado dos últimos 40 mil anos. Se por um
lado isso traz inegáveis benefícios, por outro, nos faz ignorantes sobre
tantas dimensões, colocando-nos escamas sobre os olhos e assim impe-
dindo-nos de ver a totalidade.
O que está em jogo hoje é a totalidade do destino humano e
o futuro da biosfera. Objetivamente estamos pavimentando uma es-
trada que nos poderá conduzir ao abismo. Por que este fato brutal
não está sendo visto pela maioria dos especialistas nem dos chefes de
Estado nem da grande mídia que pretende projetar os cenários pos-

18 Leonardo Boff
síveis do futuro? Simplesmente porque, majoritariamente, se encon-
tram enclausurados em seus saberes específicos nos quais são muito
competentes mas que, por isso mesmo, se fazem cegos para os gritan-
tes problemas globais.
Quais dos grandes centros de análise mundial dos anos 60 pre-
viram a mudança climática dos anos 90? Que analistas econômicos
com prêmio Nobel, anteviram a crise econômico-financeira que devas-
tou os países centrais em 2008? Todos eram eminentes especialistas
no seu campo limitado, mas idiotizados nas questões fundamentais.
Geralmente é assim: só vemos o que entendemos. Como os especia-
listas entendem apenas a mínima parte que estudam, acabam vendo
apenas esta mínima parte, ficando cegos para o todo. Mudar este tipo
de saber cartesiano desmontaria hábitos científicos consagrados e toda
uma visão de mundo.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

É ilusória a independência dos territórios da física, da química,


da biologia, da mecânica quântica e de outros. Todos os territórios e
seus saberes são interdependentes, uma função do todo. Desta percep-
ção nasceu a ciência do sistema Terra. Dela se derivou a teoria Gaia que
não é tema da New Age mas resultado de minuciosa observação cien-
tífica. Ela oferece a base para políticas globais de controle do aqueci-
mento da Terra que, para sobreviver, tende a reduzir a biosfera e até o
número dos organismos vivos, não excluídos os seres humanos.
Emblemática foi a COP-15 sobre as mudanças climáticas em
Copenhague. Como a maioria na nossa cultura é refém do vezo da
atomização dos saberes, o que predominou nos discursos dos chefes
de Estado eram interesses parciais: taxas de carbono, níveis de aqueci-
mento, cotas de investimento e outros dados parciais. A questão cen-
tral era outra: que destino queremos para a totalidade que é a nossa
Casa Comum? Que podemos fazer coletivamente para garantir as con-
dições necessárias para Gaia continuar habitável por nós e por outros
seres vivos? 
Esses são problemas globais que transcendem nosso paradigma
de conhecimento especializado. A vida não cabe numa fórmula, nem o
cuidado numa equação de cálculo. Para captar esse todo precisa-se de
uma leitura sistêmica junto com a razão cordial e compassiva, pois é
esta razão que nos move à ação.
Temos que desenvolver urgentemente a capacidade de somar,
de interagir, de religar, de repensar, de refazer o que foi desfeito e de

Desafios éticos e direitos humanos 19


inovar. Esse desafio se dirige a todos os especialistas para que se con-
vençam de que a parte sem o todo não é parte. Da articulação de todos
estes cacos de saber, redesenharemos o painel global da realidade a ser
compreendida, amada e cuidada. Essa totalidade é o conteúdo princi-
pal da consciência planetária, esta sim, a era da luz maior que nos li-
berta da cegueira que nos aflige.

O nosso lugar no conjunto dos seres

A ética da sociedade dominante no mundo é utilitarista e antro-


pocêntrica. Quer dizer: ilusoriamente considera que os seres da natu-
reza somente possuem razão de existir na medida em que servem ao
ser humano e que este pode dispor deles a seu bel-prazer. Ele compa-
rece como rei e rainha da criação. A tradição judaico-cristão reforçou
esta ideia com o seu “subjugai a Terra e dominai sobre tudo o que vive
e se move sobre ela” (Gn 1,28). Mal sabemos que, nós humanos, fomos
um dos últimos seres a entrar no teatro da criação. Quando 99,98% de
tudo já estava pronto, surgimos nós. O universo, a Terra e os ecossiste-
mas não precisaram de nós para se organizarem e ordenarem sua ma-
jestática complexidade e beleza. 
Cada ser possui valor intrínseco, independente do uso que faze-
mos dele. Ele representa uma emergência daquela Energia de fundo,
como dizem os cosmólogos, ou daquele Abismo gerador de todos os
seres. Tem algo a revelar que só ele o pode fazer, mesmo o menos adap-
tado, que em seguida, pela seleção natural, desaparecerá para sempre.
Mas a nós cabe escutar e celebrar a mensagem que nos tem a revelar. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
O  mais grave, entretanto, é a ideia que toda a modernidade e
grande parte da comunidade científica atual projeta do planeta Terra e
da natureza. Considera-as como simples “res extensa”, coisa que pode
ser mensurada, manipulada, na linguagem rude de Francis Bacon,
“torturada como o faz o inquisidor com sua vítima até arrancar-lhe
todos os segredos”. O método científico predominante mantém, em
grande parte, essa lógica agressiva e perversa.
René Descartes no seu  Discurso do Método  diz algo de um cla-
moroso reducionismo de compreensão: “não entendo por “natureza”
nenhuma deusa ou qualquer outro tipo de poder imaginário, antes
me sirvo dessa palavra para significar a matéria”. Considera o plane-

20 Leonardo Boff
ta como algo morto, sem propósito, como se o ser humano não fizesse
parte dele.
O fato é que nós entramos no processo da evolução quando esta
alcançou um patamar altíssimo de complexidade. Então irrompeu a
vida humana consciente e livre como um subcapítulo da vida. Por nós
o universo chegou à consciência de si mesmo. E isso ocorreu numa mi-
núscula parte do universo que é a Terra. Por isso nós somos aquela por-
ção da Terra que sente, ama, pensa, cuida e venera. Somos Terra que
anda, como diz o cantador indígena argentino Atauhalpa Yupanqui.
A nossa missão específica, nosso lugar no conjunto dos seres, é
o de sermos aqueles que podem apreciar a grandeza do universo, es-
cutar as mensagens que cada ser enuncia e celebrar a diversidade dos
seres e da vida.
E pelo fato de sermos portadores de sensibilidade e de inteli-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

gência temos uma missão ética: de cuidar da criação e de sermos os


guardiães dela para que continue com vitalidade e integridade e com
as condições de ainda evoluir já que está evoluindo há 4,4 bilhões de
anos. Graças a Deus que o autor bíblico como que corrigindo o texto
acima citado diz no segundo capítulo do Gênesis: “O Senhor tomou
o ser humano e o colocou no jardim do Eden (Terra originária) para o
cuidar e guardar” (Gn 2,15).
Lamentavelmente estamos cumprindo mal esta nossa missão,
pois no dizer do biólogo E. Wilson “a humanidade é a primeira espécie
da história da vida a se tornar uma força geofísica; o ser humano, esse
ser bípede, tão cabeça-de-vento, já alterou a atmosfera e o clima do pla-
neta, desviando-os em muito das normas usuais; já espalhou milhares
de substâncias químicas tóxicas pelo mundo inteiro e estamos perto de
esgotar a água potável” (A Criação: como salvar a vida na Terra, 2008,
38). Pesaroso, face a um quadro desses e sob a ameaça de um apocalip-
se nuclear se perguntava o grande filósofo italiano, do direito e da de-
mocracia, Norberto Bobbio: “a humanidade merece ainda ser salva” (Il
Foglio n. 409, 2014, 3)?
Se não quisermos ser expulsos da Terra pela própria Terra, como
os inimigos da vida, cumpre mudar nosso comportamento face à na-
tureza mas principalmente acolher a Terra como a ONU já em abril de
2009 o aceitou, como Mãe Terra e como tal cuidá-la, reconhecer e res-
peitar a história de cada ser, vivo ou inerte. Existiram antes de nós e
por milhões e milhões de anos sem nós. Por esta razão devem ser res-

Desafios éticos e direitos humanos 21


peitados como o fazemos com as pessoas mais idosas e as tratamos
com respeito e amor. Mais que nós, eles têm direito ao presente e ao
futuro junto conosco.
Caso contrário não há tecnologia e promessas de progresso ilimi-
tado que nos poderão salvar.

Justiça social-Justiça ecológica

Entre os muitos problemas que assolam a humanidade, dois são


de especial gravidade: a injustiça social e a injustiça ecológica. Ambos
devem ser enfrentados conjuntamente se quisermos pôr em rota segu-
ra a humanidade e o planeta Terra.
A injustiça social é coisa antiga, derivada do modelo econômico
que, além de depredar a natureza, gera mais pobreza que pode geren-
ciar e superar. Ele implica grande acúmulo de bens e serviços de um
lado à custa de clamorosa pobreza e miséria de outro. Os dados falam
por si: há um bilhão de pessoas que vive no limite da sobrevivência
com apenas um dólar ao dia. E há, 2,6 bilhões (40% da humanidade)
que vive com menos de dois dólares diários. As consequências são per-
versas. Basta citar um fato: contam-se entre 350-500 milhões de casos
de malária com um milhão de vítimas anuais, evitáveis. Essa anti-re-
alidade foi por muito tempo mantida invisível para ocultar o fracasso
do modelo econômico capitalista feito para criar riqueza para poucos e
não bem-estar para a humanidade.
A segunda injustiça, a ecológica está ligada à primeira. A devas-
tação da natureza e o atual aquecimento global afetam todos os paí- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
ses, não respeitando os limites nacionais nem os níveis de riqueza ou
de pobreza. Logicamente, os ricos têm mais condições de adaptar-se e
mitigar os efeitos danosos das mudanças climáticas. Face aos eventos
extremos, possuem refrigeradores ou aquecedores e podem criar de-
fesas contra inundações que assolam regiões inteiras. Mas os pobres
não têm como se defender. Sofrem os danos de um problema que não
criaram. Fred Pierce, autor de “O terremoto populacional” escreveu
no New Scientist de novembro de 2009: “os 500 milhões dos mais ricos
(7% da população mundial) respondem por 50% das emissões de gases
produtores de aquecimento, enquanto 50% dos pais mais pobres (3,4
bilhões da população) são responsáveis por apenas 7% das emissões”.

22 Leonardo Boff
Esta injustiça ecológica dificilmente pode ser tornada invisível
como a outra, porque os sinais estão em todas as partes, nem pode ser
resolvida só pelos ricos, pois ela é global e atinge também a eles. A so-
lução deve nascer da colaboração de todos, de forma diferenciada: os
ricos, por serem mais responsáveis no passado e no presente, devem
contribuir muito mais com investimentos e com a transferência de tec-
nologias e os pobres têm o direito a um desenvolvimento ecologica-
mente sustentável, que os tire da miséria.
Seguramente, não podemos negligenciar soluções técnicas. Mas
sozinhas são insuficientes, pois a solução global remete a uma ques-
tão prévia: ao paradigma de sociedade que se reflete na dificuldade
de mudar estilos de vida e hábitos de consumo. Precisamos da solida-
riedade universal, da responsabilidade coletiva e do cuidado por tudo
o que vive e existe (não somos os únicos a viver neste planeta nem a
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

usar a biosfera). É fundamental a consciência da interdependência en-


tre todos e da unidade Terra e humanidade. Pode-se pedir às gerações
atuais que se rejam por tais valores se nunca antes foram vividos glo-
balmente? Como operar essa mudança que deve ser urgente e rápida?
Talvez somente após uma grande catástrofe que afligiria milhões
e milhões de pessoas poder-se-ia contar com esta radical mudança, até
por instinto de sobrevivência. A metáfora que me ocorre é esta: nosso
país é invadido e ameaçado de destruição por alguma força externa.
Diante desta iminência, todos se uniriam, para além das diferenças.
Como numa economia de guerra, todos se mostrariam cooperativos e
solidários, aceitariam renúncias e sacrifícios a fim de salvar a pátria e a
vida. Hoje, a pátria é a vida e a Terra ameaçadas. Temos que fazer tudo
para salvá-las.

Qual será o futuro de nossos netos?

Olhando meus netos brincando no jardim, saltitando como ca-


britos, rolando no chão e subindo e descendo árvores surgem-me dois
sentimentos. Um de inveja: já não posso fazer nada disso com as qua-
tro próteses que tenho nos membros inferiores. E outra de preocupa-
ção: que mundo irão enfrentar dentro de alguns anos?
Os prognósticos dos especialistas mais sérios são ameaçadores.
Há uma data fatídica ou mágica sempre aventada por eles: o ano 2025.

Desafios éticos e direitos humanos 23


Quase todos afirmam: se nada fizermos ou não fizermos o suficiente já
agora, a catástrofe ecológica e humanitária será inevitável.
A recuperação lenta que se nota em muitos países da atual crise
econômico financeira, não significa ainda uma saída dela. Apenas que
a queda livre se encerrou. Volta o desenvolvimento/crescimento mas
com outra crise: a do desemprego. Milhões estão sendo condenados a
serem desempregados estruturais. Quer dizer, não irão mais ingressar
no mercado de trabalho, sequer ficarão como exército de reserva do
processo produtivo. Serão simplesmente dispensáveis. Que significa
ficar desempregado permanentemente senão uma lenta morte e uma
desintegração profunda do sentido da vida? Acresce ainda que estão
prognosticados até àquela data fatídica cerca de 150 a 200 milhões de
refugiados climáticos.
O relatório “State of the Future 2009” (O Globo de 14.07/09) feito
por 2.700 cientistas diz, enfaticamente, que devido principalmente ao
aquecimento global, por volta de 2025, cerca de três bilhões de pessoas
não terão acesso à água potável. Que significa dizer isso? Simplesmente
que esses bilhões, se não forem socorridos, poderão morrer por sede,
desidratação e outras doenças. O relatório diz mais: metade da popula-
ção mundial estará envolvida em convulsões sociais em razão da crise
sócio-ecológica-global.
Paul Krugman, prêmio Nobel de economia de 2008, sempre
ponderado e crítico quanto à insuficiência das medidas para enfren-
tar a crise socioambiental, escreveu recentemente: “Se o consenso dos
especialistas econômicos é péssimo, o consenso dos especialistas das
mudanças climáticas é terrível” (JB 14/07/09). E comenta: “Se agirmos
da mesma forma como agimos, não o pior cenário mas o mais prová- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
vel, será a elevação de temperaturas que vão destruir a vida como a
conhecemos.”
Se provavelmente assim será, minha preocupação pelos netos
se transforma em angústia: que mundo herdarão de nós? Que deci-
sões serão obrigados a tomar que poderão significar para eles vida
ou morte?
Comportamo-nos como se a Terra fosse só nossa e de nossa gera-
ção. Esquecemos que ela pertence principalmente aos que ainda virão,
nossos filhos e netos. Eles têm direito de poder entrar neste mundo,
minimamente habitável e com as condições necessárias para uma vida
decente que não só lhes permita sobreviver mas florescer e irradiar.

24 Leonardo Boff
Os cenários referidos acima nos obrigam a soluções que mudam
o quadro global de nossa vida na Terra. Não dá para continuar ga-
nhando dinheiro com a venda do direito de poluir (créditos de carbo-
no) e com a economia verde. Se o gênio do capitalismo é saber adap-
tar-se a cada circunstância, desde que se preservem as leis do mercado
e as chances de ganho, agora devemos reconhecer que esta estratégia
não é mais possível. Ela precipitaria a catástrofe previsível.
Para termos futuro devemos partir de outras premissas: ao invés
da exploração, a sinergia homem-natureza, pois Terra e humanidade
formam um único todo; no lugar da concorrência, a cooperação, base
da construção da sociedade com rosto humano.
Dão-me alguma esperança os teóricos da complexidade, da in-
certeza e do caos (Prigogine, Heisenberg, Morin) que dizem que em
toda a realidade funciona a seguinte dinâmica: a desordem leva à au-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

to-organização e à uma nova ordem e assim à continuidade da vida


num nível mais alto.” Porque amamos as estrelas não temos medos da
escuridão.

Referências bibliográficas

http://www.leonardoboff.com/
http://leonardoboff.wordpress.com/

Desafios éticos e direitos humanos 25


E VOCÊ, QUAL O SEU COMPROMISSO
COM A ÉTICA?

Iradj Roberto Eghrari1

Ultimamente, muito tem-se falado sobre a questão da ética e dos


direitos humanos no ambiente corporativo. Durante esse nosso encon-
tro, por exemplo, passamos todo o dia falando em teses que buscam
esclarecer os parâmetros que as empresas estatais devem utilizar para
balizar a sua atuação com base em critérios éticos, no respeito e valori-
zação das diferenças e na garantia de que os direitos humanos de seus
funcionários, colaboradores e até mesmo fornecedores e de toda a co-
munidade a sua volta sejam sempre respeitados. Mas agora gostaria de
fazer uma provocação um pouco diferente: quero trazer o foco para o
indivíduo que compõe essas empresas, que é o elemento essencial que
está por detrás da necessidade de se estabelecer essas regras de condu-
ta empresariais, que somos cada um de nós.1
Se é o indivíduo quem traz concretude a cada uma dessas regras
e normas, é que representa a própria razão de ser do respeito aos di-
reitos humanos e de uma conduta ética, qual é então o papel do indiví-
duo na materialização dessa nova cultura que desejamos ver emergir
dentro das empresas? Como um indivíduo se torna ético? Essa trans-
formação certamente vai muito além do simples ato de assistir a uma
palestra, de ouvir de forma meramente técnica os requisitos para cum-
prir com as demandas que emergem dos processos de tomada de de-

1
Palestra no X Fórum de Ética nas Empresas Estatais, Brasília, outubro de 2014. Iradj Roberto
Eghrari, 55 anos, é engenheiro eletrônico pela PUC/RJ e mestre em engenharia eletrônica
pela PUC/RJ; bacharel em administração de empresas pela PUC/RJ; secretário Nacional de
Ações com a sociedade e o governo da Comunidade Bahá’í do Brasil; gerente-executivo da
ONG Ágere Cooperação em Advocacy; líder parceiro Avina; membro do Comitê Nacional
de Educação em Direitos Humanos, órgão da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República; e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil.

27
cisão, da implantação de guias e estratégias que tratam daquilo que
“deve ser”. É preciso mais do que uma determinação de aspectos ge-
rais a serem seguidos para que cada um de nós possa fazer aflorar essa
característica em nossas vidas, em nossas rotinas.
Qual o “plano de trabalho” que uma pessoa deve desenvolver
dentro de uma empresa para que possa guiar a sua atuação indivi-
dual e desempenhar um papel ético? Nesse contexto, a existência de
mecanismos de queixa e denúncia de desrespeito aos direitos huma-
nos não é o bastante para assegurar uma conduta ética – é preciso, na
realidade, evitar que a violação aconteça, e investigar as razões pelas
quais ela acontece.

Defesa, Promoção e Garantia dos direitos humanos na empresa

No âmbito das empresas, assim como no do Estado, é possível


afirmar que a violação de direitos humanos ocorre diante da fragilida-
de de um sistema que não é capaz de garantir e proteger seus cidadãos
da ação (ou omissão) violadora. Isso geralmente ocorre porque se ob-
serva a reprodução de uma cultura formada por indivíduos que se dis-
tanciam de uma moral defensora, garantidora e promotora de direitos
humanos.
O grande desafio, portanto, está na promoção de uma contracul-
tura que de fato estimule uma atuação ética por parte de cada indiví-
duo que a compõe, o que no médio e curto prazo gerará uma “desba-
nalização” da violência, do racismo, do sexismo, dos preconceitos so-
ciais e de geração, da desvalorização das pessoas com deficiência e de Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
tantas outras diversidades que, por não serem respeitadas, acarretam
nas violações de direitos humanos.
A proposta que quero aqui compartilhar é composta de dois ele-
mentos essenciais. O primeiro diz respeito à integralidade do indiví-
duo; o segundo trata das bases sobre as quais o indivíduo constrói a
sua identidade ética e da capacidade de cada indivíduo de promover
uma reavaliação da sua própria conduta diante de uma compreensão
expandida acerca da sua responsabilidade ética.

28 Iradj Roberto Eghrari


A Integralidade do Indivíduo

O indivíduo integral a que me refiro é aquele que consegue se


enxergar como uma mesma pessoa em todos os espaços em que atua.
Que não se separa em “múltiplas personalidades”, que não flexibiliza
a sua compreensão do que caracteriza uma violação de direitos huma-
nos dependendo se está em casa, no trabalho, com os amigos, no clube
ou qualquer outro espaço em que desempenhe papéis diferentes.
Uma boa ilustração para essa questão foi apresentada numa
campanha elaborada em 2012 pelo SESI - Serviço Social da Indústria
em parceria com a Infraero para sensibilizar sociedade com relação à
exploração sexual de crianças e adolescentes. No vídeo2, um homem
retorna de uma viagem internacional, provavelmente a trabalho, e é
questionado pela funcionária da imigração se está viajando sozinho.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Ele responde que sim – mas as imagens mostram ao fundo uma me-
nina de short curto, maquiagem carregada, salto alto e cara de adoles-
cente, que o acompanha durante todo o trajeto, meio que invisível, até
ele se encontrar com a esposa e as filhas que o apanham de carro na
saída do aeroporto. E aí vem a pergunta: “Que tipo de lembrança você
anda trazendo das suas viagens?”
O que fica desse vídeo é a representação de um indivíduo que
pode ser ético na família, ser um ótimo esposo e pai, um excelente
profissional na empresa em que trabalha, uma pessoa ética na sua
igreja ou congregação, mas que tem conduta violadora ao contribuir
para a exploração sexual de adolescentes. O exemplo nos ajuda a en-
tender o sujeito que no trabalho é companheiro com todos e em casa
agride física e psicologicamente sua mulher. Ou aquele que na igreja
colabora com ações sociais e nas suas relações empresariais corrom-
pe e é corrompido, por exemplo admitindo que na cadeia produtiva
o trabalho infantil esteja presente. Essa cisão interna acontece porque
ele flexibiliza a sua ética quando está fora do seu ambiente habitual.
Ele cria em sua mente uma lógica cindida – algo que para ele é difícil
de perceber porque ele provavelmente nunca parou para pensar so-
bre isso, sobre as consequências das “escapulidas” às suas próprias
diretrizes éticas.

2
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_C02XvsXpJM (visualizado em 18 de
setembro de 2014).

E você, qual o seu compromisso com a ética? 29


De onde vem a ética individual?

O tema da definição de nossas próprias diretrizes éticas nos leva


para uma reflexão acerca do segundo elemento da reflexão que venho
propor: de onde o indivíduo traz os elementos que conformam a sua
ética. Quais são as fontes, as bases para o estabelecimento desses pa-
drões, que devem reger o indivíduo integral? Algumas possíveis res-
postas são: os Guias e Luminares espirituais nos quais se inspira; os
padrões socialmente aceitos; o exemplo e a educação que recebeu de
seus pais e familiares... Como se dá o processo de construção dessa éti-
ca? E, mais importante ainda, como é que esse indivíduo se torna ca-
paz de realizar uma análise crítica acerca dos padrões de comporta-
mento e pensamento que guiam as suas ações? Como essa pessoa lida
com o fato de se reconhecer como seguidor e multiplicador de um pa-
drão que se torna violador de direitos humanos?
Diante disso, será possível a cada um de nós reavaliar o nosso
próprio padrão ético? É fácil pensar que aos 10 anos de idade, quando
o indivíduo ainda está formando a sua ética, essas mudanças possam
acontecer – desde que ele seja exposto à possibilidade de realizar essa
investigação a que me referi há pouco. Mas será que eu – com meus 20,
30, 40, 60 anos de idade – sou capaz de realizar essa reavaliação e pro-
mover uma mudança substantiva naquilo na minha conduta ética den-
tro dessa nova perspectiva de um ser humano integral?
No documento A Prosperidade da Humanidade3, há um trecho que
diz que “[a] atividade mais intimamente ligada à consciência, a qual
distingue a natureza humana, é a investigação individual da realida-
de”, e que “[o]s seres humanos precisam ser livres para conhecer”. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
A constatação apresentada é que essa busca pela verdade é um im-
pulso notável da consciência humana “que provê o imperativo moral
para a enunciação de muitos dos direitos consagrados na Declaração
Universal e nos Acordos correlatos”.
Portanto, o indivíduo que é livre para pensar e repensar a sua éti-
ca ao longo de toda a sua trajetória pessoal e profissional, e que – mais
ainda – é estimulado a fazê-lo de forma consciente, torna-se capaz de
se livrar dos “pré-conceitos” geradores de uma ética distorcida, cindi-
da, perniciosa.
A Prosperidade da Humanidade. 1995. Disponível em http://www.bahai.org.br/secext/
3

arquivos/9-10-2009/Prosperidade-da-Humanidade.pdf (visualizado em 18 de setembro de 2014).

30 Iradj Roberto Eghrari


Com base nessas questões, eu – um ser pensante, livre, consciente
– decido que quero ser esse indivíduo integral que descrevemos até aqui.
Como posso saber a “fonte boa” a partir da qual devo trabalhar a minha
ética? Como definir os elementos que devo usar para fazer isso acontecer?
A tese de que os seres humanos seriam intrinsecamente violentos,
e de que a contenda seria a nossa real natureza cai por terra diante da
convicção demonstrada pela maior parcela da comunidade mundial da
existência de um consenso mínimo em torno do que se convencionou
chamar “valores humanos”. Desta maneira, mesmo diante de todas as
agressões e conflitos que têm caracterizado os nossos sistemas sociais,
econômicos e religiosos, verifica-se que pessoas de todas as nações estão
não apenas ansiando por paz e harmonia, por um mundo ético e condu-
cente a realização de altas expectativas, mas também demonstrando, por
meio de ações sistemáticas, a sua disposição de estabelecê-las, pondo
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

um fim às apreensões devastadoras que atormentam as suas vidas diá-


rias. Nesses atos de rebeldia contra a negatividade aparentemente ine-
rente ao sistema, encontram-se as bases sobre as quais é possível erigir
“um sistema social simultaneamente progressivo e pacífico, dinâmico e
harmonioso - um sistema que dê liberdade à iniciativa e à criatividade
individuais, mas baseadas na cooperação e na reciprocidade”4.
O reconhecimento dessa essência encontra ressonância na cha-
mada “Regra de Ouro”5 – o ensinamento de que “devemos tratar os
outros assim como gostaríamos de ser tratados”. Os excertos abaixo
demonstram a forma como essa ética se repete, com linguagem varia-
da, em todas as grandes religiões:
• Budismo6: “Não firas os outros de um modo que não gostarias de
ser ferido.”
• Zoroastrismo7: “Aquela natureza só é boa quando não faz ao outro
aquilo que não é bom para ela própria.”
• Judaísmo8: “O que te é odioso, não faças ao teu semelhante. Esta é
toda a Lei, o resto é comentário.”
4
A Promessa da Paz Mundial. 1985. Disponível em http://www.bahai.org.br/secext/arquivos/
9-10-2009/PROMESSA-DA-PAZ-MUNDIAL.pdf (visualizado em 18 de setembro de 2014).
5
Momento Decisivo Para Todas as Nações. 1996. Disponível em http://bahairesearch.com/
portuguese/Bah%C3%A1%C2%B4%C3%AD/Authoratiative_Bah%C3%A1’%C3%AD/A_Casa_
Universal_de_Justi%C3%A7a/Org%C3%A3os_da_CUJ/Momento_Decisivo_para_Todas_as_
RegiSes_-_Turning_Point_for_all_Nations.aspx (visualizado em 18 de setembro de 2014).
6
Udana-Varqa 5:18 (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
7
Dadistan-i Dinik 94:5 (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
8
Talmude, Shabbat 31ª (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).

E você, qual o seu compromisso com a ética? 31


• Hinduísmo9: “Esta é a soma de toda a verdadeira virtude: trate os
outros tal como gostarias que eles te tratassem. Não faças ao teu próximo o que
não gostarias que ele depois fizesse a ti.”
• Cristianismo10: “O que quereis que os homens vos façam, fazei-o
também a eles.”
• Islamismo11: “Nenhum de vós é um crente até que deseje a seu ir-
mão aquilo que deseja para si mesmo.”
• Taoísmo12: O homem superior “deve apiedar-se das tendências
malignas dos outros; olhar os ganhos deles como se fossem seus próprios, e
suas perdas do mesmo modo.”
• Confucionismo13: “Eis por certo a máxima da bondade: Não faças
aos outros o que não queres que façam a ti.”
• Fé Bahá'í14: “Não desejar para os outros o que não deseja para si
próprio, nem prometer aquilo que não pode cumprir.”

O Conceito de “Guardiania Coletiva” e seus impactos dentro da


empresa

A sustentabilidade das comunidades humanas – entendida aqui


como algo que vai muito além da relação do ser humano com o meio
ambiente, compreendendo também todas as demais relações possíveis
entre pessoas, animais e outros reinos – bem como a sua prosperidade
dependem de um movimento de busca ativa por parte de cada indiví-
duo pela promoção de uma cultura “na qual o desenvolvimento moral, ético,
emocional e intelectual do indivíduo seja a preocupação principal. É em tal am-
biente que o indivíduo tem mais probabilidades de tomar-se um cidadão orienta- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
do para o serviço e construtivamente engajado, trabalhando pelo bem-estar ma-
terial e espiritual da comunidade; é em tal ambiente que uma visão comum e um
senso compartilhado de propósito podem desenvolver-se de maneira eficaz.”15

9
Mahabharata (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
10
Lucas 6:31 (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
11
Sunnah(citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
12
Thai-Shang (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
13
Analectos XV, 23 (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
14
Seleção dos Escritos de Bahá’u’lláh (citado em Momento Decisivo Para Todas as Nações).
15
Comunidades Sustentáveis Num Mundo em Integração. 1996. Disponível em http://
bahairesearch.com/portuguese/Bah%C3%A1%C2%B4%C3%AD/Authoratiative_
Bah%C3%A1’%C3%AD/A_Casa_Universal_de_Justi%C3%A7a/Org%C3%A3os_da_CUJ/
Comunidades_Sustent%C3%A1veis.aspx (visualizado em 18 de setembro de 2014).

32 Iradj Roberto Eghrari


Um outro pilar dessa nova base ética se define em torno da noção
de que “cada um de nós ingressa no mundo sob a guarda do todo e, por sua
vez, possui como legado um certo grau de responsabilidade para com o bem-
-estar da coletividade”16. Nesse contexto, o indivíduo deve ser colocado
no centro do processo de construção de uma cultura de direitos huma-
nos, como protagonista da mudança que queremos ver no mundo. Ao
mesmo tempo, é importante que esse mesmo indivíduo seja libertado
das amarras do ego, uma vez que ele próprio se torna responsável para
que os demais à sua volta tenham os seus direitos humanos fundamen-
tais devidamente respeitados.
“A aplicação deste princípio, conhecido como “guardiania cole-
tiva”, requer uma significativa mudança de paradigmas, colocando a
cooperação, o respeito e o entendimento de que somos cidadãos de um
só planeta”17.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

A prática dentro da realidade coorporativa

A educação em direitos humanos é uma das saídas mais eficien-


tes para se encontrar um padrão ético que solucione as grandes ques-
tões que hoje afligem o mundo corporativo. Se o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos - PNEDH, elaborado em 2007– de cuja
formulação tive a honra de participar enquanto membro do Comitê
Nacional de Educação em Direitos Humanos do Governo Federal –
for internalizado em cada uma das empresas que representamos aqui
nesse Fórum, o resultado será a criação de uma verdadeira cultura de
direitos humanos dentro dessas empresas, traçando um paralelo en-
tre grande parte das ações previstas no capítulo dedicado à Educação
Não-Formal do PNEDH e a realidade do ambiente coorporativo.
Segundo descrito no PNEDH,

A educação não-formal em direitos humanos orienta-se pelos


princípios da emancipação e da autonomia. Sua implementação
configura um permanente processo de sensibilização e forma-

16
Sociedades Sustentáveis – Rumo a um Novo ‘Nós’. 2012. Disponível em http://www.bahai.
org.br/secext/arquivos/13-6-2012/Rio+20-declaracao-BIC.pdf (visualizado em 18 de setembro
de 2014).
17
http://www.bahai.org.br/acao-social/principios-em-acao/desenvolvimento-e-sustentabilidade
(visualizado em 18 de setembro de 2014).

E você, qual o seu compromisso com a ética? 33


ção de consciência crítica, direcionada para o encaminhamento
de reivindicações e a formulação de propostas para as políti-
cas públicas, podendo ser compreendida como: a) qualificação
para o trabalho; b) adoção e exercício de práticas voltadas para
a comunidade; c) aprendizagem política de direitos por meio
da participação em grupos sociais; d) educação realizada nos
meios de comunicação social; e) aprendizagem de conteúdos
da escolarização formal em modalidades diversificadas; e f)
educação para a vida no sentido de garantir o respeito à digni-
dade do ser humano.18

Portanto, no exercício de nossas funções no ambiente de traba-


lho coorporativo e assumindo o papel que ora reconhecemos de guar-
diães do todo, cada um e cada uma de nós passará a promover esse
novo paradigma de maneira integral – da mesma maneira como deve-
mos fazê-lo no seio da família ou nas nossas comunidades e grupos de
afinidade.
A título de exercício, coloco aqui algumas sugestões de aborda-
gens possíveis19 do ponto de vista do indivíduo comprometido com a
ética e os direitos humanos em seu local de trabalho:
• Estabelecer uma gerência de diversidade e direitos humanos
na empresa
• Identificar e avaliar, no âmbito da corporação ou das orga-
nizações parceiras do setor, as iniciativas de educação não-formal
em direitos humanos, de forma a promover sua divulgação e socia-
lização;
• Estimular o desenvolvimento de programas de formação e ca-
pacitação continuada da sociedade civil, para qualificar sua interven-
Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
ção de monitoramento e controle social junto aos órgãos colegiados de
promoção, defesa e garantia dos direitos humanos em todos os pode-
res e esferas administrativas;
• Apoiar e promover a capacitação de agentes multiplicadores
para atuarem em projetos de educação em direitos humanos nos pro-
cessos de alfabetização, educação de jovens e adultos, educação po-

18
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH. Governo Federal, 2007.
Disponível em http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para-todos/pdf/copy_of_PNEDH.pdf
(visualizado em 18 de setembro de 2014).
19
Adaptações do texto do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH. Governo
Federal, 2007. Disponível em http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para-todos/pdf/copy_
of_PNEDH.pdf (visualizado em 18 de setembro de 2014).

34 Iradj Roberto Eghrari


pular, orientação de acesso à justiça, atendimento educacional espe-
cializando às pessoas com necessidades educacionais especiais, entre
outros;
• Promover cursos de educação em direitos humanos para qua-
lificar indivíduos em cargos de gerência e direção;
• Estabelecer intercâmbio e troca de experiências entre empre-
sas vinculadas a programas e projetos de educação não-formal, para
avaliação de resultados, análise de metodologias e definição de parce-
rias na área de educação em direitos humanos;
• Apoiar técnica e financeiramente atividades nacionais e in-
ternacionais de intercâmbio entre as empresas, que envolvam a elabo-
ração e execução de projetos e pesquisas de educação em direitos hu-
manos;
• Incluir a temática da educação em direitos humanos nos pro-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

gramas de qualificação profissional promovidos pela empresa;


• Fomentar o tratamento dos temas de educação em direitos
humanos nas produções artísticas, publicitárias e culturais realizadas
ou apoiadas pela empresa, assim como em todos os seus materiais de
comunicação.

Elementos de liderança para o plano de trabalho individual

Na concepção desse “plano de trabalho” de cada cidadão com-


prometido com o bem-estar da coletividade, é preciso identificar as
qualidades e valores que podem guiar e inspirar o indivíduo ético den-
tro da empresa em que trabalha. A experiência demonstra que é pos-
sível traçar um paralelo entre essas qualidades e valores com aqueles
que são demonstrados pelas lideranças de destaque no âmbito do vo-
luntariado mundial, conforme destacadas no gráfico abaixo20:

20
Adaptado de EGHRARI, Iradj Roberto. Voluntariado: um ato de liderança servidora. Palestra
na empresa Vale S/A em 21 de novembro de 2011, Rio de Janeiro.

E você, qual o seu compromisso com a ética? 35


A liderança ética de que falamos durante esse breve encontro
não pressupõe qualquer papel específico no organograma empresa-
rial, e por esse motivo difere do conceito de liderança organizacional.
Não cabe, por exemplo, exclusivamente a gerentes e administradores;
pelo contrário, pode ser exercida tanto pelos indivíduos encarregados
das funções de segurança e limpeza, passando pelos cargos de asses-
soria e secretariado, e chegando aos altos executivos. Abaixo apresen-
to algumas das qualidades que são esperadas desse tipo de liderança:

Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo

36 Iradj Roberto Eghrari


Nesse cenário, toda liderança tem o potencial de contribuir com
a mudança de cultura e de paradigma ético que queremos ver no cená-
rio corporativo em nosso país e no mundo. São indivíduos – mulheres
e homens, júniores e sêniores, de todos os níveis educacionais, com-
prometidos com a mudança que queremos ver no mundo – começan-
do por si mesmos para então transformar a cultura e estabelecer raízes
no modo de pensar e agir desta e das futuras gerações.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

E você, qual o seu compromisso com a ética? 37


DESCOLONIZAÇÃO E DIREITOS
HUMANOS NA EDUCAÇÃO

Alípio Casali1

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e


direitos. São dotados de razão e consciência e devem compor-
tar-se fraternalmente uns com os outros.
(Art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU, 1948)
1

Preliminares

Este é um estudo introdutório associado a um ensaio crítico so-


bre a educação como afirmação e prática da efetivação e ampliação dos
direitos humanos, ou seja, como superação de toda forma de colonia-
lismo. O tema exige alguns esclarecimentos prévios.
Premissas semânticas. Tratemos preliminarmente de tirar do es-
quecimento o sentido etimológico mais originário dos três conceitos
contidos no título deste texto: descolonização, direitos, educação.
O colonialismo acrescentou à violência real que praticou uma vio-
lência simbólica perversa de dissimulação da sua própria brutalida-
de. E fez isso inclusive do modo mais abrangente e poderoso: o da
dissimulação do seu próprio nome. O vocábulo colonialismo deriva do
verbo latino colere (colo, colui, cultum, colere), que significa: 1. Cultivar;
2. Habitar; Morar em; (...) 6. Honrar; Venerar; Respeitar (TORRINHA,

1
Filósofo, Doutor em Educação pela PUC-SP, Pós-doutor em Educação pela Universidade de
Paris, Professor Titular do Departamento de Fundamentos da Educação e da Pós-Graduação
em Educação, da PUC-SP. Publicado originalmente na Revista de Educação Pública - Edição
Temática Semiedu 2013 - maio/ago.2014, v. 23, n. 53/1. http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/
index.php/educacaopublica/article/view/1617 - Contato: a.casali@uol.com.br

39
1942). O indicativo presente desse verbo, na primeira pessoa do sin-
gular (colo), em sua primeira acepção, significa eu habito a terra e nela
trabalho; eu cultivo o campo [e dele sobrevivo]. Como se observa, o ver-
bo expressa uma relação direta de propriedade e pertença com a terra
(eu habito a terra). Se assim é, a expressão “colonialismo” é uma brutal
inversão (uma usurpação semântica dissimulada, muito mais que um
eufemismo) desse sentido originário de cultivar a própria terra; tra-
balhar como autoprodução material da vida; cumprir, na realização
da cultura material do alimento a partir da terra (agri-cultura), o fun-
damento apropriado (não-alienado) da cultura em seu sentido amplo
(simbólico, estético, cognitivo, espiritual, religioso). Pois o conceito de
cultura, enquanto conjunto de ideias, conhecimentos e criações estéti-
cas, resulta em última instância dessa mesma relação primordial e ma-
terial que constitui o trabalho humano (PINTO, 1969, p. 119-138). Por
aí se conclui o quanto a completa descolonização cultural requer uma
prévia e completa descolonização do discurso.
A noção de direitos está associada historicamente a ideias de: leis
e bons costumes; justiça; correção; ausência de erros; certeza; hones-
tidade (HOUAISS, 2004). Etimologicamente, direito deriva do adjeti-
vo directus, a, um (latim): o que segue em linha reta, o que segue regras ou
ordens preestabelecidas (TORRINHA, 1942). O adjetivo directus, por sua
vez, decorre do particípio passado do verbo dirigere, e por aí também
chegamos à ideia de direção, o que implica movimento (em direção a) e
confere ao Direito um sentido histórico inerente.
Quanto ao vocábulo educação, as citações mais comuns da sua eti-
mologia associam-no com razão a ducere (conduzir, levar, transportar),
mas predominantemente remetem o prefixo e- (de e-ducere) ao sentido Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
socrático de conduzir algo/alguém de dentro para fora, esquecendo-se
de que aí está presente também o substantivo dux, ducis, que é referên-
cia à figura ancestral do pastor, o-que-vai-à-frente (TORRINHA, 1942);
e, por esse sentido menos interpretativo, e-ducere seria antes conduzir
algo/alguém de um estado (lugar, condição) para outro. Aparece aí o
sentido forte de alteridade no ato educativo, no seu duplo sentido: de
um outro (alter) sempre implicado na educação; e de alteração da condi-
ção do educando.
Premissa ética. É preciso demarcar com clareza e contundência
suficientes que o colonialismo é uma das formas históricas mais bru-
tais de violação de Direitos Humanos de pessoas e povos, especial-

40 Alípio Casali
mente por seu poder de persistência como resíduo cultural. É um mo-
vimento inverso ao da educação – é alienação, pois, se a alteridade é a
marca da presença do outro como mediador de um processo de eman-
cipação, a alienação é o seu antagônico: a presença do outro como ge-
rador de submissão, desapropriação de si. Assim sendo, a descoloni-
zação como negação da negação equivale ao ato educativo que desa-
liena, emancipa (literalmente, ex-manu-capere: sai-da-mão-do-outro) e
gera autonomia.
Premissa cultural. O colonialismo persiste, mediante desdobra-
mentos e transmutações, em formas variadas e dissimuladas, como es-
tratégia da dominação cultural, particularmente nos casos de gestão
pública daqueles sistemas de ensino em que estejam implicados currí-
culos de escolas indígenas e quilombolas (os outros mais excluídos de
seus direitos no percurso histórico das Américas).
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Premissa política. Afirmamos que é possível formular uma con-


cepção emancipadora (autonomista) de Direitos Humanos e, com ela,
mediante práticas educativas críticas, contribuir para a superação dos
colonialismos.

Antecedentes históricos e culturais

Contribuições de sistemas míticos e religiosos para o desenvolvimento


dos Direitos Humanos na história

Em tempos em que a crise estrutural da economia de mercado


destrói Direitos Humanos e busca soluções em receituários padroniza-
dos para todo o mundo, parece ser indispensável abordar o tema a par-
tir de uma perspectiva histórica e sob um foco especial da tensão entre
universalidade e culturalidade.
As formulações primordiais acerca disso que hoje nomeamos
como Direitos Humanos encontram-se no sem-fundo das tradições
míticas de muitos e diversos povos. Aprendemos, com Mircea Eliade
(2007) que é apenas numa perspectiva histórica que podemos reconhe-
cer os mitos como fenômenos humanos, fenômenos de cultura (p. 10),
ingredientes vitais da civilização humana (p. 23), e que apenas nessa
condição podem eles exercer um certo poder de orientar nossa história
futura comum de humanidade. De partida, cabe observar que os mitos

Descolonização e direitos humanos na educação


41
são narrativas de origens que quase sempre referem-se a quedas e pro-
messas de restaurações futuras da justiça, paz e prosperidade para to-
dos. Independente desse aspecto, de distintos modos carregam sempre
uma afirmação fundamental da dignidade humana. Nessa condição,
podem ser vistos como formulações originárias dos principais conteú-
dos do que hoje nomeamos como Direitos Humanos.
As diversas linguagens de cunho religioso igualmente – e via de
regra de modo mais elaborado que as narrativas míticas – afirmam
valores que vieram a acumular mais substância cultural aos Direitos
Humanos contemporâneos. Assim, cabe reconhecer que a ideia de equi-
líbrio foi uma das primeiras noções, associadas a Direitos Humanos, a
ser formulada por sistemas filosófico-religiosos, e o foi pelo Taoísmo: o
Tao como o caminho do equilíbrio – ideia essa inerente à afirmação da
integridade da vida e presente hoje na figura da balança como símbolo
intercultural do Direito. O Hinduísmo - em que pese sua conformida-
de com práticas de violência cultural e física implícitas na segregação
de castas como dispositivo de “ordenamento” social na Índia – produ-
ziu de modo original a ideia da libertação como um valor (direito) hu-
mano fundamental. O Jainismo, apesar de sua concepção dualista que
opõe materialidade e espiritualidade, acrescentou ao patrimônio dos
direitos e da dignidade humana a ideia da solidariedade e da libertação
não-violenta (a ahimsa, de Ghandi) de tudo o que oprime e aprisiona as
potencialidades humanas. O Budismo, por sua vez, trouxe ao acervo
de conteúdos e valores inerentes aos Direitos Humanos a afirmação
radical da compaixão com o sofrimento do outro, inserida na totalidade
do sistema-vida, o que agregou referências críticas fundamentais para
uma visão socioecológica da realidade. A tradição teológica judaico- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
-cristã, por sua vez, em que pesem algumas de suas práticas históricas
de dominação e exclusão, expandiu de modo radical esse horizonte
de reconhecimento de Direitos Humanos fundamentais ao afirmar a
igualdade de todos os seres humanos diante de um mesmo Criador, a
justiça, o amor, a paz e, especialmente, o perdão. O Islamismo, em que
pesem também as justas restrições acerca de algumas de suas práti-
cas fundamentalistas tendencialmente violentas, e as acusações injus-
tas que o reduzem a esses fundamentalismos, valorizou as tradições
míticas e religiosas historicamente anteriores ao Corão e exaltou o ide-
al da caridade sobre o fundo da submissão (reconhecimento) à ordem di-
vina do mundo.

42 Alípio Casali
Contribuições de sistemas culturais e políticos para o desenvolvimento
dos direitos humanos na história

Registros histórico-culturais de outras tradições, de sistemas cul-


turais e políticos, em distintos contextos, igualmente testemunham
uma marcação extraordinariamente convergente desses ideais que
constituíram a principal substância do que hoje denominamos Direitos
Humanos.
No antigo Egito (remontando a 4000 a.C.) o Livro dos Mortos já
expressava o valor ético atribuído à solidariedade para com os famin-
tos e miseráveis, à justiça e ao respeito recíproco entre os seres huma-
nos. O morto – em que pese o fato de tratar-se mais frequentemente de
um nobre do que de um escravo -, aspirando à eternidade, era enterra-
do com um papiro em que constavam registradas notas e declarações
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

acerca de seu “relato de vida”, tais como: “Não cometi iniquidade contra
os homens... Não fiz padecer fome... Não roubei... Dei pão ao faminto, vesti o
nu e dei barca ao náufrago...” (Cap. 125). Enrique Dussel (2000) explora
as notáveis semelhanças conceituais e linguísticas entre essa passagem
do Livro dos Mortos e textos do Livro do Profeta Isaías (cap. 58, ver-
sículo 7) e do Evangelho de Mateus (capítulo 25, versículo 35), e reco-
nhece aí a “formulação de uma reflexão ético-filosófica, talvez consti-
tuindo o texto crítico mais antigo de que a Humanidade tenha memó-
ria” (p. 635). Os egípcios forneceram, aí, importantes fundamentos ao
vindouro conceito de Direitos Humanos.
Na Mesopotâmia, reino da Suméria, atual Iraque, em torno de
1750 a.C., o Código do Rei Hamurabi, gravado numa pedra de diori-
to, afirmava o dever de justiça, da solidariedade para com os fracos, da
responsabilidade pelos próprios atos, do respeito à vida e à proprieda-
de do outro. Em que pese o fato de seguir legitimando a escravidão e
sustentar sua justiça na lei do talião (olho por olho, dente por dente) e
não conter, portanto, o conceito de reeducação nem o de perdão, con-
denava o falso testemunho, o roubo e a receptação, o estupro, o incesto
e outras práticas contrárias à dignidade dos seres humanos: afirmava
que se devia “Praticar a justiça... Não roubar... Responsabilizar-se por seus
atos... Proteger os fracos...”
Novamente no Egito, agora em torno de 1200 a.C., os Manda-
mentos de Jahveh ao povo hebreu, pela boca de Moisés, anunciaram
uma ordem de convívio digno e respeitoso entre os seres humanos:

Descolonização e direitos humanos na educação


43
“Honrarás pai e mãe... Não matarás... Não furtarás... Não mentirás... Não co-
biçarás os bens do teu próximo”.
Na Pérsia, em 539 a.C., o cilindro do Rei Ciro – chamado de “o
rei justo” – registrava o seu compromisso com a justiça, proclamava a
liberdade de religião e abolia a escravidão em seu reino.
O Direito Romano, finalmente, desde 449 a.C., efetivou a primei-
ra marcação conceitual formal do princípio de dignidade e respeitabi-
lidade da pessoa humana, dentro de um completo sistema de legalida-
de, inaugurando as bases do futuro direito ocidental, ainda que discri-
minando direitos diversos para grupos diversos como prática de desi-
gualdade social (o cidadão, o escravo, o liberto).
Na Judéia, atual região de Israel e da Palestina, por volta do
ano 26 d.C, Joshua de Nazaré pronunciou seu conhecido Sermão da
Montanha: “Ama a teu próximo como a ti mesmo... Felizes os que choram, os
que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os pacíficos...”, afirmando
o princípio da igualdade de todos os homens perante Deus e demar-
cando uma nova referência de grande impacto na futura cultura mun-
dial dos Direitos Humanos.
Já em nossa era d.C., a Carta de Mandén (1222) do Imperador
Kundiata, ao fundar o Império de Mali, na África, afirmava enfatica-
mente o respeito à vida, à liberdade individual, à abolição da escra-
vatura, à solidariedade entre os seres humanos. Afirmava “Respeito à
vida... Liberdade individual... Solidariedade... Abolição da escravidão”.
Na Inglaterra, a Magna Carta que os senhores feudais impuse-
ram ao Rei João Sem Terra (1215) para proteger suas liberdades indi-
viduais é o documento pioneiro dos direitos individuais; mas deve-
-se observar também o grande valor histórico, para esse tema, da Lei Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
do Habeas Corpus (1679) e da Carta de Direitos (Bill of Rights, 1689) que
impunha limites às pretensões totalitárias do rei Guilherme III. Além
desses antecedentes da Revolução Inglesa, o conceito de direito natural
em John Locke e Thomas Hobbes marca o nascimento e o desenvol-
vimento do projeto político liberal, revolucionário em sua origem, e
enfatiza a função do contratualismo ocidental para o estabelecimento
de uma nova ordem sociopolítica. Outros pensadores, do Iluminismo
ou de outras posições críticas, inclusive do Romantismo, em outros
países, desenvolveram pensamentos correspondentes, buscando cons-
truir uma ordem racional do discurso para a vida em sociedade, à altu-
ra da dignidade da condição humana.

44 Alípio Casali
Em grandes linhas, ao final do século XVIII os ideais até então re-
volucionários de liberdade, individualidade, igualdade, propriedade e
democracia já haviam-se estabelecido no horizonte dos valores huma-
nos (supostamente naturais; de fato, historicamente construídos) como
afirmação de direitos. Não obstante, sabemos o quanto, na sequência
da história, tais ideais universalistas foram reduzidos a interesses da
classe que se tornou dominante com o estabelecimento do modo de
produção capitalista.
Nos Estados Unidos da América, a Declaração de Virgínia (1776)
e a Declaração de Independência (1787) afirmaram como Direitos
Humanos fundamentais a liberdade individual e a democracia formal,
entre outros. Com isso, a Constituição dos Estados Unidos da América,
independentes e soberanos, em 1787, foi a primeira a operar, em âmbi-
to político do Estado, esse horizonte de ideais. Não obstante, foram ne-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

cessários ainda quase duzentos anos para que os direitos civis adqui-
rissem plenitude formal para os cidadãos negros naquele país (Lei dos
Direitos Civis em 1964; e Lei do Direito ao Voto em 1965).
Foi na Revolução Francesa (1789) que realizou-se com plena cla-
reza a efetivação dos direitos políticos dos cidadãos por meio de um go-
verno propriamente republicano – em que pesem as oscilações e turbu-
lências violentas daquele processo revolucionário. Contraditoriamente,
e sintomaticamente, a primeira representação figurativa da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, republicana e laica,
fez-se como alusão religiosa direta às tábuas da lei de Moisés, em que
não faltou sequer a figura do Olho da Providência em seu alto. Essa
Declaração consolidou o principal da cultura dos Direitos Humanos
até então acumulada na história, razão pela qual veio a fornecer gran-
de parte dos conteúdos da Declaração vindoura da ONU, em 1948.
Outra referência cultural indispensável nesse trajeto histórico,
pelo seu elevado valor simbólico, é a Carta do Chefe Seattle dos índios
Duwamish ao então Presidente dos EUA, Franklin Pierce (1854), em
resposta à proposta presidencial de “comprar” uma parte das terras de
sua tribo e conceder em troca outra reserva de terras menos valiosas. A
resposta do Chefe Seattle começa de modo contundente: “Como é que se
pode comprar ou vender o céu e o calor da terra?” Uma lição de moral, de
justiça, de Direitos Humanos.
No século XIX, os direitos sociais, culturais e econômicos já apa-
receram como parte da luta dos atores sociais e políticos identificados

Descolonização e direitos humanos na educação


45
com os interesses dos trabalhadores e os emergentes partidos socia-
listas. A constitucionalização desses direitos sociais, porém, só veio
a ocorrer na primeira metade do século XX, materializando o que
Bobbio (2004) veio a denominar de “segunda geração” dos Direitos
Humanos.
Com efeito, em 1917, a Constituição Mexicana garantiu liberda-
des individuais e políticas, mas avançou em direitos sociais, estabele-
cendo a expansão do sistema de educação pública, a reforma agrária, a
proteção ao trabalho assalariado (direitos trabalhistas afirmados como
fundamentais). Já em 1910, durante a Revolução Mexicana, o líder dos
camponeses indígenas Emiliano Zapata afirmara como princípios: “1.
A terra para os que a trabalham com suas mãos (posição radicalmente an-
ticolonialista!); 2. Sempre tomaremos decisões coletivamente”. São afirma-
ções de direitos econômicos, sociais e políticos fundamentais.
Na Revolução Soviética (1917), e especialmente no Congresso
Pan-Russo de Sovietes (1918), os direitos sociais estiveram igualmen-
te no centro das principais decisões revolucionárias, como no direito à
apropriação coletiva dos meios de produção, na afirmação do direito
de todo cidadão a participar da produção (trabalho) e da distribuição
(apropriação) de riquezas, assim como no direito dos trabalhadores de
controlarem a produção (auto-gestão).
A Constituição da República alemã de Weimar (1919-1933),
que substituiu o antigo Império Prussiano, coincidiu com a linha de
Direitos Humanos fundamentais sociais da constituição mexicana. Ela
corroborou o estabelecimento de um Estado Social no século XX (em
contraste com o Estado Liberal do século XIX), que consagrou direitos
sociais no marco de novas relações de produção e nova constituição da Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
educação e da cultura.
Finalmente, em Paris, em 10 de dezembro de 1948, é assina-
da a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização
das Nações Unidas. Foram 48 votos de Nações a favor e oito absten-
ções. Sem desconsiderar o valor simbólico de seu elevado prestígio,
cabe registrar que tratou-se de uma declaração politicamente e ide-
ologicamente híbrida, que sintetizou princípios de 1789 (Revolução
Francesa) e de 1917 (Revolução Soviética). A Assembleia Geral das
Nações Unidas tinha consciência de que se estava diante de uma opor-
tunidade histórica única: a segunda guerra mundial havia se encer-
rado havia poucos anos, depois de ter produzido os piores horrores

46 Alípio Casali
de que a Humanidade até então tivera notícia. Era indispensável fir-
mar algum acordo que evitasse a repetição da barbárie dos campos
de concentração nazistas e da explosão de artefatos nucleares como
os que destruíram Hiroshima e Nagazaki. Mas o acervo de declara-
ções de Direitos Humanos até então acumulado na história era de per-
fil predominantemente liberal e os protagonistas da elaboração dessa
Declaração eram os países (aliados) que saíram vitoriosos da Segunda
Guerra (DAMIÃO, 2002). Entre eles estava a URSS que, não obstante
manejar seus próprios dispositivos de violência stalinistas, exigiu a in-
serção de “direitos sociais” na Declaração como condição para consen-
tir com a manutenção do princípio do “direito à propriedade privada”
e assinar a Declaração. O exército soviético derrotara o Nazismo ocu-
pando Berlin na investida final da Segunda Guerra... a URSS não pode-
ria ficar fora da “nova ordem mundial” do pós-guerra.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Essa Declaração de 1948, não obstante suas fragilidades, fechou


um arco de alianças políticas de largo alcance e segue cumprindo um
papel histórico de referência para lutas em prol da democracia. Ela é
tida como o documento mundial que conta até hoje com o maior nú-
mero de traduções: são 413 diferentes versões, sem distinção de lín-
guas e dialetos (ONU, 2013).

A evolução dos Direitos Humanos após 1948

Norberto Bobbio (2004) demonstra como os Direitos Humanos


vieram evoluindo por etapas (“gerações”), seguindo um trajeto de de-
senvolvimento histórico de crescente amplitude e consistência. O dis-
curso dos Direitos Humanos de 1948, porém, como documento in-
ternacional, foi relegado ao esquecimento e à desimportância pouco
tempo após o forte impacto de sua assinatura. Entretanto, na década
de 1960, os dois principais sistemas de poder mundial (Capitalismo
e Socialismo) entraram em crise política e isso trouxe consequências
para o nosso tema. Os Estados Unidos, no início dos anos 1960, enfren-
taram uma corrosiva luta pelos direitos civis, liderada por Luther King
(bem sucedida com a Lei dos Direitos Civis em 1964 e a Lei do Direito
do Voto em 1965). No final da década, 1968, na França e em mais de
outros 50 países, intensas manifestações de rua anticapitalistas e antis-
talinistas questionavam radicalmente ambos sistemas. No mesmo ano,

Descolonização e direitos humanos na educação


47
os eventos da Primavera de Praga - reformas políticas que vinham sen-
do implantadas pelo presidente tcheco Dubcek –, culminaram com a
invasão das tropas soviéticas e dos países do Pacto de Varsóvia sobre
a Thecoslováquia. Os EUA, enquanto isso, se desgastavam em uma in-
terminável e inútil guerra no Vietnã (1955-1975).
Esse conjunto de acontecimentos das décadas de 1960-1970 aba-
laram profundamente a legitimidade dos dois sistemas, capitalista e
socialista, e acordaram o mundo para as várias questões de Direitos
Humanos implicadas nesses conflitos. Duas figuras-ícones do fracas-
so político e humanitário dos Direitos Humanos começaram então a
emergir no imaginário político do mundo, no final dos anos 1960 e ao
longo da década de 1970: de um lado, a do dissidente político do to-
talitarismo soviético; de outro, a do torturado e exilado das ditaduras
militares nas sociedades capitalistas satélites do capitalismo, sobretu-
do na América Latina. Os Direitos Humanos vão sendo assim construí-
dos, nos anos 1970, como uma utopia genérica da anti-violência, da an-
ti-repressão, da ampla defesa das liberdades democráticas. A Anistia
Internacional, que havia sido criada em 1961 para defender liberda-
des políticas de cidadãos, emergiu nos anos 1970 como protagonista
supranacional e supracultural de grande legitimidade: seu presidente
Sean MacBride recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1974 e a própria en-
tidade foi igualmente agraciada em 1977.
Em 1975, em Port Alberni, Canadá, um novo e importante mar-
co de referência aos Direitos Humanos do ponto de vista simbólico da
interculturalidade se estabeleceu: representantes de povos indígenas
de vários países se reuniram na condição de membros do Conselho
Mundial dos Povos Indígenas (WCIP) e elaboraram uma Declaração Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Solene dos Povos Indígenas do Mundo, que acusa a chegada de civi-
lizações estranhas conquistadoras e colonizadoras aos seus territórios,
que os roubaram, mataram e escravizaram, “mas não nos puderam elimi-
nar nem nos fazer esquecer o que somos (...). Nós viveremos por mais tempo
que o império da morte!” (WCIP, 1975). Esse fato desencadeou um mo-
vimento junto à ONU para que preparasse uma Declaração oficial so-
bre os direitos dos povos indígenas. Esse movimento perseverou por
22 anos, até que em 2007 foi aprovada pela ONU a Declaração dos
Direitos dos Povos Indígenas, que afirmava seu direito: à autodeter-
minação; ao consentimento livre, prévio e esclarecido sobre toda ação
que interfira sobre suas terras e culturas; à reparação por furtos de suas

48 Alípio Casali
propriedades materiais ou imateriais; a manter suas culturas, línguas e
meios de comunicação; etc. (ISA, 2010).
Em 1976, a ONU aprovou, em Argel, Capital da Argélia, uma
Declaração Universal dos Direitos dos Povos, que condenou toda for-
ma de colonialismo, a qual serviu de parâmetro para outra Declaração
de grande importância histórica: a Declaração Universal dos Direitos
Coletivos dos Povos, aprovada na Cúpula da Conferência de Nações
sem Estado da Europa Ocidental - CONSEU, em Valência, Espanha,
1999 (CIEMEN, 2013).
Em 1981, estabeleceu-se outra importante referência para o
tema: a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, denomi-
nada “Carta de Banjul”, aprovada pela Conferência Ministerial da
Organização da Unidade Africana (OUA) em Banjul, Gâmbia, em ja-
neiro de 1981, que veio a ser adotada pela XVIII Assembleia dos Chefes
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de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana (OUA) em


Nairóbi, Quênia, em julho do mesmo ano. Nessa Carta reafirmam-se
os princípios da liberdade, igualdade, justiça e dignidade; reafirma-se
o compromisso de eliminar todas as formas de colonialismo, neocolo-
nialismo, apartheid, sionismo, ocupações militares estrangeiras e todas
as formas de discriminação na África; mas sustenta-se que a concepção
dos Direitos Humanos na África deve ter em conta as tradições e valo-
res africanos (Anistia Internacional, 1998).
Na América Latina, a década de 1970 ficou historicamente mar-
cada pelas graves violações de liberdade e dignidade de seres huma-
nos, povos e nações, consequência da intensificação do ciclo de ditadu-
ras militares que por aqui se instalaram sob a proteção da política ex-
terna dos EUA desde os anos 1960. Nesse contexto político, a esquerda
latinoamericana buscou proteção humanitária contra prisões, torturas
e exílios sob o guarda-chuva dos Direitos Humanos e da ação de gru-
pos religiosos progressistas. No Brasil, em 1975, a morte do “comu-
nista ateu” Vladmir Herzog nas dependências do DOI-CODI em São
Paulo suscitou uma enérgica solidariedade do Cardeal Arcebispo de
São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, que liderou uma frente de lide-
ranças religiosas e políticas em clara posição de enfrentamento ao regi-
me militar. Essa e outras atitudes suas lhe valeram receber, ao lado do
então presidente dos EUA, o democrata Jimmy Carter, o título de dou-
tor Honoris Causa em Direito pela Universidade (católica) de Notre
Dame, nos EUA. A presença de Jimmy Carter nessa premiação foi tida

Descolonização e direitos humanos na educação


49
como um esforço de suporte político e religioso às disposições daque-
le presidente de encerrar o ciclo de autoritarismo na política externa
norte-americana e de iniciar uma era de respeito efetivo aos Direitos
Humanos.
Em 1969, na cidade de San José da Costa Rica, a Organização
dos Estados Americanos - OEA instituiu a Convenção Americana de
Direitos Humanos  na forma de um tratado internacional, que en-
trou em vigência em 1978, constituindo uma das bases do Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, análogo aos siste-
mas europeu e africano (PIOVESAN, 2006). Conta com uma Comissão
e uma Corte, com sede em Washington.
Em 1993, 45 anos após a assinatura da Declaração Universal, a
ONU realiza uma importante Conferência sobre Direitos Humanos, em
Viena. Essa Conferência foi uma marcação de posição da ONU em de-
fesa da universalidade dos direitos humanos, e como reação a posicio-
namentos contra essa universalidade, manifestos: 1) pela Conferência
Islâmica do Cairo, Egito (1990), em que o Islam posicionou-se parcial-
mente fora do alcance da Declaração Universal; 2) pela Declaração de
Túnez, Tunísia (1992), em que os Estados africanos igualmente relati-
vizaram a universalidade dos Direitos Humanos, afirmando o direito
às particularidades históricas e culturais de cada nação e povo; 3) pela
Conferência de Bangkok (1993) na qual diversos países asiáticos igual-
mente recusaram a universalização genérica dos Direitos Humanos.
No Brasil, nos anos 2000, no âmbito da Constituição de 1988 (de-
nominada “constituição cidadã”), sob os governos de Cardoso (1995-
2002) e, principalmente, Lula (2003-2010), os Direitos Humanos entram
para o establishment político, tornando-se objeto da gestão do Estado, Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
tendencialmente sujeitos à mesma burocracia que as demais políticas
sociais. Uma “Secretaria de Direitos Humanos” fora criada em 1997 no
âmbito do Ministério da Justiça. Em 1º de janeiro de 2003, o Presidente
Lula inaugura seu governo criando a Secretaria Especial dos Direitos
Humanos - SEDH, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
- SEPM e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial - SEPPIR. Três áreas de grande sensibilidade no que se refere aos
Direitos Humanos. As três Secretarias Especiais passaram a integrar a
estrutura da Presidência da República exercendo seus titulares os car-
gos de Ministro/a de Estado, de fato e direito. Desde 1994 a Secretaria
de Direitos Humanos concede anualmente um Prêmio Nacional de

50 Alípio Casali
Direitos Humanos a cidadãos ou entidades nacionais que se desta-
quem em sua defesa ou promoção, e desde 1996 vige um Programa
Nacional de Direitos Humanos.
A ambivalência dessa condição de oficialização dos Direitos
Humanos como políticas de Estado é auto evidente: por um lado, ex-
pressa o valor do reconhecimento dos Direitos Humanos, o que propi-
cia maior probabilidade de respeito a seu cumprimento, protegendo e
promovendo os cidadãos; por outro lado, lança essa importante políti-
ca na zona de risco de sua redução a funções técnicas de gestão, o que
aumenta o poder do Estado de “gerir racionalmente” as violências co-
tidianas a que os cidadãos seriam “inevitavelmente” submetidos em
prol da “ordem e segurança pública”. Entre essas violências, cresce es-
pecialmente a das práticas de controle de informações sobre a vida dos
cidadãos e as limitações a seu direito de livre manifestação política.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Nos EUA, após 1989 (Consenso de Washington: hegemonia do


pensamento e da prática neoliberal), os Direitos Humanos e os Direitos
Civis entraram em regressão histórica: a ONU não reagiu à existência
dos novos campos de concentração de Guantánamo e do Afeganistão,
patrocinados pelos EUA. Nesse país, em outubro de 2001, logo após o
atentado ao World Trade Center de 11 de setembro, o Congresso apro-
vou o Patriot Act: lei nacional que autoriza agentes do Estado a espio-
nar cidadãos, invadir lares, deter, interrogar e torturar possíveis sus-
peitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a defesa ou julgamen-
to. Na prática, o Patriot Act, ainda em vigor, suprime as liberdades civis
e viola “oficialmente” os Direitos Humanos. Por extensão, legitima as
mesmas violações de privacidade, mediante espionagem abusiva so-
bre governantes e cidadãos de outros países. No mesmo diapasão, os
EUA atravessaram o poder do Conselho de Segurança da ONU para
iniciar uma guerra contra o Iraque baseados em informações falsas e
hoje buscam formas de condenar cidadãos que trouxeram a público in-
formações “sigilosas” referentes a tais violações de Direitos Humanos
praticadas oficialmente pelo seu governo.

Os Direitos Humanos entre a universalidade e as culturalidades

O criticismo kantiano foi o “sistema” de pensamento ocidental


que levou às mais radicais consequências a ideia de universalidade.

Descolonização e direitos humanos na educação


51
Deve-se levar em conta, porém, que na fysis, dentro da qual Kant eri-
giu sua arquitetura, concebia-se a natureza humana pelo atributo de
uma essência única e universal, razão pela qual sua pax perpetua apa-
recia como logicamente justificável. Foi preciso que os desdobramen-
tos da filosofia ultrapassassem os limites do racionalismo kantiano
para se concluir que aquela pax perpetua é empiricamente irrealizável
(DUSSEL, 2007, p. 147), pois a fysis não é identitária e, muito menos, a
cultura mundial.
A matriz liberal, teórica e prática, encontrou desde então na ideia
iluminista de universalidade kantiana um nicho conceitual onde po-
dia assentar e ocultar a contradição inerente a seu projeto classista de
história, dissimulando seu interesse particular sob a forma de interes-
se público, isto é, de direito universal. A culminância desse processo
encontra-se na concepção positivista do direito (sobretudo na “teoria
pura do direito”, de Kelsen), que estabeleceu “um ordenamento jurí-
dico indiferente a valores éticos, confinado à ótica meramente formal”
(PIOVESAN, 2006, p. 9). Ora, a Assembleia Geral da ONU que apro-
vou a Declaração dos Direitos Humanos em 1948 operou seu projeto
de pax perpetua adjetivando aquela Declaração como sendo “univer-
sal” (e não “internacional” ou “mundial”), dentro desse mesmo fundo
ideológico, crendo que estaria estabelecendo referências efetivamente
universais, isto é, validáveis para todo e qualquer ser humano, e todo
e qualquer povo, cultura e nação, de qualquer lugar e tempo, no pre-
sente e no futuro. Não se trata de questionar, porém, sua intenção, mas
sim sua exequibilidade. Pois sabemos o quanto o desenvolvimento da
Modernidade (ocidental) se fez, nos últimos cinco séculos, sob o sig-
no dessa mesma pretensa universalidade, que jamais ultrapassou um Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
eurocentrismo dissimulado, que tentou impor ao resto do mundo pa-
drões de interesse particular à cultura ocidental europeia. Não é difícil,
pois, dar-se conta do quanto esse acordo construído pelas 48 nações na
Assembleia da ONU de 1948 expressa em boa parte um processo de lo-
calização globalizada e, ao mesmo tempo, de globalização localizada, para
usar a expressão de Santos (2010, p. 439).
Assim sendo, nas circunstâncias mais contemporâneas, de cri-
se de governabilidade mundial, e de paz precária, quando os Direitos
Humanos entretanto vêm demonstrando um notável poder de agrega-
ção de lutas democráticas, de diálogo entre as nações e de alimenta-
ção de utopias – sem as quais a história mal se move –, impõe-se que a

52 Alípio Casali
pauta do tema seja definida considerando-se os ideais de intercultura-
lidade. Boaventura de Souza Santos (2010) afirma o imperativo de se
promover um cosmopolitismo subalterno insurgente, que “resista transna-
cionalmente e de modo organizado contra os localismos globalizados e
os globalismos localizados” (p. 439). Por seu vigor contra-hegemônico,
tal cosmopolitismo insurgente encontraria na reconstrução intercultu-
ral dos direitos humanos o único caminho legítimo e viável para se de-
senvolver (Ibid.). A tese de Santos é que “enquanto forem concebidos
como direitos humanos universais em abstrato, os direitos humanos
tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma
forma de globalização hegemônica” (Ibid.). Entretanto, pergunta-se
Santos, como operar essa interculturalidade? Sua proposta é que se re-
alize uma hermenêutica “diatópica” (diá: ao longo de, através de; topos:
lugar cultural) e um diálogo intercultural sistemático (p. 448), capa-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

zes de produzir um conhecimento-emancipação que supere o conheci-


mento-regulação hegemônico. Somente por esse caminho, sustenta, se
poderá construir uma concepção e uma prática pós-imperial de direi-
tos humanos (p. 449).
O argumento do reconhecido sociólogo é consistente no seu viés
político. Com efeito, seu conceito de cosmopolitismo insurgente revela
o fundo dentro do qual ele brilhantemente repensa a sua “gramática
do tempo”: construir uma argumentação “para uma nova cultura po-
lítica” (SANTOS, 2010), sobre o que não cabe qualquer reparo. Trata-
se de construir fundamentos para as lutas políticas capazes de fazer
avançar o horizonte dos Direitos Humanos. Entretanto, se se pretende
também compreender o fundamento e o sentido propriamente ético e
cultural da interculturalidade como pauta desse compromisso históri-
co político, requer-se um conceito capaz de compreender tal empreen-
dimento também em sua dimensão cultural e universal. Pois seria inci-
dir numa falácia culturalista e relativista não admitir que, de um pon-
to de vista da ética, há valores ou princípios de conduta que podem
ser considerados universalmente válidos, tais como o valor absoluto
da vida, da liberdade e da dignidade de todo ser humano, assim como
seria igualmente uma generalização indevida pretender que todos os
povos e culturas do mundo tenham acerca desses princípios entendi-
mentos e práticas idênticos. A essa questão de fundo se acrescentaria
uma disputa no plano simbólico acerca de quem teria o direito prévio
de pronunciar com legitimidade tais referências. A conjuntura políti-

Descolonização e direitos humanos na educação


53
ca mundial saída dos conflitos de 1939-1945 foi forte o suficiente para
produzir manifestações de disposição de todos à paz e ao entendimen-
to mundial (leia-se: internacional); mas foi frágil o bastante para tornar
ilusória a pretensão do bloco de nações hegemônicas em 1945 e 1948
de firmar princípios em nome de todos, inclusive e principalmente dos
futuros. A expectativa da ONU era inteiramente compreensível – e até
certo ponto justificável: que um processo de adesão crescente produzi-
ria um efeito seguro de convergência e entendimento entre as nações.
É possível que tal convergência e entendimento venham a se construir
um dia, no futuro. Piovesan (2006) sustenta com razão que “o estudo
comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africa-
no aponta a extraordinários e recentes avanços na afirmação da justiça
internacional em matéria de direitos humanos” (p. 147). Nesse tempo
histórico concreto, porém, sob tais pretensões hegemônicas das gran-
des potências recém-saídas de conflitos mortais, e todavia sob risco de
a eles retornarem, esse entendimento tem se mostrado inviável.
Essa argumentação de Santos e as evidências da conjuntura po-
lítica mundial corrobora as evidências do quanto o conceito e as práti-
cas de Direitos Humanos têm sido, com frequência, uma prática polí-
tica e cultural com fortes traços neocolonialistas. Isso se mostra parti-
cularmente a partir do modo como o conceito e a prática dos Direitos
Humanos vêm sendo hegemonizados pelo projeto imperial norteame-
ricano pós-2001, que dividiu o mundo como se esse funcionasse ao re-
dor de dois eixos morais (o do bem e o do mal, associando-se o mal ao
terrorismo e associando-se ao terrorismo toda forma de contestação de
sua hegemonia).
Nesse contexto, a pergunta que resta aos educadores é: em que Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
medida e como pode uma prática pedagógica resistir a essa hegemonia
de modo a contribuir para a efetividade dos direitos humanos de um
modo emancipatório?
A primeira resposta teórica a tal questão implicaria em se dar
um passo conceitual a mais do que fez Boaventura Santos, que estabe-
leceria novo canal conceitual para o diálogo intercultural, ao mesmo
tempo em que superaria a falsa dicotomia e dilema entre universalismo
ou relativismo cultural. Trata-se do conceito de universalidade análoga.
Com efeito, a cultura hegemônica, ou a hegemonia cultural, têm im-
posto a noção imperial de universalidade unívoca, pela qual a Europa
veio supondo que sua Modernidade tenha sido fruto de um valor in-

54 Alípio Casali
trínseco seu, anterior à conquista e colonização da América e África,
e não o contrário (DUSSEL, 1998, p. 52). Boaventura Santos reconhece
na afirmação desse universalismo abstrato (unívoco) não apenas um
equívoco conceitual, mas sobretudo uma operação de dissimulação
hegemônica, ao sustentar que “enquanto forem concebidos como di-
reitos humanos universais em abstrato, os direitos humanos tenderão
a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de
globalização hegemônica” (2010, p. 439). Com efeito, invocar-se esse
sentido do universal como unívoco tem supostos e consequências: 1)
supõe o manejo de um conceito de essência humana imutável; em de-
corrência: 2) implica a crença de que o dominador seja o portador de
tal essência; donde: 3) fundamenta o totalitarismo imperial. A afirma-
ção essencialista dos Direitos Humanos pelo viés do universalismo
unívoco coincide, assim, com uma forma de dominação cultural, e
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

não se estranha que os povos e nações que conhecem bem a sua pró-
pria experiência de vítimas da colonização e da exclusão reconheçam
rapidamente tal dispositivo e o recusem. Se se pretende algum reco-
nhecimento a um cosmopolitismo insurgente capaz de resistir trans-
nacionalmente e interculturalmente aos globalismos colonialistas, há
que se trabalhar em diálogo sobre o reconhecimento de algo em co-
mum (a “igualdade”) de modo simultâneo a algo específico (a “dife-
rença’) nas práticas dos Direitos Humanos, o que convoca o mane-
jo de um outro conceito de universalidade, o da universalidade aná-
loga. Por aí, as distintas formas culturais de efetivação da liberdade
e da dignidade apareceriam como realizações análogas concretas da
Humanidade como um universal agora também concreto e não mais
abstrato e unívoco. As conclusões do estudo de Piovesan (2006) pare-
cem ir nessa mesma direção:

Avançar no diálogo entre os sistemas regionais, permitindo o in-


tercâmbio de seus acúmulos e experiências, identificando seus
êxitos e fracassos, suas fortalezas e debilidades, constitui medida
fundamental para o fortalecimento de um cosmopolitanismo éti-
co e emancipatório, capaz de celebrar o valor fundante da digni-
dade humana, em todos os tempos e em todos os lugares (p. 148).

O percurso que fizemos ao início deste texto, recolhendo as di-


versas (no tempo e no espaço) contribuições de sistemas míticos, re-
ligiosos, culturais e políticos para o desenvolvimento dos Direitos

Descolonização e direitos humanos na educação


55
Humanos na história, pode ser percebido agora como uma demonstra-
ção da possibilidade de uma ampla convergência intercultural de prá-
ticas de Direitos Humanos, convergência essa que ao mesmo tempo
revela a universalidade análoga nelas presente. Ao mesmo tempo, essa
demonstração corrobora a esperança, nas lutas, de que haja um futuro
em que os Direitos Humanos venham a cumprir uma função emanci-
padora na História.

Referências para uma compreensão e uma prática de


descolonização da Educação e dos Direitos Humanos

As preliminares de uma descolonização da educação e dos


Direitos Humanos não poderiam ser outra que o reconhecimento de
que os sistemas do direito são históricos (DUSSEL, 2007, p. 149); que o
processo de efetivação dos Direitos Humanos é um processo de lutas,
cujos principais protagonistas não podem ser outros que as próprias
vítimas dos colonialismos e das exclusões do direito; e que toda posi-
tivação (reconhecimento e efetividade constitucional ou legal de um
“novo direito”) gera novo campo de reconhecimento de novas “faltas-
-de”, ou seja, de “direitos-a”, que alimentam novas lutas pela efetiva-
ção de novos direitos (p. 150).
A disposição ao compromisso pela efetivação dos direitos já re-
conhecidos e pelo reconhecimento de novos direitos implica uma pers-
pectiva estratégica dos Direitos Humanos que, deslocando-os do cam-
po de uma pretensa universalidade unívoca, não os reconheçam como
meras “sobras inúteis do liberalismo burguês”, nem como prática re- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
formista, nem tampouco como prática revolucionária (posto que não
são pauta suficiente para uma completa emancipação social), mas
como linguagem e referência conceitual e ética nas lutas pela efetiva-
ção e ampliação dos direitos e da democracia.
Tais lutas hão de reconhecer os campos prioritários para atuar
em prol da efetivação e ampliação dos direitos. Parece que no Brasil,
hoje, seriam prioritários os campos de embate contra tudo o que im-
pede a realização plena do direito ao trabalho, à moradia, à educação,
à saúde; contra os racismos, as discriminações e preconceitos; contra o
crescimento da população carcerária e as violências a que vem sendo
submetida; contra os autoritarismos e abusos da ação policial; a favor

56 Alípio Casali
da vida e da cultura das comunidades do campo, indígenas e quilom-
bolas; a favor do direito à informação transparente e veraz; a favor do
direito à produção cultural e seu usufruto.
Nesse sentido, a luta pelo direito pleno a uma educação descolo-
nizada e de qualidade social implicaria um conjunto de pré-condições,
condições, práticas e supostamente deve levar a um conjunto de resulta-
dos (CASALI, 2011, p. 15-40).
Nessa perspectiva, afirmamos como pré-condições ao exercício
pleno desse Direito Humano: a) o Estado de direito; b) a democracia
representativa e participativa em pleno funcionamento; c) as políticas
públicas contando com financiamento adequado, comprometidas com
a mesma democracia; d) a efetividade dessas políticas no que se refere
à formação inicial e continuada dos profissionais da educação; e) a ga-
rantia de inserção adequada desses profissionais no sistema de ensino;
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f) a remuneração digna dos profissionais da educação.


Afirmamos como condições do Direito Humano a uma educação
de qualidade, entre outras: a) a disponibilidade de infraestrutura físi-
ca adequada de escolas, em termos de acessibilidade a todos (proximi-
dade física ou transporte gratuito), devidamente equipadas (salas de
aula, biblioteca, laboratórios, salas de uso multifuncional, refeitório,
pátio, quadras e equipamentos de esporte etc.), condições adequadas
de vestuário e alimentação dos alunos; b) um projeto pedagógico ela-
borado coletivamente e em permanente implementação, com partici-
pação da Comunidade; c) uma carreira docente transparente e efetiva;
d) processos de avaliação transparentes do desempenho dos profissio-
nais da educação; e) uma gestão democrática representativa e partici-
pativa, eficiente, eficaz e efetiva.
Afirmamos como práticas do Direito Humano a uma educação
de qualidade, entre outras: os exercícios cotidianos do Currículo, em
tempo integral, que mobilizam todos os sujeitos e recursos da comuni-
dade educativa (a comunidade escolar articulada com a comunidade
do entorno), constituindo um ambiente educativo, em relações de en-
sino-aprendizagem que sejam experiências de valor vital em todas as
dimensões, para todos: cognitivas, simbólicas, estéticas, políticas, cor-
porais e intelectuais, comunicativas, criativas, responsáveis, participa-
tivas, prazerosas. Tais práticas devem ser experiências de descoberta
e construção coletiva, integrada e interdisciplinar de conhecimentos;
que despertem e estimulem as potencialidades dos alunos; que permi-

Descolonização e direitos humanos na educação


57
tam à comunidade educativa ser também uma comunidade aprenden-
te em permanente desenvolvimento; que respeitem cada sujeito e cada
grupo em suas identidades de gênero, idade, raça/etnia, condições fí-
sicas, mentais e psíquicas, orientação afetivo-sexual, formação e con-
vicções políticas e religiosas, origem regional e nacional, preferências
estéticas, linguagens etc. Sem prejuízo das pré-condições e das condi-
ções, são as práticas cotidianas do currículo que realizam efetivamente
a qualidade da educação.
Afirmamos, enfim, como resultados do usufruto pleno do Direito
Humano a uma educação de qualidade, entre outros:
a) a formação (pleno desenvolvimento das potencialidades) que
cada sujeito educando leva consigo da Escola como seu patrimônio de
conhecimentos e sua constituição moral, e que o possibilitam a usu-
fruir de suas demandas básicas de alimentação, saúde, segurança, re-
conhecimento social (participação plena da vida social, cultural e po-
lítica de sua Comunidade e sua Sociedade), autoestima quanto a suas
competências e potencialidades pessoais e profissionais, auto-realiza-
ção pessoal e profissional;
b) capacidade de entrar e ser bem sucedido no mundo do tra-
balho;
c) experiência local de exercício de cidadania, que o referencia
para o pleno exercício crítico da cidadania como sujeito econômico
produtivo;
d) experiência de convívio social e cooperativo na diversidade,
que o referencia para o exercício crítico da solidariedade como sujeito
social, cultural e político;
e) que a escola siga, ela própria, aprendendo; Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
f) que os profissionais da educação nela atuantes tenham se
apropriado mais de sua identidade pessoal e profissional. Por isso,
quando insistimos em afirmar que a escola deve estar ligada à vida,
é certo que isso inevitavelmente acontece, como é certo que ao mes-
mo tempo não se trata de fazer com que a escola repita mimeticamen-
te os padrões da vida ao seu redor, até porque há certas característica
da vida ao redor da escola que absolutamente são indesejáveis que se
repitam dentro dela, tais como: a aceleração do tempo em função do
produtivismo, a voracidade da economia de mercado, o consumismo,
a relação predatória com o meio ambiente, as violências cotidianas, os
vícios da política etc.

58 Alípio Casali
g) que ela tenha gerado sujeitos conscientes, livres, responsá-
veis, autônomos, apropriados de todo o seu processo de formação, ca-
pazes de produzir a si mesmos e de se apropriar de si como um projeto
de subjetividade e de identidade jamais esgotável;
h) que tais sujeitos sejam capazes de se apropriar também das
instituições, organizações, comunidades, das quais participam, apro-
priando-se das identidades que elas lhes imprimem como parte de sua
marca cultural;
i) que tais sujeitos sejam capazes de se reconhecer como unida-
des da humanidade, no sentido do que já em 1657 afirmava Comenius
(1985), de que as escolas devem se constituir em “oficinas da humani-
dade”;
j) que nessas relações consigo mesmos, com sua cultura local e
com a humanidade, os sujeitos educandos sejam capazes de estabele-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

cer o duplo vínculo: de aceder aos legados disponíveis culturais e uni-


versais e de deixar por sua vez o seu legado singular à efetivação e am-
pliação dos Direitos Humanos em sua cultura, à promoção do diálogo
intercultural e à promoção de um cosmopolitanismo que produza le-
gados duradouros a toda a Humanidade.

A ideia do cosmopolitanismo é também uma das marcas do pen-


samento de Bobbio (2004), que o toma como referência para a ação,
uma vez que, para o célebre jurista italiano “a liberdade e a igualdade
dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não
são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser”
(p. 29). Pois ainda hoje, não obstante a derrocada do nazismo e do sta-
linismo, outras formas dissimuladas de totalitarismo persistem amea-
çando as pessoas, num mundo que lhes deveria ser comum e pacífico
(LAFER, 1998).
Tudo isso está associado a uma práxis cidadã e democrática de
luta pela efetivação e ampliação dos Direitos Humanos extensivamen-
te a toda a sociedade. Aloisio Krohling (2011) aponta para práticas
concretas nessa direção: é preciso reinventar a democracia brasileira
a partir da Constituição Cidadã de 1988; Ouvidorias Populares pre-
cisam ser criadas como canais de comunicação direta entre os cida-
dãos e os Poderes Públicos; é preciso ampliar e aprimorar as práticas
de Orçamento Participativo e a sua execução deve ser feita com con-
trole democrático dos cidadãos em audiências públicas; os Portais de

Descolonização e direitos humanos na educação


59
Transparência são um instrumento democrático complementar indis-
pensável de fiscalização e participação cidadã.
Nesse sentido, pode-se dizer que a educação brasileira encon-
tra-se num momento histórico ímpar, pois o processo de elaboração
e a implementação do Plano Nacional de Educação, mediante proces-
sos políticos representativos e participativos, mostram-se como opor-
tunidades de lutas concretas pela efetivação e ampliação de Direitos
Humanos que, embora a partir de um campo específico, o educacional,
alcançam um poder de abrangência social e cultural que permite ins-
crevê-las como um capítulo das grandes lutas históricas pela efetivação
e ampliação da democracia no País.

Referências bibliográficas

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data2.archives.ca/pdf/pdf001/p000000999.pdf> Acesso em 25 set. 2013.

Descolonização e direitos humanos na educação


61
A ÉTICA DO RESPEITO

George Barcat1

Filosofar é como tentar descobrir o segredo de um cofre: cada pe-


queno ajuste no mecanismo parece levar a nada. Apenas quando
tudo entra no lugar a porta se abre.
Wittgenstein
1

Inspiração

No Protágoras, Platão recorre a um significativo mito na esperan-


ça de que seus leitores compreendam a importância do respeito (aidós)
e da justiça (dikê) para a sobrevivência da raça humana.
O mito revela que, sem essas virtudes, nossa convivência em gru-
pos e cidades seriam impossíveis e, na falta delas, a humanidade seria
extinta.
Ele narra a criação da vida e, em especial, do ser humano. Em
certo momento, Zeus percebeu que Prometeu nos dotou da capacida-
de de criar e usar técnicas maravilhosas, mas deixou-nos desprovidos
de recursos que garantam a qualidade da convivência em sociedade.
Em sua sabedoria luminosa, Zeus viu que sem a pratica do res-
peito e da justiça, a técnica tende a gerar desigualdades e destruição.
Por isso ele resolveu encarregar Hermes de instalá-las nas almas hu-
manas ordenando-lhe que todos as recebessem em igual medida.
O significado desta narrativa mítica é claro: o respeito e a jus-
tiça são atitudes que, indistintamente, todos devem praticar, pois da
1
Conselheiro e professor da Associação Palas Athena. Especialista em Ética Empresarial.
Membro fundador do Instituto de Compliance e Integridade Corporativa (ICIC). Analista de
Sistemas. Professor de ética, filosofia e ética empresarial.

63
qualidade desta prática depende a qualidade do maior bem comum
que possuímos: a comunidade. Eles formam a verdadeira argamassa
de nossas cidades.
Faz todo sentido lembrar aqui que Hermes é o mensageiro dos
deuses e que as mensagens divinas são dádivas impagáveis.
Precisamos lembrar também que Hermes é, simultaneamente, o
deus da magia e da eloquência e que é por meio destas artes que ele re-
aliza seu trabalho de mensageiro.
Note que magia e eloquência são faces da mesma esfera – como
o yin e o yang; o finito e o infinito; o tempo e a eternidade – chamada
linguagem.
Hermes é, em suma, o deus da linguagem, seja ela hermética ou
hermenêutica e a linguagem age em e por meio de tudo o que somos:
corpo, emoção, imaginação, razão, vontade, memória...
A linguagem, como sabemos, molda o mundo em que vivemos
– desde a percepção da maçã até o ato de comê-la e plantar uma nova
macieira.
Por isso, “o desrespeito por conceitos e pela linguagem só tempo-
rariamente encobre o desrespeito pelos outros” (Bauman, 2013, p. 148).
Do meu ponto de vista, estimo que o conceito de respeito está
sendo desrespeitado, pois, via de regra, ele é muito usado em expres-
sões como respeito é bom, e eu gosto e raramente é praticado no trato com
o Outro.

Moral
Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
A moral funciona como uma “mente coletiva” que estabelece,
articula e prescreve tradições, costumes, hábitos, crenças, valores, leis
e regras de conduta de uma sociedade. A moralidade é a essência de
qualquer cultura.
Neste sentido, a moral é uma herança social que busca perpetuar
– formal e tacitamente – expectativas, preferências, rotinas, escolhas e
ações, visando a manutenção da ordem social.
É fácil perceber que a moral constitui um sistema social fechado,
no qual há pouco espaço para o imprevisível e a criatividade, conse-
quentemente, a moral promove a repetição, a conservação e a exalta-
ção de um passado idealizado.

64 George Barcat
A moral das sociedades contemporâneas tende a tratar a pesso-
as como mercadorias (este fenômeno é conhecido é chamado de coisifi-
cação do ser humano) e, em decorrência disto, nos sentimos na pele uma
deficiência de respeito e justiça. Daí a necessidade da Ética do Respeito
como caminho para a Ética do Cuidado.

Ética

A Ética é a investigação filosófica da moral ou moralidade de


uma sociedade ou cultura.
A Ética estuda os modos de vida e convivência de um grupo hu-
mano a fim de aferir a validade/invalidade, a bondade/maldade dos
seus costumes, hábitos, leis e normas. O objetivo disto é cultivar as con-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

dições que possibilitam aos habitantes deste grupo chegar à felicidade.


Para tanto, a Ética avalia e questiona aquilo que fundamenta a
moral: suas fontes, seus valores, seus princípios e seus regramentos.
Ela tece reflexões sobre o que é e o que não é justo nas várias situações
da vida em comum e sugere modos de relacionamento e critérios de
tomada de decisão.
Em síntese, a Ética possibilita a prática da arte da convivência.
Tal arte é, ao mesmo tempo, um cuidado de si e uma preocupa-
ção com o Outro; ela nos mostra como entrelaçar a vida pessoal com a
vida em comunidade.
O grande propósito da Ética é nos ajudar a ser pessoas melhores,
vivendo em sociedades mais equânimes e saudáveis.

Em suma:
A moral é uma herança – um passado cultural e pessoal que vive
em nós –, uma forma de automatismo que nos inspira comportamen-
tos bons ou maus. As normas morais tácitas ou formais, que incluem
as leis e demais normas do direito, são obrigatórias, e a elas devemos
adesão e obediência.
A Ética é uma conquista, uma atividade que se constrói com o
objetivo de fortalecer a autonomia pessoal e criar as condições de pos-
sibilidade de um futuro mais justo e feliz para todos. Vem daí o fato de
a adesão às normas éticas ser, necessariamente, voluntária – do contrá-
rio, seria uma lei ou um contrato formal.

A ética do respeito 65
Ética do respeito. Ética é respeito

Não se trata de dar lições de moral, mas de ajudar cada um a


se tornar seu próprio mestre. Com que objetivo? Para ser mais
humano, mais forte, mais doce. Virtude é poder, é excelência, é
exigência. As virtudes são nossos valores morais em ato.
André Comte-Sponville

Uma das principais tarefas atuais da Ética consiste em nos ajudar


a impedir que o individualismo que caracteriza o homem moderno se
transforme em egoísmo.
O individualismo é a doutrina que coloca a autonomia e as incli-
nações do indivíduo acima das intromissões ilegítimas da coletivida-
de. Tudo certo com isto.
Já o egoísmo é a situação em que o indivíduo se rodeia de es-
pelhos e cuida apenas dos próprios interesses. Para bem compreen-
dermos os malefícios disto basta lembrarmos o que disse Alexis de
Tocqueville: “o egoísmo seca a fonte das virtudes” (A Democracia da
América).
A Ética do Respeito é uma das vertentes da filosofia moral que
vem se ocupando desta “missão” e, para tanto, ela nos estimula a de-
senvolver o hábito do “olhar atento” como antídoto para a indiferença
e a insensibilidade diante da condição, do sofrimento, das necessida-
des e dos interesses alheios.
A Ética do Respeito está baseada na premissa de que o respeito
é a virtude básica da convivência – quem não é capaz de praticar o res-
peito é incapaz de ser verdadeiramente gentil, honesto, responsável,
justo ou compassivo. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Este ramo das teorias éticas busca despertar em nós o olhar aten-
to para o Outro, seja ele uma pessoa conhecida ou não, um animal do-
méstico ou selvagem, uma floresta ou uma árvore, uma cidade ou um
simples telefone público.
“É preciso destacar essa escassez: o movimento da atenção não
é frequente, mas raro. Na maioria das vezes tendemos a tratar as pes-
soas e as coisas automaticamente, seguindo normas de conduta assu-
midas, geralmente de forma acrítica. Mas, com esse modo de proce-
der as coisas na realidade não se mostram a nós, ou o fazem apenas
superficialmente. Ocorre, de fato, que o movimento da atenção não
é apenas para resgatar ao outro ou o outro, mas também a si mes-

66 George Barcat
mo. [...] Quem presta mais atenção melhor se orienta e mais respeita”
(ESQUIROL 2008).
É nesta circularidade mágica e eloquente que encontramos o va-
lor do presente de Zeus: somente cuidando do Outro o indivíduo ver-
dadeiramente cuida de si.
Sem a prática habitual do respeito e da justiça – argamassas da
convivência – o ser humano reduz-se a condição de animal não-hu-
mano.
O olhar atento é sempre um olhar ético, pois todo gesto de aten-
ção (ou desatenção e indiferença) tem um ou mais significados morais.
A atenção é o primeiro movimento em direção ao respeito e à justiça.
Deveríamos cuidar melhor dessa tarefa pois a vida apressada
nos torna impacientes e desatentos e, por conta disso, não é raro tratar-
mos as pessoas de forma automática ou agirmos sem pensar nas con-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

sequências das nossas escolhas, decisões ou atos. A vida apressada nos


torna indiferentes e apáticos.
O olhar atento é a primeira fonte da conduta moralmente orien-
tada; é por meio dele que:
a) Encontramos o tempo necessário para percebemos o quando
dependemos uns dos outros (interdependência).
b) Aprendemos a “contar até dez” antes de agirmos, ou seja, esse
olhar nos faz agir com prudência e com bons modos.
c) Energizamos forças para fazer a coisa certa, mesmo que te-
nhamos de abrir mão de algo (conforto, dinheiro, privilégios...).
d) Transformamos a indiferença em respeito, o preconceito em
reconhecimento e o ressentimento em solidariedade.

O conceito de respeito

O conceito de respeito está bem próximo da regra de ouro da


vida moral: “faça aos outros o que gostaria que fizessem a você”.
De modo geral, o respeito é um sentimento de acolhida e consi-
deração favorável à presença e à existência do Outro; sua prática in-
clui o cuidado para que nossas escolhas, decisões ou atos não o preju-
diquem.
De modos mais restritos, o conceito é uma:
• Forma de preservação da própria dignidade.

A ética do respeito 67
• Forma de consideração pelo Outro: zelo, atenção, cortesia, de-
ferência, dedicação, interesse, cumprimento das obrigações.
• Forma de autocontrole: pudor, escrúpulo, decência, modés-
tia, esforço para não abusar força, do poder ou dos direitos que se tem.
• Forma de proteção dos valores e deveres morais e tudo
o mais que garante a saúde e a estabilidade da convivência. Vide o
Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant.
• Forma de manter contato com o que é sagrado: a vida, a na-
tureza, os direitos humanos, a boa convivência... O livro de Hans Jonas
– Princípio Responsabilidade tem muito a nos ensinar sobre este aspecto
do respeito.

Pseudoformas de respeito

• Exibir mera tolerância, sem qualquer esforço para entender


e trabalhar bem com os outros; reverenciar os que têm mais poder e
status, enquanto depreciam, desconsideram, ridicularizam ou igno-
ram os menos poderosos; comportar-se de forma reativa em relação a
um grupo inteiro, sem prestar atenção às qualidades de um indivíduo.
(Gardner, 2007)

Referências bibliográficas

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Editora, 2008.

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Rio, 2006.

PLATÃO. Protágoras. Lisboa: Relógio d’Água, 1999.

68 George Barcat
ÉTICA EMPRESARIAL E DIREITOS HUMANOS

Heloisa Covolan1

Desde que o conceito de desenvolvimento sustentável foi cita-


do no relatório das Nações Unidas (ONU), de 1987, intitulado “Nosso
Futuro Comum”, o desempenho financeiro deixou de ser o único fa-
tor relevante para os negócios. Cada vez mais fatores ambientais e so-
ciais são imprescindíveis para o sucesso a longo prazo, já que as partes
interessadas (internas e externas) têm cobrado a prestação de contas e
a responsabilização acerca das decisões empresariais. Nesse contexto,
investir no respeito e promoção dos Direitos Humanos significa asse-
gurar condições de vida digna para toda a população, reduzir as desi-
gualdades sociais, possuir uma reputação positiva e sustentar a viabi-
lidade econômico-financeira das operações.
1

Instrumentos

O marco jurídico internacional sobre os Direitos Humanos é


composto por um conjunto de leis que compreende tratados, con-
venções, declarações e outros instrumentos. O principal documen-
to é a Carta Internacional dos Direitos Humanos da ONU, compos-
ta pela “Declaração Universal dos Direitos Humanos” (1948), “Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos” e “Pacto Internacional
sobres os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, ambos de 1966.
Outros 80 instrumentos, de âmbito regional e mundial, apoiam o prin-
cipal marco internacional.
1
Jornalista, gerente responsabilidade social da Itaipu Binacional, entusiasta da sustentabilidade,
orquidófila e praticante de raja yoga! @heloisacovolan

69
O Brasil está sujeito à jurisdição da Corte Interamericana de
Direitos Humanos e a Constituição Federal de 1988 incorporou pre-
ceitos do direito internacional. A partir de 1985 com a democratiza-
ção, o país passou a ratificar relevantes tratados internacionais sobre
o tema, que podem ser invocados como instrumento para a proteção
dos Direitos Humanos também em casos de violações cometidas por
empresas.
Mas, na economia global, muitos dos atores mais poderosos não
são empresas. Das 100 maiores economias do mundo, 51 são de corpo-
rações, quando se compara as vendas de empresas multinacionais com
o PIB de alguns países. A americana Walmart, por exemplo, tem o mes-
mo PIB da Suécia, que é superior ao de 170 países, incluindo todos os
latino-americanos, com exceção do Brasil e do México.
Como não existe um tratado internacional que regule a responsa-
bilidade das empresas pelas violações, em 2011 o Conselho de Direitos
Humanos da ONU aprovou por consenso os Princípios Orientadores
para Empresas e Direitos Humanos, elaborado pelo Representante
Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas, Professor John
Ruggie. O documento resulta de seis anos de trabalho e estabelece pa-
drões internacionais não apenas no ambiente de trabalho, mas também
no contexto das operações empresariais, independentemente do porte
ou do setor econômico a que pertencem.
Ruggie propõe 31 Princípios que partem de três pilares essen-
ciais: 1. Proteger: a obrigação dos Estados de proteger os Direitos
Humanos; 2. Respeitar: a responsabilidade das empresas de respeitar
os Direitos Humanos; 3. Reparar: a necessidade de que existam recur-
sos adequados e eficazes, em caso de descumprimento destes direitos Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
pelas empresas. Divididos entre fundamentais e operacionais, são 14
princípios específicos para as empresas.
A responsabilização das empresas pelas violações de Direitos
Humanos teve um marco histórico em junho deste ano: durante a 26ª
reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, foi
aprovada uma resolução para responsabilizar as organizações transna-
cionais pelas violações de Direitos Humanos cometidas no contexto de
suas atividades. A resolução foi apresentada pelo Equador e África do
Sul e um grupo de trabalho intergovernamental para a construção das
normas vinculantes foi criado.

70 Heloisa Covolan
Ética empresarial e os benefícios

Não há dúvidas de que a garantia dos Direitos Humanos é essen-


cial para o desenvolvimento sustentável e que há uma relação direta
entre a ética e a evolução dos seres humanos e das empresas.
Entende-se por ética empresarial ou organizacional a aplicação
dos valores e normas compartidos pela sociedade no processo de to-
mada de decisões e a responsabilização pelas decisões tomadas. Cabe
ressaltar que a ética pessoal de cada membro da organização também
tem peso.
Entretanto, a ética está intimamente ligada à maturidade, pois
consiste na prática diária e não apenas quando for conveniente. Dessa
forma, estratégias que tenham como finalidade apenas atender à legis-
lação ou constar em campanhas publicitárias e relatórios sociais não
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

são suficientes.
É necessário que de fato as empresas tenham lideranças compro-
metidas e adotem uma postura socialmente responsável em sua gover-
nança corporativa, pois a maioria das atividades tem impacto sobre
outras pessoas além daquelas diretamente envolvidas. E é a atuação
ética que pode proporcionar uma sociedade justa.
Uma das iniciativas que buscam mobilizar a comunidade empre-
sarial internacional é o Pacto Global. Desenvolvida pelo ex-secretário-
-geral da ONU, Kofi Annan, possui aproximadamente 5.200 organi-
zações signatárias articuladas em 150 redes ao redor do mundo, das
quais 600 compõem a rede brasileira.
No relatório “How to Do Business with Respect for Human
Rights: a Guidance Tool for Companies” elaborado pela Rede do Pacto
Global da Holanda em 2010, a organização elenca claramente os impac-
tos da adoção ou não de medidas de respeito aos Direitos Humanos.
Entre as principais consequências do não respeito estão: custos
relacionados a greves e processos judiciais; piora no clima organiza-
cional; aumento de custo para reverter os riscos à imagem; restrições
de acesso, perda ou aumento de custos com financiamento; cancela-
mento de contratos com clientes e restrições na obtenção de novas li-
cenças e autorizações de renovação, reduzindo as oportunidades de
crescimento.
Em contrapartida, a promoção e o respeito aos Direitos Humanos
proporciona, entre outros benefícios, competividade, já que a força de

Ética empresarial e direitos humanos 71


trabalho é diversificada; atração de profissionais qualificados, fornece-
dores e parceiros de negócios; altas taxas de retenção e produtividade
em função da motivação dos funcionários; minimiza críticas e mantém
bons relacionamentos com a comunidade.
Quando as empresas atendem aos direitos, os impactos não se
dão apenas na atração e retenção de talentos, num ambiente saudável
de trabalho ou na produtividade. Elas fortalecem a licença social para
operar, com ações que melhoram a vida das pessoas da comunidade e
ampliam as oportunidades de negócio.

Desafios

Embora o tema faça parte da agenda mundial e muitas empresas


já tenham consciência de sua responsabilidade social, ainda há muito a
ser feito, tanto no ambiente interno quando externo.
Na esfera corporativa, em pesquisa realizada em 2010, e divul-
gada pela BM&F Bovespa, o Instituto Norberto Bobbio identificou
que 43% dos trabalhadores de empresas médias e grandes do Rio de
Janeiro e de São Paulo declararam ter sido vítimas de violações de seus
Direitos Humanos. Entre os que responderam à pesquisa, 11% disse-
ram que em suas empresas existia discriminação contra negros, mu-
lheres, homossexuais ou idosos; 7% declararam ter sido vítimas diretas
de preconceito e 44% afirmaram haver salários diferentes para a mes-
ma função.
Outros estudos apresentam resultados semelhantes. Em julho de
2012, o Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Brasil, divulgou o relatório “Perfil do Trabalho Decente no Brasil – Um
Olhar sobre as Unidades da Federação”, que mostrou que a discrepân-
cia salarial entre gêneros e raças e o trabalho forçado ainda são gran-
des desafios.
No âmbito mundial, a desigualdade de renda aumentou em
várias regiões. Segundo o “Relatório do Desenvolvimento Humano:
Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência”, publicado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em ju-
lho deste ano, a diferença cresceu entre países com alto desenvolvi-
mento humano e as maiores taxas foram observadas na América Latina
e no Caribe.

72 Heloisa Covolan
Cerca de 1,2 bilhão de pessoas vivem com menos de US$ 1,25
por dia; 1,5 bilhão em situação de pobreza multidimensional (índi-
ce que leva considera as variáveis das privações de direitos sociais),
12% da população mundial padecem de fome crônica e quase meta-
de dos trabalhadores, ou seja, 1,5 bilhão tem empregos informais ou
precários.
No contexto nacional, dados da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad) divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que existiam 13 milhões de
analfabetos no país em 2013, dos quais 50,56% são mulheres. Apesar
da redução de 12,3% no número de crianças e adolescentes (entre 5
e 17) trabalhando, existiam 3,1 milhões nesta situação. E em relação
ao trabalho, o nível de ocupação entre os homens era de 74,3 contra
50,4% entre as mulheres, e a taxa de desemprego aumentou de 6,1%
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

para 6,5%.

Itaipu e o compromisso com o desenvolvimento sustentável

A Itaipu Binacional é a maior usina hidrelétrica do mundo em


geração de energia. Localizada sobre o Rio Paraná, na fronteira entre
Brasil e Paraguai, possui cerca de 1.500 empregados no lado brasileiro.
O compromisso da empresa com o desenvolvimento sus-
tentável está presente no Plano Empresarial e integra a Política de
Sustentabilidade. Desde 2009 é signatária do Pacto Global e integra a
diretoria do Comitê Brasileiro junto com outras quatro empresas.
Entre as principais iniciativas realizadas para respeitar e apoiar
os Direitos Humanos estão:
• Participa de organizações nacionais e internacionais e/ou en-
dossa iniciativas de defesa dos Direitos Humanos.
• Mantém canais de denúncia como a Ouvidora, o Fale Conosco
e o Comitê de Ética.
• Oferece aos seus empregados benefícios como assistência mé-
dica, odontológica e auxílio educação.
• Estimula a atuação de comitês que visam assegurar a saúde e
a segurança dos trabalhadores.
• Todos os empregados têm representação sindical e são abran-
gidos por Acordo Coletivo de Trabalho.

Ética empresarial e direitos humanos 73


• Adota processos seletivos para a formação do quadro de pes-
soal desde 2005.
• Adota políticas salariais e programas de educação que inde-
pendem do gênero.
• Possui Código de Conduta.
• Possui Política e Diretrizes de Equidade de Gênero desde
2011 e um Comitê de Equidade de Gênero.
• Possui Comitê Permanente de Pessoas com Deficiência desde
2012.
• Adota cláusulas sociais na contratação de fornecedores.
• Realiza seminário anual sobre Direitos Humanos para os pro-
fissionais da área de segurança (empregados e trabalhadores de em-
presas que prestam serviços à Itaipu).
• Nos processos de licitação, inclui cláusulas sociais sobre con-
tração de jovens, trabalho forçado ou análogo ao escravo e de respeito
à equidade de gênero.
• Determina que as empresas contratadas para prestação de
serviços comprovem o pagamento de salários, horas extras, décimo
terceiro salário, aviso prévio e demais encargos, podendo rescindir o
contrato em caso de descumprimento.
• Criou o Hospital Ministro Costa Cavalcanti (HMCC), que
atende habitantes de nove municípios.
• Desenvolve e apoia programas que estimulam a saúde o bem-
-estar dos colaboradores e dos moradores da região onde está inseria,
o trabalho voluntário, a equidade de gênero, o ingresso de jovens no
mercado de trabalho, a capacitação e profissionalização, o uso de plan-
tas medicinais, a inclusão social e enfretamento de violência contra
Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
crianças e adolescentes, inclusão social de indígenas, egressos do sis-
tema penitenciários, catadores de materiais recicláveis, pequenos agri-
cultores, assentados da reforma agrária, ribeirinhos e quilombolas.

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How to do business with respect for human rights: a guidance tool for compa-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

nies. Global Compact Network Netherlands.

ONU aprova marco histórico para responsabilizar empresas por violações de


direitos. Notícia publicada em 30/06/14 no site Brasil de Fato.

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – A janela para olhar o país.


IBGE.

Princípios para relato e conteúdos padrão da Global Reporting Initiative


(GRI) – Versão G4 das Diretrizes para relato.

Relatório de Sustentabilidade da Itaipu Binacional – 2013. Disponível em:


www.itaipu.gov.br/responsabilidade/relatorios-de-sustentabilidade.

Sites consultados

www.conectas.org

www.pactoglobal.org.br

http://www.portalconscienciapolitica.com.br/politica-e-direitos-humanos/

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/37164/conheca+cinco+paise
s+que+se+destacaram+no+idh+2014+das+nacoes+unidas.shtml

www.pnud.org.br

Ética empresarial e direitos humanos 75


DESAFIOS DA GESTÃO EM RESPONSABILIDADE SOCIAL:
UM ENFOQUE DE GARANTIAS DE DIREITOS HUMANOS1

Laís Abramo2
José Ribeiro3
Camila Almeida4

Social e Direitos Humanos


1234
O conceito de responsabilidade social empresarial, lançado no
Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável
em 1998, realizado na Holanda, estabelece que “Responsabilidade
Social Corporativa é o comprometimento permanente dos empresá-
rios de adotar um comportamento ético e contribuir para o desenvolvi-
mento econômico, melhorando simultaneamente a qualidade de vida
de seus empregados e de suas famílias, da comunidade local e da so-
ciedade como um todo”.
Durante a reunião de janeiro de 1999 do Fórum Econômico
Mundial (Fórum de Davos), o então Secretário Geral das Nações Unidas,
Kofi Annan, anunciou internacionalmente o Pacto Global, que foi ofi-
cialmente lançado em 26 de julho de 2000 no escritório da Organização
das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque. O Pacto é uma iniciativa
proposta à comunidade empresarial, às agências da ONU e organiza-
ções da sociedade civil com o objetivo de apoiar mundialmente a pro-
1
A primeira versão do presente artigo foi elaborada para o I Seminário de Responsabilidade
Social da Petrobrás, realizado em maio de 2013, e publicada em Memória do I Seminário de
Responsabilidade Social da Petrobrás: Os desafios da gestão em responsabilidade social para o
setor de petróleo e gás (PETROBRÁS, 2013).
2
Socióloga, Mestre e Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Diretora do
Escritório da OIT no Brasil.
3
Economista, Especialista em População e Desenvolvimento Sustentável pela Universidad de
Chile e Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências
Estatísticas (ENCE) do IBGE. Especialista em Estatísticas do Mercado de Trabalho e Indicadores
de Trabalho Decente do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.
4
Internacionalista, Mestre em Cooperação Internacional pela Universidad Complutense de
Madrid, Oficial de Projetos do Escritório da OIT no Brasil.

77
moção de valores fundamentais em quatro áreas: direitos humanos,
direitos do trabalho, proteção ambiental e combate à corrupção, refle-
tidos em dez princípios. O Pacto conta atualmente com mais de 11 mil
empresas participantes e stakeholders, distribuídos em cerca de 150 paí-
ses, constituindo-se assim na maior iniciativa de responsabilidade cor-
porativa voluntária do mundo5.
Apesar das diversas iniciativas adotadas pelas empresas na últi-
ma década, o tema das práticas empresariais responsáveis e a sua rela-
ção com os direitos humanos assumiu maior relevância a partir do ano
de 2011, em função de dois novos e importantes marcos de referência
no plano internacional.
O primeiro deles se expressa nas Diretrizes para as Empresas
Multinacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico6 (OCDE), revisadas, reeditadas e aprovadas em 25 de maio
de 2011 pelos 42 governos aderentes durante a Reunião Ministerial
do 50º Aniversário da OCDE. As Diretrizes fornecem princípios e pa-
drões voluntários para a conduta empresarial responsável em um
contexto global, de acordo com as leis adotadas pelos países signa-
tários e os padrões internacionalmente reconhecidos. Dentre as prin-
cipais mudanças nas Diretrizes, destacam-se, em primeiro lugar, um
novo capítulo sobre direitos humanos, que contém uma abordagem
nova e abrangente para a due diligence e gestão responsável da ca-
deia de fornecedores, representando um progresso significativo em
relação às abordagens anteriores. Em segundo lugar, mudanças im-
portantes em muitos capítulos especializados, tais como: Emprego e
Relações do Trabalho; Combate à Corrupção, à Solicitação de Suborno
e à Extorsão, Meio Ambiente, Interesses do Consumidor, Divulgação Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
e Tributação e uma agenda pró-ativa de implementação, para ajudar
as empresas no cumprimento de suas responsabilidades, à medida
que surjam novos desafios.

5
A Rede Brasileira do Pacto Global contava, em abril de 2013, com 526 organizações signatárias,
sendo mais da metade (54,0%) composta por empresas. É coordenada pelo Comitê Brasileiro
do Pacto Global, que conta com 35 organizações participantes (73,0% das quais são empresas).
Durante a gestão 2011-2012, foram criadas seis forças-tarefa com o intuito de viabilizar
e dinamizar ações e projetos, por intermédio do diálogo, intercâmbio de boas práticas e
mobilização e integração entre as instituições signatárias. Uma das forças-tarefa era a referente
a direitos humanos e trabalho, sendo as outras cinco assim distribuídas: comunicação,
educação, governança, integridade e combate à corrupção.
6
As Diretrizes para as Empresas Multinacionais da OCDE integram parte da Declaração sobre
Investimento Internacional e Empresas Multinacionais.

78 Laís Abramo, José Ribeiro e Camila Almeida


O segundo marco foi aprovado por unanimidade em junho
de 2011 pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Intitulado de Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos,
baseia-se no relatório elaborado e apresentado em maio de 2011 pelo
Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas so-
bre Empresas e Direitos Humanos, Professor John Ruggie7. Mesmo
não sendo um instrumento juridicamente vinculante, os Princípios
Orientadores analisam as implicações que os parâmetros e práticas
atuais têm para os Estados e as empresas, e incluem alguns aspectos
que são contemplados de diversas formas na legislação nacional e in-
ternacional. Ademais, são resultado de seis anos de trabalho do pro-
fessor Ruggie, lastreado em pesquisas e amplas consultas com empre-
sas, governos, sociedade civil, pessoas e comunidades afetadas, juris-
tas, investidores e outros interessados. Em número de 31, os Princípios
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Orientadores são embasados em três pilares:


• Proteger - o dever do Estado de proteger os direitos humanos;
• Respeitar - a responsabilidade corporativa das empresas de
respeitar os direitos humanos;
• Reparar - necessidade de que existam recursos adequados e
eficazes, em caso de descumprimento destes direitos pelas empresas.

Um importante aspecto trazido pelo Relatório é o de que a res-


ponsabilidade das empresas em respeitar os direitos humanos inde-
pende do seu tamanho ou do setor econômico no qual atuam, ainda
que a magnitude dos impactos e as respectivas responsabilidades pos-
sam variar conforme esses dois fatores.
Ainda que não seja exclusivamente voltada para as empresas,
outro instrumento que estabelece importantes diretrizes sobre respon-
sabilidade social e direitos humanos é a Norma ISO 26000. Fundada
em 1947, a Organização Internacional para a Normalização (ISO -
International Organization for Standardization) congrega organismos de
normalização técnica de aproximadamente 160 países. As normas ISO
atuam nas especificações técnicas de diversos campos, exceto nas áre-
as eletroeletrônica e de telecomunicações. A representação do Brasil
na ISO é de responsabilidade da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT), que tanto adota as normas ISO quanto desenvolve
as suas próprias.
7
Professor de Direitos Humanos e Relações Exteriores da Universidade de Harvard.

Desafios da gestão em responsabilidade social: 79


um enfoque de garantias de direitos humanos
Publicada em dezembro de 2010, a norma ISO 26000 fornece
orientações sobre princípios e práticas de responsabilidade social di-
rigidas a organizações de qualquer natureza, não apenas empresas.
Sendo uma norma de orientação, não é passível de certificação, pois
não contém a especificação de requisitos a serem verificados para a
outorga de um certificado. Conforme destaca o DIEESE8 (2013), a ISO
26000 tomou por base as normas, tratados, convenções e outros docu-
mentos intergovernamentais, inclusive as convenções da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), para definir as suas recomendações
de conteúdo. Com isso, procurou respeitar as normas obrigatórias
adotadas por amplo consenso entre nações e representantes da socie-
dade internacional, reconhecendo, portanto, a autoridade de governos
e organismos intergovernamentais para a fixação dos requisitos de res-
ponsabilidade social para as organizações.

A Responsabilidade Social Empresarial na Visão da OIT

A OIT considera que a Responsabilidade Social Empresarial (RSE)


é uma maneira pela qual as empresas consideram as repercussões de
suas atividades sobre a sociedade e afirmam seus princípios e valores no
que se refere tanto a seus próprios métodos e processos internos quan-
to à sua interação com terceiros. Um ponto de referência do trabalho da
OIT na área da RSE é a Declaração Tripartite de Princípios sobre as Empresas
Multinacionais e a Política Social (EMN), adotada em 1977 e revista em 2000.
Mesmo tratando-se de um instrumento voluntário, a referida Declaração
é lastreada nos marcos jurídicos e práticas nacionais, nas normas interna- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
cionais do trabalho pertinentes, nos pactos internacionais adotados pelas
Nações Unidas e na Declaração da OIT relativa aos Princípios e Direitos
Fundamentais do Trabalho e seu Seguimento (1998).
A Declaração EMN abarca cinco esferas: política geral; empre-
go; formação; condições de trabalho e de vida e relações de trabalho.
Em cada uma dessas esferas figuram diretrizes, tanto para os governos
como para as empresas, e são sugeridas maneiras pelas quais a contri-
buição das empresas (incluindo as multinacionais) para o desenvolvi-
mento econômico e social pode ser maximizada.
Normas sobre responsabilidade social das empresas a ISO 26000 e o GRI. São Paulo: DIEESE,
8

Nota Técnica nº 12, março de 2013.

80 Laís Abramo, José Ribeiro e Camila Almeida


Outra referência importante da OIT para a discussão do tema da
Responsabilidade Social Empresarial é a própria noção de Trabalho
Decente. O conceito de trabalho decente expressa a síntese do mandato
histórico e dos objetivos estratégicos da OIT: a promoção das normas
internacionais do trabalho, a geração de mais e melhores empregos
para homens e mulheres, a extensão da proteção social e a promoção
do tripartismo e do diálogo social.
Essa noção foi formalizada pela primeira vez na Memória apre-
sentada pelo Diretor Geral da OIT na 87ª Reunião da Conferência
Internacional do Trabalho, realizada em Genebra, em junho de 1999,
nos seguintes termos: “Atualmente, a finalidade primordial da OIT é
promover oportunidades para que homens e mulheres possam con-
seguir um trabalho decente e produtivo em condições de liberdade,
equidade, segurança e dignidade humanas. (...) O trabalho decente é
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

o ponto de convergência de quatro objetivos estratégicos: a promoção


dos direitos fundamentais no trabalho, o emprego, a proteção social e
o diálogo social. Isso deve orientar as decisões da Organização e de-
finir sua tarefa internacional nos próximos anos” (CONFERENCIA
INTERNACIONAL DEL TRABAJO, 1999).
A noção de Trabalho Decente integra as dimensões quantitativa
e qualitativa do emprego. Ela propõe não apenas medidas dirigidas à
geração de postos de trabalho e ao enfrentamento do desemprego, mas
também à superação de formas de trabalho que geram renda insufi-
ciente para que os indivíduos e suas famílias superem a situação de
pobreza, ou que se baseiam em atividades insalubres, perigosas, inse-
guras e/ou degradantes. Afirma a necessidade de que o emprego este-
ja também associado à proteção social e aos direitos do trabalho, entre
eles os de representação, associação, organização sindical e negociação
coletiva. Em outras palavras, o conceito de trabalho decente acrescen-
ta, à noção anteriormente já consolidada de um emprego de qualidade,
as noções de direitos (todas as pessoas que vivem do seu trabalho são
sujeitos de direito e não apenas aquelas que estão no setor mais estru-
turado ou formalizado da economia), proteção social, voz e representação.
Reafirma que existem formas de emprego e trabalho consideradas ina-
ceitáveis e que devem ser abolidas, como o trabalho infantil e todas as
formas de trabalho forçado, obrigatório ou degradante. Afirma a neces-
sidade imperiosa de reduzir os déficits de trabalho decente na econo-
mia informal e de avançar no sentido de uma progressiva formalização,
e define a equidade de gênero como um eixo transversal desse conceito.

Desafios da gestão em responsabilidade social: 81


um enfoque de garantias de direitos humanos
A Resolução sobre a Promoção de Empresas Sustentáveis adotada du-
rante a 96ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho (CIT),
realizada em junho de 2007, por sua vez, também é parte importante
desse marco de referência. O conceito de empresas sustentáveis se re-
laciona fortemente ao conceito de Trabalho Decente e está diretamen-
te associado à noção de desenvolvimento sustentável, que se apoia em
três pilares: o econômico, o social e o ambiental.
A referida Resolução enumera 17 pontos, que abarcam as condi-
ções básicas para a criação de um ambiente propício para a promoção
e desenvolvimento das empresas sustentáveis: a) Paz e estabilidade
política; b) Boa governança; c) Diálogo social; d) Respeito aos direitos
humanos universais e às normas internacionais do trabalho; e) Cultura
empresarial; f) Política macroeconômica adequada e estável e boa ges-
tão da economia; g) Comércio e integração econômica sustentável; h)
Ambiente jurídico e normativo propício; i) Estado de direito e garan-
tia dos direitos de propriedade; j) Competição leal; k) Acesso a servi-
ços financeiros; l) Infraestrutura física; m) Tecnologias de informação e
comunicação; n) Educação, formação e aprendizagem permanente; o)
Justiça social e inclusão social; p) Proteção social adequada; q) Gestão
responsável do meio ambiente.
A Resolução também enfatiza o papel estratégico do diálogo so-
cial para a promoção das empresas sustentáveis, destacando a contri-
buição de trabalhadores, empregadores e suas organizações no apoio
aos governos para a formulação e implementação de políticas de pro-
moção de empresas sustentáveis.
Por fim, a OIT9 enfatiza que, dado o papel central dos direitos
humanos universais e das normas internacionais do trabalho na cria-
Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
ção do entorno para a promoção das empresas sustentáveis, faz-se ne-
cessário o máximo de esforço para se alcançar estes objetivos, princi-
palmente no que concerne à ratificação e implementação das conven-
ções da OIT, em especial as convenções fundamentais que tratam dos
direitos e princípios fundamentais no trabalho10.
9
El desafío de la promoción de las empresas sostenibles en América Latina y el Caribe: un
análisis regional comparativo. Lima: OIT/ACTEMP, Oficina Regional para América Latina y el
Caribe, 2013.
10
Os princípios e direitos fundamentais no trabalho compreendem a liberdade de associação e
o direito à negociação coletiva, a erradicação do trabalho forçado ou obrigatório, a eliminação
do trabalho infantil e a eliminação da discriminação em matéria de emprego ou ocupação
(Declaração da OIT relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho e seu
Seguimento, 1998).

82 Laís Abramo, José Ribeiro e Camila Almeida


Principais Desafios em Direitos Humanos

Retomando o conceito estabelecido em 1998 pelo Conselho


Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, a responsa-
bilidade social empresarial é uma expressão do compromisso da empresa
com a sociedade em geral e com as comunidades em que atua, e forma
parte de uma estratégia integrada para que esse compromisso possa se
efetivar. Abarca um conjunto amplo de relações com os trabalhadores,
os fornecedores e consumidores, as comunidades e a sociedade civil,
diferenciando-se, portanto, do conceito de governança das empresas11.
Portanto, apesar de não restringir-se ao universo interior à em-
presa, percebe-se que uma atuação social responsável requer solucio-
nar um primeiro e fundalmental desafio: o compromisso ético com sua
própria gestão e com o tratamento de seus próprios quadros. Adotar
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

medidas para a promoção dos direitos humanos no ambiente de traba-


lho, prevenindo os riscos e eliminando as discriminações e promoven-
do a igualdade de oportunidades é condição essencial para uma atua-
ção social coerente.
O Brasil ratificou outras duas importantes Convenções da OIT
intimamente relacionadas com a promoção da igualdade no trabalho.
A primeira é a Convenção 100 sobre igualdade de remuneração de ho-
mens e mulheres trabalhadores por trabalho de igual valor, ratificada
pelo Brasil em 1957, que estabelece que por trabalhos economicamen-
te equivalentes, homens e mulheres devem receber igual remunera-
ção. A segunda é a Convenção 111 sobre discriminação em matéria
de emprego e ocupação, ratificada pelo Brasil em 1965, e que, por sua
vez, define a discriminação como qualquer distinção, exclusão ou pre-
ferência baseada em motivos de raça, cor, sexo, religião, opinião polí-
tica, nacionalidade ou origem social que tenha como efeito anular ou
alterar a igualdade de oportunidades e de tratamento no emprego e
na ocupação.
Outro tema especialmente relevante para a promoção da igual-
dade de gênero e para a sustentabilidade das empresas é o equilíbrio
entre o trabalho, família e vida pessoal. É essencial que a sociedade re-

11
El diálogo social y las relaciones laborales en la industria del petróleo. Informe para el debate
de la Reunión sobre la promoción del diálogo social y las buenas relaciones laborales desde la
prospección y producción hasta la distribución de petróleo y gas. Ginebra: OIT, Programa de
Actividades Sectoriales, 2009.

Desafios da gestão em responsabilidade social: 83


um enfoque de garantias de direitos humanos
conheça que responsabilidades familiares e de cuidados não são um
tema de exclusividade das mulheres e que estas responsabilidades afe-
tam diretamente a igualdade de oportunidades no mundo de traba-
lho. Sobre este tema versa a Convenção 156 da OIT sobre a igualdade
de oportunidades e de tratamento para trabalhadores e trabalhado-
ras com responsabilidades familiares. Esta Convenção complementa a
Convenção 111 e estabelece que nenhum trabalhador ou trabalhadora
deve ser discriminado no emprego devido às suas responsabilidades
familiares. Além disso, estimula a adoção de medidas para que traba-
lhadores com responsabilidades familiares, homens e mulheres, exer-
çam seu direito a escolher livremente seu emprego, e chama os ato-
res sociais a promover serviços de assistência à infância e à família. A
Convenção 156 ainda não foi ratificada pelo Brasil. No entanto, além
de iniciativas do governo, existem ações voluntárias de empresas que
facilitam o equilíbrio entre trabalho e família. Neste sentido, também é
muito importante o papel da negociação coletiva para, a partir do di-
álogo social, garantir melhorias aos e às trabalhadores/as e, inclusive,
ampliar as garantias estabelecidas por lei12.
Sabemos que o país tem avançado nesses termos. É importante
ressaltar que muitas empresas e instituições tem voluntariamente rea-
lizado ações e tomado medidas para promover a igualdade no traba-
lho. Tomando o exemplo da promoção da igualdade de gênero e raça
no mundo do trabalho, podemos citar como importante iniciativa o
Programa Pró-equidade de Gênero e Raça da Secretaria de Políticas
para as Mulheres, em parceria com a OIT e a ONU Mulheres, que, des-
de 2005, reúne a empresas e instituições comprometidas com a elimi-
nação das discriminações e desigualdades no ambiente de trabalho. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Na sua última edição, aproximadamente 80 empresas, abracando um
total de quase 900.000 funcionários/as, puseram em prática planos de
ação para alcançar resultados e cumprir metas nesse sentido. Essas ini-
ciativas indicam a tendência crescente de sensibilização em torno do
tema, apesar da persistência de importantes marcas de desigualdade.
Violências baseadas no gênero e na raça no ambiente de trabalho como
assédio moral, assédio sexual e discriminação ainda são comuns e de-
vem ser combatidas no dia-a-dia e em todo o processo de recrutamen-
to, seleção, ascensão funcional e permanência no emprego.

12
Negociação de cláusulas relativas à equidade de gênero e raça 2007-2009. Brasília: OIT, 2011.

84 Laís Abramo, José Ribeiro e Camila Almeida


É importante compreender que a discriminação não é apenas um
atentado aos direitos humanos e aos direitos fundamentais no traba-
lho, mas também representa um grande custo para as empresas e a so-
ciedade, pois provoca desperdício de recursos, talentos e potencialida-
des humanas, com efeitos negativos na produtividade e competitivi-
dade das empresas e no desenvolvimento econômico das sociedades.
Além disso, gera desigualdades profundas no acesso aos recursos eco-
nômicos, sociais, políticos e culturais, além de impedir o pleno exercí-
cio da cidadania e debilitar a coesão social e a democracia.
Perceber que existem inequidades de gênero e raça geralmente
é algo evidente, ao observar como se compõem os quadros de pessoal
das organizações, tanto em termos da hierarquia quanto da estrutura
ocupacional. Uma iniciativa voltada para a eliminação da discrimina-
ção e para promoção da igualdade busca necessariamente diagnosticar
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

a realidade, analisar as causas das desigualdades, empreender medi-


das e estabelecer metas de mudanças.
Diagnosticar as brechas de igualdade é fundamental para iden-
tificar as práticas discriminatórias que as causam e que, portanto, de-
vem ser eliminadas, e para promover políticas ativas de igualdade de
oportunidades de tratamento no ambiente de trabalho, como políticas
de cotas, capacitação e treinamento, medidas de conciliação entre tra-
balho e família, etc.
Fundamentalmente, a igualdade para a OIT é um tema de direi-
tos humanos e faz parte das condições essenciais para atingir uma de-
mocracia efetiva. É também um tema de justiça social e diminuição da
pobreza, na medida em que é condição para ampliar as oportunidades
de acesso a um trabalho decente. E, por último, é também um tema de
desenvolvimento social e econômico, na medida em que promove a
participação de cidadãs e cidadãos de forma igualitária na atividade
econômica e na tomada de decisões relativas à formulação de políticas
de desenvolvimento que respondam adequadamente aos objetivos da
igualdade.
Agora, retomando a noção ampla de responsabilidade social em-
presarial e considerando que a forma e o alcance em que a empresa
cumpre com a lei, os requisitos de transparência e responsabilidade,
as normas éticas e os códigos de conduta social e ambiental interessam
também a outros atores, entre eles as comunidades locais, surge outro
dos principais desafios em direitos humanos e de suma importância

Desafios da gestão em responsabilidade social: 85


um enfoque de garantias de direitos humanos
para a gestão do negócio: o diálogo social. Nos últimos anos, têm sur-
gido novas formas de participação, como reconhecimento da necessi-
dade dos indivíduos, grupos e organizações de trabalhadores de par-
ticipar nas decisões, especialmente naquelas que provavelmente afeta-
rão as comunidades onde vivem e trabalham. Neste contexto, o diálo-
go social desempenha um papel fundamental para definir e redefinir
projetos de desenvolvimento social e econômico no setor que assegu-
rem a promoção dos direitos humanos.
As deficiências em matéria de responsabilidade social e gover-
nança têm um custo bastante elevado. Com o objetivo de evitar esses
custos, as empresas vêm desenvolvendo práticas de due diligence com
o intuito de aprimorar a gestão de direitos humanos e o respeito à les-
gislação nacional e internacional. Aspectos importantes da responsabi-
lidade social da empresa são uma maior transparência e o compromis-
so com as comunidades locais e a constribuição a estas, por exemplo,
através da criação de emprego de qualidade nesse âmbito 13.
A chave para uma boa governança da empresa é o desenvolvi-
mento e aplicação de programas que promovam os princípios éticos,
as normas morais e as práticas socialmente aceitas. Esses programas
devem abarcar o respeito aos direitos humanos, o cumprimento das
principais normas internacionais do trabalho, assim como esforços
para evitar subornos e corrupção. Indubitavelmente, não será possível
alcançar, aplicar e manter estes objetivos sem o diálogo e a consulta a
todos os níveis de organização.
De que forma uma cultura de respeito aos direitos humanos
pode gerar valor ao negócio? Um primeiro aspecto a ser considerado
nessa discussão é a necessidade da empresa integrar as preocupações Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
com direitos humanos à sua estratégia de negócio, evitando focar suas
ações apenas na gestão de risco para a sua imagem. O Instituto Ethos14
destaca que, para uma devida gestão dos impactos, análise dos riscos
inerentes à operação e alinhamento de suas ações com a expectativa da
sociedade e indivíduos, as empresas envolvidas seriamente com essa
agenda têm investido cada vez mais em integrar a responsabilidade
social empresarial à sua estratégia, o que traz ganhos para o negócio.
Um guia elaborado pela Rede do Pacto Global da Holanda evidencia
13
OIT, 2009 (Op. Cit).
14
Empresas e Direitos Humanos na Perspectiva do Trabalho Decente: Marco de Referência. São
Paulo: Instituto Ethos, novembro de 2011.

86 Laís Abramo, José Ribeiro e Camila Almeida


os impactos da adoção ou não de medidas de respeito aos direitos hu-
manos, como pode ser verificado no quadro comparativo a seguir15.

Situação em que a empresa Situação em que a empresa


não respeita os direitos humanos respeita os direitos humanos
Enfrenta custos relacionados a greves Mantém força de trabalho diversificada,
quando os trabalhadores entendem que tornando-se mais competitiva.
seus direitos não são respeitados.
Tem custos de contencioso relativos aos Tende a ser mais atrativa como emprega-
processos de violação aos direitos huma- dora.
nos (i.e. discriminação).
Expõe-se a efeitos negativos no clima or- Conta com funcionários mais motivados,
ganizacional, pela implicação da empresa o que pode levar a um aumento de pro-
em violações aos direitos humanos. dutividade e a altas taxas de retenção.
Há aumento de custo com relações pú- Uma apropriada diligência em torno dos
blicas e para reverter os riscos à imagem direitos humanos pode minimizar críticas
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

causados por violações. e até atrair atenção positiva diante de pro-


blemas com os direitos humanos.
Ocorrem restrições de acesso, perda ou Há menos restrições de acesso a financia-
aumento de custos com financiamento. mento.
Há cancelamento de contratos com clien- A empresa pode tornar-se mais atraente
tes ou renegociações de cláusulas contra- para fornecedores, clientes e outros par-
tuais e valores envolvidos. ceiros de negócio.
A empresa é incapaz de obter no mercado Observa-se maior conhecimento e capa-
os produtos que necessita dentro do tem- cidade de adaptar produtos às necessida-
po planejado. des e preferências do consumidor.
Há restrições na obtenção de novas licen- A empresa tem maior acesso a contratos
ças e autorizações ou em sua renovação, com o governo.
reduzindo-se as oportunidades de cresci-
mento.
Ocorre maior possibilidade de write-offs Aumenta a probabilidade de os projetos
e de correção monetária no caso de proje- terminarem no prazo previsto, ou antes.
tos cancelados ou atrasados.
A empresa tem acesso restrito ao merca- Tempo, recursos financeiros e humanos
do de capitais como resultado das preo- antes focados na resolução de problemas
cupações dos investidores socialmente podem ser dedicados à inovação, empre-
responsáveis. endedorismo e outras frentes que a em-
presa queira desenvolver.

Presentes com ênfase em todos os marcos referenciais abordados


anteriormente há outro importante desafio que, indubitavelmente, é es-
truturante e estratégico tanto para a garantia e respeito aos direitos humanos

15
Tradução livre do guia How to Do Business with Respect for Human Rights: a Guidance Tool
for Companies, com adaptações para a realidade do Brasil, realizada pelo Instituto Ethos (2011).

Desafios da gestão em responsabilidade social: 87


um enfoque de garantias de direitos humanos
quanto para gerar valor ao negócio: a necessidade de articular as ações
de responsabilidade social com o modelo de gestão, o envolvimento das co-
munidades, o desenvolvimento local e o investimento social. Muitas vezes tra-
tadas separadamente, as questões explicitadas nesse desafio são indisso-
ciáveis e mutuamente dependentes. É notório que, ao longo das duas úl-
timas décadas, diversas empresas têm ampliado significativamente seu
investimento social; no entanto, ainda perdura, em muitas situações, um
inquietante descompasso entre os impactos gerados pelo negócio e os
resultados efetivos deste investimento no que tange ao desenvolvimen-
to local das comunidades diretamente impactadas. A tecnologia social
do negócio não tem acompanhado a evolução tecnológica da produção.
Nesse contexto, destaca-se uma importante vulnerabilidade no
âmbito do modelo de gestão da maioria das empresas. Uma das grandes
dificuldades relacionadas às ações de responsabilidade social das empre-
sas que atuam num determinado território e dos respectivos impactos
proporcionados pelas atividades econômicas das mesmas (sejam positi-
vos ou negativos) é o de dispor de informações periódicas e específicas
que permitam conhecer o perfil socioeconômico e demográfico das co-
munidades existentes nas localidades do entorno de sua área de atuação.
A inexistência e/ou a insuficiência de informações acerca do perfil
e evolução das comunidades, assim como da infraestrutura econômica e
social das localidades - incluindo-se as suas debilidades, vulnerabilida-
des e potencialidades – fazem com que oportunidades e recursos sejam
desperdiçados. Ademais, é muito comum que haja um desconhecimento
importante sobre o alcance dos resultados e do impacto social que o de-
senvolvimento de novos empreendimentos e atividades econômicas, as-
sim como de ações de responsabilidade social realizadas pelas empresas,
estão proporcionando nas localidades e segmentos das comunidades. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Seria conveniente e necessário, portanto, desenvolver e aplicar
mais amplamente, metodologias que permitam ampliar o conhecimen-
to sobre o perfil das comunidades e a infraestrutura local, de modo
que a potencializar a inserção das comunidades no ambiente favorável
gerado pelos empreendimentos produtivos, minimizar seus impactos
negativos, garantir o respeito aos direitos humanos e, ao mesmo, tem-
po, gerar indicadores para monitoramento e avaliação da evolução das
condições de vida da população na área de influência das empresas.
Com base nesta metodologia e por intermédio do diálogo social, po-
derão ser fortalecidas significativamente as ações de responsabilidade
social e de garantia de direitos humanos.

88 Laís Abramo, José Ribeiro e Camila Almeida


ÉTICA COMO ARTE E GARANTIA DE CONVIVÊNCIA

Deusilene Silva de Leão1

É impossível pensar em ética se a gente não pensar em convivên-


cia. Afinal de contas, o que é a ética? A ética é que demarca a fronteira
da convivência. Sejam com as outras pessoas, com o mercado, com os
indivíduos, colegas de trabalho. Ética é aquela perspectiva para olhar-
mos os nossos princípios e os nossos valores para existirmos juntos.
Qual é o nome do conjunto de princípios e valores de conduta que
uma pessoa ou um grupo de pessoas tem? Ética. O termo ética vem do
grego ethos, nasceu na Grécia, modificou-se através dos tempos e das
culturas que o ressignificaram. Significa morada humana. Ethos é o lu-
gar onde habitamos, é a nossa casa. Ethos também significa “marca” ou
“caráter”. Este termo foi utilizado na Grécia, entre pré-socráticos, prin-
cipalmente Homero e Hesíodo, para referir-se a um espaço físico que
garanta segurança sobrevivência e conforto para os indivíduos.
Aristóteles, em Ética à Nicômaco, ressignifica o termo substituin-
do a especialidade física por uma disposição interna que revela o cará-
ter, a índole, o hábito, o costume. Esta mudança mostra um novo foco
nas investigações filosóficas, atendo-se agora ao conhecimento, a alma,
a beleza e a justiça.1
Os romanos traduziram a ética em mor-mores que significa nor-
ma, costume, regra, revelando um caráter normativo, autoritário e
vertical, implicando obediência e uniformidade. Podemos ver que a
ética que no princípio designava morada, foi lapidada para traduzir
o caráter, a índole, que levam o homem ao bem absoluto que é a fe-
licidade.
1
Consultora Corporativa. Doutoranda e Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás. E-mail: <dleao@terra.com.br>.

89
Se neste momento pretendêssemos procurar conceitos de Ética e
Moral num dicionário qualquer, encontraríamos mais ou menos as se-
guintes definições: a Ética é a parte da filosofia que trata das obrigações
do homem e Moral é a ciência dos costumes. De maneira que à primei-
ra vista pode-se observar que, em geral, o conceito de Ética reveste-se
de certo “verniz filosófico”, enquanto que a Moral se reduz a uma série
de normas que nos servem para melhor viver em comum a nossa vida
cotidiana. Na antiguidade não se concebia um sistema de costumes em
oposição a um sistema filosófico. Toda filosofia tinha antes uma finali-
dade a sua aplicação direta e nenhum pensador se gabava de falar de
um modo e agir de outro. Isto é unicamente próprio da época moder-
na. Ética ou Moral, ou antes, a teoria e a prática eram dois aspectos da
mesma coisa, dois atalhos do mesmo caminho.
Como nos lembramos hoje da civilização Grega? Lembramo-nos,
precisamente, através dos seus grandes artistas e filósofos. Isto fez com
que o aspecto intelectual fosse considerado de um modo bem diferente
do que era na antiga Grécia. Por outro lado, como é que recordamos os
Romanos do Império? Pela sua ação guerreira, força imensa e vontade
inquebrantável.
Temos aqui uma resposta possível do enigma: se Ética vem do
Grego e Moral do Latim, este detalhe é suficiente para que na nossa
mentalidade se identifiquem os termos com a civilização correspon-
dente. Eis porque é que o conceito de Ética se relaciona com o territó-
rio, o elevado, o que não é digno senão dos grandes livros, enquanto o
que o de Moral assume um caráter mais prático e direto, digno de um
homem de ação.
Assim, pois, se a ideia destas civilizações foi a da posse da vir-
tude como meio de atingir os seus Deuses, tanto os Gregos como os Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
Romanos, referiam-se à mesma coisa quando falavam de Ética e Moral.
Tratava-se de harmonizar o homem, de ajudá-lo afim de que nele sur-
gissem as fontes da justiça e de bem que lhe permitissem beber as
águas da Divindade.
Hoje não podemos reconstruir uma cidade grega ou um Império
Romano tal como existiam há vinte ou trinta e cinco séculos, mas pode-
mos fazer o seu velho conceito, nunca deteriorado, de Ética e de Moral.
Do ponto de vista teórico, ética e moral não são as a mesma coisa. Estão
interligadas. Eu posso dizer que algo é imoral, mas não posso afirmar
que algo é aético. É imoral porque colide com determinados princípios
que uma sociedade tem.

90 Deusilene Silva de Leão


CORTELLA (2014), diz que a ética é o conjunto dos seus princí-
pios e valores. É muito mais que campo teórico. A moral é a prática, é o
exercício das suas condutas. Eu tenho uma conduta no dia-a-dia, cha-
ma-se conduta moral. A ética são os princípios que orientam a minha
conduta. Integridade é o princípio ético para não apequenar a vida,
integridade é sinceridade e honestidade. Quanto mais claros os prin-
cípios, mais fica fácil lidar com os dilemas. Você não deixa de ter dile-
mas, mas é preciso ter como razão central a integridade. O que é uma
pessoa íntegra? É uma pessoa correta, justa, honesta que não se desvia
do caminho.
De que arte estamos nós falando aqui, será aquela arte contem-
plativa? Referimo-nos à arte com excelência em uma ação. Criativa,
com objetivos claros, que garanta a realização de ações com maestria.
CORTELLA (2014) diz que a ética é antes de mais nada, a capa-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

cidade de protegermos a dignidade da vida coletiva, afinal de contas


vivemos juntos. Para seres humanos não existe vivência, existe sim
convivência. Nós só somos humanos com os outros humanos. Nossa
humanidade é compartilhada. Ser humano é ser junto. Isso significa
que é preciso que saibamos que a nossa convivência exige uma noção
especial da nossa igualdade de existência, o que nos obriga a afastar
do ponto de partida qualquer forma de arrogância. Gente arrogante
é aqueles que acham que já sabem, já conhecem, único tipo de ser hu-
mano válido que existe e só suas coisas funcionam. Gente arrogante
é incapaz de prestar atenção. Você está dialogando e ele não ouve o
que você fala, está pensando outra coisa. A ética nos obriga a perce-
ber essa multiplicidade de pontos de vista. O arrogante acha que só
tem um ponto de vista que vale: o dele. O arrogante é incapaz de uma
das coisas importantes e que será a razão central da ética: a visão de
alteridade. É a capacidade de ver o outro como outro, e não como es-
tranho. A fratura ética se origina, em grande parte, da arrogância e da
ganância. A ganância junto com a arrogância são mecanismos de apo-
drecimento ético.
BARUCH SPUNOZA (OEVRES) diz há muitos séculos atrás que
há pois fora de nós muitas coisas que nos são úteis, e que, por essa ra-
zão, é preciso almejar. Entre elas, o pensamento não pode inventar me-
lhores do que aquelas que respondem inteiramente a nossa natureza.
Assim, por exemplo, se dois indivíduos inteiramente da mesma natu-
reza se juntam um ao outro, eles compõem um indivíduo duas vezes

Ética como arte e garantia de convivência 91


mais poderoso do que cada um deles separadamente. Pois nada há de
mais útil ao homem do que o homem; digo, pois que os homens não
podem desejar nada que valha mais para a conservação do seu ser do
que se unirem todos, em todas as coisas, de forma que as Almas e os
Corpos de todos componham, de alguma maneira, o seu ser, e do que
busca todos juntos a utilidade comum a todos; segue-se, então, que os
homens que são governados pela Razão, ou seja, aqueles que buscam
o que lhes é útil sob a conduta da Razão, não almejam nada para eles
mesmos que eles não desejam também para os outros homens, e são
dessa forma justos, de boa-fé e honestos.
Convivência, conviver, termo que significa viver junto. Podemos
viver juntos de diversas maneiras, os primeiros agrupamentos que se
formaram ainda na idade das cavernas, tinham como objetivo a segu-
rança que a caverna proporcionava a somatória de forças individuais
para a caça e para sobrevivência. Portanto a escolha não foi viver junto,
foi uma contingência. De lá para cá estamos aprimorando nossa for-
ma de conviver, várias experiências foram feitas no decorrer da histó-
ria, mas todas tinham como foco algum interesse financeiro ou de po-
der. Nos últimos anos temos percebido que o nosso planeta com seis
bilhões de habitantes, continua a crescer e que a diversidade e a plu-
ralidade são imensas, o que nos leva a pensar que conviver em grupo
é quase o único caminho. Mas de que forma conviver se as diferenças
vão de idiomas, credos, raças, pensamentos, políticas, etc. Atualmente
a globalização aproximou os mundos através da Internet, dos merca-
dos comuns, da unificação de algumas moedas, isto quer dizer que
algo que afeta alguns pode afetar muitos. A história nos mostra através
de seus feitos que o homem foi conquistando território, dentro e fora Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
do planeta, mares, genes, em toda parte temos indício da passagem e
do estudo do homem.
Kierkegaard2 (1849) diz que o indivíduo verdadeiramente ético,
consequentemente, experimenta tranquilidade e segurança, porque
seu dever não está fora, mas nele. Quando mais profundamente um
homem baseia sua vida na ética, menos sentirá necessidade de falar
constantemente do dever, de se inquietar por saber se cumpriu ou não
seu dever, enfim, de consultar a cada instante os outros para saber qual
é o seu dever.

Filósofo dinamarquês (1831-1885).


2

92 Deusilene Silva de Leão


O que será que a humanidade ganhou neste tempo? Como es-
tão às relações entre os pares, os familiares, os amantes, as empresas.
Como se dão os encontros? A grande arte da vida está no poder do
encontro. Existe uma transformação a partir do encontro. Ninguém
muda ninguém, ninguém transforma ninguém. Nós nos transforma-
mos através do encontro. A vida é carregada de encontros, mas no seu
contexto acontecem muitos desencontros. O mais importante é trans-
formar estes desencontros em grandes encontros na vida.
Moreno o criador do Psicodrama nos ensina que o encontro re-
quer despir-se de si e vestir-se no outro, em total confiabilidade de en-
trega de poder ir e vir sem perder-se. Mas essa confiabilidade está ali-
cerçada em uma ética, que garanta que as intenções do outro sejam vir-
tuosas, como nos ensina Aristóteles.
Virtudes estas que habitam nossa alma e nos guiam para o bem
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

absoluto, a felicidade, que torna a vida desejável e sem carências. Para


Aristóteles, o caráter, a índole, é formada por um conjunto de virtudes
que são aprendidas e exercitadas durante a vida, que se indica o cami-
nho do meio, sem exceções e sem faltas. Para esse grande pensador o
exercício da ética insere-se na convivência com o mundo que nos cerca,
sendo uma disponibilidade individual. Ele não se atém à regras e nor-
mas criadas pela sociedade para o convívio, como Kant, que acreditava
que o exercício de respeitar as normas era o que tornava o homem com
caráter. Para Kant a ética não se traduzia pela regra, mas sim pelo ato
do sujeito de respeitá-la por que ela existe.
Vários são os olhares sobre a ética, cada cultura imprime na sua
verdade, os valores e os princípios que lhe são caros. Na cultura védi-
ca encontramos ética como DHARMA (sânscrito), princípio de ordem
universal que sustenta todas as coisas. Nas várias escolas orientais va-
mos perceber que a ética está relacionada com posturas e ações frente
a diversas situações cotidianas da vida, que são pautadas por alguns
conjuntos de disciplinas, atitudes que norteiam para uma vida ética.
No Judaísmo e no Cristianismo a ética se traduz pelos mandamentos
de cada religião. Importante perceber que nas várias culturas a Ética
está vinculada a uma postura de vida que se relaciona com um com-
promisso interno, atualmente na nossa cultura necessitamos de várias
regras, mandamentos para lembrar-nos de tomar atitudes éticas. Para
os Budistas da Ásia Central a ética traduz-se por atitudes que geram
méritos e aqueles que geram deméritos.

Ética como arte e garantia de convivência 93


Podemos perceber que a ética nas várias roupagens que tem, sus-
tenta princípios que levam a atitudes que não ferem o outro em ne-
nhum aspecto. Esta não é a realidade no decorrer da nossa história
sangrenta, manipulativa, violenta. Chegamos nos dias atuais, em ple-
no século XXI, sem saber como nos comportar em grupo, necessitando
de toda a espécie de regras e leis para garantir a convivência suportá-
vel, embora a consigna social seja criar formas de burlar as leis sem ser
descoberto.
A grande violência crescente que atinge a todos nas pequenas e
grandes cidades, mostra que os valores considerados universais, como
respeito à vida, a natureza, ser solidário, ter a noção de interdependên-
cia são desconsideradas. Quando citamos a violência não estamos fa-
lando somente de criminalidade, mas sim de todos os pequenos atos
violentos do cotidiano, do desrespeito ao pedestre, ao motorista, da
fala preconceituosa em relação a alguém, da bronca dada ao funcio-
nário, da submissão imposta aos outros, da falta de interesse pelas di-
ficuldades de outrem. São tantas as violências cotidianas que já nos
acostumamos com ela e até nos parece normal vermos cenas de vio-
lência espalhadas na mídia. A valorização da cultura do ter em detri-
mento do ser.
A virtude era um suplemento de honra, criado pela disciplina
da vontade dos que aspiravam à glória ou a imortalidade. Por que se
imaginavam livres e capazes de exercer influência sobre si e sobre os
outros, os indivíduos tentavam ser “excelentes” no que faziam ou na
maneira como viviam. O herói fosse ele corajoso santo ou sábio, era o
modelo do “homem virtuoso”. Era alguém que se alçava acima das cir-
cunstâncias e da estreita necessidade para criar algo novo em matéria Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
de exemplo moral.
Na ideologia do bem-estar, o que conta não é a virtude, é o su-
cesso. A distância ética entre os dois são enormes. O sucesso é diferen-
te da virtude. Seu parâmetro é a visibilidade. Donde a simbiose com a
publicidade ou o “espaço publicitário”. O sucesso vive da publicida-
de e ambos dependem do mercado de objetos. O sucesso só é sucesso
se é notícia, se é um artigo, um produto vendável. Na mídia, pessoas,
coisas ou eventos recebem o mesmo tratamento. O espaço publicitá-
rio considera irrelevantes as tradicionais divisões entre fatos e valo-
res, público e privado. O virtuoso e o vicioso; o banal e o extravagan-
te; o sublime e o monstruoso; o simulacro e a realidade; o caricato e o

94 Deusilene Silva de Leão


autêntico, tudo é nivelado, no noticiário, pela medida do sucesso de
vendas. Não se pede mais ao indivíduo que tenha “excelência”, pede-
-se que ele “apareça”, que “se mantenha em cartaz”. Não se pede mais
que pense em qual é a melhor escolha moral para ele e para o outro,
pede-se que calcule qual a melhor tática para ser “bem-sucedido”. A
dignidade do sujeito moral perdeu sua função de fundamento da éti-
ca. Só é notícia se, no momento e na circunstância revelar-se um pro-
duto vendável.
O sucesso tornou-se um meio “naturalizado” ou “socializado”
de construção de identidade pessoal. Os ídolos da publicidade não
precisam ser “excelentes” no que são ou fazem. O emblema do sucesso
é a permanência em cartaz e os objetos que exibem. A angústia do ano-
nimato causa inveja do sucesso e avidez pela publicidade, porque o su-
cesso é praticamente o único modelo de individualização deixado aos
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

indivíduos. Modelo que reafirma a importância da posse de objetos


de consumo como espelho identificatório. Eu sou aquilo que possuo, e
quanto mais possuo, em qualidade, mais sou bem-sucedido.
A precariedade desse modelo de identificação salta à vista. No
momento em que depende dos objetivos de consumo para construir o
sentimento de identidade, abandonado a crença na autonomia e na in-
dependência do sujeito moral diante de suas circunstâncias. Antes éra-
mos felizes ou infelizes, bons ou maus; agora somos obsoletos, impres-
táveis, inutilizáveis, economicamente inviáveis ou, pelo contrário, algo
que tem valor de venda, potencial de lucro, liquidez, etc.
Essa desconfiança de que alguma coisa saiu errada, tem nos as-
solado por causa da violência crescente, ou seja, o medo de não con-
seguirmos nos preservar enquanto espécie, nos alerta que temos que
mudar o rumo. Qual nossa preocupação em estimular a reflexão da
importância de uma postura ética, que contemplem atitudes dignas.
Convencemo-nos que se não conseguirmos mudar a forma com que as
pessoas se relacionam entre si e com o planeta, não teremos muito com
que nos preocupar em pouco tempo.
Mas como se fazer essa mudança?
Quais os elementos necessários para que nós convivamos neste
planeta de uma forma menos destrutiva? Para que dentro de nossas or-
ganizações possamos inicializar uma cultura ética de forma a enxergar
o outro. Se prestarmos atenção nos novos movimentos que nasceram
na nossa sociedade, talvez tenhamos algumas pistas.

Ética como arte e garantia de convivência 95


A preocupação e o engajamento crescente do mundo organiza-
cional, da sociedade civil e do setor privado no incentivo de novas for-
mas de atenção a diminuição da exclusão social, revela que um novo
pensamento toma forma em nossa cultura, privilegiando a coopera-
ção em detrimento da competição. Certo que esta motivação coopera-
tiva não pertence a todos os setores, mas aos poucos vai criando força
e conscientizando o indivíduo que a responsabilidade como os outros
e com o planeta é global.
Outro instrumento necessário foi a criação e divulgação do
Manifesto 2000 pela não violência, para tentar garantir através do
compromisso individual uma possibilidade de mudança na postura
da vida, que refletisse no coletivo. Se prestarmos atenção o Manifesto
recoloca seis pontos básicos para todo o ser humano:
• Respeitar a vida
• Rejeitar a violência
• Ser generoso
• Ouvir para compreender
• Preservar o planeta
• Redescobrir a solidariedade

Estas novas estratégias que estão sendo criadas só se tornaram


possíveis, pois o homem chegou ao seu limite de falta de humanida-
de e agora tem que fazer um árduo caminho de retomada do aspec-
to divino que existe em cada um de nós. A baixo apresento parte do
manifesto:3

Devemos tratar os outros como gostaríamos que os outros nos


Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
tratassem. Assumimos o compromisso de respeitar a vida e a
dignidade, a individualidade e a diversidade, para que cada pes-
soa, sem exceção, seja tratada humanamente. Devemos ter pa-
ciência e uma visão positiva da vida, devemos saber perdoar,
aprendendo com o passado, sem jamais nos tornarmos escravos
de lembranças odiosas. Abrindo nossos corações aos outros, de-
vemos eliminar nossas pequenas diferenças em prol da causa da
comunidade mundial, pondo em prática uma cultura de solida-
riedade e de relacionamento harmônico.

Manifesto 2000 pela não-violência assinado por mais de 125 líderes e representantes do
3

Parlamento das Religiões do mundo, Chicago, 1993.

96 Deusilene Silva de Leão


Consideramos a humanidade como nossa família. Devemos nos
esforçar para sermos bons e generosos. Não devemos viver so-
mente em função de nós mesmos, mas também para servir a
outros, nunca nos esquecendo das crianças, dos idosos, dos po-
bres, dos que sofrem, dos incapazes, dos refugiados e dos que
vivem na solidão. Ninguém deveria jamais ser considerado ou
tratado como cidadão de segunda categoria, ou explorado da
maneira que for. Deveria existir uma parceria de iguais entre
homens e mulheres. Não devemos cometer nenhum tipo de
imoralidade sexual.
Devemos deixar para trás qualquer forma de dominação ou
absurdo.
Nós assumimos um compromisso com uma cultura de não- vio-
lência, respeito, justiça e paz. Não praticaremos a opressão, a
ofensa, a tortura, ou mataremos outros seres humanos, abando-
nando a violência como meio de resolver nossas diferenças.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Devemos nos empenhar por uma ordem social e econômica


justa, na qual todos tenham a oportunidade igual para atingir
o seu potencial máximo como seres humanos. Devemos fa-
lar e agir com veracidade e compaixão, tratando a todos com
equidade, evitando preconceito e ódios. Não devemos roubar.
Devemos nos colocar acima da cobiça pelo poder, por prestigio,
por dinheiro, e pelo consumo, a fim de criarmos um mundo
justo e pacífico.
A terra não poderá ser mudada para melhor sem que se mude
antes a consciência dos indivíduos. Comprometemo-nos a ex-
pandir nossa consciência disciplinando nossas mentes por meio
de meditação, da oração, ou pelo pensamento positivo.
Sem riscos e sem uma disposição ao sacrifício não haverá mu-
danças fundamentais em nossa situação. Comprometemo-nos,
portanto, com essa ética global, a compreensão do outro, com os
modos de vida socialmente benéficos, geradores de paz, e que
estejam em harmonia com a natureza.
Convidamos todas as pessoas, religiosas ou não, a fazer o
mesmo.
Assinado por mais de 125 líderes e representantes de 17 diferen-
tes tradições religiosas, durante o encerramento do Parlamento
das Religiões do Mundo, em agosto de 1993, em Chicago.

CREMA (2009) sustenta, que necessitamos de uma alfabetização


psíquica para a tarefa de aprender a viver consigo, com o outro, com os
outros, com o Universo e com o Mistério da Vida, pois não há encontro
onde às almas dos participantes estejam ausentes. Nesta tarefa urge fa-

Ética como arte e garantia de convivência 97


cilitar o desenvolvimento de nossa ecologia interior. Necessitamos de-
nunciar a mais terrível patologia, uma anomalia da mediocridade, con-
formada de atitudes habituais e patogênicas, suportadas num alienado
consenso social. O normótico é a pessoa adaptada a um contexto domi-
nantemente mórbido e corrupto que com seu conformismo e inércia,
realimenta o sistema enfermo, mantendo o status quo. É a pessoa que
não escuta, egocentrada, que só pensa em si. É a pessoa que não se dá
conta que tudo está ligado com tudo;
Formulo aqui a minha hipótese: a estratégia lúcida de nosso mo-
mento histórico que consiste no investimento maciço no potencial da
alma, da inteligência e da consciência humana, encontrando-se em
jogo a sobrevivência das novas gerações. Necessitamos de um verda-
deiro mutirão em prol de uma educação da alma, que nos possa desve-
lar uma ética natural e essencial, derivada da consciência desperta de
onde emana a vivência amorosa e solidária.
BOFF (2003) diz que deve-se fazer um pacto ético, fundado, no
pathos; na sensibilidade humanitária e na inteligência emocional ex-
pressas pelo cuidado, pela responsabilidade social e ecológica, pela so-
lidariedade generacional e pela compaixão, atitudes essas capazes de
comover as pessoas e de movê-las para uma nova prática histórico-so-
cial libertadora. Urge uma revolução ética mundial. Por ethos entende-
mos o conjunto das inspirações, dos valores e dos princípios que orien-
tarão as relações humanas para com a natureza, para com a socieda-
de, para com as alteridades, para consigo mesmo e para com o sentido
transcendente da existência. Esse ethos não nasce límpido da vontade,
como Atenas nasceu toda armada da cabeça de Júpiter. Mas toda éti-
ca nasce de uma nova ótica. E toda nova ótica irrompe a partir de um Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
mergulho profundo na experiência do Ser.
Nossa proposta é a busca por uma ética que se traduza em uma
arte da convivência. Que queiramos aprender, primeiro a reconhecer
o encontro e depois a partir desse encontro desenvolver essa arte de
conviver. Viver juntos. Essa é uma oportunidade para todos os grupos,
por isso que a empresa se encaixa nesta busca por uma arte da convi-
vência.

98 Deusilene Silva de Leão


Referências bibliográficas

BOFF, Leonardo. Ética e Eco-espiritualidade. Campinas, SP: Verus Editora, 2003

BOFF, Leonardo. Ethos Mundial, um consenso mínimo entre os humanos. Rio de


Janeiro: Sextante, 2003

CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é a tua obra? Inquietações propositivas sobre


gestão, liderança e ética

CREMA, Roberto. Pedagogia iniciática uma escola de liderança. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2009.

KIERKEGAARD, Soren. O Desespero Humano, 1849.

SPINOZA, Baruch. Tratado Teológico-Político, 1670.


Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Manifesto 2000 pela não-violência assinado por mais de 125 líderes e repre-
sentantes do Parlamento das Religiões do mundo, Chicago, 1993.

Ética como arte e garantia de convivência 99


ÉTICA E DIREITOS HUMANOS NO MODELO DE
EXCELÊNCIA DA GESTÃO (MEG) DA FUNDAÇÃO
NACIONAL DA QUALIDADE (FNQ)

Jairo Martins da Silva1

Qualquer organização, independentemente do seu porte, setor e na-


tureza, com ou sem fins lucrativos, é responsável por algum processo de
transformação de recursos em valor para a sociedade. Recursos são os in-
sumos e podem ser: Humanos, Naturais, Financeiros e Éticos. Os valores
gerados podem ser Econômicos, Ambientais, Sociais e Éticos. A existên-
cia de uma organização só se justifica se ela puder cumprir esta missão.1
Por outro lado, as organizações atuam num determinado ambien-
te que está em constante mutação, sujeito às complexidades, imprevisi-
bilidades e volatilidades do cenário mundial. A eficiência e a eficácia da
organização, nesse processo de transformação, está relacionada à sua
capacidade de perseguir os seus propósitos e à qualidade da sua inte-
ração com os ecossistemas com os quais interage e dos quais depende.
Por meio de uma gestão sistêmica, que possa orquestrar todos os pro-
cessos internos de uma organização, é possível gerar mais valores com
menos recursos, o que pode caracterizar o sucesso do seu desempenho.
Criada em 1991, por um grupo de representantes dos setores pú-
blico e privado, a Fundação Nacional da Qualidade (FNQ) tem a missão
de apoiar as organizações para o desenvolvimento e evolução da sua ges-
tão, por meio da disseminação dos fundamentos e critérios da excelência,
para que se tornem sustentáveis, cooperativas e gerem valor para a so-
ciedade. Para tanto, dissemina o Modelo de Excelência da Gestão (MEG)
como instrumento essencial, ou ferramenta, voltada para a melhoria da
produtividade das organizações e, consequentemente, da competitivi-
dade do Brasil. Paralelamente, a FNQ promove o Prêmio Nacional da

1
Superintendente-Geral da Fundação Nacional da Qualidade - FNQ.

101
Qualidade (PNQ) – o mais importante reconhecimento à qualidade das
práticas de gestão e do desempenho das organizações no País.
O Modelo de Excelência da Gestão (MEG), concebido pela FNQ,
está alicerçado nos Fundamentos de Excelência, que representam pa-
drões culturais internalizados nas organizações de classe mundial e
reconhecidos internacionalmente por meio dos seus processos ge-
renciais e consequentes resultados. São eles: Pensamento Sistêmico,
Atuação em Rede, Aprendizado Organizacional, Inovação, Agilidade,
Liderança Transformadora, Olhar para o Futuro, Conhecimento so-
bre os Clientes e Mercado, Responsabilidade Social, Valorização
das Pessoas e da Cultura, Decisões Fundamentadas, Orientação por
Processos e Geração de Valor.
No Modelo de Excelência da Gestão (MEG), os 13 Fundamentos
da Excelência são expressados em características tangíveis, mensurá-
veis, quantitativa ou qualitativamente, por meio de ações gerenciais
propostas na forma de questões e de solicitações de resultados. Assim,
o MEG está estruturado em 8 Critérios de Excelência, que se observados
e praticados garantem à organização uma melhor compreensão do seu
sistema gerencial, além de proporcionar uma visão sistêmica da gestão
e dos cenários local e global onde se relaciona: Liderança, Estratégias
e Planos, Clientes, Sociedade, Informações e Conhecimento, Pessoas,
Processos e Resultados.

Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo

102 Jairo Martins


Embora as ideias básicas da Ética e Direitos Humanos tenham
sido cunhadas por filósofos como Aristóteles e Platão, elas voltaram a
ser tratadas com tamanha força no final do século passado, quando a
sociedade tornou-se mais complexa, com relações globalizadas e per-
meadas, cada vez mais, pela tecnologia e pela integração econômica.
Hoje se discute a ética em todas as formas de organizações humanas,
desde uma simples cooperativa até grandes organismos que congre-
gam nações. As empresas, com suas teias de relacionamentos internos
e externos, se incluem nesse rol em que a ética se tornou uma pauta
prioritária. Até meados do século passado, toda a discussão em relação
à atividade empresarial girava em torno da eficiência operacional e da
efetividade para se alcançar resultados financeiros. A postura ética era
meramente uma decorrência de valores dos indivíduos de uma orga-
nização, na sua cúpula ou na sua base.
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Considerando que Ética e Pessoas andam em parelha, hoje es-


tes temas passam a ocupar o lugar de um objetivo essencial das corpo-
rações. Isto ficou muito mais evidente com a evolução do conceito de
sustentabilidade – imperativo da era pós-industrial –, quando o mun-
do tomou consciência de que estava entrando no Tempo dos Limites,
caracterizado pelo crescimento exponencial da população mundial e
pela finitude dos recursos naturais. A viabilidade de cada atividade
humana precisava ser olhada considerando a herança que deixará para
as futuras gerações.
Como consequência do processo de globalização, as organiza-
ções e os países passaram a ser submetidas a uma forte competição
para garantir a sua sobrevivência na arena econômica internacional.
Sem dúvida, este novo cenário desencadeou uma crise cultural nas
organizações públicas e privadas, que passaram, de forma silencio-
sa a adotar práticas ilícitas, tanto nas suas relações externas quanto
internas, para melhorar o seu desempenho. Nas últimas décadas do
século passado, ganhou relevância a descoberta de fraudes e prá-
ticas de corrupção e trabalho em condições precárias em grandes
companhias. No âmbito dos governos, sucessivos casos de desvio
de conduta, envolvendo autoridades, parlamentares e órgãos públi-
cos, desde as administrações municipais até o alto escalão federal,
foram descobertos. A onda de escândalos, que abala a imagem e a
reputação das instituições privadas e públicas, causa justa indigna-
ção da sociedade.

Ética e direitos humanos no Modelo de Excelência da Gestão (MEG) 103


da Fundação Nacional da Qualidade (FNQ)
Diante deste cenário, que, além de emperrar o desenvolvimento,
abala a confiança internacional no País, a FNQ conduziu extenuante e
minucioso trabalho, por meio dos seus Núcleos Técnicos e Temáticos,
de revisão dos Critérios de Excelência. No período de três anos, ana-
lisou e processou conhecimentos e experiências das organizações dos
diversos setores, organizações e países, acervo das instituições norma-
tivas nacionais e internacionais e academia, e publicou em agosto de
2013 a 20ª edição dos Critérios de Excelência. Vale ressaltar que, em
seus 22 anos de existência, a FNQ publica a 20ª edição dos Critérios
de Excelência, demonstrando o seu compromisso com a Excelência da
Gestão no nosso Brasil.
Embora nas edições anteriores os requisitos de Ética e dos
Direitos das Pessoas já estivessem presentes no conjunto de Critérios
de Excelência da FNQ, a partir da 20ª edição eles tomaram uma abran-
gência mais significativa. Simbólica e estrategicamente não foi criado
capítulo específico sobre Ética e Direitos Humanos. O objetivo foi o de
reforçar a ideia de que estes temas devem permear a organização de
forma sistêmica e de maneira intrínseca.
De acordo com o Modelo de Excelência da Gestão (MEG) da
Fundação Nacional da Qualidade (FNQ), a abordagem sistêmica da
Ética e dos Direitos das Pessoas, deve ser capitaneada pela Liderança,
que ouvindo a Sociedade e os seus Clientes, estabelece Estratégias e
Planos a serem alcançados por Processos bem definidos, conduzidos
por Pessoas capacitadas, orientadas por um sistema de Informação e
Conhecimento transparente, para que gerem Resultados concretos e,
consequentemente, Valor para a Sociedade.
Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo

104 Jairo Martins


FERRAMENTAS ELETROBRAS ELETRONORTE:
“GAME” - CENÁRIOS DA ÉTICA

As empresas do Sistema Eletrobras definiram, em conjunto,


Código de Ética único, aprovado em 2010 que foi distribuído para to-
dos os colaboradores e também se encontra disponível para consul-
ta na intranet e na internet (http://www.eletronorte.gov.br/opencms/
opencms/publicacoes/).
O processo de elaboração contou com ampla participação dos tra-
balhadores e trabalhadoras. O Código de Ética contempla os princípios
que orientam as ações e os compromissos de conduta institucionais,
presentes nas interações das empresas do Sistema Eletrobras com cola-
boradores e colaboradoras, fornecedores e demais partes interessadas.
A Eletronorte desenvolveu o Game Cenários da Ética para for-
talecimento dos princípios éticos e regras de conduta vigentes na
Eletronorte. O game foi disponibilizado na Modalidade de Educação
A Distância; como um treinamento virtual; constituindo-se de um jogo
educativo e lúdico, composto por quatro níveis de desafios, que apre-
sentam situações que exigirão uma avaliação prática do entendimento
e aplicação do Código de Ética e Conduta da Eletronorte.
Com isso, objetivou-se estimular o interesse da força de traba-
lho para refletir e se posicionar a respeito das questões éticas e de con-
duta que podem impactar no desempenho pessoal, profissional e em-
presarial.
O programa utiliza recursos visuais que representam a fauna, a
flora e os personagens folclóricos dos habitantes das regiões amazô-
nicas, o que torna mais dinâmica suas atividades. Como a Eletronorte
atua mais diretamente na região amazônica, esses temas são familia-
res, constituindo uma verdadeira aventura pelos valores da empresa.

105
TEMPLATE PARA A DESCRIÇÃO DAS PRÁTICAS DE ÉTICA NAS
EMPRESAS DO COMITÊ

TEMA DESCRIÇÃO
1 Apresentação Empresa X Empresa do Sistema Eletrobras, a Eletronorte
é uma sociedade anônima de economia mista,
concessionária de serviço público de energia
elétrica, atuando basicamente nos negócios
de geração e de transmissão de energia elétri-
ca. Com presença marcante no norte do país,
atua no fornecimento de energia para com-
pradores que se localizam em todas as regiões
brasileiras, por meio do Sistema Interligado
Nacional - SIN. Para a execução de suas ati-
vidades, possui um quadro de 3.800 empre-
gados
2 Evolução A ética na A Comissão de Ética da Eletronorte foi criada
histórica empresa X em 2006 por meio de Resolução de Diretoria.
Em 2007, adaptou sua estrutura para atender
ao decreto 6.027/2007. Em 2008, foi aprovado
o Código de Ética e Conduta da Eletronorte,
cuja elaboração contou com ampla participa-
ção dos empregados.
A Comissão de Ética se reúne semanalmente,
por uma hora, objetivando consolidar os con-
ceitos relativos ao assunto, bem como atuar
preventivamente e, caso necessário, de forma
corretiva
3 Papel O papel da A Ética faz parte do planejamento estratégi-
prática da ética co da Empresa, uma vez que em seu credo,
na empresa X está descrito como um de seus valores: Ética
e transparência nas decisões, nos comporta- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
mentos e no trato dos negócios e dos relacio-
namentos externos e internos.
4 Modelo O modelo da A Eletronorte adotou o modelo previsto pela
prática da ética Comissão de Ética Pública, conforme estabe-
adotado na lecido no Decreto. 6029/2007, Art. 5º:
empresa X Cada Comissão de Ética de que trata o Decreto
1171, de 1994, será integrada por três mem-
bros titulares e três suplentes, escolhidos entre
servidores e empregados do seu quadro per-
manente, e designados pelo dirigente máximo
da respectiva entidade ou órgão, para manda-
tos não coincidentes de três anos.

106 Ferramentas Eletrobras Eletronorte: “Game” - Cenários da ÉTICA


Encontra-se em fase de análise, para apro-
vação da Diretoria, o Regimento Interno da
Comissão de Ética da Eletronorte. Tal docu-
mento explicitará o modelo da prática da éti-
ca adotado.
5 Ambiente O ambiente Conforme previsto no Decreto 6029/07, Art. 6º:
e os É dever do titular de entidade ou órgão da
patrocinadores Administração Pública Federal, direta e indireta:
para a prática I  -  assegurar as condições de trabalho para
da ética na que as Comissões de Ética cumpram suas fun-
empresa X ções, inclusive para que do exercício das atri-
buições de seus integrantes não lhes resulte
qualquer prejuízo ou dano;
II  -  ”conduzir em seu âmbito a avaliação da
gestão da ética conforme processo coordena-
do pela Comissão de Ética Pública.
A Direção da Eletronorte libera seus assesso-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

res nomeados para comporem a comissão de


ética em todas as situações solicitadas.
6 Processos Processos Não existe um modelo estruturado da prática
base para a da ética na Empresa. Estamos em negociação
prática da ética com a área de educação empresarial para que
adotados na todos os cursos realizados nas dependências
empresa X da Eletronorte sejam precedidos de uma pe-
quena palestra sobre o tema, de modo a tra-
zer a questão para o âmbito interno, inclusive
quanto a sua abrangência, pertinência e atua-
lidade. Para a apuração das denúncias ou das
possíveis distorções éticas, seguimos os pas-
sos previstos no fluxograma elaborado pela
Comissão de Ética Pública, no que diz respei-
to ao rito processual.
7 Práticas Práticas de A área de aquisição e compras elaborou um
ética adotadas código de conduta para a aquisição de bens e
na empresa X serviços, tendo como base o Código de Ética e
Conduta da Eletronorte. O referido código de
compras foi encaminhado para a Comissão de
Ética que o analisou, sugeriu alterações e deu
o “de acordo” para que fosse encaminhado à
aprovação da Diretoria Executiva.
A Comissão optou por se reunir semanalmen-
te, o que tem facilitado a comunicação e o de-
senvolvimento de seus membros. Não só os 3
membros efetivos da comissão participam das
reuniões, mas também os 3 suplentes.

Ferramentas Eletrobras Eletronorte: “Game” - Cenários da ÉTICA 107


8 Produtos Produtos e • Código de Ética e Conduta da Eletronorte,
materiais elaborado com a participação dos colabora-
oriundos dores e consolidado pela Comissão de Ética.
das práticas • Código de Conduta para a aquisição de
de ética na bens e serviços.
empresa X • Game Cenários da Ética (curso tuto-
rial à distância), elaborado com base no
Código de Ética e Conduta e disponibili-
zado a todos os colaboradores no site da
Universidade Corporativa.
• Palestra sobre Assédio Moral e Sexual a to-
dos os supervisores de estágio da Empresa.
9 Métricas Métricas e Número de conformidades com o questionário
gestão de da Avaliação da Gestão da Ética Pública, ins-
informações trumento de apoio e acompanhamento da im-
plantação da gestão da ética nas entidades e ór-
gãos do Poder Executivo Federal, encaminha-
do anualmente pela Comissão de Ética Pública.
Com relação às denúncias, podem ser encami-
nhadas pelo sistema da Ouvidoria, ou direta-
mente à Comissão. Ainda não está estrutura-
do um sistema de comunicação para que os
colaboradores tenham acesso aos encaminha-
mentos dados.
10 Sucesso Fatores críticos Comprometimento da alta direção; compro-
para o sucesso metimento dos membros da Comissão, conse-
das práticas quências aos atos praticados, estímulo à práti-
de ética na ca de ética, educação continuada.
empresa X
11 Benefícios Principais Pessoas discutindo e mais preocupadas com
benefícios o tema.
gerados pela Áreas mais vigilantes a tentativas de subor-
prática da ética no, preocupadas em resguardar os colabora- Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
na empresa X dores.
Diretoria preocupada com as consequências
de suas decisões
12 Desafios Maiores Disponibilidade de tempo dos membros da
desafios Comissão – reuniões semanais de apenas 1
encontrados hora.
para a adoção Legitimidade dos membros da Comissão pe-
das práticas rante a alta administração – escolha de mem-
da ética na bros diretamente vinculados aos diretores.
empresa X

108 Ferramentas Eletrobras Eletronorte: “Game” - Cenários da ÉTICA


Desinteresse pelo tema pelos colaboradores –
lançamento do código em solenidade de ani-
versário da Empresa, elaboração de game in-
teressante e motivador – em aprimoramento
para que seja feita uma maratona entre os co-
laboradores, com premiação aos melhores co-
locados.
Empresa com unidades de operação em mui-
tos locais distantes da sede – em fase de dis-
cussão a ideia de se eleger representantes lo-
cais.
13 Disseminação Como se dá a Ainda em fase de elaboração.
disseminação Atualmente só por intermédio de palestras re-
das práticas alizadas na Empresa.
da ética na
empresa X
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Ferramentas Eletrobras Eletronorte: “Game” - Cenários da ÉTICA 109


FERRAMENTAS BANCO DO BRASIL

Mediação
Novo Método de Tratamento das Denúncias de
Ouvidoria Interna

Banco do Brasil S/A


Diretoria Gestão de Pessoas - DIPES
Setembro – 2014

Aldemir Bendine
Presidente

Robson Rocha
Vice-Presidente Gestão de Pessoas e Desenvolvimento Sustentável

Carlos Alberto Araújo Netto


Diretor Gestão de Pessoas

Gilmar Ferreira
Gerente Executivo de Relacionamento com Funcionários

Amauri Machado
Ouvidor Interno

111
Sumário

Introdução................................................................................................. 113

1. Mediação na Ouvidoria Interna do Banco do Brasil..................... 114


1.1 Cenário............................................................................................. 114
1.2 Missão do Banco do Brasil............................................................. 115
1.3 Visão de Futuro............................................................................... 115
1.4 Ouvidorias BB................................................................................. 115
1.4.1 Ouvidoria Externa................................................................. 115
1.4.2 Ouvidoria Interna.................................................................. 116
1.5 Divulgação da Ouvidoria Interna................................................ 117
1.6 Contatos com a Ouvidoria Interna............................................... 118
1.7 Desempenho da Função e Vinculação Hierárquica da
Ouvidoria Interna........................................................................... 118
1.8 Geração de Valores da Ouvidoria Interna................................... 119

2. O desenvolvimento da Mediação..................................................... 120


2.1 Problema.......................................................................................... 120
2.2 Desafio.............................................................................................. 121
2.3 Solução.............................................................................................. 121
2.4 Metodologia..................................................................................... 122
2.5 Resultados........................................................................................ 124
7.1 Perguntas objetivas da Pesquisa de Satisfação e seus Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
resultados......................................................................................... 124

Conclusão.................................................................................................. 125

112 Ferramentas Banco do Brasil


Introdução

A Ouvidoria Interna do Banco do Brasil é o canal de comuni-


cação direta de cerca de 160.000 colaboradores com a empresa (fun-
cionários da ativa – no país e no exterior – estagiários, aprendizes e
trabalhadores de empresas contratadas) por meio do qual o Banco do
Brasil busca solucionar as demandas através do diálogo e da media-
ção, humanizar as relações, valorizar a ética no trabalho e contribuir
para o aprimoramento das políticas, processos, programas e práticas
de Gestão de Pessoas e Responsabilidade Socioambiental.
Acolhe reclamações, elogios, sugestões e denúncias. Considera-
se denúncia acusação contra ato ou pessoa que, deliberadamente ou
não, descumpre ou não observa as normas regulamentares que deve-
ria seguir, causando prejuízo/dano aos funcionários, ao clima organi-
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

zacional da dependência e/ou ao patrimônio do Banco.


Em 2014, foi lançado um novo método de tratamento das de-
núncias, a Mediação, que consiste em um encontro entre as partes
envolvidas, fundamentado em Práticas Restaurativas, e conduzido
por um facilitador que busca restaurar a relação. Tais Práticas têm
se destacado na resolução de conflitos em diversos países. No Brasil
vem sendo empregado com sucesso na Justiça (Justiça para o século
XXI) e agora, de forma inédita em uma empresa brasileira, no Banco
do Brasil.
A Mediação tem o objetivo de atender às expectativas dos fun-
cionários, de contribuir para eficiência operacional, prevenir, mitigar
riscos e solucionar conflitos, além de democratizar as relações. Com o
novo método, os envolvidos têm a oportunidade de relatar a sua histó-
ria e ouvir o ponto de vista do outro. Cada um pode ouvir como o ou-
tro percebe o problema em questão e, como uma ação às vezes inadver-
tida, pode ofender o colega. O mediador orienta os envolvidos a evitar
acusações e pede que os mesmos construam frases de acordo com os
preceitos da comunicação não violenta.
Não há apuração prévia dos fatos, nem julgamento. Ambos são
estimulados a assumirem sua parcela de responsabilidade pelo ocor-
rido e pela solução do impasse. Neste contexto, o papel do mediador
é fundamental. Ele conduz o diálogo por meio de perguntas. Sua atu-
ação proporciona a oportunidade de reestabelecer o relacionamento
rompido. Assim, determinadas palavras que as partes não aceitam ou-

Ferramentas Banco do Brasil 113


vir do oponente são bem recebidas quando ditas por uma pessoa que
transmite imparcialidade, benevolência e senso de justiça.
Na Mediação não há vingança, represália, desforra. Não se im-
puta pena ou castigo a ninguém. Nos conflitos relacionais, a Mediação
vai auxiliar o demandado e demandante a reconhecer o erro, pedir
desculpas autênticas e se comprometer, com sinceridade, que não se
repetirão as ações que geraram o conflito, além de construir um plano
de ação que norteará esta relação dali em diante.
Todo esforço dedicado na Mediação é dirigido para que as par-
tes tenham um futuro melhor. O foco, portanto, não é mais naquilo que
magoou. Afinal, não é bom para ninguém que essas situações já vivi-
das sejam retomadas. O foco da Mediação é construir conjuntamente o
acordo entre as partes, o que possibilita, a partir daquele momento, re-
construir uma relação pautada no respeito e na tolerância.
Para o sucesso da reunião de Mediação, demandante e deman-
dado precisam se sentir partícipes, e perceberem que suas visões e sen-
timentos foram valorizados e reconhecidos, e somados às visões e sen-
timentos do outro, identificar pontos em comum em direção à constru-
ção da solução.
Em caso de acordo, os envolvidos assumem o compromisso ex-
plícito de executar o plano de ação, conscientes de que ambos são res-
ponsáveis para restaurar as relações rompidas, para humanização de
seu ambiente de trabalho e para a construção de um novo tempo em
sua unidade de trabalho. A Pesquisa de Satisfação com demandante,
demandado e mediador revelou que a condução dada à demanda de
Ouvidoria Interna por meio da Mediação superou a expectativa para
resolução do conflito. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo

1. Mediação na Ouvidoria Interna do Banco do Brasil

1.1 Cenário
O Banco do Brasil é uma companhia aberta constituída sob for-
ma de sociedade de economia mista, regida pelo direito privado. Por
pertencer ao segmento do Novo Mercado da BM&F Bovespa, obser-
va também as melhores práticas de Governança Corporativa. Tem por
objeto a prestação de serviços bancários, de intermediação e supri-
mento financeiro sob suas múltiplas formas, inclusive nas operações
de câmbio e nas atividades complementares, destacando-se seguros,

114 Ferramentas Banco do Brasil


previdência privada, capitalização, administração de cartões de crédi-
to/débito, consórcios, fundos de investimentos e carteiras administra-
das, entre outras atividades facultadas às instituições integrantes do
Sistema Financeiro Nacional. Como instrumento de execução da polí-
tica creditícia e financeira do Governo Federal, compete ao Banco exer-
cer as funções atribuídas em Lei, especificamente as previstas no artigo
19 da Lei nº 4.595/1964.
Foi o primeiro banco a operar no País e, hoje, é a maior instituição
financeira do Brasil. Em seus mais de 205 anos de existência, acumu-
lou experiências e pioneirismos, participando vivamente da história e
da cultura brasileira. Sua marca é uma das mais conhecidas e valiosas
do País, acumulando ao longo de sua história atributos de confiança,
segurança, modernidade e credibilidade. Com sólida função social e
com competência para lidar com os negócios financeiros, o Banco do
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Brasil demonstrou que é possível ser uma empresa lucrativa sem per-
der o núcleo de valores - o que sempre o diferenciou da concorrência.

1.2 Missão do Banco do Brasil


“Ser um banco competitivo e rentável, promover o desenvolvi-
mento sustentável do Brasil e cumprir sua função pública com efici-
ência”.

1.3 Visão de Futuro


Sermos o primeiro banco dos brasileiros, das empresas e do se-
tor público, referência no exterior, o melhor banco para trabalhar, reco-
nhecido pelo desempenho, relacionamentos duradouros e responsabi-
lidade socioambiental.

1.4 Ouvidorias BB
O Banco do Brasil tem em sua estrutura duas ouvidorias: Externa e
Interna.

1.4.1 Ouvidoria Externa


A Ouvidoria Externa é uma Unidade e está subordinada à
Diretoria de Controles Internos - Dicoi e vinculada à Vice Presidência
de Controles Internos e Gestão de Riscos - VICRI. A Ouvidoria Externa
tem por finalidade receber, registrar, analisar, instruir e dar tratamento
formal, imparcial e adequado às demandas:

Ferramentas Banco do Brasil 115


1. dos clientes e usuários de produtos e serviços que desejam re-
visão da solução dada pelos canais habituais de atendimento;
2. intermediadas pelos Órgãos de Defesa do Consumidor, Banco
Central do Brasil (Bacen), Comissão de Valores Mobiliários e outros.
A Ouvidoria Externa atua em nome de todas as dependências do
Banco do Brasil, unidades do Banco Postal e demais correspondentes
no país, empresas controladas, coligadas, administradas e as que fir-
maram convênio para componente único de ouvidoria. Há ampla di-
vulgação no site bb.com.br, impressão do telefone de contato em calen-
dários, agendas e cartazes.

1.4.2 Ouvidoria Interna


Foi criada, em 2003, atuando no esclarecimento de dúvidas de
funcionários sobre programas e processos de Gestão de Pessoas. A par-
tir de 16/02/2005, por uma decisão do Conselho Diretor da empresa,
passou a acolher elogios, reclamações e denúncias relacionados aos as-
suntos de Gestão de Pessoas e RSA.
De 2010 até os dias atuais, instituiu-se, entre outras melhorias,
metodologia sistematizada para condução das denúncias e reclama-
ções, permitindo maior segurança e assertividade nos processos; defi-
nição de prazos para tratamento e acompanhamento da resolutivida-
de dos casos; aperfeiçoamentos na forma de acolher, tratar e analisar
as demandas, e as recomendações às áreas Gestoras, aprovadas pelo
Conselho Diretor, para melhoria dos principais processos demanda-
dos pelos funcionários.
A Ouvidoria Interna é responsável pela gestão do processo, pelo
cadastramento e conformidade de todas as demandas e pela condução Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
dos processos que envolvam determinados níveis gerenciais. Em 2012,
os processos que não envolvam este público foram descentralizados
e passaram a ser conduzidos pelas Gerências Regionais de Gestão de
Pessoas em todos os Estados brasileiros.
No primeiro semestre de 2014, a Ouvidoria Interna acolheu 1175
demandas, sendo 382 denúncias comportamentais em desfavor de co-
laboradores, 753 reclamações de processos de gestão de pessoas, 40
elogios e sugestões. A evolução dos números de demandas está repre-
sentada no gráfico abaixo.

116 Ferramentas Banco do Brasil


Em 2014, o Banco do Brasil recebeu o Prêmio das Empresas
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

Mais Éticas do Mundo, segundo o Ethisphere Institute e o Prêmio de


Ouvidorias Brasil 2014, de acordo com a Associação Brasileira das
Relações Empresa-Cliente, Associação Brasileira de Ouvidores e a
Revista Consumidor Moderno.
A Ouvidoria Interna é parte fundamental na Gestão da Ética na
organização. Ela acolhe demandas que versam, inclusive, sobre desvios
éticos e comportamento reprovável. Tais demandas passam por apura-
ção consistente e podem ter desdobramentos como Ação Disciplinar e
envio ao Comitê de Ética. Para os casos de desentendimento entre fun-
cionários, a condução é por Estudo de Caso de Ouvidoria com a apu-
ração dos fatos por meio de contatos telefônicos com os funcionários
lotados na unidade de trabalho do conflito e definição da procedência
e improcedência ou por Mediação, em busca de um acordo.
A Mediação concretizou as alianças estratégicas com a Rede de
Gerências Regionais de Pessoas promovendo a formação de equipes
de trabalho para garantir melhorias constantes no processo de relacio-
namento da instituição com seus colaboradores. 146 funcionários fo-
ram devidamente capacitados por um programa de treinamento que
incluiu duas etapas: auto instrucional e presencial com simulação de
diversos casos de Mediação.

1.5 Divulgação da Ouvidoria Interna
A divulgação é planejada por meio de um plano de comunica-
ção anual aprovada pela Diretoria de Marketing do Banco do Brasil.

Ferramentas Banco do Brasil 117


No site www.bb.com.br, há esclarecimentos sobre a forma de atuação
das duas Ouvidorias. Foi criado um portal exclusivo para Ouvidoria
Interna com orientações, seus objetivos, premissas e possibilidade de
registro de demandas, inclusive de forma anônima, na intranet com
acesso aos colaboradores lotado no país e no exterior.
Em todos os treinamentos presenciais há a exibição de vídeos
institucionais da Ouvidoria Interna. Há a publicação de matérias na
agência de notícias interna e na revista eletrônica interna (BB.com.
você), além do envio de e-mail marketing. A Ouvidoria disponibiliza
cartazes publicitários para que sejam afixados em todas as unidades de
trabalhos, inclusive no exterior.
Cabe destacar a Ouvidoria Itinerante, evento em que o Ouvidor
Interno e seus assessores visitam os Estados da Federação disseminan-
do o papel da Ouvidoria, seus valores e sua forma de atuação. Em
2014, seis cidades já foram visitadas (Palmas, Belo Horizonte, Teresina,
Fortaleza, Maceió e Rio de Janeiro) e há previsão de visitas a treze ca-
pitais no segundo semestre. A Mediação foi o grande destaque de to-
dos os encontros.

1.6 Contatos com a Ouvidoria Interna


Dispomos de multicanais exclusivos sem compartilhamento com
o SAC. Os colaboradores podem entrar em contato com a Ouvidoria
Interna de forma anônima ou identificada, preservado o sigilo e a con-
fidencialidade na condução de sua demanda de diversas formas, sen-
do elas: intranet, e-mail, telefone, sistema corporativo (Sisbb), carta e
presencial.
Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
1.7 Desempenho da Função e Vinculação Hierárquica da Ouvidoria
Interna
Está vinculada à Diretoria Gestão de Pessoas e à Vice Presidência
de Gestão de Pessoas e Desenvolvimento Sustentável. O Ouvidor
Interno desempenha suas funções de forma exclusiva à Ouvidoria.

118 Ferramentas Banco do Brasil


Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

1.8 Geração de Valores da2 Ouvidoria Interna


A Ouvidoria Interna do Banco do Brasil preza pela ética e trans-
parência, valorização das pessoas, respeito à diversidade e a equidade
de gêneros, do trabalho, da inovação, compromisso com o desenvolvi-
mento sustentável das comunidades e do País e responsabilidade so-
cioambiental. Preza, também, pelo respeito à dignidade humana, exce-
lência e especialização no relacionamento com os colaboradores, com-
promisso com os acionistas e a sociedade, incentivo às práticas de ci-
dadania, diálogo e mediação.
Os valores da Ouvidoria BB e as normas de conduta fortalecem
o código de ética do Banco do Brasil e estão publicados para todos os
funcionários nos principais meios de comunicação interna do Banco.
Esses valores são divulgados pelo próprio Código de Ética da institui-
ção e por meio das Equipes de Comunicação e Normas, via instruções
normativas, intranet, comunicado a administradores e agência de no-
tícias. Essas ações contribuem para reforçar o processo de integração
da equipe de colaboradores da Ouvidoria BB e é benchmarking para
outras ouvidorias que a visitam (Petrobrás, ANAC, TJDF, STJ, INPI).
Com relação à responsabilidade social, a Ouvidoria Interna do
Banco do Brasil tem o papel de assegurar o atendimento aos usuários,
por meio de canais ágeis e eficazes, intermediando os conflitos entre
os colaboradores com isenção, independência, imparcialidade e ética,
propondo melhorias nos processos, produtos e serviços de Gestão de
Pessoas e Responsabilidade Socioambiental.

Ferramentas Banco do Brasil 119


A Ouvidoria Interna possui dois indicadores no planejamento
estratégico da Diretoria Gestão de Pessoas que são acompanhados pe-
riodicamente pela administração da empresa e que estão relacionados
ao cumprimento do prazo de encerramento dos processos. Estão dire-
tamente ligados à satisfação dos funcionários, além de fazer parte da
estratégia corporativa do Banco do Brasil. Possui, também, indicadores
que impactam os resultados de toda a empresa.
A Diretoria Gestão de Pessoas estabeleceu em 2013, também, cri-
térios para impedimento de participantes demandados na Ouvidoria
Interna nos processos seletivos, reconhecimentos e premiações quan-
do o Estudo de Caso de Ouvidoria for procedente. Nos casos de reinci-
dência, o processo também é encaminhado ao Comitê de Ética.
A Mediação veio para contribuir com a construção de uma em-
presa ainda mais ética e responsável com a humanização das relações.
As ações advindas da sua implantação pela Ouvidoria Interna contri-
buíram para melhorar o processo de tomada de decisões, buscando
proteger todas as partes envolvidas e, ao mesmo tempo, estimular a
responsabilização dos envolvidos. A atuação da Ouvidoria Interna foi
alavancada ao estabelecer uma relação de confiança e perenidade com
os colaboradores do Banco do Brasil.
A implantação da Mediação possibilitou reforçar valores da or-
ganização além de contribuir com o processo de integração da equipe
de colaboradores. Além disto, contemplou melhorias nos processos de
trabalho e de qualidade dos serviços, minimizando seu custo operacio-
nal e risco trabalhista. A condução de um processo por meio do Estudo
de Caso de Ouvidoria leva, em média, 50h de trabalho para sua conclu-
são. Na Mediação, a estimativa é de 17 horas. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo

2. O desenvolvimento da Mediação

2.1 Problema
A Ouvidoria Interna conduz tradicionalmente as denúncias rece-
bidas por meio do Estudo de caso de Ouvidoria apurando fatos e de-
finindo procedência e improcedência das demandas. O procedimento
envolve diversas testemunhas e não pode oferece informações detalha-
das ao demandante em virtude do compromisso de sigilo e confiden-
cialidade assumido com os entrevistados.

120 Ferramentas Banco do Brasil


A análise das demandas recebidas mostrou que muitas delas re-
latavam situações pontuais que podem ser resolvidas na própria de-
pendência. Diversas queixas deixam claro que o demandante quer que
o demandado peça desculpas ou mude o seu comportamento, mas não
se sente confortável em dizer isso a ele.
Nesses casos, não se colocava a possibilidade de um encontro. E,
especialmente, parecia que o demandante não refletia sobre a sua par-
cela de responsabilidade no conflito, e não considerava a sua impor-
tância na solução do conflito.
A pesquisa de satisfação de 2013, realizada pela Ouvidoria
Interna após o encerramento dos processos, revelou, também, que
mais da metade dos demandantes (51,4%) estavam insatisfeitos com a
resolução de seus conflitos e desejavam que Ouvidoria Interna tivesse
uma atuação mais célere e transparente. 74,7% esperavam como solu-
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ção a revisão da conduta do demandado. Os números demonstraram


que o foco deveria ser nas relações, não no processo em si.

2.2 Desafio
O grande desafio era tratar as denúncias com transparência, im-
parcialidade, em busca de reparar danos e, ao mesmo tempo, não fe-
rir o compromisso de sigilo e confidencialidade e sem nos transformar
uma instância punitiva. Os demandantes transferiam para Ouvidoria
Interna seus conflitos e esperavam a punição do demandado pelo seu
sofrimento. Precisávamos, então, que o demandante fosse mais atuan-
te, comprometido e que ele dissesse diretamente ao demandado e, de
forma não violenta, como o seu dano poderia ser reparado.
Outro grande desafio era a celeridade. O Estudo de Caso de
Ouvidoria leva, em média, trinta dias úteis para conclusão. Havia a ne-
cessidade de uma atuação o mais breve possível e sem o envolvimento
de terceiros. O estímulo era evitar um desentendimento ainda mais gra-
ve, na dependência, em virtude de expectativa da resolução do conflito.

2.3 Solução
A Ouvidoria Interna desenvolveu, dessa forma, proposta de nova
metodologia para tratamento das denúncias, com objetivo de atender
às expectativas dos funcionários, de contribuir para eficiência opera-
cional, prevenir, mitigar riscos e solucionar conflitos, além de demo-
cratizar as relações de trabalho: a Mediação.

Ferramentas Banco do Brasil 121


Corresponde a um procedimento no qual as partes participam jun-
tas e ativamente na resolução do conflito, com ajuda de um mediador,
terceira pessoa independente e imparcial, cuja função é propor o diálogo
visando à reparação de danos e restauração das relações interpessoais.
As partes têm a oportunidade de tomar conhecimento de que seu
comportamento ou forma de atuação na dependência têm sido perce-
bidos como inadequados ou estão trazendo desconforto ou sofrimento
para algum colega. Trata-se de uma oportunidade para resgatar a comu-
nicação não-violenta e para compreender pontos de vistas diferentes.
A Mediação é tratada em até 20 dias úteis, ou seja, 10 dias úteis
a menos que o processo tradicional. Há, também, a orientação às
Gerências Regionais de Gestão de Pessoas que o encontro restaurativo
ocorra com a maior brevidade para evitar qualquer desentendimento
em virtude da expectativa da reunião.
Outros ganhos são em relação à eficiência operacional já que as
horas de trabalho necessárias para a conclusão do processo foram re-
duzidas. O tempo estimado para o tratamento de forma tradicional é
de 50 horas. A condução das denúncias por meio da Mediação leva, em
média, 17 horas de trabalho.
Como contribuição para mitigação de riscos trabalhistas, o acor-
do firmado entre as partes fica registrado em sistema informatizado e
sua efetividade é acompanhada após 30 dias. Não há a interferência
de terceiros nas propostas. Como as partes constroem a solução para
o conflito, elas se sentem satisfeitas com o acordo e estão motivadas a
cumprir o que foi acordado.
As partes participam ativamente do processo em busca da repa-
ração de danos, tornando o processo mais transparente e imparcial. Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
No início da reunião, o mediador, demandante e demandado assinam
o termo de sigilo e confidencialidade, no qual se comprometem a não
compartilhar os assuntos tratados durante o encontro.

2.4 Metodologia
O método é composto pelas etapas de Adesão, Encontro Restau-
rativo e Acompanhamento; todos tratados sob condições de sigilo e
confidencialidade.
Construção da Adesão: conversa separadamente com o deman-
dante e demandado para explicar como funciona a Mediação, apresentar
o Mediador, explicar resumidamente a metodologia, esclarecer os prin-

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cípios e regras da Mediação, colher a percepção dos envolvidos sobre o
acontecido, verificar disponibilidade e interesse em agendar reunião;
Encontro Restaurativo: Reunião presencial na qual o mediador
utiliza as Perguntas Restaurativas* para que as partes falem sobre o
ocorrido e se construam alternativas para o futuro, que serão concreti-
zadas no plano de ação.
Acompanhamento: o mediador centra em contato com deman-
dante e demandado, em 30 dias após o encontro, para avaliar a efetivi-
dade do acordo. O não cumprimento do plano de ação poderá ensejar
apuração dos fatos pela Ouvidoria Interna.
*As Perguntas Restaurativas são utilizadas internacionalmen-
te em diversos contextos. Foram adaptadas pela Ouvidoria Interna e
são reconhecidas como fundamentais para o sucesso das Mediações.
O mediador faz obrigatoriamente as seis Perguntas Restaurativas, que
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devem ser feitas nesta sequência, iniciando-se sempre pelo demandan-


te. Depois de respondida pelo demandante, a mesma pergunta é feita
ao demandado, passando-se à próxima pergunta. É importante equili-
brar o tempo de fala das partes. Sendo elas:
1. O que aconteceu do seu ponto de vista?
2. O que você pensa e sente sobre o ocorrido?
3. Como você acha que pode ter contribuído para que a situação
ficasse dessa forma? (O que você fez ou deixou de fazer)
4. Além de vocês, quem mais você acha que foi afetado ou pre-
judicado com esse conflito?
5. O que você acha que precisa acontecer para as coisas voltarem
a ficar bem?
6. Como você pode contribuir para que as coisas voltem a ficar bem?

Após cada resposta, o Mediador deverá parafrasear os pontos


principais. As respostas devem ser materializadas em ações. Na pará-
frase, o Mediador escuta o que foi falado, identifica pontos comuns e
convergentes, seleciona os pontos principais (palavras e termos), resu-
me o que foi dito de forma não violenta, confirmando com o respon-
dente se foi essa sua intenção.
O foco é o futuro. Numa relação desgastada as partes têm muita
dificuldade para ouvir o que o outro fala. Quando o mediador para-
fraseia, oferece a oportunidade ao outro de ouvir os relatos através de
alguém imparcial, que está fora daquela relação. A paráfrase também

Ferramentas Banco do Brasil 123


torna mais objetivo e suaviza o que foi dito, uma vez que a fala deixa
de estar carregada de emoções. Permite que as partes se vejam fora do
problema, e se percebam como corresponsáveis pela situação em que
se encontram.
Caso as respostas às Perguntas Restaurativas sejam subjetivas,
genéricas ou muito adjetivadas o Mediador deverá reiterá-la, pedindo
que o respondente seja mais específico, cite episódios, descreva fatos
ou situações vivenciados.

2.5 Resultados
De novembro de 2013 até julho de 2014, foram realizados 30
encontros restaurativos de Mediação. Em 27 deles houve acordo.
A Ouvidoria Interna do Banco do Brasil realizou pesquisa de satis-
fação com todos os demandantes, demandados e mediadores que
participaram dos encontros de Mediação.
A pesquisa foi composta por quatro perguntas objetivas e espa-
ço livre para registro dos pensamentos e sentimentos sobre o processo.
Os números e os depoimentos revelaram que a condução dada à de-
manda de Ouvidoria Interna por meio da Mediação superou a expec-
tativa para resolução do conflito. Há, também, um vídeo com depoi-
mentos dos mediadores que participaram dos encontros como evidên-
cia. Segue os principais depoimentos de demandantes e demandados
à Ouvidoria Interna:
“Tive a oportunidade de refazer um diálogo mal feito.” (Funcio-
nário demandado, lotado em São Luís MA, 43 anos).
“A melhor mudança aconteceu comigo.” (Funcionário deman-
dante, lotado em Belo Horizonte MG, 45 anos). Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo
“Senti-me prestigiada, respeitada. O Banco ajudou a intermediar e
reduzir o estresse por causa deste evento. Gostaria de agradecer e parabe-
nizar por tudo o que foi feito, o modo que foi conduzido, as palavras que
foram usadas.” (Funcionária demandante, lotada em Belém PA, 37 anos).
“Torço para que este modelo se torne uma referência no BB e em
outras Instituições”. (Funcionária demandada, lotada em Recife, 41 anos).

7.1 Perguntas objetivas da Pesquisa de Satisfação e seus resultados


1. A condução dada à demanda de Ouvidoria Interna atendeu
sua expectativa para resolução do conflito? Resposta dos demandantes
e demandados:

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• 83,32% dos funcionários que participaram do encontro de
Mediação disseram sim.
• 41% dos funcionários que tiveram suas demandas tratadas
por Estudo de Caso Ouvidoria (processo tradicional – dados de 2013)
disseram sim.

2. Como você avalia a qualidade do atendimento? (Cordialidade,


interesse e respeito) Resposta dos demandantes e demandados:
• 91,66% dos funcionários que participaram do encontro de
Mediação responderam ótimo ou bom.
• 69% dos funcionários que tiveram suas demandas tratadas
por Estudo de Caso Ouvidoria (processo tradicional – dados de 2013)
responderam ótimo ou bom.
 
Fórum nacional de gestão da ética nas empresas estatais: ética e direitos humanos no ambiente corporativo

3. Você se sentiu prejudicado por ter demandado a Ouvidoria


Interna? Resposta dos demandantes e demandados:
• 83,33% dos funcionários que participaram do encontro de
Mediação responderam não. 
Não fizemos esta pergunta nas pesquisas anteriores para os fun-
cionários que tiveram suas demandas tratadas por Estudo de Caso
Ouvidoria.

4. Você recomendaria a Ouvidoria Interna aos seus colegas de


trabalho? Resposta dos demandantes e demandados:
• 100% dos funcionários que participaram do encontro de
Mediação responderam sim.
• 63% dos funcionários que tiveram suas demandas tratadas
por Estudo de Caso Ouvidoria (processo tradicional – dados de 2013)
responderam sim.

Conclusão
A mediação, somada às outras formas de tratamento já exis-
tentes, vem reforçar o papel da Ouvidoria Interna como canal de co-
municação que constrói soluções por meio do diálogo. Os sentimen-
tos são valorizados e reconhecidos. Trata-se de um passo importan-
te para construção de uma empresa ainda melhor para se trabalhar.
O novo método foi testado e aprovado em diversos encontros por
todo o país.

Ferramentas Banco do Brasil 125


A Ouvidoria Interna quer ser reconhecida pelos funcionários do
Banco do Brasil como canal que soluciona conflitos por meio do diálo-
go, afinal, não é instância punitiva. Sua matéria prima é composta pela
ética e relação interpessoal. A Mediação é o instrumento mais adequa-
do e eficiente para a compreensão dos danos causados e proposições
de alternativas pelos envolvidos de como estes podem ser reparados.
A implantação da Mediação proporcionou mais eficiência, agi-
lidade, desburocratização e integração entre a Ouvidoria Interna e as
27 Gerências Regionais de Gestão de Pessoas. As reuniões são presen-
ciais. Em todos os Estados brasileiros existem pessoas devidamente ca-
pacitadas para atuar como Mediadores sob a coordenação e conformi-
dade da Ouvidoria Interna, em Brasília.
O Banco do Brasil orgulha-se de ser a primeira empresa brasilei-
ra a utilizar a Mediação por meio das práticas restaurativas como solu-
ção de conflitos. A Mediação é um método simples, prático, focado no
diálogo e de viabilidade de implementação a baixo custo, o que permi-
te a disseminação da experiência para outros órgãos e unidades. Vale
ressaltar a minimização de impactos negativos como não necessidade
de apuração dos fatos, não envolvimento de terceiros, reconstrução de
um relacionamento rompido, o aumento da satisfação dos funcioná-
rios e atuação direta e positiva no clima organizacional.

Deusilene Silva de Leão e Cristiano Santos Araujo

Fim

Banco do Brasil S/A


Diretoria Gestão de Pessoas – DIPES
Setembro – 2014

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