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MARIQUINHAS EM QUADROS: É POSSÍVEL ESTUDAR VIOLÊNCIAS DE


GÊNERO A PARTIR DE HQs?

Nila Michele Bastos Santos


Instituto Federal do Maranhão Campus Pedreiras
nila.santos@ifma.edu.br

INTRODUÇÃO

O presente estudo investiga um dos crimes mais notórios da capital


maranhense do século XIX: o Crime do Desembargador Pontes Visgueiro. O sexagenário
desembargador premeditadamente esfaqueou, esquartejou e enterrou no quintal sua
amante Maria da Conceição, vulgo Mariquinhas, de 15 anos.
Comumente, o crime é tratado mais pelo ineditismo do processo, cujo
desembargador é processado por homicídio de uma mulher de “status inferior”, que pela
violência sofrida pela vítima. Contudo, o que propormos agora é reconstruir uma história
cujo centro de atenção estará na “cultura do oprimido” revalorizando não apenas
Mariquinhas — difamada durante o processo e nas diversas vezes que a história é contada
— mas também nas diversas mulheres, antes ocultadas, que foram as primeiras a apurar
o sumiço da vítima, acusar o crime e insistir na investigação oficial.
Através da “microanálise”, cremos alcançar o panorama mais amplo do
período e assim, além de contestar a passividade e subserviência usualmente atribuídas
as mulheres do passado, demonstrar que violências de gênero, embora sem esse nome, já
eram praticadas. Assim, optamos por contar esta história à educação básica via uma grafic
novel, de modo que a partir dos dados marginais, pistas, indícios e sinais podemos trazer
graficamente, a luz do presente, experiências femininas marginalizadas.
O objetivo é problematizar a temática de gênero apresentando o uso de HQs
não apenas como um mero recurso didático, mas sim, como uma importante estratégia
metodológica de construção do saber histórico escolar.
Por fim, neste trabalho, o protagonismo está tanto nas Mariquinhas reais
daquela sociedade patriarcal, hierárquica e escravista, que outrora foram deixadas de lado
pela historiografia tradicional, quanto nas personagens fictícias das HQs, também
subjugadas, subestimadas e até subaproveitadas.
Deste modo, o debate serve tanto como ferramenta de encorajamento e
empoderamento para meninas, ou mulheres, que resistem contra as violências de gênero
herdeiras das práticas passadas, como também educar meninos e homens a combater o
machismo e patriarcalismo que sustentam essas violências. Afinal, se preconceitos são
historicamente construídos, eles também podem — e devem — ser historicamente
eliminados.

É POSSÍVEL ESTUDAR VIOLÊNCIAS DE GÊNERO A PARTIR DE HQs?

Apesar de ainda existirem alguns preconceitos, a utilização de quadrinhos na


educação não é tão desconhecida. Ao realizar uma busca rápida em plataformas digitais,
foram encontrados diversos trabalhos que tratam das formas de uso e benefícios, bem
como estudos de caso que mostram como utilizar determinada HQ para a ensino de uma
disciplina específica. No entanto, como em qualquer pesquisa, é necessário estar atento
às produções. A maioria das histórias em quadrinhos é exaltada como um recurso
didático, lúdico, de fácil compreensão, e faz parte da cultura de crianças e adolescentes
da educação básica.
Todavia, identificar ou usar as HQs apenas como elementos que estimulam a
leitura, ou ainda propagá-las como um recurso mais simples de ser usado, uma vez que é
mais “didático”, é um erro. Nenhum recurso é didático por si só, ele torna-se didático
dependendo das formas e maneiras como é usado. Dessa forma, negar a complexidade
das histórias, as intenções do autor e o momento histórico em que foram criadas é
renunciar à utilização plena do potencial desse material.
Assim, somente é possível trabalhar temas sensíveis como as questões de
gênero, racismo, preconceito, violência e injustiça social, por meio das HQs se tivermos
em conta esse pensamento. A Historicização do material, compreendendo as
permanências e rupturas de ideologias discriminatórias ou progressistas; a análise dos
personagens, incluindo a forma como são desenhados, o objetivo de suas representações
visuais e ideológicas, o seu papel no desenrolar da história, etc., são passos fundamentais
ao se utilizar um quadrinho como recurso didático.
Apesar de alguns personagens já estarem consagrados em outras mídias,
como os super-heróis e super-heroínas de origem norte-americana, exibidos em filmes e
animações, é relevante apresentar a origem e o momento em que surgiram. Além disso, é
possível compreender como se tornaram produtos da cultura pop, o que, na maioria das
vezes, se deve à sua trajetória nas HQs. Se bem exploradas, essas HQs podem transmitir
informações complexas de forma acessível e envolvente, oferecendo diferentes
perspectivas e narrativas, textuais e visuais, possibilitando uma análise mais completa e
diversificada da questão a ser discutida.
Uma abordagem prática e eficaz para o debate sobre gênero é analisar a forma
como as personagens femininas são retratadas nas histórias em comparação com as
personagens masculinas. Isso inclui desde a forma como as personagens são desenhadas,
as roupas que vestem, os papéis que ocupam na história, até os diálogos (ou a ausência
de diálogos) com outras personagens. A análise desses elementos permite identificar
estereótipos de gênero e outros padrões que reforçam a violência contra as mulheres.
Outra forma de estudar as questões de gênero através das HQs é examinar
suas histórias em sua totalidade. Diversos quadrinhos abordam violências de gênero de
forma explícita ou implícita, por meio de enredos que envolvem personagens que sofrem
violência ou são responsáveis por ela. Ao analisar essas histórias, é possível identificar
padrões e refletir sobre a forma como a violência de gênero é retratada nas mídias.
Além disso, as histórias em quadrinhos podem ser usadas para estudar a
evolução dos papéis de gênero ao longo do tempo. Ao comparar as HQs de diferentes
épocas, é possível notar as variações na forma como as personagens femininas e
masculinas são retratadas e como a violência de gênero é abordada. Esta análise pode
contribuir para a compreensão das transformações sociais e culturais que ocorreram ao
longo do tempo em relação à questão de gênero.
É incontestável que, como artefato cultural de uma época, essas histórias e
desenhos reproduzem, através de suas particularidades, as experiências e as mentalidades
do período em que foram criadas. Dessa forma, conflitos e negociações, relações sociais,
culturais e de poder de uma determinada sociedade e tempo podem ser lidos, interpretados
e discutidos através das páginas de uma HQ.
Ao direcionar nosso olhar analítico apenas ao feminino, é perceptível como
as mulheres sempre estiveram presentes nas Histórias em quadrinhos, contudo é preciso
problematizar como elas apareciam e quais eram seus espaços.
Nessas revistas de heróis, por exemplo, as personagens femininas, desde o
início do século XX, estavam constantemente representados de forma extremamente
estereotipada tanto em termos de seu comportamento quanto em aparência. O corpo
feminino foi abertamente sexualizado por meio de roupas muito justas, delineando as
curvas sinuosas de corpos magros, peles brancas, seios fartos e lábios carnudos.
Não se deve ignorar que, desde que as HQs surgiram, salvo exceções, foram
criadas por homens, produzindo para um público alvo impreterivelmente masculino.
Dessa forma, a visão de mulher, ou mesmo do feminino, que foi apresentada era apenas
um espectro distorcido, fruto de desejos masculinos daquele período. Segundo as autoras
Kelli Carvalho Melo e Maria Ivanilse Calderón Ribeiro,

A imagem idealizada da mulher, ou melhor, do seu corpo, normatizadas


nas HQs são, na verdade, representações de desejos e fetiches do
imaginário masculino. Nos quais os escritores, desenhistas, roteiristas,
na grande maioria do sexo masculino, procuram vender um modelo de
mulher, ou pelo menos o que acreditam ser um. A partir desta
modelagem da mulher nos quadrinhos, é percebida pelo seu corpo, sua
sensualidade e suas formas externas, passando, assim, a fazer parte do
desejo e sendo representada por 'atributos de seu corpo', não sendo
dessa maneira evidenciada as reais capacidades e qualidades da mulher
heroína, diferente dos personagens do sexo masculino que, geralmente,
são representados e percebidos por sua força, inteligência e poder
(MELO e RIBEIRO, 2015, p. 108).

É inegável que a partir da década de 1970 e 1990 histórias com cunho político
mais progressista começaram a aparecer. Debates sobre racismo, xenofobia, sexualidade
e mesmo novos espaços da mulher na sociedade passaram a permear as histórias dos
quadrinhos norte-americanos. Surgem super-heroínas mais diversas como Oráculo
(1989), a Tempestade (1975), Supergirl (1976), Miss Marvel (1977), apenas para citar
alguns personagens de grande representatividade, ainda hoje.
Contudo, ainda é possível ver nas produções deste período as permanências
do machismo, patriarcalismo e sexismo. O cenário editorial e de produção das HQs
continuam dominado por homens e a visão de público alvo ainda é essencialmente o
Masculino. Tal situação resulta na utilização de personagens femininas
hipersexualizadas, como estratégia de Marketing.
Corpos com curvas e formas voluptuosas, anatomicamente impossíveis de
existirem na realidade, se tornaram um padrão, de modo que um ideal de beleza foi
aparentemente criado apenas para satisfação e desejo masculino. Logo, não se trata de
uma representação da Mulher, mas sim, da Mulher que os homens querem ver
representadas e isso torna as personagens femininas nas HQs extremamente frágeis e
facilmente descartáveis.
Em 1999, a autora e quadrinista Gail Simone criou o site Women In
Refrigerators (tradução livre: “Mulheres na geladeira”), que lista apenas super-heroínas
ou “supergarotas” que, de alguma forma, foram inevitavelmente mortas, mutiladas ou
destituídas de seus poderes. Ela centra-se na “decadência” de mulheres notoriamente
poderosas, ela acaba demonstrando um padrão de gênero comparativo. Ou seja, quando
comparamos os homens e mulheres com superpoderes, apenas as mulheres sofrem esse
tratamento de diminuição.
Embora ficcionais ou fantasiosos, atitudes e comportamentos de super-heróis,
mais próximos da realidade dos leitores, podem ser normalizados e naturalizados. Logo,
apontar as formas de tratamento desiguais entre homens e mulheres, mostrar como
realidades ficcionais reproduzem condutas sociais dos momentos históricos em que são
lançadas, são passos importantes para a contestação de uma ordem discriminatória.
Há uma tradição inventada, uma espécie de fetiche introjetado, que
essencializa o gosto das mulheres pelos quadrinhos ao longo do que foi convencionado
pelos padrões de gênero. Ou seja, mulheres gostam apenas de “florezinhas” e
Coraçõezinhos”? Ao fazer isso, nega-se o envolvimento com o público feminino para os
principais quadrinhos de super-herói. Convencionou-se acreditar que HQs,
principalmente de super-heróis, é voltada apenas ao público masculinos, contudo, tal
premissa não se sustenta.
De fato, não temos pesquisas densas sobre o público feminino para os
principais quadrinhos de super-heróis, o que já sabemos, no entanto, é que boa parte do
público feminino de quadrinhos gira em torno dos quadrinhos independentes. Segundo
Suzanne Scott (2013) isso se dá em parte porque é onde a grande maioria das escritoras e
artistas de quadrinhos do sexo feminino está trabalhando, suas obras retratam mulheres
mais próximas do real.
Para além do debate acadêmico, é preciso fortalecer a revolução social das
minorias que já vem acontecendo. Ora, as HQs são produtos de mercados, e como tal
acompanham as tendências deste. Assim, exigir melhor representatividade e respeito às
mulheres, maior empoderamento dos personagens femininos — incluindo suas
diversidades étnicas e sexuais — apontar e debater as presenças do machismo e do
sexismo nas histórias e desenhos publicados, além de ampliar os espaços para escritoras
e desenhistas feministas são importantes passos para as mudanças
Por fim, é imprescindível dizer que tais passos não podem continuar a ser
“passos de tartarugas”, pois não se trata de “dar voz” às mulheres. Voz, sempre tivemos.
Talento e competência também, é preciso agora que as oportunidades não sejam negadas,
nem nossas pautas diminuídas e negligenciadas. É preciso ouvir o que temos a falar e
juntos — lado a lado — alcançar a equidade e o fim das violências de gênero. Tanto na
ficção, quanto na realidade
É acreditando nisso que optamos por desenvolver o produto didático no
formato de quadrinhos. “Mariquinhas”, assim como muitas outras obras femininas, nasce
sob a perspectiva da independência e, apesar de estar intimamente ligada a uma tese
acadêmica, como um requisito indispensável para o alcance do título, ela desafia-se a ser
mais. Almeja, por exemplo, despertar empatia e fortalecer identidades nos leitores.
Ao apresentar personagens femininas complexas e bem desenvolvidas,
mostramos as experiências e os desafios enfrentados pelas mulheres do século XIX,
diante de um “crime horroroso”, como noticiaram os jornais da época. Oferecendo
modelos positivos e inspiradores de protagonismo feminino, aspiramos contribuir no
fortalecimento e empoderamento de mais mulheres, destacando a resistência, a coragem
e a capacidade de superação delas diante das adversidades, encorajando-as a se
posicionarem contra a violência e a opressão.
Como uma graphic novel, ansiamos questionar e subverter as estruturas
patriarcais desafiando as normas e os estereótipos de gênero. Acreditamos que a obra
pode inspirar reflexões e ações que levam para uma mudança social mais ampla,
independente do seu gênero. Em suma, promover uma reflexão crítica em prol da busca
de uma sociedade mais justa e igualitária a todas as pessoas.

O CRIME DO DESEMBARGADOR PONTES VISGUEIRO


A história de Maria da Conceição, a Mariquinha como era conhecida, e do Alto
magistrado Pontes Visgueiro, homem mais velho e rico que se enamorou dela, jovem e
prostituta, e que por não conseguiu conter os ciúmes (ou ainda por não ter a
exclusividades dos favores de Mariquinha) a mata e esquarteja, enterrando-o em seu
quintal. Seria esse mais um crime, no qual a posição social e o cargo que exercia, protegia
seu autor, mas a mãe da vítima e suas “amigas”, prováveis companheiras de lida,
empreendem uma verdadeira campanha para sanar primeiramente seu desaparecimento e
depois punir o culpado.
O caso, escandaloso e de grande comoção pública, demonstra as relações
institucionalizadas de gênero no Maranhão do século XIX. Pontes Visgueiro e
Mariquinha reproduzem as próprias concepções de masculino e feminino nessa tensa
relação.
O episódio levantou um imenso debate em jornais, revistas especializadas e até no
Senado da capital que o usavam para criticar os privilégios que iam contra os princípios
do Estado. Em outubro de 1873 o cartunista Ângelo Agostini, a partir dos relatórios do
Delegado, reconstrói o crime por meio de imagens e publica, dividido em duas edições,
na Revista o Mosquito:

Figura 1. Revista “O Mosquito”. Anno 5º. Rio de Janeiro. 04 de outubro de 1873. N.º 212.
Fonte: Hemeroteca digital. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/709654/665

Figura 2. Revista “O Mosquito”. Anno 5º. Rio de Janeiro. 11 de outubro de 1873. N.º 213.

Fonte: Hemeroteca digital. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/709654/675


Talvez devido à atrocidade, frieza e premeditação com que aconteceu, talvez pela
forma como os jornais e revista retratavam o crime, contribuindo para a formação de uma
opinião popular, ou ainda, porque a sociedade passava por um desejo radical de mudanças
e exigia respostas, o caso foi levado a juízo, apesar das desconfianças e sentimentos de
injustiças que eram comuns nas relações sociais da sociedade hierarquizada brasileira.
A linha de defesa do Desembargador utilizava os princípios da medicina mental e
sustentava que o réu foi tomado pela paixão que o enlouquecera, pois, só a partir da
insanidade momentânea é que tão distinto homem perderia a racionalidade própria de seu
gênero. A defesa constrói uma imagem de Maria, como uma mulher devassa e libertina
que procurou pelo que aconteceu, devido suas próprias escolhas pela prostituição. O
julgamento assinala os espaços sociais, delimitados e estamentais, dos gêneros na
sociedade maranhense, que só a “loucura da paixão” poderia subverter, pois, antes de
Maria aparecer na vida do desembargador, este era um Homem exemplar. Logo, a mulher
mesmo vítima é culpada, culpada pelo simples fato de ser mulher.
Contudo, contrariando a norma da época — em que a cor, o gênero e a classe
social, garantiam os privilégios e inculpabilidade — Pontes Visgueiro foi condenado. A
pena que devia ser de morte, como mandava a legislação para esses crimes, foi, no
entanto, revertida para perpétua.
A pesquisa baseada na micro-história sobre o caso foi o ponto de partida para
a criação do roteiro que deu início a produção do produto didático Mariquinhas.

O PRODUTO DIDÁTICO MARIQUINHAS:

A grafic novel Mariquinhas é um produto didático em fase de desenvolvimento e


pode ser definida como um quadrinho criado por maranhenses com o objetivo de estudar
as violências de gênero no maranhão de ontem e de hoje.
O artista selecionado para os desenhos foi Marcos Caldas, ilustrador, escultor e
quadrinista experiente. O roteiro e a pesquisa histórica estão sob a responsabilidade da
professora Nila Michele Bastos Santos.
A criação dos personagens não foi uma tarefa simples, pois, apesar de as pessoas
retratadas terem existido, a tentativa de criar uma imagem que refletisse a realidade
parecia praticamente impossível. A não ser pelo desembargador Pontes Visgueiro — cuja
fotografia de busto estava anexada à sua ficha criminal —, nenhuma das outras figuras
relevantes na história tinha imagens retratadas.
Dessa forma, procuramos inspirações em imagens de indivíduos anônimos do
passado e do presente, familiares e vítimas de crimes recentes, militantes e ativistas das
questões de gênero e contra as violências a essa categoria. É importante salientar que não
se trata de criar “retratos falados”, ou caricaturas, dessas personalidades, mas sim de
buscar características que, ao mesmo tempo, possam representar os indivíduos do passado
e despertar a familiaridade com o público-alvo.
Escolhemos adotar uma técnica comum na produção de HQs: a elaboração das
fichas dos personagens. Além das características físicas, são descritos elementos que
permitem a construção emocional e psicológica das personagens, tais como: história
familiar, experiências dolorosas do passado, traços admiráveis de personalidade (forças)
e traços negativos na personalidade (fraquezas), objetivos/metas da personagem e o que
a motiva a alcançar, medo ou raiva, estima na vida, etc.
Pensamos em uma história com foco narrativo centrada nas mulheres, que
investigaram por sua própria conta o desaparecimento de Mariquinhas. E embora a
história se desenvolva nos cinco dias entre o desaparecimento e descoberta do corpo da
jovem, a narrativa será permeada de flashback, contando uma espécie de “passado
recente” dos acontecimentos pré-crime. Logo, a narrativa não é meramente linear.
Para alcançarmos essa proposta, extremamente visual, optamos por um produto
com cerca de 80 páginas coloridas, com quadros grandes, pouca intervenção de narrador
e duplo formato: impressa e virtual, para maior alcance e disponibilidade do público alvo.
Este serão prioritariamente os alunos do Ensino Médio, mas dada a natureza e o caráter
lúdico do produto, ele poderá ser destinado a um público mais amplo, podendo abranger
todos os maiores de 14 anos.
O produto apresenta, também, uma proposta de interdisciplinaridade e
transversalidade, demonstrando que temas como o contexto histórico, social, político e
geográfico presentes no produto podem ser amplamente discutidos pelas disciplinas de
História, Sociologia, Geografia, Português, Literatura e Artes.
De maneira interdisciplinar os educadores dessas disciplinas poderão questionar
a realidade do passado e presente. Comparar e investigar as permanências e rupturas de
padrões sociais que fazem parte da realidade dos discentes, em outras palavras, o produto
instiga a abrir espaços para novas pesquisas e “as interconexões que acontecem nas
disciplinas facilitará a compreensão dos conteúdos de uma forma integrada, aprimorando
o conhecimento do educando.” (BOVO, 2005, p. 4)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Casos como o crime de Pontes Visgueiros não são incomuns, menos insueto ainda
é a forma em que ele costuma ser retratado. Inúmeros sites, incluindo de seções estaduais
da OAB (como a de São Paulo) apresentam o caso apenas sob a ótica do desembargador,
Mariquinha é apenas uma vítima, mais uma estatística, sem força, sem luta, quase que
desumanizada, quando não culpada de seu próprio infortúnio. As ações das demais
mulheres lutando para a solução e consequente punição do criminoso desaparecem nesses
relatos, a idade, a classe social e a paixão violenta do homem privilegiado por sua classe
tomam o protagonismo dessas mulheres e nesse sentindo é uma nova violência de gênero
que elas sofrem, pois, não são protagonistas de suas próprias histórias.
A existência dessas experiencias femininas não podem mais ser negligenciadas,
contudo, não se trata apenas de levantar o véu do ocultamento, descrevendo fatos e
apontando sujeitos. Não é imperiosa uma história descritiva, mas antes de tudo é
imprescindível uma história-problema, cuja partir das análises meticulosas podemos
interpretar as experiências, buscando ver nesses fenômenos aquilo que se manifesta
rigorosamente da mesma forma para todos, e assim erguendo uma realidade passível de
apreensão e crítica.
Os documentos pesquisados podem não nos proporcionar um entendimento mais
aprofundado dos sujeitos estudados, mas eles serão importantes para decifrar o mundo de
significações da sociedade da época, além de explorar a multiplicidade de sentidos que
eles podem adquirir. Assim, mediante uma leitura minuciosa recorreremos à interpretação
de vestígios e indícios nas entrelinhas e nos “espaços em branco” de documentos
(GINZBURG, 2002, p. 44), muitas vezes escritos por autoridades moldadas pelo
pensamento hierarquizado do período.
O que nos propormos é construir uma história cujo centro de atenção está na
“cultura dos oprimidos” em uma espécie de revalorização do “ponto de vista” das vítimas
tantas vezes deixado de lado pela historiografia tradicional, e embora não possamos
chegar idoneamente às vozes dos indivíduos oprimidos que não escreveram ou não
puderam escrever sobre si, podemos no âmbito do provável, longe de ingenuidades,
acessar seus universos valorativos.
Ao construir uma grafic novel sobre o crime abrimos portas para os debates
históricos no âmbito dos quadrinhos, chamando a atenção para a força e a
representatividade que essa mídia cultural pode alcançar tanto como fonte, quanto recurso
didático.
É preciso salientar que nosso intuito, com o quadrinho “Mariquinhas” não é fazer
uma transposição histórica, reivindicando-se como “A verdade”, reforçamos se uma
história inspirada nos acontecimentos reais. É nosso desejo que a obra alcance uma
verossimilhança tão impressionante que se torne uma ferramenta educativa que auxilie na
preservação e disseminação do conhecimento histórico. Além de ser um estímulo
poderoso para o estudo da História do Maranhão e o desenvolvimento de novas pesquisas,
tanto no que diz respeito às questões de gênero quanto em outras áreas.”
Sabemos que as violências a qual analisamos seguem a sua própria historicidade,
mas isto não impede de problematizá-las de modo a colaborar para a superação de uma
mentalidade enraizada sobre a passividade e subserviência das mulheres no passado,
demonstrando que mesmo diante da naturalização da violência sobre seu gênero,
houveram aquelas que ousaram se levantar e contestar a ordem vigente.
O atual aumento da violência contra a mulher suscita questionamentos no sentido
de se pensar ações de atenção, prevenção e combate a estas formas de violência. Nesse
sentido, acreditamos que tanto a pesquisa histórica sobre o assassinato de Mariquinhas,
quanto o produto didático em quadrinhos podem contribuir para ampliar os estudos que
anseiam por uma transformação cultural sobre as desigualdades de gênero que
historicamente carregamos, assim como pensar novas práticas consoantes à educação
para equidade, manutenção dos direitos e da dignidade humana.

REFERENCIAS
• BOVO, Marcos Clair. Interdisciplinaridade e transversalidade como dimensões da
ação pedagógicas. Urutágua: Revista Acadêmica Multidisciplinar. Maringá,
Universidade Estadual de Maringá, n. 7, p. 1-11, ago./nov. 2005. Disponível em:
http://www.uem.br/urutagua/007/07bovo.htm
• GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002
• MELO, Kelli Carvalho; RIBEIRO, Maria Ivanilse Calderón. Vilãs, Mocinhas ou
Heroínas: Linguagem do Corpo Feminino nos Quadrinhos, Revista Latino-americana
de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 105 – 118, ago. / dez. 2015. Disponível
em
https://www.researchgate.net/publication/276884987_Vilas_Mocinhas_ou_Heroinas_Li
nguagem_do_Corpo_Feminino_nos_Quadrinhos Acesso em: 05 abr. 2023.
• SCOTT, Suzanne. Fangirls in refrigerators: The politics of (in)visibility in comic
book Culture. In: Transformative Works and Cultures, edited by Matthew J. Costello,
special issue, v.13, 2013. Disponível em:
https://journal.transformativeworks.org/index.php/twc/article/view/460/384. Acesso em:
14 abril de 2023.
• SIMONE, Gail. Woman in Refrigerators, site, 1999. Disponível em: http://
https://www.lby3.com/wir/index.html Acesso em: 14 abril de 2023.

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