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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE DIREITO

CARLOS HENRIQUE ALVARENGA URQUISA MARQUES

TORTURA: DE MÉTODO A CRIME

BELO HORIZONTE

2014
1

CARLOS HENRIQUE ALVARENGA URQUISA MARQUES

TORTURA: DE MÉTODO A CRIME

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais, sob
orientação do Professor Doutor Felipe Martins
Pinto, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre.

BELO HORIZONTE

2014
2

MARQUES, Carlos Henrique Alvarenga Urquisa

M357 t Tortura: de método a crime./ Carlos Henrique Alvarenga Urquisa Marques – 2014

195 f. enc.

Orientador: Prof. Dr. Felipe Martins Pinto

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito.

Referências: f. 11-179

1. Tortura. 2. Inquisição. 3. Humanismo. 4. Garantias processuais penais. 5. Processo


penal. I. Pinto, Felipe Martins.. II. Universidade Federal de Minas Gerais – Faculdade de
Direito. III. Título

CDU 343.615(043)
Ficha catalográfica elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB – 6 / 1206
3

CAR LOS HENRIQUE ALVARENGA URQUISA MARQUES

TORTURA: DE MÉTODO A CRIME

Dissertação apresentada e aprovada junto ao Curso de Pós-


Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
visando a obtenção do título de Mestre em Direito.

Belo Horizonte, 05 de fevereiro de 2014.

Componentes da banca examinadora:

__________________________________________________________

Professor Doutor Felipe Martins Pinto (orientador)


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

___________________________________________________________

Professor Doutor Antônio de Pádova Marchi Júnior


Centro Universitário de Belo Horizonte - UNIBH

___________________________________________________________

Professor Doutor Fernando Gonza ga Jayme


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

___________________________________________________________

Professor Doutor Leonardo August o Marinho Marques


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas
4

Aos que ainda acreditam na justiça através do sistema.


5

“Será que tu, ao assumires o sofrimento, já não apagas


metade do teu crime?”.

Fiódor Dostoiévski
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus por atender minhas preces e permitir que


toda minha vida confluísse a este ponto de realização profissional.

Agradeço à minha mãe por me ensinar que , com fé, ousadia e luta, é possível
conquistar os tesouros do céu e da terra.

Ao meu pai por me mostrar o valor do passado e das tradições. Também, pelo
incentivo a sempre almeja r novas conquistas intelectuais.

Ao meu orientador, o Professor Dr. Felipe Martins Pinto, por me guiar não
apenas academicamente, mas com conselhos pessoais e profissionais .

Aos professores, colegas e amigos d o Programa de Pós Graduação da UFMG,


por vi venciarem comigo esta experiência, especialmente ao Gabriel La go e à
Jéssica Freitas, q ue dividiram comigo desde as aspirações iniciais , até as
aflições dos últimos instantes.

Agradeço também à minha família pelo apoio. A todas tias, tios, primos e
primas, principalmente ao Gustavo por sempre apoiar meus projetos pessoais.

Aos meus amigos Armanis, que festejaram comigo cada conquista e se


compadeceram de cada sacrifício , em especial à Marialice, pelo apoio,
carinho e compreensão nesta fase da minha vida.

Ao Dr. Luciano Santos Lopes por compartilhar sua experiência, investir sua
confiança e ser uma inspiração tanto profissional quanto acadêmica.

Agradeço, por fim, aos amigos e colegas do Escritório Salomão Cateb. Ao Dr.
Renato Machado e ao Dr. Leonardo Barbosa, também aspirantes a mestres,
com os quais dividi as dúvidas, descobertas e angústia s dessa fase.

A todas esta s pessoas, a gradeço por participarem desse momento, certo de que
encerro esta etapa engrandecido pelas experiências e fortalecido pelas
dificuldades.
7

RESUMO

Este estudo é voltado para a identificação das transformações trazidas pelo


humanismo para a concepção jurídica de tortura. Para tanto, divide -se a
pesquisa em três partes. A primeira destina -se a compreensão da realidade pré
moderna em que a tortura é um instrumento legítimo do sistema. Em seguida,
apresenta -se a fundamentação teórica que é empregad a pelo sistema
inquisitorial para justificar a utilização da tortura. Na segunda parte da
pesquisa, o pensamento humanista é apresentado . O contexto histórico de seu
surgimento é descrito para, então, demonstrar -se como o humanismo critica a
utilização da tortura . A terceira e última fase da pesquisa é utilizada para
descrever a maneira como o humanismo provocou mudança nos ordenamentos
jurídicos levando a um processo de criminalização da tortura.

Palavras-chave: Tortura; Inquisição; Humanismo; Garantias Pro cessuais


Penais; Processo Penal.
8

ABSTRACT

This study is focused on identifyi ng the changes brought by humanism to the


legal conception of torture. To do so, this work is divided into three parts.
The first is aimed at understanding the pre modern reality that torture is a
legitimate tool of the system. It then presents the theoretical foundation that
is employed by inquisitorial system to justify the use of torture. In the second
part of the research, humanist thought i s presented. The historical context of
its emergence is described to then be shown as humanism criticizes the use of
torture. The third and final phase of the research, is used to describe how
humanism caused change in the legal systems, leading to a proce ss of
criminalization of torture.

Keyw ords: Torture; Inquisition; Humanism; Criminal Guarantees; Criminal


Procedure.
9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1: INQUISIÇÃO E O PROCESSO PENAL INQUISITÓRIO ........ 14

1.1 As raízes do sistema inquisitorial ....................................................................... 15

1.2 Institucionalização do sistema pela igreja ....................................................... 17

1.3 A transposição do procedimento inquisitório para a ordem jurídica ....... 26

1.4 Elementos do procedimento investigatório inquisitorial ............................. 32

1.4.1 Verdade real ........................................................................................................... 34

1.4.2 Sistema de provas tarifadas ............................................................................... 39

1.4.3 Instrumentalização institucionalizada da tortura ....................................... 44

CAPÍTULO 2: A TORTURA COMO INSTRUMENTO DE OBTENÇÃO DA


VERDADE RE AL ENQUANTO CORRESPONDÊNC IA ........................................ 54

2.1 A tortura como ferramenta do sistema persecutório inquisitorial ............ 54

2.2 O correspondismo no processo penal ................................................................. 60

2.3 Verdade correspondista e tortura ........................................................................ 70

2.4 Tortura: a verdade a todo custo ........................................................................... 79

CAPÍTULO 3: O ROMPIME NTO PARADIGMÁT ICO: HUMANISMO


LIBERAL E O SUJEITO DE DIRE ITOS ..................................................................... 86

3.1 Revolução do pensamento humanístico e as raízes do rompimento de


paradigma no plano jurídico ............................................................................................ 93

3.2 Elevação do ser humano ao status de sujeito de direitos ........................... 103

3.3 O surgimento de novas referências para o processo penal ........................ 110


10

CAPÍTULO 4: IMPLICAÇÕES DA MUDANÇA PARA UM PARADIGMA DE


RESPEITO À DIGNIDADE DA PE SSOA HUMANA ............................................ 123

4.1 A consolidação do humanis mo através dos Direitos Fundamentais de


Primeira Geração ............................................................................................................... 125

4.2 A formação do Estado Liberal e a implementação dos Direitos


Fundamentais de Primeira Geração ............................................................................. 132

4.3 Processo Penal Moderno regido sob os princípios do pensamento


humanitário ......................................................................................................................... 140

CAPÍTULO 5: TORTURA COMO CRIME NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILE IRO ..................................................................................................................... 166

5.1 O tratamento legal da tortura criminalizada, anteriormente à


Constituição Federal de 1988 ........................................................................................ 166

5.2 O tratamento legal da tortura a partir da Constituição de 1988 e a


tipificação deste crime .................................................................................................... 170

CONCLUSÃO .................................................................................................................... 177

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS .................................................................................. 182

REFERÊNCIAS NORMATIVAS ....................................................................................... 192


11

INTRODUÇÃO

A tortura já foi um método legítimo utilizado pelo sistema jurídico


brasileiro. Durante as Ordenações Filipinas , que vigiam no Brasil em seu
período colonial (1500-1822), a utilização da tortura era prescrita como
método para extrair dos suspeitos, aquilo que se julgava ser a verdade sobre o
acometimento de um crime.

Em 1821, o então príncipe regente, Dom Pedro, proibiu o emprego dos


tormentos com esta finalidade. Todavia, a tipificação do crime de tortura se
deu apenas em 1997 através da lei nº. 9.455/97 1.

A diferença entre as concepções de tortura do Brasil Colônia e do


Brasil contemporâneo, revelam o distanciamento entr e as mentalidades dos
legisladores nos dois períodos.

No primeiro, à época das Ordenações Filipinas, a submissão dos


investigados aos tormentos parecia uma maneira eficaz de se averiguar a
suspeita de um crime . Isso se de ve à formação do sistema processual penal
português. Em sua origem, ele recebe direta influência do sistema utilizado
pela Inquisição Católica para a perseguição de hereges.

Por outro lado, naquele s egundo momento, em que a tortura é abolida


do ordenamento jurídico, o precedente histórico é o movi mento iluminista do
século XVIII. A Coroa Portugues a foi influenciada pelas ideias humanistas
que tomavam a Europa, talvez temerosa de que sua recusa em se adequar às
diretrizes iluministas, levasse repercussões violentas como se operou na
França em 1789.

1
GOUL ART , Va lér ia D ie z S car a nce Fer na nde s. T ort ur a e pro va no pr o cesso pena l . ( S ão
P au lo : 2002, At la s) , p. 39.
12

Mesmo após a abolição do emprego institucionalizado dos suplícios, os


relatos de um passado ditatorial recente - entre 1964 e 1989 - trazem casos de
utilização extralegal da tortura enquanto um método de investigação por parte
das autoridades militares. Tais relatos levaram o descontentamento da
sociedade brasileira . Desse inconformismo surgiram iniciativas, subsistentes
até os dias atuais, de resgate da memória e punição aos torturadores 2.

Mais recentemente , a notícia de policiais paulistas torturando pessoas,


levou a população brasileira a clamar por justiça, grito este que foi atendido
com a aprovação da atual lei que tipifica o Crime de Tortura 3.

Percebe-se, com esses casos, que a sociedade moderna introjetou o


pensamento humanista em relação à inadmissão da tortura. Não por outro
motivo é que se observou a revolta popular quando se torn ou público e
notório a sua utilização.

Do ponto de vista jurídico, a implementação do humani smo no sistema


persecutório, em relação à tortura, aconteceu através de um processo que
parte da proibição e vai até a tipificação do crime de tortura. A evolução
normativa que se dá neste ínterim , implica na gradual construção de um
Processo Penal de garantias voltadas à proteção da dignidade humana.

Para a compreensão de q uais são essas garantias e como elas são o


resultado de um processo histórico de exorcismo da tortura enquanto método
institucionalizado, é que foram voltados os presentes esforços científicos.

A pesquisa realizada se deu em três fases , relatáveis em cinco


capítulos. O primeiro capítulo é destinado a descrever as origens do sistema
inquisitorial e sua utilização da tortura enquanto método.

No segundo capítulo, apresenta -se o resultado de uma análise jurídica


científica sobre a estrutura do sistema inqui sitorial. A lógica que orienta o

2
S OARE S , I nês V ir g ínia P r ado ; KI S HI , S andr a Ake m i S hi mada. Me mó r ia e Ver dade - A
Just iça de T r a ns ição no E st ado De mo cr át ico Br as i le ir o . ( Be lo Ho r izo nt e: 2009, E dit o r a
Fó r um) . p. 57.
3
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a . ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) , p. 96.
13

emprego institucionalizado dos suplícios é descrita neste capítulo , para


possibilitar o entendimento das críticas posteriormente formuladas, pelo
movimento humanista, ao inquisitorialismo e à tortura.

A segunda fase da p esquisa inicia -se com o terceiro capítulo. Ele


destina-se à contextualização e explicação do movimento humanista. Nessa
parte, primeiramente se trata do contexto histórico que envolveu o período
iluminista, para, então, se apresentar as críticas do ilumini smo à realidade
social do ocidente, especialmente aquelas relacionadas ao sistema
inquisitorial com seu procedimento persecutório característico . Neste ponto, o
projeto humanista para a modernidade é apresentado através dos pensadores
que se tornaram expoe ntes, ao tratarem de questões relacionadas ao assunto
do presente estudo.

Como terceira e última fase da pesquisa desenvolveu -se o quarto e


quinto capítulos. Naquele quarto capítulo descreve-se o processo de
assentamento das teorias humanistas nos sistemas jurídicos modernos.
Finalmente no quinto capítulo, desenvol ve -se a trajetória legislativa , através
da qual a tortura se torn ou antijurídica para o ordenamento brasileiro.

Em resumo, e ssa fase final dos trabalhos é destinada a demonstrar como


o processo penal contemporâneo absorveu o pensamento humanista e se
tornou absolutamente avesso à tortura.

Assim, resta claro que a presente pesquisa, de natureza exploratória,


tem tanto um aspecto histórico, pois , em todas as fases da pesquisa foi
essencial situar historicamente o objeto de estudo, quanto jurídico, pois se
destina a analisar a tortura através de dois vieses jurídicos distintos: enquanto
método e enquanto crime.
14

CAPÍTULO 1: INQUISIÇÃO E O PROCESSO PENAL INQUISITÓRIO

A primeira fase da pesquisa proposta se refere ao momento em que a


tortura é utilizada enquanto um método institucionalizado de persecução
criminal.

"Depo is de ha ver s ido t r at ado no Dir e it o Gr ego e no Ro ma no co mo


pesso a, su je it o de d ir e it o s, o acusado , po r influ ê nc ia do s co st u mes
bár bar o s , passo u a ser vist o co mo s imp le s co isa, mer o o bjet o do
pr o cesso. Ar r anc ado do lar s e m qua lqu er exp l ica ção , er a le vado a
u ma e nxo via que, d a li po r d ia nt e, ir ia ser o esqu i fe de suas
asp ir a çõ es e o t úmu lo de seus a ns e io s. S o nho s que so nhar a, pr o jet o s
que co nceber a, dese jo s que aca le nt ar a, t udo ali e nco nt r ava o t er mo
f ina l. O aco nc hego fa m i l iar desapar ec ia. E se e le sa ía da ma s mo r r a
e m que de finha va er a par a ser co nduz id o à pr esenç a de u m ju iz que
lhe faz ia p er gunt as vaga s so br e fat o s que ne m se mpr e c o nhe c ia.
Não alc a nça ndo o o bjet ivo das ind agaçõ es e a co r r elação ent r e e la s,
er a le vado a r espo nder ao que sabia e ao que ig no r ava. Ainda
quando d is ses se a ver dade, não se liv r ava da acu sação de est ar
me nt indo o u de ha ver c a ído e m co nt r ad ição . S e r espo nd ia co m
f ir mez a er a t achado de audac io so e pet ula nt e; se t r e mia er a t ido
co mo de linque nt e co nfes so . E ssa int er pr et ação de suas at it udes
a inda ma is co nt r ibu ía par a au me nt ar - lhe a co nfusão , pert ur bando -
lhe a me nt e já ca ns ada pe lo nú mer o e pe la d iver s idade da s
p er gunt as que se su ced ia m e m at ro pelo . A par t ir da í, já não se
le mbr a va ne m do que ha via d it o ne m do que r ea l me nt e aco nt ecer a.
E fr aque ja va, ced ia ao pavo r . P assava a negar a ver dade, ent r ava
pe lo r e ino da fa nt as ia e da i mag in a. Ou e mudec ia. U ma só
pr eo cupa ção o do mina va: d izer o que o ju iz qu ise sse o uvir e livr ar -
se daque la t o rt ur a" 4.

Diante do que se propôs analisar, a passagem inicial de Hélio Tornaghi


citada acima , serve a orientar o ponto de partida para os primeiros esforços .

Demonstra que a utilização instituciona lizada da tortura pelo ocidente


situa-se, historicamente, posterior ao Direito Grego e Romano. Dá-se em um
momento histórico em que os costumes bárbaros deram origem a um novo
procedimento persecutório.

4
T ORNAGHI , Hé lio . A Re lação P ro cessu a l P e na l. ( S ão P aulo : 1987, S ar aiva) . p. 03.
15

Trata-se do sistema inquisitorial. Tornaghi, sem se referir


expressamente à Inquisição, faz menção ao indivíduo alvo de procedimentos
arbitrários de investigação, que, conforme se demonstrará adiante, apresentam
um evidente caráter inquisitorial.

Para se abordar a utilização dos suplícios enquanto métodos desse


sistema far-se-á necessário, portanto, analisar o sistem a inquisitorial, sua
origem histórica e suas características. A isso se voltarão os esforços
seguintes.

1.1 As raízes do siste ma inquisitorial

O procedimento jurídico a que s e pode atribuir característ icas chamadas


inquisitoriais tem existência anterior à consolidação da hegemonia Católica
no ocidente. De fato, cronologicamente sucede um sistema acusatório que
predominou na tradição jurídica até o Império Romano.

Note-se que o procedimento veio combater alguns perigos que se


apresentaram no procedimento acusatório, como a facilitação da acusação
falsa, inexiquibilidade da sentença e outros, conforme demonstra Denis
Sampaio:

“E st abe le cer a m- se à épo ca, no ent ant o , algu ns per igo s no


aco mpa nha me nt o desse s ist e ma pr o cessua l: a cr esce nt e impu nid ade ;
co m a fac i l it ação da acusaç ão fa ls a , ; desa mpar o do s fr aco s;
det ur pação da ver dade; i mpo ss ibi l idad e de ju lga me nt o e m mu it o s
caso s e ine xiqu ib i l idade d e se nt enç a e m o ut ro s. Obser vada s as
agr ur as que at r ave ssa va o s ist e ma acu sat ór io , o S enado Ro ma no
bus co u uma sa ída par a a me lho r aver ig uação das infr açõ es pe na is,
o bjet iva ndo o a fast a me nt o da impu nidad e que a sso la va t o da a I dade
Méd ia e d ar ma io r cr ed ibi l idade às de c isõ es jud ic ia is. As s im, o
pr o cesso inqu is it ó r io apar eceu co mo subs id iár io ao acusat ó r io , não
ha ve ndo po ss ib il idad e de o ju iz se co nt ent ar co m a ver dade ( fict a)
pr o duzidas ape na s pe la s par t es. O apr imo r a me nt o desse mo de lo s e
deu pe la I gr e ja Cat ó lica, at r avé s da qua l inst it u iu o inquér it o co mo
fo r ma de acu sação e a bu sca de pr o va s par a a sa nç ão das her es ia s,
ext r ava sa ndo às de ma ndas mer a me nt e int r aec le s ia l, na med id a e m
16

que o cr ist ia nis mo r esu lt o u na r e lig ião of ic ia l do I mpér io , t o r nando


a quest ão não apenas r e lig io sa, ma s t ambé m po lít i c a” 5.

Portanto, o sistema jurídico que predominava no direito Romano foi


inicialmente acusatório.

Porem, a necessidade de iniciativa particular e a publicidade dos atos


processuais tornou o procedimento acusatório pouco a pouco indesejado. A
influência de alguns particulares trouxe incerteza e corrupção para a
prestação jurisdicional. A publicidade expunha ao vexame aqueles que era m
levianamente acusados.

Foi, portanto, a necessidade de manutenção de um sistema judicial com


garantias de imparcialidade que inspirou uma mudança de pa radigma na tutela
jurisdicional no Império Romano:

“O d is cur so de muda nç a do s ist e ma j ur íd ico não er a apena s u m


apr imo r a me nt o na de mo nst r ação do s fat o s delit ivo s, ma s u ma ma io r
segur ança que se busc a va à épo ca, pelas dec isõ es do I mper ado r .
I lust r a To r naghi qu e par a e vit ar que o s hu m i ldes fo sse m vít i ma s da
có ler a do s po dero so s, que o s ho me ns de be m so fr ess e m na bo a
fa ma, na est ima pú bl ica e, fina l me nt e, par a assegur ar o bo m ê xit o
das inve st iga çõ es, o pro cesso passo u a ser s ecr et o e do cume nt ado
pe la r edução a escr it o de t o do s o s at os. O que não est ives se no s
aut o s er a co mo se não exist iss e: quo nos est i n act i s non e st i n
mundo” 6.

Daí o procedimento ser caracteristicamente escrito e sigiloso. Procurou-


se, como se percebe das observ ações de Denis Sampaio, preservar a imagem
dos acusados, permitir a previsibilidade dos atos, a segurança jurídica, e a
efetividades das decisões 7.

5
S AMP AI O, De nis A Ver dade no P r o cesso P ena l. A per ma nê nc ia do S ist e ma I nq u is it o r ia l
at r avés do discur so so br e a ver dade ( R io de Jane ir o : 2010, Lume n Jur is) . p. 115.
6
S AMP AI O, o p. cit .
7
FE RRI , E nr ico . P r inc íp io s de D ir e it o Cr im ina l - O Cr im ino so e o Cr ime.
( Ca mp ina s: 2003, Russe l l) . p.
27.
17

Mas não se resumia a isso. O modelo de processo cognitio extra


ordinem trazido, implementava o poder dos ju ízes do Estado em conhecer a
demanda por iniciativa própria. Eles poderiam ter conhecimento da notícia do
crime, e dela dar início às investigações para apuração do fato. A estas
providências preliminares deu -se o nome de inquisitio 8.

Este procedimento, co ntudo não é ainda o que se denomina


procedimento inquisitório. Na verdade, as características do inquisitio são
utilizadas como a base estrutural do sistema investigatório criado pela Igreja
Católica a partir do século XII. Por apresentar características s emelhantes,
como que herdadas daquela fase do extra ordinem romano, é que se utiliza o
nome “inquisitório” quando do seu resgate pelo direito canônico , tudo,
conforme será analisado adiante.

1.2 Institucionaliz ação do siste ma pe la igreja

Com a queda do Império Romano e a ascensão da Igreja Católica no


Ocidente, a expansão do cristianismo passou a se confundir com a própria
noção de expansão da ocidentalidade 9.

Nesse sentido, a começar pela Cruzada invocada pelo Papa Urbano II


em 1095, iniciou-se um movimento de expansão da Igreja , pela violência,
voltado para o Oriente 10. Era uma luta sob o pretexto de “salvar” povos que
não apenas se mostravam resistentes à conversão ao catolicismo, mas tinham
seus próprios interesses expansionistas.

8
Na ver dade, o po der do s ju íze s a est e t empo er a “de s mesur ado ”. ( BARROS , Mar c o
Ant o nio de. A Bu sca da Ver dade no P r o cesso P ena l. ( S ão P au lo : 2010, Revist a do s
T r ibu na is) p. 59) .
9
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 19.
10
LE GOF F, Jacque s, As Ra íz es med ie va is d a E ur o pa; t r adução de Ja ime A. C la se n
( P et ró po lis, R io de Ja ne ir o : Vo zes , 2007), p. 127.
18

"O d ia bo ent r o u na E u ro pa co m o cr ist ia nis mo , uni f icado so b seu


do mín io , u ma mu lt idão de de mô nio s d iv er so s vindo s do paga nis mo
gr eco -ro ma no o u das nu mer o sas cr enças po pular es. Ma s o dia bo só
se t o r na esse co ma nda nt es che fe de t o das as co r es do ma l a par t ir
do século XI . Dor ava nt e ele co nduz o bai le do s fut ur o s co ndenado s.
Ne m t o do s o s ho me ns e t o das as mu lh er es su cu mbe m a e le, mas
t o do s são ameaç ado s, t ent ado s. A cr ist andade u ni f icada co nfer e ao
" ini m igo do gêner o hu ma no " u m po der uni fic ado . A her es ia é s eu
inst r u me nt o. A I nqu i s iç ão ser á a ar ma da I gr e ja par a o co mbat er .
Mas sua pr e se nça e sua ação dur ar ão mu it o t empo . A E ur o pa do
d ia bo nasc eu" 11.

Para os soberanos de então, tratava -se de um interesse evidentemente


político. Mas para o líder da Igreja, era uma jornada aparentemente pela
salvação de almas e recuperação da Terra Santa , embora isso nada mais seja
do que uma jornada pelo poder da Igreja, e , por isso mesmo, se resumindo
também a um interesse político.

Cumpre observar que , nesse momento, a luta contra o herege - o


diferente – voltava-se para fora dos muros da cristandade, principalmente
para os mouros. Os desvios do cidadão comum não interessavam muito à
cúpula eclesiástica, já que o contro le da Igreja era inquestionável dentro dos
feudos 12.

A partir do século XII essa realidade apresentou sintomas de mudança.

O surgimento das cidades burguesas , em detrimento do sistema feudal


anteriormente instalado, trouxe consigo uma realidade de valorização do
dinheiro e da propriedade material.

Não era por menos: os burgos t iveram sua origem nos entrepostos
comerciais criados com o objetivo de auxiliar a atividade comercial em
expansão na Europa. Por óbvio, o coração do comércio é a noção propriedade,
acompanhada pela valorização do patrimônio individual 13.

11
LE GOFF, o p. cit . , p. 132.
12
NAZ ARI O, Lu iz. Aut o s- de- fé co mo espet ácu lo de mas sa ( S ão P au lo : Asso c iaç ão
E dit o r ia l Hu ma nit as, 2005) , p. 38.
13
LE GOF F, Jacque s, As Ra íz es med ie va is d a E ur o pa; t r adução de Ja ime A. C la se n
( P et ró po lis, R io de Ja ne ir o : Vo zes , 2007), p. 143.
19

Sob um ponto de vista axi ológico, isso si gnifica a elevação do “desejo”,


até então rebaixado à condição de pecado, ao status de valor.

Muito embora, sob essas bases, as cidades burguesas se diferenciassem


fundamentalmente dos feudos da alta Idade Média .

“à I gr e ja Cat ó lica ( o u par t e de la) i mpo rt ava, po r ém, não o fat o de


ha ver d ifer e nç a ent r e o bur go e o feudo mas, s im, que naqu e le não
t inha u m do mín io p le no , ago r a ec lips ado po r aquele do s
“bur gues es”, s e nho r es das car a va na s, do co mér c io e do gr o sso do
d inhe ir o . E se m vo lt a, pelo me no s apar e nt e. Aqu i, e nt ão, o dile ma:
o que fazer e m r e lação a t al po nt o ?” 14

A resposta veio em uma sequencia de medidas adotas pela Igre ja a fim


de conservar seu poder, posto que a mera presença da Cúria nas Cidades, não
foi suficiente para aplacar a perda de influência.

Dentre as novas posturas adotas, vale citar a decisão do então Papa


Inocêncio III em transformar a confissão em sacramento e torná -la
obrigatória 15.

Pretendia com isso, estender sua influência ao lar de cada fiel, pois os
sacerdotes que lhe serviam seriam seus olhos e ouvidos na vigia dos hereges.

Também em relação à heresia, outra medida adotada por Inocêncio III


foi a bula Vergentis in senium, baixada em 1199. No documento, o crime de
heresia era equiparado ao de lesa majestade, o mais grav e dos delitos até
então 16.

Com isso a Igreja Católica revelou uma nova postura de manutenção de


poder pela força.

14
COUT I NHO, Jac int o Nelso n d e M ir a nda. S ist e ma Acu sat ór io : Cada par t e no lugar
co nst it uc io na lme nt e de mar cado ( Br as íl ia , v. 46, n. 183, ju l. / set . 2009), p. 189.
15
Da í a r a íz da impo rt ânc ia que r ecebe no s ist e ma inqu is it o r ia l. ( Vi de no t a nº 46).
16
BAT I S T A, N ilo . Mat r ize s ibér ica s do s ist e ma pe na l br as i le ir o . ( Rio de Ja ne ir o : 2002,
Re va n) . p. 234.
20

Se antes o uso da força se direcionava exclusivamente para fora da


cristandade, agora a luta pela expansão da fé católica e manutenção do pode r
tinha como pano de fundo também as cidades cristãs. Explica-se.

A formação de novos núcleos populacionais e o intercâmbio de


informações permitido pelo crescimento da atividade mer cante, possibilitou o
surgimento de grupos religiosos que divergiam pontualmente da doutrina
Católica.

Eram seguimentos religiosos autônomos como os Cátaros, Valdistas e


Maniqueístas.

Todavia, o ponto essencial de atrito em relação à Igreja, era a


resistência em se submeter à ordem Hierárquica da Cúria. Eram grupos que
prezavam pela independência religiosa e propagavam a própria fé pelo contato
direto de seus líderes com a população.

“E m ú lt i ma a ná l ise, c lar o , o pró pr io cr ist ia nis mo é imp l ic it a me nt e


dua list a, exa lt a ndo o esp ír it o , r epudia ndo a car ne t o da a “nat ur eza
ir r ed im ida”. Os c át aro s pr egava m o que po der ia ser vist o co mo u ma
fo r ma e xt r e ma de t eo lo g ia cr ist ã – o u uma t ent at iva de le var a
t eo lo g ia cr ist ã às suas co nc lusõ es ló g ic as. E le s pr ó pr io s via m sua s
do ut r inas co mo ma is pr ó xima s do que se d iz ia que Je sus e o s
apó st o lo s ha via m e ns inado . Cer t ame nt e est ava m ma is pr ó xi ma s que
o que pro mu lga va Ro ma. E e m sua s i m p lic idade e r epúd io ao lu xo
mu nda no , o s cát aro s acha va m - se ma is pr ó ximo s que o s sacer do t es
r o ma no s do est ilo d e vida ado t ado por Jesu s e seus segu ido r es no s
E va nge lho s” 17.

Assim, as novas cruzadas que foram empreendidas, não foram contra


pessoas de uma sociedade alienígena e costumes avessos aos católicos, mas
contra Cátaros, Maniqueístas e Valdistas, que possuíam hábitos cristãos e
vi viam em um meio social indiscutivelme nte influenciado pela Igreja 18.

17
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 24.
18
WE L LS , Her ber t Geo r ge. Hist ó r ia U niver sa l. v. 4. (E st ado s Unido s do Br as il: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1070.
21

O que não se podia permitir era a divergência esse ncial desses cultos
em recusarem-se a se sujeitar à hierarquia eclesiástica. Para o papa, isso era
intolerável , pois representava um foco de oposição em seu próprio “quintal”.

Permitir a proliferação dos ideais de não sujeição à hierarquia imposta


era pernicioso ao reve lar um descontrole sob os fieis ainda maior do que
aquele que naturalmente decorria da situação histórica provocada pela
ascensão da burguesia.

Os massacres que se procederam, foram a amostra de que a Igreja teria


que promover uma luta religiosa em seu próprio território.

Como nas primeiras cruzadas, o inevitável enfrentamento era,


novamente , uma luta do povo santo contra um exército herege. Até est e ponto,
a luta armada é o principal instrumento para manutenção da fé. 19

Todavia, quando o mal combatido deixa de ter uma delimitação


territorial mais ou menos definida (como em Albi, ao sul da França) e a luta
contra o herético torna-se disseminada pontualmente no coti diano, os
mecanismos necessários passam a ser outros.

A isso se prestam as referidas medidas adotas por Inocêncio III:


combater a heresia pontual que aflorava no dia a dia das cidades. Foram,
contudo, ineficientes, pois o surgimento da nova dinâmica burgue sa levou
uma perda de poder longe do que a Igreja poderia esperar 20.

Para se manter, seria necessário implementar um método


institucionalizado de combate ao infiel, mais uma vez sob o argumento de
salvação de almas, e que aproveitasse da influência que a re ligião ainda tinha
sob o imaginário popular , quando se tratava de vida após a morte e
condenação eterna.

19
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 21.
20
WE L LS , Her ber t Geo r ge. Hist ó r ia U niver sa l. v. 4. (E st ado s Unido s do Br as il: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1063.
22

Mas se nem a própria fé – já que as doutrinas católicas começavam a


ser questionadas – nem o medo de incorrer nas iras de um Senhor Feudal –
cujos poderes se dispersava m nas cidades burguesas, eram suficientes para
manter os indivíduos longe das ide ias heréticas, como condensar uma
sistemática que exigia um poder sancionador?

Ora, não obstante o gradual distanciamento entre a Igreja e o poder


estatal, o Bispo de Roma ainda gozava de prestígio suficiente para que os
Estados dessem respaldo oficial a qualquer nova tradição católica. Assim,
apesar da ausência, nas cidades, de um controle tão direto do poder
governante, em relação ao decadente sistema feudal, as autoridades ainda
reconheciam a legitimidade da Igreja Católica em governar seus fiei 21s.

A sistemática pensada para a perseguição dos here ges nesse novo meio,
trazia, como se verá adiante, valores nucleares para os quais o antigo modelo
da inquisitio romana se adequou perfeitamente.

Logo, adianta -se que o modelo inquisitorial não foi pensado a partir do
procedimento, mas a partir dos objetivos traçados. Explica-se.

Considerando, por exemplo, que o propósito de uma perseguição


herética era salvar a alma pelo conhecimento do pecado, então o método
adequado necessariamente d everia alcançar essa verdade herética reconhecida
pelo investigador . Observando o modelo inquisitorial romano, nota -se que
essa finalidade aproxima -se muito daquela em que o acusador do Estado
formula uma tese acusatória que pretende confirmar através do procedimento
judicial. Por isso, a princípio, o modelo se adéqua tão bem às inte nções da
Igreja naquele momento:

“A fine s de l s ig lo XI I lo s ju ic io s de D io s quedaro n desacr ed it ado s;


u m Ca no n d e l I V Co nc il io de Lat r án de 1215 pr o hibió t o do apo rt e
l it úr g ico a lã s o r da lías y decr et o s papa le s co nde nar o n t o da pur gat io
vu lgar is. La r e vo luc ió n inqu is it o r ia l sat is fac e e xigê nc ias co mu ne s a
do s mu ndo s: e l ec le s iást ico , esac hado po r lãs her e j ía s, y e l c iv i l,
e m e l cua l la e xpa ns ió n eco nô mica o r ig ina cr i mina l id ad, lo s
int er ese s que se ha n de pr ot eger exige n u m aut o mat is mo r epr es ivo
inco mpat ible co m lã s acu sac io ne s pr ivada s ; la cu lt ur a jur íd ic a

21
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 38.
23

r o ma na, ya mu y d ifu nd id a, impo ne d ec is io nes t éc nicas ; e m e l


cuant o al mét o do de la inst r ucc ió n, no es u ma no vedad la
indagac ió n de t est igo s de o fic íc io , e xpe r ime nt ada desde lo s iud íc i a
s yno da lia c ar o líng io s” 22.

Ainda, esse instrumento escolhido não necessitava de uma presença


verdadeiramente ostensiva da Igreja, como se tornava cada vez mais difícil
devido à expansão mercantil . Necessitava apenas que aparentasse um controle
absoluto da Igreja naquela nova sociedade.

Bastava que qualquer demonstração de força possuísse mero caráter


emblemático, para que um temor gen eralizado fi zesse seu papel entre as
massas 23.

Repita-se: também nesse sentido a estrutura de controle nos moldes da


inquisitio romana, serviria perfeitamente .

Em primeiro lugar, se o combate à heresia seria feito por uma


instituição piedosa, como a Igreja Católica, ela se faria, ao menos
aparentemente, conferindo garantias aos objetos de investigação: leia -se
investigados 24.

O sistema nas bases inquisitoriais poderia apresentar (ao menos em


parte) essas garantias, ao passo que possuía características então peculiares,
como o procedimento escrito, o julgamento impessoal e a predeterminação
dos ritos.

Perceba-se que em relação aos sistemas jurídicos anteriormente


vi gentes na Europa em razão do Direito Romano pré cognitio extra ordinem ,
essas eram verdadeiras ga rantias posto que , de modo diverso , imperava a
arbitrariedade e a incerteza nos procedimentos judiciais 25.

22
CORDE RO, Fr a nco . P r o cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 16.
23
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 47.
24
BAT I S T A, N ilo . Mat r ize s ibér ica s do s ist e ma pe na l br as i le ir o . ( Rio de Ja ne ir o : 2002,
Re va n) . p. 234.
25
Vi de it em 1. 1.
24

Em segundo lugar, a dinâmica inquisitória permitia uma


espetacularização de atos , exatamente nos termos de que a Igreja necessitava .
Afinal, a intençã o da cúpula não era outra senão disseminar o medo no
coração dos hereges e desestimular os atos contrários ao ethos católico
imposto. A publicidade das sansões 26 mais tarde cumpriria este propósito
através dos espetáculos de fé 27.

Por fim, para a manutenção de um sistema nesses termos, era necessário


uma estrutura administrativa orga nizada e pré determinada , com que a Igreja
já contava pois, desde o século XI, expandia-se não apenas territorialmente,
como também se apresentava mais enraizada e organizada den tro da sociedade
ocidental:

“No s d ias d e ig no r ânc ia, er a e xt r ao r dinár ia a bo a vo nt ade par a se


cr er no sac er dó cio cat ó lico e par a se j u lgá - lo bo m e pr ude nt e. E
naque le s d ia s er a de fat o me lho r e ma is sá bio . E ss a co nf ia nça
det er mino u que se co nf ia sse m à I gr e ja gr ande s po der es, a lé m de
suas fu nçõ es esp ir it ua is. E r a m e xt r ao r dinár io s o s d ir e it o s e
pr ivilé g io s de que s e ar mar a o seu go ver no . Não ho uve va nt agens
que não co lhes se da co nfia nça que go zava. A I gr e ja se t or no u um
est ado dent ro do est ado . Mant inha seu s pr ó pr io s t r ibu na is. Ca so s
que envo lve m não apena s sa cer dot es, ma s mo nges, est udant es,
cr uzado s, viú va s, ó r fão s e aba ndo na do s, er am r eser vado s ao s
t r ibu na is ec les iá st ico s; e se mpr e que o s r it o s o u r egr as da I gr e ja
est ives se m e m cau sa, a I gr e ja se at r ibu ía a jur isd ição so br e a
mat ér ia que lhe e nt r egava t o do s o s casos de t est ame nt o, casa me nt o,
jur a me nt o e, nat ur alme nt e, de her es ia, f e it içar ia e blas fê m ia. E r a m
nu mer o sas as pr isõ es ec les iá st ica s e m q ue o s t r ansgr es so r es po dia m
pur gar po r t o da a vid a as suas o fe nsa s à le i” 28.

Essas características permitiam ao sistema inquisitorial um ar de


oficialidade, mas sua necessidade, certamente demonstrava que, se a Cúria

26
De ve - se a ler t ar par a a d ifer e nça e nt r e publ ic idad e de mét o do s par a a pu blic i dade de
at o s. T ais co nc e it o s não se co nfu nde m. No s ist e ma inqu is it ó r io , o pro ced ime nt o er a
públ ico e fo i no t ó r io que, no bo jo de qua lquer pr o cesso , o bser var - se- ia m int er r o gat ó r io s,
sup líc io s e, no caso de co ndenação , aut o s de fé. Não é o mes mo que u m pr o ces so público
po is é cer t o que o co nt eúdo do s pro cessos inqu is it ó r io s não er a le vado ao co nhe c i me nt o de
t o do s. O do mínio do co nt eúdo das acus açõ es e de t o do subst r at o pr o bat ór io qu e e mer g ia
do pro cedime nt o aplicado , er a exc lu s iva me nt e do co r po me mbr o s da I nqu is ição .
27
NAZ ARI O, Lu iz. Aut o s- de- fé co mo espet ácu lo de mas sa ( S ão P au lo : Asso c iaç ão
E dit o r ia l Hu ma nit as, 2005) , p. 161.
28
WE L LS , Her ber t Geo r ge. Hist ó r ia U niver sa l. v. 4. (E st ado s Unido s do B r as il: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1061.
25

“estava a estender no mundo seu poder legal, estava a perder a sua força sobre
a consciência dos home ns” 29

Afinal, se àquele tempo. Essa característica permitia ao sistema


inquisitorial um ar de oficialidade.

Portanto, em tudo o procedimento inquisitório serviria ao sistema de


processamento dos atos hereges . Restava apenas que fossem devidamente
importadas para a estrutura católica através de atos legítimos de poder, o que
veio a ser observado ao final do século XII.

Referimo-nos, aqui, ao Ad Abolendam do papa Lúcio III em 1184. Foi


com esse decreto que o procedimento adotado pela Santa Inquisição começa a
ganhar corpo.

Mas se o sistema inquisitorial de base católica reputa-se criado pelo IV


Concilio de Latrão, convocado por Inocêncio III em 1215, é com a bula de Ex
Excomuniamus de Gregório IX em 1231 que se tem o arcabouço técnico para o
seu nascimento. Também deste Papa emanou -se a bula Licet ad capiendos ,
que em 1233 foi catalisadora da perseguição aos hereges. Em menos de meio
século, a Igreja Católica converteu sua missão de salvação das almas pelo
amor, em uma luta cruenta contra o mal:

"O s écu lo t r e ze as s ist iu ao sur t o de u ma no va inst it u ição na I gr e ja,


a I nqu is ição papa l. Ant es des se t e mpo , ha via s ido co st ume do papa
fazer o cas io na is invest iga çõ es so br e a her es ia, nest a o u naqu e la
r eg ião . Mas e is que I no cênc io I I I enxer ga ago r a na Or dem do s
Do min ica no s u m inst r u me nt o ma is po der o so de r epr essão . E so b a
d ir eção dessa Or de m, se o r ganiz a a I nqu is iç ão co mo u m per ma ne nt e
inquér it o , um i me nso apar e lho de invest ig ação e r epr essão . E a
igr e ja s e e nt r ega à t ar efa de m inar e e nfr aqu ecer co m o fo go e a
t o rt ur a a co nsc iê nc ia hu ma na, a pr ó pr ia co nsc iê nc ia qu e r es id ia a
sua ú nica esp er ança de do mín io mu nd ia l. Ant es do déc imo t er ce ir o
sécu lo , só r ar ame nt e se infl ig ir a a pe na de mo r t e a her ét ico s e
incr édu lo s. Ago r a, e m u ma ce nt ena d e pr aças pú bl ica s na E ur o pa,
o s dig nit ár io s da I gr e ja, co m so le nidade de ga la pr es id ia m a s ce na s
e m que o s cor po s enegr ec ido s do s seus ant ago nist as, na sua ma io r
par t e gent e po br e e ins ig nif ic a nt e, er am que imado s at é se r eduz ir e m
a c inz as. Ma s co m es ses co r po s que ar d ia m do lo ro sa me nt e,

29
WE L LS , Her ber t Geo r ge. Hist ó r ia U niver sa l. v. 4. (E st ado s Unido s do Br as il: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1080.
26

que ima va- s e e se r eduz ia a c inz as a sua pr ó pr ia gr a nd e mis s ão par a


co m a hu ma nidad e" 30.

A verdadeira implementação da Inquisição se dá, todavia, com a


admissibilidade de seus métodos característicos através da Bula Ad
Extirpanda de Inocêncio IV datada de 1252 e estendida ao mundo em 1254 31.

Por métodos característicos leiam-se aqueles nec essários a alimentar o


sistema persecutório a que havia se dado início no Concílio de 1215. É dizer
que os métodos permitidos pela Ad Extirpanda seriam ferramentas da
Inquisição e de todo procedimento investigatório, que surgia com a nobre
aparência de uma cruzada pela fé, mas sob a sombra sínica do interesse
político na manutenção do poder Católico , em um ocidente onde o controle
social da Igreja pouco a pouco lhe escapava por entre seus dedos 32.

1.3 A transposição do pr oce di mento i nquisitório para a or de m jurí dica

Na Europa do século XIII, as monarquias tomavam conta do cenário


político. Dentre as mais consolidadas, encontravam -se a Inglaterra, França e
Castela 33.

30
WE LLS , o p. cit . , p. 1076.
31
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a. ( Be lo Ho r izo nt e: 2 004, Del Re y) . p. 13.
32
NAZ ARI O, Lu iz. Aut o s- de- fé co mo espet ácu lo de mas sa ( S ão P au lo : Asso c iaç ão
E dit o r ia l Hu ma nit as, 2005) , p. 41.
33
“Ne m t o das essas mo nar qu ia s feud a is a t ing ir a m o me s mo gr au de dese nvo lvi me nt o e de
est abi lid ade ne m pu ser a m, po r t ant o, e m t o da part e, t ão so lida me nt e as base s d as fut ur as
naçõ es eur o pe ias. No mu ndo da cr ist and ade nó r d ica es ca nd ina va, no da cr ist and ade es la va
e hú ngar a da E ur o pa Cent r al e Or ie nt a l as mo nar qu ia s não apr esent ava m as ba s es só lidas
do po nt o de vist a t err it o r ia l. A Ale ma nha e a I t ália est ava m fr ac io nada s po r d iver so s
po der es, sendo o ma is i mpo r t ant e o das c idades, que ser á r e le mbr ado . Rest am, po is, a
I ng lat er r a, a Fr ança e, no co nju nt o da Peníns u la I bér ica, Ca st e la”. ( LE GOF F, J acques, As
Ra ízes med ie va is da E ur o p a; t r adução de Ja i me A. C las e n ( P et ró po lis, R io d e Ja ne ir o :
Vo zes, 2007) , p. 106).
27

Partindo do Reino Ibérico, o controle social permitido à Igreja Católica


através, da Inquisição atraiu a atenção do poder secular em um momento em
que as monarquias demonstravam especial interesse na centralização do
poder 34.

A Península Ibérica foi referencial ness e sentido, afinal, trazer a


Inquisição para o seio da monarquia era especialmente importante. Naquela
região, “cristãos, judeus e muçulmanos haviam convivi do em harmonia até o
século XIV. Mas em 1331, cerca de 30 clérigos e escolares de Gerona
invadiram o quarteirão judeu para tentar incendiá -lo” 35. A partir deste evento,
deflagraram-se perseguições religiosas que conturbaram a paz social, de modo
que a manutenção da ordem e da autoridade real passou a envolver uma
intervenção de cunho religioso, por parte do Estado. Os Reis Católicos, então,
tentaram trazer a Inquisição para próxima da esfera de influência da Coroa .

“I mpo rt ant e r essa lt ar que a P enínsu la I bér ica fo i pa lco de


subseqüe nt es do mina çõ es bár bar as, juda i cas e muçu l ma na s. P or essa
r azão , o s Re is I s a b e la e Fer d ina ndo , apó s a e xpu lsão do s judeu s, e,
e m segu ida, do s mu lçu ma no s, ans io so s par a est abe lec er e m a
unidade nac io na l do jo ve m E st ado espa nho l, pr eo cupado s co m
pr o ble mas r e lig io so s e so c ia is sur g ido s co m a co nver são do s judeu s
e t emer o so s co m a i m ine nt e e mer são de u ma c la sse méd ia, int u ír a m
u m T r ibu na l do S ant o Ofíc io que co ns ist iu e m inst r u me nt o eficaz na
ma nut enç ão do co nt ro le so c ia l e na pr eser va ção da hege mo nia
po lít ica r ecé m- co nqu ist ada” 36.

Os Reis Espanhóis, então conseguiram do Papa Sisto IV, a concessão


para nomear dois ou três bispos para exercer a função de inquisidores nas
dioceses espanholas. Além disso, o mesmo Papa permitiu o estabelecimento
de uma nova Inquisição nos reinos de Castel a e Aragão, onde a nom eação de
Tomás de Torquemada com o inquisidor geral marcou o nascimento da
Inquisição Moderna, conhecida pelo controle direto exercido pela Monarquia.

34
NAZ ARI O, Lu iz. Aut o s- de- fé co mo espet ácu lo de mas sa ( S ão P au lo : Asso c iaç ão
E dit o r ia l Hu ma nit as, 2005) , p. 160.
35
NAZ ARI O, Lu iz. Aut o s- de- fé co mo espet ácu lo de mas sa ( S ão P au lo : Asso c iaç ão
E dit o r ia l Hu ma nit as, 2005) , p. 55.
36
P I NT O, Fe lip e Mar t ins. I nt r o dução cr ít ica ao P ro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 09.
28

Mas se podia ir além. Se o modelo inquisitório foi instrumento


indispensável para que a Igreja Católica reinventasse sua presença nas
cidades europeias do século XII, poderia fazer o mesmo para a Monarquia
naquele instante crucial em que o feudalismo agonizava :

A ut il iz ação do Tr ibu na l do S ant o Ofíc io co mo br aço do po der r ea l


é u m dado ind is cut íve l, so br et udo dur ant e o s sécu lo s XVI e XVI I ,
q uando co ns ist iu no pr inc ip a l inst r u me nt o apt o a pr eser var o po der
do s so ber ano s e co nfer ir e fet ividade a su as det er minaçõ es” 37.

Não sem razão que na Península Ibérica que o sistema persecutório da


Inquisição migrou para o sistema jurídico estatal, afinal, "os domínios dos
monarcas espanhóis compreendiam uma espécie de teocracia, com a Igreja e o
Estado atuando conjugados, a Inquisição espanhola era tanto um adjunto da
Coroa quanto da Igreja" 38.

A partir do bem sucedido exemplo Espanhol, outros Tribunais de


Inquisição foram instalados em Portugal e em Roma, fazendo com que a
influência inquisitorial se estendesse mesmo até as Américas.

Enquanto servia aos interesses seculares, o sistema inquisitivo teve


influência viral nos ordenamentos jurídicos. Neste mome nto histórico de
consolidação dos Estados Nacionais, a formação de um poder judiciário se
apresentou como um requisito de manutenção da ordem.

Para tanto, a inegável organização institucional dos Tribunais do Santo


Ofício, e a aparente eficiência da Inqui sição em identificar a heresia e puni -
la, levava a crer que o sistema inquisitório seria o melhor parâmetro para a
ordem jurídica. Essa opinião era corroborada pelo fato de haver enorme
influência da Igreja Católica nas grandes Universidades da época e na
formação da maioria dos estudiosos em matéria de Direito 39.

37
P I NT O, Fe lip e Mar t ins. I nt r o dução cr ít ica ao P ro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 10- 11.
38
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 81.
39
LE GOF F, Jacque s, As Ra íz es med ie va is d a E ur o pa; t r adução de Ja ime A. C la se n
( P et ró po lis, R io de Ja ne ir o : Vo zes , 2007), p. 173.
29

Contudo, fazer a transposição de procedimentos a partir de uma


plataforma, em tese, espiritual, para um domínio eminentemente secular,
requereu uma adaptação teleológica do sistema inquisitorial . Carece de
esclarecimento.

O procedimento inquisitório começa a se infiltrar na ordem jurídica


secular através do inquérito, conforme explica Foucault:

“T e m- se a ss i m po r vo lt a do sécu lo XI I , uma cur io sa co nju nção


ent r e lesão à le i e a fa lt a r e lig io sa. Le s ar o so ber ano e co met er um
pecado são duas co isa s que co me ça m a se r eu nir . E la s est ar ão
unida s pr o fu nda me nt e no D ir e it o C lás s i co . Dessa co nju nção a inda
não est a mo s t ot alme nt e L ivr es. O I nqué r it o que apar ece no sé cu lo
XI I e m co nsequê nc ia dest a t r ans fo r maçã o na s e st r ut ur as po lít ic as e
na s r e la çõ es de po der, r eor ganizo u int e ir a me nt e ( o u e m sua vo lt a se
r eor ganizar a m) t o das as pr át ic as jud ic iár ias da I dad e Méd ia, da
épo ca clá ss ic a e at é da épo ca mo der na” 40.

O Direito Clássico, portanto, pelo que Foucault nos permi te concluir, se


ocupou precipuamente dessa adaptação. Nele (direito clássico) a investigação
pelo inquérito, estaria na vanguarda dos procedimentos que necessitavam se
adequar à estrutura jurídica secular, a começar pelo que – em abstrato – se
pretendia alcançar através de sua utilização.

Caso se quisesse importar o modelo inquisitorial , o argumento para a


utilização dos seus métodos – como a tortura – e características próprias –
como a sigilosidade – não poderia ser a salvação das almas e a manutenção da
fé, mas a segurança do Estado através da ordem pública e da paz.

As bases inquisitoriais, transportadas para uma esfera jurisdicional


secularizada, não serviriam a combater o pecado, mas o delito que colocasse
em risco a ordem.

E o delito necessitava de um enfrentamento, por parte do sistema,


diferente do que daquele que antes era oposto ao pecado. Isso porque, embora
tanto o sistema eclesiástico quanto o laico sejam seletivos em relação aos

40
FOUC AU LT , M ic he l. A Ver dade e as F o r mas Jur íd ica s . ( R io de Jane ir o : 2005, Nau) . p.
74.
30

acusados, a Igreja necessitava se fazer presente por poucos e em blemáticos


autos de fé, que serviriam disseminar espetacularmente o medo nos corações
heréticos. O Estado, por outro lado, precisa se fazer presente através do
conhecimento e sanção de cada pequeno delito. A ordem social prescindia de
um controle tanto qua nto mais cerrado 41. Por isso, o meio jurídico necessitava
que o procedimento inquisitório fosse mais operacionalizável e dinâmico , do
lhe era requisitado pela Inquisição.

Isso se nota pela normativização sistemática das regras de


procediment ais da persecuç ão criminal. Se antes o Manual do Inquisidor e o
Martelo das Feiticeiras - que posteriormente serão apresentadas - davam
orientações genéricas aos inquisidores, diplomadas como as Ordenações
Manuelinas traziam normas de aplicação imediata e irrestrita pelo s juízes
laicos 42.

O transporte, para o sistema jurídico, do procedimento antes justificado


pela expiação dos pecados , reivindicou mudanças, mas , na sua origem
histórica, permaneceu incrustada a noção de um mal anterior ao procedimento
investigatório, como motivador incondicional de seus métodos característicos,
tornando-se, posteriormente injustificáveis quando a noção de verdade
construída no processo se apresenta como mais condizente com o projeto
iluminista do século XVIII 43.

De qualquer maneira, com a formação de sistemas jurídicos nacionais à


imagem da sistemática de perseguição de hereges da Inquisição , como na
Espanha e depois Portugal e França, houve um aumento abrupto de
processamentos sob bases inquisitoriais 44. Leia-se : os procedimentos
característicos adotados pela Igrej a Católica, com as necessárias adaptações,
passaram a servir amplamente ao Estado no exercício jurisdicional.

41
Não por me no s, que a ut il izaç ão da t o rt ur a r ecr udesceu e se t or no u ma is a mp la a par t ir
do sécu lo XV. ( T E I XE I RA, F lá via Ca m e llo . Da T o rt ur a. ( Belo Ho r izo nt e: 2004, De l Re y) .
p. 75).
42
T EI XE I RA, o p. cit . , p. 73.
43
Co nfo r me s e apr ese nt ar á, dent r o da pro po st a dest a pesqu isa, no cap ít u lo 4, quando da
de mo nst r ação do papel hu ma nist a no P rocesso P ena l.
44
Vi de no t a n. º 33.
31

O Processo Judicial abduziu a procedimentalização de perseguição aos


hereges de tal maneira, que nas áreas do Direito em que a pretensão punitiva
do Estado se assemelha à da Santa Sé, como é o caso da esfera Criminal, o
próprio sistema passou a receber a nomenclatura de inquisitório 45.

Não se pode perder de vista que, de um elemento de manutenção de


poder, pela igreja, até a transformação em processo judicial, o sistema
inquisitório passa por modificações em sua estrutura operacional, passando
das mãos de inquisidores escolhidos pelo Papa 46, à Juízes escolhidos pelo Rei.

Inicialmente os objetivos da Inquisição orientavam o proc esso


inquisitivo. O procedimento, com todos seus elementos característicos, era
voltado a cumprir as metas políticas da Igreja Católica e por isso a expiação
de pecados e salvação da alma eram justificativas invocadas p ara toda
arbitrariedade do sistema, c om os procedimentos secretos, os imensos poderes
instrutórios dos inquisidores e, como não poderia deixar de ser, o emprego da
tortura. Todavia, depois que a esfera jurídica estatal abs orve a sistemática
inquisitória, ao processo penal não resta escolha a não ser buscar, nas
finalidades do Estado, justificativas análogas àquelas dadas pela Igreja
quando da implementação do sistema no século XII. É o papel que passa a ser
conferido à manutenção da ordem pública 47.

Daí parte a questão de quão pernicioso é um sistema processual que,


herdado pela ordem jurídica moderna, é analogamente justificável pelos fins
perseguidos pela Inquisição (relativos à sal vação da alma) .

Para que seja possível, em esforços posteriores, d emonstrar


apropriadamente a crítica iluminista à busca da verdade através da tortura nos
procedimentos investigatórios inquisitoriais, faz -se necessário deter -se, neste

45
Ad m it e - se, a par t ir do Code d’ I nst ruct i on Cri mi nel l e, a co exist ênc ia de u m s ist e ma
inqu is it ivo na fa se pr é pr o cessua l, co m u m s ist e ma a cusat ó r io na fas e jud ic ia l ( Vi de po nt o
4. 3) .
46
Na E spanha er a d ifer e nt e. A I nqu is iç ão E spanho la " não er a u m inst r ume nt o do P apado.
P r est ava co nt as dir et a me nt e a Fer na ndo e I sabe l". ( B AI GE NT , Mic hae l. A I nqu i s ição ( Rio
de Jane ir o : I mago , 2001), p. 81).
47
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a. ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) . p. 76.
32

instante, da análise dos elementos que compõe a ritualística de tais


procedimentos.

Antes, vale esclarecer que, por procedimento, assume-se o conceito


adotado por Frederico Marques, segundo o qual, o procedimento se reduz a
ser uma coordenação de atos em marcha, relacionados ou ligados entre si pela
unidade do efeito final 48.

1.4 Elementos do pr oce di mento investigatório inquisitorial

Conforme se afirmou, a base teórica utilizada para justificar a


ritualística empregada pela Inquisição foi a doutrina católica.

É interessante notar como a Igreja se esforçou para buscar a


justificação para o s métodos inquisitorial na base da doutrina cr istã. Textos
sagrados não escaparam desta intenção, de modo que Cordero aponta uma
referência retirada da Bíblia e usada pela Inquisição:

“Lo d ice n fue nt es bíbl ic as: cua ndo L e lle ga u m c la mo r so br e


S o do ma y Ga mo r r a, Ya hvé de sc ie nde a ver qué est á o cur r ie nd o , y
luego ma nda a do s ánge le s a impo ner o rden”. 49

Logo, o sistema processual emergente apresenta -se como em completa


sintonia com esta fonte doutrinária, servindo como “efetiva” ferramenta de
salvação da humanidade e expiação dos pecados. Através das fer ramentas
institucionalizadas, os agentes da Santa Inquisição tornaram -se especialistas
na perseguição e abate do mal , e o mal estava em todo aquele obstáculo aos

48
M ARQUE S , Jo sé Fr eder ico . E le me nt o s do D ir e it o P ro cessua l P e na l . v. 1. ( Ca mp inhas:
2009, Mil le nniu m) p. 329.
49
CORDE RO, Fr a nco . P r o cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 20.
33

interesses da igreja, como se observou inicialmente em relação aos


movimentos religiosos Valdi stas e Maniqueístas já citados 50.

O caminho da laicização do procedimento inquisitório começou pela


ampliação da “jurisdição” da Inquisição Católica, para além da mera
perseguição ao s Hereges, conforme esclarece Nicolau Eymérico :

“T o do s o s her eges se m e xce ção est ão suje it o s à jur isd ição do S ant o
O fíc io e fo r a ist o exist e m de l it o s que, se m ser pr o pr ia me nt e
her ét ico , suje it a m o s que co met e m ao t r ibu na l da I nqu is iç ão ” 51.

Essa expansão da compet ência originalmente atribuída ao Tribunal do


Santo Ofício (perseguição dos heréticos) , demonstrava que a ritualística do
Santa Inquisição serviria como mecanismo de controle social , afinal o
controle do poder punitivo é o próprio exercício de controle social:

“Na r ea lid ade es sa pr át ica t inha po r fim a bu sca da so lução pa r a o s


cr imes – o u t alvez pe cado s, fo r ma ndo os de lit o s de lesa - ma je st ade
d ivina – at r avé s de t o do s o s me io s po ss í ve is, inc lu s ive a o co rr ênc ia
nat ur a l da t o rt ur a, uma vez que o e xer c íc io do po der so ber ano na
punição de cr ime s é se m dú vida u ma das par t es esse nc ia is na
ad min ist r ação da just iça, co mo a fir mar a Fo ucau lt ”. 52

Assim, quando a "ordem pública" é chamada a substituir a "luta contra


o mal" e o procedimento inquisit ório passa a ser empregado como instrumento
de controle social pelo Estado, surge , no sistema jurídico laico, um sistema

50
Det endo mét o do s “infa l íve is ” de inve s t igação da a lma, a I nqu is ição afir ma va - se co mo
inst ânc ia pr iv ile g iada d e insp ir aç ão d ivina par a apa nhar su spe it o s, ar r ancar co nf issõ es e
co ndenar o s inim igo s da ma ssa . E la os det ect ava ent r e o s ele me nt o s so cia is que ma i s
inco mo dava m o E st ado e a I gr eja, e dos qua is po d ia t ir ar pr o ve it o. S eus quali f icado r es
exa m ina va m as pr o vas e acu saçõ es fo r mu lada s co nt r a o s r éus e det er mina va m s e o s fat o s
nar r ado s e nvo lvia m her e s ias, c e nsur a ndo , a lé m do s livr o s e impr e sso s, ima ge ns e p int ur as.
E les det inha m o que ho je c ha mar ía mo s de “co nhec i me nt o cie nt íf ico ” do Ma l e que na
épo ca se e nt end ia ser o “co nhec i me nt o t eo ló g ico ” par a ide nt if icar o s her eg es – u m
co nhe c ime nt o “cer t o ”, “just o ”, “t r ascend ent e”, que não cabia ao ho me m co mu m e que esse
devia s i mp les e mnt e ac at ar , po r vir de u ma aut or idade leg it i mada po r Deus. ( NAZ ARI O,
Lu iz. Aut o s- de- fé co mo esp et ácu lo de massa ( S ão P aulo : Asso c iação E d it or ia l H u ma nit a s,
2005) , p. 81- 82).
51
E YME RI CO , Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur uá E dit o r a, 2009), p. 97.
52
S AMP AI O, De nis. A Ver dade no P ro cesso P ena l. A per ma nê nc ia do S ist e ma
I nqu is it o r ia l at r avé s do discur so so br e a ver dade. ( R io de Jane ir o : 2010, Lume n Jur is) . p.
119.
34

penal de natureza inquisitório. Então, diversas daquelas características


anteriormente atribuídas a o sistema persecutório da Santa Inquisição , como a
sigilosidade, a valorização do procedimento escrito, et cetera, são replica dos
no processo penal laico. Dentre elas, três elementos dessa "importação",
revelam-se essenciais para o que propôs para a pesquisa desenvolvida : a
verdade real, o sistema de provas t arifadas e a utilização da tortura.

1.4.1 Verdade real

O princípio da Verdade real alinha -se com uma estrutura de poder


teocentrista da Igreja Católica, que se edifica a partir de mitos e dogmas.

A doutrina Católica estabelece a existência de um mal ao qual o homem


é eternamente inclinado a participar através do pecado. O mundo material,
essencialmente perverso, corrompe o fiel para longe do Reino de Deus e o
atrai para o erro capital. Desta maneira, o papel da Igreja de Deus co mo guia
espiritual do homem na T erra, é resguardá -lo contra as tentações do Demônio,
fonte de t odo mal.

Esta lógica de enfrentamento do pecado traz um elemento essencial para


o sistema inquisitorial: a inegável existência de um mal anterior.

Ora, se o homem será sempre pecador e o mal é uma força eternamente


presente no mundo contingencial, então o enfrentamento do pecado parte,
antes de mais nada, de combater sua existência no meio social.

Nesse sentido, passar pelo procedimento inquisitório é servir de objeto


para a certificação de uma situação anterior presumidamente existente 53. O

53
“P r o vist o de inst r ume nt o s vir t ua lme nt e ir r es ist ible s, e l inqu is ido r t o rt ur a lo s pac ie nt es
co mo qu ier e ; de nt r o de su mar co cu lt ur a l pe s im ist a e l a ni ma l hu ma no nace cu lpa ble ;
est ando co rro mp ido e l mu ndo ba st a excavar e m u m pu nt o cualqu ier a p ar a qu e a flo r e e l
35

papel do inqu isidor em tal contexto é o de estabelecer qual é esta hipótese


real que deverá ser co mprovada e então verificar sua existência, d aí sua dupla
função de acusar e julgar.

O que se assume como a verdade real no processo Inquisitorial é


justamente a hipótese predeterminada pelo investigador baseada na eterna
propensão da humanidade ao pecado.

" Ass i m, c it a ndo Bet t ia l, r et r at a S a lo que o pr o cesso inqu is it ivo é


in fa l íve l, po is o r esu lt ado é det er minad o pr evia me nt e pe lo pr ó pr io
ju iz - acus ado r . A sent enç a é pot est a t iva e p le na, e, na ma io r ia das
vez es, não ad mit e r e cur so , po is o d ivino e ncar nado pe lo S ant o
O fíc io não se co nt r adiz e não ad mit e quest io na me nt o, o u se ja, é
per fe it o e não suscet íve l ao er ro. Dessa fo r ma, Ju iz - Acus ado r
fo r mu la u ma hipó t eses e r ea liz a a ve r if icaç ão . A ver dade ad m it ida
co mo ‘adaequ at io r e i et int e lle ct us’ é at ing íve l e de ve ser
a lca nçada. E st a ver dade, ver dade mat er ia l [ ver dade r ea l] , já e xist e
co mo hipó t ese na me nt e do Ju iz - Acus ad o r, deve, po r o ut ro lado , ser
at ing ida so lip s ist ica me nt e. O c o nt r adit ór io per t ur ba est a
inve st ig ação . A po lu ição da pr o va daquela ver dade já po st ulada é o
ma io r de t o do s per igo s. Da í r esu lt a o s i g ilo do pr o cesso , a ausênc ia
de ind ic iado o u do seu defe nso r na aquis iç ão da pro va que po der á
ser vir par a fu nda me nt ar a s e nt ença de c o ndena ção . Deve - se le mbr ar
a inda que o mo de lo inqu is it ó r io não se r est r ing ia ape na s no
pr o cedime nt o cr imina l, ma s na cu lt ur a so c ia l e na l inguag e m
jur isd ic io na l. P o rt ant o , não só a fo r ma dess e s ist e ma de ver ia ser
ide nt ific ada, ma s, pr inc ipa l me nt e, sua essê nc ia” 54.

Assim o inquisidor deve formular a essa verdade pressuposta que


servirá de parâmetro para buscar novos indícios e organizar as prova s
colhidas. Tudo com o objetivo de comprovar a hipótese formulada, como
peças de um quebra -cabeça cuja tela final foi criada por ele mesmo:

“E l inqu is ido r la bo r a mie nt r as qu ier e, t r aba ja ndo e m secr et o so br e


lo s a ni ma le s que co nfies a n; co nce bida uma hipó t es is, so br e e lla
ed if ica ca ba la s induct iva s ; la fa lt a de l debat e co nt r adict or io abr e
u m P o rt il lo ló g ico a l pe nsa m ie nt o par ano ide ; t r amas a la mb icad as
ec lip sa n lo s hec ho s. Dueño de l t abler o , d ispo ne lãs p ie zas co mo Le
co nvie ne: la inqu is ic ió n es u m mu ndo ver ba l s e me ja nt e a l o nír ico ;

ma l. E st e a xio ma e li m ina t o do escr úpu lo de la invest iga c ió n” ( COR DE RO , Fr anco .


P ro ced im ie nt o P ena l, T o mo II (S ant a Fé de Bo got á: T emis, 2000) , p. 23).
54
S AMP AI O, Denis A Ver dade no P ro cesso P ena l. A per ma nê nc ia do S ist e ma I nq u is it o r ia l
at r avés do discur so so br e a ver dade ( R io de Jane ir o : 2010, Lume n Jur is) . p. 116 -117.
36

t ie mpo s, lugar es, co sas, per so na s, aco nt ec im ie nt o s fluct úan y se


mue ve n e m cuad r o s ma nipu la br le s”. 55

Assim, o exercício de convencimento do julgador, atualmente exercido


pela defesa e acusação, naquele cenário era um exercício que partia do
julgador em demonstrar , em um exercício retórico de auto legitimação , o
acerto em suas press uposições acusatórias.

Adiante, o fundamento da verdade real foi basilar para todo sistema


inquisitorial. A Igreja Católica conseguiu forçar sua presença nas cidades da
Baixa Idade Média em grande parte pela certeza de que havia um mal a ser
perseguido. Afinal, o medo do sobrenatural ainda assombrava o imaginário
cristão e a Santa Sé indiscutivelmente conseguiu se aproveitar disso para
justificar as Cruzadas e os Tribunais de Inquisição.

Duas das principais obras de referência inquisitorial contemporânea s ao


período, o Manual do Inquisidor de 1525 e o Martelo das Feiticeiras de 1484,
são claras em demonstrar como a noção de um mal pressuposto pelo
Inquisidor é essencial para ju stificar o procedimento adotado .

O Martelo das Feiticeiras discorre amplament e sobre a existências das


bruxas 56 e a forma como se relacionam com as forças dos demônio afim de
corromper o homem 57. A existência de um mal absoluto e anterior ao
procedimento investigativo (tratado posteriormente na obra) é ineg ável. Os
autores apenas teo rizam coerentemente a correlação entre esta maldade e o
mundo material.

55
CORDE RO, Fr a nco . P r o cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 23.
56
"Do que já se d isse, t ir a mo s a segu int e co nc lu são : a o pinião ma is cer t a e ma is c at ó lica é
a de que exist e m fe it ice ir o s e br u xas que , co m a a juda do dia bo , gla ças a u m pa ct o co m e le
f ir mado , se t o r na m cap azes, se Deus a ss i m per mit ir , de causar ma le s e fla ge lo s aut ênt ico s
e co ncr et o s, o que não t o r na impr o vá ve l ser e m t a mbé m capa zes de pr o duz ir ilu sõ es,
vis io nár ia s e fa nt ást ica s, po r algu m me io e xt r aor dinár io e pecu liar ". ( KR AME R, H. ;
S P RANGE R, J. O mar t e lo das fe it ic e ir a s . ( Rio de Jane ir o : Ro sa do s t empo s, 2011) p. 56).
57
"S e ja po r so lic it ação das br u xas o u nã o , o s demô nio s são capaze s de po ssu ir e fer ir o s
ho me ns de c inco mo do s difer e nt es. Quando o faze m po r ins ist ênc ia das br u xa s , ma io r a
o fe nsa a Deu s e ma io r s eu po der par a mo lest ar o s ho me ns ". ( KR AME R, H. ; S P RANGE R,
J. , o p. cit . , p. 266) .
37

Por sua vez, o Manual dos Inquisi dores, já referenci ado neste trabalho,
coloca naquele que é submetido à Inquisição a sina de pec ador antes mesmo
de qualquer processo de conhecimento 58. Não se preocupa em saber se o
investigado é de fato culpado, mas em localizar o pecado e identificar sua
extensão. Ou seja: o mal está no mundo e o papel do inquisidor deve ser
ativamente persegui -lo.

Franco Cordero bem sintetiza a mentalidade da época:

“Na ce u ma míst ic a: descu br e y e l i m ina her e j ías o de lit o s, co mbat e


pot enc ia s ma lé f icas e m u ma cr uzada co t id ia na ; e s mér it o su yo que
e l mu ndo no t er mine de vo r ado po r e l d iablo ; se fuer a neut r a l, ser ía
có mp l ice de l in f ier no y lo s escúpu lo s so n co bar d ia. 59”

Existindo uma verdade real, os procedime ntos de investigação seriam


sempre razoáveis. Afinal, o que é o bem estar de um a pessoa perto da
salvação de toda a humanidade? O que estava em jogo não era a ordem
pública, mas a prevalência do bem sobre a influênc ia do mal.

Não havia garantia, direito ou valor que se opusesse ao método


investigativo inquisitório. E ainda não se pudesse falar de Direitos Humanos,
a própria noção cristã de piedade e respeito ao próximo não representava m
qualquer obstáculo para o trabalho exercido pelo Tribunal do Santo Ofício ,
pois desde o século XI a ideologia de luta de bem contra o mal começava a se
sobrepor à benevolência cristã para com o próximo.

Ademais, na concepção criada, o herege não era entendido como digno


de qualquer benesse. Também, tamanha a crença na infalibilidade do juízo de
Deus através da Inquisição, que não havia dúvidas de que somente os infiéis
seriam condenados por ele. Tão cega era esta percepção, que Heinrich Kramer
afirma:

58
"Nu nca ha ver á de so br a a pr udê nc ia, a c ir cu nspecção e a dur eza do inqu i s id o r no
int er r o gat ó r io do r éu. Os her ege s s ão mu it o ast ut o s e m d is s i mu lar seu s er r o s, fing ir
sa nt id ade e e m ver t er em fing ida s lágr i m as par a po der em abr a ndar o s ju íz es ma is r igo ro so s.
U m inqu is ido r deve se ar mar co nt r a essa s ma nha s, supo ndo sempr e que o quer e m enga nar ".
( E YME RI CO, Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur uá E dit o r a, 2009), p. 03) .
59
CORDE RO, Fr a nco . P r o cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 21.
38

"Or a, est a mo s aqu i a no s r e fer ir a fa t o s r eais: não é de no sso


co nhe c ime nt o que a lgu ma pe sso a ino ce nt e já t enha s ido pu nida po r
mer a su spe it a de br u xar ia: Deus nu nc a há d e per mit ir que is so
aco nt eça" 60.

Quando é transportada para o sistema jurídico, a busca da verdade real


deixa de ser um a busca pelo pecado e passa a ser pelo crime.

Contudo essa transposição não altera a forma como o sistema enxerga o


investigado, pois a sua culpa continua sendo um pressuposto da investigação
que legitima o uso dos métodos necessários à averiguação. Fouca ult esclarece
a questão ao explicar o fundamento de utilização da tortura:

"Co mo po de uma pe na ser ut iliz ada co mo u m me io , s e per gu nt ar á


ma is t ar de. Co mo se po de fazer va ler a t ít ulo de cast igo o que
dever ia ser u m pr o cesso de de mo nst r ação ? A r azão est á na ma ne ir a
co mo , na épo ca c lá ss ica, a just iç a c r imina l faz ia fu nc io nar a
de mo nst r ação da ver dade. As d i fer e nt es part es da pro va não
co nst it u ía m o ut ro s t ant o s e le me nt o s neut ro s; não lhe s ca bia ser e m
r eunidas nu m fe ixe ú nico par a dar e m a cer t eza fina l da cu lp a . Cada
ind íc io t r azia co ns igo u m gr au de abo minaç ão . A cu lpa não
co meç a va u ma vez r eu nida s t o das as pr o vas ; peça po r peça, e la er a
co nst it u ída po r cada um do s e le me nt o s que per mit ia m r eco nhecer
u m cu lpado . Ass i m u ma me ia - pr o va não de ixa va ino ce nt e o suspe i t o
enqua nt o não fo sse co mp let ada; faz ia de le u m me io - cu lp ado , ; o
ind íc io , apenas le ve, de u m cr ime gr ave, mar ca va a lgué m co mo “u m
po uco ” cr im ino so . E nfi m, a de mo nst r ação em mat ér ia pe na l não
o bedec ia u m s ist e ma du a list a ; ver da de ir o o u fa lso ; mas u m
pr inc íp io de gr adação co nt inua: u m gr a u at ing ido na de mo nst r ação
já fo r ma va u m gr au de cu lpa e imp l ic ava co nseque nt e me nt e nu m
gr au de punição ” 61.

Assim, busca da verdade real, pelo sistema investigatório inquisitorial,


vai ao encontro desta verdade ontológica – de um indivíduo previamente
pecador 62 – e com ela é bem sucedida ao justificar os métodos inquisitórios.

60
KR AME R, H. ; S P RAN GE R, J. O mar t elo das fe it ice ir as. ( R io de Ja ne ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) p 277.
61
FOUC AU LT , M ic he l. V ig iar e punir ( P er t ró po lis: Vo zes, 2010) , p. 43.
62
U ma r e fle xão nece ss ár ia é de que, no ca mpo da fé, e xist e u ma do ut r ina que est abe le ce a
exist ê nc ia per pét ua de u m ma l que t ent a o ser hu ma no . No mu ndo do s ho me ns, co nt udo, o
cr ime não é pr edet er minado pe las le is. S ua ver if icação não po de ser pr esu mid a , po is não
se supõ e sua e xist ênc ia. Af ina l, o cr ist ianis mo não vis lu mbr a u m mu ndo se m pe cado , ma s
é po ss íve l u ma so c iedad e se m cr ime s. P o r isso me s mo a no ção de ver dade r ea l é , já na sua
o r ige m, per nic io sa à fo r ma ção de u m D ir e it o P ro cessua l P e na l co nst r uído a par t ir do
pr inc íp io do E st ado de I no cênc ia ( Co ns t it u ição Feder a l de 1988, ar t . 5.º , LVI I : ningué m
ser á co ns ider ado culpado at é o t r âns it o em ju lgado de sen t enç a pena l co nde nat ó r ia) .
39

Denis Sampaio, citando Jacinto, é feliz em demonstrar que nisso reside o


verdadeiro mérito da Inquisição:

“P o r t ant o, de fo r ma r esu m ida, e xpõ e Jac int o que a inqu is iç ão ,


enf i m, não inve nt o u a t ort ur a, mas o me io qua se per fe it o par a
just if icá - la: o s meca nis mo s do s is t ema inqu is it ó r io . E sses
meca nis mo s são per fe it a me nt e difu nd id o s à cult ur a so c ia l, o que
aut o r iza su a ap lic ação ind is cr im inada. O her ege é aqu e le que se
r ecusa a r epet ir o d iscur so da co ns c iê nc ia co let iva. I nt er pr et ando a
fo r ma ma nua l ís it ica d a I nqu is ição , Bo ff e xpõ e que cur io s ís s i mo s
são o s ‘dez t r uques do s her eges par a r es po nder se m co nfe ssar ’ e o s
‘dez t r uques do inqu is ido r par a neut r ali zar o s t r uques do s her eges’.
A ma l íc ia d a me nt e do inqu is ido r é co mp let a. A a st úc ia é
r efina d íss i ma. Co mo faz ia m o s in t erro gador es mi l it ar es da
r epr essão po lít ica, deve - se, d iz o Manu a l, dar a impr e ssão de que
sa be t udo ” 63.

E se é através da busca da verdade rea l que se justifica o sistema


(inquisitório), então a verdade real é referencial tanto para o sistema de
provas tarifadas como para a utilização da tortura, ainda que de modo
intrínseco.

1.4.2 Siste ma de pr ovas tarifadas

Partindo da presumida possibilidade de se alcançar a verdade real, todo


o sistema inquisitório se apresenta direcionado à perseguição realidade
ontológica.

Em outras palavras, todo o sistema se volta para encont rar a verdade


(pecado) presumida pela acusação.

63
S AMP AI O, De nis. A Ver dade no P ro cesso P ena l. A per ma nê nc ia do S ist e ma
I nqu is it o r ia l at r avé s do discur so so br e a ver dade. ( R io de Jane ir o : 2010, Lume n Jur is) . p.
119.
40

Especialmente quanto ao elemento probatório, percebe -se a função da


prova absolutamente dirigida a atender unilateralmente às intenções
acusatórias. Logo, não se confere qualquer valor defensivo à prova, servindo,
esta, sempre a buscar o mal e jamais a comprovar a inocência. Trata-se de um
sistema que concede ao julgador uma parca liberdade na avaliação das provas,
já que seu papel fica adstrito a colhê -las de acordo com o critério legal.

“A co njug ação de fo r ças par a se c hegar a u ma d ec isão co nde nat ór io


r et r at a a car act er íst ica inde lé v e l de ss e mo de lo inqu is it ó r io , at é
po r que a pr esunção de cu lpa bi lid ade da que le s que r espo nd ia m pe la
supo st a pr át ica de u m de l it o er a a r egr a. E spe lha va - se, as s i m, nu ma
a mp la d iscr ic io nar iedade d e o bt enção de e le me nt o s fát ico s pe lo
inve st ig ado r , que t ambé m p o ssu ía a função de acusar e ju lgar .
Co mo hist o r ic iza Fo ucau lt , o suspe it o , enqua nt o t al, mer ec ia
se mpr e u m cer t o cast igo ; não se po dia s er ino ce nt e me nt e o bjet o de
pesqu isa. A su spe it a imp l ic a va ao me s mo t empo , da part e do ju iz
u m e le me nt o de de mo nst r ação, da par t e do acusa a pr o va d e u ma
cer t a culpa, e da par t e da punição uma fo r ma il i m it ada de pe na. U m
suspe it o que co nt inu ass e su spe it o não est ava ino ce nt ado por isso ,
ma s er a par c ia lme nt e punido " 64.

Atra vés do formalismo, o legislador restringe a o papel do juiz,


impedindo-o de avaliar a prova pela sua robustez e capacidade probatória. Ao
inverso, estabelece um valor diferenciado para cada tipo de prova durante o
procedimento.

A partir de tal valoração , estabelece -se, com Gre gório IX, uma estrutura
de hierarquia dentro do sistema de provas. Ou seja : certas provas têm mais
valor que outras no exercício de b usca da verdade pelo inquisidor:

"O pr o ced ime nt o inqu is it ó r io fa vo r ece o sur gime nt o de minuc io s a


r ede de r egr as so br e o va lo r de cada me io de pro va, que r e sult ar á no
cha mado r eg ime de pr o vas leg a is. Gr egó r io I X pro mo veu u ma
c la ss i f icação das pr o vas, ar ro la ndo a co nfiss ão ( dest acada das
de ma is, po r quant o co mo ver e mo s a co nf iss ão no pr o cesso pena l
canô nico e m ver dade d ispe nsa a pr o va) , as t est emu nhas, o s
do cume nt o s, as pr esunçõ es e o jur a me nt o " 65.

64
S AMP AI O, o p. cit . , p. 116 - 117.
65
BAT I S T A, N ilo . Mat r ize s ib ér ica s do s ist e ma pe na l br as i le ir o . ( Rio de Ja ne ir o : 2002,
Re va n) . p. 235.
41

A lógica criada a partir desta estrutura permite afirmar um sistema de


tarifação de provas, de modo a se conceber algumas provas como melhores a
alcançar determinada qualidade de certeza, do que outras .

O julgador fic a adstrito a o valor particular de cada prova segundo


estabelecido abstratamente pelo legislador, embora seja dele (julgador) a
autoria da hipótese acusatória que se deseja comprovar. Deverá então seguir o
extremo formalismo previsto pelo procedimento, a fi m de ordenar a marcha
processual e utilizar oportunamente os métodos apropriados à colheita das
provas.

Note-se, por exemplo, o evidente papel das provas testemunhais n a


formulação da tese acusatória. Embora o sistema lhes dê especial relevo no
alcance da "verdade", ele também determina uma ritualística em sua
apreciação:

“Na s causa s d e her es ia, po r r espe it o à fé, são ad m it ido s


t est e mu nho s de exco mu ngado s, o s cú mp l ice s do acusado e infa mes
e o s r éus de u m de l it o qua lquer . P ar a fins d e her es ia, e st es
t est e mu nho s va le m co nt r a o acusado e nu nca a seu fa vo r . [. .. ] E m
r igo r duas t est emu nhas ba st a m par a fa lar e m se nt ença de f in it iva
co nt r a o her ege, é o que no s par ece ma s co nfo r me à equ id ade não
co ns ider ar est a pr o va co mo p le na, qua nd o não se po de ju nt ar a e la a
má fa ma do acusado , indu lg ê nc ia e s t a neces sár io a po r que no
pr o cesso de her es ia não se s egue a pr át ica do s de ma is t r ibu na is,
ne m se faz a car eação do r éu co m a s t est emu nhas, e ne m se d e ixa
sa ber que m são est as, pro vidê nc ia s t odas t o mada s e m de fe sa da
fé”. 66

Fica claro que, n este modelo de pesos di versos, a confissão do acusado


ganha o papel de regina probarum, ou rainha das provas. De fato, a
identidade entre a doutrina que fundamenta a liturgia Católica e aquela sobre
a qual o Tribunal da Santa inquisição se j ustifica, permite a Confissão ganhar
essa importância como elemento de prova.

Transformada em sacramento por Inocêncio III, a confissão torna -se o


principal instrumento de descoberta dos pecados. A busca dos fi éis pela
salvação e perdão pelas faltas cometi das perante a Deus, faz com que surja

66
E YME RI CO, Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur uá E dit o r a, 2009), p. 21 - 23.
42

uma ilusão de que a realidade pecaminosa poderia eficientemente ser


alcançada pela confissão do pecador.

Mandamento eclesiástico aparentemente pouco relevante, a confissão,


revela a intenção do então Papa, Inocêncio II I, em estender a presença da
Igreja Católica. Não mais até os Mouros e além do Ocidente, mas na
residência de cada fiel, entre as famílias católicas e na intimidade de cada
um.

Inocêncio desejava que o pequeno clero se tornasse os olhos e ouvidos


da Igreja dentro das casas dos fiéis e assim a heresia poderia ser combatida e
o poder da Igreja infiltrado nos capilares da sociedade.

Mais do que uma decisão com conotações políticas subtendidas, a


sobrevalorização da confissão traz consigo uma perigosa ideia int rínseca: há
sempre uma verdade a ser descoberta.

Este mito, quando transportado para a Inquisição, torna a confissão uma


prova de especial valor. Passa então a encabeçar, acima de qualquer elemento
concretamente mais verossímil, o sistema abstrato de prova s legais.

Aquele que se torna objeto de investigação é amplamente induzido a


confessar, já que apenas a con fissão serve sozinha a embasar uma sentença
condenatória e dispensa maiores esforços investi gativos. Inclusi ve, tamanho
era o caráter definitivo da c onfissão, que no plano secular, por vezes a
confissão era pressuposto para a condenação à pena de morte:

“A ju st iça co mu m e xig e que a br u xa nã o se ja co nde nada à mo r t e a


me no s que t enha s ido dec lar ada cu lp ada po r pró pr ia co nfis são ” 67.

Para tanto, não apena s a tortura se apresentava como método (embora o


mais eficiente), conforme se verá adiante, mas toda forma de engodo e astúcia
que se fazia possível:

67
KR AME R, H. ; S P RAN GE R, J. O mar t elo das fe it ice ir as. ( R io de Ja ne ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) p. 428.
43

“U m d e les, s egu ndo Fr e i Ma nu e l C a lado , er a a fr aud e. Os


ho la nde ses ma nd a va m ao s co nde nado s, co mo se fo sse m sacer do t es
cat ó lico s, pr ed ica nt es ca lvin ist as: lo go acudia m o s past o r es
pr ot est ant es “co mo lo bo s car nice ir o s e lhe s met ia m e m ca beç a que
er a m S acer do t es, e co nfe sso r es, e que lhe s co nfes se m a cu lpa,
po r que havia m pr eso s, que e le s o s faz ia m a judar ia m a liv r ar , e co m
suas r azõ es s at ír ica s faz ia m vo mit ar a a lgu ns ig no r ant es as cu lpas,
que se não po dia m ver if icar s e não por suas co nf is sõ es, e lo go ia m
d izer ao s do supr e mo Co ns e lho , e a o F isca l o que o s po br e s
ig no r ant es lhes d iz ia m, às veze s d ize nd o de suas ca s as o que ne m
po r pensa me nt o t inha m o u vido ; e o s min ist r o s da ju st iça, e o F isc a l
só co m o s d it o s do s P r edic a nt es pronu nc ia va m a se nt ença de
mo r t e” 68.

Perceba-se que, não obstante a existência de um procedimento formal


para a instrução probatória, a confiss ão do investigando supre qualquer
deficiência ou ilicitude observada na colheita das provas.

Ademais, todo o conteúdo trazido aos autos volta -se diretamente a obter
a confissão, como se alcançá -la fosse a chancela final de que o sistema é
eficiente em perseguir o herege.

E desta forma se estabelece a relação entre os níveis de tarifação de


prova. Aquelas co m menos valor se voltam para servir aquelas de maior valor,
e assim sucessivamente até que ao fim todas sejam empe nhadas a alcançar a
confissão:

“T e ndo t o mado t a is pr ecauçõ es, e depo is de dar à br uxa Água Be nt a


par a be ber , que t o r ne a int er ro gá - la, exo r t ando - a a co nfe ssar a
ver dade de t o do mo do , co mo no int er r o gat ó r io ant er io r . E enquant o
e la est iver se ndo susp e nsa do c hão , caso se ja t ort ur ada dessa fo r ma,
que o Juiz Le ia o u faç a ler par a e la o s d epo ime nt o s das t est e mu nhas
co m o s seu s no me s, d iz e ndo : “Vê ! Fo st e co nde nada pe la s
t est e mu nhas. ” Alé m d is so , se as t est e mu nhas s e mo st r ar em
d ispo st as a co nfr o nt á - la face a fac e, o Ju iz de ver á p er gunt ar - lhe se
ir á co nfe ssar o s cr ime s caso co lo que as t est e mu nhas p er ant e e la. S e
co nse nt ir , que se ja m t r az ida s a s t est emunha s e qu e po st em d ia nt e
de la, par a que se ja co ag ida a co nfe ss ar algu ns do s cr imes” 69.

68
P I NHO, Ru y Ra be l lo . H ist ó r ia do dir e it o pena l br as i le ir o : per ío do co lo nia l ( S ã o P aulo :
E d. Da Univer s idade de S ão P au lo , 1973) , p. 170.
69
KR AME R, H. ; S P RAN GE R, J. O mar t elo das fe it ice ir as. ( R io de Ja ne ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) p. 440 - 441.
44

É de se notar que o sistema de provas tarifadas é também responsá vel


por retroalimentar a máquina inquisitiva. Não apenas por se basear
inteiramente na existência de uma verdade real, como foi oportunamente
tratado, mas por dar à confissão aquele papel de rainha das provas.

1.4.3 Instrumentaliz ação institucionaliz ada da tortura

E se a prova de uma determinada natureza, a confissão, se apresenta


como imensamente mais importante que as demais, então os meios para
alcançá-la são legítimos, especialmente quando o valor que se dá à busca (e
alcance) da verdade é tamanho q ue justifica a violação da integridade física
do indivíduo. Afinal, ainda não se concebia qualquer valor inerente ao ser
humano, que se apresentasse como obstáculo ao procedimento persecutório.

Nesse contexto em que as premissas são controladas pelos opera dores


do sistema, o raciocínio lógico é o seguinte : existe uma verdade; tal verdade é
acessível pela confissão; através da tortura inevitavelmente se chega à
confissão 70.

Muito comumente pensa -se que a tortura, como método, é anterior ao


estabelecimento do sistema inquisitório e poder -se-ia dizer que aquele sistema
é condizente com uma época de barbáries e abusos contra o ser humano
enquanto tal, nada tendo de absurdo no estabelecimento da tortura em seu
âmago. No entanto, elucida Le Goff que:

“A I nqu is ição , segu indo um no vo mét o do jud ic iár io cha mado


pr ec is a me nt e mét o do “inqu is it ó r io ” e não ma is “acu sat ó r io ”,
co ns ist ia e m int er r o gar o acusado par a o bt er a co nfis são de sua
cu lpa. E la inst it u iu u ma E ur o pa de co nfis são , ma s mu it o
r ap ida me nt e a co nf is são fo i e xt o r quida pe la t o rt ur a. A t ort ur a er a
mu it o po uco ut iliz ada na Alt a I dade Méd ia, po is o há bit o da

70
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 89.
45

Ant igu idade er a l i m it á - la ao s escr a vo s. A I nqu is ição r essu sc it o u - a e


est endeu - a ao s le igo s e le iga s. ” 71.

Essa afirmação significa que a retomada da tortura em r elação aos


“cidadãos comuns” – por assim di zer daqueles que não se encontram entre os
escravos - obedeceu a uma necessidade trazida pela implantação da
Inquisição. Quer dizer que ela só ressuscitou no meio judiciário porque, ao
menos em tese, atendia crite riosamente aquilo a que se propunha a nova
ordem jurídica imposta pela Igreja.

Todavia, qualquer instrumento só é útil enquanto consegue auxiliar na


realização daquilo que se propõe. Cabe então a pergunta: a tortura, como
ferramenta, é, ao menos em abstrat o, hábil a alcançar seus propósitos?
Responder a isto demanda maiores reflexões.

Embora não tenha sido uma disposição do Tribunal do Santo Ofício nos
primeiro anos após seu surgimento 72, a Inquisição veio a introduzir técnicas
de tortura nos procedime ntos de interrogatório aos hereges, afim de que o
procedimento perseguisse sempre o m elhor dos elementos probatórios:

“S o b a apar e nt e pesqu isa int e nsa de u ma ver dade ur ge nt e,


enco nt r a mo s na t o rt ur a c lá ss ica o meca nis mo r egu la me nt ado de u ma
pr o va; u m des a fio f ís i co que de ve dec id ir so br e a ver dade ; se o
pac ie nt e é cu lpado , o s so fr i me nt o s imp o st o s pe la ver dade não são
in just o s; mas e la é t a mbé m u ma pr o va de de scu lpa se e le fo r
ino ce nt e. S o fr ime nt o, co nfr o nt o e ver dade est ão ligado s u ns ao s
o ut ro s na pr át ica da t ort ur a; t r aba lha m e m co mu m o co r po do
pac ie nt e. A inve st igação da ver dade pe lo sup l íc io do
“int er r o gat ór io ” é r ea lme nt e u ma ma ne ir a de fa zer apar ecer u m
ind íc io , o ma is gr a ve d e t o do s – a co nf iss ão do cu lpado ; ma s é
t ambé m a bat a lha, é a vit ó r ia de u m ad ver sá r io so br e o o ut ro que

71
LE GOF F, Jacque s, As Ra íz es med ie va is d a E ur o pa; t r adução de Ja ime A. C la se n
( P et ró po lis, R io de Ja ne ir o : Vo zes , 2007), p. 124.
72
“No s pr ime ir o s t e mpo s que suceder a m o est abe lec i me nt o da in qu is ição , o s inq u is ido r es
não ma nda va m co lo car o r éu à t o rt ur a, par a não inco r r er em ir r egu lar ida de, t endo
co mpet ênc ia par a ist o o s ju íze s po pu lar es, e m vir t ude da pr o c la mação do P apa I no cênc io
I V que ma nd a o s mag ist r ado s que pr ess io ne m co m t o r me nt o o s her eges, a ss ass ino s de
a lma s e ladr õ es da fé e m Cr ist o e do s sacr a me nt o s de Deus, fo r çando co m que co nfes se m
seus d e lit o s e de lat e m o s de ma is her eges cú mp l ic es seus. P o r é m, not ando que o s pr o cesso s
não er a m su f ic ie nt e me nt e se cr et o s, r esu lt ando e m gr a ves pr e ju ízo s à fé, par eceu ma is
co nve nie nt e e pr o ve it o so at r ibu ir ao s inqu is ido r es a facu ldade de se nt enc iar a t o r me nt o
se m int er ve nç ão do s ju íz es po pu lar es, dando lhe s ju nt o co m e la a a bso lviç ão mút ua de
a lgu ma ir r egu lar idad e na qua l se p o ssa inco r r er , co mo po r e xe mp lo a mo r t e”.
( E YME RI CO, Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur uá E dit o r a, 2009), p. 49 - 50) .
46

“pr o duz” r it ua lme nt e a ver dade. A t o rt ur a par a fazer co nfe ssar t e m


a lgu ma co isa de inqu ér it o , ma s t em t a mbé m de due lo ” 73.

Quanto aos métodos de tortura utilizados pelo sistema, não existiu


nenhum rol exaustivo de maneiras de se proced er ao tormento. A variedade
era tão ampla quanto a imaginação humana podia conceber. Neste ponto,
surpreende o quanto a genialidade humana, capaz de tantas proezas benignas,
pôde ser tão criativa mente empregada para um propósito cruel.

E ymérico sustenta que “como o direito canônico não descreve esta ou


aquela tortura em particular, podem os juízes lançar mão das que pareçam
mais convenientes para pressionar o réu a confessar o seu delito, de uma vez
que não sejam torturas desusas”. Cita ainda cinco gêneros usuais de tortura e
quatorze outras citadas por inquisidores célebres da época 74.

Contudo, fazendo a devida análise histórica do momento, Michael


Baigent sintetiza os métodos efetivamente mais utilizados pela Inquisição:

"Ha via a t o ca, o u t o rt ur a pela água, na qua l se fo r ça va água pe la


go ela da vít i ma a ba ixo . Ha via o pot ro, o nde a vít i ma er a a mar r ada
nu m ecú leo co m co r das aper t adas, que po dia m ser aper t adas ma is
a inda pe lo t ort ur ado r. E ha via a gar r ucha, o u po lia, ver s ão
espa nho la do st r appado it a lia no . Ness e pr o cedime nt o amar r a va m - se
as mão s da vít i ma à s co st as e depo is a pendur a va m pe lo s pu lso s
nu ma po lia no t et o , co m peso s a mar r ad o s no s pés. Leva nt ava m - na
mu it o devagar par a ma xi m izar a do r, depo is ba ixa va m - na a lgu ns pé s
co m u ma br u squ id ão e vio lê nc ia que d es lo ca va m o s me mbr o s( . . . ).
Ma is t ar de, na car r e ir a da I nqu is iç ão espa nho la, e nt r ar am e m u so
o ut r as t écnica s. A vít i ma po d ia ser amar r ada a u m ecú leo , po r
exe mp lo , co m co r das que er a m pr o gress iva me nt e aper t adas at é
ent r ar e m no s o sso s. E havia inú mer o s out ro s r efina me nt o s, o bceno s
de ma is par a ser t r ans cr it o s. T udo que as depr a vadas i mag ina sçõ es
do s I nqu is ido r es idea l iza va m aca ba va se ndo sanc io nado " . 75

Interessante a observação feita por Lui z Nazario a respeito do critério


para a seleção do método adequado. Explica que se fazia um juízo quanto ao
tormento adequado à cada indício, de acordo com sua gravidade:

73
FOUC AU LT , M ic he l. V ig iar e punir ( P er t ró po lis: Vo zes, 2010) , p. 42.
74
E YME RI CO, Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur uá E dit o r a, 2009), p. 50.
75
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 90 - 91.
47

“O suspe it o “su fic ie nt e me nt e t ort ur ado ” er a aquele que r ece bia


t o r me nt o s de gr avidade co mpar á ve l à g r avidade do s ind íc io s, se m
co nfes sar . O “má xi mo just o ” er a duas s ér ies co mp let as de t ort ur as
dur ant e 15 d ia s, u m inst r u me nt o difer ent e po r dia. O pot ro e a po lé
er a m as t o rt ur as ma is e mpr egada s ”. 76

Na verdade, como o suplício é anterior à inquisição, algumas das


técnicas de tortura não foram criações do pr óprio período, mas adaptações de
métodos já utilizadas no passado, como afirma Franco Cordero:

“La t ort ur a es um méd io c lás s ico par a ar r ancar la ver dad.


Desco no c ida de la vie ja pr át ica acu sat ór ia ( desar r o lla da co m
ar r eg lo a mo ldes g er mâ nico s) figur a e m e l Co rpus i u ri s ; e s o bvio
que lo s p e na l ist as la impo r t aro n; e l r et ar do de más de u m s ig lho ,
co m r esp ect o a la d i fus ió n de la sa bidu r ía r o ma níst ica, depe nde de
la usu a l iner c ia de l d at o po sit ivo . P ero ha br ía sur g ido aun cua ndo
no la acr ed it ar an t ext o s vener a bl e s, pues se ase me ja muc ho a l
nue vo s ist e ma y t a mbié n a lã s o r dalía s, de lã s cua les no r esu lt a
c lar a me nt e d ist ingu id a de la pr i mer a a par ic ió n co no c ida ( E st ado s
Ver o neses, 1228) , pues cua ndo r es ist e a lo s t or me nt o s, el acus ado
pur ga lo s ind íc io s”. 77

A função específica da tortura em alcançar uma verdade real através da


confissão, ganha uma conotação medicinal ao ser associada ao objetivo geral
de combater a heresia. Afinal, se o combate ao infiel era uma luta pela
salvação das almas, a tortura que expiava os pecados era uma terapia para a
alma.

Ademais, é notável que a espetacularização que revestia os Autos de Fé


contaminava também os métodos de suplício que se valiam das ferramentas
mais aterradoras quanto possíveis.

De toda feita o procedimento instituciona lizado prescreve a tortura em


diversas situações 78:

76
NAZ ARI O, Lu iz. Aut o s- de- fé co mo espet ácu lo de mas sa ( S ão P au lo : Asso c iaç ão
E dit o r ia l Hu ma nit as, 2005) , p. 80.
77
CORDE RO, Fr a nco . P r o cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 22.
78
Alé m de st as, E ymér ico apo nt a o ut r as hipó t eses de ap lic ação do t o r me nt o, quando , por
exe mp lo qua ndo o s dema is me io s t iver e m s ido infr ut ífer o s par a se chegar à ver dade o u
quando o int er ro gado co nfe ssar o s po nt os me no s gr aves ma s não co n fes sar o s ma is gr a ves.
48

“Dá- se t or me nt o , pr ime ir o , ao r éu que var ia na s c ir cu nst ânc ia s,


nega ndo o fe it o pr inc ipa l. S egu ndo , ao her ege no t ó r io que, sendo de
co nhe c ime nt o público sua her es ia, t e m co nt r a si, a inda qu e se ja só
u ma t e st e mu nha que o viu d izer o u faz er a lgo co nt r a a fé, po r que
e m t al ca so est e t est emu nho e a má r eput ação do r éu são do is
ind íc io s qu e fu nda me nt a m se m co mpr o vaç ão e é o que bast a par a
co lo cá - lo e m t ort ur a. O t er ceir o , mes m o que não ha ja t est e mu nha
a lgu ma e o co mpo rt ame nt o de her es ia t enha ind íc io s vee me nt es,
me s mo que se ja ape na s u m, t a mbé m se d eve d ar t o r me nt o. O quart o ,
a inda que não se ja o r éu r eput ado her ege, um só t est emu nho de
que m t enha vist o o u o uvido d izer o u faz er a lgo co nt r a a fé,
so ma ndo a uma c ir cu nst ânc ia o u mu it o s ind íc io s ve e me nt es, bast a m
par a pr o ver o t o r me nt o. Gener ica me nt e fa la ndo dest as co is as, u m
t est e mu nho de vist a, um mau co mpo r t ame nt o em mat ér ia de fé, u m
ind íc io ve e me nt e, uma só não ba st a, duas são nece ssár ia s e
ba st ant es par a dar t or me nt o ” 79.

Perceba-se que, através dos suplícios, extraia -se do investigado apenas


informações hábeis a confirmar a tese acusatória. É um método que serve ao
acusador e nunca ao acusado , servindo a demonstrar que o único compromisso
do procedimento inquisit orial é mesmo a busca da verdade previamente
estabelecida pelo acusador.

Então, através dos tormentos, alimentava -se o sistema, tanto ao


conferir-lhe uma aparência de eficiência, quanto ao disseminar – pelo temor
em ser alvo dos procedimentos investigatór ios – o medo entre a população, de
modo a permitir o controle social desejado pela Igreja e depois pelo Estado 80.

Não havia, contudo, a intenção de se dar ao tormento o caráter de pena.


Não se deve confundir. À violência à integrida de física decorrente da tortura
atribuía-se, ao tempo da Inquisição Católica, inclusive, um caráter medicinal.
Não se considerava também um como adiantamento de pena, nem naquele
primeiro momento, nem quando trazidos ao processo judicial laico, os
tormentos provocados para se obt er a confissão. De fato, como bem explica

79
E YME RI CO, Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur uá E dit o r a, 2009), p. 46.
80
“Qua ndo t o do s o s ape lo s se t o r nar e m inút e is, ser á co lo cada a qu est ão de t orme nt o e
ass i m se pr o ceder á ao int er ro gat ó r io , inic ia ndo pe lo s po nt o s me n o s gr aves de que est á
s ind ic ado , po r que ant es ele co nfe ss ar á as cu lp as le ve s do que as gr ave s. S e co nt inuar
nega ndo , ser ão mo st r ado s o s inst r u me nt o s de o ut ro s sup líc io s, d ize ndo - lhe o q ue so fr er á
se não co nfe ssar a ver dade. P o r fim, s e não co nfes sar , po der - se- á dar co nt inu idade ao
t o r me nt o dur ant e do is o u t r ês dia s, mas a co nt inu idade não s ig nif ic a r epet ição , po r que não
se po de r epet ir se m no vo s ind íc io s ar ro lado s na causa, po r ém é lic it o co nt inuar . ”
( E YME RI CO, Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur u á E dit o r a, 2009), p. 47) .
49

Foucault existe diferença entre a tortura enquanto método, e a produção de


suplícios através da pena:

“I ne xp l icá ve l, t alvez, ma s cer t ame nt e não ir r egu lar ne m se lvage m.


O sup l íc io é u ma t écnic a e não deve s er equ ipa r ado ao s e xt r emo s de
u ma r a iva s e m le i. U ma pe na, par a ser u m sup l íc io , de ve o bedecer a
t r ês cr it ér io s pr inc ipa is: e m pr ime ir o lugar , pr o duzir u ma cer t a
quant idade de so fr i me nt o que se po ssa, s e não med ir e xat a me nt e, ao
me no s apr ec iar , co mp ar ar e hier ar qu i zar ; [ . . .] O suplíc io r epo usa na
ar t e quant it at iva do so fr ime nt o . Mas não é só : est a pro dução é
r egu lada. O sup líc io faz co r r e lac io nar o t ipo de fer ime nt o fís ico , a
qua lidade, a int e ns idade, o t empo do s so fr ime nt o s co m a gr avidad e
do cr ime, a pesso a do cr i m ino so , o níve l so cia l de suas vít ima s. ” 81.

Além disso, o conceito de tortura que se trabalha neste ponto, ou seja ,


como método de obtenção da verdade e como elemento do procedimento
inquisitorial, não se confunde com a aplicação arbitrária de suplícios.

“O sup l íc io pe na l não co rr espo nde a q ua lquer pu nição co r po r al: é


u ma pr o dução d ifer enc iada de so fr ime nt o s, um r it ua l o r ganizado
par a a mar cação das vít i ma s e a ma ni f est ação do po der que pune:
não é abso lut a me nt e a exa sper ação de uma just iça que, esquece ndo
seus pr inc íp io s, per de sse t o do o co nt r o le. No s “e xces so s” do s
sup líc io s se invest e t o da a eco no mia do po der ” 82.

Existe uma diferenciação fundamental entre a imposição desregrada de


dores e agressões ao corpo e a utilização metódica de sofrimento aos objeto s
do procedimento inquisitório 83.

No primeiro caso, nada mais há do que mera violência.

Por outro lado, na segunda hipótese , há um método oficialmente


implementado a partir de parâmetros “eficazes” para se alcançar o
conhecimento daquel a verdade presumida :

81
FOUC AU LT , M ic he l. V ig iar e punir ( P er t ró po lis: Vo zes, 2010) , p. 36.
82
FOUC AU LT , M ic he l. V ig iar e punir ( P er t ró po lis: Vo zes, 2010) , p. 36.
83
E não ape nas met ó dico co mo so le ne. Havia m s es sõ es fo r ma is de invest igação e
int er r o gat ó r io da I nqu is iç ão que co nt ava m co m a pr es e nça de "u m e scr ivão e s ecr et ár io ,
ju nt o co m o s I nqu is ido r es, u m r epr es ent ant e do bispo lo ca l, u m méd ico e o pró pr io
t o rt ur ado r, em ger a l o car r asco secu lar público . T udo er a anot ado met icu lo sa me nt e - as
per gunt as fe it as, as r espo st as e r eaçõ es do acusado ". ( BAI GE NT , Mic ha e l. A I nqu is iç ão
( R io de Jane ir o : I mago , 2001) , p. 88).
50

“P o de - se a par t ir da í e nco nt r ar o fu nc i o na me nt o do int er r o gat ó r io


co mo sup líc io de ver dade. E m pr ime ir o lugar , o int er ro gat ó r io não é
u ma ma ne ir a d e ar r ancar a ver dade a qua lquer pr eço ; não é
abso lut a me nt e lo uca a t ort ur a do s int erro gat ó r io s mo der no s ; é
cr ue l, cer t ame nt e, mas não se lvage m. T r at a - se de uma pr át ica
r egu la me nt ada, que o bedece u m pr o cedi me nt o be m de f in ido , co m
mo me nt o s, dur ação , inst r ume nt o s ut ilizado s, co mpr ime nt o s das
co r das, peso do s chu mbo s, nú mer o de cunha s, int er ve nçõ es do
mag ist r ado que int er ro ga, t udo segundo o s difer e nt es há bit o s
cu idado sa me nt e co dific ado s” 84.

Tudo isso corroborado por uma consistente doutrina católica que


apresentava uma sistematização coerente de fundamentos para se enfrentar o
mal que infectava o mundo através da in fluência sorrateira do demôni o 85.

Ao contrário do que a lógica moderna, contaminada pelo humanismo do


século XVIII faz pensar, a confissão obtida através dos tormentos não era
considerada absurda. Certamente não parecia ser senso comum que o
indivíduo subme tido à tortura falaria qualquer coisa para se ver livre e
nenhuma verdade seria realmente alcançada desta forma.

Por outro lado, percebe -se nas recomendações de Henrich Kramer, a


intenção de forçar a interpretação de qualquer conduta dos interrogados, como
atos típicos de uma bruxa/bruxo, de modo a justificar os métodos:

“S e des e jar sa ber se a acusada po ssu i o po der ma lé fico de pr eser var


o silê nc io , que r epar e se e la é capaz de so lt ar lágr ima s ao fic ar e m
sua pr ese nça, o u quando est iver s e ndo t o rt ur ada. Po i s apr e nde mo s
t ant o pelas pa la vr as de ve lho s sá bio s qua nt o pe la pr ó pr ia
exper iê nc ia que est e é s ina l qua se inequ ívo co : ver if ica - se que
me s mo quando a acusada é pr e mida e exo rt ada po r co njur açõ es
so le nes a d er r a mar lágr ima s, se fo r de fat o uma br u xa, não va i
cho r ar , não o bst ant e assu ma u m asp ect o cho ro so e mo lhe a s
bo che c has e o s o lho s co m sa l iva par a dar a impr e ssão de
lacr i me ja me nt o s; pe lo qu e de ve s er d il i gent e me nt e o bs er vad a pe lo s
pr esent es.

[ . .. ]

O mo t ivo da incapa c idade de der r a mar lágr ima s t a lvez est e j a no


fat o de que a gr aça das lágr ima s é um do s pr inc ipa is do ns

84
FOUC AU LT , M ic he l. V ig iar e punir ( P er t ró po lis: Vo zes, 2010) , p. 41.
85
"P o r que as S agr adas E scr it ur as, na S ua aut or id ade, d ize m que o s de mô nio s t ê m po der es
so br e o co r po e so br e a me nt e do s ho me ns, qu a ndo Deus lhe s per m it e e xer cê - lo , ao que se
faz i lu são e xp líc it a e m mu it a s pa ssag e ns". KR AME R, H. ; S P R ANGE R, J. O mar t elo das
fe it ice ir as. ( R io de Jane ir o : Ro sa do s t empo s, 2011) p. 50) .
51

co nced ido s ao penit e nt e; po is S . Ber nar do no s diz que a s lágr ima s


do s hu mi lde s po de m pe net r ar no s céus e co nqu ist ar o
inco nqu ist á ve l. P o rt ant o , não há dúvida de que est e ja m
desagr ada ndo ao demô nio , e que e le us a de t o do s o s seus po der es
par a co nt ê - las, par a imp ed ir que a br u xa po r fim at inja o est ado de
penit ê nc ia ” 86.

Atra vés da fundamentação doutrinária e da espetacularização promovida


pelos Autos de Fé, a tortura institucionalizada no procedim ento inquisitório
se mostrava como extremamente eficiente para alcançar seu s objetivos. Vista
desta forma, foi logo permitida ao juízo civil pela supracitada bula Ad
extirpanda de Inocêncio IV 87.

Transferir a tortura para o p rocedimento da jurisdição laica significou


também a coroação , na esfera secular, de todo o sistema de tarifação de
provas, bem como a perseguição irrestrita de uma verdade real. Foi a
decretação definitiva , mas implícita , de que não só a alma deveria ser
protegida a todo custo, ainda que sobre o padecimento absoluto do corpo, mas
também a ordem pública se elevava ao status de um valor hábil a justificar o
jus punientdi .

Mas se a tortura frequentemente conseguia extrair a confissão de seu


objeto, por outro lado a típica imagem de “eficiênc ia” começou a ser
manchada. Sua ampla utilização levou ao surgimento de testemunhos falsos e
denunciações vazias, como aponta Ruy Rabelo:

“Mas o p io r é que a lé m de su bmet er e m t ambé m a s t est e mu nhas ao s


t o r me nt o s, fac i l it a va m o apar ec ime nt o de fa lso s t est emu nho s.
Ass i m, qua ndo publ icar a m u m ed it a l co m pe na de mo r t e que
ne nhu m mo r ado r fo sse o usado a t er e m sua ca sa ar ma a lgu ma
o fe ns iva de qua lquer qua lidade e co nd i ção que fo sse; e que t o do
negr o cat ivo , que dec lar as se que seu se nho r t inha a lgu ma ar ma, lhe
dar ia m a l iber dade. Co meç ar a m a sur g ir inú mer o s depo ime nt o s
fa lso s e mu it o s fla me ngo s se co nc lu ír a m co m negr o s par a e xt or quir
d inhe ir o do s senho r es port ugueses” 88.

86
KR AME R, H . ; S P RANGE R, J. o p. cit . , p. 435.
87
NAZ ARI O, Lu iz. Aut o s- de- fé co mo espet ácu lo de mas sa ( S ão P au lo : Asso c iaç ão
E dit o r ia l Hu ma nit as, 2005) , p. 88.
88
P I NHO, Ru y Ra be l lo . H ist ó r ia do dir e it o pena l br as i le ir o : per ío do co lo nia l ( S ã o P aulo :
E d. Da Univer s idade de S ão P au lo , 1973) , p. 174.
52

Talvez a situação retratada, já na primeira metade do século XVI, tenha


sido o primeiro indício de insustentabilidade do sistema investigativo que usa
a tortura como método. Não é por menos.

De fato, a utilização ampla do suplício colocava o particular em


situação de constante ameaça de violência pelo Estado , em razão de mera
suspeita de ilícito crim inal. Essa imensa pressão tornou intermitente o medo
de ser submetido ao procedimento em razão de uma denúncia vazia
apresentada por qualquer pessoa mal intencionada. Mais ainda, que o
procedimento seja utilizado como instrumento de interesses particulares
escusos de membros corruptos do poder público.

Note-se que dessa forma se abre espaço para as ferramentas de


persecução inquisitória possam ser utilizadas, ainda que indiretamente, pelos
particulares uns contra os outros. A exemplo, note -se a alarmante si tuação
que se instaurou na Espanha e é fidedignamente retratada por Michae l
Baigent :

"Na E spa nha, co mo e m o ut r as part es, as pe sso as va l ia m - se do


apar at o da I nqu is iç ão par a acer t ar ve lha s co nt as, t ir ar ving a nça
pesso a l de viz inho s o u par e nt es, e li m ina r r iva is no s negó c io s o u no
co mér c io . Qua lquer u m po d ia de nu nc iar o ut ro s, e o ô nus da
just if icação fica va co m o acusado . As p esso as co maçar a m c ada vez
ma is a t e mer o s viz inho s, par ce ir o s o u co nco r r ent es pro fiss io na is,
qua lquer u m co m que m pude sse m t er um at r it o, qualqu er u m que
ho uve sse m a lie nado o u ant ago nizado . A f i m de ad ia nt ar - se a u ma
denú nc ia de o ut ro s, as pes so as mu it as vez es pr est ava m fa lso
t est e mu nho co nt r a si me s mas. Não er a r aro que part es int e ir a s de
u ma co mu nidade co nfess as se m e m mas s a, pr ende ndo - se ass i m co m
gr ilhõ es de par ano ia e medo ao co nt ro le da I nqu is ição ". 89

Cria-se uma situação análoga àquela observada nos sistemas acusatórios


tribais em que a proximidade de algumas pess oas com os detentores do poder
as beneficiavam em detrimento de outros.

Em outras palavras, a expansão do método de tortura causou sua


banalização e levou à descrença generalizada com o sistema , abrindo espaço
para que as teorias humanistas do século XVIII recebessem a atenção

89
BAI GE NT , Mic hae l. A I nqu is iç ão ( Rio de Jane ir o : I mago , 2001), p. 86.
53

necessária para teorizar e implementar um novo sist ema judicial de bases


diferentes das inquisitoriais.

Todavia, o papel da tortura no processo penal pré -humanitário é mais


profundo e emblemático ao processo penal do que se pode considerar em uma
análise ligeira.

Para se perceber o verdadeiro significado d as mudanças do século


XVIII, é necessário que se entenda a importância real dessa ferramenta na
sistemática processual inquisitória e toda a abrangência de seus fundamentos.
54

CAPÍTULO 2: A TORTURA CO MO INSTRUMENTO DE OBTENÇÃO DA


VERDADE REAL E NQUANTO CORRESPONDÊNCIA

Tendo-se apresentado o contexto histórico em que o procedimento


inquisitorial se desenvolveu e foi implementado pelos sistemas jurídicos, é
agora oportuno centralizar esforços com vistas a compreender de maneira
ampla o instituto objeto da presente pesquisa: a tortura.

Pretende-se demonstrar a forma como o a mentalidade pré iluminista


acolhia a tortura e como o sistema inquisitório realizava sua
operacionalização. É através da percepção da lógica que orientava o emprego
institucionalizado dos tormentos, que se abrirá caminho para, em momento
posterior 90, compreender as críticas realizadas ao sistema e as mudanças
almejadas através dessas críticas.

2.1 A tortura c omo ferramenta do siste ma persecutório inquisitorial

Primeiramente cabe esclarecer que , ao se falar dos propósitos da


tortura, refere -se, indiretamente, aos objetivos do sistema (inquisitorial) que a
usa como ferramenta. Ou seja, perguntar se o a tortura consegue alcançar os
seus fins é questionar se ela, enquanto ins trumento, atinge aos propósitos do
procedimento inquisitorial.

Mas quais são esses objetivos do sistema inquisitorial ao qual a tortura


passa a servir a partir do século XIII?

90
Vi de cap ít u lo 3.
55

A resposta, repisando o que se apresentou no capítulo anterior, coloca a


verdade como fim supremo do processo inquisitorial. E quando se fala em
verdade, considerando o que já se discutiu , nada mais se deve entender senão
uma realidade pronta que inexoravelmente é anterior ao procedimento
investigatório e que existe para ser averigua da pelos inquisidores.

“E xc lu ídas a s par t es, no pro cesso inqu is it ó r io o r éu vir a u m


pecado r , lo go, det ent o r de uma “ver dade” a ser e xt r a ída. Ma i s
i mpo rt ant e, apar ent eme nt e, que o pró pr io cr ime, t or na - se e le o bjet o
de inve st ig ação . É so br e s i que r eca e m as at ençõ es, o s es fo r ço s do
inqu is ido r . Det ent o r da “ver dade”, de la deve dar co nt a. E is a r azão
po r que a t o rt ur a ganho u a impo rt ânc i a que ganho u; a co nfis são
vir o u Regina pr o bat io nu m”. 91

A conclusão não pode ser outra: pretende-se, pela tortura , conhecer a


verdade. E se a verdade é o fim de todo sistema inquisitorial, e a tortura,
como se demonstrou, é uma ferramenta sua capaz de auxiliar na realização
deste fim, então, não resta dúvidas, ela apresenta -se como um método, ou,
mais precisamente, o melhor dos mét odos trazidos pela inquisição.

“O mo de lo é ge nia l, não fo sse, a nt es, d ia bó lico , e mbo r a na sc ido ,


co mo se viu, no se io da I gr e ja Cat ó lic a. E m u m t e mpo
ext r e ma me nt e míst ico , não po der ia s er d ifer e nt e. Res ist iu – e
r es ist e co mo o ma is apur ado s ist e ma jur íd ico do qual s e t em
co nhe c ime nt o , t endo per sist ido por t ant o t empo ju st o po r sua
s imp l ic idade, ist o é, por que usa o própr io mo de lo de pe nsa me nt o
( por exce lê nc ia) da c ivi l izaç ão o cide nt a l. Ao per mit ir –
so br e ma ne ir a – que se ma nipu le a s pr em is sas ( jur íd ica s e f át ica s) ,
int er es sa e se mpr e int er e ssa ao s r eg ime s de fo r ça, às d it adur a s, ao s
se nho r es do po der . Po dendo - se o r ie nt ar o êxit o , faz - se o que qu is er .
É o r eino do so lips is mo , po r exce lê nc i a. Da í t er dur ado por t ant o
t empo ; e segu ir int act o , em mu it o s po nt o s, ainda que o s no vo s
t empo s, pe la r ea l idade, dur a me nt e o t enha m at ing ido , mo r me nt e po r
lhe des ma scar ar o fa lso discur so ”. 92

Se Jacinto Nelson está correto, e o modelo inquisitorial é mesmo o


reino do solipsismo, então Franco Cordero tem razão em afirmar que a
investigação inquisitorial perde seu escrúpulo ao tentar "escavar o mal" em
um ponto qualquer:

91
COUT I NHO, Jac int o Nelso n d e M ir a nda. S ist e ma Acu sat ór io : Cada par t e no lugar
co nst it uc io na lme nt e de mar cado ( Br as íl ia , v. 46, n. 183, ju l. / set . 2009), p. 105.
92
COUT I NHO, o p. cit . , p. 105 - 106.
56

“P r o vist o de inst r u me nt o s vir t ualme nt e ir r es ist ibles, e l inqu is ido r


t o rt ur a lo s pac ie nt es co mo quier e ; de nt r o de su mar co cu lt ur al
pes im ist a e l a ni ma l hu ma no nace cu lpa ble ; est a ndo cor ro mp ido e l
mu ndo , bast a e xca var e m u m pu nt o cua lqu ier a p ar a que a f lo r e e l
93
ma l. E st e axio ma e li m ina t o do escr úpulo e m la invest igac ió n”.

Daí, Cesare Beccaria levanta a questão de que “todo ato da nossa


vontade é sempre proporci onal à força da impressão sensível de onde se
origina : e a sensibilidade de cada homem é limitada. Assim, a impressão da
dor pode chegar a tal ponto que, ocupando a sensibilidade inteira do
torturado, não lhe deixe outra liberdade que não a de escolher o c aminho mais
curto, momentaneamente, para se subtrair à pena. Então, a resposta do réu e
tão inevitável quanto o seriam as impressões do fogo e da água” 94.

É a tradução do pensamento moderno de que a tortura é instrumento


verdadeiramente inútil para se cheg ar à qualquer verdade pela confissão, já
que o indivíduo submetido ao tormento "confessará" mesmo o que não sabe,
para se "subtrair à pena".

Todavia admitiu -se que o sistema inquisitório se sustentou por uma


lógica rigorosamente acertada, por que, apesar d isso, oito séculos atrás o
raciocínio que movimentou o aparato técnico da inquisição fazia sentido, e
nos dias de hoje não faz mais?

O raciocínio então construído está formalmente perfeito, sobre isto não


há dúvidas. O que torna a conclusão repugnante com a virada dos séculos é o
fato das premissas estarem viciadas pela perspectiva de um olhar humanizado.

Essa lente humanista é o resultado de um processo longo que se inicia


com o antropocentrismo renascentista de Florença e dura até atualidade,
sendo inega velmente marcado pela s Declarações de Direitos da Virgínia em

93
CORDE RO, Fr a nco . P r o cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 22
94
BE CC ARI A, Cesar e Bo nesa na. Do s del it o s e das pe na s. ( S ão P au lo : Mar t ins Fo nt es,
2005) , p. 72
57

1776 e da França em 1789 95. Essa evolução histórica, todavia, é tema dos
próximos capítulos e se relaciona às fases posteriores da pesquisa.

Mas se atendo ao que interessa analisar neste momento , concisamente é


necessário entender apenas o segui nte: na mentalidade medieval era aceitável
buscar a verdade pela tortura. Após o humanismo o senso comum repudia a
ideia 96.

Não se admite que a tortura sirva como instrumento de busca da


verdade. A utilizaçã o desse método parece, ao ocidental, demasiadamente
violenta e cruel. Isto ocorre porque , na mentalidade do homem
contemporâneo, está introjetado o pensamento humanista de que é
inadmissível um sistema jurídico que persiga qualquer propósito que seja, se
tiver que passar por cima dos princípios de dignidade humana.

E mais, é dizer que não se pode dar ao Estado, ou a qualquer instituição


legítima, o poder de buscar um fim que atropele o ser humano enquanto
sujeito de direitos supremos 97.

Pelo que se denota, a compreensão de Beccaria acerca da inutilidade da


tortura absorve a mentalidade iluminista de valorização do ser humano e
torna-se o veículo dessa percepção para os Estados modernos . Quando os
apontamentos do Marquês se tornam uma das bases teóricas do hu manismo,
passam a compor a lógica orientadora dos Direitos Fundamentais, através dos
quais, as concepções iluministas do século XVIII alcançam o século XXI.

95
Vi de po nt o 4. 1.
96
I nc lu s ive, ent end e Hans Geo r g Gada me r , que a id e ia de se nso co mu m nasce a par t ir do
hu ma nis mo . ( G AD AME R, Ha ns Geo r g. Ver dade e Mét o do I . ( P et ró po lis: 2013, Vo zes) . p.
56) .
97
E ju st a me nt e po r is so co ns ider a m - se d ir e it o s supr e mo s, u niver sa is e ina l i ená ve i s.
( P r eâmbu lo da De c lar ação Univer s a l do s D ir e it o s Hu ma no s: DE CL AR AÇ ÃO UNI VE RS AL
DOS DI RE I T OS HUMANOS . Ado t ada e pr o cla mada p e la r eso lução 217 A ( I I I) da
Asse mb lé ia Ger a l d as Naçõ es Unidas . D ispo níve l e m:
<ht t p: / / port al. m j. go v. br / sed h/ ct / leg is_ int er n/ dd h_ b ib_ int er _univer s a l. ht m>. Ace s so e m: 29
Dez. 2013) .
58

Delas, floresce a orientação para o sensus communis moderno de que os


suplícios não levam a nenhum resultado útil 98.

Afinal, segundo afirma o mais atual senso comum, pode -se obrigar a ma
pessoa a falar qualquer coisa a título de confissão, quando se submete o seu
corpo do a tormentos dos quais ele quer se livrar a todo custo.

À afirmativa Beccariana de q ue a tortura não é instrumento capaz de


ligar o inquisidor à verdade, associam -se os novos ideais de humanidade e
justiça 99 concebidos no seio do movi mento iluminista, cuja formação histórica
será analisada no capítulo seguinte . A tortura não é, começa -se a perceber,
apenas falível, porque a confissão que leva não é sempre crível, como também
é inutilizável por sacrificar a dignidade e a justiça como passa a ser
concebida.

Mas não segundo a ótica do século XIII, isso é verdade. Naquele


momento histórico, ant ecessor à efervescência humanista de quase cinco
séculos depois, o raciocínio que liga a tortura à verdade é completamente
válido e condizente com a inteligência da época acerca da verdade, justiça e
ser humano.

Não há valor humano colocado em um pedestal, ideal de justiça


transcendental que se opusesse à pratica, e muito menos se questionava a
eficácia do método:

98
P ar a o s pr esent es fins, assu me - se co mo se nso co mu m o co nce it o de Vico apr esent ado por
Gada mer : "é u m s e nt ido par a a just iç a e o be m co mu m, que vive e m t o do s o s ho me ns, e
ma is, u m se nt ido que é adqu ir ido at r avés da vid a e m co mu m e d et er min ado pe las
o r denaçõ es e fins de st a". ( GAD AME R, Ha ns Geo r g. Ver dade e Mét o do I . ( Pet ró po lis:
2013, Vo zes) . p. 59) .
99
E mbo r a não s se ja ca bíve l o apr o fund a m ent o mer ec ido pe lo t ema, ind isp e nsá ve l c it ar que
o s a licer ces d a r e fe r ida r e fo r ma no ideár io de ju st iça co mu ngar a m co m o s t r aba lho s
dese nvo lvido s po r Jean - J acques Ro uss eau ( 1712 — 1778) ; C har le s - Lo u is d e S eco ndat t
( bar ão de Mo nt esquieu) ( 1689 —1755) ; Fr a nço is M ar ie Ar o uet ( Vo lt a ir e) ( 1694 — 1778) ;
e e m espec ia l I m ma nue l K a nt ( 1724 — 1804) no t r at o das d iscus sõ es acer ca da mo r a l e do
D ir e it o .
59

“O bvia la I dea y p er ver so e l des ar r o llo : cu lp a ble o no , e l acusado


sa be co sas impo r t ant es: s i qu a lqu ier r ec uer do su yo se vis lu mbr a, e l
100
caso queda r á infa l ible me nt e r esue lt o ”.

Se, contudo, é translúcido que o mesmo não é tolerável nos tempos


atuais por haver uma nova concepção de ser humano e justiça (ambos trazidos
pelas revoluções intelectuais do Século das Luzes), o mesmo não se pode
dizer acerca de uma nova percepção do que é a verdade objetivada pelos
sistemas jurídicos.

Não é imediata a percepção de que, acompanhando uma nova visão da


justiça e do valor do homem, o humanismo e o humanitarismo trouxeram, na
via processual penal, pela qual o si stema inquisitório se envereda, uma nova
noção de verdade enquanto elemento jurídico 101. Demandou (e demanda)
reflexões doutrinárias profundas pela ciência penal. Por outro lado, a
incompatibilidade , dos valores humanos modernos , com a concepção
inquisitoria l de verdade processual, embora facilmente de monstrada, também
só se torna objeto de análise, através da ciência jurídica contemporânea .

O sistema inquisitorial, em toda oposição que, por essência, faz ao


Estado de Direito, não pode ser elidido unicamente pelo necessário respeito
ao homem trazido pela modernidade e talvez por isso persista até o século
XXI.

Ao que se percebe, a lógica inquisitória só pode ser afastada em


absoluto, se a busca da verdade, tomada como fim do processo penal, for
compreendida de uma maneira mais condizente c om as aspirações humanistas.

100
CORDE RO, Fr anco . P ro cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 21
101
E t alve z po r não ser t ão clar a, at é o s d ias de ho je, es sa muda nça, é que o s ist e ma
pr o cessua l pe na l vige nt e a inda não t enha co nsegu ido se a fa st ar da inqu is iç ão , embo r a s e
r eco nheç a t o da sua pr e jud ic ia l idade e i nco mpat ibi l idade co m o s pr inc íp io s er ig ido s e no
E st ado Demo cr át ico de Dir e it o .
60

2.2 O correspondi smo no pr ocesso pe nal

Conforme foi dito, costuma -se associar a criação do Sistema


Inquisitorial ao IV Concílio de La trão de 1215. Dentre outras discussões que
lançaram as sem entes do novo sistema, é importante destacar a
obrigatoriedade da confissão pessoal.

A partir do momento que se estabelece a confissão como uma forma de


se conhecer a verdade 102, simultaneamente se cria uma verdade a ser
conhecida e talvez esse tenha sido o mais perverso pressuposto do Sistema
Inquisitorial criado naquele Concílio do início do século XIII.

Germinada esta semente, anos mais tarde, a confissão sacramento não


bastaria ao controle da fé. As heresias poderiam se esquivar entre os fieis e se
esconder no livre arbítrio.

Mas se havia uma verdade – a heresia – a ser conhecida (e sempre havia


porque o homem está permanentemente sujeito às tentações do demônio), e a
descoberta desta servia ao mais supremo interesse público, consubstanciado
na Vontade Divida de prevalência do Bem (Católico) sobre o mal (herético),
então todo o esforço do Estado deve ser direcionado à implementação de um
sistema capaz de conduzir a esta verdade posta.

É inegável, portanto, que o sistema derivado desta ótica coloca a


verdade um valor. Trata -se de uma verdade que existe por si, anterior a
qualquer investigação e que dá sinais de sua existência com o mero indício
trazido à autoridade.

“A ver dad e est ava d ada e x a nt es e o inqu is ido r de la t inha c iê nc ia,


de mo do que o t r aba lho ( abj et o, em r ea lidade) er a u m jo go de
pac iê nc ia e, ao fina l, co nfe ss ar , dent ro do mo de lo pr o po st o, er a a
vit ó r ia da I nqu is iç ão ma s, par a o co ns u mo ger a l, vit o r io so er a o
inqu ir ido que, co mo pr ê mio , ga nha va a a bso lvição , ne m que de

102
Vi de no t a nº . 66.
61

t ant o em t ant o fo sse p ar ar na fo gue ir a par a, ma is r áp ido , e nt r egar


103
sua a lma a Deus” .

Do ponto de vista do Processo Penal, interessa ser analisado o que


representa afirmar que existe uma verdade a ser conhecida e quais as
implicações em se reconhecer essa verdade para o procedimento persecutório.

Já foi dito que a verdade é apres entada como o fim 104 buscado pelos
procedimentos inquisitórios. Então pergunta -se : qual era o conceito de
verdade assumido pela Inquisição?

O conceito sobre o qual a Igreja se debruçou na criação da doutrina


inquisitiva é aquele mesmo trazido durante séculos pelos ordenamentos
baseados no Direito Romano no qual se buscava uma verdade absoluta:
material ou real 105:

" Ar vo r o u- se e m pr inc íp io , no pr o cesso da inqu ir ição , ser o ju iz


o br igado a pesqu is ar a ver dad e po r t o d os o s me io s po ss íve is : er a o
me s mo que est abe lecer o sist e ma da ver d ade mat er ia l. 106"

Consiste em assumir que existe uma realidade dos fatos que são objeto
do processo. As provas trazidas aos autos visam, então, a reprodução da
realidade. Quando a reproduçã o coincidir com a pretensa realidade dos fatos -
e sempre haverá de coincidir - então necessariamente se chegará à verdade.

Essa concepção iguala o "conhecer a verdad e" com o "conhecer a


realidade" considerada ontológica:

“A ver dade no pr o cesso pena l a in da est á at r elada a u m ju ízo so br e a


r e lação de co nhe c ime nt o ent r e o su je it o que co nhec e e o fat o por
co nhe cer . Haver á e xist o se e xist ir adequação , id e nt id ade o u

103
COUT I NHO, Jac int o Ne lso n d e M ir a nda. S ist e ma Acu sat ór io : Cada par t e no lugar
co nst it uc io na lme nt e de mar cado ( Br as íl ia , v. 46, n. 183, ju l. / set . 2009), p. 105.
104
S e, po r ém, a ver dade s er ia o u não o fi m ma io r do pr o cesso pena l no s ist e ma
inqu is it ó r io , dever á ser ana lis ado po st er io r me nt e.
105
GUZM Á N, N ico lá s. La ver dad e n e l pr o ceso pena l. ( Bue no s Air es: De l P uer t o, 2006),
p. 33
106
MI T T E RMAI E R, Car l Jo seph Ant o n. T r at ado da P ro va e m Mat ér ia Cr i m ina l ou
E xpo s ição Co mpar ada. ( Ca mp ina s: 2008, Boo kse ller ) . p. 31.
62

co nfo r midad e e nt r e a r epr esent ação do fat o pe lo su je it o que busca


107
co nhe cê - lo e o pró pr io fat o , co mo r ealid ade o nt o ló g ica. ”

É, portanto, um elemento ontológico que pode ser verdadeiramente


conhecido pelo procedimento judicial. Ao resultado desse proc esso de
conhecimento, se chega ao que a doutrina penal nomeou de verdade real,
nomenclatura que osc ilou com o passar do tempo, mas manteve o mesmo
significado, conforme explica Guzmán:

“Ver dad “mat er ia l”, “ver dad r ea l”, “ver dad hist ó r ic a”, “ver dade
o bjet iva” so n t o das expr es io ne s que fuer o n e mp le adas
hist ó r ica me nt e par a des ig nar de mo do ind ist int o um ú n ico co ncept o ,
que encer r a ba La I dea de La po s ibi l idad de a lca nz ar e l co no c ime nt o
abso lut o de La ver r dad e m e l pr o ceso pena l, y s i mu lt á nea me nt e, e l
108
de La impo s ibi l idade de r enu nc iar a ess e co no cime nt o ”.

Esse conceito, embora fruto de uma construção hist oricamente anterior,


se enquadra perfeitamente ao procedimento inquisitivo. Ele permite a
formulação de hipóteses sobre as quais o inquisidor pode montar um
complexo quebra cabeças a partir de provas e indícios que ele busca e ordena
a fim de uma sentença comprobatória da hipótese e que invariavelmente é
prolatada por ele.

Aqui vale fazer um adendo sobre a marcante diferença estabelecida


entre verdade material e verdade formal. Em uma definição concisa, explica
Guzmán :

"La d ifer e nc ia e nt r e "ver dad mat er ia l" y " ver dad fo r ma l", po r lo
t ant o, s ie ndo e l r esu lt ado de do s m et o do lo g ía s co mp let a me nt e
d iver sa s, puede ser ent end ida segú n e l d ifer e nt e co nt enido que se
adscr ibe a u na y a o t r a. La pr imer a, pr opr i de lo s mo de lo s pe na le s
sust anc ia l ist as, est á info r mad a no só lo po r la co mpr o bac ió n de lo s
suceso s lle vado s a ju ic io , s ino t ambié n po r ot r as cuest io nes ( co mo
po r eje mp lo la per so na l idad de l de l i ncue nt e) , que impo ne n la
r ea lizac io n qu e u n pr o ceso que, t ie ndo po r fin u na ver dad
"a bso lut a" que de be ser inve st ig ado in c lu so por quie n luego debe
r eso lver e l c aso , no r espet a lím it e s ni gar a nt ías. La " ver dad
fo r ma l", po r su part e, se r efier e a lo s hecho s que so n a legado s po r

107
P I NT O, Fe lipe Mar t ins. I nt ro dução cr ít ica ao Pro cesso P ena l. ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 80
108
GUZM ÁN, o p. cit . , p. 31
63

la s par t es, do nde e l ju ez no cump le ningú n r o l invest igat ivo y


do dnde aqué lla s puede n inc luso d ispo ner de lo s hec ho s y de l
der echo . E n e fect o , en e l t ipo de pr o ceso s do nde e lla e s per s egu id a
( co mo en e l pr o ceso civi l) , la s par t es puede n d ispo ner de la s
pr uebas e inc lu so pueden no int r o duc ir hec ho s que t a l vez
109
r esu lt ar ía n r e le va nt es par a la dec is ió n" .

Essa verdade concebida como uma ideal e perfeita reprodução de fatos


do mundo naturalístico foi nomeada correspondismo pela ciência jurídica .

A partir da nomenclatura conferida, procurou -se definir tudo aquilo que


o conceito de correspondismo abarca do p onto de vista do Processo Penal, e
com pouquíssimas divergências, o conceito amplo ao qual se chegou na
Modernidade foi, em resumo:

“A t eo r ia da co r r espo ndê nc ia co nce be ver dade ir a a pr o po siç ão


capaz de r epr o duzir o aco nt ec ime nt o, pro jet ar a o cor r ênc ia co nc r et a
o u r eflet ir o fat o e se esco r o u na ide ia de que a r e a lid ade po de ser
per fe it a me nt e r eflet ida at r avé s de e nu nc iado s, o u seja, ent ende
po ss íve l a e xist ê nc ia de u ma ver dade abso lut a co mo image m do
mu ndo r eal.

E ssa co r r ent e filo só fica co ns ider a que a ver d ade de u ma s e nt ença


o u enunc iado co ns ist e e m sua co inc idê nc ia co m a r ea l idade,
o per ação est a na qua l se e st r iba o t r adic io na l e u lt r apas sado
o bjet ivo do pro cesso pena: a a ver igu ação o bjet iva da ver dade
110
hist ó r ica.

As bases para essa teoria reputam -se originadas do pensamento


Aristotélico. Absorvida pelo pensamento Ocidental na construção dos
ordenamentos, a temática voltou a ser amplamente discutida no século XX por
Russel, Wittgenstein e, posteriormente, Austin 111.

Em foco, a possibilidade de se chegar a u ma verdade no Processo Penal


e os meios para tanto, tornou -se um campo explorado por processualistas
empenhados na tarefa de exorcizar toda herança inquisitorial que permeia os

109
GUZM ÁN, N ico lá s. La ver dad e n e l pr o ceso pena l. ( Bue no s Air es: De l P uer t o, 2006),
p. 36
110
P I NT O, Fe lipe Mar t ins. I nt ro dução cr ít ica ao Pro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 81
111
P I NT O, o p. cit . , p. 80
64

Ordenamentos nacionais e afronta cervicalmente o Estado Democrático de


Direito, com todas as garantias que lhe são inerentes. Logo, o
correspondísmo, como modo de se buscar uma verdade, tornou -se odioso aos
olhos daqueles que buscam a plena humanização do sistema persecutório
criminal contemporâneo .

A razão é simples: a partir das pr emissas do correspondismo é que se


sustentou a Inquisição, e uma vez que essa instituição fez parte da história da
humanidade, impossível se conceber novamente um sistema puramente
acusatório, sem se afastar definitivamente a ideia de verdade ontológica a ser
alcançada pelo procedimento judicial.

Começa-se, então, a se entender a busca pela verdade como um


processo de "reconstruções aproximadas" 112, e depois fala -se construção da
verdade pelo processo, impossibilidade de qualquer reprodução e mesmo
inexistênc ia de verdade no Processo Penal 113.

Sem entrar no mérito das discussões que daí decorrem, o que resta
inquestionável é o fato de que o correspondismo, na forma como é entendido,
está profundamente atrelado ao sistema inquisitorial. Sem aquele, é
impossível que este tivesse sido concebido, justamente pelo fato da Inquisição
adotar, como certeza de seus trabalhos, a existência de uma realidade -
pecaminosa - a que se deve examinar tendo por objeto o indivíduo.

112
“L a pr imer a mis ió n de l jue z co ns ist e, pues, em r eco nst r uir lo s hec ho s t al co mo
apr o ximada me nt e se d ier o n e m la r ea l idad. E st e la bo r de co nst r ucc ió n so lo puede ser
apr o ximada, ya que e s i mpo ss ib le r epr o duci r e l hec ho acae c ido e m t o do s sus det a lles”.
( CONDE , Fr anc isco Muño z. La Búsque da de la ver dad e n e l pr o ceso pena l. Ar ge nt ina:
E dit o r ia l Ha m mur abi S RL, 2000) , p. 39)
113
“Ba jo est a per spect iva, par ece co nve ni ent e aba ndo nar de u ma vez po r t o da la I dea de
que la bú squeda d e la ver dad e s e l fin de l pr o ceso pena l, par a no gener ar co nfus io ne s
t eó r icas ni pr act ica s. La I dea de la bú s queda de la ver dad co mo met a de l pr o ced im ie nt o
in flu ye e m gr a n med ida e m la co nc ie nc ia jud ic ia l pe na list a y l le va a lo s ju eces a exc ede r se
e m sus fu nc io ne s esp ec íf ic as y a busc a r por e llo s m is mo s co r r abo r ac io nes de hipó t esis
[ . .. ], cuant o t odo lo que de ber ía n hacer es a na l izar s i la s que les pr e se nt an la s par t es ha n
a lca nzado u m c ier t o gr ado de co nfir ma c i ó n”. ( GUZM ÁN, N ico lás. La ver dad e n e l pr o ceso
pena l. ( Bueno s Air e s: De l P uer t o , 2006) , p. 116)
65

E, perceba-se : esse processo de coisificação da pes soa humana no


caminho que leva à verdade ontológica só é possível pela a inexistência de
limites valorativos para o procedimento investigatório:

"Lo c ier t o es que est a ver dad mat er ia l s ie mpr e est uvo e mpar e nt ada
a l mo de lo inqu is it ivo y e llo es a s í po r e l t i po de ver dade que apu nt a
est e s ist e ma: a la ver dad abso lut a. FE RR AJOLI lla ma a est a
ver dade mat er ia l co mo e l no mbr e ver d ad sust anc ia l, y la e xp l ica
co mo la ver dade a la que a sp ir a e l mo de lo sust anc io na l ist a de l
der echo pena l, es dec ir , u ma ver dad “o mnico mp r e ns iva e m o r den de
la s per so nas invest igad as, car e nt e de li m it es y de co nfine s lega le s,
a lca nza ble co m cua lqu ier méd io má s Al lá de r íg ida s r eg la s
pr o cedime nt a le s”. Aqu í, e l o bjet o del c o no cim ie nt o no es so lo de l
de lit o e m cua nt o pr evist o co mo t al p o r la l e y, s ino t ambié n la
des viac ió n cr i m ina l e m cua nt o em s í m i s ma in mo r a l o ant iso c ia l y,
má s a l lá de e l la, la per so na de l de l in cuent e, de cu ya ma ldad o
ant iso c ia lid ad e l d e lit o es vist o co mo u ma ma nife st ac ió n
co nt inge nt e, su fic ie nt e, per o no s i e mpr e neces ar ia par a e l
114
cast igo . "

Em outras palavras, os alicerces do correspondismo, na verdade real,


são uma colônia vil para a proliferação dos procedimentos inquisitórios
irrefreados. Isso passa a ser dest rutivo para o sistema frente às reformas
humanistas em busc a das garantias do homem, a que o pensamento ocidental
se empreendeu alguns anos mais tarde .

Não obstante, o que se começa a evidenciar, é que o próprio


correspondismo começa a fazer brotarem incoerências no seio do
procedimento investigatório da Inquisiçã o.

A primeira dessas incoerências, ainda no auge do sistema, pode ter sido


detectada do Henrich Kramer e James Sprenger 115. Ao formular o Malleus
Maleficarum, os autores têm de abordar temas que a prática da investigação
inquisitorial traz a tona , como, por exemplo a questão de um indivíduo cuja
heresia é trazida ao conhecimento por um inimigo mortal.

Neste caso os i nquisidores então doutrinam:

114
GUZM ÁN, N ico lá s. La ver dad e n e l pr o ceso pena l. ( Bue no s Air es: De l P uer t o, 2006),
p. 33
115
KR AME R, H. ; S P RANGE R, J. O mar t e lo das fe it ic e ir a s. ( R io de Jane ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) : Vi de Que st õ es I a XI I da T er ce ir a P ar t e.
66

"Or a, caso se indagu e s e o Ju iz po de ace it ar ini m igo s mo r t ais da


pesso a acusada par a pr est ar depo ime nt o no caso , cu mpr e r espo nder
que não . [ . .. ]. Os inim igo s mo r a is são car act er izado s pe las
c ir cu nst ânc ias s egu int es: e m caso de haver ho st il idade mo r t al o u
ve ndet a e nt r e as par t es, o u quando ho uve t ent at iva de ho mic íd io , o u
quando u ma le são o u fer ime nt o de ma io r gr avidad e de no t a
ma ni fest a me nt e a e xist ênc ia de ó d io mo rt al po r part e da t est e mu nha
co nt r a a pesso a acusada. Ne sse s ca so s pr esu me - s e que, as s i m co mo
a t est emu nha t ent o u causar a mo r t e t empo r a l do pr is io ne ir o ,
fer indo - o , t ambé m t ent ar á co nsegu ir o seu int ent o acusan do - o de
her es ia " 116.

É curioso notar que os autores procuram evitar uma condenação


"injusta " movida por interesses pessoais 117. Deste modo, a verdade pretendida
pelo acusador poderia ser investigada sem interferência da vontade de
particulares.

De toda feita , essa falibilidade apontada por Kramer e Sprenger permite


refletir sobre a capacidade dos testemunhos de contribuir para o encontro da
verdade correspondista no processo penal. Afinal, o testemunho pessoal é
uma visão parcial de qualquer fato. Não há como afirmar que, sobre um
mesmo evento, duas pessoas tenham tido exatamente a mesma experiência e
nem como controlar a forma como suas próprias paixões irão influir na
percepção do objeto de observação como explica Muñoz Conde:

“La cr ed ib i l idad d e u m t est igo t ampo co es u ma ver dad t aut o ló g ica,


s ino a lgo que ad mit e d iscr epâ nc ias r es pect o a sua va lo r ac ió n que,
e m ú lt i ma inst anc ia, es e l r esu lt ad o de la e xper iê nc ia, de l
co no cim ie nt o ps ico ló g ico , de fa ct o r es per so na les y pr o fe s io na les,
de l níve l int e le ct ua l o mo r a l de l t est igo ; t o do ello va lo r ado por el
juzgado r e m u m det er minado co nt ext o, t enie ndo e m cue nt a t ambé n
lã s dec lar ac io nes de o t ro s t est igo s, la co r ro bo r ació n de sus
118
dec lar a c io nes po r ot r as fue nt es de info r mac ió n, et cét er a ” .

Os argumentos apresentados po r Muñoz Conde servem também para se


questionar a credibilidade do testemunho do próprio investi gado. Afinal, um

116
KR AME R, H. ; S P RANGE R, J. o p. cit . , p. 404.
117
Re le mbr a ndo o que fo i d it o no capít ulo ant er io r fo i e st e um do s pr o ble ma s que
mo vi me nt ar a m o dir e it o ro ma no a aba nd o na o s ist e ma do acusat i o.
118
CONDE , Fr a nc is co Mu ño z. La Búsqu e da de la ver dad e n e l pr o ceso pena l. Ar gent ina:
E dit o r ia l Ha m mur abi S RL, 2000) , p. 110
67

acusado, ao presenciar qualquer fato, exerce sobre ele a mesma valorização


que qualquer testemunha.

Século após a publicação do Malleus, q uando Beccaria 119 critica a


tortura, não está fazendo outra coisa senão colocar em dúvida a credibilidade
do testemunho trazido pelo investigado através da confissão. Percebe-se,
portanto, que nas observações Beccarianas está um embrião da moderna
crítica que se f az ao correspondismo enquanto verdade que se procura
alcançar no processo penal 120.

Adiante, outra questão merece ser discutida é a qualidade da certeza


assumida pelo juízo, quando supostamente assume ter encontrado a verdade ;
se é uma decisão pautada pela c erteza objetiva ou subjetiva 121.

A priori a melhor resposta parece ser: no si stema da Inquisição, a


certeza judicial é sempre objetiva, posto que se refere ao conhecimento de
uma verdade também objetiva; ao revés, no sistema acusatório nos moldes
contemporâ neos, ter-se-á qualquer sentença como subjetiva, pois se refere aos
elementos trazidos ao juiz pelas partes.

Contudo, esta não parece ser a conclusão mais acertada. O


correspondismo assumido inquisitorialmente alcança uma certeza do juízo
que, assim como no sistema acusatório atual, é subjetiva e jamais objetiva.
Isso porque o pecado que os inquisidores perseguiam não era uma realidade
ontológica metodologicamente verificável.

Embora se acreditasse que qualquer inquisidor pudesse conhecer o


pecado do herege através dos métodos prescritos pelos manuais da Inquisição,
a análise dos indícios de heresias nada tem de diferente da análise subjetiva
que os juízes contemporâneos fazem das provas. Entre os dois cenários, o que
verdadeiramente abre caminho à utilizaç ão dos métodos cruéis de obtenção da

119
BE CCARI A, Cesar e Bo nes a na. Do s delit o s e das penas. ( S ão P aulo : Mar t ins Fo nt es,
2005) , p 72.
120
Ainda que, o bvia me nt e, o aut o r não deixe po r is so de ser cor r espo nd ist a.
121
GUZM ÁN, N ico lá s. La ver dad e n e l pr o ceso pena l. ( Bue no s Air es: De l P uer t o, 2006),
p. 26 - 30
68

prova, não está relacionada à natureza da certeza judicial - conforme


acreditavam os inquisidores - ma s deriva da tarifação das provas, elemento
tipicamente inquisitorial já tratado no capítulo anterior.

Dessa maneira , a diferença entre a certeza do julgador nos dois


sistemas, é que no acusatório atual , assume-se que as conclusões subjetivas
poderiam ser distintas, enquanto que naquela sistematização do século XII, o
as conclusões - acreditava -se - necessariamente ser iam iguais, pois os
diferentes j uízos chegariam à mesma realidade objetiva por terem se valido,
para tanto, de procedimentos e métodos considerado hábeis a permitir o
alcance da verdade substantiva.

Outra questão decorrente da assunção de uma verdade corres pondista


pelo sistema inquisitorial, é a inevitável elevação da verdade a um status de
valor a ser perseguido . Neste pe rspectiva, "podria decirse que existe uma
idéia generalizada de que existe um modelo procesal “bueno”, que es el
dispositivo, em el cual la búesqueda de la verdad representa um no-valor o
um disvalor, y um modelo procesal “mal”, que es el inquisitivo, em el cual la
búsqueda de la verdad es considerada um valor" 122.

Contudo, não se entende que colocar a verdade como um fim para o


processo penal, seja, de qualquer maneira , malévolo ao sistema jurídico.

No retrospecto histórico, a verdade foi perseguida por sistemas


jurídicos clássicos, como o romano 123. Não por isso se considera que o direito
romano se caracterize pela crueldade contra os acusado s no processo penal 124
na mesma medida que o sistema inquisitorial.

122
GUZM ÁN, o p. cit . , p. 33
123
MI T T E RMAI E R, Car l Jo seph Ant o n. T r at ado da P ro va e m Mat ér ia Cr i m ina l ou
E xpo s ição Co mpar ada. ( Ca mp ina s: 2008, Boo kse ller ) . p. 27.
124
Os o r dena me nt o s jur íd ico s t ambé m c o lo ca m a ver dade co r r espo nd ist a ( Ar t . 211 do
Có digo de P r o cesso P ena l br a s ile ir o : "S e o ju iz, ao pro nunc iar se nt ença f ina l, r eco nhecer
que a lgu ma t est emu nha fez a f ir maç ão fa ls a, ca lo u o u nego u a ver dade, r emet er á có pia do
depo ime nt o à aut or idade po lic ia l par a a inst aur ação de inquér it o ") co mo u m fi m p ar a o
pr o cesso pena l, mas a inda a ss i m o s ist ema s se bl inda m co nt r a a t o rt ur a de o ut r as ma ne ir a s
que não pela ext inç ão do cor r espo nd is m o .
69

O que, por outro lado, torna a assunção da verdade por valor na


Inquisição algo tão perverso, é a inexistência de outros valores, e scalados ao
ápice deste sistema, aptos a limitar a atuação da máquina persecutória na
busca da verdade.

É que naqueles modelos clássicos a perseguição d a verdade pareava


com valores como justiça, bem, cidadão, igualdade et cetera. No cenário em
que a Inquisição se estabelece, a Igreja Católica, enquanto instituiçã o
espiritualizada, buscava resumir em sua doutrina tudo o que se entendia por
bom, justo, correto e devido ao homem.

A doutrina Católica prega - e sempre pregou - a propagação de uma


cultura de solidariedade, amor e perdão. Todavia, estes ideais nunca for am
içados ao âmbito jurisdicional. Naquela esfera a instituição eclesiástica
concentrou seus esforços em consolidar seu poder eliminando a oposição
herege. Tal, sob o argumento da salvação das almas, afinal, se a Igreja era a
representante de Deus no mundo , é justo permitir que ela fizesse o necessário
aumentar sua força e cumprir sua missão.

No processo penal, isso significou , como observado, a colocar a


verdade enquanto valor absoluto. Como a Igreja Católica decidia o que era
certo ou errado, e sua dout rina foi voltada a justificar o método inquisitório,
suas premissas de benevolência e amor ao próximo não se aplicavam ao
acusado do sistema penal, de modo que a certeza de uma realidade a ser
conhecida era perseguida sem obstáculos.

Conclui-se ademais que o correspondismo presente no Processo Penal


Inquisitorial confluiu, através de seus métodos e instrumentos de persecução,
na diminuição do homem como possuidor de direitos que hoje se reconhecem
invioláveis. Isso seu deu, conforme se asseverou, justament e por ter-se
admitido a elevação da verdade - uma vez tida como absoluta e alcançável -
ao status de valor soberanamente desejado no âmbito processual, em um
momento histórico em que não havia outros valores jurídicos passíveis de
ponderação quando confron tados pela busca implacável da verdade.
70

O que era de direito ao homem não era protegido no âmbito


jurisdicional, mas em uma esfera anterior: na sociedade, através da religião.
A guarda de tais direitos era de competência da Igreja e sobre ela não se
levantava a menor dúvida de que estava a perseguir o melhor para todos, pois
lhe incumbia a salvação das almas e todos acreditavam nisso 125. Inconcebível,
repete-se, que por trás da Criação da Inquisição (ou de qualquer atuação da
Santa Igreja) estivesse qualquer intenção perniciosa, mas apenas a
clarificação do caminho que leva a Deus.

Delimitado o conceito de correspondismo e definido seu papel na ordem


inquisitiva, resta explorar a relação com o principal instrumento utilizado na
busca da verdade: a tortura.

2.3 Verdade c orrespondista e tortura

Sob a perspectiva moderna, muitos são os fins doutrinariamente


assumidos para o processo penal como a realização do Direito Penal material,
a descoberta da verdade ou mesmo a jurisdição em si 126.

De fato, na operação cot idiana do Direito, não raramente se vê atuações


desprovidas de qualquer legalidade, por parte de órgãos do Estado, sob o
argumento de se buscar a verdade real em um caso concreto. Não obstante,
alguns processualistas, importando o conceito do Processo Ci vi l, afirmam que
o fim do processo é a aplicação do d ireito material. Outros ainda, mais

125
S e não de fat o, ao me no s hipo t et ica m ent e po is a r e l ig ião cat ó lica r e ina va qu ase que
so ber ana no o cide nt e co nhec ido .
126
GUZM ÁN, N ico lá s. La ver dad e n e l pr o ceso pena l. ( Bue no s Air es: De l P uer t o, 2006),
p. 115
71

garantistas colocam ao fim da caminhada processual o exercício da jurisdição,


dentro do que possa ser construído nos limites da legalidade 127,.

Sobre este problema Nicolás Guzm án tece as seguintes considerações:

“P o dr ía mo s dec ir que u no de lo s fine s de l pr o ceso , l at u senso , es


po sibi l it ar la act uac ió n de la le y pe na l, es dec ir , la ap l ica c ió n de la
le y su st ant iva e m u m caso co ncr et o . S in e mbar go , decir que e l o ut ro
f in es e l de scu br im ie nt o de la ver dad y co nfo r mar no s co m e l lo s es
e m r e a lid ad inco r r ect o. E m e fe ct o , po dr ía t a mbié n dec ir se que su
f in – o , al me no s, o ut ro de sus fine s – es ve lar po r que se cu mp la n
lã s gar a nt ia s de lo s der ec ho s fu nd a me nt a le s de lo s ind ivíduo s, a l o
que po dr ía agr egar se cua lqu ier o ut ro fin que se no s o cur r ier a co mo
co nd ic ió n nec esar ia par a que la jur isd icc ió n fuer a e jer c it ada de
128
acuer do a lo s ma nd at o s co nst it uc io na le s ” .

E conclui:

“P o dr ía mo s dec ir , ent o nces, que e l pr o ceso t ie ne, e m se nt ido


est r ict o , um co nju nt o de fines, que t ie nde n a po s ibi l it ar la vá lid a
ap lica c ió n de la le y pe na l y no so lo la s imp le ap l ica c ió n de la le y
129
pena l su st ant iva y/ o e l descu br i me nt o de la ver dad”.

Críticas à parte, o que se deve notar é que no conceito trazido por


Guzmán a verdade é colocada, ainda que minimamente, ou de forma indireta,
como um fim necessário do Processo Penal.

Se o é na contemporaneidade, em que o conceito de verdade é inventado


e reinventado a todo momento, o que se dirá nos tempos da Inquisi ção n os
quais, conforme oportunamente foi afirmado, o inquisidor movimenta o
processo a seu bel prazer.

127
COUT I NHO, Jac int o Ne lso n d e M ir a nda. S ist e ma Acu sat ór io : Cada par t e no lugar
co nst it uc io na lme nt e de mar cado ( Br as íl ia , v. 46, n. 183, ju l. / set . 2009), p. 105 - 106.
128
GUZM ÁN, N ico lá s. La ver dad e n e l pr o ceso pena l. ( Bue no s Air es: De l P uer t o, 2006),
p. 115
129
GUZM ÁN, o p. cit . , p. 116
72

Não restam dúvidas que o sistema jurídico que se arvorou a partir da


Inquisição do século XIII, colocou a busca da verdade como um fim a ser
buscado pela atuação jurisdicional às custas da dignidade humana 130.

Também restou bem discutido o papel da teoria correspondista para a


ordem inquisitória. Concluiu -se ademais, que o correspondismo está
profundamente arraigado nesta realidade, que o absolveu como um núcleo
indissociável, sem o qual não consegue sobrevi ver.

O que se reservou para oportunidade, e até então não se debateu, é


como a correspondência se dá com a tortura. Observe -se que a aproximação
agora feita não é entre a teoria correspondista e o sistema, mas entre aquela e
a tortura como um método utilizado no âmbito deste último.

Como premissa essencial cabe repisar, que por tortura assume -se "uma
pena atribuída a um réu condenado por sentença, mas a pretensa busca da
verdade por meio dos tormentos”. 131

Isso fica mais translúcido em uma passagem do Martelo das Feiticeiras:

"S e apó s a de vida ses são de t o rt ur a a ac usada s e r ecusar a co nfes sar


a ver dade, ca ber á ao Ju iz co lo car d ia nt e de la o ut ro s apar elho s de
t o rt ur a e dizer - lhe que t er á de suport á - lo s se não co nfes sar . S e
ent ão não fo r induz ida pe lo t er r or a co nfes sar , a t ort ur a dever á
pr o ssegu ir no segundo o u no t er ceir o d ia, mas não naque le mes mo
mo me nt o, sa lvo se ho uver bo as ind icaçõ es de s eu pr o váve l
132
êxit o ”.

130
P o sic io na ndo - se nest e se nt indo , int er essa nt e dest acar a po s ição de Fr eder ico Mar ques
e m r e lação ao sist e ma inqu is it ivo : "No s ist e ma inqu is it ivo não ha via at uação jur isd ic io na l
e ine xist ia o pro cesso . O que ne le s e enco nt r ava er a u ma fo r ma pr o ced ime nt a l d e
aut o defe sa do int er ess e r epr es s ivo do E st ado , em que o ju iz e ncar na va e ss e int er esse,
mu it o e mbo r a r evest ido da indep e ndê nc ia de seu car go , a qua l, d ig a - se de pa ss age m, er a
mu it o pr ecár ia ao t empo do abso lut is m o mo nár qu ico , que fo i o per ío do áur eo da just iça
inqu is it iva ". ( MARQUE S , Jo sé Fr eder ico . E le me nt o s do Dir e it o P ro cessua l P ena l . v. 1.
( Ca mp inha s: 2009, Mil le nniu m) p. 6).
131
VE RRI , P iet r o. Obser vaçõ es so br e a t o rt ur a ( S ão P aulo : Mart ins Fo nt es, 2000) , p. 77
132
KR AME R, H. ; S P RANGE R, J. O mar t e lo das fe it ic e ir a s. ( R io de Jane ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) , p. 43 3.
73

Perceba-se que não se exige da "bruxa" que conte o que sabe, que diga
sua versão, ou que se manifeste sobre o fato, mas que "confesse a verdade".
Clara amostra das intenções que perfazem o método da tortura.

Assim, para que os tormentos tenham a existência justificada, há de se


provar que "constituem um meio de saber a verdade, e é justamente esta a
questão. Teriam de demonstrar que é um meio de saber a verdade, e somente
então o raciocínio seria fundado”. 133

Muito complexa é a tarefa de reconstruir a lógica que justifica a prática


da tortura. Isso porque e ssa construção partirá, necessariamente, de um
pensamento moderno que está viciado por noções de direitos humanos,
garantias fundamentais, Estado de Direito, et cetera.

Mas, no seio do procedimento inquisitorial, como já se demonstrou,


está a busca da verd ade correspondista. Sem dúvidas, ela é uma herança para
o processo penal moderno, posto que na concepção atual de processo, admite -
se a busca pela verdade através da reconstrução aproximada dos fatos:

“P o r lo t ant o, par a est a r eco nst r ucció n apr o ximada de l o s he c ho s,


po sible me nt e co nst it ut ivo s de de l it o , el juez o t r ibu na l ut il iza u ma
ser ie de e le me nt o s que sir ve n de “pr u eba ” de có mo eso s hec ho s
e fect iva me nt e se pr o dujer o n. E nt r e est as pr ue bas se cue nt an La
insp ecc ió n o cu lar , La pr ue ba do cu me nt a l, La pr ueba de t est igo s y
La de per it o s, e inc lu so , aunque má s dud o sa me nt e, La co nfes ió n de l
pr ó pr io acusado y ca nt o s ot ro s méd io s de pr ueba S ea n ad m is ib les
po r el Der ec ho . La fu nc ió n ind ic iar ia de cada u no de de est o s
méd io s de pr ue ba vie ne co nd ic io nad a po r e l he c ho que se t r at a de
134
pr o bar ”.

É justamente nessa busca da reconstrução dos fatos, que se encontra o


correspondismo nos mesmos moldes observados no medievo.

Conclui-se, então que o correspondismo ainda está intimamente


enraizado no pensamento moderno no que se refere ao processo penal e aos

133
VE RRI , P iet r o. Obser vaçõ es so br e a t o rt ur a ( S ão P aulo : Mart ins Fo nt es, 2000) , p. 86
134
CONDE , Fr a nc is co Mu ño z. La Búsqu e da de la ver dad e n e l pr o ceso pena l . Ar gent ina:
E dit o r ia l Ha m mur abi S RL, 2000) , p. 40
74

meios de prova. Por ser, com o se demonstrou, um elemento nuclear na


ideologia inquisitiva, figura como o caminho que melhor permite a
compreensão da utilização da tortura enquanto método no primeiro momento
da pesquisa.

Retornando ao cenário ambientado entre os séculos XIII e XVIII,


percebe-se que aqui o caminho para a verdade é trilhado indiferentemente a
qualquer questionamento se é possível chegar a este fim e o que se e ntenderia
como tal. O mundo está lá fora e a verdad e é a representação dele.

O “saber a verdade” por um indivíduo é fazer uma correta representação


mental do presenciado, logo o “trazer a verdade” ao processo seria
externalizar a representação da maneira fidedigna.

O problema que surge : qual seria o paradi gma para o que se afirma ser
o verdadeiro?

Ainda que haja um parâmetro, faz -se mister garantir uma reprodução
fidedigna dos fatos. Contudo,

“de t o do s est o s ele me nt o s de pr ueba e l má s d if íc i l y co mp le jo , y e l


de va lo r más dudo so r espect o a La co nc lu s ió n, es La pr ueba
t est if ica l. Las dec lar ac io ne s de lo s t est igo s pr ese nc ia lr es de lo s
hec ho s so n a me nudo co nt r adict o r ia s ; eas má s, so n lo s pr o pio s
t est igo s lo s que co m su s dec lar ac io nes de fo r ma n, co nsc ie nt e o
135
inco nsc ie nt e me nt e, la r ea lid ad”.

Como ter certeza d e que houve uma correta reprodução do real se o


testemunho, como sugere Muñoz Conde, é uma prova tão falível e sujeita à
erros? E, finalmente, como garantir que qualquer erro na descrição de um fato
está na incorreta correspondência e não em uma externaliz ação
propositalmente enganadora ? 136

135
CONDE , Fr a nc is co Mu ño z. La Búsqu e da de la ver dad e n e l pr o ceso pena l. Ar gent ina:
E dit o r ia l Ha m mur abi S RL, 2000) , p. 41
136
Co mo no caso já c it ado e m que Kr a mer e S pr enger quest io na m a va l idade do t est e mu nho
de u m ini m igo mo r t al do acusado.
75

Para a primeira questão, o caminho encontrado pela Igreja Católica no


estabelecimento do sistema i nquisitório, foi o de conferir ao julgador o papel
de guardião da verdade a ser explorada pelo procedimento. Nesse sentido f oi
essencial que o sistema reunisse na mesma pessoa as funções de acusação e
julgamento, pois só assim há como certificar que a mesma verdade -parametro
tomada por base na formulação da hipótese acusatória, seja aquela sobre a
qual recairão as investigações . Portanto, o fato ocorrido a ser objeto do
procedimento, terá ocorrido da maneira como entender o inquisidor. Assim a
verdade estará posta para então se iniciarem os trabalhos.

A Inquisição fatalmente encontrou respostas para as demais questões


através da tortura. Todavia, até se chegar a semelhante conclusão, assume -se
que a igreja Católica tenha levado 39 anos, contados do Concílio de Latrão
em 1215, até a extensão das determinações constantes da bula Ad
137
Extirpanda , ao restante do mundo em 1254.

Talvez se possa pensar que a demora em assumir o método se relacione


com a crueldade inerente ao procedimento, mas o fato é que eventualmente
reconheceu-se a sua indispensabilidade , afinal, o correspondismo por si não
serviria a alimentar o modelo inquisitório, s em o emprego da tortura.

A priori, como foi exaustivamente ressaltado, a tortura parece mesmo


resolver todos os problemas emergentes busca da verdade real: não se concebe
que qualquer um possa fazer uma falsa representação mental dos fatos, apenas
que não se recorde precisamente do ocorrido e para tanto, o medo dos flagelos
bastaria para forçar o indivíduo a rememorá -lo; e se, havendo a representação
mental o investigado não quisesse externalizá -la, ou a externalizasse de
maneira diferente daquilo que lem bra, então a dor dos tormentos serviriam
para eliminar a resistência e trazer a verdade à luz.

A externalização que se perseguia seria, então, auferida através do


procedimento de interrogatório.

137
I sso não quer d izer que a t o rt ur a não fo sse ut iliz ada a nt e s de 1254, ape na s que a
inst it u ição ec le s iást ica a inda não est ava cer t a da neces s idade de sua inst it uc io na l izaç ão .
76

"O int er r o gat ó r io é a per qu ir ição da ver d ade po r me io de t o r m e nt o s,


o u se ja, da t o rt ur a; e à t ort ur a se po de cha mar int er r o gat ó r io , sendo
essa u ma a ver iguaç ão , uma vez que o j u iz inve st iga a ver dade po r
138
me io de t o r me nt o s”.

Mas para a adoção de um método tão violento, mesmo sob o


argumento de se buscar uma verdad e necessária, a Santa Igreja Católica, cuja
doutrina coloca o corpo do homem como um santuário inviolável feito à
imagem e semelhança do Criador, procurou se justificar teoricamente:

“Não se po de per der de vist a que a enge nho sa est r ut ur a do pro cesso
inqu is it ó r io co nt ava co m o est o fo t eó r ic o do s est udo s de fi ló so fo s e
t eó lo go s de no t ór ia er ud ição que fo r jar a m u m co nve nie nt e d iscur so
de super ação das t ent açõ es ( pr azer es) par a a ma nut enção do cor po
pur o e, a inda, a e xa lt aç ão do so fr ime nt o na e fê mer a vid a mu nda na,
v. g. je ju m, po br ez a e aut o flage lo , co mo ca minho par a a pur i f icação
da a lma e e le vação do espír it o ao P ar aís o , ao Reino de Deus.

S o b a ma nipu laç ão desse d is cur so , a to rt ur a adquir iu u m car át er


med ic ina l par a a a l ma, po is me s mo qu e o acusado fo sse ino cen t e
das i mput ação , a sua su bmis s ão ao s sup líc io s, e nqua nt o exp ia ção de
seus pec ado s, o apro ximar ia da d iv inda de ce lest ia l e, des sa fo r ma,
t o do s o s mar t ír io s, t o das as do r es, t o das as a ngú st ias e at é me s mo
as mar cas de ixad as no s co r po s ( s ina is ext er no s da pu r if icação ) ,
139
passar a m a go zar de uma co not ação bené f ica”.

Sobre um arcabouço teórico supostamente sólido – e quase sacro – o


aparato Inquisitivo estava preparado e desimpedido para perseguir a verdade.

Baccaria esclarece que , na dinâmica inquisitória, as circunstâncias em


que comummente se prescrevia a tortura era para o investigado confessar um
delito; caso este caísse em contradição; para se descobrir cúmplices; para
purgar a infâmia; ou para encontrar outros delitos de que o réu poderia ser
autos 140.

138
P I NT O, Fe lipe Mar t ins. I nt ro dução cr ít ica ao Pro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 20
139
P I NT O, o p. cit . , p. 21
140
T a is hipó t es es po de m var iar de aco r do co m o Or dena me nt o Jur íd ico . ( BECC ARI A,
Cesar e Bo ne sa na. Do s delit o s e das pena s. ( S ão P aulo : Mar t ins Fo nt es, 2005) , p 69) .
77

A verdade, como se pode observar, compunha a hipótese formulado ra


pelo inquisidor. A tortura, em resumo, prestava -se a averiguar apenas a
extensão desta verdade, os envolvidos no fato em tela e a confirmação da
hipótese formulada ex ante.

E por isso Beccaria reconhece como raciocínio subliminar a este


método:

"T u és cu lpado de u m de l it o ; é po is po ss íve l qu e o se ja s de o ut ro s


ce m; est a dú vida me o pr ime e quer o cer t ific ar - me co m meu pr ó pr io
cr it ér io de ver dade ; a s le is t o rt ur am - t e po r que és cu lpado , por que
141
po des ser culpado , po r que quero que t u se ja s cu lp ado ".

Observa -se que, na sentença exemplificativa apresentada, o inquisidor


já reconheceu uma verdade (tu és culpado), e esta é trazida como uma
correspondência que ele mesmo faz (meu próprio critério de verdad e).

Para que as autoridades inquisitoriais possam manipular as peças do


complicado quebra cabeça que engendram em cada um dos autos de fé
estabelecidos, é essencial que se estabeleça uma hipótese. A hipótese
diabólica servirá, então, para orientar todo o trabalho inquisitório.

Se, contudo, não há uma verdade posta anteriormente, a hipótese não


consegue se sustentar e não há processo.

Esta construção estabelece uma lógica formalmente perfeita na


operacionalidade do sistema inquisitório, pois uma "verdade " q ue leva à
busca da "verdade" retroalimenta a máquina inquisitiva. Logo, só o
correspondísmo pode servir de engrenagem neste aparelho.

Conforme se explicou, inicialmente o sistema inquisitivo foi todo


projetado para combater a heresia, mas a medida que os E stados Europeus
profundamente comungados com a Igreja Católica assimilaram -no a
normatividade criminal, o sistema se voltou contra o crime que muitas veze s

141
BE CCARI A, o p. cit . , p. 71
78

não feria a fé cristã, mas apenas a ordem social. A verdade perseguida deixou
de ser a verdade herét ica e passou a ser outra; a ser a verdade criminosa.

Talvez no si stema inquisitorial seja prudente falar que o fim imediato


seria a verdade, e o mediato a salvação da alma - seja pela purgação dos
pegados, seja pela manutenção da Igreja que é a grande salv adora das almas.
Diante daquela guinada histórica que trouxe os métodos inquisitoriais para
dentro do judiciário, afastou -se semelhante propósito mediato e por isso
alguns questionam a legitimidade das premissas trazidas ao poder secular.
Afinal toda a teo rização a que se fez referência, "justificava " a tortura para a
salvação da alma, mas não convencia quando se falava em "purgar a infâmia
pelo tormento". 142

Exatamente por ter ocorrido a contaminação das instituições estatais


pela procedimentalidade eclesiás tica é que a tortura se disseminou de forma
tão endêmica nos ordens jurídicas ocidentais. Por certo, ao atender também
aos interesses de monarcas desejos de consolidar o poder através de uma
lógica que tão eficientemente servira às ambições do Santo Padre.

Da extensa aplicabilidade do tormento, extrai -se inacreditáveis


injustiças e abusos em relação ao ser humano, só reconhecidas séculos mais
tarde. São inegáveis frutos de uma busca implacável pela verdade.

Apenas diante da análise das consequências decorre ntes da tortura


institucionalizada, é que se evidencia, com precisão, o preço cobrado pelo
correspondismo.

142
BE CCARI A, Cesar e Bo nes a na. Do s delit o s e das penas. ( S ão P aulo : Mar t ins Fo n t es,
2005) , p. 71
79

2.4 Tortura: a verdade a todo custo

Retomando o início do ponto anterior, fez -se uma breve referência


sobre o que se pode entender por processo e seus fins. Pois bem. A
necessidade que ora se afigura é a de esclarecer que em se falando de
processos judiciais, normalmente se observa um conflito de interesses. Na
ceara penal não é diferente.

Contemporaneamente, nesse campo, fala -se no interesse do Estado pelo


jus puniendi - e mais remotamente pela ordem social, em oposição ao
interesse do Indivíduo pela liberdade.

Realidade completamente diversa é a do ocidente no período


compreendido os séculos XIII e XVIII. Nele, pela vigência dos métodos
inquisitórios, cabia a seguinte referência:

“E a í, e m vir t ude do gr ande pr o ble ma ca usado pelo s ilê nc io o bst inado das
br u xas, sur ge m vár ia s quest õ es que o Ju íz pr ec isa co ns ider ar , as qua i s
ser ão t r at adas em d iver so s t ó pico s. A pr ime ir a é que o Juiz não deve s e
apr essar e m su bmet er a br uxa a e xa me , e mbo r a deva pr est ar at enção a
cer t o s s ina is i mpo rt ant es. Não deve se apr ess ar pe la segu int e r azão : a
me no s que Deus, at r avés de u m sa nt o Anjo , o br igue o de mô nio a não
auxi l iar a br u xa, e la se mo st r ar á t ão inse ns íve l às d o r es da t o rt ur a que
lo go ser á d i lacer ada me mbr o a me mbr o se m co nfes sar a me no r par ce la da
ver dade. Mas a t ort ur a não po de ser negl ige nc iada po r esse mo t ivo , po is
ne m t o das ela s t êm e sse po der , e t ambé m o dia bo , às veze s po r co nt a
pr ó pr ia, per mit ir á que co n fe sse m o s cr imes se m ser co mpe l ido por
143
qua lquer sa nt o anjo ”.

Nesse contexto, há, de um lado, o interesse da Igreja pela descoberta da


verdade herética – e indiretamente pela salvação das almas, e do outro o
interesse do demônio pela corrupção das almas. Ao centro, jaz, como mero
objeto, o homem (e talvez o Ma rtelo das Feiticeiras sempre se refira ao
acusado através do termo "bruxa" para que o leitor da obra se esqueça de que
está a se tratar de um ser humano comum), vítima dos métodos que deixam em

143
KR AME R, H. ; S P RANGE R, J. O mar t e lo das fe it ic e ir a s. ( R io de Jane ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) , p. 429.
80

seu corpo as marcas de busca incessante de indícios de um crime contra as


leis de Deus.

Com o passar dos séculos a Igreja foi trocada pelo Estado, o demônios
pelos opositores ao interesse público, mas o corpo humano continuou sendo o
objeto de investigação.

Esse sim é o grande foco ora assumido: demonstrar como a


implementação da correspondência, através da tortura, reduziu o homem de
sua condição humana, em um passado ainda influente na modernidade.

Como oportunamente se frisou, o método inquisitivo explorad o em um


âmbito jurídico de ausência de valores, principalmente valores ligados ao
homem, sujeita os indivíduos aos destemperos de uma ordem criada com
propósitos transcendentais. O sistema não sela nenhum compromisso exceto
consigo mesmo. Neste contexto a integridade física é tão importante quanto a
integridade de qualquer objeto passível de investigação.

Por isso a tortura encontrava um caminho livre para se perpetrar, e


como uma ideia que se enraíza paulatinamente no imaginário popular, a
metodologia dos tormentos ganhou adeptos.

“O s de fe nso r es da t o rt ur a pro cur am ap l icar a r epu lsa que se nt e m


t o do s o s cor açõ es sens íve is à s i mp le s imag inação do t o r me nt o.
P o uco so fr e o t o rt ur ado, dize m e les ; t r at a - se de u ma do r passage ir a
que nu nca c hega a e xig ir a int er ve nção de méd ico o u cir ur g ião ; são
exag er adas a s supo st as do r es. E sse é o pr ime ir o ar gu me nt o co m que
se t ent a su fo car o ca la fr io nat ur a l de sp er t ado na hu ma nidade pe la
144
ide ia da t o rt ur a”.

Muito feliz foi Pietro Verri em sua observação. O ilustre


pensador repara, que o primeiro embate daquele instrumento de flagelos, é a
repulsa humana natural. Por conseguinte, a primeira consequência decorrente
de sua implementação é a imposição de uma metodologia que, por natureza,
nasce odiosa aos olhos da sociedade. Res ta assim a seus defensores, afirmar

144
VE RRI , P iet r o. Obser vaçõ es so br e a t o rt ur a ( S ão P aulo : Mart ins Fo nt es, 2000) , p. 78
81

que o método não é tão absurdamente repugnante. Nisso se constituiu um


primeiro argumento.

Não somente sobre ele se justifica a manutenção da tortura. Há


que se afirmar sua necessidade no exercício da jurisdição, e ess a necessidade
só existirá enquanto se crer que através dela (tortura) é possível alcançar
qualquer verdade.

Mas como uma oposição à semelhante raciocínio só ganhou


expressão no século XVIII, por muito a percepção foi a de se tratar de um mal
necessário. Este é o segundo argumento trazido por Verri como proveniente
daqueles partidários da tortura:

“T a l de ve ser o se nt ime nt o de t o do aquele que, ao dist r ibu ir o se nso


de hu ma nidad e, não pr o ceda à injust a par t ilha de co nsagr á - la
int e ir a me nt e à p iedade par a co m o s c idadão s su spe it o s, se m
r eser var nada par a a ma io r ia do s c id adão s ino cent es. E st a é a
segu nda r azão em fa vo r da t o rt ur a, invo cada po r quem at ualme nt e
de fe nde o co st ume co mo be né f ico . , o po rt uno e at é mes mo
145
nec ess ár io par a a salvação do E st ado ”.

Perceba-se que as duas justificativas trazidas não negam os


suplícios aos indivíduo investigado, mas admitem -nos (i) aceitáveis ou (ii)
necessários.

Se então a tortura estava, por assim dizer, “afirmada”, não


obstante a repulsa que lhe acompanha a prática, por toda crueldade a que é
inerente, como esperar que o sistema inquisitorial obedeça, na produção das
provas, qualquer limite pautado no respeito para com o ser humano? Afinal,
aquele que pode (macular) mais pode também (macular) menos. Tão o é que o
"Santo Inquisidor" Heinrich Kramer leciona:

“E e nqua nt o est iver se ndo int er ro gada a r espe it o de cada u m do s


po nt o s, que se ja su bmet ida à t ort ur a co m a de vida fr equê nc ia,

145
VE RRI , o p. cit ., p. 85
82

co meç a ndo - se co m o s me io s ma is br a ndo s; o Ju iz não de ve se


146
apr essar e m us ar o s me io s ma is vio le nt os”.

Seu ensinamento de que "deves torturar" não é acompanhado de


qualquer "exceto se" ou "até que". É uma carta branca para a crueldade
descabida, e portanto, a prova produzida aí não está limitada no tempo, no
espaço e muito menos na forma 147.

Aliando isto, ao supra citado posicionamento da verdade real,


através da correspondência, “como objetivo processual, passou -se a
compreender que quaisquer meios de apuração serviriam como instrumento
para revelar o oculto e contribuir para a descoberta d o acontecido” 148.

Em um retorno analítico a esta era sombria, torna -se claro que as


noções humanistas introjetadas nas legislações sob a forma de garantias e
Direitos Fundamentais 149, são uma a uma a uma afastadas, por um mesmo
argumento que alimenta ao mesmo tempo que é alimentado por um sistema
criado "para" - e não "com " - o correspondismo.

“Ca mb ia n lãs t écnica s ; no ha y d e bat e cont r at ict or io ; t o do se lle va a


cabo secr et a me nt e; e n e l ce nt r o est á, pas ivo , e l inve st ig ado ;
cu lpa ble o no , sabe a lgo y est á o bli ga do a decir lo . la t ort ur a
est imu la lo s flu jo s ver ba le s co nt enido s. S o ber ano de la par t ida, e l
inqu is ido r e la bo r a hipó t eses dent r o de u m mar co par ano ide ; y a s í
sur ge e l ca su ís mo impur o de lãs co nfes io ne s co nt r a lo s co rr eo s, a
150
vec es o bt enidas co m pr o mes as de impu ni dad”.

146
KR AME R, H. ; S P RANGE R, J. O mar t e lo das fe it ic e ir a s. ( R io de Jane ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) , p. 433
147
Co mo afir ma ser d iver so s do s dias de ho je: CONDE , Fr anc isco Muño z. La Búsq ueda de
la ver dad en e l pr o ceso pena l. Ar ge nt ina : E dit or ia l Ha m mur a bi S R L, 2000) , p. 46.
148
P I NT O, Fe lipe Mar t ins. I nt ro dução cr ít ica ao Pro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 16
149
“E m e l pr o cesso pe na l, La bú squeda de La ver dad e st á li m it ada ad e más po r e l r espet o a
una s gat ant ías que t ie ne n inc lu so e l car áct er de der echo s hu ma no s r eco no cido s c o mo t a le s
e m t o do s lo s t ext o s co nst it uc io na le s y le ye s pr o cesa le s de t o do s lo s pa íses de nu est r a ár ea
de cu lt ur a. ( CONDE , Fr anc isco Muño z. La Búsqueda de la ver dad e n e l pr o ceso pena l.
Ar ge nt ina: E d it or ia l Ha m mur a bi S R L, 2000) , p. 112) .
150
CORDE RO, Fr anco . P ro cedim ie nt o P ena l, T o mo I I ( S ant a Fé de Bo got á: T emis , 2000),
p. 19
83

E por isso não se atribui limites à investigação. Ela pode começa com
um, ou com quantos indivíduos forem, e pode terminar com ainda outros. A
ideia de individualização das penas é desconhecida e a presunção de
inocência inexiste 151.

Aliás, tanto é incapaz de deter a máquina inquisitória, a


preocupação com o tormento de inocentes, que Verri, da mesma forma que
Beccaria, formula a contundente crítica:

“[ . . . ] o u o cr ime é cer t o o u é apenas pr o váve l. S e o cr ime é cer t o ,


o s t o r me nt o s são inút e is , e a t o rt ur a é ap licada de s nece ssar ia me nt e,
me s mo que co nst it u ís se u m me io par a d es ve ndar a ver dade, já que,
ent r e nó s, o r éu sa bida me nt e cu lpado é co nde nado , a inda que não
co nfes se o cr ime. Ne st e po nt o , port ant o , a t o rt ur a ser ia u ma
in just iça, po r que não é just o fa zer u m ho me m pad ecer
des nece ssar ia me nt e, e padec ime nt o s da ma io r gr a vidade. S e o
cr ime, po r o ut ro lado , é apenas pr o vá ve l [ . . . .] é evid e nt e que ser á
po ss íve l que o pro vá ve l cu lpado se ja de fat o ino cent e; e nt ão, é u ma
supr e ma in ju st iça que se e x po nha a lgué m que t a lve z se ja ino ce nt e a
mau s- t r at o s cert o s e a cr ude l ís s i mo s t o r me nt o s, e su bmet er u m
ho me m ino ce nt e a t ais sup l íc io s e mis ér ia s é t ant o ma is inju st o na
med ida e m que se age co m a pr ó pr ia fo r ça pú blic a co nfia da ao s
152
ju íze s par a a defe sa do i no cent e co nt r a os u lt r ajes”.

O próprio sistema não vê limites em se organizar de forma a


garantir o melhor "funcionamento" mesmo que tenha de conviver com
disposições contraditórias em seu seio legal:

“S e é inju st o que um ir mão acuse cr imi na l me nt e o o ut ro, co m t ant o ma i s


r azão ser á injust o e co nt r ár io à vo z da nat ur eza que u m ho me m se t o r ne
acusado r de s i me s mo e que a s dua s pesso as, a do acu sado r e a do
153
acusado , se co nfu nda m nu ma só ”.

Deste problema, como se pôde ver, ainda decorrem a impossibilidad e de


estabelecer um pleno contraditório e a separação entre o órgão julgador e o

151
Ma s se ho uver co mo se nt ir u ma br isa dest a gar ant ia, e la lo go é le vada pe la fo me dos
s ist e ma e m a l i me nt ar suas ba se s: "P o is a just iça co mu m e xige que a br u xa não se ja
co ndenada à mo r t e a me no s que t enha s ido dec lar ada cu lpada po r pr ó pr ia co nfis são "
( KR AME R, H. ; S P R ANGE R, J. O mar t elo das fe it ice ir as. ( R io de Ja ne ir o : Ro sa do s
t empo s, 2011) , p. 428. ) e se a co nfis sã o se dá med ia nt e o sup líc io a co nc lus ão é de que
ser ino cent e não sa lva n ingu é m da t ort ura.
152
VE RRI , P iet r o. Obser vaçõ es so br e a t o rt ur a ( S ão P aulo : Mart ins Fo nt es, 2000) , p. 96
153
VE RRI , o p. cit ., p. 97
84

acusador, elementos tão importante para a manutenção das garantias


humanitárias.

E, por fim, mas não menos absurdo, até suas próprias falhas e
incoerências são revertidas cont ra os acusados. Admitindo que a tortura pode
ser fonte de falsas correspondências entre fatos e representações, o Martelo
das Feiticeiras prescreve que a "Bruxa" seja submetida à novo tormento para
esclarecer a dúvida, ao invés de recomendar que a tortura seja deixada de
lado:

“E no t ar que, se co nfe ssar so b a t o rt ura, dever á ser ent ão le vada


par a o ut ro lo ca l e int er r o gada no va me nt e, par a que não co nfes se t ão
so me nt e so b a pr essão da t ort ur a”. 154

Percebe-se contudo, que, não obstante o papel do humanismo de


influenciar o surgimento de normas processuais consonantes com a dignidade
humana, tal não é o bastante para extirpar as premissas inquisitoriais de um
modelo de processo pretensamente acusatório. O modelo inquisitivo foi
criado para se retro alimenta r entre seus objetivos e seus métodos, logo, o
único meio de romper com o ciclo é com a eliminação de um desses elementos
de auto sustentabilidade.

Embora a busca da verdade seja indispensável ao processo , a construção


judicial na verdade não precisa ser através do correspondismo. Daí o
afastamento da lógica que alimenta o modelo inquisitorial poder ser alcançado
através do abandono da pretensão de se alcançar uma verdade correspondista
no processo penal 155.

Desse modo, enquanto a humanização judiciária es panta apenas os


métodos (dentre eles a tortura) que têm o homem como mero objeto e torna o
processo um lugar menos hostil para o ser humano, a desarticulação da
correspondência anula as bases que sustentam a ordem inquisitorial. Sua

154
KR AME R, H. ; S P RANGE R, J. O mar t e lo das fe it ic e ir a s. ( R io de Jane ir o : Ro sa dos
t empo s, 2011) , p. 445
155
P ar a me lho r se apr o fu ndar : P I NT O, Fe l ipe Mar t ins. I nt r o dução cr ít ic a ao P ro cesso
P ena l. ( Be lo Hor izo nt e: Del Re y, 2012) .
85

existência passa a ser injustificada uma vez que não há uma verdade imutável
a se buscar através de cada processo.

Se a pretensão dos ordenamentos jurídicos modernos é a de um processo


penal puramente acusatório (ao menos na fase judicial), é indispensável o
câmbio da busca pela correspondência, por uma verdade que se assume
construída através do procedimento jurisdicionalizado.

Como o sistema inquisitório apresenta , como justificativa para o


emprego dos tormentos, a busca dessa correspondência, s omente repudiando
o correspondismo, se abre espaço para o estabelecimento de um procedimento
judicial verdadeiramente humanizado.
86

CAPÍTULO 3: O ROMPIMENTO PARADIGMÁTICO: HUMANISMO


LIBERAL E O SUJEITO DE DIREITOS

Conforme se asseverou nos capítulos anteriores , embora o cristianismo


tenha sido a base da cultura ocidental, com o deslocamento da população para
as cidades, a Igreja Católica perdeu aquele enorme controle sobre a produção
intelectual e cultural que possuíra na alta Idade Média 156.

Não é de se estranhar, porta nto, que o chamado movimento


renascentista 157 tenha trazido o resgate de uma cultura considerada por anos
como pagã e condenad a pela igreja.

Percebe-se um saudosismo em relação aos ideais gregos de beleza e a


valorização da arte clássica. Há uma expansão na produção de conhecimento
técnico, não apenas para a aplicação prática nos ofícios, mas agora pela
produção de um conhecimento científico em superação ao modelo
teocrático 158.

Mais além, o período trouxe uma nova (re)visão do papel do hom em


diante do unive rso que lhe envolve. É o que se denominou de
antropocentrismo em referência ao papel central que a humanidade tomava
nesta nova fase , em contradição ao Deísmo imposto pela Igreja Católica n o
ápice da Idade Média.

156
WE LLS , Her ber t Geo r ge. H ist ó r ia U niver sa l. v. 4. ( E st ado s Unido s do Br as i l: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1145.
157
A o r ige m d ess e t er mo é at r ibu ída ao hist o r iado r su íço Bur ck har dt no fina l d o sécu lo
XI X e mu it o co nt est ada no me io acad ê mico , por ser co ns ider ada u ma t ent at iva de se
at r ibu ir a u m p er ío do exat o um co nju nt o de mo d if icaçõ es que s e e nt endeu i mpr e c isa me nt e
ent r e a I dade Méd ia e a I dade Mo der na. ( LE GOF F, Jacque s. As Ra íze s Med ie va is da
E uro pa. ( P et ró po lis: 2007, Vo zes) . p. 276) .
158
I mpo ss íve l não c it ar o papel de se mpe nhado ne ss e ca mpo po r Gio r dano Br uno ( 1548 -
1600) , Nico lau Co pér nico ( 1473 - 1543), Fr anc is B aco n ( 1561 - 1626) , Jo hanne s Kep ler
( 1571 - 1630) e, co ns ider a ndo - o ma is do que u m ar t ist a, Leo nar do da Vinc i ( 1452 - 1519) .
87

Impossí vel não notar neste resgate históri co, que é na fase renascentista
aonde está o embrião do humanismo do século XVIII. A visão
antropocentrista permitiu um salto fundamental entre a ideologia católica
empregada na manutenção de poder da Igreja , e a valorização do ser humano.

Nesse sentido, é primeiramente interessante a referência que Jaques Le


Goff faz a Nicolau de Cusa e Pawel Wlodkowic , naquele período. Para o
historiador, Nicolau, ainda que destacando a primazia do cristianismo,
teorizou as bases para o ecumenismo e anunciou, na mentali dade do século
XV, a tolerância religiosa 159. Wlodkwic, por sua vez, lançou as bases
modernas do direito internacional e em suas reflexões pregou a existência de
direitos naturais extensivos aos pagãos, dos quais emergiam direitos civis e
políticos 160. Ambos casos, apresentam, claro distanciamento em relação às
concepções católicas da baixa Idade Média.

Em tal contexto de revisão de va lores , é importante destacar também


Giovanni Pico Della Mirandola, ou Conde Della Mirandola (1463 -1494). A
produção intelectua l deste autor situa -se exatamente no momento em que se
discorda em certa parte com a estrita orientação Católica, mas tenta -se
concilia-la com o resgate de questões ontológicas transportadas da filosofia
clássica.

O Conde, identificado como humanista já no século XV 161, foi estudioso


das obras clássicas da filosofia, bem como se aprofundou na filosofia
escolástica. Sua formação permitiu -lhe uma contraposição clara entre a visão
pré cristã do homem e a visão do homem pecador medieval. Essa é a essência
do pensamento renascentista 162!

Não é de se estranhar que a Oratio Ioannis Pici Mirandulani


Concordiae Comitis, seja um oratório de contemplação ao homem:

159
LE GOFF, Jacques. As Ra íze s Med ie va i s da E uro pa. (P et ró po lis: 2007, Vo zes) . p. 258.
160
LE GOFF, o p. cit . , p. 260.
161
O que ser ve a co mpr o var que o hu ma nis mo do S éculo XVI I I t eve suas r a ízes no per íodo
do Renasc i me nt o.
162
MI R ANDO L A, G io va nni P ico De lla. D i scur so S o br e a D ig nid ade do Ho me m. ( P o rt ugal:
2010, E diçõ es 70) . p. XVI .
88

"F ina l me nt e, par eceu - me t er co mpr eend ido por que r azão é o
ho me m o ma is fe l iz de t o do s o s ser es ani mado s e d ig no , por is so , de
t o da a admir ação , e qual e nf i m a co nd i ção que lhe co ube e m so rt e
na o r dem u niver s a l, inve já ve l não só pe la s be st as, ma s t a mbé m
pe lo s ast r o s e at é pe lo s esp ír it o s supr a mu nda no s. Co isa
inacr ed it á ve l e mar a vilho sa. E co mo nã o ? Já que pr ec is a me nt e po r
is so o ho me m é d it o e co ns ider ado just ame nt e u m gr and e mi lagr e e
u m ser ani mado , se m dúvida d ig no de ser admir ado " 163.

Ele (o homem) é apresentado como obra máxima da criação divi na, e


merecedor de veneração em tudo que lhe tocar. O atributo que lhe confere o
papel de protagonista dentre a s criações divinas, é a liberdade 164! É a
capacidade de se sublimar aos anjos ou de se de generar aos vermes , por sua
própria vontade. Essa possibilid ade de se auto determinar, é um câmbio
significativo em relação à concepção de pessoa pré disposta ao pecado.

Mas a mudança de concepções não se operou de modo radical até o


século XVIII. O prestí gio da Igre ja Católica e sua notável habilidade de se
reinventar 165 e resistir a cismas fizeram com que a instituição continu asse a
ser um referencial no mundo renascentista. Não é por menos que o
desenvolvimento das técnicas artísticas se manifestou em diálogo com temas
bíblicos 166.

Ao final do século XVII essa presença intensa do poder eclesiástico na


sociedade começou a se ap resentar como indesejável.

Diversos fatores podem ser apontados para que novos ideários, partidos
do pressuposto antropocentrista, tomassem conta do ocidente e pouco a pouco
reclamassem um domínio ideológico antes ocupado pela doutrina católica.

163
MI RANDO L A, o p. cit . , p. 55.
164
MI RANDO L A, o p. cit . , p. 67.
165
P r inc ipa l me nt e co m a s o r dens me nd ica nt es que pr ega va m u m sacer dó c io se m
o pulê nc ia s, e a devot i o mo der na, que, na o br a A I mit aç ão de Cr ist o de To más d e Ke mp is,
apr ese nt ava u m no vo r efer e nc ia l de devo ção à image m da vida de Cr ist o .
166
E vid e nc ia - se e ssa co exist ênc ia no pa pe l da ar t e r ena sce nt ist a na o br a s sa cr as do
per ío do. A exe mp lo da p int ur a, o cuid ado co m a s fo r mas hu ma na s, co m a s c ur vas e o
r esgat e do nat ur alis mo na r et r at ação de cena s bíb l ica s, co lo car a m as no va s t écnic as a
ser viço da I gr e ja C at ó lica. Fo i o aba ndo no da t r adição med ie va l d e fo r ma s p l a nas,
o r na me nt a is e a nt i nat ur a list as. ( LOP E RA, Jo sé Alvar ez. H ist ó r ia Ger a l da Ar t e . ( Rio de
Ja ne ir o : 1995, Delpr ado ) . p. 62)
89

Em primeiro lugar a dimensão que as cidades tomaram, trouxe ram à


vida social uma complexidade nunca antes observada . Nunca os centros
urbanos estiveram tão inflados e repletos de tamanha diversidade de culturas,
ofícios e tradições. A noção da existência de conceitos universalmente
aplicáveis aos homens tinha um solo incontestavelmente fértil a ser explorado
naquele ambiente 167.

Essa situação se intensifica principalmente se levado em conta o


desenvolvimento dos meios de transporte e navegação, afinal, isso implica no
aumento na velocidade de deslocamento e de tráfego de informações.
Qualquer novidade chegava rapidamente ao seu destinatário da mesma forma
que surgiam noticias de lugares antes isolados 168.

O compartilhamento de informações, por sua ve z, permitiu a difusão e


desenvolvimento de ofícios relacionados à diversas áreas do conhecimento .
Notou-se o surgimento de nova s técnicas para a pintura 169, artesanato,
medicina, literatura e mesmo para a pesquisa cientifica de modo geral.

Todas essas inovações trazidas co m os novos t empos da Europa,


criaram, já nos séculos XV e XVI uma atmosfera de deslumbre com a
capacidade do ser humano. Não é por menos que o antropocentrismo, como
movimento que confere ao homem um papel valorizado frente ao mundo, se
desponta e difunde pelo ocidente.

Mas o antropocentrismo se opunha diretamente aos interesses da Igre ja


Católica. Afinal, conforme se apresentou nos capítulos anteriores, a
justificação para os projetos de manutenção e expansão do poder católico ,

167
LE GOFF, Jacques. As Ra íze s Med ie va i s da E uro pa. (P et ró po lis: 2007, Vo zes) . p. 254.
168
LE GOFF, Jacques. As Ra íze s Med ie va i s da E uro pa. (P et ró po lis: 2007, Vo zes) . p. 258.
169
"U ma no vidade c ha mada a u m e xt r ao r dinár io suce sso apar ece no co meço do sécu lo XIV,
o ret rat o. É um pr o dut o r da afir mação do ind iv íduo e des se no vo có digo de r epr ese nt ação
que se cha ma de r ea lis mo . E le é e nco nt r ado ent r e o s vivo s e ent r e o s mo rt o s. O r est o do s
que jaze m de ixa de s er co nve nc io na l p ar a se t o r nar "r ea l". Os r et r at o s ma is a nt igo s impõ e
a figur a do s po der o so s: papas, r e is, se nho r es r ico s bur gues es ; d epo is o r et r at o de
de mo cr at iza. A inve nção , no sécu lo X V, da p int ur a a ó leo e o desenvo lvi me nt o da p int ur a
de cava let e ser ve par a o r et r at o, que co nt inua, no ent ant o, ho nr ado no s afr es co s. " ( LE
GOF F, Jacques. As Ra íze s Med ie va is da E uro pa. ( P et ró po lis: 2007, Vo zes) . p. 255. )
90

desde o século XI, partia d a premissa doutrinariamente afirmada de um


universo teocêntrico 170.

Todavia, a cúria não tinha o mesmo poder de resposta que possuira nos
tempos de Inocêncio III. Devido aos inúmeros conflitos políticos em que se
envolvera nos séculos XIII e XIV, em razão d e seus interesses expansionistas ,
principalmente na península Italiana e com os reinos da França e Inglaterra,
os monarcas do antigo regime não ofereciam o mesmo respaldo aos
desmandos eclesiásticos 171.

Também entre a população, a cúria não goza va da melhor fama. As


corrupções e vidas pecaminosas incompatíveis com o bendito ofício, por parte
de certos clérigos, tornava m viral a descrença na instituição da Igreja
Católica.

Venda de indulgências, simonias, a própria cisma 172 em que se envolveu


a Igreja, enfraqueceu a imagem de uma igreja santa e universal . Os abusos e
as polêmicas em que os ocupantes do trono de São Pedro se envol viam, pouco
a pouco esvaziavam o sentimento de sacralidade para com a posição do Papa,
e no século XVI o posto de Pontífice parecia ma is uma coroação política do
poder de certas famílias na Itália, do que a herança sagrada de um sumo
sacerdote 173.

E mais, a própria atmosfera de medo trazida pelo Santo Ofício e pelos


Autos de Fé, associava o c atolicismo à uma imagem retrógada de rigor e

170
WE LLS , Her ber t Geo r ge. H ist ó r ia U n iver sa l. v. 4. ( E st ado s Unido s do Br as i l: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1199.
171
WE LLS , Op. cit . , p. 1124.
172
E m 1378 a I gr e ja Cat ó lica pa sso u a ser co ma ndada po r do is papas: Ur ba no VI , a par t ir
de Ro ma, e C le me nt e VI I e m Avig no n. E ssa d iv isão se ma nt eve at é 1417 co m a e le iç ão do
papa Mar t inho V. ( LE GOFF, Jacqu es. As Ra íze s Med ie va is da E ur o pa . ( P et ró po lis: 2007,
Vo zes) . p. 243) .
173
"O papa Ale xa ndr e VI ha via co mpr a do publica me nt e a t iar a, e seus c inco fi lho s
ba st ar do s co mpar t ilha va m d e suas va nt agens. S eu filho , o car dea l duque Bó r gia ma ndo u
mat ar , co m o aco r do do pai, o papa, os V it e ll i, o s Ur bino , o s Gr avina, o s O liver o t t o e
cent enas de o ut ro s senho r es par a apo der ar - se de seus do mínio s. Jú l io I I , a ni mado do
me s mo esp ír it o , exco mu ngo u Lu ís XI I , deu se u r e ino ao pr ime ir o o cupant e e, e le pr ó pr io ,
co m e l mo na ca beça e a co ur aça no peit o, pô s a fer r o e sangue u ma par t e da It ália . Leão X,
par a pagar seus pr azer es, co mer c ia l izo u indu lgê nc ias co mo quem ve nde mer cad o r ias nu m
mer cado públ ico ". ( VOLT AI RE , Fr anço is- Mar ie Ar o uet . T r at ado So br e a T o ler â nc ia . ( S ão
P au lo : 2006, E sca la E ducac io na l. p. 19. )
91

medo. Absolutamente oposta ao clima renascentista de progresso e liberdade.


O controle social católico era cada vez mais indesejado.

E não apenas a Igreja , como tudo mais que se ligava à essa imagem do
passado da alta idade média, passava pouco a pouco a se tornar indesejado.
De fato, o antigo regime paulatinamente se tornou incompatível com a nova
mentalidade do homem ocidental em diversos sentidos . Entre elas note -se, em
especial, que o regime monárquico, a nobreza, a legitimação divina do poder
de governo, tudo parecia destoante da ideologia de perseguição ao lucro,
permitida pela propagação das cidades e difundida pela classe burguesa.

Não restam dúvidas que a burguesia, sedenta por projeção social 174 foi a
grande patrocinadora de todo o movimento que , em diversos níveis, tomava
conta do mundo conhecido e emergia cada cidadão em ideais de busca por
novos tempos.

Mas de todas as formas que a classe burguesa poderia incitar as


populações para lutar contra o antigo regime e suas intuições, foi com o apoio
à produção int electual que o legado de inconformismo se propagou 175.

O papel foi o grande veículo de propagação da nova Europa pós


medieval. Certamente a invenção da imprensa 176, foi responsá vel pela
expansão do renascimento para além da península itálica. Assim, o lapso
temporal entre o renascimento do séculos XIV e XV, e o século das luzes, não
apenas foi marcado por pestes 177, conflitos 178 e pela reformulação do mapa
europeu 179. Foi também o tempo de maturação de um pensamento

174
Le ia - se “po der ”, já que na E ur o pa do S écu lo XVI I I o bur guês já t inha u ma po s ição de
inco nt est áve l de st aque no me io so c ia l.
175
Da í se d est aca a f igur a do s me ce nas: en t us iast as da s no vas t écnica s r e nas c ent ist as,
so br et udo nas ar t es. É o caso da fa mí l ia Méd ic i que assu me e st e pape l e m F lo r e nça. E le s
( o s Méd ic is) inaugur a m a t r adiç ão bur guesa e m apo iar ar t ist as e est ud io so s, o que ma i s
t ar de é fu nd a me nt a l no fo me nt o da Re vo lução Fr a nc esa. ( LE GO F F, Jacqu es. As Ra íz es
Med ie va is da E ur o pa. (P et ró po lis: 2007, Vo zes) . p. 256) .
176
LE GO FF, Jacque s. As Ra íze s M ed ie va is da E ur o pa . ( P et ró po lis : 2007, Vo zes) . p. 252;
WE L LS , Her ber t Geor ge. Hist ór ia U niver sa l . v. 4. ( E st ado s Unido s do B r as il: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1172.
177
LE GOFF, o p. cit . , p. 227.
178
LE GOFF, o p. cit . , p. 237. LE GOFF, o p. cit . ,
179
LE GOFF, o p. cit . , p. 262..
92

renascentista, através de uma produção intelectual cada vez mais difundida e


acessível.

E ressalte-se : neste campo (de produção intelectual), não só a dignidade


humana, enqua nto valor foi içada pela vanguarda iluminista (e aqui a análise
já caminha para os idos do século XVIII ). Associada a ela, outros ideais
foram tomados como mote para um movimento de projeção do ser humano
muito além da imagem medieval de indivíduo pecador e penitente. Lemas de
liberdade 180, igualdade 181 e fraternidade 182 partiram do tinteiro de pensadores
renomados pela mentalidade vanguardista, e foram parar na boca de populares
organizados grupos revolucionários, dispostos a aplicar nos governos o
pensamento que até então só fizera sentido nos livros. Observe -se o caso
francês com as propostas jacobinas:

"T a l er a a qua lid ade da ma io r ia do s lí der es do part ido ja co bino .


Ho me ns de ne nhu mas po sse s - ho me ns livr es e de s i mped ido s. E r am
ma is d is so c iado s e ma is e le me nt ar es, port ant o , do que o s de
qua lquer o ut ro part ido ; e e st ava m pr o nt o s par a le var a s ide ia s de
l iber dade e igua ldade at é a sua ext r e mid ade ló g ica. Os seu s padr õ es
de vir t ude pat r ió t ica er a m a lt o s e r udes. Havia qua lquer co isa de
inu ma no , me s mo no seu ze lo hu ma nit ár i o " 183.

Foi o tempo de se perceber - e realizar - o homem como ser digno, livre


e social. Sua posição central n o cosmos, contemplada desde o Século X IV,
reclamava seu reconhecimento como tal pelos governos dos recém formados
Estados Nacionais.

180
"Re nu nc iar à liber dade é r enu nc iar à qua lidade de ho me m, ao s d ir e it o s da hu manidade,
e at é ao s pr ó pr io s de ver es. Não há ne nhu ma r epar aç ão po ssíve l par a que m r e nu nc ia a t udo.
T a l r e nú nc ia é inco mpat íve l co m a nat ur eza do ho me m, e su bt r a ir t o da liber d ade a sua
vo nt ade é su bt r air t o da mo r alidad e a su as açõ es". ( RO US S E AU, Je a n - Jacque s. O Co nt r at o
S o cia l. ( S ão P aulo : 2003, Mar t ins Fo nt es ) . p. 15) .
181
"[ . . .] o pact o so cia l e st abe lece t a l igua ldade e nt r e o s cid adão s que t o do s e le s se
co mpr o met e m so b a s mes ma s co nd i çõ es e deve m go zar do s mes mo s d ir e it o s".
( ROUS S E AU, o p. cit . , p. 41).
182
"Que m o usa e mpr ee nd er a i nst it u iç ão de u m po vo deve se nt ir - se capa z de mu dar , por
ass i m d izer , a nat ur eza hu ma na ; de t r ans fo r mar cada ind iv íduo que, po r si mes mo , é u m
t o do per fe it o e so lidár io e m p ar t e de um t o do ma io r , do qual es se ind iv íduo r ece be, de
cer t a fo r ma, sua vida e s e u ser ; de a lt er ar a co nst it uição do ho me m par a fo r t alecê - la ; d e
subst it uir po r exist ênc ia p ar c ia l e mo r a l a e xist ê nc ia fís ica e indepe nd e nt e que t o do s
r ecebe mo s de nat ur eza". ( ROUS S E AU, op. cit . , p. 50) .
183
WE LLS , Her ber t Geor ge. Hist ór ia U niver sa l . v. 5. ( E st ado s Unido s do Br as il: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1432.
93

Ao que parece, as objeções pelo reconhecimento dessas características


do homem, mani festou-se, em um primeiro instante, na busca pela igualdade
entre indivíduos, e não apenas do ponto de vista jurídico, mas de maneira
ampla, abarcand o a igualdade social e mesmo entre gêneros 184. Mas o que se
almeja, em resumo, é sanar os prejuízos sociais decorrentes dos privilégios da
nobreza e do clero, decorrentes do antigo regime e inacessíveis, pela tradição,
à burguesia.

Notável, portanto, o papel da classe burguesa na manipulação d a


vontade geral em prol de seus interesses. Em eventos extraordinários na
história da humanidade, como a Revolução Francesa e os movimentos por
independência nas Américas, a base principiológica estava contaminada por
esses ideais iluministas construídos com o fomento burguês 185.

E se a modernidade foi construída a partir de tais marcos históricos,


então nos compete dissecar o fundamento teórico que movimentou as
engrenagens dos novos tempos. É a premissa inevitável para se contrapor o
sistema jurídico condizente com a modernidade , ao modelo medieval.

3.1 Revolução do pensamento humanístico e as ra ízes do rompi mento de


paradigma no plano jurí dico

Se nos capítulos iniciais a contextualização medieval se deu muito mais


através da apresentação do pano de fundo, e a pesquisa se concentrou em
trazer descrições daquele momento histórico, a atual fase do trabalho
demanda outra abordagem.

184
I mpo ss íve l não me nc io nar a co nt r ibu iç ão pio ne ir a de Mar y Wo llst o necr a ft , que já a l i
co nc lu ía que a me nt e hu ma na não t em d i st inç ão de gêner o.
185
WE LLS , Her ber t Geor ge. Hist ór ia U niver sa l . v. 5. ( E st ado s Unido s do Br as il: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1364.
94

O iluminismo, ao que importa à presente pesquisa, se impõe mais pelas


construções teóricas que se sublimaram , do que pelos notórios acontecimentos
históricos que lhe foram contemporâneos.

Enquanto que, para a análise do surgimento do inquisitorialismo


importava a compreensão da realidade medieval, por outro lado, para que se
perceba como o humanismo incidiu sobre os institutos processuais penais,
faz-se mister a compreensão da mentalidade que contaminava o intelecto dos
teóricos refere nciais do movimento.

Não se pretende tratar de modo simplista o período histórico que


compreendeu o iluminismo . Não. As pesquisas re alizadas vieram carregadas
com o conhecimento histórico a respeito do século XVIII. Tem-se plena
consciência que aquele período da Idade Moderna , não se restringi u ao
iluminismo, mas foi marcada por efervescências políticas 186, progressos
tecnológicos 187 e obras emblemáticas da cultura ocidental 188.

Entretanto, ao que se direcionam os presentes esforços, importa deter-


se apenas do il uminismo em seu papel no surgimento de ideais de valorização
do homem. Só a partir de então é que será possível demonstrar como o
projeto iluminista alcançou o âmbito jurídico.

Mas, para se falar em reforma no campo jurídico, antes é necessário


vislumbrar as mudanças promovidas pelo iluminismo nos Estados. Talvez pela
pressão burguesa ou por acreditarem que o Estad o do modelo medieval era a
causa de todo mal social, o movimento iluminista inicialmente se concentrou
no campo político.

Atra vés das teorias c ontratualistas, procurou -se explicar, fora de uma
perspectiva de legitimação Divina, o que era o Estado , de onde vinha seu

186
Mo vime nt o s de ind epe ndê nc ia do s E st ado s Unido s ( 1775/ 1783) e Ha it i ( 1791 / 1804),
a lé m da Re vo lu ção Fr anc esa ( 1769) espec ia l me nt e t r at ada. ( WE LLS , Her ber t Geo r ge.
H ist ó r ia U niver s a l. v. 5. ( E st ado s Unido s do Br as il: 1972, Co mp a nhia E d it o r a Nac io na l) . p.
1363)
187
Desco ber t a do hidr o gênio ( 1774) , do pr inc íp io da vac inação , r ea lização do pr ime ir o voo
hu ma no ( 1783) e a inve nção do pia no ( 1709) .
188
Bac h co mpõ e “A P a ixão S egu ndo S ão Mat eus” ( 1729) e Mo zart sua pr ime ir a s info nia
( 1764) .
95

poder, e quais eram os limites para sua atuação . E perceba-se : o povo, surgiu
como resposta quase uníssona do contratualismo a tais i ndagações

Note-se, por exemplo, no Contrato Social de Rousseau, a busca pela


base legitimadora do Estado através do povo. O Estado se funda pelo poder
das pessoas que a constituem:

"I med iat a me nt e, e m vez da pe sso a par t icu lar de cada co nt r at ant e,
esse at o d e asso c ia ção pr o duz um co r po mo r a l e co let ivo co mpo st o
de t ant o s me mbr o s qua nt o s são o s vo t o s da asse mb le ia, o qua l
r ecebe, po r esse me s mo at o , sua unidade , seu eu co mu m, sua vida e
sua vo nt ade. E ssa pesso a públ ic a, ass i m fo r mada p e la u nião de
t o das as dema is, t o ma va o ut ro r a o nome de Ci dade , e ho je o de
R epúbl i ca o u de corpo pol í t i co , o qual é cha mado po r seus me mbr o s
de E st ado quando pass ivo , so ber a no quando at ivo e Pot ênci a
quando co mpar ado ao s seus se me lha nt es. Qua nt o ao s asso c iado s,
e le s r ece be m co let i va me nt e o no me d e povo e s e c ha ma m, e m
par t icu lar ci dadãos, enqua nt o part ic ipa nt es da aut o r idade so ber ana,
e súdi t os, enqua nt o submet ido s às le is d o E st ado " 189.

E não só o Estado é o povo, como o poder para fazer o necessário à sua


manutenção, deriva da von tade geral. Note -se a essencial diferença em
relação ao Estado cujo poder se diz advindo de Deus 190.

Não é por menos que os textos de Rousseau tenham sido rapidamente


proibidos na França: durante a Revolução Francesa, a noção Roussoneana de
um sistema legisl ativo voltado aos interesses dos cidadãos apresentou -se
como alternativa viável ao modelo então vigente, contaminado pelo corrupção
do antigo regime.

Contudo, é importante que fique claro a abrangência dessa visão


contratualista no cenário do iluminismo. E la não teve seu início nem findou -

189
ROUS S E AU, Jean- J acques. O Co nt r at o S o cia l. ( S ão P aulo : 2003, Mar t ins Fo nt es ) . p. 23
190
" A pr i me ir a e ma is impo r t ant e co nseq uênc ia do s pr inc íp io s a c ima e st abe lec id o s é que
só a vo nt ade ger a l po de d ir ig ir a s fo r ç as do E st ado em co nfo r midad e co m o objet ivo de
sua inst it u ição , que é o be m co mu m: po is, se a o po siç ão do s int er esses p ar t icu lar es t or no u
nec ess ár io o est abe lec i me nt o das so c ied ades, fo i o acor do desses mes mo s int er e sse s que o
t o r no u po ss íve l. O víncu lo so c ia l é fo r mado pe lo que há de co mu m ness es d ifer e nt es
int er es ses, e, se não ho uves se u m po nt o e m que t o do s o s int er esses co nco r da m, ne nhu ma
so c iedade po der ia e xist ir . Or a, é unic a me nt e co m base ne ss e int er esse co mu m que a
so c iedade de ve ser go ver nada". ( RO U S S E AU, Jean- J acques. O Co nt r at o Soc ia l. ( S ão
P au lo : 2003, Mart ins Fo nt es) . p. 33).
96

se com as contribuição de Rousseau e se tornou essencial pa ra todo o


pensamento iluminista.

No século XVII Hobbes já havia proposto a visão de um estado de


natureza brutal e pré social, em que o contrato tacitamente estabe lecido entre
os cidadãos os permite o convivio harmônico e propício ao desenvolvimento
do meio. Após, Locke ap resenta a proposta a noção de um direito natural
humano de defender “a vida, a saúde, a liberdade ou os bens” como
justificativa ao Contrato Socia l.

E ainda após Rousseau, já com a Revolução Francesa em deslinde,


Thomas Paine, propõe que o único objetivo do governo é a garantia dos
direitos individuais. Perceba -se que, de uma análise inicialmente
antropológica , o conceito de Contrato Social migrou p ara a política e emergiu
no humanismo.

Mesmo teóricos que não trabalharam a noção de C ontrato Social à


exaustão, tomaram -na como premissa tácita para suas considerações em outras
áreas. Isso é especialmente claro no campo jurídico. Por exemplo, trat a-se
claramente a estrutura social elementar sobre a qual se funda a proposta
Beccariana 191, e, ainda mais contundentemente , a visão de Kant sobre crime e
criminoso:

“Co nseque nt e me nt e, quando r edijo u ma l e i pe na l co nt r a mi m mes mo


na qua l idade de u m cr i m ino so , é a r azão pur a em mi m ( ho mo
noumenon ) , leg is la ndo co m r esp e it o a d ir e it o s, que me su je it a,
co mo a lgué m c apaz de per pet r ar o cr im e e, ass i m, co mo u ma o ut r a
pesso a ( ho mo phaenomenon ) , à le i pe na l , ju nt o co m t o do s o s dema is
nu ma a sso c iação c ivi l. E m o ut r as pa la vr a s, não é o po vo ( cada
ind iv íduo s ne le e ncer r ado ) que d at a a pena cap it a l, mas o t r ibu na l
( a ju st iça pú bl ica( e, as s im, u m o u t ro ind iv íduo d ist int o do
cr im ino so ; e o co nt r at o so cia l não co nt em ne nhu ma pr o mes sa de
de ixar - se pu nir e, de st e mo do , dispo r de s i me s mo e da pr ó ppr ia
vida, isso po r que se a aut o r izaç ão par a punir t ive sse que ser
ba seada na pr o me ssa do t r ansgr esso r no seu quer er deixar - se pu nir ,

191
" As le is são co nd içõ es so b a s qua is ho me ns indepe nde nt es e iso lado s se u ni r a m e m
so c iedade, ca ns ado s de viver e m co nt ínuo est ado de guer r a e de go zar de uma liber dade
inú t il pe la incer t eza de sua co nser vaçã o . P art e dessa liber dad e fo i po r eles s acr ific ada
par a po der em go zar o r est ant e co m seg ur ança e t r anqu i l idade. A so ma d ess as po r çõ es de
l iber dade sacr if ic ada ao be m co mu m fo r ma a so ber a nia de u ma na ção e o so ber ano é o s eu
leg ít i mo depo s it ár io e ad min ist r ador ". (BE CC ARI A, Cesar e Bo nesa na. Do s de li t o s e das
pena s. ( S ão P aulo : Mar t ins Fo nt es, 2005) , p. 41) .
97

t er ia t a mbé m que lhe ca ber ju lgar a s i m es mo puníve l e o cr im ino so


ser ia s eu pr ó pr io ju iz” 192.

Adiante, no campo político, Montesquieu consubstancia a crítica


iluminista de repúdio ao modelo de monarquia absolutista e aversão ao clero
católico. E tanto o faz, que na divisão entre os grandes regimes antigos que
estabelece, separa a Monarquia limitada da despótica , tecendo críticas
incisivas a esta última 193.

Note-se que, as características atribuídas à Monarquia, associam-se a


valores cuja capacidade de contribuir para o “bem comum” (noção
contratualista bem desenvolvida) , estavam sendo questionados naquele
momento histórico. Não é de se estranhar que esse autor entenda pela
conveniência da religião católica às monarquias .

Certamente, na sua construção teórica , valoriza-se a revolução luterana


do Século XVI 194. O entendimento de que o protestantismo é mais afeito aos
regimes republicanos permite concluir que , para o autor, a proposta de
rompimento de um model o antigo de Monarquia , deveria ser acompanhada de
um necessário distanciamento entre a Igreja Católica e o Estado.

A isso se somam as considerações acerca das re lações entre as leis, o


Estados e os indivíduos, em tudo apresentando uma perspectiva sempre
pautada pela racionalidade e moderação que orientava o pensamento
iluminista, particularmente ao que concerne ao poder de punição.

Nesse sentido, interessa aqui a relação estabelecida entre o crime e a


pena. No pensamento de Montesquieu, não se pensa a punição como uma

192
KANT , I mma nue l. A Met a fís ic a do s Co st ume s. ( S ão P aulo : 2010, Fo lha de S ão P aulo).
p. 121.
193
MONT E S QUI E U, Char les de S eco ndat . O E sp ír it o das Le is. ( S ão P aulo : 1996, Mar t ins
Fo nt es) . p. 19.
194
Ass i m e nt e nd id a co mo o mo vi me nt o pr ot est ant e que na sce a par t ir das cr ít icas,
apr ese nt adas na fo r ma de t ese s, pe lo mo nge Mar t in Lut er o, em 1517. Lut ero se
esca nda l izo u co m à le via n d ade e esp le ndo r mu nda no do papado, be m co mo a ve nd a de
indu lgê nc ia s. Or denado po r Leão X a r et r at ar , afir mo u que só o far ia se fo ss e co nve nc ido
"de seu er r o po r ar gume nt o s o u pela aut o r idade das es cr it ur as". ( WE LLS , Her be r t Geo r ge.
H ist ó r ia U niver sa l . v. 4 . (E st ado s Unido s do Br asil: 1972, Co mp a nhia E d it or a Nacio na l) . p.
1245) .
98

consequência imediata e diretamente proporcional ao delito. Não se atribui


sequer uma natureza medicinal ao instituto 195.

Segundo afirma, as penas ma is gra ves não são necessariamente


eficientes em reprimir a criminalidade. Aliás, a se veridade desacertada das
penas pode conduzir a uma corrupção incurável do Estado 196.

Mas não somente as penas, como também os métodos ganham relevo na


discussão. Montesquie u posiciona -se contra a utilização institucionaliza dos
tormentos 197. E afirmando que ele mesmo tenha sido influenciado por “tantas
198
pessoas habilidosas e tantos belos gênios” , que escreveram sobre o assunto,
pode-se perceber que anos mais tarde (1764) seu entendimento é que servirá
de influência para a grande obra de referência sobre o assunto: Dos Delitos e
das Penas, do já referendado Marquês de Beccaria.

Daí estar estampado , na lógica de Montesquieu, o salto que se dá entre


o pensamento medieval tipica mente incrustado pelas ideologias da Inquisição
e a compreensão iluminista sobre a função do Estado diante do indivíduo.

Em Rousseau, nota-se a valorização dos ideais de Liberdade e


Soberania. De fato, a ideia de contrato social que o filósofo desenvol ve se
justifica em uma busca pela soberania através da liberdade . Justamente na
perseguição dessa liberdade é que se articulam todas as relações
desenvolvidas no seio da sociedade.

É importante notar que durante todo o desenvolvimento de sua teoria do


Contrato Social, Rousseau não busca qualquer forma de legitimação no Deus
católico ou em qualquer autoridade sobrenatural. Até mesmo o patriotismo
que apresenta parece ser justificado em si mesmo.

195
MONT E S QUI E U, Char les de S eco ndat . O E sp ír it o das Le is. ( S ão P aulo : 1996, Mar t ins
Fo nt es) . p. 95.
196
MONT E S QUIE U, o p. cit . , p. 93.
197
“Não se deve m co nduz ir o s ho me ns pe l as via s e xt r e ma s”. ( MONT E S QUI E U, o p. cit . , p.
85) .
198
MONT E S QUIE U, o p. cit . , p. 102.
99

Atra vés do Contrato Social de Rousseau é que mais tarde se proje ta um


novo olhar sobre a natureza e função das penas. Isso porque, na visão
iluminista que se constrói, o papel das penas não é mais o de punir o
criminoso por uma violação contra a ordem divina. Muito menos se atribui à
pena a tarefa de expiar pecados. Nã o. Tomando por base a formulaçã o
Roussoneana, o papel da punição dos delinquentes neste novo tempo era o de
retirá-los da sociedade; penalizá -los por terem realizado condutas que
rompem o Contrato Social pelo qual todos os cidadãos se vê em tacitamente
vinculados 199.

Voltaire, antes de apresentar verdadeiras propostas para o mundo “pós


revolução”, satiriza a realidade decadente do antigo reg ime com todas suas
instituições . Isso é especialmente evidente em Candido ou o Otimismo.
Perceba-se a forma satírica como o autor se refere à justificativa para a
utilização dos Autos de Fé :

"Depo is do t er r emo t o que t inha d est r u íd o o s t r ês quar t o s de L is bo a,


o s sábio s do pa ís não t inha m e nco nt r ado me io ma is e f icaz d e
pr eve nir u ma r u ína t ot al do que o de dar ao po vo um be lo aut o de
fé. Fo r a dec id ido pe la U niver s idade de C o imbr a que o espet áculo de
a lgu ma s pesso as que i mada s a fo go le nt o co m gr ande cer i mo nia l é
u m segr e do infa l íve l p ar a evit ar que a t er r a t r ema" 200.

E notório em Cândido ou o Otimismo, o desprezo pelos Autos de Fé. A


cena em que o filósofo Pangloss é levado à forca junto à Cândido -
protagonista da história - é notório. Ali se encontra sintetizado o pensamento
daquele momento histórico acerca do papel da inquisição. A forma como os
Autos de Fé gozam de uma arbit rariedade absurda e como seus castigos
recaem sobre inocentes é absurda 201.

199
É a par t ir da í que Fo ucau lt pr escr e ve co mo a lt er nat ivas de pu nição , segu ndo a id eo lo g ia
do século XVI I I , a deport ação, a hu mi l haç ão pública e o t r aba lho fo r çado ( FOUC AULT ,
M ic he l. A Ver dade e as Fo r ma s Jur íd ic as . ( Rio de Jane ir o : 2005, Nau). p. 82) .
200
VOLT AI RE , Fr a nço is - Mar ie Ar o uet . Câ nd it o o u o Ot im is mo . ( S ão P au lo : 2010, Fo lha de
S ão P aulo . ) p. 23.
201
VOLT AI RE , o p. c it ., p. 23.
100

Aos olhos de Voltaire , ao que parece, a mentalidade medieval criou o


mito do reino perfeito onde o cavaleiro justo e a princesa pura gozavam da
maior das sortes.

Traduzindo a menta lidade do século XVIII, o filósofo francês recria


metonimicamente a passagem do personagem daquele mundo idealístico ao
mundo real. Daí o conflito que o personagem cavalhe iresco sofre: o otimismo
da realidade em que se originou 202 é incompatível como os novo s tempos, com
o mundo que se mostra maior e mais cruel 203.

Thomas Morus apresenta outro tipo de sutileza. Ao invés de pintar com


escárnio a imagem do mundo antigo, sua narrativa consiste na apresentação de
um mundo idealizado na forma do reino de Utopia.

No cenário detalhadamente arranjado, há evidente oposição à realidade


na Europa do Século XVIII. Não é por menos.

O pensamento de Morus (ou Mo re) está visceralmente contaminado


pelos ideais iluministas 204 de maneira que a iniciativa de um projeto de
sociedade “ideal” se vê desvinculado dos “males” Antigo Regime. Daí notar -
se claramente a inexistência de uma religião oficial em Utopia 205; a falta de
uma estratificação social; a não fundamentação das autoridades em qualquer
forma de divindade.

Excepcional a pr oposta de More para a convivência entre as religiões de


Utopia. Embora seja bem cuidadoso ao tratar a questão, dando crédito e

202
VOLT AI RE , o p. c it ., p. 9.
203
Not e - se na co nc lusão o br a, que o fin a l dado ao s per so nage ns é u ma vid a i mer sa no
t r aba lho e nas d if ic u ld ades co t id ia na s. E st á defin it iva me nt e a fast ada a no ção de fe l ic idade
co nd ic io nad a a e le vação so c ia l o u a qu a lquer co nqu ist a no p la no r e lig io so ( V OLT AI RE ,
o p. cit . , cap. XXX).
204
O que se ma ni fest a e m sua s especu laçõ e s so br e a so ciedad e per fe it a.
205
É int er essa nt e o bser var que, não o bst ant e a ine xist ê nc ia d e u ma r e l ig ião o fi c ia l e a
co nvivê nc ia pa c íf ica e nt r e o s ador ado res de d ivindade s d iver s as no s r elat o s de Ut o pia,
Mo r e demo nst r a co ns ider ação ao Cr ist ianis mo . E le nar r a que o s ut o pia no s fac i l me nt e se
co nver t er a m à r e l ig ião Cr ist ã, ma s r es sa lt a: o po vo de Ut o pia se se nt iu esp e c ia l me nt e
i mpr es s io nado “info r mação de que Cr is t o apro vo u a co mu nhão de bens po st a em pr át ic a
po r seus d is c ípu lo s” ( MORE , T ho ma s. Ut o pia. ( S ão P aulo : 2009, E dição Re vist a e
Amp l iada. )
p. 178). Daí u ma pr o vá ve l cr ít ic a à ost ent ação das gr andes inst it uiçõ es r e li g io sas da
E uro pa.
101

defendendo o Cristianismo, Morus critica a intolerância religiosa através de


um exemplo que inventa para sua narrativa de Utopia:

"É e vid e nt e que mu it o s ut o pia no s se r e cusa m a ace it ar a fé cr ist ã,


ma s o s q ue as s im pr o cede m não faz e m ne nhu ma t ent at iva de
i mped ir que o ut ro s a ado r em ne m ma lt r at a m o s que já s e
co nver t er a m. A ú nica e xc eção ver if ic o u- se co m u m me mbr o de
no ssa co ngr egação , u m ho me m que p r o vo co u gr aves pr o ble mas
enqua nt o est ava na i lha. Ape sar de t o do s o s no sso s co nse lho s e m
co nt r ár io , ass im qu e fo i bat izado e le co meço u a pr egar
publ ica me nt e a do ut r ina cr ist ã, faz endo - o co m mu it o ma is
fa nat is mo do que pr udênc ia. I nf la mo u - s e de t a l mo do que, não se
co nt ent ando em apr ego ar a super io r idad e da no ssa r e lig ião , passo u
a co ndenar r edo nda me n t e t o das as o ut r as. Gr it a va a p le no s pu lmõ es
que não passa va m d e degr adant es super t içõ es, e que t o do s o s seus
ad ept o s er a m mo nst ro s sacr ílego s q ue ir ia m co nsu mir - se po r t o da a
et er nidade no fo go do infer no . Depo is de ass i m pr egar po r algu m
t empo , fo i pr eso , não so b a acusação de blas fê m ia, mas s i m de
per t ur bação da o r de m pú bl ica e inst ig ação ao t umu lt o . T er mino u
co ndenado ao exíl io , po is u m do s ma is ant igo s pr inc íp io s de que
r ege m Ut o pia é a t o ler â nc ia r e l ig io sa " 206.

E explicando a origem desse princípio de tolerância religiosa, narra:

"Ut o po s decr et o u essa le i não só par a pr eser var a p az, que e le


per cebia e st ar sendo t ot alme nt e dest r uída po r co mba t es
int er miná ve is e ó d io s mo r t ais, ma s t a mbé m pe nso u que o decr et o
int er es sar ia à pr ó pr ia r e l ig ião . Não t inha a pr et ensão d e saber qua l
er a a me lho r de t o das as cr ença s, e, ao que par ece, admit ia a
po ss ibi lid ade de Deus insp ir ar a d ifer e nt es pesso as r e lig i õ e s
d iver sa s, po r dese jar s er ve ner ado at r avés da d iver s idade do s
cu lt o s. Mas est ava p le na me nt e co nve nc ido de que er a lo ucur a e
ar ro gânc ia int i m idar as pe sso as e fo r çá - las a ace it ar do ut r inas na s
qua is não acr ed it ava m. P ar ec ia - lhe ó bvio que, mes mo e xist ind o
apenas u ma r e l ig ião ver dade ir a, e s e nd o t o das as o ut r as fa lsa s, a
ver dade t er minar ia vindo à t o na e pr eva lec e ndo po r sua pró pr ia
fo r ça, desde que a quest ão fo sse d is cut ida co m ca l ma e ba ses
r ac io na is " 207.

A justificativa do decreto de Utopos nada mais é do que a síntese da


proposta iluminista para a revisão das políticas europeias de coexistências
entre religiões nos Estados 208.

206
MORE , T ho mas. Ut o pia. ( S ão P aulo : 2009, E dição Revist a e Amp l iad a) . p. 179.
207
MORE , o p. cit . , p. 180.
208
Vo lt a ir e é ma is e nfát ico : "O d ir e it o hu ma no não po de est ar baseado e m ne nhu m c aso
se não nes se d ir e it o de nat ur eza e o grande pr inc íp io , o pr inc íp io univer s a l d e u m e de
o ut ro é, em t o da a t er r a "Não faça o que não go st ar ia que lhe f izes se m" . Or a, não ve mo s
102

E além: resta explícito a reprovação do autor aos castigos corporais. A


noção de parcimônia na aplicação de suplícios e penas, ma rcante no
pensamento iluminista, permeia a obra de More ao retratar uma Utopia em que
a agressão física aos indivíduos é mínima até nos casos dos criminosos
condenados 209.

O período filosófico contemporâneo ao desenvol vimento do humanismo,


também revela a proposta iluminista de reinventar o mundo conhecido. Nota -
se nos expoentes de Descartes 210, Hume 211, Kant 212 e Libniz 213, a busca de nova
compreensão da realidade 214. Não é por menos que todos , em menor ou maior
escala, se ocuparam de questões sobre a co mpreensão da natureza humana e a
teoria do conhecimento humano, pela primeira vez, desde o medievo,
independentes de uma doutrina religiosa a definir su as inclinações. Foram
investidas, principalmente no campo da epistemologia, que alcançaram a
reinvenção filosófica da perspectiva , do homem moderno diante de si, e da
capacidade humana de perceber o mundo . Tudo sempre tendo o poder de
compreensão do ser humanos, como o parâmetro fundamental de auto
determinação e situação no universo. N unca como um mero atributo divino . E
note-se : no trato da que stão da existência de Deus, não há qualquer
compromisso, da filosofia do Século XVIII , em se manter fiel à uma
concepção divida sob determinada ótica religiosa 215.

co mo , segundo est e pr inc íp io , u m ho me m pudes se d izer a o ut ro : "Cr eia naqu i lo que eu


cr e io e no que vo cê não po de cr er o u mo rr er á". É o que se d iz e m P o rt ugal, na E spanha,
e m Go a, E m a lgu ns o ut ro s pa íse s não se co nt ent a m e m d izer is so , ma s: " C r e ia o u o
o diar e i; cr e ia o u lhe far e i t o do o ma l q ue puder ; mo nst r o, vo cê não t em m inha r e lig ião ,
po rt ant o, não t em r e lig ião a lgu ma ; é nec ess ár io que vo cê se t or ne o ho r ro r de seus
viz inho s, de sua c idade, de sua pr o vínc i a". ' ( VO LT AI RE , Fr a nço is - Mar ie Ar o uet . T r at ado
S o br e a To ler â nc ia. ( S ão P aulo : 2006, E sca la E ducac io na l. ) . p. 33.)
209
MORE , T ho mas. Ut o pia. ( S ão P aulo : 2009, E dição Revist a e Amp l iad a) . p. 44.
210
DE S CART E S , René. D is cur so S o br e o Mét o do e P r inc íp io s d a F i lo so fi a. (São
P au lo : 2010, Fo lha de S ã o P aulo ) . p. 27.
211
HUME , David. I nvest iga ção So br e o E nt end ime nt o Huma no . ( S ão P aulo : 2006, E sca la).
p. 54.
212
KANT , I mma nue l. A Met a fís ic a do s Co st ume s . ( S ão P aulo : 2010, Fo lha de S ão P aulo).
p. 42.
213
LE I BNI Z, Got t fr ied Wi lhe l m. A Mo nado lo g ia e Out r o s T ext o s. ( S ão P aulo : 2009,
Hedr a) . p. 30.
214
T a mbé m naque le p er ío do : Jo hann Go t t lie b F ic ht e ( 1762 - 1814) e Fr ier ic h S che leg e l
( 1772 - 1829).
215
E mbo r a Descar t es, Libniz e Ka nt r eco nheça m su a exist ê nc ia e ne ces s idade.
103

Em outros campos não foi diferente. Da proposta enciclopédica de


Denis Diderot, ao utilitarismo de Jeremy Bentham 216 e à visão econômica dos
elementos da sociedade humana (em que a religião nada mais é do que uma
das engrenagens), de Adam Smith, todos expoentes intelectuais do período 217
apresentam em comum aparentemente um mesmo aspecto essencial: o
descontentamento latente e quase amargurado com o antigo regime em relação
a alguma de suas características essenciais.

Mais do que a evidente objeção ao modelo político predominante na


Europa, apresentava -se uma oposição às instituições que usavam o Estado
como instrumento: a Monarquia e a Igreja Católica.

O ponto essencial de toda crítica consubstanciada pelos projetos


intelectuais do século XVIII, foi o desrespeito dessas instituições à direitos
pela primeira vez consid erados inerentes ao ser humano .

Nasce, então, a perspectiva daquilo a que viria se estruturar como a


noção de direitos fundamentais do homem.

3.2 Elevação do ser humano ao status de sujeito de direitos

O projeto iluminista construído a partir desses grand es marcos teóricos,


desaguou em uma vertente humanista que, menos preocupada com a solução
do plano geral político e social da realidade europeia , buscava
verdadeiramente reprojetar o homem no contexto jurídico.

216
Ao que se deno t a em BE NT H AM, Jer e my. As Reco mp e nsa s e m Mat ér ia P ena l. ( São
P au lo : 2007, R ide l) . p. 23.
217
Na lit er at ur a, S ade t r az a per ver são ao mu ndo lit er ár io . Afr o nt a o sist e ma mo r a l e
r e lig io so ao exp lo r ar o sexo e a l i ber t inage n, t or nando - se figur a e mble mát ica na
co nst r ução de u ma l it er at ur a mo der n a a ves sa ao s a nt igo s co st u mes eur o peus.
( ROUDI NE S CO, E liza bet h. A par t e o bs cur a de nó s me s mo s - U ma hist ó r ia do s per ver so s .
( R io de Jane ir o : 2008, Zahar ) . p. 99) .
104

Ainda não se falava em Direitos universais, mas já estava assentada a


noção de certos limites , racionalmente concebíveis, de inviolabilidade ao ser
humano 218.

Ao que se depreende das pesquisas realizadas, a necessidade de


mudança trouxe um a efervescência política voltado contra os modelos sociais
estabelecido. Por isso terem sido percussores os pensadores políticos.

Concomitantemente (como não poderia deixar de ser) apresentou -se


universalização do homem como base de um sistema de levasse aos “novos
tempos”. Ao que parece, os Estudos Iluministas eviden ciaram que a revolução
exigida pelo mundo moderno deveria ter por base a construção do ser humano
enquanto sujeito de Direitos universais.

Mesmo sendo bem antes da construção das noções conte mporâneas de


Direitos Humanos, alguns teóricos do século XVIII fo ram bem suc edidos em
traduzir uma idéia da Pessoa possuidora de direitos invioláveis. Tome-se o
exemplo da Metafísica dos Costumes proposta por Kant. Em sua proposta,
qualquer a punição ao ser humano:

“P r ec is a se mpr e s er a e le inf l ig ida so me nt e po r que ele co met eu u m


cr ime, po is u m s er hu ma no nu nca po de ser t r at ado apena s a t ít u lo
de me io par a fins a lhe io s o u ser co lo cado ent r e o s o bjet o s de
d ir e it o s a co isa: sua p er so na l idade inat a o prot ege dis so , aind a que
po ssa ser co ndenado à per da de sua per so na lidade c iv i l. E le de ve
pr evia me nt e t er s ido co ns ider ado puní ve l a nt es que se po ssa de
qua lquer ma ne ir a pe ns ar e m e xt r a ir de sua pu nição a lgu ma co is a
út il par a e le mes mo o u seus co nc idadã o s. A le i da pu nição é u m
i mper at ivo cat egó r ico e in fe l iz aqu e le que r ast e ja at r avé s da s
t o rt uo s idade s do euda imo nis mo , a fi m d e desco br ir a lgo que liber e
o cr imino so da punição o u, ao me no s, r eduz sua quant idade pe la
va nt age m que pr o met e, de aco r do co m as pa la vr as far isa ica s: “É
me lho r que u m ho me m mo r r a do que per eça u m po vo int e ir o ”. S e a

218
"[ . . .] ainda qu e se pr o va sse que a at ro cidade das pe na s, não sendo imed iat a me nt e o po st a
ao be m co mu m e ao pr ó pr io fi m de i mpe d ir o s de lit o s, fo sse ape nas inút il, e la se r ia, a ind a
ass i m, co nt r ár ia não só às vir t udes be né f ica s ger ada s po r u ma r azão esc lar e c ida, qu e
pr efer e co ma ndar ho me ns fe l ize s a u m r eba nho de escr a vo s e m me io ao s qua is c ir cu las se
per ene me nt e u ma cr ue ld ade t e mer o sa, mas ser ia co nt r ár ia t a mbé m à just iç a e à nat ur eza do
pr ó pr io co nt r at o so cia l". ( BE CC ARI A, Cesar e Bo nesa na. Do s de lit o s e das pe na s. ( S ão
P au lo : Mart ins Fo nt es, 2005) , p. 80).
105

just iç a desapar e cer não ha ver á ma is va l o r algu m na vida do s ser es


hu ma no s so br e a T er r a” 219.

Tento por foco o objeto do presente estudo Voltaire, Beccaria e Verri


são exponenciais são especialmente interessantes desse tempo

Voltando a falar de Vo ltaire, já evidenciado anteriormente pelas críticas


ao antigo regime cirurgicamente plantadas na fantasia de “Cândido ou o
otimismo”, evidencia -se agora a atenção dispensada por este filósofo à
tolerância humana, em “Tratado sobre a Tolerância”.

Nesta obra, nota-se a emblemática preocupação de blindar o ser humano


contra um sistema de intolerância, especialmente sobre o aspecto religioso.
Na crítica que se faz à violência pela superstição, faz -se especial afronta a
lógica da Igreja.

"D igo - o co m ho r r or , mas co m ver dade: so mo s nó s, cr ist ão s, so mo s


nó s o s per segu ido r es, o s a lgo zes, o s a ssa ss ino s ! E d e que m? De
no sso s ir mão s. Fo mo s nó s que dest r u ím o s cent enas de c idad es, de
cr uc ifixo e B íb l ia na s mão s, e que não cessa mo s de der r a mar sa ngue
e ace nder fo gue ir as, d e sde o r e inado de Co nst ant ino at é o s fur o r es
do s caniba is que ha bit a m C é ve nnes, fu r or es que, gr aças ao s céus,
não subs ist e m ma is ho je " 220.

Perceba-se : ao se condenar as execuções feitas em nome da fé cega e


colocar o ser humano como um limite da interferênc ia social da Religião
(apesar de se considerá -la indispensável à sociedade ), está a se dizer que algo
inerente ao homem é inviolável mesmo às instituições de representação de
Deus na terra. É uma reviravolta completa da noção arcaica de que qualquer
excesso cometido pela Igreja Católica seria justificável enquanto meio para se
alcançar o bem maior da salvação das almas.

219
KANT , I mma nue l. A Met a fís ic a do s Co st ume s. ( S ão P aulo : 2010, Fo lha de S ão P aulo).
p. 119.
220
VOLT AI RE , Fr a nço is - M ar ie Ar o uet . T r at ado S o br e a T o ler â nc ia. ( S ão P aulo : 2006,
E sca la E ducac io na l. ) p. 52.
106

Do ponto de visto jurídico, esta revolução de perspectiva será a chave


mestra da mudança do método de exploração da verdade no processo, já
tratada anteriormente e que será devidamente recapitulada mais adiante.

Voltaire exerceu especial influência na Prússia. Em 1740 Frederico II,


imperador da Prússia e amigo de Voltaire, abole a tortura, exceto para delitos
mais graves; em 1754 -1756, abole -se para todos os crimes em seu reino.

Beccaria, já citado oportunamente, foi outro importante marco.


Considerado como principal referencial teórico na luta contra a existência da
tortura enquanto método durante todo século XVIII e após, o Marquês de
Beccaria teria sido o responsável por sensibilizar Catarina II da Rússia. Por
volta de 1766 a imperatriz, influenciada pela obra de Beccaria, determina
amplas reformas na legislação penal russa, extirpando a tortura. "Nas suas
Instruções (1767) à Comissão para a reforma das leis penais, transcreve quase
as páginas de Beccaria" 221.

Não é por menos. O raciocínio apresentado por Beccaria goza de uma


lógica perfeitamente concatenada com o século das luzes. Por outro lado, os
argumentos utilizados pelo Marquês para ne gar qualquer utilidade prática dos
suplícios como método de busca e encontro da verdade, seriam facilmente
refutáveis se analisados sob uma ótica medieval. Explica -se.

Se em meados do século X III al guém afirmasse: “a tortura não será útil


à alcançar a ver dade, porquanto qualquer homem confessará qualquer coisa
diante da dor infligida a seu corpo” , a mentalidade dominante naquele tempo
afastaria esse raciocínio dizendo “o pecador jamais se revelaria senão
mediante tortura e o método expiará seus pecados”. P rovavelmente em
seguida, o autor daquela afirmativa seria condenado à fogueira.

É importante destacar: nesta realidade , a noção clássica da "prova ", é


praticamente execrada do procedimento criminal, dando espaço à uma noção
tarifada (já estudada) como bem observa Foucault:

221
FE RRI , E nr ico . P r inc íp io s de D ir e it o Cr imina l - O Cr imino so e o Cr ime.
( Ca mp ina s: 2003, Russe l l) . p. 38.
107

E nqua nt o o inqu ér it o se desenvo lve co mo fo r ma ger a l de sa ber no


int er io r do qual o Renas c ime nt o eclo d ir á, a pro va t ende a
desapar ecer . De la só enco nt r ar emo s os e le me nt o s, o s r est o s, na
fo r ma da fa mo s a t o rt ur a, ma s já mesc l ada co m a pr eo c upação de
o bt er uma co nfis são , pro va de ver if ic aç ão . Po de - se fa zer t o da uma
hist ó r ia da t ort ur a, s it uando - a ent r e o s pr o cedime nt o s da pro va e do
inquér it o . A pro va t ende a desapar ecer na pr át ic a jud ic iár ia ; e la
desapar ece t a mbé m no s do mín io s do saber . 222

No século XVIII, em que a doutrina Católica se encontra enfraquecida


por todas aquelas razões dispostas ao início do capítulo 3 , e ainda
questionada por toda s insurgências protestantes, é a justificação da tortura
pela fé que soaria inócuo ao vivente da época, especialmente no caso d os
suplícios em que se contrapõe um valor tão resgatado 223, que é o humanismo.
Contudo, perceber a evidente incompatibilidade da prática da tortura com o
pensamento moderno , não bastaria para retirar do procedimento
jurisdicionalizado todas sequelas nefastas que trouxe consigo quando da sua
adoção pelos sistemas judiciais. A utilização do método representou uma
mudança na perspectiva do processo penal em relação à outros elementos,
como o caso da prova citado acima. Tais reflexos nã o foram de pronto
percebidos pelos críticos dos suplícios.

Mesmo porque, o embate iluminista à tortura foi um passo inevitável


que partiu de iniciativas não meramente teóricas, mas (também) certamente
políticas, como foi o caso dos irmãos Pietro e Alessand ro Verri 224.

No caso de Pietro Verri, sua influência não se deu propriamente através


de obras publicadas 225. Verri participou da luta contra o tortura enquanto
método, através de um projeto de conscientização política. Junto com
Beccaria e outros pensadores il uministas, fundou a “Academia dei Pugni” e
passou a publicar o periódico Il Caffè onde se propunha discutir e criticar o

222
VOLT AI RE , Fr a nço is - M ar ie Ar o uet . T r at ado S o br e a T o ler â nc ia. ( S ão P aulo : 2006,
E sca la E ducac io na l. ) p. 75.
223
E se fa la e m r e sgat ado, t o ma ndo po r pr essupo st o a co nc lus ão ant er io r de que sua or ige m
r e mo t a do Renasc i me nt o do sécu lo XV.
224
BE CCARI A, Ces ar e Bo nes a na. Do s delit o s e das penas. ( S ão P aulo : Mar t ins Fo nt es,
2005) , p. 8.
225
Bast a dizer que “O bser vaçõ es S o br e a T ort ur a” fo i pu blic ado set e ano s apó s a mo r t e de
P iet ro ..
108

atraso e as desumanidades dos sistemas jurídicos da época. Embora tenha


alcançado grande repercussão, a proposta não conseguiu atingir suas metas em
absoluto, dado o fracasso do projeto legislativo de abolição da tortura naquela
mesma cidade de publicação de “Dos delitos e das penas” 226.

Verri mostra -se inconformado com a persistência dos suplícios


enquanto método de obtenção da verdade, at é aqueles tempos. Essa herança
despropositada de um procedimento arcaico é absolutamente refutada pelo
autor. Mostra-se absolutamente avesso ao pensamento da época.

Não apenas é ineficaz na perseguição da verdade - pelos motivos já


apresentados nos capítul os anteriores - mas, para Verri, não existe qualquer
precedente legal que justifique a utilização da tortura :

"E st abe lec i qu e ir ia pr o var e m segu ndo lugar que as le is e a pr ó pr ia


pr át ica do s cr i m ina l ist as não co ns ider a m a t ort ur a co mo u m me io
par a d ist ingu ir a ver dade. É fác i l vê - lo o bser va ndo que não se
enco nt r a ne nhu m mét o do o u r egula me nt o no Có digo T eo do s ia no , e
t ampo uco no Có digo de Just inia no , que pr escr e via a ap l ica ção de
t o rt ur as a r éus suspe it o s. Nesse s i me nso s co nju nt o s de le is e
pr escr içõ es, o nde se es m iúça m as me no r es d ifer e nças e nt r e o s
pr o cesso s t ant o civis qua nt o pena is, não se pr escr e ve nada e m
r e lação à t ort ur a. Po rt ant o, se a le i t ives se co ns ider ado esse s
t o r me nt o s co mo me io p ar a des co br ir a ver dade, o s do is có d igo s não
se t er ia m o mit ido so b r e o mo do , o s caso s, as r essa lvas co m que se
dever ia pr o ceder " 227.

Essa observação é importante , pois demonstra a tendência iluminista 228


de buscar o diálogo e a comparação entre sistemas legislativos, no tratamento
de questões jurídicas discutidas no século XVIII. Dá-se grande valor às
experiências legislativas, não apenas de outros Estados modernos, com o
também de referências antigas e principalmente romanas 229.

A partir do momento em que o pretende -se a implementação das


garantias ao homem e a o cidadão, a uti lização do Direito Comparado torna-se

226
VE RRI , P iet r o. Obser vaçõ es so br e a t o rt ur a ( S ão P aulo : Mart ins Fo nt es, 2000 ) . p. XI V.
227
VE RRI , o p. cit ., p. 90.
228
P er ceba - se t a mbé m e m Vo lt a ir e e Mo nt esqu ieu.
229
E isso só se t o r na po ssíve l pe lo au me nt o na ve lo c id ade da t ro ca de info r maçõ es
per mit id a pe la mo der nidade.
109

um referencial de eficácia e eficiência de normas para a legislatura. Muito


diferente da inspiração medieval para as leis em obras teológicas e textos
sagrados.

De toda forma, o que se percebe é a consciência dos refe renciais


teóricos do século XVIII, de que o pensamento hu manista somente se
consubstanciaria em verdadeira elevação do homem ao status de sujeito de
direitos, quando as sociedades passa ssem a absorvê -lo através de
consolidações legislativas.

Nesse percurso que parte da construção de uma doutrina humanitária e


vai até o estabelecimento de um ordenamento de respeito às garantias
fundamentais, observa -se o pioneirismo das normas de abolição da tortura e
das penas cruéis. Torna-se claro a ligação umbilical que existe entre esse
instituto e as bases humanistas da sociedade moderna.

Não apenas pela influência direta de Voltaire e Beccaria na Prussia e


Rússia, os mé todos de suplício foram abolidos do ocidente. O movimento
iluminista contaminou a mentalidade das monarquias europeias. As
considerações especificamente sobre a tortura, feitas por aqueles autores,
vieram apenas a direcionar uma lógica valorativa (em relação ao ser humano),
que já fazia sentido.

Foi ouvindo o eco humanista do Século das Luzes, que eclo diram
reformas legislativas de abolição dos suplícios 230.

Em 1775, Maria Teresa da Áustria, proíbe no seu Império a tortura. A


proibição passa a valer para Milão somente em 1789, com José II 231.

Pedro Leopoldo, da Toscana, suprime a tortura para o Grão Ducado de


Florença em 1786 e em 1780, Luí s VI abole a tortura na Fra nça (com
exceções, e em 1788, totalmente ) 232.

230
BAR ROS , Mar co Ant o nio de. A Busca da Ver dade no P ro cesso P ena l. ( S ão P aulo : 2010,
Re vist a do s T r ibu na is) . p. 77.
231
GOUL ART , Va lér ia D ie z S car a nce Fer na nde s. T o rt ur a e pr o va no pr o cesso pena l. ( São
P au lo : 2002, At la s) , p. 32.
110

Pela historicamente intima relação entre a Santa Igreja e as instituições


laicas, não é de se estranhar que a Espanha tenha abolido a tortura, pelas
Cortes Gerais e extraordinária s somente em 1811 233.

Toda essa reformulação legislativa que se abateu sobre o ocidente,


contudo, representou uma mudança muito mais profunda sobre um aspecto
jurídico. Em um plano social, estava -se abrindo o caminho para socied ades
mais humanas 234. No plano jurídico o afastamento da tortura representou uma
mudança muito mais profunda que envolveu uma reorganização de toda a
lógica que orientava o antigo sistema de perseguição criminal utilizador dos
suplícios enquanto método. Trat a-se de uma análise complexa, cujas minúcias
somente podem ser visualizadas com precisão diante da ciência processual
penal desenvolvida dos tempos atuais.

3.3 O surgi mento de novas referências para o pr ocesso pe nal

Recapitulando a cronologia da ruína do sistema inquisitorial, houve o


enfraquecimento a Igreja Católica, seguida pelo resgate de valores pré
medievais, o desenvolvimento das artes e ciências, o descontentamento com o
antigo regime e a projeção do ser humano enquanto sujeito de direitos.

Dessa linha de eventos resultou a queda da Inquisição. O sistema


inquisitorial contudo , teria vida muito mais longa, chegando, talvez, até os
dias de hoje.

232
FE RRI , E nr ico . P r inc íp io s de D ir e it o Cr imina l - O Cr imino so e o Cr ime.
( Ca mp ina s: 2003, Russ e l l) . p. 37.
233
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a. ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) . p. 19.
234
Ass i m co mpr ee nd ida s med ia nt e a r ea l iz ação do pro jet o hu ma nist a fo r jado pe lo s t eó r icos
do século XVI I I.
111

Não foi pel o declínio da Santa Inquisição que seu sistema


investigativo perderia seu espaço. Não. Ele pe rmaneceria enraizado, através
de suas características essenciais, na ordem jurídica onde ganhou espaço e
projeção:

"Na co ncepção da Alt a I dade Méd ia o esse nc ia l er a o dano , o que


t inha s e pas sado ent r e do is ind iv ídu o s; não ha via fa lt a ne m
in fr a ção . A fa lt a , o pecado, a cu lpa bil idade mo r a l a bso lut a me nt e
não int er vinha m. O pr o ble ma er a o de saber se ho uve o fe ns a, que m
a pr at ico u, e se aque le que pr et end e t er so fr ido a o fensa é cap az de
supo rt ar a pro va que ele pr o põ e ao adver sár io . Não há er ro,
cu lpa bi l idade, ne m r e lação co m o pecado . Ao co nt r ár io , a part ir do
mo me nt o e m que o inquér it o se int ro duz na pr át ic a jud ic iár ia, t r az
co ns igo a impo rt ant e no ção de infr aç ão . Quando um ind iv íduo ,
causa da no a o ut ro, há se mpr e, a f ort i ori , dano à so ber ania, à le i,
ao po de r . Por o ut ro lado , devido a t o das as i mp lic açõ es e
co not açõ es r e lig io sa s do inquér it o , o dano ser á u ma fa lt a mo r a l,
quase r e lig io s a o u co m co not ação r elig i o sa. T em - s e ass i m po r vo lt a
do sécu lo XI I, uma cur io s a co nju nção ent r e a lesão à le i e a fa lt a
r e lig io sa. Les ar o so ber ano a co met er u m pecado são duas co isas
que co meça m a se r eu nir . E la s e st ar ão unida s pr o fu nda me nt e no
D ir e it o Cláss ico . Dessa co nju nção a inda não est amo s livr es 235".

A dinâmica dos novos tempos trazida pelo humani smo do século


XVIII, no entanto, não seria soment e incompatível com a Inquisição enquanto
instituição da Igreja. Seria visceralmente avesso ao própria lógica de um
procedimento inquisitório que prestigia a perseguição em absoluto detrimento
do perseguido.

O que já foi discutido e que agora se contextualiza , é que o ponto de


incompatibilidade do human ismo com o inquisitorialismo é o valor que passa
a se admitir indissociavelmente ao ser humano . Transportando -se pro âmbito
jurídico, esse aspecto se projeta através de uma revisão de diversos e lementos
do procedimento jurisdicionalizado, interessando aqui, em especial, a tortura
enquanto método.

O caso Frances ilustra perfeitamente a questão.

235
FOUC AU LT , M ic he l. A Ver dade e as Fo r mas Jur íd ica s. ( R io d e Jane ir o : 2005, Nau).
p. 73 - 74.
112

Se no século XIII o sistema jurídico Francês mantinha em convívio uma


jurisdição eclesiástica e uma jurisdição laica, e se em 1670 (ou seja, já no
Século XVII) o ordenamento jurídico viu um recrudescimento das
características inquisitoriais através Ordonnance sur la procédure criminelle
(de Luis VI) que reafirmou o modelo de procedimento escrito e
236
hierarquização de provas, então a promulgação do Código de Napoleão em
1811, representa com excelência o impacto que os movimentos Iluministas
provocaram ao colidir com as normas do velho sistema 237.

A influência iluminist a tanto foi vitoriosa no embate co m o anterior


sistema jurídico francês, que se nota no Código de Napoleão um reforma
substancial no procedimento penal, grande parte materializando as tendências
humanistas 238. E das inovações trazidas por essa codificação, interessa -nos
destacar: introduziu -se ali, o livre convencimento motivado dos juízes como
referência para o exercício da jurisdição (que será objeto reflexão no capítulo
4). Inaugurava -se, com isso, o caminho a ser trilhado para a construção de um
processo penal onde a busca da verdade pude sse deixar de ser uma mera
confirmação das suposições do juiz.

Não há duvidas de que a revisão da legislação criminal foi a coroação


jurídica da mentalidade introjetada pela sociedade modernista a partir das
teorias humanistas.

" A par t ir de 1810, o Có digo P ena l fr a nc ês, or iu ndo da Revo lu ção e


do I mpér io , a lt er a r adic a lme nt e a leg is lação so br e o s co st ume, a
po nt o de est a ser vir , e m gr aus d iver so s e ao lo ngo de t o do o sécu lo ,
co mo mo de lo de r e fer ê nc ia par a o co nju nt o de paíse s da E ur o pa. O
có digo , a liá s, ins p ir a- se no mo vi me nt o ilu m in ist a, no s pr inc íp io s de
Cesar e Becc ar ia e no s d ecr et o s vo t ado s pe la As se mb le ia Leg is lat iva
e m 1791. " F ina l me nt e vo cês ver ão des apar ecer ", d iz ia nes sa dat a
M ic he l La pe let ier de S a int - Far geau, "essa pr o fu são de cr imes
i mag inár io s que e ngr o ssa va m as a nt igas co let ânea s de no ssas le is.
Ne la s, não enco nt r ar ão ma is aque le s gr ande s cr ime s de her es ia, de

236
Code d' I nst ruci on Cri mi nel l e.
237
BAR ROS , Mar co Ant o nio de. A Busca da Ver dade no P ro cesso P ena l. ( S ão P aulo : 2010,
Re vist a do s T r ibu na is) . p. 76.
238
FOUC AU LT , M ic he l. A Ver dade e as F o r mas Jur íd ica s. ( R io de Jane ir o : 2005, Na u) . p.
106.
113

le sa - ma je st ade d ivina, de so r t ilég io e de mag ia, pe lo s qua is, e m


no me do c éu, t ant o sangue su jo u a t err a 239. "

Especialmente na França , ambiente de fomentação iluminista, é fácil


perceber como o pensamento, as críticas e projeções sociais , pediam
reformulações jurídicas, principalmente no que se refere aos procedimentos
criminais. Assim, as mudanças no Processo Penal Francês , implicaram em
alterações tanto no processo quanto no in quérito criminal, apresentando
ambos em maior sintonia com o pensamento humanista. Precisamente por
isso, é correto dizer que as reformas políticas almejadas, refletiram em
alterações nos instrumentos de perseguiçã o da verdade pelo procedimento
jurisdicionalizado 240.

Note-se a já citada obra de Voltaire, Discurso Sobre a Tolerância . Ali é


descrito, no primeiro capítulo , o relato de um caso em que o suicídio de um
indivíduo – Marco Antônio Calas - é transformado em um procedimento
jurisdicionalizado em que seus familiares se tornam os réus.

A descrição do autor nos da conta da forma como a construção da


verdade dentro de um processo ainda e minentemente medieval (e a ele
Voltaire dirige suas primeiras críticas antes de se insurgir contra a idéia de
tolerância em si) sofre com uma evidente distorção que o afasta daquilo a que
se propõe: conhecer uma verdade 241.

No caso que nos é narrado por Voltaire, o próprio autor desconhece as


circunstâncias em que ocorreram a morte de Marco Antônio. Todavia,
demonstra que são evidentes as distorções trazidas pela comoção pública. A

239
BAR ROS , Mar co Ant o nio de. A Busca da Ver dade no P ro cesso P ena l. ( S ão P aulo : 2010,
Re vist a do s T r ibu na is) . p. 77
240
"P er ce be - se e nt ão o iníc io de u ma no va fas e, t ida co mo mo der na, e vo lut iva do pr o cesso
pena l, t a mbé m co nhec ida co mo fase da cer t ez a mo r a l. O s ist e ma da s pr o vas mo r a is, cu ja
r efo r ma ha via s ido co mbat id a ar dent e me nt e no sécu lo XVI I I , co nst it u i u ma co nqu ist a
de fin it iva. A par t ir d ist o busca - se a f o r mação da ínt ima co nvicç ão do ju lga do r e do s
jur ado s. Abo lida s a s pr esu nçõ es lega is de cu l pa, a apr ec iaç ão das pr o vas pas sa a fic ar
subm is sa ao pr inc íp io do livr e co nve nc i me nt o do ju iz ". ( BARROS , Mar co Ant onio de. A
Busca da Ver dade no P ro cesso P ena l. ( S ão P aulo : 2010, Revist a do s T r ibu na is) , p. 77).
241
VOLT AI RE , Fr a nço is - M ar ie Ar o uet . T r at ado S o br e a T o ler â nc ia. ( S ão P aulo : 2006,
E sca la E ducac io na l) . p. 06.
114

condenação da família Calas parece ao leitor um desfecho injusto de uma


trama onde não se alcança a qualquer verdade sobre o problema central: a
circunstâncias da morte de Marco Antônio. A propósito, ao que parece, não
existiu nem se discute , se é possível alcançar alguma certeza nesse sentido.

Embora não se questione sobre a possibilidade ou não de se chegar a


uma verdade através do processo penal, resta inq uestionável que o processo
chegou a alguma verdade. Qual seja, as condutas ilícitas dos familiares de
Calas. Então a que se dirige a crítica de Voltaire?

O problema apontado por Voltaire é exatamente a intolerância dos


métodos no decorrer de um procedimen to criminal. Suas observações
materializam o que anos mais tarde causa estranheza a Foucault, por ser um
cenário em que o ritual que alcança a verdade é considerado o mesmo ritual
que leva à punição 242.

Intrinsecamente, ele consubstancia o pensamento Ilumi nista no trato da


busca pela verdade: a verdade não pode ser buscada a todo custo. Há limites
na busca de verdade e o processo não pode objetivar chegar a qualquer
verdadeiro conhecimento da realidade se isso representar certas violações
que, na lição de Vo ltaire, são demonstrações de intolerância de fundamento
religioso 243.

"E ssa er a a s it uação desse espa nt o so caso que d ifu nd iu e nt r e


pesso as impar c ia is, mas s e ns íve is, a id é ia de apr ese nt ar ao público
a lgu ma s r e fle xõ es so br e a t o ler â nc ia, s o br e a indu lgê nc ia, so br e a
co mis er ação , que o padr e Ho ut t evi l le c ha ma de "do g ma
mo nst r uo so ", em sua dec la ma ção po mpo sa e er r ô nia so br e o s fat o s e
que a r azão c ha ma de "apa nág io d a nat ur eza". Ou o s ju íze s de
T o ulo use, inf lue nc iado s pe lo fa nat is mo da mu lt id ão , co ndenar a m ao
su p líc io da r o da u m pa i d e fa m íl ia ino cent e, o que é inéd it o ; o u
esse pa i d e fa m í l ia e sua mu lher est r angu lar a m o fi lho ma is ve lho ,
auxi l iado s no cr ime po r o ut ro filho e p o r um a m igo , o que não é
co nfo r me à nat ur eza. Nu m e no ut ro caso , o abuso da ma is sa nt a
r e lig ião pro duziu u m gr and e cr ime. É port ant o , no int er esse do

242
FOUC AU LT , M ic he l. V ig iar e punir ( P et ró po lis: Vo zes, 2010). p. 77.
243
Co mo não po der ia de ixar de ser e m pro ced ime nt o s jud ic ia is base ado s no pr o cesso
inqu is it o r ia l fu ndado pe la I gr e ja Cat ó lic a.
115

gêner o hu ma no , exa minar se a r e lig i ão deve ser car ido sa o u


bár bar a" 244.

Mais do que isso: a conclusão é tal que a preocupação deve ser em “ser
tolerante” (o que nada mais é do que um limite) e não em conhecer a
realidade, se é que isso é possível.

Voltaire traduz bem o pensamento iluminista de que os métodos de


obtenção da verdade devem ser orientados por princípios uni versais de
tolerância e justiça . Vai além: a o tangenciar o tema, coloca cheque se a
verdade correspondista é um valor desejável ao sistema que se propõe a
substituir o inquisitorial.

Note-se que não apenas Voltaire, mas todo o rol bibliográfico que
tratou do tema , apresentou em maior ou menor escala uma nova forma de
rejeitar os métodos inquisitoriais, atacando assim, mesmo indiretamente , a
eficácia da busca pela verdade correspondista nos moldes da Inquisição 245.

Certamente a construção de uma nova consciência de busca da verdade


não poderia conceber como parâmetro fundamental uma verdade metafísica
baseada em dogmas católicos e predeterminada aos fatos do mundo
naturalístico, da mesma maneira que se pretendida através dos trabalhos da
Santa Inquisição. Muito ao contrário. Todo movimento de contestação da Fé
Católica, como a reforma protestante e a própria base filosófica do
movimento iluminista, foment ou um amplo questionamento quanto à
legitimidade dos métodos jurisdicionalizados que haviam servido aos
interesses da Cúria nos séculos anteriores. É então colocado em pauta a
aproximação entre a infração penal e a infração religiosa:

"O pr inc íp io fu nda me nt a l do s ist e ma t eó r ico da le i pe na l d e fin ido


po r esses aut or es é que o cr ime, no sent ido pena l do t er mo , o u, ma is
t ecnic a me nt e, a infr ação não deve t er ma is ne nhu ma r e lação co m a
fa lt a mo r a l o u r e lig io sa. A fa lt a é u ma in fr a ção à le i nat ur al, à le i
r e lig io sa, à le i mo r a l. O cr i me o u a infr a ção pena l é a r upt ur a co m a

244
VOLT AI RE , Fr a nço is - Mar ie Ar o uet . Tr at ado So br e a T o ler â nc ia. ( S ão P au lo : 2006,
E sca la E ducac io na l. ) . p. 16.
245
Ve ja - se as r e fer ênc ias fe it a s à Beccar ia no cap ít u lo ant er io r .
116

le i, le i c iv i l e xp lic it a me nt e est abe le c ida no int er io r de uma


so c iedade pe lo lado leg is lat ivo do po der po lít ico . P ar a qu e ha ja
in fr a ção é pr eciso ha ver u m po der po lít ico , uma le i e que essa le i
t enha s ido e fet iva me nt e fo r mu lada. And es da le i e xist ir , não po de
ha ver in fr ação . S egundo esse s t eó r ico , só po dem so fr er pena lid ades
as co ndut as efet iva me nt e de fin idas co mo r epr eens í ve is pe la le i 246.

Sem se ocupar de discussões filosóficas mais profundas, é preciso


apenas registrar que não está se afirmando que humanismo busca va
transformar o procedimento jurisdicionalizado na busca de verdades não
balizadas por valores metafísicos. N ão. O que se percebe é que a referência de
“salvação da alma” ou “expiação dos pecados” passa a ser substituída por
noções de justiça universal e direitos inalienáveis 247. Impossí vel não perceber
isso, por exemplo em Kant :

" Ass i m, a le i u niver sa l do d ir e it o , qual se ja, age e xt er na me nt e de


mo do que o livr e uso de t eu ar bít r io po ssa co exist ir co m a l iber dade
de t o do s de aco r do co m u ma le i u niver sa l, é ver dade ir a me nt e u ma
le i que me i mpõ e uma o br igaç ão , mas não guar da de mo do algu m a
expe ct at iva - e mu it o me no s impõ e a e xigê nc ia - de qu e eu pr ó pr io
deve sse r est r ing ir m inha l iber dade a e ss as co nd içõ es s i mp les me nt e
e m fu nç ão dessa o br iga ção ; e m lugar d i sso , a r azão d iz ape na s que
a liber dade est á li m it ada àque las co nd i çõ es e m co nfo r midade co m
sua ide ia e qu e e la po de t ambé m ser at iva me nt e li m it ada po r o ut ro s;
e e la o d iz co mo u m po st ulado não sus cet íve l de pr o va ad ic io na l.
Quando o o bjet ivo de a lgué m não é e ns inar vir t ude, ma s so me nt e
expo r o que é o dir e it o , não é per mis s íve l e ne m de ver ía mo s
r epr esent ar aque la le i do d ir e it o co mo e la mes ma se ndo o mo t ivo da
ação " 248.

Curiosamente, a substituição desses element os metafísicos de


justificação dos sistemas de caracterí sticas inquisitórias (passando da fé para
a justiça), não significou que os novos tempos estavam traze ndo uma reforma
do sistema inquisitório partindo de dentro pra fora. Definitivamente não. O
que se percebe é que historicamente , em um primeiro momento, procura-se
afrontar os elementos externos do sistema, como as penas cruéis e os métodos

246
FOUC AU LT , M ic he l. A Ver dade e as F o r mas Jur íd ica s. ( R io de Jane ir o : 2005, Nau) . p.
80.
247
Mu it o e mbo r a, r epit a - se, est e ja - se a i nda mu it o d ist ant e de u ma cat a lo gu iza ção dos
D ir e it o s Hu ma no s no s mo ld es do que fo i fe it o pe la ONU e m 1948.
248
KANT , I mma nue l. A Met a fís ic a do s Co st ume s . ( S ão P aulo : 2010, Fo lha de S ão P aulo).
p. 54.
117

violentos de instrução. Depois é que se percebe a pernic iosidade até dos


mínimos resquícios dess e sistema diante daqueles valores trazidos pelo século
XVIII, especialmente quando passam a afrontar o Estado Democrático de
Direito. Só agora, no Século XXI é que esses eleme ntos intrínsecos tem sido
enfrentados através de uma ciência processual comprometida com aquela
noção de Estado Democrático de Direito.

No âmbito jurídico a parametrização não poderia ser outra nessa nova


perspectiva. O conceito de justiça transcendental passou a se tornar o
referencial do devido processo e principalmente do Direito Processual Penal.
É importante lembrar que o século das luzes é também o nascedour o do
Constitucionalismo Moderno (conforme será oportunamente discutido no
capítulo 4) 249.

Mas esse é apena s o primeiro passo na refutação absoluta de um


sistema inquisitorial e evidentemente do correspondismo.

O percurso que leva à completa negação de um sistema processual de


bases inquisitoriais começa com a oposição de obstáculos a pretensão da
ordem jurídica em conhecer a verdade. Através da trajetória histórica que
levou ao acontecimentos do século XVIII e ao projeto iluminista, foi possível
concluir que o primeiro obstáculo trazido nesse sentido é um conjunto de
valores inerentes ao ser human o.

Mesmo que em um primeiro momento não se tenha uma definição bem


clara de quais seriam esses valores, já se percebe a existência de qualidades
humanas essenciais e instransponíveis sob qualquer justificativa. Disso
decorre uma revisão da maneira do sist ema lidar com o criminoso, ou, mais
especificamente, com o corpo do criminoso:

"S e fizés se mo s u ma hist ór ia do co nt ro le so c ia l do co r po,


po der ía mo s mo st r ar que, at é o sécu lo XVI I I inc lu s ive, o cor po do s
ind iv íduo s é esse nc ia l me nt e a super fíc ie de inscr ição de suplíc io s e
de pena s ; o co r po er a fe it o par a ser sup licado e cast ig ado . Já nas
inst ânc ias d e co nt ro le que sur ge m a par t ir do sécu lo XI X, o cor po

249
E das ba se s do mo de lo co nst it uc io na l ist a co nt empo r âneo . ( DAL L ARI , Da lmo de Abr eu.
E le me nt o s de T eo r ia Ger a l do E st ado . ( São P aulo : 1998, S ar aiva) . p. 258).
118

adqu ir e u ma s ig nif ica ção t ot alme nt e d ife r ent e; e le não é ma io o que


deve ser sup lic ado , mas o que deve ser f o r mado , r efo r mado ,
co rr ig ido , o que deve adqu ir ir apt idõ es, r eceber u m cer t o nú mer o de
qua lidade s, qua lif ic ar - se co mo co r po capaz de t r aba lhar " 250.

Não se poderia esperar uma progressão diferente do sistema jurídico.


Afinal, em em um primeiro momento afirm ou-se : “a fé, não pode ser
parâmetro para a submissão do homem. Deve haver valores universais ligados
à coexistência humana, para tanto ”; E depois: “Mesmo frente a tais valores
universais, ainda assim existem limites ao subjugo do ser humano, balizados
por valores também universais inerentes à pessoa” 251.

Mas quando se traz o ser humano para o primeiro plano de prioridades


do sistema jurídico, as pretensões do processo judicial passam a ser outras.

Ao se afirmar que o conhecimento da realidade pecaminosa ou ilícita


(pré estabelecida) , através do Processo Penal , não é mais tão importante
quanto à proteção das garantias fundamentais, abre -se espaço para se refletir
sobre o papel da verdade no Processo. Permite, adentrando -se ainda mais
profundamente na questã o, analisar como se dá a construção da verdade do
procedimento jurisdicionalizado. Perceba-se que é justamente ess a ordem de
indagações, que se observa na leitura de Voltaire 252.

Mas a compreensão desta relação – respeito às garantias individuais e


conhecimento da verdade - apresenta grande complexidade.

Primeiramente, deve -se entender que as garantias individuais enquanto


objetos de cuidado pelo sistema jurídico, consubstanciam -se, inicialmente,
nos Direitos Fundamentais de primeira geração.

250
FOUC AU LT , M ic he l. A Ver dade e as F o r mas Jur íd ica s. ( R io de Jane ir o : 2005, Nau) . p.
119.
251
Aqu i fa la mo s “a nt es ” e “depo is” ape na s no se nt ido de “caus a” e “co nseqüê nc i a”, po is
so b u ma per sp ect iva cr o no ló g ic a, é his t o r ica me nt e impr ec iso separ ar e m mo ment o s be m
d ist int o s o declín io da fé e nqua nt o par âmet r o, e o so er guime nt o do ser huma no su je it o de
d ir e it o s. E m t ese o co r r er a m s imu lt a ne a m ent e.
252
VOLT AI RE , Fr a nço is - M ar ie Ar o uet . T r at ado S o br e a T o ler â nc ia. ( S ão P aulo : 2006,
E sca la E ducac io na l) . p. 18.
119

A doi s, nota -se que, principalmente pela influência de Beccaria (em um


primeiro momento) , a utilidade dos procedimentos judiciais passa a ser
questionada. Afinal, a utilização de suplícios não seria falha apenas por
transpor uma barreira inafastável de proteção ao ser humano, como também
por não ser garantia de alcance da verdade, já que a confissão obtida pela
tortura, sob uma perceptiva lógica e não mais dogmática, não necessariamente
seria útil.

E se a confissão perde sua força enquanto Regina probatum, então o


sistema de provas tarifadas estava em cheque. É justamente neste ponto que
está a relação entre a que da da tortura enquanto método e a reformulação na
busca da verdade, com o abandono do correspondi smo.

Logo, o movimento humanista contribui com a abolição da tortura


enquanto método de obtenção da verdade, em dois aspectos: primeiro
colocando o ser humano em uma posição no sistema , em que o método não
pode violá -lo. Em segundo lugar reformular o sistema de provas, de modo a
não haver mais hierarquia entre e las. A confissão perde seu papel de rainha
das provas e a tortura deixa de ser um método eficaz.

Mas é preciso entender que a incidência do humanismo no processo


penal se dá de maneira sistêmica, de modo que não apenas a tortura é atacada
pela doutrina iluminis ta, ou a verdade é colocada em cheque, mas se propõe
uma reformulação de todo procedimento jurisdicionalizado à luz da nova
visão do século XVIII.

Essa proposta de revisão, contudo, não esgota por completo os esforços


necessários para a refutação absoluta do sistema inquisitorial. Afinal, os
sistemas jurisdicionalizados absorveram as características inquisitoriais de tal
maneira que, mesmo diante de uma evoluída ciência processual no século
XXI, ainda são frequentes as descobertas de resquícios inquisitoria is em
procedimentos penais modernos.

O mal da existência de tais resquícios inquisitoriais é a possibilidade de


se tornarem matrizes de determinados procedimentos, dando -lhes uma feiç ão
120

eminentemente inquisitorial, de modo a tornar -lhes incompatíveis com a


sistemática do Estado Democrático de Direito 253.

É no mínimo curioso que o correspondismo tenha sobrevivido ao


definhar do inquisitorialismo. Afinal, aos olhos do cientista jurídico moderno,
não teria sido possível abandonar a concepção do pecado anterior à
investigação, sem se afastar o correspondismo . Mas se, como se afirmou
anteriormente, o correspondismo se apr esenta até os dias atuais, como a
verdade ontológica foi desconstituída a ponto de deslegitimar a tarifação das
provas e consequentemente a tort ura?

A resposta, conforme trabalhado oportunamente, é que a concepção de


verdade ontológica subsiste até a atualidade, mas relacionada à noção de um
crime que existe anterior à investigação e deve ser encontrado. Por
conseguinte, persiste uma tarifação de provas por vezes subliminarmente
infiltrada nos sistemas processuais. É o caso, por exemplo, da
sobrevalorização de algumas provas em detrimento de outras, para a
comprovação de fatos de determinada natureza.

De toda feita, a verdade é que , do ponto de vi sta cientifico, para se


afastar a tortura enquanto método de uma maneira “higiênica”, p or assim
dizer, em que se sanearia os resquícios inquisitoriais, as etapas t eriam de ser
as seguintes: refutação da exi stência de uma verdade anterior; deslegitimação
do sistema de provas tarifadas ; e abolição da tortura. Todavia, conforme se
observou, o Humanismo, grande responsável por promover essas mudanças,
incidiu de maneira ampla sobre todo o procedimento jurisdicionalizado
criminal. A intenção do movimento era a a preservação de garantias dos
indivíduos, o que se alcançaria pela abolição da tortura. Não houve critério
nenhum nessa investida do Humanismo no combate à tortura. Aliás, parece ter
sido uma consequência colateral do movimento, somente permitida pela
preocupação de influentes pensadores iluministas como Beccaria e Be ntham

253
U m e xe mp lo r eco r r ent e no o r dena me nt o br as ile ir o é a po der inst r ut ór io d o Ju iz,
deco r r ent e da po ss ibi l idade d e pr o duçã o de pr o vas de o fíc io , co nfo r me ar t . 156 e ar t . 209
do Có digo de Pro cesso P ena l.
121

que traduzi ram a mentalidade humanitária em considerações de natureza


jurídica 254.

A destituição da tortura enquanto instrumento jurisdicionado, foi uma


cirurgia de realização mal calculad a. Eliminou-se o problema sem retirar -lhe
as raízes. Daí a persistência do c orrespondismo e mesmo de provas tarifadas,
apesar de verdadeiramente enfraquecidas, apesar do afastamento dos suplícios
enquanto método.

Ora, embora subsista, o instituto está frag ilizado. Não restam dúvidas.

O correspondismo entra em franco declínio a partir deste momento


compreendido por Foucault como fim da sociedade penal e início da
sociedade da vigia. Segundo sustenta, Beccaria e Bentham trouxeram ao
pensamento ilumi nista a noção de que a busca da verdade não deveria ser a
grande preocupação do sistema penal, mas o cuidado com o criminoso.
Ademais, "o grande princípio da penalidade para Beccaria era o de que não
haveria punição sem uma lei explícita, e sem um comportamento explícito
violando essa lei" 255. É o embrião do princípio nulla poena sine lege !

O delinquente certamente deve ser punido 256 pelos seus atos violadores
do Contrato Social, não há dúvidas:

254
I nt er essa nt e a o bser vação de Fo ucau lt , quant o ao fi m da s pr o jeçõ es t eór ica s fe i t as por
Beccar ia e Be nt ha m. S egu ndo de mo ns t r a, a pr át ica do s ist e ma s pe na is le vo u a uma
r ea lid ade co mp let a me nt e d iver sa d aque la i mag inada pe lo s aut o r es: "E m que co ns ist e m
essa s t r ans fo r maçõ es do s s ist e ma s pena is ? P o r um lado em u ma r ee la bo r ação t eór ica da le i
pena l. E la po de ser enco nt r ada em Becc ar ia, Be nt ha m, Br is so t e em leg is lado r es que são
o s aut o r es do 1º e do 2º Có digo P ena l f r ancê s da épo ca r evo luc io nár ia. P er cebe mo s que o
s ist e ma de pe na l idade s ado t ado pelas so c iedad es indust r ia is e m vias de fo r ma çã o , em via s
de dese nvo lvi me nt o , fo i int e ir a me nt e di fer e nt e do que t inha s ido pr o jet ado alguns a no s
ant es. Não que a pr át ic a t enha de s me nt ido a t eor ia, po r é m e la se de s vio u r ap id a me nt e do s
pr inc íp io s t eó r ico s que e nco nt r a mo s e m Beccar ia e Be nt ha m". ( FOUC AU LT , M ic he l. A
Ver dade e as Fo r ma s Jur íd ica s. ( R io de Jane ir o : 2005, Nau) . p. 83.)
255
FOUC AU LT , o p. cit . , p. 85.
256
"P ar a que o go ver no não est eja no d ir e it o de punir o s er ro s do s ho me ns é nece ss ár io que
esse s er r o s não se ja m cr ime s ; só pas s a m a ser cr i me s qua ndo per t ur ba m a so c iedade ;
per t ur ba m es sa so c iedad e de sde que i nsp ir e m o fa nat is mo . Cu mpr e, po rt ant o , que o s
ho me ns se cu ide m e m não ser fa nát ico s par a mer ecer a t o ler â nc ia". ( VOLT AI RE , Fr a nço is -
Mar ie Ar o uet . T r at ado So br e a To ler â nc ia. ( S ão P aulo : 2006, E sca la E ducac io na l. ) p. 91)
P er ceba - s e já a no ção de cr ime a fa st ada do pecado e de u m s ist e ma pe na l vo lt ado co nt r a a
int o ler â nc ia r e lig io s a.
122

"Há, po r co nsegu int e, t a mbé m, u ma no va de fin iç ão do cr im ino so . O


cr im ino so é aque le que da ni f ica, per t uba a so cied ade. O cr imino so é
o ini m igo so cia l. E nco nt r a mo s isso mu it o clar a me nt e em t o do s
esse s t eór ico s co mo t ambé m e m Ro usseau, que a fir ma que o
cr im ino so é aque le que r o mpeu o pact o so c ia l. Há ide nt idad e e nt r e
o cr ime e a r upt ur a do pact o so cia l. O cr im ino so é u m in i m igo
int er no . E st a idé ia do cr imino so como in im igo int er no , co mo
ind iv íduo que no int er io r da so c iedade r o mpeu o pact o que ha vi a
t eo r ica me nt e est abe le c ido , é u ma de fin ição no va e cap it a l na
hist ó r ia da t eo r ia do cr ime e da pena l ida de 257".

Mais importante que isso, contudo, é impedir que o delinquente cometa


novo crime e mais: proporciona -lhe a oportunidade de retornar ao meio
social 258.

Neste cenário, a reconstrução do fato se torna de pouca importância, o


que permite mais tarde a se questionar: se a reconstrução daquilo que
chamávamos de verdade, pode ser colocada em um segundo pla no, será ela
mesmo essencial ao processo penal?

Essa dúvida vem a ser desenvolvida apenas no século XIX já com uma
ciência Jurídica engajada na busca pela independência do Direito Processual.
O que se pode afirmar ainda naquele século XVIII , é que o projeto do sistema
punitivo Estatal em sintonia com o pensamento de Beccaria e Bentha m, não
contemplava a reconstrução da verdade como uma meta incondicional a ser
atingida pelo procedimento jurisdicionalizado.

A irrefreável consequência desse desencadeamento de reformulações


nos principais elementos do processo penal, foi a paulatina construção de uma
blindagem, nos Ordenamento Jurídico s, contra características inquisitoriais,
especialmente – por ser o elemento que mais direta e notoriamente afrontava
o sistema de garantias construído pelo pensamento iluminista – contra a
utilização dos suplícios enquanto procedimento institucionalizado.

257
FOUC AU LT , M ic he l. A Ver dade e as F o r mas Jur íd ica s. ( R io de Jane ir o : 2005, Nau) . p.
81.
258
E isso se m que o pro jet o de r efo r ma cr i m ina l do S écu lo XVI I I co nt emp la ss e as pr isõ es
co mo inst it u içõ es de co nt ro le so c ia l: "C o mo u m pr o jet o de pr isão co rr et iva po de impo r - se
à na c io na l idade lega l ist a de B eccar ia ? P ar ece - me que se a pr isão se impô s fo i p o r que er a,
no fu ndo , apenas a fo r ma co nce nt r ada, exe mp lar , s imbó l ic a de t o das est as inst it uiçõ es de
sequest r o cr iada s no sé cu lo XI X ". ( FOUC AULT , o p. cit . , p. 123)
123

CAPÍTULO 4: IMPLICAÇÕES DA MUDANÇA PARA UM PARADIGMA


DE RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A criminalização da tortura pelo sistema j urídico de um Estado não é


apenas o abandono de sua utilização pelo procedimento criminal, nem a mera
realização de um processo legislativo formal de criação do dispositivo legal
incriminador.

É o reflexo de mudanças essenciais ocorridas no processo penal


moderno. E da mesma forma que é uma consequência dessas mudanças, a
criminalização também implica, de maneir a direta ou indireta, em
modificações no ordenamento c riminal.

O que se pretende agora é demonstrar que a abolição da tortura tem


outras implicâncias ao processo penal, além da extinção de um outrora
eficiente método de obtenção da verdade. É dentre essas implicações que se
situa o tema da presente pesquisa, qual seja, as garantias do processo penal
moderno contra a utilização dos suplícios enquanto instrumento e sua
impossibilidade em virtude da evolução do Estado Moderno.

Antes, contudo, é importante qu e se compreenda a formação histórica


da ciência processual penal, através do processo de consolidação dos Direitos
Fundamentais e do Estado Liberal.

Conforme se asseverou oportunamente, o século XVIII promoveu uma


série de modificações legislativas em todo ocidente, voltadas à
implementações das garantias humanistas deflagradas pelo pensamento
124

iluminista. Em relação aos indivíduos, foi a gênese dos chamados "direitos


básicos do homem" 259.

Os assim denominados, "direitos humanos", surgiram como a realização


normatizável do sonho iluminista, de direitos que se apresentassem além de
qualquer fronteira e que pudessem dar luz a normas positivas garantidoras dos
atributos invioláveis do ser humano 260.

Tal “processo de positivação se dá por meio da consagração dos d ireitos


nos textos jurídicos, antes projetados apenas no plano da filosofia política” 261.
O assentamento desses direitos humanos nos Ordenamentos jurídicos foi,
porém, gradual.

No campo político e governamental, a passagem do Século XVIII para o


XIX foi marcado pela abdução, para o campo da gestão pública, dos ideais (e
conquistas) iluministas 262. Todavia, este primeiro momento não conseguiu
integralizar de forma plena todas as propostas do iluminismo (principalmente
do ponto de vista humanitário) para a moder nidade. Na verdade, percebe -se
um processo gradual no qual os direitos de uma mesma natureza, vão sendo
implementados pelos Estados.

Estes Estados passam a assimilar estruturalmente a identidade de tais


garantias, dando a luz ao Estado Liberal, Social e D emocrático de Direito, ao
que nos interessa analisar a formação histórica daquele primeiro (Estado
Liberal) e depois a formação do processo penal que se origina nele.

259
“E xist e u ma co nfu são t eó r ica e no r mat iva do s t er mo s e mpr egado s par a des i gnar os
d ir e it o s bás ico s do s ho me ns. Co nfu são o u hiper o no mia ? P r o vave l me nt e a mbas ".
( S AMP AI O, Jo sé Adér c io Le it e. D ir e it o s fu nda me nt a is: r et ó r ic a e hist o r ic ida de . ( Belo
Ho r izo nt e: 2004, De l Re y) . p. 07) .
260
S AMP AI O, o p. cit . , p. 08.
261
S AMP AI O, o p. cit . , p. 207.
262
“A per spe ct iva hist ór ic a no s r e met e à co nst at ação de que as pr ime ir as de c lar a çõ es de
d ir e it o co nt aminar a m o s s ist e mas jur íd ico s o c ide nt a is, e spa lha ndo - se pe la s d iver sas
Co nst it uiçõ es”. ( S AMP AI O, o p. cit . , p. 208. )
125

4.1 A consoli dação do humanismo através dos Direitos Fundame ntais de


Primeira Geração

A noção de Direito Fundamental , em sua concepção moderna, foi a


resposta iluminista para a necessidade de positivação do projeto humanista do
século XVIII.

A evolução histórica dos direitos fundamentais é casualmente percebida


em ondas de direitos. Trata -se de um modelo de análise histórica, criado por
Karel Vasak e pela primeira vez apresentada no Instituto internacional de
Direitos do Homem em Estrasburgo em 1979 263.

Segundo o esquema proposto por Vasak, a implementação dos Direitos


Fundamentais no ocidente é delimitada por ondas, que correspondem a fases
em que direitos fundamentais de uma mesma natureza foram reconhecidas
pelos Estados. Originalmente o autor categorizou tais ondas em 3 tipos:
direitos de liberdade; direitos de solidariedade; e direitos d e fraternidade.
Clara alusão aos lemas da Revolução Francesa.

“E m 1979, o fr ancês Kar e l Va sak apr ese nt o u no I nst it ut o


int er nac io na l de D ir e it o s do Ho me m e m E st r asbur go uma
c la ss i f icação base ada na s fa se s de r e co nhe c ime nt o do s dir e it o s
hu ma no s, d ivid ida po r e le e m t r ês ger açõ es, co nfo r me a mar c a
pr edo mina nt e do s eve nt o s hist ó r ico s e das insp ir açõ es a xio ló g ic as
que a e las der a m id e nt id ade: a pr ime ir a, sur g ida co m as r evo luçõ es
bur guesa s do s S é cu lo s X VI I e XVI I I , va lo r iza va a l iber dade ; a
segu nda, deco r r ent e d o s mo vi me nt o s so c ia is d e mo cr at as e da
Re vo lu ção Russa, da va ê nfa se à igua ld a de e, fina l me nt e, a t er ce ir a
ger ação se nut r e das dur as e xper iê nc ia s pass adas p e la hu ma nidade
dur ant e a S egunda Guer r a Mund ia l e da o nda de desco lo nização que
a segu iu, r e flet ir á o s va lo r es da fr at er nid ade” 264.

Contudo, não é sem fundamento a aproximação feita por Vasak entre o


brocado Revolucionário e a natureza naqueles direitos. Nota -se verdadeira
semelhança entre a proposta iluminista de liberdade no campo social, e a

263
S AMP AI O, o p. cit . , p. 259.
264
S AMP AI O, o p. cit . , p. 260.
126

primeira geração de Direitos Fundamentais. O mesmo é verdade em relação


aos direitos de segunda e terceira geração, respectivamente com a
solidariedade e fraternidade.

A implementação – normativamente falando – dos direitos


fundamentais, em especial os considerados de primeira geração, ocorreu por
volta do século XVIII, sendo possí vel identificá -los na Declaração de Direitos
da Virgínia em 1776 (resultado da Revolução Americana) e na Declaração
Francesa de 1789:

“E mbo r a a I ng lat er r a t enha dado o imp u lso inic ia l, e não o bst ant e
lo ca l izar - se na Fr a nç a o ma is at ivo ce nt ro de ir r ad iaç ão de ide ias,
fo i na Amér ica, na a inda co lô nia da V ir g ínia, que sur g iu a pr ime ir a
Dec lar ação de D ir e it o s. Ant es m es mo de se dec lar ar e m
indepe nde nt es, as co lô nia s ing le sas da Amér ica se r eu n ir a m nu m
Co ngr esso Co nt ine nt a l, e m 1774, t endo o Co ngr esso r eco me ndado
às co lô nias que fo r mas se m go ver no s in depend e nt es. Que m deu o s
pr ime ir o s pa sso s par a isso fo i just a me nt e a V ir g ín ia, que e m 12 de
ja ne ir o de 1776 publico u uma Dec lar a çã o de Dir e it o s, cu j a c láusu la
pr ime ir a pr o c la ma va “que t o do s o s ho me ns são po r nat ur eza
igua l me nt e livr es e indepe nde nt es, e t êm cer t o s dir e it o s iner ent es,
do s quais, quando ent r am e m qua lqu er est ado de so ciedad e, não
po dem po r qua lquer aco r do, pr ivar o u despo jar o s pó st ero s ; quer
d izer , o go zo da vida e l iber dade, c o m o s me io s de adqu ir ir e
po ssu ir pr o pr ied ade, e per segu ir e o bt er fe l ic idade e segur a nça” 265.

A eles associa -se a ideia de liberdade, ao se considerá -los como os


direitos elementares para que o indivíduo possa se r considerado livre em seu
meio social 266.

São direitos destinados a suprir as necessidades básicas do homem


moderno, afim de torná -lo senhor de seu próprio destino e verdadeiramente
livre pra exercer seu papel social. Pretende -se, pela positivação de norma s
neste sentido, atender aos anseios mais imediatos de um ocidente abalado
pelas revoluções do final do Século XVIII.

“P o r t er em s ido o s pr ime ir o s que apar e cer a m na E r a do s D ir e it o s


são r ot ine ir a me nt e c ha mado s de “d ir e it o s” o u “liber dade s” d e

265
DALL ARI , Da lmo d e Abr eu. E le me nt os de T eo r ia Ger a l do E st ado . ( S ão P aulo : 1998,
S ar a iva) . p. 207.
266
L AFE R, Ce lso . A r eco nst r ução do s dir e it o s hu ma no s: u m d iá lo go co m o pensa m ent o de
Hanna h Ar e ndt . ( S ão P aulo : 1988, Co mp anhia das L et r as) . p. 127.
127

pr ime ir a ger a ç ão o u de “bas e liber a l”. T a is d ir e it o s se fu nda m nu ma


separ ação ent r e E st ado e so cied ade, que per me ia o co nt r at ualis mo
ind iv idua l ist a ad min ist r at iva po r me io do Po der E xecut ivo e do
co nt ro le, pr eve nção e r epr essão pe lo Ju d ic iár io de a me aça o u le são
I nt er na me nt e, divide m- se e m ( 1) d ir e it o s civis e ( 2) d ir e it o s
po lít ico s” 267.

Nesse sentido, é importante lembrar que a primeira objeção do "homem


moderno" é contra as instituições representativas do antigo regime. É a busca
pela emancipação do indivíduo em relaçã o a um Estado que até então o
percebia como mão de obra contribuinte, desprovida de poder decisório
político 268.

Celso Lafer, com perspicácia, denota que a modernidade teve o condão


de trazer para o homem ocidental a mentalidade do individualismo. Até então,
o indivíduo era doutrinariamente – e nisso se destaca o essencial papel da
Igreja Católica na cultura medieval – voltado para a vida transcendental. Se
isso é verdade, então os direitos de primeira geração foram uma incontestável
coroação ao individualism o 269.

Isso porque a liberdade que se fala neste primeiro momento pós


revolucionário, manifestou -se pela projeção do individualismo numa esfera
coletiva, o que pode ser resumida na busca de auto determinação do indivíduo
em relação às instituições sociais.

Não por menos, o rol desta primeira geração de direitos fundamentais


comporta a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, liberdade política
dentre outras várias, entendidas como direitos naturais e, portanto, anteriores
ao Contrato Social.

267
S AMP AI O, Jo sé Adér c io Le it e . D ir e it o s fu nda me nt a is: r et ó r ica e hist o r ic idad e. ( Belo
Ho r izo nt e: 2004, De l Re y) . p. 261.
268
WE LLS , Her ber t Geo r ge. H ist ó r ia U niver sa l . v. 5. ( E st ado s Unido s do Br as i l: 1972,
Co mpa nhia E d it o r a Nacio na l) . p. 1411.
269
“Co m e fe it o , o s ant igo s e o s med ie va is , ao r eje it ar e m o mu ndo do s ho me ns, vo lt ar a m -
se, desde P lat ão , par a a busca e a co nt e mp laç ão da ver dad e et er na. Os mo der no s, par a o
mu ndo int er io r do ser, po r fo r ça da dúvida que co lo ca e m que st ão a et er na ve r dade das
co isas” ( L AFE R, Ce lso . A r eco nst r ução do s d ir e it o s hu ma no s: u m d iá lo g o co m o
pensa me nt o de Hanna h Ar e ndt . ( S ão P aulo : 1988, Co mpa nhia das Le t r as) . p. 120).
128

Mais além, conforme se demonstrará, o período de estabelecimento dos


direitos de primeira geração está intimamente ligado ao surgimento do Estado
Liberal. Logicamente a ideologia de indivíduos livres do Estado, reflete, para
o Governo, na proposta de uma ge stão de l iberalidades para seus indivíduos.
Lafer, dividindo essas perspectivas entre perspectiva ex poppuli (ponto de
vista do povo) a perspectiva ex rei (ponto de vista do Estado), leciona:

“Na a ná l is e do s pr o cesso s de as ser ção e muda nça do s d ir e it o s do


ho me m na H ist ó r ia, cr e io que é út il r eco r r er à dist inç ão ent r e a
per spect iva ex part e popul i – a do s que est ão submet ido s ao po der –
e a per spect iva ex part e pri nci pi s – a do s que det êm o po der e
bus ca m co nser vá - lo ” 270.

Isso serve a demonstrar que tal processo de a sserção teve tanto reflexos
para os governados, quanto para o governantes 271. No comando para os
governantes é que se localizam as implementações jurídicas.

No campo jurídico, cuja observação é especialmente relevante para a


presente pesquisa, a primeira ge ração de direitos fundamentais é a de maior
importância para o que se propôs analisar, embora não seja a única necessária
para se compreender absolutamente o respeito à dignidade humana oferecida
pelos ordenamentos jurídicos ocidentais contemporâneos:

"Co nt e mpo r anea me nt e, o s o r dena me nt os jur íd ico s o cide nt a is, e m


r egr a, r ever enc ia m a pes so a co m o fit o de impr im ir o r espe it o à
d ig nidade do ser hu ma no , mas o car át er ind iv idua l ist a que r e ve st e o
ar cabo uço jur íd ico de E st ado s co mo o Br as il, apr ese nt a - se desp ido
do fer me nt o anar qu ist a, pr ó pr io do E st ado mín i mo de co rt e liber a l,
e m que as e st r ut ur as no r mat iva s, inc lu in do as gar ant ias pr o cessua i s
pena is, last r ar a m- se, ess e nc ia l me nt e, em r egr as abst r at as e idea is,
que pr essupu nha m u ma co ncep ção id ea l d e ho me m, ig no r a ndo as
des igua ldades so c ia is e as car act er íst ica s pesso a is" 272.

270
LAFE R, o p. cit . , 125.
271
“I st o po st o , penso que s e po de d izer q ue a per sp ect iva e x part e pri nci pi s , e m r e la ção
ao s d ir e it o s hu ma no s e nqua nt o inve nção hist ó r ic a, no r t eia - s e pe la go ver na bil id a de de u m
co nju nt o de ho me ns e co is as nu m dado t er r it ó r io ”. ( LAFE R, o p. cit . , 125) .
272
P I NT O, Fe lipe Mar t ins. I nt ro dução cr ít ica ao Pro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 139.
129

A noção de liberdade lastreada pela primeira onda de direitos, e


implementada juridicamente pelo Estado Liberal, foi responsável por um
expressivo choque procedimental no processo Criminal.

A necessidade de se implementar no sistema jurídico as propostas de


liberdade e auto gestão, fez com que os legisladores em matéria processual
penal buscassem alternativas ao modelo inquisitorial, por séculos utilizado
como instrumento de manutenção dos in teresses da monarquia 273.

É a partir de quando se procura resgatar o sistema acusatório de


persecução penal. A implementação do sistema acusatório se mostra
consoante com o projeto da primeira onda de direitos fundamentais
especialmente no que concerne à f unção reduzida que se pretende conferir aos
Estados na tutela dos interesses individuais 274,.

De toda forma, para o sistema penal, os direitos fundamentais de


primeira geração parecem ter especial importância por criarem o arcabouço
estrutural para se erigi r um procedimento em que a liberdade é um valor
juridicamente positivado de limitação ao jus puniendi 275.

Como a proteção aos direitos essenciais do homem e do cidadão passou


a ser uma prioridade do Estado - e não apenas a preservação da ordem pública
- o status libertatis foi soerguido à condição de gar antia fundamental.
Portanto, o soerguimento da liberdade enquanto valor jurídico está
inegavelmente relacionado à implementação dos direitos de primeira geração.

Do ponto de vista da ciência jurídica, como será estudado adiante, foi o


início do procedimentalismo, o que por si já revela uma preocupação jurídica

273
O s ist e ma jur íd ico ing lês, que per ma nec er a livr e da inf luê nc ia da I gr e ja Cat ó lica , t o r na -
se u ma r e fer ê nc ia.
274
A fo r ma co mo o sist e ma acu sat ór io se a linha ao s int er es se l iber a is, ser á det a lhado no
cap ít u lo segu int e.
275
M AL AT O, Lu iz E r na ni F er r e ir a R i be ir o . D ir e it o s Hu ma no s - Feder a l iz ação da
Co mpet ê nc ia e a Amazô nia . ( P ort o Alegr e: 2012, Nur ia Fa br is) . p. 32.
130

com o método pelo método, em oposição ao cenário medieval de método pela


276
verdade (ou, mais precisamente, método pelo pecado) . Cabe explicação .

Se antes (no medievo), os suplícios se justifi cavam plenamente , pois a


verdade (o pecado) era um objetivo que deveria ser alcançado a todo custo, a
partir do momento em que o poder jurisdicionalizado tem que fazer um prévio
juízo em relação à violação ou não d e garantias fundamentais (inicialmente
relacionadas à proteção às liberdade individuais), cada uma das etapas
procedimentais de persecução criminal passam a ser individualmente
observadas quanto a violação ou não de tais garantias.

A marcha procedimental dos processos criminais torna -se objeto de


estudo da ciência jurídica, a fim de se verificar se os métodos de obtenção da
verdade estão em sintonia com as prerrogativas fundamentais dos cidadãos,
agora positivadas pelos Estados.

Nota-se que essa forma de análise dos métodos para se alcançar a


verdade da Persecução Penal, estão em sintonia com as observações de
Beccaria e dos irmãos Verri sobre a tortura. Todavia, no primeiro momento,
em que se questiona a tortura, a ela se opõe noções ainda teóricas, fome ntadas
pelo iluminismo, de proteção ao indivíduo. Contudo, quando, já no século
XIX, se promove a revisão do procedimento criminal a luz dos Direitos
Fundamentais, as limitações opostas aos procedimentos são normativas ou
principiológicas, e não são apenas teóricas e ideológicas 277.

Em outras palavras, as p esquisas realizadas apontam que, inspirado no


questionamento da tortura, é que mais tarde a ciência jurídica se pôs a
questionar também outros institutos do processo penal, a luz dos direitos
naturais do homem.

276
ALVI M, Jo s é E duar do Car r eir a. E le me nt o s de T eor ia Ger a l do P ro cesso . ( R io de
Ja ne ir o : 1998, Fo r ense) . p. 30.
277
“De sde a sua co nfo r maç ão id eo ló g ica e do ut r inár ia co m d ir e it o s do ind iv íduo co nt ra o
E st ado , é po ss íve l, par a fins d idát ico s, ident if icar quat ro pro cesso s o u et apas de evo luç ão
do s dir e it o s hu ma no s: o da sua po sit ivação ( 1) , o da sua gener a liz ação ( 2) , o da
int er nac io na l izaç ão ( 3) e o da espec ia l iz ação o u espec ific ação ( 4) . O S écu lo XI X ass ist e a
t r ês dessas et apas, deixa ndo par a o século segu int e a co nt inu id ade de t a is pr o cesso s, a lé m
de sua int er nac io na l iza ção ”. ( S AMP AI O, Jo sé Adér c io Le it e. D ir e it o s fu nd a me nt a is:
r et ór ic a e hist o r ic idade . ( Be lo Hor izo nt e: 2004, De l Re y) . p. 207).
131

De toda feita, em reflexo à valorização da liberdade, é inegável que os


ordenamentos jurídicos ocidentais modernos orbite m essencialmente o
princípio do status libertatis, em matéria criminal. Nesse sentido os direitos
da primeira onda foram essenc iais para o surgimento da noção de que a
liberdade de todos é antes defendida através da defesa da liberdade
individual. É um progresso no caminho da implementação das garantias
humanistas do século XVIII.

Não obstante a humanização do processo penal, a f ase de


implementação da primeira geração de direitos não logrou êxito em retirar o
caráter inquisitorial d o procedimento criminal. Perceba -se, conforme se
discutiu no Capítulo 2 , que entender que a verdade deve ser alcançada apesar
das garantias fundamenta is, não é verdadeiramente o afastamento da busca da
verdade correspondista (cuja natureza é eminentemente inquisitória). Ver a
dignidade humana como um obstáculo à busca da verdade não é abolir o
inquisitorialismo.

Não. O processo penal livre da verdade c orrespondista , pelo que se


relatou oportunamente , somente seria possível ao se admitir a construção da
verdade em respeito às garantias fundamentais. Conquista essa que ainda hoje
demanda esforços do processo penal moderno, para ser alcançada.

Assim, apesar da primeira onda de garantias fundamentais ter o


inegável mérito de inaugurar a implementação dos direitos humanos nos
Processo Penal, a intenção de se derrotar o procedimento inquisitivo (já que
evidentemente destoante com a mentalidade moderna), fraca ssou.

De mais a mais, nota -se que, ao que importa a presente pesquisa, a


segunda e a terceira fase do surgimento dos Direitos Fundamentais, não
trouxeram ao Processo Penal modificações relevantes aos procedimentos
132

penais ocidentais ou à ciência criminal, no que se liga diretamente ao tema


pesquisado 278.

4.2 A for mação do Estado Li beral e a i mple mentação dos Direitos


Fundame ntais de Pri meira Geração

Também a evolução do Estados a partir da Revolução Francesa, se


revelou importante nas pesquisas realizadas 279. A progressão que leva do
Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito, está relacionada ao
abandono do modelo de governo onde a tortura se apresentava como
instrumento legítimo, até se chegar ao atual fase em que se discute o instituto
à luz de um Estado Democrático de Direito.

Para o que foi proposto, interessa deter -se mais daquela primeira forma
de Estado, do que da última. Porém, é impossível não tratar, mesmo que
ligeiramente, da evolução histórica que partiu dali, pois a implementação dos
Direitos Fundamentais, conforme se debateu anteriormente, é acompanhada
pela progressão do Estados, de modo que essa trajetória destes está
visceralmente conectado ao estabelecimento histórico das garantias inerentes
ao ser humano através dos Direitos Fundamen tais:

"P ar a le la e co mp le me nt ar me nt e à evo luç ão do mo de lo de E st ado de


D ir e it o o cor r eu a fo r maç ão da c idada ni a mo der na que, inic iada no
sécu lo XVI I I , per co r r eu um pr o cess o hist ó r ico de co nqu ist as
gr adat ivas e pr inc ip ia das co m o s d i r e it o s civis ( séc. XVI I I ) ,
segu ido s do s dir e it o s po lít ico s ( séc. XI X) , agr egado s ao s dir e it o s
so c ia is ( séc. XX) e, r ece nt e me nt e, o s d ir e it o s met a ind iv idua is e o

278
E mbo r a se ja so b a ég ide do E st ado So cia l, o nde se deu a i mp le me nt ação do s d i r e it o s de
segu nda ger ação , que fo r am pr o mu lga do s o s at uais có digo s P e na l e P r o cess ua l P e na l
br as i le ir o .
279
“É no sso desa f io per ce ber co mo o s D ir e it o s Fu nda me nt a is vier a m i mpo ndo - se na
co nt empo r ane idade e de que fo r ma ma r ca m a s d ifer e nt es fas es hist ó r ica s po r que ve m
passa ndo o E st ado pó s - r evo luc io nár io ”. ( HORT A, Jo sé Lu iz Bo r ges. H ist ó r ia do E st ado de
D ir e it o . ( S ão P aulo : 2011, Ala meda) . p. 43) .
133

d ir e it o ao pat r imô nio g e nét ico int egr ar a m as ger açõ es de d ir e it o s


que co mpõ e a co ncepção co nt empo r ânea de c idada nia " 280.

Iniciando as reflexões necessárias, o Estado Liberal é identificado como


a primeira forma de realização da proposta iluminista para os Estados de um
ocidente pós revoluções.

É o momento em que os ideais do s éculo XVIII relativos à governança


são concretam ente inseridos nos modelos de gestão pública. Isso significa
dizer que estava a se colocar em prática as propostas de novos Estados,
pensados especialmente pelas teorias contratualistas.

Certo é, que a prioridade dessas propostas, era a de se opor ao


absolutismos monárquico do antigo regime, bem como às instituições que lhe
apoiavam. Depois é que se procurou apresentar algo verdadeiramente palpável
para se dar azo a esses sentimentos reformistas.

“O E st ado Mo der no nasc eu a bso lut ist a e dur a nt e a lgu ns s écu lo s


t o do s o s defe it o s e vir t udes do mo nar ca abso lut o fo r a m co nfu nd ido s
co m a s qua lid ades do E st ado. I sso exp lica po r que já no sécu lo
XVI I I o po der público er a vist o como ini m igo da liber dade
ind iv idua l, e qua lqu er r est r ição ao i ndi vi dual e m fa vo r do col et i vo
er a t ida co mo ileg ít ima. E ssa fo i a r a i z ind ividu a list a do E st ado
l iber a l. Ao me s mo t empo , a bur gues ia e nr iquec ida, que já d ispu nha
do po der eco nô mico , pr eco niza va a int er ve nç a m íni ma do E st ado na
vida so c ia l, co ns id er a ndo a liber dade c o nt r at ual u m d ir e i t o nat ur a l
do s ind iv íduo s” 281.

Mais do que especificamente voltados para a reformulação dos Estados,


o arcabouço teórico que sustentou a implementação do Estado Li beral, se
inseria num projeto muito maior do século XVIII. É tudo aquilo que se
apresentou no capítulo 3.

Em resumo, esse projeto iluminista contemplou não só a reformulação


dos Estados (vide teorias contratualistas), como também um plano muito mais

280
P I NT O, Fe lipe Mar t ins. I nt ro dução cr ít ica ao Pro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 137.
281
DALL ARI , Da lmo d e Abr eu. E le me nt os de T eo r ia Ger a l do E st ado . ( S ão P aulo : 1998,
S ar a iva) . p. 275.
134

amplo de revisão do mundo ocidental. Projeto no qual inevitavelmente se


inseria o ser humano, tute lado pelo que veio a se consubstanciar -se nos
Direitos Fundamentais.

Uma conclusão essencial: os Direitos Fundamentais foram a


concretização do pensamento humanista do século XVIII e a formação do
Estado Liberal foi a primeira estrutura de implementação d esses Direitos
numa esfera de garantias executável pela máquina do Estado 282.

O que se observou nas pesquisas concernente, foi que o iluminismo


idealizou como uma essencialidade do homem, foi elevado à condição de
Direito pela construção de uma teoria dos Direitos Fundamentais, e
transformado em garantias pelo Estado Liberal ao inaugurar o modelo de
Estado Moderno 283.

Mas se assim o foi, supôs -se a inegável relação entre os Direitos


Fundamentais de Primeira geração e essa forma de Estado que inaugura va a
modernidade. As pesquisas não revelaram nenhuma surpresa.
Verdadeiramente as premissas dessa forma de Estado estão atreladas aos
Direitos da Primeira Onda. Se destacam por buscar um imediato rompimento
com o modelo antigo que se revela nada mais nada menos, p ela construção de
um projeto de liberdade do particular frente ao Estado. Não há duvidas que,
das reivindicações revolucionárias, a primeira que se procurou atender foi a
de concessão de liberdade para as relação humanas. A sujeição extrema do
homem medieval ao Estado, trouxe um tremendo desejo de liberdade e auto
determinação, para o homem moderno, em relação ao seu Estado 284.

Em uma resposta normativa a estes anseios, implementam -se os Direitos


de Primeira Geração relativos à liberdade de expressão, liberda de de religião,
comércio, e toda mais ampla forma de liberdade.

282
HORT A, Jo sé Lu iz Bo r ges. H ist ó r ia do E st ado de D ir e it o . ( S ão P aulo : 2011, Al a meda) .
p. 81.
283
HORT A, o p. cit . , p. 77.
284
HORT A, o p. cit . , 55.
135

“O E st ado liber a l, co m u m m ín i mo d e i nt er fer ênc ia na vida so c ia l,


t ro uxe, de iníc io , a lgu ns ineg á ve is be ne f íc io s: ho uve u m pr o gr esso
eco nô mico ace nt uado , cr ia ndo - se a s c o nd içõ es par a a r e vo luç ão
indust r ia l; o ind iv íduo fo i va lo r izado , desper t ando - se a co ns c iê nc ia
par a a impo rt ânc ia da liber dad e hu mana ; de se nvo lver a m - se a s
t écni cas de pode r , sur g indo e impo ndo - se a idé ia d e poder l egal e m
lugar do poder pessoal ” 285.

E mais. Os ensejos de liberda de trouxeram à prática da gestão


governamental, governos de mínima intervenção. A máquina estatal deveria se
restringir ao mínimo necessário para a manutenção do bem estar social e
conservação do Contrato Social. Áreas relativas à saúde, educação e bem
estar social, deveriam ser gestadas pela própria dinâmica que orienta a
sociedade humana. Aos particulares estava conferida a sorte para gerir seus
interesses nestes campos.

“De qua lquer fo r ma, o E st ado liber al, r esu lt a nt e da asce ns ão


po lít ica da bur gues ia, o r ganizo u - se de ma ne ir a a ser o ma is fr aco
po ss íve l, car act er iza ndo - se co mo E st ado mí ni mo o u o E st ado -
pol í ci a , co m fu nçõ es r e st r it as qua se qu e à mer a vig i lâ nc ia da o r de m
so c ia l e à pr ot eção co nt r a ameaça s ext er na s. E ssa o r ie nt ação
po lít ica fa vo r eceu a imp le me nt ação do co nst it uc io na lis mo e da
separ ação de po der es, po is a mbo s imp l ic ava m o e nfr aquec i me nt o do
E st ado e, ao me s mo t e mpo , a pr eser vaçã o da liber dade d e co mér c io
e de co nt r at o , be m co mo do car át er bas ica me nt e ind iv idua l ist a da
so c iedade” 286.

O projeto de liberalismo proposto por Stuart Mill e Adam Smith


pareciam ter se expandido da economia para toda gestão governamental 287.
Aliás, a economia foi o corolário do pensamento dominante no Estado
Liberal. A proposta de Laissez-faire, laissez-passer do modelo econômico que
se implementava na alvorada do século XIX, justificava um modelo de
administração pública em que o mundo se auto governaria ( le monde va de

285
DALL ARI , Da lmo d e Abr eu. E le me nt os de T eo r ia Ger a l do E st ado . ( S ão P aulo : 1998,
S ar a iva) . p. 277.
286
DAL L ARI , o p. cit . , p. 276.
287
“Qu a nt o às r e laçõ es e co nô micas, a o br a cé le br e d e Ada m S m it h, “A R iqu eza das
Naçõ es”, public ada e m 1776, co r r espo nd ia per fe it a me nt e ao s dese jo s dos gr and e s
pr o pr iet ár io s e co mer c ia nt es, sust ent ando que cada ho me m é o me lho r ju i z de seus
int er es ses e de ve t er a liber dade de pr o mo vê - lo s segu ndo sua vo nt ade. Af i r ma ndo a
exist ê nc ia d e u ma o rdem nat ural , capa z de a ssegur ar a har mo nia e spo nt ânea de t o do s o s
int er es ses, Ad a m S m it h co nde na qua lqu er int er ve nç ão do E st ado ”. ( DAL L ARI , o p. cit . , p.
275) .
136

lui-même) também no suprimento das necessidades sociais do povo. Ainda que


não houvesse experiência prá tica para o liberalismo nessas áreas, a aparente
aplicabilidade (e mesmo eficácia) do projeto liberal para a economia, foi o
bastante para que a retirada do controle Estatal em áreas relacionadas ao bem
estar social, ganhasse apoio dos particulares, especi almente aquela classe
burguesa, por definição relacionada a mercantilizarão e interessada no
sucesso das ideologias modernas de tratamento da economia pelos estados:

“Do po nt o de vist a po lít ico , o liber a lis mo s e a fir mar ia co mo


do ut r ina dur ant e o sécu lo XI X , so br et udo a part ir de 1859, co m a
publ icaç ão da o br a “Da L iber dade”, de St uart Mil l. Adept o
ent us iast a do ju s nat ur a lis mo , so br et udo das ide ias de Ro usseau,
S t uart Mil l es cr eve que e la s ha via m pr o duzido o devido e fe it o no
sécu lo XVI I I , mas er a pr ec iso r ea fir má- l as at r avés das a çõ es [ . .. ]. O
ind iv íduo é me lho r ár bit r o de seus int er esse s do que o E st ado, não
po dendo haver ma l ma io r do que per mit i r que o ut r a pesso a ju lgue o
que co nvé m a cada u m. Ass i m, qua lque r er ro que a lgu é m co met a,
co nsc ie nt e o u inco nsc ie n t e me nt e, não pr o duz t ant o ma l qua nt o a
subm is são ao E st ado ” 288.

Afinal, a lógica da barganha e o jogo de interesses, deveriam conseguir


trazer para os particulares, sistemas de saúde, educação e cultura, de
qualidade e tão prósperos quanto a economia que s e projetava pela dinâmica
liberal.

E assim se propondo, procurou -se construir uma máquina mínima de


gestão governamental. Paralelamente, conferiu -se ao indivíduo, ferramentas
normativas (podendo ser entendidas como garantias) de proteção em relação
ao Estado. Mais do que isso, eram ferramentas de soerguimento dos
indivíduos à uma posição em que o diálogo com o Governo – por enquanto
apenas formalmente – se daria em posição de igualdade.

Foi por esse caminho, ou seja, pela necessidade de repensar a posiçã o


do particular em relação aos Estados, que os Direitos de Primeira Geração
permearam a ordem jurídica de todo ocidente, a partir da França 289.

288
DAL L ARI , o p. cit . , p. 276.
289
“E m 26 de ago st o de 1789, a Asse mb lé i a Nac io na l fr a nc esa apr o vo u sua Decl ara ção dos
Di rei t os do Ho mem e do Ci dadão, qu e, inega ve l me nt e, t eve desde lo go mu it o ma io r
137

Longe de se pretender o esgotamento da repercussão dos Direitos da


primeira geração em todas as esferas do sistem a jurídico, através do Estado
Liberal, pretende -se demonstrar apenas a relação entre a matéria e o processo
penal.

Cumprindo o que se propôs analisar, observa -se, em rápida mas


necessárias digressão, com os Direitos de Primeira Geração sendo
implementados pelo Estado Liberal, uma busca dos ordenamentos jurídicos do
Direito Continental, ao Common Law. Explica-se a razão 290.

A proposta liberal, contaminando o processo penal, traz completa


reestruturação dos procedimentos criminais. Ao que se evidencia, o pro cesso
penal moderno surge com o Code D’instruction Criminelle . Não apenas pela
nova forma de se perceber os delitos, agora relacionados a uma outra
compreensão de ordem pública e a novos bens a serem juridicamente
protegidos 291, mas também por uma nova compr eensão de como se deve
estruturar o procedimento criminal:

“ No E st ado liber a l, no cent r o da co ns ider ação est á ago r a o ind iv íduo


aut ô no mo , dot ado co m o s seus d ir e it o s nat ur a is o r ig inár io s e
ina l ie ná ve is. Do que se t r at a do pro cesso pena l é de u ma o po siç ão d e
int er es se ( po r t ant o de u ma l ide, d is put a o u co nt ro vér s ia) e nt r e o E st ado
que quer punir o s cr ime s e o ind iv íduo que quer a fa st ar de s i qu a isquer
med ida s pr ivat iva s o u r est r it ivas d e sua liber dade. P o r seu lado , a lide,
par a que se ja ‘ fa ir ”, supõ e a ut il i za çã o de ar ma s e a d ispo nibi l idade,
pe lo s co nt endo r es, de me io s t ant o quant o po ss íve is igua is ; po r is so o
ind iv iduo não po de ser aba ndo nado ao po der do E st ado ; a nt es t em de
sur g ir co mo ver dade ir o su je it o de pro cesso , ar mado co m o seu d ir e it o de
de fes a e co m as sua s gar ant ia s ind iv idua is ” 292.

r eper cussão que as pr ecede nt es. I st o se de veu, e m par t e, à sua co nd iç ão de cent r o


ir r ad iado r de idé ias, a que já se fez r efer ê nc ia, ma s de veu - se, so br et udo , ao car át er
univer sa l da D ec lar ação fr a nce sa. “S eu suce sso , que fez po r lo ngo t empo da Fr a nça u m
ca mpe ão do liber a lis mo ”, ass ina la P hi l ippe Br aud, “de veu - se a que o s aut o r es da
Dec lar ação t iver a m co nsc iê nc ia de pr o cla mar d ir e it o s ind ividu a is, vá l ido s par a t o do s o s
ho me ns de t o do s o s t empo s e de t o do s o s pa íse s” ( DALL ARI , o p. c it ., p. 207. ) .
290
NE T O, Jo sé de As s is S a nt iago . E st ado De mo cr át ico de D ir e it o e P r o cesso P ena l
Acu sat ór io . ( Rio de Jane ir o : 2012, Lu me n Jur is) . p. 91.
291
Da co mpr ee ns ão de que exist e m va lo r es a ser e m t ut elas, é que sur ge, nest e mo me nt o
t ambé m o embr ião do co nce it o de be m ju r íd ico , co nfo r me se apr es e nt ar á o po rt uname nt e.
292
FE RN ANDE S , Ant ô nio S car a nce. P r ocesso pe na l co nst it uc io na l. ( S ão P au lo : 2002,
E dit o r a Revist a do s Tr ibu na is) p. 20.
138

Pelo que se denota, o sistema acusatório se apresentou muito


interessante ao legislador daquele período pós revolucionário. Em primeiro
lugar porque, naquele momento, pretendia -se um distanciamento de toda
instituições relacionados ao antigo regime. Afinal, o estabelecimento dos
Estados Liberais iniciou -se com um enfrentamento do Absolutismo
Monárquico ao qual a Inquisição e todo seu procedimento típico, era
inquestionavelmente afim. A isso o sistema acusatório, que se p retendia
importar das nações do Common Law, atendia muito bem, já que a região da
Bretanha se manteve livre da influência inquisitória, inclusive no
estabelecimento de suas normas judiciais.

“Do s meado s do século XVI I I – d iz G ALDI NO – U ma


t r ans fo r mação no t áve l se va i o per a ndo nas id e ias, u m esp ír it o de
r efo r ma va i pr o cur ando har mo nizar a leg is lação cr im ina l co m o s
pr inc íp io s de just iça e hu ma nid ade”. Vo lve m - se a s vist as par a a
I ng lat er r a, o nde não pe net r ava o pr o ced ime nt o Ro ma no - canô nico do
t ipo inqu is it o r ia l, ado t ado no co nt ine nt e eur o peu dur ant e o do mín io
do abso lut is mo d inást ico ”. 293.

Em segundo lugar, o sistema acusatório apresentou -se condizente com a


proposta liberal. A separação entre acusação e julgador permite implementar
(ao menos em hipótese) o ideal de igualdade entre as partes, no processo
judicial criminal. Os interesses (punitivos) do Estado passam a ser
representados por um indivíduo, na figura do membro do Ministério Público.
O particular, submetido ao processo criminal, é elevado à condição de sujeito
de direitos, para o qual todo sistema jurídico passa a ser voltado 294.

Mas implementação de elementos do sistema acusatório, em


ordenamentos jurídicos onde antes reinava solitariamente o inquisitorialismo,
implicou em modificações profundas, conforme ensina Santiago Neto :

"Os ju ízo s secr et o s, que r einar a m na in qu is iç ão , deixa m de e xist ir ,


t o do pro cedime nt o passa a ser pú bl ico ; o s acusado s pas sa m a t er
d ir e it o a u m de fe nso r ; as pr o va s são e st abe lec ida s po r um de bat e

293
MARQUE S , Jo sé Fr eder ico . E le me nt o s do Dir e it o P ro cessua l P e na l . v. 1. ( Camp inhas:
2009, Mil le nniu m) p. 90.
294
Não se ndo , co ndut o uma ino vação par a o o r dena me nt o . ( NET O, Jo sé de As s is S ant iago.
E st ado Demo cr át ico de D ir e it o e P r o cesso P ena l Acusat ó r io . ( Rio de Ja ne ir o : 201 2, Lu me n
Jur is) . p. 91) .
139

e m co nt r adit ó r io ; ao fina l do pr o cedime nt o o M inist ér io P úbl ico


t ece suas co nc lusõ es e, apó s, fa la o defe nso r " 295.

Abarcam, também, alterações sistêmicas que vão desde a revisão do


valor do indivíduo perante o poder judiciário, até uma nova compreensão do
papel de determinadas provas na construção da verdade no processo . Estas,
certamente serão objeto das reflexões seguintes.

Necessário, porém, uma última observação neste ponto. Embora seja


com base na ideologia do Estado Liberal que se concretizam os fundamentos
humanistas consoantes com um processo penal onde a tortura é criminalizada,
cabe acolher a opinião da jurista Ada Pelegrini . Segundo ela, é através das
doutrinas do Estado Social é que o Estado contemporâneo busca compreender
a jurisdição como função fundamental de realização do s valores humanos:

"O E st ado mo der no r epudia a s base s da fi lo so fia po lít ica liber a l e


pr et ende ser , e mbo r a s e m at it udes pat er na l ist as " a provi d ênci a do
seu povo" , no sent ido de assu mir par a s i cer t as fu nçõ es esse nc ia i s
legada s à vida e d ese nvo lvi me nt o da n ação e do s ind iv íduo s que a
co mpõ e m. Mes mo na u lt r apass ada fi l o so fia po lít ica do E st ado
l iber a l, e xt r e ma me nt e r est r it iva qua nt o às fu nçõ es do E st ado, a
jur isd ição est eve se mpr e inc lu íd a co mo r espo nsa bil id ade est at al,
u ma vez que a e li m inação de co nfl it o s c o nco rr e, e mu it o , par a a
pr eser va ção e fo r t alec i me nt o do s va lo r es hu ma no s da
per so na lidad e. E ho je, pr eva lece ndo as i de ia s do E st ado soci al , e m
que ao E st ado se r eco nhece a fu nç ão funda me nt a l de pr o mo ver a
p le na r ea l iza ção do s va lo r es hu ma no s, is so deve s e r vir , de u m lado ,
par a pô r em dest aque a fu nção jur isd ic io na l pac i f icado r a co mo fat or
de e li m ina ção do s co nfl it o s que a f l ige m a s pe sso as e lhe s t r aze m
angú st ia ; de o ut ro , par a adver t ir o s enc ar r egado s do s ist e ma ,
quant o à neces s idade de faz er do pro cesso u m mei o ef et i vo par a a
real i zação da j ust i ça 296.

Sem dúvidas, o projeto lançado pelos Estados Liberais, no que diz


respeito ao Processo Penal, ainda procura ser absolutamente realizado pelo
Estado Democrático de Direito do Século XXI, desta ve z, através de uma
ciência jurídica evoluída que busca conscientemente a implementação

295
NE T O, o p. cit . , p. 89.
296
CI NT RA, Ant ô nio Car lo s de Ar aú jo ; GRI NOVE R, Ada P e l legr in i; DI NAM AR CO,
Câ nd ido Rang e l. T eo r ia Ger a l do P ro cesso . ( S ão P au lo : 2008, Ma lhe ir o s) . p. 43.
140

legislativa de sistemas persecutórios afinados com a Dignidade da Pessoa


Humana.

4.3 Processo Penal Moderno regido sob os princí pios do pensame nto
humanitário

Chegando ao derradei ro ponto a que cominaram todas pesquisas


realizadas, cabe finalmente apontar a direção para que caminha o Processo
Penal Moderno, a partir das influências históricas observadas.

Vale dizer que a metáfora "apontar a direção" serve perfeitamente ao


que se pretende apresentar em seguida : apenas demonstrar o trajeto em que
caminha o procedimento criminal.

Cada uma das modificações decorrentes da refutação humanista de um


sistema persecutório onde a tortura a legítima, estão imersas em um todo
sistemático. De ste modo é tanto impossível se abordar a influência humanista
em todo o Processo Penal (dificuldade ainda ampliada pelas diferenças
legislativas entre os ordenamentos de um e outro Estado), quanto se esgotar a
análise de um certo elemento pontual dessa mud ança, pois fazê -lo envol veria
tamanha complexidade que poderia ser tema de uma nova e independente
pesquisa autônoma.

Portanto, o que se propõe agora é fazer do recorte metodológico, uma


ferramenta para se escolher, dentre os institutos do Direito Process ual Penal
Moderno, aqueles que se apresentaram como mais direta e essencialmente
modificados (ou criados) a partir da revolução humanista. Ainda, sobre esses
pontos escolhidos, fazer uma análise circunscrita ao reflexo histórico do
projeto iluminista, na a plicabilidade que o Direito Moderno permite aos
mesmos.
141

Ao que resta agora discutir, é primeiramente importante demonstrar que


não foi apenas o Processo Penal que foi essencialmente modificado pela
proposta humanista.

Se o Processo Penal Moderno e sua s características é agora o objeto da


análise, a lente através da qual se lança o olhar analítico é a ciência
processual. Impossível desconsiderar que junto da evolução legislativa dos
instrumentos de persecução criminal, tenha havido uma progressão também da
ciência jurídica desta matéria.

A própria ciência jurídica foi repensada a partir do marco histórico de


promulgação do Code d'Instruction Criminelle de 1808, notório diploma de
reformulação legislativa a partir de bases iluministas.

Tomando por base a (re)construção histórica feita por Frederico


Marques, a evolução ciência jurídica do processo penal, pode ser
compreendida como dividida em duas fases. A primeira, anterior ao Código
de Napoleão, já citado como marco para o processo penal moderno. A
segunda, portanto, posterior a esta codificação de 1808.

No primeiro período, destacam -se os glosadores, os práticos e os


percussores. Os glosadores, situados entre os Séculos XI e XV, foram
responsáveis pela mais "primitiva " forma de exegese jurídica sobre os
remanescentes fragmentos romanos. Pode -se tê-los como os funda dores da
doutrina processual penal 297.

Os práticos, contribuíram, já no Século XVI, com a elevação técnica da


ciência criminal, apresentando o Processo Penal através de uma ordem
sistemática e em uma abordagem de questões gerais. "Esse período
denominou-se praxismo porque o direito processual foi considerado pelos

297
MARQUE S , Jo sé Fr eder ico . E le me nt o s do Dir e it o P ro cessua l P e na l . v. 1. ( Camp inhas:
2009, Mil le nniu m) p. 87.
142

jurisconsultos, advogados, legistas e práticos como um conjunto de


recomendações práticas sobre o moto de proceder em juízo" 298.

O papel dos percussores é especialmente importante. Tais juristas se


destacam na ciência jurídica justamente no Século XVIII que tem grande
relevo para a abordagem feita aqui. É graças aos seus esforços, que a ciência
processual absorve com propriedade o pensa mento humanista 299.

Atra vés desta corrente, o Processo Penal começa a compreendido como


uma forma de realização da dignidade humana. Mais do que isso, é a fase em
que se começa a deslocar o foco da doutrina processual penal do método e da
punição, para o in divíduo e seus direitos naturais. A ciência jurídica já se
adiantava para onde a legislação criminal veio a habitar apenas a partir de
1808.

Como assevera Frederico Marques, o pensamento de Beccaria se torna


um marco referencial nesse sentido:

CE S ARE DE B E CC ARI A de nu nc ia va a s bar bar idad es do pr o cesso


inqu is it ó r io , enquant o FI L ANGI E RI “e vo cava co m cá l ida
e lo quênc ia o esp le ndo r do pro cesso ro mano do s t empo s c lá ss ico s”.
P r epar ava - se, dest a fo r ma, a r e no vaçã o est r ut ur al do s pr inc íp io s
po lít ico s info r mado r es da Just iça P e na l, que a Re vo luç ão fr a nces a
aca bar ia co nsagr a ndo ” 300.

Essa constatação permite perceber que foi o pioneirismo de Beccaria na


abordagem humanística da tortura enquanto método, que possibilitou o
desenvolvimento de um Processo Penal balizado pel o pensamento humanista.

Portanto, inicialmente através da tortura, que a ciência processual se


humanizou, e com ela, posteriormente, o Processo Penal Moderno.

298
ALV I M, Jo sé E duar do Car r eir a . E le me nt o s de T eor ia Ger a l do P ro cesso . ( R io de
Ja ne ir o : 1998, Fo r ense) . p. 29.
299
Cur io sa me nt e, Car r eir a Alv in ig no r a a par t ic ipaç ão do s me s mo e de st aca apena s o
pr o cedime nt a lis mo que sur ge a par t ir do Code d' I nst ruct i on.
300
MARQUE S , Jo sé Fr eder ico . E le me nt o s do Dir e it o P ro cessua l P e na l . v. 1. ( Camp inhas:
2009, Mil le nniu m) p. 90.
143

Eis então que a Revolução Francesa, e depois a ascensão de Napoleão


ao trono francês, traz con sigo um novo código penal.

O Code D’instruction Criminelle , como o marco legislativo que foi,


veio a apresentar uma ruptura no desenvolvimento da ciência processual
penal. Sob o ponto de vista normativo, o novo Código caminhou no sentido de
realizar aquil o que já vinha sendo orquestrado pelos Percussores. E nisso,
leia-se o afastamento dos métodos inquisitoriais, antes utilizados de modo
amplo e irrestrito 301.

Ao menos em hipótese, pretendeu -se afastar o sistema inquisitorial da


persecução criminal, algo qu e não se sucedeu absolutamente até os tempos
atuais. Evidenciou -se – e essa percepção já pode ser considerada como um
progresso, inicialmente através do combate aos métodos cruéis, que se tratava
de um sistema incompatível com o plano humanista. Desta prop osta, surge,
naquele Código Napoleônico, um sistema misto de persecução criminal:

"Co m a r e vo lução fr a nc esa, t e m- se o na sc i me nt o do deno minado


"s ist e ma m ist o ", que co njugar ia u ma p r ime ir a fas e inqu is it ó r ia e
u ma segu nda fa se a cusat ó r ia. O s ist e ma cha mado d e m ist o nasc e da
Re vo lu ção Fr ance sa, po ssu indo sua or ig e m no Có digo de I nst r ução
Cr im ina l fr a ncê s de 1808, dur ant e o per ío do napo leô nico . O
pr o cesso fo i d ivid ido e m duas fase s, u ma pr ime ir a fase inqu is it ó r ia,
cha mad a de inst r ut ór ia, na qu a l o inst r ut o r t r a ba lha de fo r ma
secr et a e o ut r a co nt r adit ó r ia, desenvo lvi da per ant e o s jur ado s" 302.

E note-se na citação de Santiago Neto, que na fase instrutória floresce a


utilização do júri. Conforme se abordou anteriormente, a proposta liberal do
Estado Moderno se alin hava com sistema acusatório adotado na Inglaterra. É
observando essa sintonia que o legislador do Code d’Instruction inaugura um
sistema misto de persecução penal: na primeira fase de inquérito a lógica

301
“Depo is d a pu bl icação , na Fr a nç a, do Code d’ I nst ruct i on C ri mi nel l e, de 1808, inic ia - se,
co mo d iz G ARR AUD, “um nouveau m ode de compr endre et d’ expose r l e s d i sci pl i nes
cri mi nel l es e m cor respondan ce avec l a nouvel l e mét hode l égi sl at i v e de cod i f i cat i on”
( MARQUE S , o p. cit . , p . 90)
302
NE T O, Jo sé de As s is S a nt iago . E st ado De mo cr át ico de D ir e it o e P r o cesso P ena l
Acu sat ór io . ( Rio de Jane ir o : 2012, Lu me n Jur is) . p. 90.
144

inquisitória é mantida 303, enquanto na fase do processo , implementa -se uma


estrutura acusatória replicada, com as necessárias modificações, para um
ordenamento de direito continental, inclusive com a instituição dos tribunais
de júri.

A partir dessas e outras modificações do sistema jurídico, a ciência


processual se desenvolve de uma forma inteiramente diversa daquela que se
observou até 1808 304.

Pela elevação dos acusados à condição de sujeitos de direitos, frente ao


Estado, através do sistema acusatório e das modificações de cunho humanista
ao procedimento pe rsecutório, o processo penal passa a ser tratado
semelhantemente ao processo civil, pela ciência jurídica. Daí a compreensão
unitarista do processo que posteriormente, em 1950, dá azo à uma Teoria
Geral do Processo 305.

Em outras, palavras, o Code d’Instruct ion Criminelle permitiu que a


ciência processual penal se desenvol vesse. E caminhando junto do processo
civil, surge na ciência processual uma forma de se compreender procedimento
jurisdicionalizado, determinante para os passos seguintes do processo penal.
Trata-se da Teoria da Relação Jurídica de Oskar Von Bülow:

“Fo i do Dir e it o P ro cessua l C ivi l que a do ut r ina do pro cesso pena l


r ecebeu, no sé cu lo pas sado , as ba ses t eó r icas par a a r e no vação
c ie nt íf ica, no sécu lo pa ssado , as ba se s t eó r ica s par a a r e no vação
c ie nt íf ica d e seus est udo s do gmát ico - jur íd ico s. A t eo r ia da r el ação
proces sual , fo r mu lado po r BULOW, na Ale ma nha, co nst it u i o
mar co inic ia l da o r ie nt ação s ist e mát ica que se i mpr im iu ao D ir e it o

303
E me s mo nest a fa se, co nfo r me se de mo nst r o u ant er io r me nt e, o hu ma nis mo t r az uma
abso lut a r efo r ma no s mét o do s de o bt enção da ver dade, t or na ndo -o s pro cedime nt a lme nt e
d ifer e nt es daque le s adot ado s pela I nqu is ição .
304
E e m r e lação à separ ação e nt r e a ciê nc ia p e na l su bst ant iva e ad jet iva, F r eder ico
Mar ques: “Co m a separ ação da leg is la ção pro cessua l da le g is lação de d ir e it o mat er ia l,
co meç a o pro cesso a ser est udado co m ma is de se nvo lt ur a, pro cur ando algu ns escr it o r es
es bo çar a co nst r ução das co nst ant es do ut r inár ia s de ssa d is c ip l ina jur íd ica at é ent ão
a mar r ada a s i mp le s pr eo cupaçõ es pr a xís t ica s, qua ndo não at o lada no casu ís mo fast id io so
do s eur ema s". ( MARQUE S , Jo sé Fr ederico . E le me nt o s do Dir e it o P ro cessua l P ena l . v. 1.
( Ca mp inha s: 2009, Mil le nniu m) p . 91).
305
ALVI M, Jo sé E duar do Car r eir a . E le me nt o s de T eor ia Ger a l do P ro cesso . ( R io de
Ja ne ir o : 1998, Fo r ense) . p. 37.
145

P ro cessua l, t r ans fo r ma ndo pr o funda m ent e os seus mét o do s e


d ir et r iz es” 306.

A Teoria da Relação Jurídica somente se tornou aplicável ao processo


penal, a partir das modificações promovidas no status dos acusados pelo
projeto humanista 307. Afinal, somente a partir dali seria possível conceber no
procedimento criminal, uma p osição isonômica entre as partes, ao menos
semelhante ao que Bülow havia observado nas relações civis 308:

"S o me nt e se aper fe iço a co m a l it is co nt est ação , o co nt r at o de dir e it o


públ ico , pe lo qua l, de u m lado , o t r ibu na l a ssu me a o br igação
co ncr et a de dec id ir e r ea l iza o d ir e it o deduz ido e m ju ízo e de o ut ro,
as par t es fica m o br igada s, par a ist o, a pr est ar uma co la bo r ação
ind ispe nsá ve l a su bmet er - se ao s r esu lt ado s dest a at ividad e
co mu m 309.

Certamente isso seria impossível se o Estado continuasse a conceber os


réus como meros objetos - e não como partes - do procedimento criminal.

Mas a imagem que os acusados receberam nos Ordenamentos Modernos,


e que serviu de inspiração para uma nova ciência processual, não se
sustentava apenas no diploma normativo do Code d’Instruction. Não. Nos
sistemas jurídicos inaugurados pela modernidade, as garantias processuais

306
MARQUE S , Jo sé Fr eder ico . E le me nt o s do Dir e it o P ro cessua l P e na l. v. 1. ( Camp inhas:
2009, Mil le nniu m) p. 92.
307
É int er essa nt e no t ar, que essa visão se har mo niza co m a s pr et ensõ es l iber a is e po r isso
pr esu me m u m po s ic io na me nt o do jud ic iá r io no s mo lde s do que se pr et endeu par a o E st ado
L iber a l. T o davia, à épo ca e m qu e e scr eveu o T eo r ia da s E xceçõ es e do s P r essupo st o s
P ro cessua is, Bü lo w já se nt ia a S o mbr a do E st ado So cia l que i mpu nha u m po s ic io na me nt o
ma is at uant e do jud ic iár io : "E m r e la çã o ao s pr essupo st o s pro cessua is, o t r ibu na l já não
t o ma a at it ude pass iva qu e par ece ha ver lhe at r ibu ído no ve lho pr o cedime n t o ale mão
quant o a e les. E nt ão , t end ia - s e e vide nt e me nt e a co nceder ao t r ibu na l u m pu r o ro l d e
espect ado r o u ao ma is, d e guar d ião da lut a e a de ixar que as p ar t es r is casse m as
co nt r avençõ es pr o cessua is co met idas pe l o adver sár io , por me io do s r ecur so s pert ine nt es, e
pr o vo casse m de sse mo do a int er ve nção do t r ibu na l". ( BÜLO W, Oskar Vo n. T eo r ia da s
E xecuçõ es e do s Pr essupo st o s Pro cessua i s. ( Ca mp inas: 2005, LZN) . p. 257) .
308
A T eo r ia da Re la ção P r o cessua l r e inaugur a, na c iê nc ia do pr o cesso mo der no , os
es fo r ço s no se nt ido de se int er pr et ar a nat ur eza jur íd ica do pr o cesso . Va le me nc io nar que,
a lé m de la, o ut r as t eo r ia s e xp l ica m - inc lu s ive a nt er io r me nt e - a d inâ mic a que e nvo lve a
r e lação das p ar t es de u ma l ide pr o cess ua l. Ne la s se e nt ende o pr o cesso co mo : co nt r at o ;
quase co nt r at o ; pr o cesso co mo ser viço público ; pr o ces so co mo inst it u ição ; e pro cesso
co mo s it uação jur íd ica. ( AL VI M, Jo sé E duar do Car r eir a. E le me nt o s de T eo r ia Ger a l do
P ro cesso . ( R io de Jane ir o : 1998, Fo r ense) . p. 133 - 148) .
309
BÜLO W, Oskar Vo n. T eo r ia da s E xecuçõ es e do s P r essupo st o s P rocessua is .
( Ca mp ina s: 20 05, LZN) . p. 06.
146

seriam sustentadas por um sistema constitucional também esculpido à imagem


das propostas do século XVIII.

" As r a íze s do co nst it uc io na l is mo ( o c ide nt a l) co mpar ec e m na


r efle xão de Olive ir a Bar ac ho : "S ant i R o ma no r efer e - se ao d ir e it o
co nst it uc io na l g er a l do E st ado mo der no , cu jo s car act er es esse nc ia i s
po dem ser ind ic ado s co m a expr es sã o const i t uci onal i smo . E sse
vo cábu lo des ig na as inst it u içõ es e o s pr inc íp io s ado t ado s pe l a
ma io r ia do s E st ado s a part ir do s fins d o sécu lo XVI I I , at r avés de
u m go ver no co nst it uc io na l, e m o po s ição ao que deno mina de
abso lut o . P ar a o publis ist a it a l ia no o d ir e it o co nst it uc io na l do s
E st ado s mo der no s r esu lt a d as inst it u iç õ es ing le sas e o ut r as que
de la s se der ivar a m" 310.

Abandonando a ciência processual e se analisando agora o processo


penal do ponto de vista normativo (ainda que a visão do pesquisador jurídico
seja sempre a partir do óculo científico), denota -se que a elevação do acusado
à condição de sujeito de Direitos, mais do que proporcionar uma revolução na
concepção teórica do processo penal, foi a manifestação primeira de uma nova
sistemática normativa que se estabeleceu nos Ordenamentos ocidentais do
século XIX.

"Jo sé Al fr edo de Olive ir a Ba r ac ho r egist r a a peculiar s ig nif ica ção


da co nst it u iç ão par a o s r evo luc io nár io s fr a nce ses: " A no ção de
Co nst it uição é de gr ande impo r t ância e nt r e o s co nst it uint es
fr a nces es. A ma ne ir a de cr ia ção do no vo ent end ime nt o so br e
Co nst it uição est ava ause nt e da no çã o t r adic io na l. S eu car át er
cr iado r e r e no vado r est ava a sse nt ado no pr ó pr io e nt end i me nt o so br e
o ór gão co nst it uint e. Nesse mo me nt o da evo lução do
co nst it uc io na lis mo , dest aca - se a As se mble ia Co nst it uint e. A
Co nst it uição é u ma r egr a fo r ma l, c u ja aut or idad e pr o vé m da
qua lidade de seu aut o r. E la r esu lt a de at o s co nst it uint es: at o s de
co nve nçõ es, de asse mb le ia s o u de congr es so s co nst it uint es. S eu
aspect o fo r ma l deco r r e do seu car át er predo mina nt e me nt e jur íd ico e
co nve nc io na l" 311.

A tendência Constitucionalista qu e se assenta a partir do século XIX é a


resposta jurídica à necessidade que se impõe aos Estados, de que certas
categorias de Direitos se impusessem acima dos demais. Dentre eles, como
não poderia deixar de ser, os relativos à preservação (e limitação) do Estado,

310
HORT A, Jo sé Lu iz Bo r ges . H ist ó r ia do E st ado de D ir e it o . ( S ão P aulo : 2011, Al a meda) .
p. 97.
311
HORT A, o p. cit . , p. 98.
147

entendido sob a ótica contratualista, e da dignidade humana, derivados das


teorias jus naturalistas.

Difundiu-se, então, a formação de Ordenamentos Jurídicos a partir de


bases sistemáticas constitucionais. E se é verdade que "as constituições
liberais nascem [...] com duas missões precípuas: proclamar os direitos dos
cidadãos e organizar o poder do Estado, limitando -o de tal forma que aqueles
possam ser usufruídos" 312, então também é correto dizer que foi através desse
constitucionalismo liberal, que as doutrinas humanistas foram positivadas
pelos Estados Modernos.

A aborda gem anterior das fases ou ondas de implementação dos


Direitos Fundamentais serviu a categorizar e descrever cada uma, dentro do
necessário. Conforme se percebeu, cada uma se manife stou em um período
próprio e trouxe, aos governos, a formação de Estados consoantes com a
ideologia daqueles momentos.

Pelo demonstrado, foi a onda primeira a responsável por intuir nos


sistemas jurídicos, as modificações mais pertinentes ao tema da pesqu isa. Isso
agora se torna mais claro, quando se percebe que na primeira forma do
constitucionalismo moderno, priorizou -se a afirmação normativa da dignidade
humana, concomitantemente à limitação do poder do Estado, duas iniciativas
fundamentais para o exorc ismo dos métodos cruéis de investigação. É por isso
que as consequências humanistas ao processo penal, agora apresentadas, têm
uma origem comum concentrada no período que vai do século XVIII, até o
primeiro vinteno do século XX 313.

Não é também por outra ra zão, que o processo penal se inova nesta
fase, através do estabelecimento de garantias associadas as primeiras
revindicações aos Estados pós revolucionários, quais sejam, aquelas
relacionadas à dignidade humana e inicialmente defendidas através do Direito
às liberdades individuais.

312
HORT A, o p. cit . , p. 97.
313
NE T O, Jo sé de As s is S a nt iago . E st ado De mo cr át ico de D ir e it o e P r o cesso P ena l
Acu sat ór io . ( Rio de Jane ir o : 2012, Lu me n Jur is) . p. 12.
148

O reflexo das garantias perpetradas por aí são muito amplas. Permitiria


se ocupar de infindáveis considerações acerca dos princípios do Processo
Penal Moderno, e a origem hist órica dos mesmos. Contudo, a pesquisa
proposta requer que se concentre em uma única prioridade: quais garantias do
processo penal moderno impedem que a tortura se estabeleça novamente como
um método de instrução e se mantenha na condição atual assumida pelo
sistema jurídico, de um fato antijurídico punível.

Nesse sentido, havendo -se superado as constatações (indispensáveis) de


que as revindicações humanistas em matéria de persecução criminal,
inauguradas pelo combate à tortura, refletiram na reformulação da ciência
processual e na estruturação do constitucion alismo moderno, cabe dissertar
sobre as garantias processuais modernas de proteção ao indivíduo contra os
suplícios. Sendo indispensável reafirmar que tais garantias se assentam -
também a partir desse momento - em uma base constitucional, e se impõe
dentro de uma lógica procedimental proposta por uma também reformada
ciência criminal, e por isso as considerações introdutórias deste ponto se
fizeram necessárias.

Insta, finalmente e portanto, pormenorizar aquilo que se observou, em


relação a estas garantias processuais, nas pesquisas acerca dos reflexos
jurídicos do pensamento humanista.

José Adércio, lucidamente demonstra a pronta relação que se estabelece


entre os direitos humanos e as garantias de natureza penal:

“P o de mo s imag inar que o s s ist e ma de dir e it o s hu ma no s se


dese nvo lveu co m a gr adua l r ac io na l iz ação das penas e co m a
cr iação de inst r u me nt o s pro cessua is que r est r ing ir a m a
ar bit r ar iedad e do s go ver na nt es e do as agent es pú bl ico s e m ger a l.
S egundo P eces - Bar ba, S anc he z - P escado r , Gar cia e Cas có n ( 1987) , a
nec ess id ade de hu ma niz ação do Dir e it o P ena l e P r o cessua l, co nt r a a
ins egur ança e o ar bít r io pat ro cinado s pe la ind et er minaç ão das
pena s, ut il ização da t ort ur a co mo fo r ma de inve st igação e de
cast igo , passo u a ser at e nd id a pe lo sur g ime nt o das c ha mada s
149

“gar a nt ia s pr o cessua is ” o u, co mo são gener ica me nt e int it u lada s no s


E st ado s Unido s, co mo due processo of l aw” 314.

Essa "necessidade de humanização do Direito Penal e Processual contra


e insegurança e arbítrio", se apresenta, no que tange à tortura, em certas
qualidades observadas no processo penal moderno e perceptivelmente
relacionadas ao surgimento daquelas garantias processuais mencionadas pelo
autor. Sobre tais qualidades é que se deve dissertar adiante.

Ab initio, há que se relatar a afirmação de um novo status libertatis.


Esta mudança deriva essencialmente da elevação da dignidade humana à
condição de um valor essencialmente protegido 315.

Se, conforme exaustivamente se tratou nos capítulos anteriores, o


indivíduo submetido ao procedimento inquisitorial medieval era tratado como
objeto de irrestrito abuso pelos métodos investigativos, na modernidade esse
mesmo indivíduo surge como sujeito de direitos. Dentre esses direitos, o que
afasta os suplícios é, em primeiro lugar, a concepção que se tem de dignidade
humana.

A percepção de dignidade humana criada, passa pela preservação da


integridade física, e sua inviolabilidade pelo Estado. Os Ordenamentos
Jurídicos modernos, todavia, relativizam essa inviolabilidade em situações
excepcionais. São as hipóteses em que o E stado tem de exercer seu jus
puniendi sobre o particular violador do Contrato Social. É notório, para esses
casos, que a agressão à pessoas, como se dá, por exemplo, através da pena de
morte 316, se torna uma exceção da premissa de respeito à integridade físi ca 317.

314
S AMP AI O, Jo sé Adér c io Le it e. D ir e it o s fu nda me nt a is: r et ó r ica e hist o r ic idad e . ( Belo
Ho r izo nt e: 2004, De l Re y) . p. 145.
315
M AL AT O, Lu iz E r na ne Fer r e ir a R ibe ir o . D ir e it o s Hu ma no s - F eder a liz a ção da
Co mpet ê nc ia e a A mazô nia . ( P ort o Alegr e: 2012, Nur ia Fa br is) . p. 31.
316
BE NT HAM, Jer e m y. T eo r ia da s P e na s Lega is e T r at ado do s So fis ma s P o lít ico s . ( Le me:
2002, E dijur ) . p. 254.
317
Ju nt o a e la, é d ig no de no t a é a pr opo st a da E sco la C lá ss ic a P e nit e nc iár ia par a a
ap lica ção do s t r aba lho s fo r çado s. ( FE RRI , E nr ico . P r inc íp io s de d ir e it o cr i m ina l: o
cr im ino so e o cr ime . ( Ca mp inas: 2003, Russe l l E d it o r es) p. 39).
150

Mas, mesmo a prática da pena de morte parece ter perdido espaço no


mundo moderno. Repisando o que Foucault havia afirmado, a modernidade
traz para o sistema punitivo, o abandono das penas de violência corporal 318.
Mesmo que não tenha sido o planejado pe los ilustradores do século XVIII 319, a
alternativa implementada foi o sistema carcerário nos moldes do que se
encontra na atualidade. Foi a opção encontrada de exercício do direito de
punir, sem se transgredir as barreiras humanistas de dignidade humana
relativas à integridade física.

Mas na concepção liberal, a dignidade humana é ferida também pela


restrição à liberdade:

"O ser livr e é u ma co nd ição e não uma ins inuação da r aça hu ma na


que, e m sua l iber dade inco nd ic io na l, co ncebe e le me nt o s pr imo r d ia i s
de co nv ivê nc ia pe lo s qua is se fir ma m va lo r es co let ivo s. A liber dad e
é co ro lár io da d ig nidad e po r que ha bit a o ser hu ma no e m u ma vida
r efer e nc iada no p la no da igua ldade e d a fr at er nidade. S e m e la não
ha ver á d ig nidade po r que se desco ns t it u ir á o pró pr io ser na
r epr esent ação amp la da esp éc ie" 320.

Então, mesmo que o encarceramento se revele como uma forma de


punição mais humana que os castigos corporais, ainda assim é uma ameaça de
ofensa à dignidade através da violação à condição natural de liberdade. Ele
(o encarceram ento) deve, portanto, ser limitado ao necessário para uma
retribuição justa, pelo Estado, em relação crime. Daí duas invenções
importantes da ciência penal para o Direito Moderno, que cabe fazer
referência.

A primeira é a criação do conceito de bem jurídic o 321. Surge no Direito


Penal, a concepção material de delito como lesão de um direito subjetivo,

318
BE NT HAM, Jer e my. As Reco mpe ns as e m Mat ér ia P ena l. ( S ão P aulo : 2007, Ride l) . p. 18,
319
“Na fi lo so fia pe na l i lu m in ist a, o pro ble ma pu nit ivo est ava co mp let a me nt e desvi ncu lado
das pr eo cupaçõ es ét ica s e r e lig io sas ; o de lit o e nco nt r ava sua r azão de ser no co nt r at o
so c ia l vio lado e a pena er a co nce bid a s o me nt e co mo med id a pr eve nt iva”. ( P RADO, Lu iz
Reg is. Be m Jur íd ico - P ena l e Co nst it uiç ão . ( S ão P aulo : 2011, Revist a do s T r ibuna is) . p.
28) .
320
M AL AT O, Lu iz E r na ne Fer r e ir a R ibe ir o . D ir e it o s Hu ma no s - F eder a liz a ção da
Co mpet ê nc ia e a Amazô nia . ( P ort o Alegr e: 2012, Nur ia Fa br is) . p. 34.
321
I nc lu s ive, ape nas co m o sur gime nt o da t eo r ia do be m jur íd ico , é que se t o r no u po ss íve l
cr im ina liz ar a t o rt ur a. Nest e delit o , a d ig nidade hu ma na é co lo cada co mo u m va lo r
151

decorrente da teoria contratualista aplicada no âmbito penal. “Esse


posicionamento – resultado da ideologia liberal -individualista dominante –
apresenta -se como um conteúdo sistemático funcional – conduta punível é
aquela lesiva a um direito subjetivo e liberal concreto -imanente – proteção
também do direito individual na esfera objetiva da liberdade pessoal. O
direito subjetivo emerge, desse modo, como um instrum ento mais eficaz para
garantir tal liberdade” 322
.

Atra vés desse “instrumento”, limita -se a atuação do legislador:

“A do ut r ina do be m jur íd ico , er ig id a no sécu lo XI X, dent ro de um


pr is ma l iber a l e co m o nít ido o bjet ivo de li m it ar o leg is lado r pena l,
va i pa sso a pas so , se impo ndo co mo um do s p ilar e s da t eo r ia do
de lit o . S ur ge ela, po is, “co mo evo lução e a mp l iaç ão da t ese o r ig ina l
gar ant ist a do de lit o co mo le são de u m d ir e it o subjet ivo e co m o
pr o pó sit o de co nt inuar a fu nção l i m it at iva do leg is lado r ,
c ir cu ns cr eve ndo a busca do s fat o s me r ecedo r es de sanção pena l
àque le s e fet iva me nt e dano so s à co exist ê nc ia so c ia l, mas le s ivo s de
ent idade s r ea is – e mp ír ico - nat ur a is – do mu ndo ext er io r ”. 323”

Por outro lado, permite -se que certos bens sejam elevados a uma
condição de máxima apreciação pelos Ordenamentos Jurídicos 324. No caso em
tela, cumpre destacar a tipificação da tortura enquanto crime – no Brasil,
através da Lei 9.454/97. Note-se que, neste delito, a dignidade humana é
colocada como um valor protegido pelo Ordename nto 325, e se torna ensejadora
da punição estatal na hipótese de sua violação. A criminalização da tortura é,
assim, o ponto máximo da tutela da dignidade humana, pelo Estado, contra

pr ot egido pe lo o r dena me nt o . A cr imina l izaç ão da t o rt ur a, é, ass im, o po nt o máxi mo da


t ut ela da d ig nidade hu ma na, pe lo E st ado, co nt r a est e mét o do .
322
P RADO, Lu iz Reg is. B e m Jur íd ico - P ena l e Co nst it u iç ão . ( S ão P aulo : 2011, Revist a dos
T r ibu na is) . p. 29.
323
P RADRO, o p. cit . , 31.
324
FE RRI , E nr ico . P r inc íp io s de d ir e it o cr im ina l: o cr im ino so e o cr ime . ( Ca mp ina s : 2003,
Russe l l E d it o r es) p. 367.
325
As su me - se co mo be m jur íd ico do cr ime de t ort ur a a int egr idade fís ica da vít im a. Junt o
de la, d iscut e - se do ut r inar ia me nt e se não há t ambé m a vio lação à int egr idad e ps íqu ic a
( CAP E Z, F er na ndo . Cur so de D ir e it o P ena l – leg is la ção pena l espec ia l. Vo lu me 4. 5ª. ed .
S ão P au lo : S ar aiva, 2010) e/ o u liber dad e do ind iv íduo ( NUCCI , Guilher me de S o uza. Leis
P ena is e P r o cessua is P e na is Co me nt adas . S ão P au lo : RT , 2006). De t o da fe it a a d ig nidade
ser á se mpr e o va lo r ima ne nt e do be m jur id ica me nt e t ut elado nest e de lit o .
152

este método. Semelhante valorização jurídica somente se torna possível após


o surgimento da teoria do bem jurídico 326.

Em segundo lugar, relacionado a isso, está a revisão da noção de


acautelamento provisório. Na concepção prevalecente no medievo, o
encarceramento do indivíduo é ato ordinário do procedimento investigatório.
Ao que parece, no trato do investigado como objeto, a privação das liberdade
se apresenta até como o menor dos males a que poderia se sujeitar.

Analisando aquela realidade, não se limita de qualquer maneira o


exercício dessa violência à liberdade natural da pesso a humana, ou muito
menos o exercício de qualquer violência.

A ideia de que o indivíduo tem uma dimensão jurídica que o Estado ou


a coletividade não pode sacrificar ad nutum, hoje garantida pelo Estado
Democrático de Direito, teve sua origem nos movimento s que confluíram na
Declaração dos Direitos do Homem de 1789 327.

Com a modernidade ali inaugurada, não só se limita a natureza da


violência estatal ao encarceramento (ou eventualmente à pena de morte,
trabalhos forçados, et cetera), como se intenciona, també m, que ele seja
circunscrito ao momento imediatamente posterior à condenação 328.

Com isso, surge a noção de estado de inocência, a partir do qual o


emprego do jus puniendi do Estado, através de uma agressão ao direito
fundamental à liberdade, pelo encarcera mento, somente seria permitido diante

326
“A t endê nc ia da épo ca ( secu lar is mo / hu ma niza ção ) er a fa vo r ecer o u gar ant ir o s be ns
ind iv idua is d ia nt e do ar bít r io jud ic ia l e da gr avidade da s pe nas, e m base so cia l. D es se
mo do , o delit o inic ia u ma vida p le na d e flu xo s e d e r e flu xo s na pr o cur a de um se nt ido
mat er ia l”. 326 P R ADO, Lu iz R eg is. Be m J ur íd ico - P ena l e Co nst it u ição . ( S ão P aulo : 2011,
Re vist a do s T r ibu na is) . p. 29) .
327
LOP E S JR. , Aur y. D ir e it o P ro cessua l P ena l e sua Co nfo r m idade Co nst it uc io na l . ( R io de
Ja ne ir o : 2008, Lu me n Jur is) . p. 11.
328
NE T O, Jo sé de As s is S a nt iago . E st ado De mo cr át ico de D ir e it o e P r o cesso P ena l
Acu sat ór io . ( Rio de Jane ir o : 2012, Lu me n Jur is) . p. 151.
153

de uma sentença condenatória exarada após um devido processo


jurisdicionalizado 329.

Fora a hipótese de sentença condenatória, o encarceramento deveria,


dentro da lógica que surge, ser aplicável à fase de instrução e inv estigação,
apenas em caráter excepcional. Daí a contemporaneidade trazer como herança
a garantia de razoável duração dos procedimentos persecutórios 330.

Se a privação da liberdade fere a dignidade humana e deve ser


proporcional à violação do bem jurídico afe tado, então também a prisão antes
da condenação deve ter um parâmetro de dosagem. Por isso, os institutos
relacionados à liberdade provisória e a prisão preventiva são repensados a
partir das propostas humanistas.

No sistema inquisitorial, o acautelamento preventivo era a regra. Note -


se no manual de Nicolau Eymerico:

"[ . . .] se se e mpe nha o r éu a negar o de lit o , lhe d ir á o inqu is ido r que


ir á fa zer u ma viag e m lo nga e não sabe q uando va i vo lt ar , que sent e
in fin it a me nt e, ma s que ser á o br igado a de ixá - lo pr eso , sendo seu
ma io r des e jo sa ber de sua bo ca a ver dade par a despac há - lo e
co nc lu ir su a caus a, po r ém, já que e s t á t ão emp e nhado e m não
co nfes sar , t er á que esper ar encar cer ado at é a sua vo lt ar a [. .. ] " 331.

Daí a liberdade provisória ser exceção concedida mediante garantias


predominantemente fidejussórias, como a Carta de Seguro, homenagem,
palavra de fiéis carcereiros e, como garantias real, a fiança 332.

329
E a í a gê ne se do mo der no pr inc íp io d o Devido P r o cesso Lega l, ao qua l não no s ca be
abo r dar nest a o po rt unidade.
330
P act o de S ão Jo sé da Co st a Ric a, art . 8, 1 ( ORGANI Z AÇ ÃO DOS E S T ADOS
AME RI C ANOS . P act o de S an J o sé de Co st a R ica . D ispo níve l e m: <
ht t p: // www. pge. sp. go v. br / cent r o deest udos/ bib l io t ecavir t ua l/ inst r u me nt o s/ sanjo se. ht m>.
Ace sso e m: 29 Dez. 2009) . ; e no caso do Br asil, Co nst it u ição Feder a l Br as i le ir a, art . 5ª,
LXXVI I I . ( BRAS I L. Co nst it u iç ão da Repúbl ica Feder at iva do Br as il de 1988 . D ispo níve l
e m: < ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_ 03/ co nst it u icao / co nst it u icao . ht m>. Ace s so em: 29
Dez. 2009) .
331
E YME RI CO, Nico lau. Ma nua l da I nqu is ição . ( Cur it iba: Jur uá E dit o r a, 2009), p. 33.
332
OLI VE I RA, E ugênio P ace ll i d e. Reg im es Co nst it uc io na is da L iber dade P r o visó r ia . ( Rio
de Jane ir o : 2007, Lu me n Jur is) . p. 42.
154

A partir das observações de Beccaria e outros, refuta -se a utilidade da


confissão - conforme se tratará adiante - o que permite de pronto afastar a
necessidade do acautelamento provisório. Depois, promove -se a valorização
da liberdade através da consagração do princípio da não culpabilidade 333.
Incidindo sobre a questão do acautelamento provisório, Santiago Neto
esclarece:

"E nt r e as ma is r e le va nt es co nsequê nc ia s dess a fo r ma de t r at ame nt o


deco r r ent e da pr esunção de não cu lpabi l idade, est á o r egime
jur íd ico das pr isõ es e med idas caut e lar e s. S e o acusado não po der á
ser t r at ado co mo cu lp ado , t ambé m não po der á t er r est r it a, de fo r ma
a lgu ma, sua l iber dade co mo fo r ma de ap l icaç ão ant ec ipad a da pe na.
I sso no s le var á à co nc lusão de que t o da r est r ição da liber dade, de ve
der ivar de abso lut a neces s idade e fu nda me nt ar - se e m ba se s
caut elar es par a ser e m leg ít ima s" 334.

Em síntese, tudo i sso representa uma revisão da posição do Status


Libertatis dos acusados no Processo Penal Moderno, em relação ao processo
medieval. No que tange à utilização da tortura, a nova concepção de liberdade
dos acusados no sistema contemporâneo, tanto é um reflex o da derrocada da
confissão (elemento basilar para a aplicação dos suplícios), como é expressão
da visão da violência do Estado como ultima e extrema ratio, inaugurada pela
modernidade.

Adiante, para que os direitos fundamentais do homem fossem


garantidos na prática, e não apenas formalmente, duas outras inovações
processuais surgiram com as modificações legislativas do início do século
XVIII: o princípio do livre convencimento motivado dos juízes e a

333
P r evist o no art . XI, 1 da Declar ação Univer sa l do s D ir e it o s Hu ma no s ( DE CLARAÇ ÃO
UNI VE RS AL DOS D I RE I T OS HUMAN OS . Adot ada e pro cla mada pe la r eso luç ão 217 A
( I I I) da Ass e mblé ia Ger a l das Na çõ es U nidas . D ispo nív e l e m:
<ht t p: / / port al. m j. go v. br / sed h/ ct / leg is_ int er n/ dd h_ bib_ int er _univer s a l. ht m>. Ace s so e m: 29
Dez. 2013) , depo is no Ar t . 8, 2 do P act o de S ão Jo sé da Co st a Rica ( ORG ANI Z AÇÃO DOS
E S T ADOS AME RI C AN OS . P act o de S an Jo sé de Co st a Rica . D ispo nív e l e m: <
ht t p: // www. pge. sp. go v. br / cent r o deest udos/ bib l io t ecavir t ua l/ inst r u me nt o s/ sanjo se. ht m>.
Ace sso e m: 29 Dez. 2013) , e fina l me nt e no art . 5º , LVI I da Co ns t it uição Feder a l Br as ile ir a
de 1988. ( BRAS I L. Co nst it uição da Repúbl ica Feder at iva do Br as il de 1988 . D ispo níve l
e m: < ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc iv i l_ 03/ co nst it u icao / co nst it u icao . ht m>. Aces - so e m: 29
Dez. 2013. )
334
NE T O, Jo sé de As s is S a nt iago . E st ado De mo cr át ico de D ir e it o e P r o cesso P ena l
Acu sat ór io . ( Rio de Jane ir o : 2012, Lu me n Jur is) . p. 154.
155

publicidade dos atos processuais. Ambas implementadas co m a proposta de


que a própria sociedade se tornasse fiscal e reguladora das garantias que lhe
eram concebidas legislativamente pelo estado. É a proposta liberal em sua
mais plena expressão 335.

"A partir da Revolução Francesa, retomou -se o conceito de livre


convencimento do juiz e procurou -se eliminar os resquícios da tarifa legal de
provas, primeiro no processo penal e, mais tarde, no processo civil" 336.

O princípio do livre convencimento dos juízes vem substituir a íntima


convicção dos juízes inquisidores. Con forme tratado nos capítulos anteriores,
o julgamento pela íntima convicção permitia aos inquisidores perpetrassem
qualquer tipo de arbitrariedade no procedimento investigatório. Através dessa
forma de julgamento, o sistema inquisitorial se apresentava como altamente
eficiente. Afinal, com um julgamento baseado na íntima convicção, o
inquisidor tinha apenas que se convencer da tese acusatória que ele havia
proposto a si mesmo! Essa lógi ca possibilita legitimar qualquer tipo de
instrumento investigatório, inc lusive a tortura. Fa zzalari sintetiza a diferença
essencial entre as formas de cognição dos sistemas:

“A pr o pó s it o da “co gnição ” pe na l, a hist ó r ia o fer eceu t r ês


exper iê nc ia s suce ss iva s: a do pro cesso “ acusat ó ri o ” ( o r alidade e
publ ic idade da t r at ação ; víncu lo do ju iz ao s fat o s adot ado s e às
pr o vas o fer ec ida s pe lo acusado r e pe lo acusado ) ; a do pro cesso
“i nqui si t ó ri o ” ( t r at at iva e scr it a e se cr et a, liber dade do ju iz na
bus ca e aqu is iç ão de pr o vas) ; e a do pr o cesso “ mi st o” ( inic iat iva
co nfiada não ao ju lgado r , ma s a o ut ro ó r gão est at al; inst r ução de
t ipo inqu is it ó r io ; fa se suces s iva, cu l m in ant e no ju lga me nt o de t ipo
acusat ó r io , co m o r a lidade e pu bl ic idade ; r eg i me das pr o vas d e t ipo

335
Alé m des ses inst it ut o s, é impo r t ant e dest acar que o co nce it o de jur isd ição fo r mado na
mo der nidade, s e mu nic ia de o ut ro s pr inc íp io s, que, me s mo não r esu lt a ndo s e mpr e de
no r ma e xpr es sa, pr o po r cio na m ao pr o cesso cr im ina l cer t a imu nidade ao mo de lo jud ic ia l
inqu is it ó r io . Co mo r e lac io na m - s e ap e na s ind ir et a me nt e co m ut iliz ação inst it uc io na lizad a
da t o rt ur a, deve m ap e nas ser me nc io na do s. S ão o s segu int es, na co ncepção d e Car r e ir a
Alv i m: P r inc íp io da invest idur a ; pr inc íp io da ader ê nc ia ao t er r it ór io ; pr i nc íp io da
inde lega bi l idade ; pr inc íp io da indec l in abi l idade ; pr inc íp io do ju iz nat ur al; pr inc íp io da
inér c ia e pr inc íp io da nul a poena si ne i ndi ci o. ( ALVI M, Jo sé E duar do Ca r r eir a. E le me nt o s
de T eo r ia Ger a l do P ro cesso . ( Rio de Jane ir o : 1998, Fo r ense) . p. 60 - 65).
336
T HE ODORO JÚNI OR, Humber t o . Cur so de Dir e it o Pro cessua l C iv i l - T eo r ia ger a l do
d ir e it o pro cessua l c iv i l e pr o cesso de co nhec i me nt o . v. 1.( R io de Jane ir o : 2008, For e nse)
p. 16.
156

inqu is it ó r io , ist o é, co m po der es ba st ant e co nsp ícuo s par a o


ju iz) ” 337.

Mas o procedimento moderno não só se opõe à tortura pelo respeito à


integridade dos indivíduos, como também ao requerer dos julgadores uma
postura diferente diante do processo penal. O juiz não deve se submeter
cegamente a avaliações matemáticas do conteúdo probatór io. Deve formar
livremente sua convicção, mas expô -la ao alvedrio da sociedade:

“A fu nda me nt ação das dec isõ es jud ic i a is t ambé m far á par t e da


est r ut ur a de li m it e ao exer c íc io r epr ess ivo do E st ado , ser vindo
co mo o bser vâ nc ia jur íd ica das ga r ant ias fu nda me nt a i s. O
a fast a me nt o da ló g ica fo r ma l i mpõ e a pr escr ição de ar gu me nt ação
jur íd ic a pe la leg it ima ção das dec isõ es j ud ic ia is e t a l fat o so me nt e
o co rr er á co m o s imbo l is mo int r apr o cess ua l e e xt r apro cessua l. Alé m
da cr ít ica so br e a ver dade r ea l, nes t e capít u lo busca r e mo s a
idea l iza ção da gar ant ia da ver dade pe lo at uar púb lico do ju lgado r
at r avés da fu nd a me nt ação de suas dec isõ es” 338.

Com isso, permite fiscalizar a atividade jurisdicional tanto na condução


da instrução – inibindo qualquer ato de violência às garantias fundamentais –
quanto na apreciação do conteúdo probatório – garantindo a idoneidade das
provas consideradas.

“De nt r e o s t r ês cr it ér io s de va lo r ação da pr o va: s ist e ma de pr o va:


s ist e ma de pr o vas leg a is o u t ar ifad as, ínt ima co nvic ção o u
co nvicç ão mo r a l e li vr e co nve nc i me nt o mot ivado , o últ imo e
co nt empo r anea me nt e ado t ado no o r dena me nt o pát r io , co nfer e u m
ma io r gr au de segur a nça par a dec is ão , na med ida e m que o ju iz
ana l is a o co nju nt o pro bat ó r io de ma ne ir a livr e, per mit indo - se, dessa
fo r ma, que o r isco eve nt u al co mpr o met ime nt o ind iv idua l de me io de
pr o va se d ilua no co nju nt o de ele me nt o s amea lhado s na
inst r ução 339”.

337
FAZ Z AL ARI , E lio . I nst it uição de Dir e i t o P ro cessua l. ( Ca mp ina s: 2006, Boo ksel ler ) . p.
301.
338
S AMP AI O, De nis A Ver dade no P ro cesso P ena l. A per ma nê nc ia do S ist e ma
I nqu is it o r ia l at r avés do d iscur so so br e a ver dad e ( R io de Ja ne ir o : 2010, Lu me n Ju r is) . p.
07.
339
P I NT O, Fe lipe Mar t ins. I nt ro dução cr ít ica ao Pro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p.
98.
157

Relaciona-se, portanto, a este princípio do livre convencimento


motivado, a reestruturação do sistema de provas que, baseado nas observações
de Beccaria, como ressalta Mittermaier, passa a ver o conteúdo probatório
como meio para se alcançar uma verdade material.

E daí um ponto essencial para que a tortura se apresentasse inviável no


Processo moderno: a revisão no tratamento que os sistemas jurídicos
modernos dão à confissão enquanto prova 340.

A lógica medieval, como exaustivamente tratada, é muito simples: O


fim do processo criminal é chegar a verdade; a confissão revela a verdade;
chega-se à confissão através da tortura; logo, a tortura permite o proc esso
criminal realizar seu fim 341.

" Ass i m er a, po is, que a pe na ( pe nit ê nc ia) d e via le var ao r éu o


ar r epend i me nt o e que a pr i me ir a ma ni fe st ação do ar r epend ime nt o é
a co nfis são do ma l fe it o , dest a ma ne ir a, co m o pro cesso inqu is it ó r io
( que, excet o na fa lt a d e c o nt ro le pú bl ico , er a fo r ma pr o cessua l
t ecnic a me nt e super io r ao pro cesso acusat ó r io ) , t ambé m par a
t r anqu iliz ar a co nsc iê nc ia do ju iz ac er ca da cu lpa bi l idad e do
i mput ado ( po is a co nfis são er a co ns ider ada a "r a inha d as pr o vas ") ,
cheg a - se à a ber r ação de exig ir se mpr e a co nfis são mes mo med ia nt e
a t ort ur a, le va ndo ass i m a ju st iça pena l ao s exce sso s, que
co nt inua mo s e m par t e no s est at ut o s co muna is e nas le is da s gr ande s
mo nar qu ias, co m a at ro cidad e da s pe na s, pr o vo car am o se nt ime nt o
univer sa l d e pr ot est o de que Ce sar e Beccar ia s e fez o
e lo qüênt íss i mo int ér pr et e". 342

340
I nt er essant e a co not ação que Fr amar in o dá a est e inst it ut o no exer c íc io da c o gnição
jud ic ia l. P er ce ba - se: "Me s mo depo is qu e a t ort ur a fo i a bo lida, t r azendo at r ás de s i u ma
pr o funda t r ans fo r maç ão da ver dade jud ic ia l e m ver dade su bst a nc ia l, de fo r ma l qu e er a no s
ind íc io s nec es sár io s par a a ap lica ção da t ort ur a e na co nfis são co m e la o bt id a, me s mo
depo is, d iz ia, se m o exped ie nt e da co nfi ssão , r ar as vezes e não se m t r aba lho s, t er ia o ju iz
so ber ano po d ido dese mbar aç ar a pr ó pr ia co nsc iê nc ia, se mpr e a fe it a ao há bit o fo r ma l íst ico ,
de nu mer o sas co nt r ad içõ es e m que, a t o do inst ant e, ma is se de ixa va e nr edar na s fr ia s
in fo r maçõ es co lhida s no s aut o s escr i t o s: pr inc ipa l me nt e par a a pr o va espec í f ica de aut o r ia
do fat o imput ado e sua cu lpa, u ma lut a e nt r e inqu ir ido r e inqu ir ido que se ma nt inha,
t o davia, co mo co nsequênc ia nece ssá r ia daque le s ist e ma". ( M AL AT E S T A, Nico la
Fr a mar ino De i. A Ló g ic a das P r o vas em Mat ér ia Cr im ina l. ( S ão P aulo : 1995, Co na n) . p.
07) .
341
MI T T E RMAI E R, Car l Jo seph Ant o n. T r at ado da P ro va e m Mat ér ia Cr i m ina l ou
E xpo s ição Co mpar ada. ( Ca mp ina s: 2008, Boo kse ller ) . p. 252.
342
FE RRI , E nr ico . P r inc íp io s de D ir e it o Cr imina l - O Cr imino so e o Cr ime.
( Ca mp ina s: 2003, Russe l l) . p. 28.
158

A sagacidade de Beccaria, foi a de quebrar essa lógica, demonstrando


que a confissão pela tortura não revela sempre a verdade pretendida pelo
processo criminal 343.

Embora seja uma premissa evidente - a confissão pela tortura não


revelar a verdade - para o pesquisador contemporâneo, para o vivente de uma
época pré Direitos Humanos, tal percepção foi certamente um marco do
pensamento ocidental.

O questionamento da confissão à tortura, deixou como herança às


reflexões modernas, a inidoneidade da confissão enquanto prova. Isso porquê,
ainda que se elimine a tortura do sistema ela poderia estar sendo praticada
extra oficialmente, o que interferiria na manifestação do investigado da
mesma forma que a tortura insti tucionalizada, e suas contribuição ao processo
seriam tão inúteis quanto havia anotado Beccaria. Em segundo, porquê as
considerações do Marquês de Beccaria, Voltaire, Pietro Verri e outros, deram
conta sobre às inúmeras condições sobre as quais repousa a i doneidade da
confissão 344.

Na impossibilidade de se garantir ao juízo, a certeza de que o sujeito


submetido ao processo criminal não esteja sendo influenciado por qualquer
fator físico, psicológico, social ou até patológico, que afete o sua percepção
de realidade 345, é razoável se permitir ao sistema minguar o valor probatório
da confissão 346.

343
"[ . . .] são inút e is o s t o r me nt o s, po is é i nút il a co nf is são do r éu". ( BE CCARI A, Cesar e
Bo nesa na. Do s de lit o s e das penas. ( S ão P aulo : Mar t ins Fo nt es, 2005) p. 69).
344
Daqu i sur ge o e mbr ião par a o s at ua lme n t e ava nçado s e st udo s so br e ver dade no p r o cesso
pena l, que fo r am d iscut ida s a nt er io r me nt e.
345
E ainda so br e o que ve m a ser a per cepç ão de ver dade, cabe quest io nar : “A e xpr essão da
ver dade, na co nd ição de pr o dução me nt al, est á vincu lada a inú mer as co nt ing ênc ia s de
l inguage m, p r ó pr ias da p lur a l idade d e cu lt ur as, da var iedade de vo cabu lá r io s e de
s ig ni f icaç ão e, po rt ant o , a ver dade est ar ia r eduz ida a u ma s i mp les cr iação hu ma na, cu ja
va l idade e st ar ia pr evia me nt e co nd ic i o nada po r event ua is li m it e s de co municaç ão ".
( P I NT O, Fe lipe Ma r t ins. I nt r o dução cr ít ica ao P ro cesso P ena l . ( Be lo Ho r izo nt e: De l Re y,
2012) , p. 86) .
346
MI T T E RMAI E R, Car l Jo seph Ant o n. T r at ado da P ro va e m Mat ér ia Cr i m ina l ou
E xpo s ição Co mpar ada. ( Ca mp ina s: 2008, Boo kse ller ) . p. 255.
159

Consequentemente, uma forma de se compreender a confissão,


consoante com o pensamento moderno, é de que sua utilidade probatória deve
ser relativizada no procedimento crim inal 347. Deve-se afrontá -la com outras
provas do processo, e, ainda que ela aflore no depoimento do acusado, não
pode ser vinculante na decisão do julgador, prevalecendo o supra citado
princípio do livre convencimento motivado. Note -se a colocação de
Mittermaier :

"P o r ém, t o da a co nfiss ão , qua lquer que se ja e m s i, e qua lquer que


se ja a sua fo r ma, não co nve nce a pr inc í p io de sua s incer id ade ; par a
t er est e po der, é pr ec iso r eunir - lhe cer t as co nd içõ es. Que m o usar ia
co ndenar seu se me lha nt e só po r que apr esent a - se e m ju ízo , e se
denu nc ia co mo o aut o r de uma mo r t e co met id a há se i a no s ?
E xig i mo s, a nt es de t udo, u ma co nco r dânc ia de mo nst r ada e nt r e a
co nfis são e as cir cu nst ânc ia s da causa, e, na pesso a do acusado ,
u ma at it ude int e ir a me nt e e m har mo nia c o m a ide ia que fa ze mo s d e
u m ho me m i mpe l ido po r sua co nsc iê nc ia e m desco br ir a ver dade" 348.

Essa compreensão é uma blindagem ilustre para o processo penal em


relação à prevalência da lógica permissiva dos suplícios. A part ir dessa
premissa, os sistemas acusatórios procuram da r nova feição ao procedimento
de interrogatório, retirando -lhe a meta de confissão e por isso afastando -lhe
do modelo inquisitorial:

" As d ifer e nças fu nda me nt a is e nt r e o s ist e ma de acu sação e o


inqu is it o r ia l in flu i so br e as par t es do pro cesso ; a t eo r ia d a
co nfis são t ambé m não esc apo u a essa in flu ê nc ia. O pr inc íp io d a
acusação exige a pr ese nç a de u m acus ado r que co mece lo go po r
ar t icu lar a per pet r ação do cr ime co m t odo s o s seus car act er es, po r
ind ic iar a s pr o va s que t e m de apr ese nt ar, e so br e o qua l pe sa a
o br igação de pro var o s diver so s fat o s que co nst it ue m a imput ação .

347
Nesse ca m inho e st ão as d ispo s içõ es d o Có digo de P ro cesso P ena l Br as i le ir o e m r elação
ao va lo r da co nfis são : Ar t . 197. O va l o r da co nfis são se a fer ir á pe lo s cr it ér io s ado t ado s
par a o s o ut ro s e le me nt o s de pr o va, e par a a sua apr ec iação o ju iz d e ver á co nfr o nt á - la co m
as de ma is pr o vas do pr o ces so, ver if ica ndo se e nt r e e la e est as e xist e co mpat ibi l idade o u
co nco r dânc ia; Ar t . 198. O silê nc io d o acusado não impo r t ar á co nfis são , mas po der á
co nst it u ir e le me nt o par a a fo r ma ção do co nve nc i me nt o do ju iz ; Ar t . 199. A co nfis são ,
quando fe it a fo r a do int er r o gat ór io , ser á t o mada po r t er mo no s aut o s, o bser vado o d ispo st o
no art . 195 ( S e o int er ro gado não so uber escr ever , não puder o u não quiser as s in ar , t al fat o
ser á co ns ig nado no t er mo . ) ; Ar t . 200. A co nfiss ão ser á divis íve l e r et r at áve l, se m pr e ju ízo
do livr e co nve nc ime nt o do ju iz, fu nd a do no exa me da s pr o vas e m co nju nt o. ( BRAS I L.
Decr et o le i nº . 3. 689, de 3 de o ut ubr o de 1941. Dispo níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ d ecr et o - le i/ de l3689co mp i lado . ht m>. Aces so em: 29
Dez. 2013. ).
348
MI T T E RMAI E R, Car l Jo seph Ant o n. T r at ado da P ro va e m Mat ér ia Cr i m ina l ou
E xpo s ição Co mpar ada. ( Ca mp ina s: 2008, Boo kse ller ) . p. 243.
160

O pr o cesso cr imina l co ns ist e, po is, nest e caso , e m u ma pr o dução de


pr o vas po r par t e do acusado r e do acusa do , e no s es fo r ço s de a mbo s
par a fo r mar , cada u m e m s eu fa vo r , a co nvicç ão do ju iz. No s
int er r o gat ó r io s, a que pr o cede est e, nada ma is faz do que dar
publ ica me nt e ao acusado co nhec i me nt o das que ixa s, do s mot ivo s
que as apo ia m, e ha bi l it á - lo , ass im, par a pro duzir sua de fesa ; não
pr o cur a, po r per gunt as capc io sas, e xt o r quir - lhe u ma co nf is são ;
ser ia co nt r ár io à just iça, co mo qua lquer co nfis são ser ia co nt r ár ia à
nat ur eza. É ao acusado r que cu mpr e d ar a pr o va, se m esp er ar o u
pr o vo car uma co nfis são do acusado ; é e le que de ve co ligar o s
do cume nt o s pró pr io s par a est abe lecer a de mo nst r ação daquilo que
ava nça, se m ja ma is lhe se ja l íc it o co nt ar co m a co nfis são po r part e
de seu adver s ár io " 349.

Em resumo, nos ordenamentos jurídicos modernos, a coexistência da


forma inquisitória e acusatória nos sistemas mistos, reflete no valor dado à
confissão. Este é "mai or ou menor, conforme propendem mais ou menos para
uma ou outra das duas formas" 350.

E naquilo que se havia afirmado no Capítulo 2, a ciência jurídica atual


tem avançado mais além, e percebido, através dessa dúvida levantada quanto a
capacidade da pessoa em perceber a verdade 351, como funciona a verdade do
processo penal, suas premissas, pretensões e possibilidades 352:

" A co nst r ução do co nhec i me nt o pro duzido no pro cesso jur isd ic io na l
não aut o r iza, ao co nt r ár io do que algu ns sust e nt a m, a se fa lar e m
u ma ver dade ma is pr ó xima da r ea l ida de e o ut r a me no s, po is, a
ver dade ad vir á de u ma "co nver s ação her me nêut ica ", e m que o s
par t ic ipa nt es, at r avés do " int er câ mbio d e o p iniõ es " a lca nçar ão u ma
l inguage m e u m r esu lt ado co mu ns" 353.

349
MI T T E RMAI E R, Car l Jo seph Ant o n. T r at ado da P ro va e m Mat ér ia Cr i m ina l ou
E xpo s ição Co mpar ada. ( Ca mp ina s: 2008, Boo kse ller ) . p. 249.
350
MI T TE RMAI E R, o p. cit . , p. 253.
351
“A e xpr es são da ver dade, na co nd iç ão de pr o dução me nt a l, est á vincu lada a in ú mer as
co nt ingê nc ia s de l inguage m, pr ó pr ias da p lur a l idade de cu lt ur as, da var i edade de
vo cabu lár io s e de s ig ni f icação e, po rt ant o , a ver dade est ar ia r eduz ida a u m a s imp le s
cr iação hu ma na, cu ja va l idade est ar ia p r evia me nt e co nd ic io nada po r eve nt ua is l i m it es d e
co mu nica ção . ( P I NT O, Fe lipe Mar t ins . I nt ro dução cr ít ica ao P ro cesso P ena l . ( Be lo
Ho r izo nt e: De l Re y, 2012) , p. 86).
352
“De nt r e as inú mer as d is cus sõ es que ver sa m so br e a ver dade que s e ap lica m,
espec i fic a me nt e, à ver dade pr o cessua l, cu mpr e me nc io nar t r ês ar gu me nt o s que r epe le m a
po ss ibi lid ade de o bt er a ver dade no pro cesso so b a ót ica da t eo r ia da co r r espo ndênc ia :
i mpo ss ibi l idad e ideo ló g ica, t eó r ica e pr át ica” ( P I NT O, o p. cit . , p. 82).
353
P I NT O, o p. cit . , p. 132.
161

Tudo isso dá azo a reflexões jurídicas e filo sóficas, cuja profundidade


não se cabe explorar na oportunidade, restando apropriado apenas confirmar o
repensar que se abate sobe a confissão, enquanto prova, é ampla e se irradia
sobre institutos outros do processo penal, como a cognição judicial das pro vas
e, mais profundamente, à compreensão jurisdicional da verdade 354.

Mas é cabível reafirmar a conclusão alcançada e anteriormente relatada,


de que mesmo nos dias atuais, não se eliminou completamente o sistema de
provas tarifadas do processo penal, ainda q ue haja entendimento de que tenha -
se alcançado tal êxito no processo civil 355.

Por derradeiro, o princípio da publicidade dos atos processuais 356, vem


também a permitir que a sociedade moderna se auto gerisse em relação às
garantias fundamentais do homem, em f ranca aplicação da proposta liberal ao
sistema jurídico.

No processo penal isso significou mais uma proteção do sistema contra


a tortura. Explica -se.

A si gilosidade predominante do procedimento inquisitório medieval


serviu a perpetrar as crueldades dos mét odos. Não apenas porque os atos de
tortura eram acobertadas pelos órgão eclesiásticos, de modo que opinião
pública não conseguiu exercer verdadeira pressão sobre as instituições
católicas e depois estatais; o sigilo dava também a falsa impressão de que o

354
"A co nd ição do E st ado Demo cr át ico de D ir e it o deflagr a de co r r ênc ia s d ir et as e inc is iva s
par a o exer c íc io do P o der Jur isd ic io na l, pr imo r d ia l me nt e na e s fer a cr im ina l,
est abe lece ndo , at r avés de u ma ep ist e mo lo g ia gar a nt ist a, o s sig no s at r avés do s qua is s e
co nst r uir á a ver dade no pr o cesso , sig no s est es que pr eco niza m a par t ic ipa ção equê nim e
das par t es e m co nt r ad it ór io na co nst r ução do pro vime nt o e o r eco nhec i me nt o de li m it e s
be m de fin ido s par a a int er ve nç ão do s dir e it o s das pesso as". ( PI NT O, o p. cit . , p. 91) .
355
Vi de : “Ap e nas no sécu lo at ual é que se co nsegu iu de s ve nc i lhar o pro cesso civ i l d as
pr o vas t ar ifadas, o u se ja, do s ist e ma de pr o vas pr é - va lo r izadas p e lo d ir e it o po sit ivo ”.
( T HE ODORO JÚNI OR, Hu m ber t o . Cur so de D ir e it o P ro cessua l C iv i l - T eo r ia ger a l do
d ir e it o pro cessua l c iv i l e pr o cesso de co nhec i me nt o . v. 1.( R io de Jane ir o : 2008, For ense)
p. 16).
356
E st e pr inc íp io , que do mina o pro cesso qua lquer que se ja o co nt eúdo da lide ( pena l, c ivi l
o u t r aba lhist a) , assegur a qu e o s at o s processua is se ja m pú bl ico s, quer d iz er , fr a nqueado s a
que m o s que ir a ass ist ir . S ua ap lic ação se r eve la co m ma is int e ns idad e naque la fa se e m qu e
o at o pro cessua l se e xt er io r iza at r avés da pa la vr a o r a l ( aud iê nc ia s) . ( AL VI M, Jo sé
E duar do Car r e ir a. E le me nt o s de T eo r ia Ger a l do P r o cesso . ( R io de Ja ne ir o : 1998, Fo r ense) .
p. 199).
162

sistema era eficiente; que o acautelamento do acusado era justo e enquanto


estava sob a tutela do Estado, estava -se extraindo dele a verdade pecaminosa.
O resultado era, portanto, sempre positivo, posto cominar em sentenças
públicas, seguidas por vezes dos Autos de Fé 357.

Tudo em uma visão conturbada de eficiência do sistema jurídico, pois,


como se viu acima, a sentenças naquele sistema medieval, nada mais eram do
que a reafirmação da premissa acusatória formada pelo próprio julgador.

A partir do século XIX, a publicidade dos atos processuais vem servir


ao sistema processual em condição semelhante ao que se apresentou para o
princípio do livre convencimento motivado. A proposta intentada era de se
possibilitar à sociedade, vislumbrar de maneira clara o respeito às garantias
fundamentais do homem. O acesso à informação daí advinda manifestou -se,
inclusive, como verdadeira garantia do sujeito submetido ao processo
jurisdicionalizado.

"T r at a - se de gar ant ia r e le va nt e e que assegur a a t r ansp ar ênc ia da


at ividade jur is d ic io na l, per mit indo ser fisca l iz ada pe la s par t es e
pe la pr ó pr ia co mu nidade. Co m e la são evit ado s exce sso s o u
ar bit r ar iedad es no dese nr o lar da c au sa, sur g indo , po r is so , a
gar ant ia co mo r eação ao s pro cesso s se cr et o s, pro po r cio na ndo ao s
c idadão s a o po rt unid ade de fisc a liz a a d ist r ibu ição da ju st iça" 358.

O procedimento criminal deve respeitar as garantias fundamentais dos


indivíduos. A integridade física e o direito à liberdade devem ser valores
preservados em cada fase do processo 359. Mesmo nas situações excepc ionais
em que a ordem pública pede a relativização dos mesmos através do

357
Vi de no t a nº 20.
358
ALVI M, Jo sé E duar do Car r eir a. E le me nt o s de T eor ia Ger a l do P ro cesso . ( R io de
Ja ne ir o : 1998, Fo r ense) . p. 74.
359
O pr inc íp io da pu blic idade do pr o cesso co nst it u i u ma pr ec io sa g ar a nt ia do ind iv íduo no
t o cant e ao exer c íc io da jur isd ição . A pr ese nça do público na s aud iê nc ias e a poss ib i lid ade
do exa me do s aut o s po r qualquer pes so a r epr esent a m o ma is segur o inst r ume nt o de
f isca l iz ação po pular so b r e a o br a do s m ag ist r ado s, pro mo t o r es públ ico s e ad vo gado s. E m
ú lt ima a ná lis e, o po vo é o ju iz do s ju í zes. E a r e spo nsa bi l idade das dec isõ es jud ic ia i s
assu me o ut r a dime ns ão , quando t ais dec i sõ es hão de ser t o mada s e m aud iê nc ia p úbl ica, na
pr esença do po vo " . ( CI NT RA, Ant ô nio Car lo s de Ar aú jo ; GRI NOVE R, Ada P e llegr ini ;
DI NAM ARCO, C â nd ido Range l. T eo r ia Ger a l do P r o cesso . (S ão P aulo : 2008, Ma lhe ir o s) .
p. 75).
163

encarceramento provisório, os motivos de sua concessão precisam ser


explicitados, a fim de se restringir ao mínimo necessário para cumprir suas
finalidades acautelatórias ou punitivas 360.

E note-se, a publicidade então proposta, não se restringe a sociedade,


mas também ao próprio particular submetido ao processo. O acusado tem o
direito de saber ao que responde, porque responde e como responderá. O
procedimento a qual será submetido dev erá ainda ser o mesmo a qual todos
demais acusados se submeteram, daí o princípio da igualdade vir socorrer o
particular contra outras arbitrariedades dos procedimentos investigatórios 361.

"Fo i pe la Re vo luç ão Fr ancesa que s e r eag iu co nt r a o s ju ízo s


secr et o s e de car át er inqu is it ivo do per ío do ant er io r . Fa mo sas a s
pa la vr a s de M ir a be au per ant e a Asse m ble ia Co nst it u int e: do nnez -
mo i le jug e que vo us vo udr ez, par t ia l, co rr upt , mo n e nne m i mê me,
s i vo us vo u lez, peu m' i mpo rt e, po ur vu qu'i l ne pu is se r ie n fa ir e qu 'à
la fa ce du publ ic. Rea lme nt e o sist e ma da public idad e do s at o s
pr o cessua is s it ua - se e nt r e as ma io r es gar ant ias d e ind epe ndê nc ia
i mpar c ia l idade, aut o r idade e r espo nsa bi l idade do ju iz " 362.

Com ela (publicidade dos atos), impede -se, ao menos em hipótese, a


utilização de métodos violadores das garantias fundamentais do homem
moderno, como é o caso da tortura.

A fiscalização que se confere á sociedade por esse meio, em última


análise, é também uma garantia de que não ocorram arbitrariedades, e o
sistema persecutór io de garantias, seja igualmente aplicado a todos aqueles
que se submetem a ele. Isso, por si só, também constitui uma garantia dos
particulares frente ao sistema jurídico.

Assim, o Processo Penal moderno traz uma dinâmica procedimental na


qual toda sociedade se vê metonimicamente representada por cada acusado

360
CI T RA, o p. cit ., p. 77.
361
A pu blic idade pr et end ida p ar a o pr o cesso pena l, t o davia, não po de se vo lt ar co nt ra o
acusado . No s caso s em que sua e xpo s ição po ssa t r azer - lhe pr e ju ízo é r azo áve l que se
l i m it e a publ ic idade do pro cedime nt o jud ic ia l, de nt ro do necessár io . ( AL VI M, Jo sé
E duar do Car r e ir a. E le me nt o s de T eo r ia Ger a l do P r o cesso . ( R io de Ja ne ir o : 1998, F o r ense) .
p. 76).
362
CI NT RA, Ant ô nio Car lo s de Ar aú jo ; GRI NOVE R, Ada P e l legr in i; DI NAM AR CO,
Câ nd ido Rang e l. T eo r ia Ger a l do P ro cesso . ( S ão P au lo : 2008, Ma lhe ir o s) . p. 75.
164

que se submete aos procedimentos investigatórios ou judiciais. A publicidade


vem permitir que a universalidade dos cidadãos do Estado se perceba tutelada
por um sistema processual verdadeiramente just o e garantidor dos direitos
fundamentais do homem 363. Mais do que isso, por um processo penal onde a
tortura é não se perpetua enquanto método.

Terminando aqui as reflexões necessárias, perceba -se com essas


questões levantadas, que não apenas ao processo pen al, foco das pesquisas
realizadas, se restringem as modificações trazidas pelo pensamento humanista
ao sistema jurídico. Quando se falou de uma nova percepção de processo é
inegável o papel do Processo Civil e do Direito Civil na reformulação do
papel entre as partes 364.

Depois, na questão do Constitucionalismo, pôde -se perceber o quão


amplo e cercado de questões políticas, está a criação de uma carta de direitos
legitimadora de todos diplomas normativos de um Estado. E também da matriz
constitucional, passa -se a se falar de princípios e garantias constitucionais,
que, a exemplo do devido processo e da igualdade, tangenciam as discussões
apresentadas.

A re visão dos status libertatis se apresenta relacionado a temas de


Direito Penal, como se deu noticia em rela ção ao conceito de bem jurídico.

É, certamente, o mesmo que se tem com o princípio do livre


convencimento motivado das decisões e da publicidade dos atos processuais.
Todos eles se relacionam a diversos institutos de direito penal, na medida em

363
E so br e e ss e co nc e it o de o r dem leg í t ima, Har be ma s: "O car át er de co mu m acordo
pr ó pr io ao ag ir co mu nit ár io co ns ist e em que o s int egr ant es de u m gr upo r eco nheç a m a
o br igat or ied ade de su as no r ma s de açã o e sa iba m, u ns so br e o s o ut ro s, que se se nt e m
mut ua me nt e o br igado s a segu ir as r egr as" ( H ABE RM AS , Jür ge n. T eo r ia do Ag ir
Co mu nic at ivo - Rac io na l idade da Ação e Rac io na liz ação S o cia l. ( S ão P aulo : 2012, Mart ins
Fo nt es) . p. 342).
364
I mpo rt ant e a not a de Fr eder ico Mar q ues co mpar a ndo o D ir e it o P ro cessua l P ena l ao
P ro cessua l C ivi l na co nt e mpo r ane idad e , apesar da o r ige m co mu m e da apr o ximação de
suas c iê nc ia s: “Ape sar das o br as e pr o duçõ es c it adas, o Dir e it o P ro cessua l P e na l a inda não
a lca nço u, no ca mpo da do ut r ina jur íd ica , o r ealce qu e mer ec ia t er . P r eso o r a ao ens ino do
D ir e it o P ena l, o r a ao Dir e it o P ro cessua l C iv i l, não at ing iu o mes mo níve l de
dese nvo lvi me nt o cult ur al a que e ss as du as c iê nc ia s co nsegu ir a m su bir ”. ( M ARQ UE S , Jo sé
Fr eder ico . E le me nt o s do Dir e it o Pro cess ua l P e na l. v. 1. ( Ca mp inha s: 2009, M il le nniu m) . p.
95) .
165

que as norm as processuais instrumentalizam o direito subjetivo a que servem,


no caso, o Direito Penal.

E não apenas com as normas penais se percebe a correlação, mas


também com outras normas e princípios de Direito Processual Penal. O
processo penal contemporâneo des cende diretamente desse primeiro momento
de consolidação do pensamento iluminista. Perceba -se, por exemplo, no que
foi apontado em relação à utilização da confissão. Não fosse o norte dado
para o humanismo, a confissão não seria tratada como um elemento pr obatório
“relativizável” para a cognição judicial, na existência de outras provas
contrárias. Tudo isso, se relacionando ao sistema de tarifação de provas a que
se fez referência nos capítulos anteriores. Este, embora seja uma
característica peculiar do in quisitorialismo, e contestado partir da revisão do
papel da confissão, continua a existir nos sistemas processuais modernos.

Em resumo, o que isso permite observar, é que a ordem jurídica, como o


sistema que é, não recebe modificações normativas isoladas. Todas se
apresentam sempre influenciando ou sendo influenciadas por outras, de modo
a se tornar um enorme desafio ao pesquisador, fazer um corte metodológico
preciso do que se pretende analisar.

Apesar desta complexidade, diante da proposta feita, assume -se ter


havido êxito em se observar todas as nuances jurídicas pertinentes ao reflexo
humanitário sobre o processo penal moderno, que se originaram pelas críticas
à tortura. Estas, hoje permitem um ordenamento em relação ao qual a tortura
não apenas é incom patível enquanto método, como também se apresenta como
violadora de suas bases principiológicas.

É pelo fato do processo penal moderno se apresentar com as


características e garantias investigadas através da presente pesquisa, é que o
procedimento crimina l se vê avesso à utilização da tortura enquanto método, e
hábil a abraçar a criminalização que a evolução histórica de seu ordenamento
jurídico permitiu.
166

CAPÍTULO 5: TORTURA COMO CRIME NO ORDENAMENTO


JURÍDICO BRASILEIRO

Ainda que o Processo Penal moder no se veja avesso a utilização dos


tormentos para a investigação criminal, através de todas garantias que se
apresentou, o ápice da reprovação social ao instituto é sua tipificação
enquanto crime.

Assim, resta por derradeiro, abordar a questão, para demon strar essa
etapa final de afastamento da tortura em decorrência do pensamento
humanista. Cabe, para tanto, descrever o processo histórico de tipificação a
tortura, tomando por base o ordenamento jurídico brasileiro e o
desenvolvimento histórico de suas lei s nesse sentido, separando -se a análise
entre a legislação anterior e posterior à Constituição Federal de 1988.

5.1 O tratamento legal da tortur a criminaliz ada, anterior mente à


Constituição Fe deral de 1988

Ao que se percebe, a criminalização da tortura foi um processo


histórico paulatino, que parte da proibição de seus métodos característicos e
vai até a enquadramento típico das condutas relativas à eles. Fa z parte da
construção de cada ordenamento jurídico, a assunção (ou não) desse processo,
que progride de acordo com a absorção dos fundamentos humanistas pelo
Estado.

Note-se, por exemplo (repisando o que já se apresentou), que a Prussia


do Imperador Frederico II foi a primeira nação a proibir, em 1740, a
167

utilização da tortura enquanto método, talvez em razão da proximidade


pessoal entre o imperador e o filósofo francês François Marie Arouet , vulgo
Voltaire 365.

No Brasil essa medida só veio a ser tomada em 1821, mediante do


Decreto de 23 de maio, o Príncipe Regente, Dom Pedro I, que dispunha o
seguinte :

"Em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo ou masmorra estreita,
escura, ou infeta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca
adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de corrente, de
algemas, grilhões e outros quaisquer feros inventados para martirizar homens ainda
não julgados a sofrer qualquer pena aflitiva por sentença final" 366.

Até então, vi giam no Brasil as Ordenações Filipinas. Esse diploma


previa a utilização da tortura de maneira ampla n o Título CXXXIII do Li vro
V, intitulado "Dos Tormentos" 367.

Note-se que, entre à proibição do método na Prússia e no Brasil, existe


um lapso de 81 anos. Isso demonstra a dificuldade dos direitos humanos em
penetrarem no ordenamento jurídico brasileiro 368.

Após o decreto de 21, a Constituição Imperial de 1824 dispôs


claramente no art. 179, XIX, que desde então ficavam "abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis" 369.

Embora ainda não se tratasse da tipificação de um crim e, já restava


clara a indisposição do Ordenamento pátrio, contra a utilização do método 370.

365
FE RRI , E nr ico . P r inc íp io s de D ir e it o Cr imina l - O Cr imino so e o Cr ime.
( Ca mp ina s : 2003, Russe l l) . p. 37.
366
BR AS I L. Decr et o de 23 de ma io de 1821. D ispo níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / CCI VI L_03 / decr et o / Hist o r ico s/ DI M/ DI M - 23- 5- 1821. ht m>.
Ace sso e m: 29 Dez. 2013.
367
E S P ANHA. Or dena çõ es e le is do r eino de P ort ugal r eco p ilada s po r ma nd at o d'el Re i D.
F i lip e, o P r ime ir o . D ispo níve l e m: < ht t p: / / www1. c i. uc. pt / iht i/ pr o j/ fi l ip inas/ >. Ace sso e m:
29 Dez. 2013.
368
GOUL ART , Va lér ia D ie z S car a nce Fer na nde s. T o rt ur a e pr o va no pr o cesso pena l . ( São
P au lo : 2002, At la s) , p. 39.
369
BR AS I L. Co nst it u iç ão Po lít ica do I mp ér io do Br azil. D is po níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ c o nst it u icao / co nst it u i% C3% A7ao 24. ht m>. Ace sso
e m: 29 Dez. 2013.
168

Mas como não se dispunha de uma norma tipificadora da conduta, a


sujeição de indivíduos ao suplício seria passível de punição através dos
outros tipos, como a lesão corporal. O fim especial de torturar era uma
agravante genérica, tanto no Código Penal de 1830 (lei de 16 de dezembro) 371,
quanto naquele de 1890 (decreto nº. 847 de 11 de outubro) 372.

Esse foi o tratamento jurídico à tortura até Código Penal de 1940. Nele,
a tortura é mencionada em dois pontos. Primeiramente como agra vante
genérica do art. 61, II, "d", da Parte Geral 373, repetindo o antigo tratamento
conferido pelos códigos anteriores. Depois, como qualificadora do crime de
homicídio (art. 121, §2º, III) na Pa r te Especial 374.

Em 1965, a Lei N.º 4.898/65 c onsiderou abuso de autoridade, as


condutas de atentado à incolumidade física, e sujeição à constrangimento
ilegal, que são características da sujeição do indivíduo à tortura:

"Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


i) à incolumidade física do indivíduo;
Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não
autorizado em lei"375.

370
E não fo i po r me no s que o pr ime ir o Có digo de P r o cesso P ena l br as i le ir o , em 1832,
det er mino u no art . 94, qu e "a co nfis são do r éo em Ju izo co mpet ent e, sendo livr e,
co inc id indo co m as c ir cu mst a nc ias do fact o , pro va o delict o ; mas, no caso de mo r t e, só
pó de suje it a - lo á pena i m med iat a, quando não ha ja o ut r a pro va". ( BR AS I L. Le i de 29 de
no ve mbr o de 1832. D ispo níve l e m: < ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ Le is/ LI M/ LI M -
29- 11- 1832. ht m>. Ace sso e m: 29 Dez. 2013) .
371
Ar t . 17, 2º : Quando a dô r phys ica fô r aug me nt ada ma is que o o r dinar io po r a lgu ma
c ir cu mst anc ia e xt r ao r dinar ia. ( BR AS I L. Le i d e 16 de deze mbr o de 1830. Dis p o níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ le is/ l i m/ l im - 16- 12- 1830. ht m>. Ac es so em: 29 Dez.
2013) .
372
Ar t . 39: § 16. T er sido co mmet t ido o cr ime est ando o o ffe nd ido so b a sua im med iat a
pr ot ecção da aut o r idade pu bl ica. ( BR AS I L. Decr et o nº . 847, de 11 de o ut ubr o de 1890.
D ispo níve l e m: < ht t p: // leg is. se nado . go v. br / leg is la cao / L ist aP ublic aco es. act io n?id =66049>.
Ace sso e m: 29 Dez. 2013. ).
373
Ar t . 61 - S ão cir cu nst ânc ias que s e m pr e agr ava m a pena, quando não co nst it uem ou
qua li f ica m o cr ime: [ . . . ] I I - t er o agent e co met ido o cr ime: [ . . .] d) co m e mpr ego de
ve ne no , fo go, exp lo s ivo , t o rt ur a o u o ut ro me io ins id io so o u cr uel, o u de que po dia r esu lt ar
per igo co mu m. ( B R AS I L. Decr et o le i nº . 2. 848, de 7 de deze mbr o de 1940. D ispo níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v . br / cc ivi l_03/ d ecr et o - le i/ de l2848co mp i lado . ht m>. Aces so em: 29
Dez. 2013. ).
374
Ar t . 121: [ . . .] , § 2° S e o ho mic íd io é co met ido : I I I - co m e mpr ego de ve ne no , fogo,
exp lo s ivo , as fix ia, t o rt ur a o u o ut ro me io ins id io so o u cr uel, o u de que po ssa r esu lt ar
per ig o co mu m ( BR AS I L, Op. cit . ) .
375
BRASIL. Lei nº. 4.898, de 9 de dezembro de 1965. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4898.htm>. Acesso em: 29 Dez. 2013.
169

Quatro anos depois, em 1969, o legislador b rasileiro replicou, no


Código Penal Militar (Decreto lei 1.001/69), as disposições do Código Penal
de 1940. Assim, o diploma dispõe no art. 70, II, "e ", a tortura como uma
agravante genérica, e no art. 205, §2, III, como qualificadora do homicídio
cometido por militar 376.

Cabe aqui um apontamento importante. Nesse período imediatamente


anterior à Constituição de 1988, o Brasil passava pela ditadura militar
iniciada em 1964. Embora o tratamento legislativo conferido a tortura fosse o
apresentado acima e sua u tilização como método continuasse a ser ilegal,
foram constantes as notícias aplicação de tormentos pelas autoridades
militares contra os presos políticos 377.

O modelo ditatorial imposto, implicava no cerceamento de algumas das


garantias apresentadas no cap ítulo anterior. Note -se, por exemplo, que o Ato
Institucional nº. 5, trouxe a censura absoluta de modo a minguar a
publicidade, mesmo dos atos judiciais; a suspensão do habeas corpus e a
possibilidade de se legitimar prisões pela preservação da "Revolução" , tornou
a liberdade individual novamente uma exceção para o procedimento
persecutório. 378.

Perceba-se ainda, a permissão de suspensão de direitos e garantias


individuais em prol da segurança pública (art. 5º daquele Ato Institucional).
O sistema jurídico, a partir das premissas trazidas pela ditadura militar, abria
flanco para a justificação do uso da tortura 379, e assim, se constituía de
maneira semelhante àquele sistema imposto pela Inquisição Católica no
século XIII. Neste, no lugar da expressão "para pre servar a Revolução",

376
BRAS I L. Decr et o le i nº . 1. 001, de 21 de o ut ubr o de 1969. D ispo níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ d ecr et o - le i/ de l1001. ht m>. Aces so e m: 29 Dez.
2013.
377
S OARE S , I nês V ir g ín ia P r ado ; KI S HI , S andr a Ake m i S hi mada. Me mó r ia e V er dade - A
Just iça de T r a ns ição no E st ado De mo cr át ico Br as i le ir o . ( Be lo Ho r izo nt e: 2009, E dit o r a
Fó r um) . p. 127.
378
BR AS I L. At o I nst it uc io na l nº . 5, de 13 de deze mbr o de 1968. D ispo ní ve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ AI T / ait - 05- 68. ht m>. Ace sso e m: 29 Dez. 2013.
379
GOUL ART , Va lér ia D ie z S car a nce Fer na nde s. T o rt ur a e pr o va no pr o cesso pena l . ( São
P au lo : 2002, At la s) , p. 40.
170

utilizada como justificativa no citado Ato nº. 5, afirmava -se "para preservar a
Fé Católica".

Isso serve a demonstrar o valor das garantias jurídicas de um processo


penal avesso ao modelo inquisitorial, apresentadas no capítulo 4, o nde há
plena utilização da tortura. Sem elas, não obstante o método ser considerado
ilegal, o sistema torna -se propenso a permiti -lo.

Isso porque, na ausência de tais garantias, extinguem -se os


instrumentos normativos que permitem à opinião pública, cert ificar-se da não
utilização dos suplícios, pelo Estado.

5.2 O tratamento legal da tortura a partir da Constituição de 1988 e a


tipificação deste crime

Não obstante a ditadura ter sustado as garantias que protegiam o


sistema jurídico da admissão da tor tura, o pensamento humanista não
abandonou a mentalidade do cidadão moderno. Dessa feita, o processo de
redemocratização do Brasil que se observou a partir de 1988, foi re vestido de
um clamor pelo (re)estabelecimento de garantias individuais. Principalment e
aquelas relativas à integridade física e aos direitos individuais, tão
amplamente violentados durante da ditadura 380.

Não é por menos, que a Carta Magna de 88 foi a primeira a reafirmar a


proibição do uso da tortura, desde a Constituição Imperial de 1824. Nas

380
S OARE S , I nês V ir g ín ia P r ado ; KI S HI , S andr a Ake m i S hi mada. Me mó r ia e V er dade - A
Just iça de T r a ns ição no E st ado De mo cr át ico Br as i le ir o . ( Be lo Ho r izo nt e: 2009, E dit o r a
Fó r um) . p. 79.
171

constituições de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, não houve menção explícita
ao instituto 381.

É possível afirmar que a preocupação do legislador de 88 em tratar da


matéria no texto constitucional seja um reflexo do período ditatorial que vi gia
no Brasil entre 1964 e 1989. As denúncias de utilização da tortura pelas
autoridades militares contra os presos políticos, justificam o tratamento da
matéria pelo texto constitucional. Pretendeu -se afirmar na norma superior, as
garantias tão amplamente violadas no s anos anteriores 382.

Assim é que carta constitucional afirma expressamente em seu art. 5º,


III, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante ". Além disso, o inciso XLIX presti gia a dignidade humana ao
assegurar "aos presos o respeito à integridade física e moral".

Ademais, a reprovação do legislador constitucional à utilização da


tortura, manifesta -se na disposição em torná -la um crime hediondo,
insuscetível de graça e anistia (inciso XLIII do mesmo art. 5ª) 383.

A re gulamentação legal dos crimes hediondos, dos quais a Constituição


de 88 fez a tortura ser gênero, ocorreu através da Lei 8.072/90. Nela, além da
impossibilidade de concessão de graça e anistia, já afirmada pelo texto
constitucional, restou inconcebível o indult o, bem como a progressão de
regime:

"Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e


drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I - anistia, graça e indulto;
II - fiança e liberdade provisória.

381
Co nfo r me d ispo níve l e m: , ht t p: / / www4. pla na lt o . g o v. br / leg is la cao / leg is la cao -
hist o r ica/ co nst it u ico es - a nt er io r es- 1>. Acesso e m: 29 Dez. 2013.
382
S OARE S , I nês V ir g ín ia P r ado ; KI S HI , S andr a Ake m i S hi mada. Me mó r ia e V er dade - A
Just iça de T r a ns ição no E st ado De mo cr át ico Br as i le ir o . ( Be lo Ho r izo nt e: 2009, E dit o r a
Fó r um) . p. 76
383
XLI I I - a le i co ns ider ar á cr ime s ina f i anç á ve is e insu scet íve is de gr aça o u anist ia a
pr át ica d a t ort ur a , o t r áfico il íc it o de e nt o r pecent es e dr o gas a fins, o t erro ris mo e o s
de fin ido s co mo cr ime s hed io ndo s, po r ele s r espo nde ndo o s ma nda nt es, o s exe cu t o r es e o s
que, po dendo evit á - lo s, se o mit ir e m. ( B RAS I L. Co nst it u ição da Repú bl ic a Fede r at iva do
Br as il de 1 988. D ispo níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ c o nst it u icao / co nst it u icao . ht m>. Ac esso e m: 29 De z.
2013) .
172

§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime
fechado.
§ 2º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu
poderá apelar em liberdade.
§ 3º A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de
1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de trinta dias, prorrogável por
igual período em caso de extrema e comprovada necessidade"384.

A determinação do legislador em ordinário em exceder a disposição


constitucional e proibir a concessão de indulto e progressão de regime,
permitiu questionar a constitucionalidade do diploma normativo 385. Tais
questões foram resolvidas pela Lei 9.455/97 em relação à tortura. Quanto aos
demais crimes hediondos, as previsões do inciso II do caput, e parágrafos 1º,
2º e 3º, foram alterados pela lei 11.464/2007 386.

Posteriormente, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei


8.069) trouxe os seguintes dispositivos legais:

"Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância
a tortura:
Pena - reclusão de um a cinco anos.
§ 1º Se resultar lesão corporal grave:
Pena - reclusão de dois a oito anos.
§ 2º Se resultar lesão corporal gravíssima:
Pena - reclusão de quatro a doze anos.
§ 3º Se resultar morte:
Pena - reclusão de quinze a trinta anos"387.

384
BR AS I L. Le i nº . 8. 072, de 25 de ju lho de 1990. D ispo nív e l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ le is/ l8072. ht m>. Ace sso e m: 29 Dez. 2013.
385
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a. ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) , p. 86.
386
É a seguint e a r edação at ual de ss es d ispo s it ivo s do art . 2º da Lei 8 . 072/ 90:
I I - fia nça.
§ 1o A pe na po r cr ime pr e vist o nes t e art igo ser á cu mpr id a inic ia l me nt e em r eg i me
fec hado . ( Redação dada pela Le i nº 11. 464, de 2007)
§ 2o A pro gr essão de r egime, no caso do s co nde nado s ao s cr imes pr e vist o s ne st e art igo ,
dar - se- á apó s o cu mpr ime nt o de 2/ 5 ( do is qu int o s) da pe na, s e o ape nado fo r pr imár io , e
de 3/ 5 (t r ês quint o s) , se r einc ide nt e. ( Redação dada pela Le i nº 11. 464, de 2007)
§ 3o E m ca so de se nt ença co nde nat ór ia, o ju iz dec id ir á fu nd a me nt ada me nt e se o r éu
po der á apelar e m l iber dade. ( Redação dada pe la Le i nº 11. 464, de 2007)
§ 4o A pr is ão t empo r ár ia, so br e a qu a l d ispõ e a L e i no 7. 960, de 21 de deze mbr o de 1989,
no s cr ime s pr evist o s nest e ar t igo , t er á o pr azo de 30 (t r int a) d ia s, pro r ro gáve l por igua l
per ío do em ca so de ext r ema e co mpr o vada nece ss idad e. ( I nc lu ído pe la Le i nº 11. 464, de
2007) .
387
BR AS I L. Le i nº . 8. 069, de 13 de ju lho de 1990. D ispo nív e l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ le is/ l8069. ht m>. Ace sso e m: 29 Dez. 2013.
173

Essa disposição legal deu margem à dúvidas quanto à intenção do


legislador. Não estava claro se a previsão "continha ou não uma suficiente
descrição da tortura capaz de afirmá -la como conduta realmente tipificada
quando os sujeitos passivos fossem menores de dezoito anos" 388.

Seja como for, reputa -se que a tortura tenha sido definitivamente
tipificada através da Lei 9.455 de abril de 1997.

O antecedente histórico desta lei, já mencionado na introdução da


presente pesquisa, é especialmente interessante. Em novembro de 1995, a
Revista Veja noticiou a ocorrência de casos de tortura em São Paulo, Belo
Hori zonte, Fortaleza, Pernambuco, Distrito Federal, Porto Ale gre e Rio de
Janeiro. Apresenta o relato de diversos indivíduos que, considerados suspeitos
pelas polícias civil ou militar, foram submetidos a tratamento desumano e
violentas agressões contra a integridade física 389.

Depois, em 1997, a mídia brasileira veiculou novos e cruéis abusos de


policiais militares, na favela Naval, em São Paulo. A população brasileira
escandalizou-se com a ampla utilização da tortura pelas autoridades
policiais 390.

Esses episódios mobilizaram a opinião pública e pressionaram o poder


Le gislativo acelerar a tramitação da lei que tipificava o crime de t ortura 391.

A Lei 9.455/97 resultou do Projeto de Lei n.º 4716 392, apresentado pela
Presidência da República em 22 de dezembro de 1994. Após ser votado e
aprovado às pressas, foi sancionado pelo então presidente Fernando Henrique
Cardoso em 07 de abril de 1997 , e publicado no Diário Oficial logo no outro
dia, com a seguinte redação:

388
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a. ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) , p. 92.
389
LE I T E, P aulo Mo r eir a. O po der da pau lada e do cho que. Ve ja, S ão P aulo , E dit o ra Abr i l,
ano 28, n. º 44, 1 No v. 1995, p. 28 - 35.
390
GOUL ART , Va lér ia D ie z S car a nce Fer na nde s. T o rt ur a e pr o va no pr o c esso pena l. ( São
P au lo : 2002, At la s) , p. 84.
391
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a. ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) , p. 97.
392
Dado s dispo níve is e m:
<ht t p: / / www. ca mar a. go v. br / pr o po sico esWe b/ f ic hadet r a mit acao ?idP r o po sic ao =223777>.
Ace sso e m: 29 Dez. 2013.
174

" Ar t . 1º Co nst it ui cr i me de t ort ur a:


I - co nst r anger a lgu é m co m e mpr ego de vio lê nc ia o u gr a ve a mea ça,
causa ndo - lhe so fr i me nt o fís ico o u me nt al:
a) co m o fi m de o bt er info r mação , dec lar a ção o u co nfis são da
vít i ma o u de t er ceir a pes so a;
b) par a pro vo car ação o u o mis são de nat ur eza cr im ino sa ;
c) em r azão de discr im ina ção r acia l o u re lig io s a;
I I - submet er a lgu é m, so b sua guar da, po der o u aut o r idade, co m
e mpr ego de vio lê nc ia o u gr ave a me aça, a int enso so fr ime nt o fís ico
o u me nt a l, co mo fo r ma de ap lic ar cas t igo pesso a l o u med ida d e
car át er pr event ivo .
P ena - r ec lusão , de do is a o it o ano s.
§ 1º Na mes ma pe na inco r r e quem su bme t e pesso a pr esa o u suje it a a
med ida de segur a nç a a so fr i me nt o fís i co o u me nt a l, po r int er méd io
da pr át ica d e at o não pr evist o em le i o u não r esu lt a nt e de med ida
lega l.
§ 2º Aqu e le que se o mit e e m fa ce de ssa s co ndut as, qua ndo t inha o
dever de e vit á - las o u apur á - la s, inco r r e na p e na de d et enção de u m
a quat ro ano s.
§ 3º S e r esu lt a le são co r po r al de nat ureza gr a ve o u gr avís s i ma, a
pena é de r ec lusão de quat ro a dez ano s ; se r e su lt a mo r t e, a
r ec lus ão é de o it o a dezesse is a no s.
§ 4º Au me nt a - se a pena de u m se xt o at é u m t er ço :
I - se o cr ime é co met ido por agent e públ ico ;
I I – se o cr ime é co met ido co nt r a cr ianç a, gest ant e, port ado r de
de fic iê nc ia, ado lesce nt e o u ma io r de 60 ( sesse nt a) ano s;
I I I - se o cr ime é co met ido med ia nt e seqüest ro .
§ 5º A co nde nação acar r et ar á a per da d o car go , fu nção o u e mpr ego
públ ico e a int er diç ão par a seu exer c íc io pe lo do br o do pr azo da
pena ap l icada.
§ 6º O cr ime de t ort ur a é ina f ia nçá ve l e insu scet íve l de gr aça o u
anist ia.
§ 7º O co nde nado po r cr ime pr e vist o ne st a Le i, sa lvo a hipó t ese do
§ 2º , inic iar á o cumpr ime nt o da pena e m r eg ime fec hado .
Ar t . 2º O dispo st o nest a Le i ap l ic a - se a inda qua ndo o cr ime não
t enha s ido co met ido e m t er r it ó r io nac io na l, se ndo a vít i ma
br as i le ir a o u e nco nt r ando - se o agent e e m lo ca l so b jur isd ição
br as i le ir a.
Ar t . 3º E st a Le i e nt r a em vigo r na dat a de sua publ icação .
Ar t . 4º Revo ga - se o art . 233 da Le i nº 8. 069, de 13 de ju lho de 1990
- E st at ut o da Cr ia nç a e do Ado lesce nt e " 393.

Longe de se pretender uma análise doutrinária desse diploma legal, é


importante apresentar algumas ponderações relacionadas ao que foi discutido
anteriormente.

Em primeiro lugar, a tipificação desse delito, não retira do direito


penal, as disposições relativas à agra vante genérica, nem a qualificadora do
homicídio doloso, ambas do Código Penal. A aplicação de cada dispositivo

393
BR AS I L. Le i nº . 9. 455, de 7 de abr il de 1997. D ispo níve l e m:
<ht t p: / / www. pla na lt o . go v. br / cc ivi l_03/ le is/ l9455. ht m>. Ace sso e m: 29 Dez. 2013.
175

ocorrerá conforme as condições específicas do caso concreto e de acordo com


a intenção do agente 394.

O mesmo não se pode falar em relação às disposições antes vigentes no


Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 233 que dispunha sobre a
imposição de suplícios ao menor, foi expressamente revogada pelo art. 4º da
norma transcrita acima.

Ademais, o aludido dispositivo altera a anterior compreensão de que o


crime de tortura não é passível da concessão de indulto. Também possibilita
que o condenado por esse delito se beneficie com a progressão de regime.
Quanto à liberdade provisória, permite sua concessão apenas sem a
estipulação de fiança.

Importa por fim, refletir a respeito do supra referido motivo que


apressou a tramitação da lei que tipificou o crime de tortura: pressão p opular
decorrente das notícias de tortura por policiais. Tal motivação se relaciona
intimamente à percepção da sociedade brasileira em relação aos direitos
humanos. Trata -se de uma noção essencial às diretrizes da presente pesquisa,
conforme se explica adi ante.

Tome-se, por exemplo, o relato, veiculado na Revista Veja, de Ildec y


Pereira dos Santos, acerca do tratamento que recebeu na 13ª Delegacia do
Distrito Federal, em razão de uma suspeita de participação sua em uma
quadrilha de furto de veículos:

"Os c ho ques er a m t ão vio le nt o s que o co r po par ecia deco lar do


chão . Amo r daçada, eu não co nsegu ia g r it ar . F ique i pe ndur ada po r
ho r as. Des ma ie i vár ia s veze s. Quand o aco r dei, minha s r o upas
est ava m su jas d e s a ngue. A s a la c he ir a va a ur ina. E u t inha fe br e e
vo mit a va. Nua, assu mi a cu lpa. E les me der a m u ma No va lg ina e
fo r a m e mbo r a" 395.

Se esse relato fosse colhido no século XIII, a mentalidade medieval


acerca da utilidade dos tormentos levaria a crer que a tortura alcançou seu

394
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a. ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) , p. 99.
395
LE I T E, P aulo Mo r eir a. O po der da p au lada e do cho que. Ve ja, S ão P aulo , E dit o ra Abr i l,
ano 28, n. º 44, 1 No v. 1995, p34.
176

objetivo. A acusada confessou seu crime. Confirmou a hipótese aventada


pelos torturadores e preservou a ordem pública. O método é louvável!

Para o indivíduo contemporâneo a visão é diferente. Não se interessa


por qual justificativa se apresenta para o emprego da tortura. Muito menos, se
ela está eficazmente servindo à encontrar o criminoso e por isso contribuindo
para a ordem pública. Afinal, na concepção moderna a proteção da ordem
pública se dá, antes, pela proteção de cada indivíduo. Assim, a reportagem
citada, sequer dá destaque ao delito a que se queria descobrir através da
tortura da cabeleireira. O que interessa à opinião pública, é a injusta violência
a qual ela foi submetida (essa é a notícia)! E tal injustiça somente é
reconhecida, porque se concebe que a dignidade humana é um valor qu e não
pode ser transposto através da tortura. Por isso se reclamou dos governantes a
aprovação e sanção da Lei 9455/97.

Portanto, a tipificação do crime de tortura, foi a instância final da


reprovação, de um povo contaminado pelos ideais humanistas, das condutas
uma vez já empregadas como método legítimo de perseguição da verdade.
177

CONCLUSÃO

Evidentemente a proibição da tortura não significa sua tipificação. Na


evolução histórica, são momentos distintos do Ordenamento Jurídico. Note -se
que no sistema brasileiro, os tormentos foram abolidos como método pel o
Decreto de 1821 , mas apenas em 1997 sancionou-se a lei nº. 9.455/97 que
tipificou o crime de tortura 396.

Mesmo que a extinção do método e sua criminalização sejam coisas


distintas, revelam am bos a paulatina absorção dos ideais humanistas. Trata -se
de uma caminhada no sentido de se reconhecer cada vez mais a dignidade
humana como um valor supremo.

Essa progressão parte de um ponto anterior , em que indivíduo, quando


submetido aos procedimentos persecutórios, se torna mero objeto sujeito ao
perecimento, diante de um propósito transcendental maior 397. Tal imagem
passa por um choque de concepções a partir das revoluções do século XVIII.
Dali começa à implementação de direitos agora reconhecidos intrí nsecos à sua
natureza.

As pesquisas desenvol vidas serviram a responder, dentro desse contexto


assinalado, à pergunta inicial de “como o processo penal foi influenciado pelo
humanismo a ponto de se tornar incompatível com a prática institucionalizada
da tortura”.

Para tanto, propôs-se analisar primeiramente o momento histórico em


que a prática da tortura era um instrumento legítimo de persecução penal.
Essa iniciativa levou a análises mais profundas do instituto que demandaram
um mergulho em períodos anterio res à abdução da tortura pelos Estados,

396
T EI XE I RA, F lá via Ca me l lo . Da To rt ur a . ( Be lo Ho r izo nt e: 2004, Del Re y) , p. 95.
397
NE T O, Jo sé de As s is S a nt iago . E st ado De mo cr át ico de D ir e it o e P r o cesso P ena l
Acu sat ór io . ( Rio de Jane ir o : 2012, Lu me n Jur is) . p. 102.
178

posto que a utilização dos suplícios pelos sistemas jurídicos revelou ser a
“importação” de um bem sucedido sistema persecutório eclesiástico.

Foi necessário aprofundar na mentalidade e na cultura medieval para


analisar a tortura pela perspectiva de um contemporâneo da sua utilização
como método, e não como um pesquisador imerso na cultura contaminada pelo
ideário humanista, onde já faz parte do senso comum a percepção da tortura
enquanto crime.

Tal exercício de “rel ativização” do olhar exigiu o cuidado de não se


deter em questões filosóficas, relacionadas à concepção da verdade segundo a
ótica da Inquisição.

Foram feitas as considerações necessárias acerca da correlação entre o


método da tortura e a verdade correspon dista, sempre evitando se perder nos
meandros metafísicos que envolvem o assunto.

A se guir, procurou -se estudar a influência do humanismo nos sistemas


jurídicos. Para tanto, fez -se mister conhecer as origens dessa forma
pensamento, o que nos levou às bases renascentistas e, após, ao movimento
iluminista. A proposta iluminista que vingou após os movimentos
revolucionários, revelou -se amplíssima, atinente a diversas áreas do
conhecimento. Como naquele tempo a separação entre o papel de cientista
político, fil ósofo e jurista, era bastante tênue, entender o humanismo levando
em conta apenas ao que importava ao tema abordado, se revelou um outro
desafio.

Chegando ao processo penal moderno, a compreensão das ondas de


implementação dos Direitos Fundamentais e do E stado Liberal, serviram a
direcionar a contribuições da doutrina iluminista especificamente para as
mudanças observadas nos sistemas persecutórios pós 1808. A partir do Code
d'Instruction Criminelle , o que se percebeu no Direito Processual se encaixa
na descrição de Helio Tornaghi :

"O D ir e it o P r o cessua l t o mo u no va s a sa s, r asgo u no vo s ar es, t o co u


no vo s céu s. Re st it u iu ao acusado a co nd ição hu ma na e i mpô s ao
ju iz u m car át er divino . O ho me m co mu m po de ser mo vido po r bo as
179

o u má s p a ixõ es, s ina l aut ênt ico de su a hu ma nidade, mar ca ge nu ína


de seu fe it io , cunho fided ig no de seu carát er " 398.

Tratando finalmente dos elementos processuais e das mudanças


legislativas que, como reflexo da ideologia humanitária, tornaram o sistemas
jurídicos imunes ao emprego institucional izado da tortura, ficou evidente a
dificuldade em se isolar as modificações atinentes à tortura, de outras ligada s
à reformulação do processo penal .

Em resumo, todas as fases da pesquisa realizada demonstraram a


influência de outras áreas do conhecimento n o trato do tema abordado, bem
como a relação umbilical com outros institutos jurídicos. Dessa maneira,
algumas das mais severas dificuldades se deram na necessidade de se manter
o foco na proposta inicial, sem se aprofundar desnecessariamente em algum
instituto de processo penal, e nem se perder na extensa influência do
pensamento iluminista na produção intelectual do século XVIII. De um lado,
corria-se o risco de se perder a noção do todo e se particularizar os esforços
em algum assunto apenas casualmente relevante, desvirtuando a natureza do
trabalho; por outro, podia -se inesperadamente sair do campo do direito e se
cuidar sumariamente de toda a amplíssima reestruturação do ocidente pela
modernidade.

De toda feita, a verticalidade e a horizontalidade, po r assim dizer, que o


tema alcança, se apresentaram como desafios considerados transpostos com
sucesso.

Ao final, julga -se ter sido apresentada com sucesso a tortura enquanto
crime, no primeiro momento, depois a origem e estabelecimento do
humanismo no século XVIII, e por fim, as influências desse humanismo no
processo penal, especificamente no sentido de se assumir t al método como um
elemento anti jurídico.

398
T ORNAGHI , Hé lio . A Re lação P ro cessu a l P e na l. ( S ão P aulo : 1987, S ar aiva) . p. 04.
180

O caminho adotado para de demonstrar a aversão do sistema jurídico


brasileiro aos suplícios, partiu do recorte metodológico adotado e, embora se
reconheça que muitos outros institutos do processo penal se relacionem com o
tema (da tortura) e se originem também das propostas iluministas de um
processo penal humanizado, não se apresentaram diretamente determ inantes
para o procedimento persecutório sem suplícios.

A tortura, talvez por ter sido um dos primeiros alvos das críticas
iluministas contra o sistema inquisitorial, se assume verdadeiramente
indesejável aos ordenamentos jurídicos ocidentais modernos. A p artir do
momento em que se tor na um crime previsto em lei, o ordenamento está
assumindo que o método não apenas foi abolido do sistema persecutório,
como se tornou uma conduta punível pelo Estado , por ofensa a um valor
juridicamente protegido: a di gnidade humana.

Mas se a pergunta proposta no início fosse se o processo penal


moderno está livre de todo resquício inquisitorial, a resposta seria negativa.

Diversas características de natureza inquisitorial subsistem nos


sistemas jurídicos atuais. Vide a fase d e inquérito policial, a tarifação de
provas ou os poderes instrutórios dos juízes. Isso evidencia que o combate à
tortura foi uma conquista isolada em meio à necessária destituição do sistema
inquisitorial.

Não se está afirmando, por evidente, que a modern idade não tenha
buscado um afastamento do processo inquisitorial. Muito pelo contrário,
reconhece -se que diversas maneiras tenha se procurado abolir, do processo
penal, as características inquisitoriais, recebendo estas, inclusive, uma
alcunha pejorativa n os tempos atuais.

A tortura como instrumento legítimo, no entanto, parece ter sido


cirurgicamente removida dos ordenamentos modernos, sem que se atentasse
para a reminiscência de certos elementos justificadores do método, como o
sistema de provas tarifadas e a busca de uma verdade real.
181

A esta reminiscência, tem -se procurado opor um sistema acusatório.


Todavia, os elementos inquisitoriais tem se mostrado discretamente
resistentes.

Não por menos, constatou -se a i nexistência de sistemas processuais


puramente acusatórios, principalmente naqueles Estados onde o Santo Ofício
penetrou suas raízes com profundidade e a herança católica é marcante.

A abolição formal da tortura não impede que ela seja praticada extra
legalmente. Torná -la ilegal para o sistema não é ca paz de impedir sua prática
por governos ditatoriais ou por uma polícia que aja à margem da legalidade.
É, contudo, um convite para um sistema processual penal mais humanizado e
no caminho para a realização da proposta humanista de um Estado em plena
sintonia com a dignidade humana.
182

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS

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Processo Penal . Rio de Janeiro: Re novar, 2001.

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