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Ubirajara de Melo

Graça e libertação
A ATUALIDADE DO EMBATE
ENTRE AGOSTINHO E PELÁGIO
Copyright desta edição © Palavra & Prece Editora Ltda., 2015.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser
utilizada ou reproduzida sem a expressa autorização da editora.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Coordenação editorial Júlio César Porfírio


Revisão e diagramação Equipe Palavra & Prece
Capa Sérgio Fernandes Comunicação
Imagem: Shutterstock
Impressão Mark Press Brasil
ISBN 978-85-7763-328-9

1a edição | 2015

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Melo, Ubirajara de
Graça e libertação : a atualidade do embate entre Agostinho e Pelágio / Ubirajara de Melo. –
1. ed. – São Paulo : Palavra & Prece, 2015.

Bibliografia
ISBN 978-85-7763-328-9

1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430 - Crítica e interpretação 2. História da Igreja -


Igreja primitiva, ca. 30-600 3. Pelagianismo I. Título.

15-00776CDD-280.092

Índices para catálogo sistemático


1. Agostinho e Pelágio : Pensadores cristãos : Cristianismo 280.092

PALAVRA & PRECE EDITORA LTDA.


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Sumário

Introdução.................................................................................................................. 9

Capítulo 1 – A doutrina da graça antes de Agostinho............................ 17


A herança do Antigo Testamento....................................................................... 19
O Novo Testamento: Evangelhos e Atos.............................................................. 22
O Evangelho anunciado por Paulo..................................................................... 26
Da experiência da fé ao anúncio......................................................................... 27
O pecado e a graça................................................................................................ 30
A graça como justificação e santificação............................................................ 34
A Igreja: Corpo de Cristo..................................................................................... 37
A oposição: os judaizantes................................................................................... 38
O Evangelho da Graça questionado................................................................... 41
A doutrina dos gnósticos..................................................................................... 47
A divinização na gnose cristã.............................................................................. 53
O Cristianismo nominal...................................................................................... 55
A vida consagrada à perfeição............................................................................. 64
O Montanismo e o Donatismo............................................................................ 67
O estoicismo.......................................................................................................... 69

Capítulo 2 – Agostinho contra Pelágio......................................................... 71


Pelágio.................................................................................................................... 71
A Igreja Romana no tempo de Pelágio..................................................... 73
Pelágio e seus primeiros movimentos....................................................... 75
No Norte da África e Oriente.................................................................... 79
A teologia de Pelágio exposta por Agostinho.......................................... 81
Agostinho............................................................................................................... 87
O caminho da conversão............................................................................ 91
Agostinho cristão, sacerdote e teólogo..................................................... 94
Balizas intelectuais de Agostinho de Hipona........................................... 96
O primeiro confronto: Celéstio......................................................................... 100
A refutação de Agostinho a Pelágio:
aspecto histórico-teológico da querela............................................................. 101
A doutrina da graça contra os pelagianos....................................................... 104
Graça como relação com Deus, amoroso e próximo............................ 105
O perdão dos pecados: cerne da fé cristã............................................... 106
O pecador socorrido pela graça Cristo................................................... 107
Ubirajara de Melo

A graça de Cristo, remédio pela fé e pelo batismo................................ 109


Somente pela graça o ser humano supera o pecado e pode agir
em ordem a salvação................................................................................. 110
A vida em Cristo como caminho de santificação.................................. 111
A graça de uma Igreja misericordiosa.................................................... 113
Os semipelagianos.............................................................................................. 114
A refutação a Juliano de Eclano............................................................... 115
A refutação aos monges de Adrumeto e Marselha............................... 124

Capítulo 3 – Reflexões sobre a vida na graça............................................ 131


Antropologia e Cristologia: A graça do homem novo................................... 133
Uma antropologia da graça...................................................................... 133
Uma cristologia da graça.......................................................................... 144
O Ato de Fé como encontro entre Cristo e o homem no Espírito...... 146
Moralidade e Espiritualidade: a vida na graça, obra do Espírito.................. 153
A graça do Espírito como caminho de vida moral............................... 153
Ligação entre Moral e Espiritualidade.................................................... 157
Moral Sobrenatural: contraponto à Teologia de Rahner...................... 161
Ponto de intersecção: uma certa Teologia da Libertação..................... 169
Eclesiologia e Pastoral: o lugar da graça........................................................... 171
A Igreja, lugar da misericórdia................................................................ 171
A predestinação, um bem pastoral.......................................................... 176
A graça e a missão da Igreja..................................................................... 186
Misericórdia pastoral, fruto precioso desta doutrina........................... 189
Teologia da Graça e a Nova Evangelização............................................ 198

Conclusões finais.................................................................................................. 201

Bibliografia Geral............................................................................................... 209


I. Documentos do Magistério............................................................................ 209
II. Dicionários e coleções................................................................................... 209
III. Revistas e artigos........................................................................................... 210
IV. Obras de Santo Agostinho........................................................................... 210
Outras edições........................................................................................... 210
V. Autores e obras consultadas.......................................................................... 211

6
Agradeço ao teólogo e escritor Francisco Faus, da
Prelazia do Opus Dei, por sua paciência em ler os ori-
ginais desta obra e apontar sugestões valiosíssimas. Ao
cônego José Adriano, da Arquidiocese de São Paulo e a
D. Beni dos Santos, bispo emérito de Lorena, por acom-
panharem os primeiros passos desta discussão teológi-
ca, incentivando-me a prosseguir na pesquisa e futura
publicação que chegou só agora.

Dedico este livro ao meu pai Severino Vieira de Melo


e à minha mãe Maria Dalva.

“Mas Ele me disse: ‘Basta-te minha graça, porque


é na fraqueza que se revela totalmente a minha
força’. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas
fraquezas, para que habite em mim a força de
Cristo.” (2Cor 12,9)
Introdução

Como uma heresia que está há mais de 1500 anos no passado poderia
interessar e fazer pensar problemas e realidades da Igreja de hoje? A pri-
meira vez que ouvi falar sobre a heresia pelagiana, foi justamente como
reedição. Um artigo afirmava que alguns teólogos queriam reabilitar a
doutrina de Pelágio, um antigo herege que, basicamente, ensinava que o
bom uso do livre-arbítrio seria suficiente para o homem chegar à felicida-
de e salvação. Era uma matéria de capa da extinta revista 30 dias, ligada ao
movimento Comunhão e Libertação, do ano de 1991.
Nesta matéria, havia uma frase de São Jerônimo afirmando que a here-
sia pelagiana era como “um resumo de todas as heresias” e que “reúne em si
os venenos de todos os hereges”.1 Como uma única heresia poderia reeditar
todos os hereges? Instigado por tal pensamento, comecei a pesquisar o
fenômeno pelagiano e, especialmente, o seu antídoto, que é a Teologia da
Graça.2 Neste itinerário de pesquisa fiz a minha conclusão de licenciatura
em história e filosofia e escrevi o mestrado em teologia dogmática.
Mas recentemente, o Papa Francisco voltou com este assunto do pela-
gianismo, quando apontou a atualidade do projeto pelagiano, falando sobre
o perigo de sua presença na Igreja. Na visita ao Brasil, em um discurso aos
bispos responsáveis pelo CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano),
o Papa fez uma profunda reflexão sobre a Missão da Igreja no nosso conti-
nente. Ao falar sobre algumas tentações contra o discipulado missionário,
ele apontou para o que chamou de “tentação pelagiana”, como uma dentre
outras tentações na Igreja hodierna. Sobre esta tentação/proposta, disse:

1
JERÔNIMO. Carta a Ctesifonte, cuja tradução pode ser encontrada na Revista 30 Dias, São
Paulo, Editbras, janeiro de 1991, pp. 40-45. O texto original In: MIGNE, Patrologia Latina 21,
1147-1161.
2
O termo Teologia da Graça, aparecendo com iniciais maiúsculas, se refere à doutrina católica
da graça na sua expressão total que abrange desde as Escrituras até os últimos pronunciamen-
tos do Magistério, como por exemplo no Novo Catecismo, e não a algum acento teológico, ou
contribuição particular.
Ubirajara de Melo

“Aparece fundamentalmente sob a forma de restauração. Perante os


males da Igreja, busca-se uma solução apenas disciplinar, na restau-
ração de condutas e formas superadas que nem mesmo culturalmente
tem capacidade de ser significativas. Na América Latina, verifica-se
em pequenos grupos, em algumas novas Congregações Religiosas, em
tendências exageradas para a ‘segurança’ doutrinal ou disciplinar.
Fundamentalmente é estática, embora possa prometer uma dinâmica
ad intra: regride. Procura ‘recuperar’ o passado perdido.”3

A crítica de Francisco é acertada, mas penso que poderíamos alargar


ainda mais sua análise. O chamado “projeto pelagiano” não seria apenas
uma tentação exclusiva de setores tradicionalistas mais radicais, mas algo
que se configura como uma tendência muito mais abrangente, segundo
aquela antiga e douta indicação de São Jerônimo de que o pelagianismo se-
ria o resumo de todas as heresias e, neste caso, de todas as outras tentações
elencadas pelo Romano Pontífice. Na proposta pelagiana, tradicionalis-
tas e progressistas se encontram implicados, como bem expressou Joseph
Ratzinger, no artigo citado:

“O erro pelagiano tem muito mais seguidores na Igreja do que pare-


ce à primeira vista. Estamos vivendo uma tentação, humanamente
compreensível, de sermos compreendidos também onde não há fé,
e acreditamos que a ponte entre a fé da Igreja e a mentalidade mo-
derna poderia ser a moral. Todos veem que a moral é necessária, e
assim apresentam a Igreja como garantia de moralidade, como uma
instituição de moralidade, mas não têm coragem de apresentar o
Mistério”.4

Antônio Socci sintetizaria essa acurada percepção de Ratzinger, ao afir-


mar que: “Assim, se realiza a prodigiosa convergência de todas as tendên-
cias eclesiásticas de centro, de esquerda e de direita”.5

3
FRANCISCO. Discurso aos dirigentes do CELAM em 28 de julho de 2013. A parte deste dis-
curso que a nós interessa está copilada aqui nas páginas conclusivas.
4
Revista 30 Dias, janeiro de 1991, p. 34.
5
Ibidem. p. 35.

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Graça e libertação

O Papa Francisco chamou a atenção para um aspecto do perigo pela-


giano, que podemos encontrar na maioria das outras correntes ideológicas
que povoam o cenário eclesial atual, naquilo que o Papa indicou como
“busca de uma solução apenas disciplinar, na restauração de condutas e
formas superadas que nem mesmo culturalmente tem capacidade de ser
significativas”. Ora, tal exprobração vale para soluções disciplinares e
restaurações de condutas e formas superadas, sejam de trinta anos ou de
centenas de anos atrás. Qual a diferença entre o anacronismo de setores
que vivem com a mente de cristãos militantes revolucionários, como se a
queda do Muro de Berlim ainda não tivesse ocorrido, daqueles outros que
militam pelo reinado social de Cristo, como se ainda vivessem em uma
Cristandade? Isto, principalmente, quando pensamos que a velocidade das
transformações no século XX, transformações da realidade, correram ace-
leradas no tempo, formando o que o historiador Eric Hobsbawm, no livro
“A Era dos Extremos”,6 chamou de o “século breve”.
De fato, se apenas fixarmos o olhar no conteúdo das propostas dos tra-
dicionalistas ou progressistas, perdemos de vista sua essência pelagiana,
que se encontra não nas propostas e soluções, muito diferentes entre si,
mas na marca formal da disciplina, na segurança racional de práticas obe-
decidas e ensinadas, na confusão entre Evangelho e lei. Os ditos conserva-
dores, com um acervo bimilenar, ou os progressistas, com alguma cartilha
libertária e datada, são tendências que podem terminar por ler o Evange-
lho não como um dom, que se experimenta pela fé em uma Pessoa, mas
como uma ideologia que transforma a fé em um partido, em uma escola.
No fim, o perigo de toda ideologia é reduzir-se a uma obediência, a uma
prática moral impositiva, a uma educação que lê de modo reducionista
e unívoco a realidade, seja esta leitura de que viés for. Ora, este não é o
Evangelho de Cristo, este é o Evangelho de Pelágio: educar o homem para
a observância de uma moral.
A crítica do Papa Francisco foi feita em relação aos vários perigos que
ameaçam a Missão da Igreja, mostrando que este perigo vai desde uma
6
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O breve século 1914-1991. 2ª ed. São Paulo: Compa-
nhia das Letras.

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Ubirajara de Melo

ideologização da mensagem evangélica (no reducionismo socializante, na


ideologização psicológica, na proposta gnóstica e no pelagianismo), até a
tentação do funcionalismo e do clericalismo. Aquilo que o Papa aponta
acertadamente como perigosas tendências eclesiais, são verdadeiros pla-
nos de ação que têm no pelagianismo, como veremos neste trabalho, o
seu denominador comum. No final, cada um destes projetos acaba dimi-
nuindo o Cristianismo a uma ética, a um esforço moral, sem espaço para
o mistério imprevisível da graça de Deus, mesmo que cada um deles conti-
nue acreditando ou ensinando a doutrina tradicional sobre a graça divina,
como os mais perfeitos católicos.
Pelágio queria uma Igreja composta apenas de fortes, de santos, de se-
veros cumpridores de seus deveres sociais e cristãos. Por isto, esta igreja
pelagiana é uma igreja fria, organizativa, racionalista e, acima de tudo,
segura de si, por ser autorreferencial. Segundo o Papa Francisco, este tipo
de tendência garantista, de segurança doutrinal e disciplinar, se firma no
engano de que o conhecimento de certas verdades e de certas práticas são
a garantia da realização do Reino de Deus. E em seus dogmas, tanto mo-
dernistas como conservadores são radicais e o Reino deixa de ser um dom
para ser simplesmente uma conquista de um grupo, cujo fechamento salva
apenas sua membresia ideologicamente alinhada.
O Papa Francisco tinha em mente, ao discursar para a diretoria do
CELAM, a retomada do Documento de Aparecida,7 o qual havia ajuda-
do a escrever. Neste Documento, a Igreja Latino-americana é chamada a
ser discípula e missionária e, por isto, no encontro com os dirigentes do
CELAM, o Papa viu a necessidade do desmascaramento daquilo que ele
chamou de “ falsas soluções” que impediriam a missionariedade e o dis-
cipulado. Desmascarar estas falsas soluções, onde o Santo Padre inclui o
projeto pelagiano, é algo de uma atualidade vital. Cremos que o diagnós-
tico de Francisco está correto e é um alerta para a Igreja no mundo mo-
derno. Se a graça de Deus faz nascer o discípulo e a testemunha de Jesus,
então ela é a protagonista da Missão. O alerta do Papa vai para o fato de
o discipulado não se reduzir a uma mera disciplina de fazer coisas, a uma

7
CELAM. Documento de Aparecida. Passim.

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Graça e libertação

obediência às regras, a um exercício ascético, ou aos projetos e cálculos


humanos, por maior importância que todas estas coisas possam ter. Na
base de tudo está a caridade de Deus agindo, e é a Palavra de Deus quem
insiste nisto (cf. 1Cor 13). As ideologias, que nascem de falsas doutrinas,
desconhecem, ou se aborrecem do Mistério da graça exatamente porque
esta retira do homem, e de suas instituições, o controle absoluto daquilo
que pertence à soberania divina. Mergulha-o na dinâmica incontrolável,
surpreendente, e por vezes inefável, do encontro com a misericórdia di-
vina. Subliminarmente, o que o Papa está dizendo é que o discipulado e
missão devem abordados e vivenciados sob o prisma de uma Teologia da
Graça e, portanto, em oposição ao projeto pelagiano que, também neste
sentido, sintetizaria o erro de todas as heresias.
Toda vez que a tentação do projeto pelagiano de alguma forma se rea-
presenta ao coração da Igreja, em suas estruturas, movimentos, pastorais
e associações, esta deve apelar ao antídoto, sempre eficaz, do Evangelho da
Graça. Este é o foco deste nosso trabalho.
Exatamente, por tudo isto, este nosso trabalho foi buscar na pequena
Hipona o grande mestre e opositor ao projeto pelagiano. Através da vida
e da teologia de Santo Agostinho de Hipona encontraremos muitas indi-
cações para pensar a questão atualíssima do neopelagianismo. Contudo,
será antes necessário um passeio panorâmico sobre a teologia que forma-
tou a mente e o mundo cristão do Doutor da Graça. É preciso entender
que a doutrina da graça pertence ao horizonte fenomenológico cristão, e
que este horizonte foi forjado desde as figuras, símbolos e textos no An-
tigo Testamento até a manifestação da graça, do dom de Deus em Jesus.
Faremos um passeio, também, sobre o mesmo horizonte formado pela ela-
boração teológica de São Paulo, abrangendo, assim, os principais dados
teológicos que antecederam a querela pelagiana.
Voltar à Teologia da Graça reelaborada por Agostinho, como resposta
à tentação pelagiana, será voltarmos a um momento crítico da História da
Igreja, muito parecido a este que vivemos hoje. Estamos outra vez diante do
impasse entre sermos uma pequena seita moralista, disciplinadora, ou ser-
mos o que sempre fomos, a grande Igreja Católica, Mãe cheia de misericórdia

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Ubirajara de Melo

que acode a todos com os remédios da graça deixados pelo seu Senhor. Mãe
que confia que, misteriosamente, Deus faz agir a Sua misericórdia na vida
de todos os homens, inclusive por meios que ela mesma desconhece.
Neste trabalho de revisitar a Teologia da Graça, em especial na sua ma-
triz agostiniana, nos deparamos com certas interpretações que fazem da
teologia tradicional da graça uma espécie de “beco sem saída”, criando um
falso impasse entre uma ortopráxis do dever e a liberdade operativa de um
lado, e a vida segundo o Espírito, de outro. Interpretações teológicas que
ora privilegiam Deus, ora privilegiam o homem, diante do ato salvífico.
Sabemos da predileção, sem muita margem de manobra, da Teologia da
Graça, na ação divina. Esta doutrina que põe Deus como o protagonis-
ta do ato salvífico, põe, também, uma série de questionamentos sobre a
condenação eterna, a bondade divina, a culpabilidade ou não do inocente
e do ignorante, etc. Este enfoque é particularmente difícil para alguns teó­
logos. No citado artigo da Revista 30 Dias de janeiro de 1991, os autores
faziam uma ligação explícitas entre as teses pelagianos e a teologia de Karl
Rahner. Neste nosso trabalho buscaremos as razões desta ligação a fim de
verificar a plausibilidade de tal acusação.
K. Rahner, “entendia toda pessoa humana como ‘homo mysticus’ (‘ho-
mem místico’), como místico no mundo, como ser extático criado para con-
fiar-se voluntaria e amorosamente ao Mistério, que se doa inteiramente a
todos e abraça a todos.”8 Rahner não admitia uma graça que não fosse
aberta a todos e a todos tocasse e, por isto mesmo, lia em Agostinho, como
o fazem a maioria dos teólogos progressistas, uma graça restritiva.
Para dialogar com a teologia moderna, colocaremos em conversação a
teologia tradicional e realista de Agostinho e a visão rahneriana, com seu
idealismo salvacionista geral, interpretada naquele artigo como um apelo
neopelagiano que se aparta do Magistério. Trata-se de um fato: Rahner, e
muito da Teologia Moderna, compreenderam mal e se afastarem do Doutor

8
EGAN, H. D. verbete sobre Rahner, In: Dicionário de Mística, p. 907. Aqui, a teologia mística
de Rahner pode ser lida não como um naturalismo idealista, mas dentro da tradicional fé ca-
tólica do “homem criado para (finalidade) Deus”, e se entende-se a graça que atua misteriosa-
mente no mundo, não como identificada ao livre-arbítrio, dado por Deus, mas como a Graça
de Cristo que atua pelo Espírito Santo, não se pode acusar Rahner de pelagianismo. O fato é
que esta leitura tradicional dificilmente é possível de acontecer.

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Graça e libertação

da Graça. A teologia de Agostinho tem sido lida por estes como uma teolo-
gia que estaria mais pronta a condenar ao fogo do inferno do que a salvar.
Durante o tempo de sua produção teológica, Rahner chegou a se manifes-
tou em favor da reabilitação de Pelágio, exatamente por não compreender
a crítica de Agostinho, conforme a compreenderemos aqui neste trabalho.9
Karl Rahner, assim como grande parte dos teólogos modernos, no afã de
abranger na salvação aqueles que não receberam, ou não compreenderam de
todo a mensagem de Cristo (e mesmo assim procuram viver de acordo com
o melhor de suas consciências, o que seria conhecido como “Cristianismo
anônimo”), se afastou e criticou a teologia tradicional da graça, como uma
teologia restritiva e, portanto, pessimista no plano da salvação universal.10
Ora, por mais que a mentalidade teológica de seu tempo pudesse dar mar-
gem a este tipo de impostação, esta não é a fé de Agostinho sobre a salvação
dos pecadores. Agostinho é, entre os grandes teólogos da antiguidade, aque-
le que mais abriu espaço para a expressão de uma doutrina que equilibra mi-
sericordiosa e justiça, os dois polos contrastantes da ação de Deus no plano
da salvação. Um desafio que a maioria dos teólogos modernos ousou sequer
enfrentar, preferindo a solução simplista de uma salvação geral.
O desafio se põe quando pensamos que Deus é Justiça e, portanto, não
pode simplesmente tolerar o pecador, pois isto desfiguraria um dos seus
principais atributos, o da santidade. Deus é amor, mas o Amor é Santo.
Como coadunar estes polos, aparentemente irreconciliáveis, quando se
trata de aproximar o pecado e o pecador do Amor Santo de Deus? A res-
posta de Pelágio é a de que Deus capacitou o homem para a santidade e

9
Cf. a citação de K. Rahner feita no artigo aqui já citado: 30 DIAS, p. 35: “(...) era tudo falso o que
Pelágio e Juliano de Eclano diziam contra Agostinho, que parecia vencedor em todas as frontes?
Eles não teriam razão em muitos aspectos no tempo deles, e com uma lenta evolução chegaram
aos nossos dias?”. Concordamos com Rahner que os hereges pelagianos chegaram aos nossos
dias, concordamos que tivessem razão em muitos pontos, aliás, o próprio Agostinho o reco-
nheceria, enquanto toda a heresia é envolta em boas verdades, mas discordamos deles com
Igreja, pois estavam errados em suas afirmações mais centrais. Rahner, como grande parte
dos teólogos modernos, não compreendeu de modo positivo a Teologia da Graça de Agosti-
nho, em especial no que se refere ao tema do pecado original e da soteriologia.
10
Quando lemos os argumentos desta rejeição, parece que estas interpretações, dadas às teses de
Agostinho, seriam mais bem dirigidas àqueles teólogos que leram Agostinho equivocadamen-
te, na História da teologia, tais como Lutero, Calvino, Baius, Jansenius, e outros. Estas sim,
interpretações restritivas e/ou pessimistas no plano da salvação.

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Ubirajara de Melo

deu Cristo como exemplo a ser seguido. Assim, o projeto pelagiano fa-
zia da Igreja um punhado restrito de pessoal altamente qualificado para
o Reino. Nisto Agostinho não se ressentiria, afinal o próprio Jesus havia
perguntado: “Mas quando o Filho do Homem voltar encontrará a fé sobre a
terra?” (Lc 18,8). Contudo, o problema de Agostinho não era numérico, se
poucos ou muitos se salvam. De outro lado, quanto à qualidade dos fiéis,
não há o que se perguntar, pois deveria ser altíssima, e nisto concordava
também, com Pelágio. A questão do Bispo de Hipona é outra, e mais fun-
damental e absoluta. Ele quer saber o que, de fato faz, cria, transforma um
ímpio em justo. Ou seja, o que a fé cristã tem a oferecer ao mundo, que
vive na impiedade, sob o Maligno (1Jo 5,19)? O pelagianismo diria: temos
uma ética, um modelo de vida, uma práxis distintiva que salva. É contra
esta resposta que se levanta a doutrina da graça em Santo Agostinho. O
primado da graça é a expressão irrenunciável, absoluta e necessária que
distingue a fé cristã. Uma graça que nada tem banal, nada tem de manipu-
lável. Exige da liberdade do homem, ao mesmo tempo em que se ampara
apenas e suficientemente só em Deus. Eis o aparente dilema, eis a aventura
que perseguiremos ao longo deste trabalho.
Desde já é preciso ter claro, como se pode intuir, que este trabalho é
uma visita à Teologia da Graça exposta por Agostinho e, exatamente por
isto, não nos deteremos no pelagianismo propriamente, mas naquilo que
Agostinho, e a Igreja africana, entenderam e chamaram de heresia pelagia-
na. Muito mais do que um estudo sobre o pelagianismo, este é um estudo
sobre a resposta da Igreja, na pessoa do Bispo de Hipona, a este projeto e os
desdobramentos atuais desta resposta para a Igreja no mundo moderno.
Nesta época, meados do século V, a Igreja fechou e definiu o Evange-
lho da Graça como imprescindível a sua vida e missão. Agostinho e Pelá-
gio, mas do que duas pessoas, duas biografias, são dois caminhos opostos,
duas culturas, duas mentalidades, duas teologias, duas religiões. Há 1500
anos a Igreja, esposa de Cristo, fiel à sua Tradição, fiel ao Evangelho, disse
não a Pelágio e sim a Agostinho. Façamos esta viagem e descubramos o
significado e a abrangência de tal decisão que nos toca ainda hoje.

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Este livro não termina aqui...

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