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Graça e libertação
A ATUALIDADE DO EMBATE
ENTRE AGOSTINHO E PELÁGIO
Copyright desta edição © Palavra & Prece Editora Ltda., 2015.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser
utilizada ou reproduzida sem a expressa autorização da editora.
1a edição | 2015
Melo, Ubirajara de
Graça e libertação : a atualidade do embate entre Agostinho e Pelágio / Ubirajara de Melo. –
1. ed. – São Paulo : Palavra & Prece, 2015.
Bibliografia
ISBN 978-85-7763-328-9
15-00776CDD-280.092
Introdução.................................................................................................................. 9
6
Agradeço ao teólogo e escritor Francisco Faus, da
Prelazia do Opus Dei, por sua paciência em ler os ori-
ginais desta obra e apontar sugestões valiosíssimas. Ao
cônego José Adriano, da Arquidiocese de São Paulo e a
D. Beni dos Santos, bispo emérito de Lorena, por acom-
panharem os primeiros passos desta discussão teológi-
ca, incentivando-me a prosseguir na pesquisa e futura
publicação que chegou só agora.
Como uma heresia que está há mais de 1500 anos no passado poderia
interessar e fazer pensar problemas e realidades da Igreja de hoje? A pri-
meira vez que ouvi falar sobre a heresia pelagiana, foi justamente como
reedição. Um artigo afirmava que alguns teólogos queriam reabilitar a
doutrina de Pelágio, um antigo herege que, basicamente, ensinava que o
bom uso do livre-arbítrio seria suficiente para o homem chegar à felicida-
de e salvação. Era uma matéria de capa da extinta revista 30 dias, ligada ao
movimento Comunhão e Libertação, do ano de 1991.
Nesta matéria, havia uma frase de São Jerônimo afirmando que a here-
sia pelagiana era como “um resumo de todas as heresias” e que “reúne em si
os venenos de todos os hereges”.1 Como uma única heresia poderia reeditar
todos os hereges? Instigado por tal pensamento, comecei a pesquisar o
fenômeno pelagiano e, especialmente, o seu antídoto, que é a Teologia da
Graça.2 Neste itinerário de pesquisa fiz a minha conclusão de licenciatura
em história e filosofia e escrevi o mestrado em teologia dogmática.
Mas recentemente, o Papa Francisco voltou com este assunto do pela-
gianismo, quando apontou a atualidade do projeto pelagiano, falando sobre
o perigo de sua presença na Igreja. Na visita ao Brasil, em um discurso aos
bispos responsáveis pelo CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano),
o Papa fez uma profunda reflexão sobre a Missão da Igreja no nosso conti-
nente. Ao falar sobre algumas tentações contra o discipulado missionário,
ele apontou para o que chamou de “tentação pelagiana”, como uma dentre
outras tentações na Igreja hodierna. Sobre esta tentação/proposta, disse:
1
JERÔNIMO. Carta a Ctesifonte, cuja tradução pode ser encontrada na Revista 30 Dias, São
Paulo, Editbras, janeiro de 1991, pp. 40-45. O texto original In: MIGNE, Patrologia Latina 21,
1147-1161.
2
O termo Teologia da Graça, aparecendo com iniciais maiúsculas, se refere à doutrina católica
da graça na sua expressão total que abrange desde as Escrituras até os últimos pronunciamen-
tos do Magistério, como por exemplo no Novo Catecismo, e não a algum acento teológico, ou
contribuição particular.
Ubirajara de Melo
3
FRANCISCO. Discurso aos dirigentes do CELAM em 28 de julho de 2013. A parte deste dis-
curso que a nós interessa está copilada aqui nas páginas conclusivas.
4
Revista 30 Dias, janeiro de 1991, p. 34.
5
Ibidem. p. 35.
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Ubirajara de Melo
7
CELAM. Documento de Aparecida. Passim.
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Ubirajara de Melo
que acode a todos com os remédios da graça deixados pelo seu Senhor. Mãe
que confia que, misteriosamente, Deus faz agir a Sua misericórdia na vida
de todos os homens, inclusive por meios que ela mesma desconhece.
Neste trabalho de revisitar a Teologia da Graça, em especial na sua ma-
triz agostiniana, nos deparamos com certas interpretações que fazem da
teologia tradicional da graça uma espécie de “beco sem saída”, criando um
falso impasse entre uma ortopráxis do dever e a liberdade operativa de um
lado, e a vida segundo o Espírito, de outro. Interpretações teológicas que
ora privilegiam Deus, ora privilegiam o homem, diante do ato salvífico.
Sabemos da predileção, sem muita margem de manobra, da Teologia da
Graça, na ação divina. Esta doutrina que põe Deus como o protagonis-
ta do ato salvífico, põe, também, uma série de questionamentos sobre a
condenação eterna, a bondade divina, a culpabilidade ou não do inocente
e do ignorante, etc. Este enfoque é particularmente difícil para alguns teó
logos. No citado artigo da Revista 30 Dias de janeiro de 1991, os autores
faziam uma ligação explícitas entre as teses pelagianos e a teologia de Karl
Rahner. Neste nosso trabalho buscaremos as razões desta ligação a fim de
verificar a plausibilidade de tal acusação.
K. Rahner, “entendia toda pessoa humana como ‘homo mysticus’ (‘ho-
mem místico’), como místico no mundo, como ser extático criado para con-
fiar-se voluntaria e amorosamente ao Mistério, que se doa inteiramente a
todos e abraça a todos.”8 Rahner não admitia uma graça que não fosse
aberta a todos e a todos tocasse e, por isto mesmo, lia em Agostinho, como
o fazem a maioria dos teólogos progressistas, uma graça restritiva.
Para dialogar com a teologia moderna, colocaremos em conversação a
teologia tradicional e realista de Agostinho e a visão rahneriana, com seu
idealismo salvacionista geral, interpretada naquele artigo como um apelo
neopelagiano que se aparta do Magistério. Trata-se de um fato: Rahner, e
muito da Teologia Moderna, compreenderam mal e se afastarem do Doutor
8
EGAN, H. D. verbete sobre Rahner, In: Dicionário de Mística, p. 907. Aqui, a teologia mística
de Rahner pode ser lida não como um naturalismo idealista, mas dentro da tradicional fé ca-
tólica do “homem criado para (finalidade) Deus”, e se entende-se a graça que atua misteriosa-
mente no mundo, não como identificada ao livre-arbítrio, dado por Deus, mas como a Graça
de Cristo que atua pelo Espírito Santo, não se pode acusar Rahner de pelagianismo. O fato é
que esta leitura tradicional dificilmente é possível de acontecer.
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da Graça. A teologia de Agostinho tem sido lida por estes como uma teolo-
gia que estaria mais pronta a condenar ao fogo do inferno do que a salvar.
Durante o tempo de sua produção teológica, Rahner chegou a se manifes-
tou em favor da reabilitação de Pelágio, exatamente por não compreender
a crítica de Agostinho, conforme a compreenderemos aqui neste trabalho.9
Karl Rahner, assim como grande parte dos teólogos modernos, no afã de
abranger na salvação aqueles que não receberam, ou não compreenderam de
todo a mensagem de Cristo (e mesmo assim procuram viver de acordo com
o melhor de suas consciências, o que seria conhecido como “Cristianismo
anônimo”), se afastou e criticou a teologia tradicional da graça, como uma
teologia restritiva e, portanto, pessimista no plano da salvação universal.10
Ora, por mais que a mentalidade teológica de seu tempo pudesse dar mar-
gem a este tipo de impostação, esta não é a fé de Agostinho sobre a salvação
dos pecadores. Agostinho é, entre os grandes teólogos da antiguidade, aque-
le que mais abriu espaço para a expressão de uma doutrina que equilibra mi-
sericordiosa e justiça, os dois polos contrastantes da ação de Deus no plano
da salvação. Um desafio que a maioria dos teólogos modernos ousou sequer
enfrentar, preferindo a solução simplista de uma salvação geral.
O desafio se põe quando pensamos que Deus é Justiça e, portanto, não
pode simplesmente tolerar o pecador, pois isto desfiguraria um dos seus
principais atributos, o da santidade. Deus é amor, mas o Amor é Santo.
Como coadunar estes polos, aparentemente irreconciliáveis, quando se
trata de aproximar o pecado e o pecador do Amor Santo de Deus? A res-
posta de Pelágio é a de que Deus capacitou o homem para a santidade e
9
Cf. a citação de K. Rahner feita no artigo aqui já citado: 30 DIAS, p. 35: “(...) era tudo falso o que
Pelágio e Juliano de Eclano diziam contra Agostinho, que parecia vencedor em todas as frontes?
Eles não teriam razão em muitos aspectos no tempo deles, e com uma lenta evolução chegaram
aos nossos dias?”. Concordamos com Rahner que os hereges pelagianos chegaram aos nossos
dias, concordamos que tivessem razão em muitos pontos, aliás, o próprio Agostinho o reco-
nheceria, enquanto toda a heresia é envolta em boas verdades, mas discordamos deles com
Igreja, pois estavam errados em suas afirmações mais centrais. Rahner, como grande parte
dos teólogos modernos, não compreendeu de modo positivo a Teologia da Graça de Agosti-
nho, em especial no que se refere ao tema do pecado original e da soteriologia.
10
Quando lemos os argumentos desta rejeição, parece que estas interpretações, dadas às teses de
Agostinho, seriam mais bem dirigidas àqueles teólogos que leram Agostinho equivocadamen-
te, na História da teologia, tais como Lutero, Calvino, Baius, Jansenius, e outros. Estas sim,
interpretações restritivas e/ou pessimistas no plano da salvação.
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deu Cristo como exemplo a ser seguido. Assim, o projeto pelagiano fa-
zia da Igreja um punhado restrito de pessoal altamente qualificado para
o Reino. Nisto Agostinho não se ressentiria, afinal o próprio Jesus havia
perguntado: “Mas quando o Filho do Homem voltar encontrará a fé sobre a
terra?” (Lc 18,8). Contudo, o problema de Agostinho não era numérico, se
poucos ou muitos se salvam. De outro lado, quanto à qualidade dos fiéis,
não há o que se perguntar, pois deveria ser altíssima, e nisto concordava
também, com Pelágio. A questão do Bispo de Hipona é outra, e mais fun-
damental e absoluta. Ele quer saber o que, de fato faz, cria, transforma um
ímpio em justo. Ou seja, o que a fé cristã tem a oferecer ao mundo, que
vive na impiedade, sob o Maligno (1Jo 5,19)? O pelagianismo diria: temos
uma ética, um modelo de vida, uma práxis distintiva que salva. É contra
esta resposta que se levanta a doutrina da graça em Santo Agostinho. O
primado da graça é a expressão irrenunciável, absoluta e necessária que
distingue a fé cristã. Uma graça que nada tem banal, nada tem de manipu-
lável. Exige da liberdade do homem, ao mesmo tempo em que se ampara
apenas e suficientemente só em Deus. Eis o aparente dilema, eis a aventura
que perseguiremos ao longo deste trabalho.
Desde já é preciso ter claro, como se pode intuir, que este trabalho é
uma visita à Teologia da Graça exposta por Agostinho e, exatamente por
isto, não nos deteremos no pelagianismo propriamente, mas naquilo que
Agostinho, e a Igreja africana, entenderam e chamaram de heresia pelagia-
na. Muito mais do que um estudo sobre o pelagianismo, este é um estudo
sobre a resposta da Igreja, na pessoa do Bispo de Hipona, a este projeto e os
desdobramentos atuais desta resposta para a Igreja no mundo moderno.
Nesta época, meados do século V, a Igreja fechou e definiu o Evange-
lho da Graça como imprescindível a sua vida e missão. Agostinho e Pelá-
gio, mas do que duas pessoas, duas biografias, são dois caminhos opostos,
duas culturas, duas mentalidades, duas teologias, duas religiões. Há 1500
anos a Igreja, esposa de Cristo, fiel à sua Tradição, fiel ao Evangelho, disse
não a Pelágio e sim a Agostinho. Façamos esta viagem e descubramos o
significado e a abrangência de tal decisão que nos toca ainda hoje.
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Este livro não termina aqui...