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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ


FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE
MESTRADO EM DIREITO

O ACESSO À JUSTIÇA EM MAURO CAPPELLETTI

Análise teórica desta concepção como “movimento” de transformação


das estruturas do processo civil brasileiro.

JOSÉ MÁRIO WANDERLEY GOMES NETO

Recife
2003
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ
FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE
MESTRADO EM DIREITO

O ACESSO À JUSTIÇA EM MAURO CAPPELLETTI

Análise teórica desta concepção como “movimento” de transformação


das estruturas do processo civil brasileiro.

Dissertação final apresentada à Faculdade de


Direito do Recife, sob orientação do Prof. Dr.
FRANCISCO DE QUEIROZ BEZERRA CAVALCANTI,
como exigência parcial para obtenção do grau de
Mestre em Direito.

Recife
2003

2
“(...) A idade dos sonhos dogmáticos acabou. A nossa
modernidade está na consciência de que o processo, como o
direito em geral, é um instrumento da vida real, e como tal deve
ser tratado e vivido. (...)”.

CAPPELLETTI, Mauro. “Problemas de Reforma do Processo


Civil nas Sociedades Contemporâneas”. In MARINONI, Luiz
Guilherme (org.). O Processo Civil Contemporâneo. Curitiba:
Juruá, 1994, p.30.

“(...) [L]’epoca del diritto puro é finita. La nostra è l’epoca del


diritto responsabilizzato, del diritto non separato dalla società,
ma intimamente legato ad essa, ai suoi bisongni, alle sue
domande ao grido di esperanza, ma espesso anche di giusta
protesta e di dolore, che viene dalla società”.

CAPPELLETTI, Mauro. “Constitucionalismo moderno e o


papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea” In
Revista de Processo. São Paulo, a15, n.60, pp.110-117, out./dez,
1990, p. 53.

3
AGRADECIMENTOS

Ao nosso Deus, pai eterno e misericordioso, fonte de toda luz, toda paz e todo o amor.
Aos meus pais, Sérgio e Maria do Loreto, por todo o carinho, apoio e compreensão na
nossa vida em comum e pelo incentivo, desde cedo, à minha opção pela carreira acadêmica,
através de quem agradeço a toda minha família.
À Faculdade de Direito do Recife – UFPE, nas pessoas de seus professores,
funcionários e alunos, que me acolheu, primeiramente, como aluno do mestrado, depois, com
a honra de ser professor nesta casa.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, exemplo de
sabedoria e cortesia, como professor e como magistrado.
Aos professores, Eugênia Cristina Nilsen Ribeiro Barza, Cláudio Souto, Nilcéa Maria
Barbosa Maggi, Sergio Torres Teixeira, Nylzardo Carneiro Leão e Alexandre Freire
Pimentel, pelos incentivos especiais de cada um, que, de várias maneiras, levaram à
consolidação do desejo de tornar-me professor universitário.
À Profª. Mirian de Sá Pereira, por ter plantado o gérmen que originou todo este
sonho.
Aos demais professores do mestrado em direito da UFPE, pela honra da convivência
e pelo engrandecimento profissional e pessoal presenteado.
Ao Prof. Dr. Lourival Vilanova (in memoriam).
A todos os colegas e amigos conquistados neste mestrado em direito, fonte de uma
fraternidade única, em especial aos amigos de todas as horas, Francisco Antônio de Barros e
Silva Neto, colega processualista, crítico mordaz e grande incentivador, e Marcelino Jorge
da Silva Lira, penalista irreverente e filósofo da boa hora.
À CAPES, pela colaboração prestada no fomento deste trabalho.

Por fim, dedico este trabalho a Iracema, minha luz, meu amor, meu equilíbrio.

4
RESUMO

É surgida na ciência do direito uma nova concepção do processo como objeto de


investigação, o acesso à justiça, a qual interrompe a tradição dos estudiosos do processo, ao
propor enfoque alternativo às saturadas investigações sobre institutos formais, restritas a
trabalhos unicamente no campo hermenêutico.
Expoente do movimento que trouxe o acesso à justiça às cátedras, o professor Mauro
Cappelletti elaborou bases teóricas a orientar os estudos e as reformas legislativas, mediante
um método novo, que assume as pesquisas lógico-formais, mas acrescenta uma dimensão
valorativa, centrada na efetividade e na justiça social, pela mudança de perspectiva em relação
ao fenômeno processual, encarado a partir da posição dos consumidores dos serviços da
justiça.
Isto é viabilizado pelo enfoque interdisciplinar, onde são analisadas as necessidades
não satisfeitas, o relativo ‘bargain power’, os tipos de relações e de interesses sob litígio, as
garantias constitucionais, os problemas sócio-econômico-culturais, os obstáculos, em suma,
ao acesso.
Surgem então as três “ondas” da atividade reformadora dos sistemas processuais
inspiradas no referido método, apresentando propostas originadas em três questões fáticas: a
pobreza econômica; a pobreza organizativa; os obstáculos endoprocessuais à realização dos
direitos. Neste sentido, Cappelletti complementa sua exposição, apresentando razões
pragmáticas, a serem observadas pelos reformadores, sob pena de esvaziamento das medidas
tomadas.
Procuramos, aqui, contribuir para a divulgação das bases teóricas do movimento pelo
acesso à justiça, trazidas por Cappelletti.

Palavras chaves: DIREITO. TEORIA. PROCESSO. ACESSO. JUSTIÇA. MÉTODO.


CAPPELLETTI.

5
ABSTRACT

Born as a new concept of process in legal science the “acess to justice” has broken a
large tradicion of procedure studies when it proposes an alternative view, away of restricted
investigations about formals institutes, wich produced works only in the hermeneutical level
of abtrativism.
One of the most important names of acess to jutice ideas movement, Professor Mauro
Cappelletti, created theorical bases to orient studies and legal reforms, by using his new
method, wich conserved the logico-formals researchs, otherwise brought a valorative
dimension, cetered in efetiveness and in social justice, ocurring at a change of perspective,
moved to the point of view of the judicial service consumers.
It is viabilized by an interdisciplinar focus, where unsatisfized needs, relative bargain
power, kinds of relations and interesses involved in litigance, constitucional garanties, socio-
economicals problems, in synthesis, all obstacles to the acess are carefully analysed.
Ours goals are to contribute here to spread the theorical bases of access to justice
moviment created by Mauro Cappelletti, centering focus in its influence in brazilians’
procedure reforms.

KEYWORDS: LAW. THEORY. PROCEDURE. ACCESS. JUSTICE. METHOD.


CAPPELLETTI.

6
SUMÁRIO.

1. INTRODUÇÃO.
1.1. Breves linhas sobre o acesso à Justiça como temática social dentro do estudo
contemporâneo do Processo Civil. ___________________________________ p.9.
1.2. Discurso sobre a relevância da obra de Mauro Cappellettti na atividade
reformadora dos sistemas jurídicos processuais. ________________________ p.10.
1.3. Aspectos metodológicos do presente trabalho. ______________________ p.11.

2. Acesso à justiça como método de pensamento: uma abordagem pós-moderna sobre o


processo.
2.1. Preâmbulo. ________________________________________________ p. 12.
2.2. A herança de Descartes: a dogmática jurídica como “ciência” única do direito.
______________________________________________________________ p.13.
2.3. Sombras de uma pós-modernidade sobre o direito como objeto de estudo.
______________________________________________________________ p.27.
2.4. Uma abordagem axiológica sobre o fenômeno processual como alternativa à
insuficiência do modelo lógico-formal vigente. ________________________ p.30.
2.5. Mudança de paradigma: o processo na perspectiva dos “consumidores” da
prestação jurisdicional. ___________________________________________ p.37.

3. As três ondas do movimento do acesso à justiça segundo Mauro Cappelletti.


______________________________________________________________ p.44.
3.1. A primeira “onda” do movimento: assistência judiciária aos pobres. ____ p.45.
3.1.1 Comentários sobre o cenário brasileiro da assistência judiciária._ p.53.
3.2. A segunda “onda”: a tutela dos interesses difusos. __________________ p.59.
3.2.1. Interesses difusos no Brasil: atual contexto das associações civis em
ações civis públicas. _______________________________________ p.66.
3.3. A terceira “onda”: do acesso à representação em juízo a uma concepção mais
ampla de acesso à justiça. Um novo enfoque. _________________________ p. 69.

7
4. Advertências de Cappelletti quanto às limitações e riscos ao enfoque de acesso à justiça nas
reformas dos ordenamentos processuais positivos: reflexos na recente reforma do Código de
Processo Civil brasileiro. _________________________________________________ p. 75.

CONLUSÃO: O acesso à Justiça como mecanismo de equilíbrio social no século que se inicia
- a releitura de Cappelletti enquanto doutrina propulsora das reformas processuais.
______________________________________________________________________ p. 77.

BIBLIOGRAFIA _______________________________________________________ p. 77.

8
1. INTRODUÇÃO.

1.1. Breves linhas sobre o acesso à Justiça como temática social dentro do
estudo contemporâneo do Processo Civil. 1.2. Discurso sobre a relevância da
obra de Mauro Cappelletti na atividade reformadora dos sistemas jurídicos
processuais. 1.3. Aspectos metodológicos do presente trabalho.

1.1. Breves linhas sobre o acesso à Justiça como temática social dentro do estudo
contemporâneo do Processo Civil.

Diante do surgimento dos direitos sociais, os chamados direitos de segunda geração,


emerge da doutrina internacional, notadamente nos Estados Unidos e na Itália, ao final da
década de 70, uma nova concepção do processo como objeto de investigação da ciência do
direito, consubstanciada no termo acesso à justiça.
A abordagem contida nesta expressão vem a interromper extensa tradição da
processualística em geral, ao propor um enfoque diferente das então já saturadas investigações
acerca dos vários institutos, provimentos e procedimentos que sustentam o processo como
método voltado à realização material exterior dos direitos subjetivos garantidos pelos
ordenamentos jurídicos, restritas a discussões e a reformas operantes unicamente na esfera do
formalismo, exclusivas no campo do abstrato.1
Um enfoque que, largamente influenciado por dados advindos da Sociologia do
Direito, transcende ao abstrato e se volta ao estudo das estruturas do aparelho judiciário, da
formação dos magistrados e de novas construções conceituais tendentes à obtenção de
resultados concretos e efetivos, dentro de um lapso temporal suficiente à prestação
jurisdicional, sem, contudo, dele decorrerem prejuízos para qualquer das partes.2

1
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Nortfleet. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1988.
2
Cf. FALCÃO, Joaquim. “Acesso à Justiça: Diagnóstico e Tratamento”. In Justiça: promessa ou realidade: o
acesso à justiça nos países ibero americanos / org. Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp.269-284. FARIA, José Eduardo. O Poder Judiciário no Brasil: paradoxos,
desafios e alternativas. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1995. SANTOS, Boaventura de Souza. “O Acesso
à Justiça”. In Justiça: promessa ou realidade: o acesso à justiça nos países ibero americanos / org. Associação
dos Magistrados Brasileiros, AMB. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp.403-412.

9
1.2. Discurso sobre a relevância da obra de Mauro Cappellettti na atividade reformadora dos
sistemas jurídicos processuais.

Incurso no contexto transcrito supra está o professor Mauro Cappelletti, da Università


degli Studi di Firenze e do Instituto Universitário Europeu, catedrático da Stanford University,
em cuja extensa obra são encontrados, a partir da década de 70, ensaios que representam a
aludida tendência de pesquisa, com o escopo de incluir o acesso à justiça entre os principais
objetos da ciência do direito.3
Tais obras caracterizam-se por um cuidadoso trabalho de divulgação de bem sucedidos
programas político-administrativos desenvolvidos na Europa ocidental e oriental, na Austrália
e nos Estados Unidos, fundamentado em sólidas bases teóricas, em especial, na
fenomenologia e na Sociologia do Direito4, cujos dados e conclusões vieram a influenciar
juristas nacionais de renome em sua participação nas reformas sofridas pelo sistema
processual civil brasileiro a partir do início da década de noventa.
Apresenta-se o professor toscano não como um criador único das idéias que ele
mesmo veio a demonstrar pertencentes a um movimento em escala global, mas como um
apóstolo do pensamento reformador dos ordenamentos processuais: o responsável pela
elaboração de uma vasta bibliografia, resultante dos trabalhos realizados pelo Projeto
Florença, sob sua presidência, reunindo, ao longo de uma década, o conhecimento produzido
por experts dos cinco continentes, acerca de um tema incipiente e desafiador – o acesso à
justiça.5
Este mister situa-lhe numa posição de interface entre os papéis de historiador,
sociólogo e divulgador de novas idéias, operantes sobre as diversas faces representativas do
prisma que é a nova concepção de acesso à justiça, sem jamais, todavia, abandonar sua
formação jurídica, de professor das letras processuais, então fortemente sob a sombra de
Francesco Carnelutti, Giuseppe Chiovenda e Piero Calamandrei.

3
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Op.cit., nota 1.
4
CAPPELLETTI, Mauro. “Appunti per una fenomenologia della giustizia nel XX secolo” In Rivista Trimestrale
di Diritto Processuale. Milano, 32 (4): 1381-1433, dic., 1978; Processo, ideologias, sociedad. Buenos Aires:
EJEA, 1974.
5
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Op.cit., nota 1.

10
1.3. Aspectos metodológicos do presente trabalho.

Sob o prisma de uma abordagem metodológica, o trabalho investigativo que ora se


pretende desenvolver consiste numa pesquisa teórica e bibliográfica, com a utilização de um
método histórico-comparativo, em cujo teor será analisado, de maneira panorâmica e
mediante diversas interfaces com a doutrina brasileira, o conteúdo da vasta obra de Mauro
Cappelletti, no que se refere, in casu, à temática concernente à nova concepção do termo
acesso à justiça − seus fundamentos políticos, filosóficos, sociológicos e, enfim, jurídicos – e
a expressão desta, identificada pelo autor como um movimento doutrinário internacional.
Com a apreciação das três “ondas” renovadoras de Cappelletti e Garth, estes estudos
convergem para a constituição de uma representação concreta da acessibilidade da prestação
jurisdicional diante de reformas legislativas implantadas.
Reformas estas em estreita relação com a reestruturação técnico-administrativa do
aparelho judiciário, através do tópico doutrinário hoje compreendido no termo administração
da justiça, e/ou à reformulação de institutos formais integrantes dos procedimentos em geral.
Seja no que pertine a uma proposta de renovação da mentalidade de nossos
magistrados em sua formação – esta em grau maior de dificuldade – seja introduzindo as
concepções voltadas à tutela jurisdicional efetiva, advindas das repercussões do movimento,
compiladas por Cappelletti e trazidas à realidade brasileira pelos nossos processualistas mais
avançados.
Este não é um estudo estritamente dogmático, nem se pretende à colaboração com a
dogmática jurídica processual, mas sim, um trabalho crítico, abordando apenas
superficialmente as modificações legislativas naquilo importante à fundamentação dos
silogismos.
O destino final a que dirigimos esta obra é a demonstração clara e coerente das teses
do movimento pelo acesso à justiça, tal como apresentadas por Cappelletti, com finalidade de
modestamente contribuir com o conteúdo da teoria geral do processo, hoje, de forma
significante, representada por ilustrados processualistas envolvidos na captura do acesso à
justiça para a doutrina, a jurisprudência e as reformas legislativas.

11
2. Acesso à justiça como método de pensamento: Uma abordagem pós-moderna sobre o
processo.

2.1. Preâmbulo. 2.2. A herança de Descartes: a dogmática jurídica como


“ciência” única do direito. 2.3. Sombras de uma pós-modernidade sobre o
direito como objeto de estudo. 2.4. Uma abordagem axiológica sobre o
fenômeno processual como alternativa à insuficiência do modelo lógico-formal
vigente. 2.5. Mudança de paradigma: o processo na perspectiva dos
“consumidores” da prestação jurisdicional.

2.1. Preâmbulo.

Novo século, momento de inquietudes e questionamentos acerca da realidade, do


pensamento, da arte, enfim, do futuro do saber humano. Oportunidade para reflexões críticas e
transformações epistemológicas, cujos alcances irradiam as diversas manifestações do
conhecimento informado pela Razão.
Verifica-se, destarte, o emprego rotineiro do termo lingüístico “crise” nestes
momentos, como recurso utilizado na descrição de fenômenos que venham a erodir ou, ao
menos, por sob dúvida as estruturas e o funcionamento de um modelo vigente, rompendo,
mesmo que parcialmente, com dogmas, axiomas e ideologias dominantes.
Nem a própria Razão escapa à sua crise, encontrando contestações na sua expressão de
maior relevo, o racionalismo, questionado por um movimento que tomou para si a bandeira
da pós-modernidade, acerca da insuficiência de sua rede de métodos e sistemas, para a
continuidade da eterna busca pelo conhecimento científico, ao se deparar com fenômenos
não-explicáveis por meio de cálculos e modelos geométricos, próprios do modelo científico
de inspiração cartesiana – como se depreende dos progressos da mecânica quântica e da nova
matemática do chaos, com seus fractais.
E, da crise da racionalidade, emerge situação específica de íntima ligação com os
operadores do direito: a insuficiência do modelo lógico-formal vigente, em sua inspiração
kelseniana, hermeticamente fechado, sobre o qual se encontram construídos os pilares da
dogmática jurídica, por muito tempo considerada a única expressão de uma fonte produtora
de conhecimento jurídico caracterizável como científico.

12
Nestes termos, surgem propostas à alteração do paradigma através do qual o direito é
submetido à investigação científica, sem lhe negar uma estrutura sistemática embasada em
métodos racionais modernos, mas rompendo os perímetros deste sistema, ao permitir a
inserção de conteúdos externos – predominantemente dados orientados por valores e/ou
resultados de pesquisas empíricas.
Dentre estas propostas está o enfoque metodológico do acesso à justiça sobre o
fenômeno do processo jurisdicional, proposto pelo professor Mauro Cappelletti, cuja
apresentação pretende a explanação ora iniciada.

2.2. A herança de Descartes: a dogmática jurídica como “ciência” única do direito.

Sem embargo das significantes opiniões que vêem na polis grega o início da ciência
atual, filiamo-nos à corrente que inclui os clássicos Platão e Aristóteles, dentre outros, na
qualidade de precursores do modelo científico moderno, fonte de idéias fecundas e de
imortais contribuições, a partir do que se formou um magistral conjunto de princípios, do qual
as investigações científicas são claramente tributárias.6
Todavia, em relação à cientificidade grega, “somos obrigados a reconhecer que ela
permaneceu estritamente confinada no domínio da theoria, sem nenhuma preocupação com
qualquer tipo de validação experimental ou de utilidade prática. De tanto venerar os números
e as idealidades matemáticas, esqueceu-se ou não tinha condições de aplicá-los no mundo
material”.7
Verifica-se uma incontestável contribuição à formulação de um modelo
epistemológico, tal como o conhecemos, mas limitada ao conhecimento baseado nas noções
teóricas de “princípio” e de “cálculo” como instrumentos de seu contato com o mundo
material e sua natureza, não apresentando a objetividade que viria a caracterizar a
modernidade do científico.
Assim, rumo à cientificidade, procede-se a um salto sobre a Idade Média,
homenageando os méritos e a genialidade do pensamento tomista e da doutrina de Santo
Agostinho, sem, contudo, deixar de ressaltar sua vinculação ao pensamento clássico grego,
sob as chancelas dos dogmas da revelação teológica.
Encontramos a pedra-de-toque do moderno pensamento científico na obra de Galileo
Galilei que, através da observação experimental e do raciocínio matemático, vem a propor um

6
Cfr. JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. São Paulo: Letras & Letras, 1997, pp.59-60.
7
Idem. Ibidem.

13
drástico turning point na concepção vigente sobre as estruturas do universo, com a sua teria
sobre o heliocentrismo (Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas).
“A revolução galileana transforma o mundo enquanto sistema e as relações do homem
consigo mesmo e com Deus. Ademais, faz com que todos os valores tremam e se arruinem.
Porque é uma construção antropológica graças a qual a natureza sensível, dada à natureza
espontânea, fica irremediavelmente substituída por uma natureza idealizadora segundo as
normas da geometria. Com efeito, a revolução científica introduz uma mudança radical no
conteúdo do conceito de ‘natureza’. No início, ainda é concebida como obra de um Deus
Criador. Contudo, na medida em que os sábios começam a isolar da globalidade dos
fenômenos certos processos naturais para observá-los, descrevê-los matematicamente e
desmontar seus mecanismos, eles vão perdendo o sentido tradicional da globalidade da
natureza e adquirindo uma percepção cada vez mais clara das relações no seu interior.”8
Mas é em Descartes que a cientificidade consolida seu modelo nas bases hoje
9
predominantes, tomando para si a Razão como a única base e caminho para um
conhecimento que pretenda alcançar a verdade sobre a Natureza.
“Descartes funda o homem como Razão autônoma: ela adquire um lugar central na
atividade filosófica onde, unicamente por seu poder, liberta-se de tudo o que pode impedir seu
exercício.”10
A Razão, autônoma e livre das paixões terrenas, é eleita como o meio mais idôneo a
conceber os fenômenos naturais, estabelecendo leis e teoremas hábeis a demonstrar suas
estruturas, numa tendência ao conhecimento objetivo e universal.
“Do conceito cartesiano de Razão, deriva o de racionalidade que, em última instância,
significa o estabelecimento de uma adequação entre uma coerência lógica e determinada
realidade empírica. (...) Por sua vez, uma visão do mundo, afirmando o perfeito acordo entre o
racional e o real, chama-se racionalismo: nada existe sem uma razão de ser; nada, de direito, é
ininteligível; todos os nossos conhecimentos procedem de princípios a priori. O racionalismo
é absoluto quando não confere nenhum lugar à experiência (Platão, Descartes). Torna-se
crítico quando faz corresponderem, aos a priori da Razão, as experiências que eles pré-
definem e organizam (Kant). Para o racionalista, o pensamento racional é capaz de atingir a
verdade absoluta, pois o real obedece às suas leis”.11

8
Idem. Ibidem.
9
Aqui entendida na qualidade de aptidão humana para calcular e fornecer justificações relativas à exatidão do
que é calculado, discernindo o verdadeiro do falso, longe das ameaças de seus inimigos naturais (as paixões e a
loucura), ao se converter na capacidade de raciocinar, quer dizer, de se desenvolver discursivamente, na
combinação dos conceitos e das proposições segundo as regras lógicas do raciocínio. Vide JAPIASSU, Hilton. A
Crise da Razão e do Saber Objetivo. São Paulo: Letras & Letras, 1996, pp. 68-69.
10
Idem. Ibidem.
11
Idem. Ibidem.

14
Envolto nesses elementos, Descartes defende o raciocínio lógico-dedutivo, indicando a
Razão como critério de conhecimento e a lógica formal como sustentáculo da objetividade, no
que reflete uma concepção mecanicista do mundo e anuncia o poder absoluto do homem
através da Razão.
Esse determinismo mecanicista caracteriza toda a modernidade filosófica, ora dando
ênfase à razão humana como única autoridade no domínio do conhecimento, ora, à
experiência individual como ponto de partida para explicar a lógica do conhecimento.
Desse modo, o paradigma racionalista consolida-se e, a partir do século XVIII, os seus
princípios passam a ser aplicados à diversidade das Ciências Naturais e Sociais.
Entretanto, como se dera a expressão deste paradigma no âmbito do pensamento
jurídico? Apreendemos da lição de Tércio Sampaio Ferraz Junior, ao tratar do perfil histórico
do direito enquanto objeto de conhecimento, as interseções ocorridas entre o supra-referido
paradigma e as concepções do fenômeno jurídico.12
Verifica o mestre paulista, com esteio em Wieacker, ao longo dos séculos XVII e
XVIII, a instituição do chamado Direito Racional ou Jusracionalismo, que se caracteriza pela
influência dos sistemas racionais na teoria jurídica.
Neste contexto, “se o problema antigo era de uma adequação à ordem natural, o
moderno será, antes, como dominar tecnicamente a natureza ameaçadora. É nesse momento
que surge o temor que irá obrigar o pensador a indagar como proteger a vida contra a agressão
dos outros, o que entreabre a exigência de uma organização racional da ordem social. Daí,
consequentemente, o desenvolvimento de um pensamento jurídico capaz de certa
neutralidade, como exigem as questões técnicas, conduzindo a uma racionalização e
formalização do direito. Tal formalização é que vai ligar o pensamento jurídico ao chamado
pensamento sistemático”.13
Sobressaem, in casu, na qualidade de características do método científico particular ao
modelo cartesiano, a construção racional do conhecimento jurídico pelo emprego de um
método universal e a adoção da idéia de sistema.
Todavia, a Razão é posta, neste momento, como caractere legitimante do Direito
Natural, laicizando o conhecimento jurídico, enquanto expressão de uma metafísica
transcendente e influenciada pela moral, objeto de investigação ainda parcialmente
incompatível com a objetividade do racionalismo científico cartesiano.

12
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. São
Paulo: Atlas, 1988, pp. 64-70.
13
Ibidem, p.65.

15
“Estava configurado, pois, um dos caminhos para uma ciência no estilo moderno, isto
é, como procedimento empírico-analítico. Não, é verdade, com o mesmo rigor de Descartes e
Galileo, mas num sentido que podemos chamar de pragmático, em que modelos de Direito
Natural são entendidos não como hipóteses científicas a verificar, mas como um exemplo,
paradigma que se toma como viável na experiência”.14
Assim, não restaria por isolada esta tentativa de emprego do método racionalista no
conhecimento do fenômeno jurídico, apresentando-se posteriores propostas, orientadas por
outros métodos e diversas concepções quanto ao seu objeto.
“Na passagem do século XVIII para o século XIX, há uma mudança no quadro das
teorias científicas, já preparada na ciência renascentista, na dúvida cartesiana e na necessidade
de fundar o conhecer a partir de si próprio.”15
Presentes estavam as condicionantes para o aparecimento da dogmática jurídica como
proposta, em si mesma, de uma ciência do direito, oferecida pelos adeptos do positivismo
jurídico, a qual se baseava no concurso simultâneo de três elementos metodológicos: estrita
delimitação de seu objeto, estruturação de um sistema fechado e emprego deste sistema como
método.
O objeto, então, compreenderia as expressões da norma jurídica positiva, excluindo
todas as demais formas de conhecimento, inclusive outros conhecimentos relativos à
juridicidade, visando a um maior rigor instrumental em sua análise.
Mas, por meio do positivismo científico, é que as idéias da modernidade científica,
dentre elas a concepção do pensamento sistemático, migram para as chamadas ciências do
espírito, constituindo-se a contaminação da Jurisprudência (ciência do direito) meramente
num próximo passo.
A adoção da idéia de sistema colocou-se, então, na posição de principal ferramenta
epistemológica a garantir à ciência do direito o critério da racionalidade, que transportaria o
conhecimento acerca do jurídico para o status da cientificidade moderna.
“O sistema significa, pois, aqui, muito mais do que mera clareza e facilidade de
domínio de certa matéria; significa a única maneira possível por que o espírito cognocente
consegue ficar seguro da verdade: o critério da ‘racionalidade’ intrínseca, preocupação
imprescindível da verdadeira racionalidade”.16

14
Ibidem, p.68
15
Ibidem, p.71.
16
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, p. 12.

16
Consolida-se a dogmática jurídica, ciência do sistema normativo oficial e vigente, na
qualidade de verdadeiro saber acerca do direito, coerente com as exigências metodológicas
rigorosamente empregadas e seguidas no período.
A sua estrutura estaria configurada num sistema lógico fechado, do qual decorre a
exigência de acabamento, ou seja, a ausência de lacunas – reflexo da ideologia racionalista,
apóstola de uma coerência perfeita entre o real e o racional, obtida na indefectibilidade de
seus sistemas17.
“Nesta totalidade, que tende a fechar-se em si mesma, as lacunas (aparentes) devem
sofrer correção num ato interpretativo, não pela criação de uma lei nova especial, mas pela
redução de um caso dado à lei superior na hierarquia. (...) Neste sentido, toda e qualquer
lacuna é efetivamente uma aparência. O sistema jurídico é necessariamente manifestação de
uma unidade imanente, perfeita e acabada, que a análise sistemática, realizada pela
dogmática, faz mister explicitar”.18
Enfim, resta a “característica desta concepção que está na base do desenvolvimento da
ciência dogmática”, a qual “revela a continuidade da tradição dos séculos XVI, XVII e XVIII:
trata-se da idéia do sistema como um método, como um instrumento metódico do pensamento
dogmático no direito”.19
A construção da ciência do direito como ciência dogmática, expressão de um sistema
lógico-normativo, esteve originariamente ligada às necessidades de segurança da sociedade
burguesa, contra o arbítrio reinante nas eras do Absolutismo, que provocava a insegurança nas
decisões judiciárias, já duramente criticada pelos pensadores iluministas. Daí surgirem a
escola dos exegetas, na França, e a doutrina dos pandectistas, no mundo germânico.
“A tarefa do jurista, que se torna tipicamente dogmática, a partir daí circunscreve-se
cada vez mais à teorização e sistematização da experiência jurídica, em termos de uma
unificação construtiva dos juízos normativos e do esclarecimento dos seus fundamentos,
descambando, por fim, já ao final do século XIX, para o positivismo legal, com uma auto-
limitação do pensamento jurídico ao estudo da lei positiva e ao estabelecimento da tese da
estatalidade do direito.”20

17
O racionalismo jurídico, desta feita, consolidou sua imagem do direito como sistema: uma ordem coerente,
imposta às relações entre os homens dentro de determinado âmbito social e baseada sobre uns tantos princípios
norteadores. Cfr. SALDANHA, Nelson. “Racionalismo jurídico, crise do legalismo e problemática da norma”.
Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. Recife: 10: 203-216: jan./dez., 2001, p.204.
18
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Op. Cit., nota 13, p. 80.
19
Ibidem, p. 81.
20
Idem. Ibidem.

17
Vislumbra-se clara identificação pela dogmática entre conhecimento jurídico e técnica
jurídica, através do privilégio metodológico da interpretação lógico-dedutiva da norma,
transformando-se o mister do cientista do direito na elaboração de elementos conceituais ou
lógico-formais a serem empregados no sistema normativo.
“Nesta circunstância, o direito unia-se ao detentor do poder e à classe que o havia
conquistado, arriscando-se transformar-se em sua voz, de sorte o que toda esta operação
político-jurídica, uma operação de poder, historicamente relativa, de solução contingente,
própria de determinado jogo de forças históricas, foi projetada até o paraíso dos modelos
absolutos e se converteu na melhor solução possível para hoje e amanhã, graças às
potencialidades jusnaturalistas que foi impregnada. Estabeleceu-se como conforme à natureza
aquilo que era tão-só o instrumento inteligente e lúcido para a manutenção do poder
conquistado a duras penas.”21
A criação do positivismo jurídico como construção ideológica legitimante do modo-
de-ser capitalista, trouxe à tona instrumento voltado a imunizar a racionalidade contra a
contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer fosse Deus, a religião ou a
tradição, a metafísica ou a ética, ou ainda as utopias ou os ideais emancipatórios. Ao passo
que, as irracionalidades do capitalismo passam a poder coexistir e até conviver com a
racionalidade moderna, desde que se apresentem como regularidades (jurídicas ou científicas)
empíricas22.
Esta estrutura, sob a bandeira da cientificidade, serviu à proteção do modelo político-
social burguês, impregnado pela doutrina do laissez-faire, representando “a inserção do jurista
no marco do Estado moderno. Sendo o direito um meio de controle social, manejado pelo
Estado, o jurista, enquanto intérprete vinculado a este direito, converte-se num colaborador da
vontade estatal”.23
Uma vez consolidado o método do positivismo jurídico do século XIX, passou-se a
“entronizar a forma como critério de validade das normas, apagando-se a distinção que
sempre foi essencial entre legitimidade e legalidade”.24
Este culto à forma, posta como elemento essencial ao funcionamento do sistema
lógico-normativo, tornar-se-ia o ponto chave para a próxima e derradeira concepção da
dogmática jurídica como expressão de uma ciência do direito.

21
GROSSI, Paolo. Absolutismo jurídico y derecho privado nel siglo XIX. Barcelona: Universitad Autónoma de
Barcelona, 1991, pp.12-14. Apud AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalismo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp.14-15.
22
SANTOS, Boaventura de Souza. “Para uma concepção pós-moderna de direito”. In SANTOS, Boaventura de
Souza. Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000, p.131
23
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Op. cit., nota 21, p.15.
24
SALDANHA, Nelson. “A revolução francesa e o pensamento jurídico-político contemporâneo”. In Revista de
Informação Legislativa, Brasília: 27 (105): 173-180, jan./mar. 1990, p. 178.

18
A partir do o início do século XX, acentuam-se as preocupações metodológicas
inauguradas pelo legalismo positivista, o que leva Kelsen, sob a influência do resgate
metodológico do neokantismo 25, à elaboração de sua Teoria Pura do Direito, na qual
pretendia elaborar “uma ciência tão sólida quanto o pareciam ser as ciências naturais” - cujas
disposições terminavam por assimilar a justiça à legalidade.26
“O racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria kelseniana, expressão máxima do
positivismo jurídico, é uma repercussão ideológica de sua época, é uma conseqüência da
decadência do mundo capitalista liberal, marcada pela Primeira Guerra Mundial. Para a
ciência jurídica, segundo esta doutrina, não importa o conteúdo do direito. Isto porque, como
ensinam Machado Neto e Legaz y Lacambra, essa teoria, fruto da época denominada
‘racionalização do poder’, devia reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo
político diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que exibia nos povos europeus
ocidentais”.27
Ou seja, desenvolvia-se uma teoria aplicável a qualquer ordenamento jurídico, dentro
das pretensões universalistas do modelo cartesiano, amparada num formalismo exacerbado e
no conceito puro de norma jurídica, sem questionamentos axiológicos ou teleológicos, na
autêntica tentativa de fundamentação autônoma de uma ciência do direito, livre das
influências dos demais conhecimentos científicos ou filosóficos, o que retoma a idéia dos
sistemas lógicos fechados, herdada do positivismo.
Tal como observado por Boaventura Santos “[a] dominação jurídica racional é
legitimada pelo sistema racional de leis, universais e abstractas, emanadas pelo Estado, que
presidem a uma administração burocratizada e profissional, e que são aplicadas a toda a
sociedade por um tipo de justiça baseado numa racionalidade lógico-formal28”.
Em continuidade a esta condição, Hans Kelsen, ao elaborar sua Teoria Pura do Direito,
traz para si um duplo mister, consistente na elaboração de uma teoria sobre o fenômeno
jurídico, baseada na utilização de métodos familiares às ciências formais e da natureza, mas
que fosse concebida por meio de uma estrutura conceptual unitária e representativa da
emancipação da ciência do direito, em relação a outros ramos do saber.
Para tanto, proclama: “A ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora, por assim
dizer – o Direito e descrevê-lo com base no seu conhecimento. (...) Também é verdade que,

25
“O neokantismo compreende a si próprio, guiado pela sua compreensão formalista de Kant, como uma teoria
do conhecimento ou, mais precisamente, como uma teoria das condições formais das proposições sobre o dever
ser jurídico”.Cf. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno, 2 ed. revista. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1967, p. 680.
26
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Op. cit. nota 21, p.15.
27
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 7ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p.
105.
28
SANTOS, Boaventura de Souza. Op. cit., nota 22, p. 132.

19
no sentido do conhecimento de Kant, a ciência jurídica como conhecimento do Direito, assim
como todo o conhecimento, tem caráter constitutivo e, por conseguinte, ‘produz’ o seu objeto
na medida que o apreende como um todo com sentido.” 29
A concepção do objeto de estudo como um todo (unidade) composto por
conhecimentos apreendidos e estruturados conforme um sentido (ordem) já pressupõe, em si,
a adoção da idéia de sistema pela teoria pura kelseniana.
Neste sentido, buscando a pureza de sua investigação e a emancipação da ciência do
direito (dogmática jurídica – para Kelsen) como saber autônomo, ele elege a norma jurídica
lato senso, pertencente ao plano abstrato do dever-ser (sollen), tomada em sua expressão
positiva (emanada pelo Estado), para o papel de objeto de estudo, elaborado nos moldes do
método sistêmico.
“Determinando o Direito como norma (ou, mais exatamente, como sistema de normas,
como ordem normativa) e limitando a ciência jurídica ao conhecimento e descrição de normas
jurídicas e às relações, por estas constituídas, entre fatos que as mesmas determinam,
delimita-se o Direito em face da natureza e a ciência normativa, em face de todas as outras
ciências que visam o conhecimento, informado pela lei da causalidade, de processos reais.
Somente por esta via se alcança um critério seguro que nos permitirá distinguir univocamente
a sociedade da natureza e a ciência social da ciência natural”.30
O sistema proposto por Kelsen como mais adequado a seu objeto de estudo, composto
exclusivamente por normas de direito, na opinião do mestre vienense, não seria uma
construção axiomática-dedutiva fechada, nos moldes do sistema adotado por ciências formais,
v.g., a matemática.
Isto porque denomina o sistema de seu objeto como empírico, vez que os fatos
materiais (sein) provacariam alterações na dinâmica do sistema normativo, por meio de um
mecanismo lógico desencadeado pela subestrutura formal hipótese de incidência, sem jamais
um conceito ou dado externo penetrar no sistema de normas.
O referido mecanismo é chave ao funcionamento da doutrina do positivismo jurídico
kelseniano, pois satisfaz o estudioso, no que concerne à caracterização empírica de seu
sistema cognitivo, apenas com o mero contato entre realidade material e as estruturas
abstratas, representada pela coincidência entre a verificação fenomenológica e a previsão
normativa.

29
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp.
81-82.
30
Ibidem, pp. 84-85.

20
Conforme foi visualizado acima, o sistema objeto de conhecimento da ciência jurídica
é composto de normas jurídicas derivadas umas da outras, restando um questionamento: qual
a origem das primeiras normas? Questão esta, cuja resposta implicaria na construção de um
ápice para sua hierarquia normativa, dando o acabamento ao seu sistema de normas.
Kelsen, então, desenvolve a Grundnorm31– o axioma máximo de seu sistema
normativo, sua hipótese limite, a norma primitiva e gênese das outras, hierarquicamente
inferiores. Uma construção epistemológica que permite a operação de seu sistema.
Neste diapasão podemos caracterizar o sistema kelseniano, a partir de elementos
próprios à sua construção metodológica, de maneira individualizada:

1) “o sistema é constituído por normas jurídicas, cuja compreensão da natureza


destas (segundo a teoria kelseniana) levará à compreensão da sua concatenação
unitária no sistema;
2) a origem da concatenação é a norma fundamental, sobre a qual se funda a
validade de cada norma individual;
3) por fim, Hans Kelsen distingue exatamente o direito positivo da ciência do
direito, acertando as relações entre o sistema de normas jurídicas (que é o sistema
existente no interior da realidade do direito) e o sistema das proposições jurídicas
(isto é, o sistema criado pela ciência do direito para descrever o direito positivo)”.
32

No entanto, diante da estrutura acima descrita, pondera Nelson Saldanha que, “com o
kelsenismo, a idéia de direito como técnica entraria em conexão com um radical formalismo
epistemológico, que descartava a velha idéia ôntica do direito embora descartando também
todas as questões éticas e ideológicas. Este formalismo fundado na consideração da norma e

31
“Se toda a norma provém de norma – em rigor inexiste a produtividade normativa do fático – o conjunto, que é
o sistema, é, ontologicamente, em si mesmo bastante. Mas há o problema do começo normativo do sistema. Para
o sistema normativo, que alcançou a forma estatal, o início está na Constituição. Mas onde provém a
Constituição positiva, qual o fato constituinte, o proto-fato que, por isso mesmo que não era suporte fático de
nenhuma norma – que não existia – dá origem ao direito constitucional? Ou esta questão é metajurídica,
transistemática, transcendente ao sistema positivo, ou esse está Grundfaktun e é suporte de alguma norma. Como
o sistema requer um ponto-origem, e não se dilui numa seqüência interminável de antecedentes, há que
determinar-se, por uma necessidade gnosiológica, numa forma fundante, que não é positiva, por não ter uma
sobrenorma da qual é aplicação. É uma hipótese-limite, que confere conclusividade ou fechamento ao conjunto
de normas que é o Direito.” VILANOVA, Lourival. “Teoria da norma fundamental (comentários à margem de
Kelsen)”. In CAVALCANTI, Teófilo (org.). Estudos em homenagem a Miguel Reale. São Paulo: USP e RT, s/d,
p.19.
32
LOSANO, Mario G. La nozione di sistema in Kelsen. [Texto para o curso de teoria geral do direito de Recife –
Material para uso interno. Exemplar fora do comércio.] Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 1998, p.
27. Tradução livre do autor.

21
sobretudo de sua dimensão lógica, colocou o prestígio da dogmática jurídica em novo
plano.”33
Vittorio Denti identifica tal postura adotada pela dogmática jurídica, em destaque a
dogmática processual, com “a ideologia jurídica que dominou a ciência do direito em toda a
primeira metade do século e que encontrou sua expressão nas grandes obras sistemáticas,
familiares a todos os estudiosos”.34
Acrescenta tratar-se “de uma ciência aparentemente neutra, voltada à elaboração de
princípios e categorias dotados de intrínseca validade conceitual, qual sejam a jurisdição, a
ação, a coisa julgada, o ato processual, o procedimento, a lide, a questão etc”.35
À dogmática jurídica, nos moldes fortemente consolidados na primeira metade do
século passado, não importa, portanto, a procura por conceitos ontologicamente vinculados ao
objeto de estudo e situados além dos limites sistêmicos: “o que estrutura o sistema não é, pois,
o nexo orgânico dos institutos, mas o nexo lógico dos conceitos”.36
Preencher o sistema – enquanto construção formal, metodologicamente adotada –
apenas de dados relativos ao seu objeto (coerentes e não-contraditórios) constituiu-se na tarefa
do teórico que pretendesse atribuir a pureza científica aos estudos sob sua chancela, inclusive,
o jurista.
Voltando-se a analisar esta postura dos doutrinadores do direito, incluindo a si
mesmo, afirma o professor Souto Borges que “Direito é – para nós – irredutivelmente sistema.
Um sistema hipotético-dedutivo à maneira das ciências naturais, experimentais. Sistema que
expressa a unidade de um complexo de normas imantado no mundo do dever-ser. À unidade
do complexo normativo corresponde, enquanto critério de demarcação e delimitação da
própria ciência jurídica, o monismo do objeto de conhecimento. Essa ótica monista,
característica da ciência moderna, necessariamente procede a um ‘corte’ epistemológico,
redutor da complexidade substancial do real à unidade formal da perspectiva de cada ciência
que sobre ele se verte”.37
Este distanciamento artificial entre o conhecimento sobre o ordenamento normativo e
a realidade em que ele está inserido foi objeto de crítica por Mauro Cappelletti nos traços em
que entende ser a construção dogmática, no perfil em que privilegia o formalismo em sua
atividade de estudo “uma supersimplificação da realidade; o direito e o sistema jurídico eram

33
SALDANHA, Nelson Nogueira. “Ciência histórica do direito e conhecimento histórico”. In Revista
Acadêmica. Recife: LXVII: 355-370. 1971, p. 367.
34
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milão: Edizioni di Comunità, 1971, tradução livre do
autor, p.17.
35
Idem. Ibidem.
36
LARENZ, Op. cit., nota 17, p. 7.
37
BORGES, José Souto Maior. O contraditório no processo judicial. Uma visão dialética. São Paulo:
Malheiros,1996, p.46.

22
olhados exclusivamente em seu aspecto normativo, enquanto se negligenciavam seus
componentes reais – sujeitos, instituições, processos e, mais genericamente, seu contexto
social”.38
Foi esta concepção dogmática do direito, sob a roupagem da teoria pura de Kelsen e
seus critérios de extrema racionalidade, que influenciou a formação dos sistemas jurídicos
atuais, v.g., o brasileiro, e que, ainda hoje, predomina na mentalidade dos estudiosos do
direito e dos seus operadores, privilegiando investigações sobre questões formais e sobre a
coerência lógica interna dos institutos componentes do sistema jurídico positivo.
A operacionalização do ordenamento jurídico restringia-se à interpretação da norma,
em primeiro lugar, para aplicá-la à hipótese fática relacionada ao objeto da lide e esta estava
configurada como um cálculo conceitual sob uma estrutura dedutiva, fundado sobre a idéia de
um sistema fechado, completo e hierarquizado, mediante um método voltado à certeza e à
objetividade científica39.
Destarte, a apresentada condição da ciência do direito, produziu insatisfações de toda a
sorte, permeadas ao longo dos grupos sociais – dos aglomerados populares aos doutrinadores
preocupados com o destino de seus estudos – em demanda por um saber sobre o direito que
não se restrinja a mergulhos introspectivos, mas também busque ser instrumento à correção e
à realização do próprio sistema jurídico.
E uma das fontes de insatisfação, como não poderia deixar de ser, materializou-se na
ciência do direito processual, que aos resquícios de sua busca por emancipação, restou por
negligenciado a missão do processo, na qualidade de realizador do direito substancial, ante à
pretensão resistida, concentrando no estudo exclusivo de construções abstratas – ainda que
fundamentais à sua operacionalidade – tais como a jurisdição, a relação processual, e ação.
“O pensar o direito, no entanto, tornou-se um pensar pelo próprio pensar. Um pensar
distante da causa que o levou ao cogito do direito. Toda teoria que nega a sua causa distancia-
se dos seus verdadeiros fins, isto é, dos fins relacionados com sua causa. Foi o que aconteceu
com o direito processual. A demonstração da autonomia do direito de ação, é certo, foi
importante para o evoluir do direito processual, como todo o pensar teórico tem sua
importância para a cultura. O que não é possível é que em nome da ciência exista o
esquecimento do homem40”.

38
CAPPELLETTI, Mauro. “Os métodos alternativos de solução dos conflitos no quadro do movimento
universal de acesso à justiça.” trad. José Carlos Barbosa Moreira. In Revista de Processo. São Paulo: 74 (19):
82-97, abr./jun. 1994, p.82.
39
CAPPELLETTI, Mauro. “L’acesso alla giustizia e la responsabilità del giurista”. In Studi in onore di Vittorio
Denti, vol. I, Pádua: Cedam, 1994, p. 265.
40
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas de processo civil. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999,
p.18.

23
A teorização profunda dos postulados jurídico-processuais e a decorrente insatisfação
gerada pela realização imperfeita das promessas do processo, na sua função de instrumento de
realização das pretensões resistidas, abriram portas ao questionamento do sistema jurídico
processual e da dogmática, em novo campo para as investigações doutrinárias.
É abalada, portanto, a confiança originada na ideologia presente entre os doutrinadores
do processo e os operadores jurídicos, perante a qual os problemas ou questionamentos de
ordem extra-sistemática – antes, plenamente ignorados; hoje, excluídos por opção
metodológica ou postos na posição de margem de erro “aceitável” perante o funcionamento
do sistema normativo – por força da insuficiência do ordenamento positivo e da ciência
processual, não fornecem as respostas às demandas decorrentes de novos direitos ou de
situações decorrentes de transformações culturais, econômicas, políticas, enfim, sociais.
Da quebra da fé no sistema legal vigente e nos saberes da doutrina dogmática surge a
interrogação quanto ao futuro dos estudos jurídicos.

2.3. Sombras de uma pós-modernidade sobre o direito como objeto de estudo.

Nos dias de hoje, apresenta-se como tema corrente em nossos meios acadêmicos o
questionamento sobre o advento da pós-modernidade, na qualidade de movimento
questionador dos poderes da Razão sobre os fenômenos do universo.
Fala-se do pós-modernismo como uma nova corrente em matéria de pensamento, arte,
crítica, epistemologia e vários outros ramos do saber humano.
Concebida, majoritariamente, como uma superação do modernismo, possui já seu
próprio e sério plantel de teóricos – Vattimo, Baudrillard, Lyotard e Feyrabend, dentre outros
– que não só consideram o pós-modernismo como uma periodização histórica, bem como a
maneira de pensar e abordar a questão, ademais, com termos característicos que propõem
novos enfoques, tais como: desconstrução, alternativas, perspectivas, indeterminação,
descentralização, dissolução, diferença.41
Neste ambiente, proliferam-se as insatisfações acerca da afirmada universalidade e
coerência do modelo racionalista, originadas no desencantamento com seu método e na
escassez de resultados palpáveis.
Os fenômenos continuam a se espalhar e a se multiplicar pelo universo, mas a
probabilidade do racional já não é suficiente para o estabelecimento de suas relações de causa
e efeito.

41
PEYRANO, Jorge W. “El derecho procesal postmoderno”. In Revista de Processo. São Paulo: 81 (21): 141-
145, jan./mar. 1996, p. 141. Tradução livre do autor.

24
Os físicos não detêm o controle sobre os movimentos das partículas elementares, os
geneticistas debruçam-se sobre os mistérios da configuração do ADN, os economistas já não
calculam as reações do mercado global e os meteorologistas perdem-se nas conseqüências do
El niño. O que terá havido com a Ciência?
Que fazer, quando enfrentamos problemas modernos para os quais não há soluções
modernas42?
Será que a Razão, modernamente concebida, encontra seus limites nesses confins de
milênio, abrindo espaço para o triunfo de sua nêmesis: a irracionalidade e seus saberes
místicos, astrológicos, emocionais e religiosos?
Não cremos. A condição de pós-modernidade não vem retirar a Razão da sua posição
de interface com os fenômenos da realidade para substituí-la por uma “pedra filosofal” idônea
a servir de chave para a abertura de todas as questões, de todos os problemas. Antes, sua
atitude é de crítica ao modelo vigente e de proposta de reciclagem.
Desse modo, “o que está em crise não é a ciência, não é a racionalidade, não é a
tecnologia. Mas toda uma imagem ou ideologia da ciência que no-la apresentou como o único
conhecimento verdadeiro, (...), como detentora do saber concebível, como detentora do Poder
pelo Saber, de todo o poder que o homem é capaz neste mundo, na medida em que o domina e
o transforma pelo conhecimento ou apropriação racional de suas leis”.43
A “crise” vem a atingir as estruturas sistêmicas da ciência: o mito da coerência lógica
necessária do racional com o real sucumbe diante das lacunas do sistema, antes artificialmente
desprezadas, e a universalidade cai ao se deparar com novas questões para as quais o sistema
não obtém respostas em si mesmo.
“Neste sentido, a atual crise da Razão constitui a manifestação de uma revolta da
racionalidade contra a racionalização, cujo resultado mais visível é o desencadeamento de um
processo de desrazão”.44
O que está em jogo é o racionalismo e suas implicações metodológicas, inócuo
quando o problema envolve a apreensão dos novos fenômenos, apenas parcialmente
apreensíveis pelo método cartesiano.

42
SANTOS, Boaventura de Souza. Op. cit., nota 23, p.28.
43
JAPIASSU, Hilton. Op. cit., nota 10, p.184.
44
Ibidem, p. 99.

25
Não poderia a dogmática jurídica (expressão da racionalização moderna) escapar aos
efeitos desta dinâmica questionadora, sendo inevitável a ruptura de padrões de unidade
(universalidade) e ordem inerentes a seu sistema.
Corolários das definições kantianas de sistema45, a presença dos caracteres da ordem e
da unidade espelha o conteúdo racional que vem a preencher o pensamento sistemático.
Neles, a noção de sistema, antes mera construção formal, encontra as bases para se
tornar verdadeiramente uma ferramenta hábil, a ser utilizada no processo de construção das
teorias científicas.
Embora indissociáveis – em estreita relação de intercâmbio – estas qualidades
requerem uma análise individual, de modo a demonstrar a sua importância na formulação das
teorias sistêmicas como estratégias metodológicas adotadas pela concepção que entende a
dogmática jurídica como único saber científico sobre o direito.
“No que respeita, em primeiro lugar, à ordenação, pretende-se, com ela – quando se
recorra a uma formulação muito geral, para se evitar qualquer restrição precipitada – exprimir
um estado das coisas intrínseco, racionalmente apreensível, isto é, fundado na realidade. No
que toca à unidade, verifica-se que este factor modifica o que resulta já da ordenação, por não
permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deixá-
las reconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais”.46
Senão vejamos: o entendimento que o fenômeno, objeto de estudo, organiza-se
segundo a forma de um sistema, assim passível de apreensão e domínio pela razão humana,
pressupõe que aquele não ocorra de modo aleatório, mas siga um conjunto de princípios
fundamentais e leis gerais, logicamente coerente e oculto, esperando sua descoberta47 por
meio de insight ou por rigorosa investigação.
“O positivismo é a consciência filosófica do conhecimento-regulação. É uma filosofia
da ordem sobre o caos tanto na natureza como na sociedade. A ordem é a regularidade, lógica
e empiricamente estabelecida através de um conhecimento sistemático. O conhecimento
sistemático e a regulação sistemática são as duas faces da ordem. O conhecimento sistemático
é o conhecimento das regularidades observadas. A regulação sistemática é o controlo efectivo

45
Desenvolvido e empregado pelos filósofos que serviram aos mais diversos ramos do conhecimento científico,
o sistema ainda tem por determinantes as definições clássicas apresentadas por Kant que caracterizou o sistema
“como ‘a unidade, sob uma idéia, de conhecimentos diversos, ou, se se quiser, a ordenação de várias realidades
em função de pontos de vista unitários’ ou também como ‘um conjunto de conhecimentos ordenados”.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 2ª ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 10.
46
Ibidem, p.12.
47
O que recorda famosa frase atribuída a Albert Einstein, a qual afirma não ser conceptível que Deus jogue
dados com o universo.

26
sobre a produção e a reprodução das regularidades observadas. Formam, em conjunto, a
ordem positiva eficaz, uma ordem baseada na certeza, na previsibilidade e no controlo48”.
Este conjunto consubstancia-se no critério da ordenação, em virtude do qual são
elaboradas as subestruturas formais que irão compor o sistema e fazê-lo operar.
A unidade, por seu, turno, decorre de umas das tendências proclamadas pelos teóricos
da modernidade cientifica, qual seja a emancipação dos ramos do conhecimento em saberes
estanques, com vistas à pureza do objeto.
O sistema deve reunir, dentro de si, todos os dados pertinentes ao seu funcionamento,
excluindo quaisquer outros que comprometam a coerência interna de seus conceitos. É
suficiente em si mesmo.
Não importa, portanto, para os pensadores restritos à pureza do racionalismo moderno
a procura por conceitos ontologicamente vinculados ao objeto de estudo e situados além dos
limites sistêmicos: “o que estrutura o sistema não é, pois, o nexo orgânico dos institutos, mas
o nexo lógico dos conceitos”.49
Preencher o sistema – enquanto construção formal, metodologicamente adotada –
apenas de dados relativos ao seu objeto (coerentes e não-contraditórios) consiste na tarefa do
teórico que pretende atribuir o controle metodológico de inspiração cartesiana aos estudos sob
sua chancela, inclusive, o jurista50.
No entanto, a dinâmica de questionamentos voltados contra a perfectibilidade dos
métodos racionalistas resvala seus efeitos sobre o modus operandi dos estudos jurídicos, onde
surge a lacuna por novas inserções epistemológicas que tenham por pretensão permitir ao
conhecimento produzido transformar seu objeto de estudo (o direito), de modo a produzir
novos benefícios a seus destinatários.
Novos direitos, novos conflitos de interesse, novos grupos organizados no seio da
coletividade, toda uma dinâmica a que estão sujeitas as sociedades, enquanto fenômeno da
realidade, a pressionar sua tutela pelo sistema normativo positivo, pondo à prova sua
capacidade operacional e questionando seus resultados.
“Em face das formas coletivas de conflito emergentes dos novos níveis de correlação
de forças entre grupos e classes sociais em luta, os conceitos básicos da Ciência do Direito
foram perdendo sua operacionalidade. E seus efeitos, sucedendo-se com intensidade cada vez

48
SANTOS, Op. cit., nota 23, p.131.
49
LARENZ, Op. cit., nota 17, p. 7.
50
A dogmática jurídica, entendida como ciência única (ainda que puramente formal) do direito tende a isolar, em
seu trabalho de sistematização e análise, aspectos puramente lógico-normativos do conjunto da vida social,
restritos à interpretação e análise das normas jurídicas positivas. Cf. SOUTO, Cláudio. Ciência e ética no direito.
Uma alternativa de modernidade, 2ª ed. revista e aumentada. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002,
pp. 14-15.

27
maior, bem como expressando a polarização do confronto entre ‘irracionalidade política’ e
‘racionalidade tecnocrática’, assumiram o caráter de uma crise global do modelo liberal de
organização do Estado, rompendo na prática com o efetivo equilíbrio de poderes”.51
Permanece, todavia, por resistência conservadorista dos doutrinadores e operadores do
direito vinculados à tradição positivista, o modelo adotado pela dogmática jurídica, nas
feições do racionalismo científico, em atividade de suporte ao seu ideal de sistema, tanto no
plano das operações lógico-interpretativas, como na estruturação formal do ordenamento
jurídico em vigor.
Assim, já assinalara Nelson Saldanha: “[a] sobrevivência do racionalismo, contudo,
terminou nos últimos dois decênios, por enlaçar-se ao tecnicismo e a tecnocracia,
descendentes do positivismo e cientificismo tão atuantes na origem da República”.52
Estes elementos é que estão sujeitos à crise do paradigma jurídico e as construções formais
deles decorrentes findam ineficazes à tutela dos interesses conflitantes.
Não interessa mais ao indivíduo a igualdade formal perante a lei e no curso da relação
processual: interessa-lhe a igualdade material, a divisão harmônica e equilibrada das forças,
situada em um plano alienígena ao sistema jurídico53.
Insuficiente também é a consagração do direito de ação no patamar de direito
fundamental estendido a todas as pessoas: descortina-se a existência de uma demanda de
trabalho dirigida a questões ainda mais complexas, a exemplo da admissão em juízo, tomada
como termo de maior amplitude, em que são enfrentados limites ao pleno exercício do poder
de provocar a atuação jurisdicional, decorrentes de repercussões culturais e econômicas.
Entretanto, é necessário o emprego de prudência na adoção de modelos
epistemológicos inspirados com freqüência em pensadores modernos divergentes – ou, como
gostariam de considerar-se eles mesmos, “pós-modernos” – da linha de Foucault, Derrida e
Lyotard, os proponentes da “desconstrução” em toda espécie de hermenêutica – pois a
utilização sem restrições de seus métodos anti-racionais levaria ao estado chamado por Mauro
Cappelletti de a filosofia da catástrofe54.

51
FARIA, José Eduardo. “A noção de paradigma na ciência do direito: notas para uma crítica ao idealismo
jurídico”. In FARIA, José Eduardo (org.) A crise do direito numa sociedade em mudança. Brasília: Universidade
de Brasília, 1988, p. 15.
52
SALDANHA, Nelson. “As constantes axiológicas da cultura e da experiência jurídica brasileira”. Anuário dos
Cursos de Pós-Graduação em Direito. Recife: 4: 71-83: jan./dez., 1988, p.79.
53
“O modelo legal racionalista, a que basta a igualdade meramente formal e que se utiliza de conceitos quase
casuísticos, como se observa com facilidade nas grandes codificações, não mais satisfaz e é substituído por um
novo modelo que vai buscar a igualdade material e utilizar-se-á cada vez mais de conceitos jurídicos imprecisos
(também chamados conceitos jurídicos indeterminados) (...)” Cf. CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à
Justiça: Juizados Especiais cíveis e ação civil pública: uma sistematização para a teoria geral do processo. Rio
de Janeiro: Forense, 1999, p. 21.
54
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit , nota 39, p. 83.

28
Qual a chave, então, para a sobrevivência do direito enquanto saber científico?
É importante ressaltar neste sentido a observação de Boaventura Santos, para quem “a
ciência em geral e as ciências sociais em especial atravessam hoje uma profunda crise de
confiança epistemológica. As promessas que legitimaram o privilégio epistemológico do
conhecimento científico, a partir do século XIX – as promessas da paz e da racionalidade, da
liberdade e da igualdade, do progresso e da partilha do progresso – não só não se realizaram
sequer no centro do sistema mundial, como se transformaram, nos países da periferia e da
semiperiferia – o que se convencionou chamar Terceiro Mundo –, na ideologia legitimadora
da subordinação ao imperialismo ocidental55”.
Em resposta à dualidade de forças, naturalmente confrontantes, formada pelo
isolamento epistêmico, próprio da condição de cientificidade, e pelo sentimento de frustração
gerado nas promessas não cumpridas da ciência moderna, surgiram posturas acadêmicas
dedicadas à crítica consistente dos modelos positivos e à busca de novos conhecimentos.
Tal sentimento contaminou o conjunto de técnicas e saberes denominado de ciência do
direito, não mais restritos à técnica, mas preocupados com as demandas postas pela sociedade
e não atendidas pelo sistema normativo vigente, fazendo surgir correntes de pensamento
resistente à continuidade da postura exclusivamente formal da dogmática jurídica.
Destas, a mais consistente, ao nosso ver, é a que se compõem de dois elementos, a
interdisciplinaridade, como alternativa à incompletude dos sistemas racionais, e a integração
axiológica, no papel de norteador de seus resultados.
“[O] princípio da efetividade é uma conseqüência da nova concepção social da
Rechtsstat, pois esta concepção nos obriga a reconhecer e a tratar de superar a insuficiência da
idéia de um tratamento eqüitativo ante à lei, meramente formal56”.
Remover a ideologia que envolve os conhecimentos jurídicos, principalmente àquela
relativa à infalibilidade dos sistemas lógicos, e permitir o permeio de dados advindos de
interseções com outros ramos e modelos de conhecimento, é um primeiro passo ao resgate da
razão em torno da esperada cientificidade do saber sobre o direito.

55
SANTOS, Boaventura de Souza. “Introdução Geral à coleção”. In SANTOS, Boaventura de Souza (org.),
Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, p. 14.
56
CAPELLETTI, Mauro. “Reflexiones sobre el rol de los estudios procesales”. In Revista de Processo. São
Paulo, a16, n.64, pp.145-157, out/dez, 1991, p.148.

29
2.4. Uma abordagem axiológica sobre o fenômeno processual como alternativa à insuficiência
do modelo lógico-formal vigente.

Diante dos efeitos da crise da Razão (ou perspectiva pós-moderna, como preferível)
sobre o sistema jurídico, ressurge o elemento axiológico, por muito tempo afastado da esfera
científica do direito, sob a chancela da pureza metodológica adstrita aos modelos
racionalistas.
A abordagem valorativa, informada por caracteres internos e externos ao sistema,
resgata o contato do sujeito de direito, fruto da cultura, com sua dimensão histórica,
permitindo a quebra do rigor formalista e a materialização de resultados não vinculados a
conclusões tomadas a priori, tampouco sujeitos a leis que artificialmente os distanciam das
demandas dos grupos.
Surge como um fenômeno que vem a sacudir a ciência do direito, inaugurando uma
fundamental abertura a uma cosmovisão muito mais ampla57.
A partir desta postura, insere-se o estudo do direito no cerne de uma apreensão que
une as tarefas de investigação conceptual e estruturação hermenêutica dos sistemas a um novo
método histórico-comparativo e contextual58.
“Toda a concepção de direito tem raízes históricas bem definidas, que se há de ter em
vista, querendo-se compreender o direito positivo, que deve, precisa ser respeitado, mas não
convertido em dogma, porque histórico, perfectível, suscetível de ser ultrapassado pelos
acontecimentos, embora nele possam traduzir-se idéias capazes de sobrepairar os tempos e
suas vicissitudes, de que constituem exemplos os direitos humanos. Estes, por seu turno,
também devem ser vistos no fluxo histórico, como resultantes das lutas sociais e do
aperfeiçoamento da consciência moral, e não idealizados nas constituições e nos códigos, para
que não se perca sua conexão com a realidade social, onde se há de afirmar a sua
efetividade”.59
A relação de contato entre os estudos processuais e a referida dimensão valorativa tem
sua origem identificada por Cappelletti nos estudos e na ideologia presentes na elaboração da

57
BERIZONCE, Roberto Omar. Efectivo acceso a la justicia. Buenos Aires: Platense, 1987, p. 11. Tradução
livre do autor.
58
“Histórico-comparativo, porque a análise dos dados e as propostas de reforma devem ser visualizadas num
quadro que contenha as grandes tendências evolutivas e as exigências da sociedade moderna, bem assim
valorizadas em conformidade com tais tendências e exigências. Contextual, porque os problemas jurídicos
deverão ser examinados em seu contexto social, econômico, político e cultural”. Cfr. CAPPELLETTI, Mauro.
“Prologo” In BERIZONCE, Op. cit, nota 57, p. XIII, tradução livre do original italiano e grifos pelo autor.
59
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Op. cit. nota 22, pp. 22-23.

30
norma processual austríaca de 1895, fruto de um império com ambições políticas e
acadêmicas de proporções mundiais60.
Tal missão é atribuída a Franz Klein, idealizador e elaborador do então Código de
Processo Civil da Áustria (Zivilprocessordnung - ZPO), o qual expressamente admitia como
meta da reforma legislativa por ele proposta a tentativa de viabilizar um sistema processual
que se tornasse simples, sem custo, rápido e acessível para os pobres, abraçando um valor de
larga amplitude: a justiça social61.
“O enfoque de Klein vem a se centralizar na coletividade, considerando como conflito
social mesmo o litígio puramente de caráter privado, a reclamar rápida solução pelo direito
positivo, principalmente em vista de seus reflexos gerais sobre a tutela dos interesses do
Estado e da sociedade. 62”.
Segundo Cappelletti, o paradigma social imposto por Klein na elaboração,
sistematização e aplicação da ZPO austríaca demonstrou a posição do processualista vienense,
perante a qual os progressos no desenvolvimento das normas processuais, se vistos em seu
significado real e profundo, aparecem conectados estreitamente com as transformações
culturais dos povos63.
Pois bem, constitui-se a efetividade, repercussão direta da aplicação do valor justiça
social ao que chamamos ciência do processo, no valor de maior repercussão na atualidade,
visto que se dirige à correção de relevante problema do sistema jurídico, desvendado pela pós-
modernidade: a incoerência material entre o resultado sistemática e racionalmente apontado,
bem como sua repercussão na realidade do indivíduo.
Mas é na dimensão do fenômeno processual que o valor efetividade demonstra a
clareza de sua atuação, vindo a substituir a justiça (enquanto expressão de coerência lógico-
formal e de aparente certeza cognitiva) em face de caracteres outrora ignorados pelo sistema
processual racionalista, tais como morosidade, insuficiência de infra-estrutura, poder
econômico e desigualdades estruturais.
“As palavras chaves para esta nova concepção social de justiça e de lei têm sido a
efetividade do acesso: acesso para todos ao sistema legal, aos seus direitos, liberdades e
benefícios; acesso aos instrumentos, incluindo os tribunais, que possam fazer valer aqueles
direitos, liberdades e benefícios de forma significante e efetiva64”.

60
Cfr. CAPPELLETTI, Mauro. “Social and Political Aspects of Civil Procedure – Reforms and Trends in
Western and Europe” In Michigan Law Review, v.69, n.5, abril, 1971, p. 858.
61
Idem. Ibidem.
62
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997, p.50.
63
CAPELLETTI, Mauro. Op. cit. nota 56, p.146.
64
Ibidem, p.147.

31
Isto porque o direito processual, tal como todas as expressões do direito, emerge como
expressão da cultura vigente em uma época, além da simplista concepção de direito como
pura norma positiva, quando na verdade deveria ser tratada na qualidade de expressão da
tendência evolutiva social e política, ou, em uma palavra, cultural65.
A tutela jurisdicional dos direitos retoma o cogito científico do direito processual no
momento em que este estudo é orientado pela efetividade, promovendo a reabilitação da
temática do resultado jurídico-substancial do processo e conduzindo a uma relativização do
binômio direito-processo, em reflexo da ruptura dos sistemas processuais.66
Neste ponto, o arraigado formalismo, decorrente da imersão dos saberes acerca do
direito processual no exclusivo estudo das formas e das categorias abstratas, sede lugar a uma
opção metodológica que se dirige à saciedade das necessidades sociais.
Os princípios e categorias da ciência jurídica processual “são retirados da atmosfera
rarefeita da dogmática processual e encontram a sua posição sobre a realidade somente nas
propostas de reforma, inspiradas em critérios rigorosos de técnica processual, mas em tudo
esquecidos dos graves problemas de organização judiciária, de administração forense, de
assistência judiciária, que estão por trás de cada sério melhoramento dos institutos
processuais”.67
Tais características são próprias da chamada fase autonomista do direito processual,
ainda preocupada em justificar a existência em si do fenômeno processo, contextualizada com
o momento de separação entre o direito processual e o direito material, utilizando-se dos
exercícios de abstração necessários a tanto, mas perdendo-se no formalismo remanescente
numa época em que a questão ôntica da relação jurídica processual não mais preenche o foco
de estudo do processualista ora ligado às transformações epistemológicas apresentadas.
Faz-se oportuno destacar o fato que, através de uma apreensão histórica, a doutrina do
direito processual houve por bem fixar três fases metodológicas fundamentais, representativas
das linhas evolutivas do direito processual, na qualidade de saber sobre o fenômeno
litigioso68.
Uma primeira fase, cuja contextualização remonta até a primeira metade do século
XIX, concebe o fenômeno processual como mero meio de exercício dos direitos subjetivos –
numa visão eminentemente privatista – corolário da existência do direito material.

65
MORELLO, Augusto Mario. “El exemplo dos forjadores. La lección de Mauro Cappelletti”. In MORELLO,
Augusto Mario. El derecho y nosotros. La Plata: Libreria Editora Platense, 2000, p.97.
66
MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgência. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1994, p.11.
67
DENTI, Op. cit., nota 35, p.17.
68
Cfr. ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini.
Teoria Geral do Processo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pp.42-43.

32
Daí a conhecida expressão direito adjetivo, termo em cuja semântica está contida uma
preestabelecida relação de dependência ôntica entre o processo e o direito que gerou a
pretensão resistida. A ação era tida como reflexo do próprio direito subjetivo lesado,
permanecendo intimamente ligada a este, como parte integrante de seu conceito.
Não havia a noção de relação jurídica processual, independente da relação de direito
material, nem se tinha noção, em si, da autonomia do direito processual como ramo da ciência
do direito.
Seguiu-se uma segunda fase, chamada autonomista ou conceitual, onde são verificados
os arcabouços científicos do direito processual, inaugurada em 1868, com a obra Teoria dos
pressupostos processuais e das exceções dilatórias, de Oskar Von Büllow. Foi a fase das
grandes teorias processuais, da descoberta da natureza jurídica do direito de ação e do
processo, das condições da ação e dos pressupostos processuais.
Foi uma período de amadurecimento de um saber recém concebido, fortemente
dominado pelos progressos da doutrina alemã, no ínterim do qual complexas e bem
trabalhadas estruturas abstratas e diversos caracteres lógicos foram desenvolvidos para dar
sustentação e feição científica a este braço da dogmática jurídica.
Se viéssemos a falar, no auge deste período, em acesso à justiça, este significaria
apenas “o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria era
a de que, embora o acesso fosse um ‘direito natural’, os direitos naturais não precisariam de
uma ação do Estado para sua proteção. Esses direitos eram considerados anteriores ao Estado;
sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por
outros. O Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a aptidão
de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática69”.
Os doutrinadores dedicaram-se a um processo de auto-afirmação, em que o processo
deveria reconhecer-se dentro dos caracteres de cientificidade impostos à dogmática jurídica,
mister somente possível por meio de sucessivos exercícios de abstração a constituir suas
categorias formais.
“O sistema processual era estudado mediante uma visão puramente introspectiva, no
exame de seus institutos, de suas categorias e conceitos fundamentais; e visto o processo
costumeiramente como mero instrumento técnico predisposto à realização da ordem jurídica
material, sem o reconhecimento de suas conotações deontológicas e sem análise dos seus
resultados na vida das pessoas ou preocupação pela justiça que fosse capaz de fazer70”.

69
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., nota 1, p. 9.
70
ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini, Op.
cit., nota 68, pp. 42-43.

33
A fase ora reconhecida como em curso é nomeada de instrumentalista, assumindo
postura crítica diante de seu objeto, o direito processual.
Já há o pleno reconhecimento da autonomia do processo e do expressivo progresso na
criação e desenvolvimento de instrumentos operacionais tecno-dogmáticos, mas as mentes
dos estudiosos começam desmascarar as falhas do sistema processual em cumprir sua missão,
qual seja, promover a resolução concreta dos conflitos de interesses e satisfazer as demandas
sociais por justiça.
A autonomia do processo, contemporaneamente encarada com restrições que buscam
impedir seu isolamento conceitual e metodológico, diante do perigo de torná-lo
excessivamente abstrato em relação ao seu húmus substancial, significa uma certa abstração
de alguns aspectos deste direito face ao objeto substancial do processo; isso, porém não
significa, ao mesmo tempo, uma necessária abstração destas facetas do direito processual
relativamente a fundamentos extrajurídicos, extraprocessuais, culturais, políticos,
71
econômicos, ideológicos .
“Conquistadas as bases científicas do direito processual, consolidadas conceitualmente
suas categorias e seus institutos, estabelecida a autonomia do processo, civil e penal, em
relação ao direito material, os processualistas brasileiros puderam passar para outra fase
metodológica, eminentemente crítica72”.
Não mais pertencem os estudiosos do processo a um grupo destinado a ficar na
clausura das cátedras, dissecando construções formais e ocupando-se de ensaios de integração
hermenêutica, lógica ou analógica.
Inexiste lugar, do mesmo modo, para o pensamento dogmático que admitia a
existência, no sistema de normas, de lacunas e contradições, mas se permitia uma pretensiosa
capacidade de poder superar tais dificuldades, operando sob responsáveis valorizações e
escolhas, com ação exclusiva no interior das normas, mantendo intacta a pureza do
procedimento interpretativo73.
“O processualista moderno deixou de ser mero teórico das normas e princípios
diretores da vida interior do sistema processual, como tradicionalmente fora. Acabou-se o
tempo em que o direito processual mesmo era visto e afirmado como mera técnica despojada

71
CAPPELLETTI, Mauro. “A ideologia no processo civil”. In AJURIS. Porto Alegre, 23, 16-33, a. VIII, nov.,
1981, p, 29. Tradução do original “Ideologie nel Diritto Processuale”. In Rivista di Diritto Processuale, 1962,
por Athos Gusmão Carneiro.
72
GRINOVER, Ada Pellegrini. “Modernidade do direito processual brasileiro”. In GRINOVER, Ada Pellegrini.
O processo em evolução, 2ª ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 6.
73
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., nota 40, p. 266.

34
de ideologias ou valores próprios, sendo sua exclusiva função a atuação do direito
substancial74”.
Assume-se de maneira cogente a posição de que o processo não é um fim em si
mesmo, mas sim um instrumento voltado à realização dos fins da tutela dos direitos
substanciais, públicos e privados – em suma, a serviço do direito substancial, do qual tende a
garantir a sua efetividade75.
“Se é verdade que os conceitos filosóficos, políticos, culturais, ideológicos penetram,
diretamente ou través do direito substancial, no processo e na sua regulamentação concreta
[tutela jurisdicional], imprimindo a este certas direções, significados e desenvolvimentos que
a mera letra da lei não é capaz de revelar; se isto tudo é verdade, entendemos seguramente a
insuficiência metodológica do formalismo dogmático, que emerge freqüentemente dos
estudos a que nós juristas estamos familiarizados76”.
Tal condução de estudo imprime ao processualista, bem como ao operador do direito
esclarecido pelas conclusões deste momento de renovação, um perfil que o distancia do signo
conceitual de “doutor da lei” e o aproxima ainda mais dos apelos contidos nas pretensões
aduzidas em juízo, integrando sua solução pela apreensão das circunstâncias envolvidas, seja
nos âmbitos políticos, econômicos ou culturais.
“As clássicas garantias processuais, a partir de uma crise surgida na época
contemporânea, revelaram-se como adequadas às exigências de um processo ‘liberal’, mas
não a um processo ‘justo’. Na verdade, para que haja um processo justo não basta que diante
de um juiz independente e imparcial estejam duas partes em contraditório, de modo que o juiz
possa ouvir as razões de ambas; mas ocorre que estas partes deverão estar em condição de
paridade não meramente jurídica (que pode ser dita como meramente teórica), mas que
estejam em uma efetiva paridade prática, que podemos chamar paridade técnica e também
econômica77”.

74
DINAMARCO. Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, 3ª ed., tomo I. São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 302.
75
CAPPELLETTI, Mauro. “La dimensione ideologica e sociale”. In CAPPELLETTI, Mauro, Processo e
Ideologie. Bologna: Il Molino, 1969, p. 5. Tradução livre do autor.
76
Ibidem, pp. 29-30. A insuficiência do formalismo dogmático não significa necessariamente a sua invalidez.
Em certas circunstâncias pode ser justificada esta tendência do jurista, de limitar-se ao estudo das normas em
suas estruturas formais, prescindindo das necessárias e inevitáveis aberturas das normas ao complexo e
enigmático mundo dos valores. É uma tendência justificada quando concebida a partir de um pressuposto
bastante útil: a humildade metodológica, que admite a repartição de trabalho com outros conhecimentos, sob
pena de superficialidade e generalismo.
77
CAPPELLETTI, Mauro. “Libertà individuale e giustizia sociale”. In Rivista di Diritto Processuale. Padova, a.
27 (II serie), n. 1: 11-34, gen/mar,1982, p. 29. Tradução livre do autor.

35
Assim salienta Mauro Cappelletti, que a partir da abordagem axiológica sobre o
fenômeno processual, não deve mais o estudioso formalista desprezar como inválido qualquer
outro método que não o seu, mas antes aceitá-lo como integração necessária, visto que
somente assim poderá compreender o direito como elemento da história dos valores e das
idéias, que vivem e se movem em conjunto com outras idéias, em conjunto com a vida e com
a história do homem78.
E o faz baseado o entendimento de que “também no campo do processo, os direitos
sociais manifestam-se em complemento aos direitos clássicos de liberdade79”.
A partir do contato com a dimensão valorativa, os elementos formais da dogmática
processual renunciam à imagem de perfeição conceitual, uma vez que o estudioso afasta-se da
investigação intra-sistêmica, ao pretender prioritariamente a realização axiológica, través do
atendimento às demandas dos grupos societários e do valor máximo justiça social.

78
CAPPELLETTI, Mauro, Op.cit., nota 75, p.30.
79
CAPPELLETTI, Mauro, Op.cit., nota 77, p.29.

36
2.5. Mudança de paradigma: o processo na perspectiva dos “consumidores” da prestação
jurisdicional.

Advêm deste ambiente de crítica à modernidade incompleta, ou de pós-modernidade,


como prefiram os teóricos, em meio ao qual as atividades valorativas e os conhecimentos
interdisciplinares surgem como remédio para as lacunas e falhas do sistema jurídico
processual, novos enfoques, propostas e perspectivas, caracterizadas pelo “vigente
desinteresse doutrinário por empreender estudos totalizadores vinculados ao exame dos
pilares processuais (as noções de ação, jurisdição e processo) e pelo paralelo empenho em
analisar problemáticas mais concretas”.80
Entre estas propostas está o enfoque metodológico do acesso à justiça sobre o
fenômeno do processo jurisdicional, proposto pelo Prof. Mauro Cappelletti, por meio do qual
o estudioso do direito processual “não se limita a estender sua análise das normas aos
institutos e seu modo de operar, como já o fizeram, com méritos, as várias correntes do
pensamento realístico moderno; mas tal análise realística e funcional concentra-se nos
‘consumidores’, antes que nos ‘produtores’ do sistema jurídico.”81
Método este caracterizado como instrumento crítico, em primeiro lugar, inspirador de
mudanças no plano acadêmico, em que arraigadas posturas formalistas dão lugar a estudos
centrados na materialização dos direitos fundamentais por via de um adequado funcionamento
do aparelho processual, seja no tocante a seus institutos abstratos, seja em relação às
condições de fato necessárias à atividade jurisdicional justa e efetiva.
Num segundo lugar, na importante tarefa de ser base teórica fundamental a inúmeras
propostas de reforma do sistema normativo, direcionadas a tornar efetivo novos e antigos
direitos, com vistas ao resgate do papel fundamental do Judiciário e à restauração da
confiança da população nas instituições jurídicas e no adequado feed back da jurisdição aos
anseios sociais, econômicos, religiosos, políticos, em suma, culturais, implicitamente inclusos
em cada pretensão em juízo.
“Como movimento de idéias, o acesso à justiça exprimiu uma potente reação contra
uma imposição dogmático-formalística que pretendia identificar o fenômeno jurídico
exclusivamente no complexo de normas, essencialmente de derivação estatal, em um
determinado país82”.

80
PEYRANO, Jorge W. Op. cit. nota 42, p. 144.
81
CAPPELLETTI, Mauro. “Acesso alla giustizia come programa di riforma e come metodo di pensiero”. In
Rivista di Diritto Processuale. Padova, 27 (2): 233-245, abr/jun,1982, pp.244-245. Tradução livre do autor.
82
CAPPELLETTI, Mauro. “L’acesso alla giustizia e la responsabilità del giurista”. Op.cit., nota 40, p. 265.

37
É neste ponto, pois, que se destaca o caractere revolucionário do movimento pelo
acesso à justiça, não somente sobre o plano das ações práticas, revertidas em propostas de
reforma dos ordenamentos processuais, mas, sobretudo, sobre o plano epistemológico, ao
apresentar um novo método de pensamento, em particular, um método de análise jurídica, ora
compromissado com os valores de efetividade e justiça social.
Opção metodológica esta, cujo referencial inicial está nos valores de justiça social da
norma processual austríaca de Klein, afastada do lugar-comum da dogmática jurídica e
preenchida por conhecimentos intra-sistêmicos e por dados relativos aos consumidores do
serviço judiciário, fornecidos por, v.g., investigações econômicas ou sociológicas.
Põe-se, então, distante da “pureza” científica albergue da ideologia liberal, mas
promove uma nova cientificidade, próxima às demandas sociais não atendidas pelo regime
anterior.
“A análise volta-se, então, para as partes e para os administrados, em lugar dos juízes,
legisladores e administradores: não do modo como estes últimos sempre foram vistos pela
ciência do direito, mas sob uma nova luz, relacionada com a demanda dos consumidores. E
assim, a partir dos consumidores, são analisadas as necessidades não satisfeitas, o relativo
‘bargain power’, os tipos de relações e de interesses sob litígio e em virtude dos quais se pede
a tutela, as garantias constitucionais, os problemas sócio-econômico-culturais, os obstáculos,
em suma, ao acesso”.83
Esta mudança quanto à centralização de foco das análises jurídicas, introduzida na
intenção de expandir os estudos acerca do processo para além dos limites atuais da dogmática
jurídica processual, foi inspirada na obra do jusfilósofo norte-americano Edmond Cahn84,
expressamente reconhecido por Cappelletti como um dos precursores do movimento pelo
acesso à justiça.
Dentro da supracitada idéia de conhecimento interdisciplinar, através da qual os
sistemas racionais se interagem na tentativa de preencher as lacunas uns dos outros, o
subsistema jurídico-processual recebe a invasão de conhecimentos econômicos,
antropológicos, psicológicos e sociológicos.
Estes saberes tornam-se aliados da luta pelo acesso à justiça (fenômeno amplamente
informado pelo valor efetividade), ao passo que quebram os ícones da perfectibilidade e
universalidade do sistema processual, informando os resultados substanciais da atividade
jurisdicional e apresentando os anseios dos excluídos ou menos favorecidos pelo sistema.85

83
Idem. Ibidem.
84
CAHN, Edmund. “Law in the consumer perspective”. In University of Pensylvania Law Review, n.112, 1963,
pp. 1,9 Apud CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., nota 81, p.245.
85
Cfr. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Op.cit., nota 1, pp.7-8.

38
“O que se propõe, portanto, é um novo método de pensamento a ser perenemente
aplicado na interpretação dos textos, dos casos particulares e do sistema processual em si
mesmo. Superada a fase ‘conceitual’ do direito processual civil e não sendo mais objeto de
preocupações a sua autonomia nem prevalecendo a visão interna do sistema, cada vez mais
nítida se torna a necessidade de encarar o processo de uma perspectiva teleológica,
instrumentalista, com o reconhecimento de sua importantíssima missão perante a sociedade e
suas instituições políticas.”86
O redirecionamento epistemológico que decorre deste conjunto de novos conceitos e
paradigmas, apresentado por Cappelletti à ciência processual, rompe com a tradição
estritamente racionalista do sistema processual – a qual tem sua atenção dirigida unicamente à
norma processual e seus institutos formais, confiante na repercussão material surgida de
qualquer ajuste operacional no plano lógico-sistêmico ou de limitadas inserções de cunho
hermenêutico.
Da mesma maneira, implica numa crucial troca de postura em relação aos operadores
do sistema jurídico, em especial os magistrados, alçando o valor efetividade da prestação
jurisdicional ao patamar de relevância suficiente a integrar rol dos critérios a serem
observados quando da atividade de resolução dos conflitos de interesse.
“A velha concepção consistia em ver o direito na pura perspectiva dos ‘produtores’, e
de seu produto: o legislador e lei; o juiz e o pronunciamento judicial; a administração pública
e o ato administrativo. A concepção do acesso consiste, ao contrário, em dar preeminência à
perspectiva do ‘consumidor’ do direito e da justiça: o indivíduo, os grupos e sociedades, e
portanto também aos obstáculos (jurídicos, mas também econômicos, políticos, culturais) que
se interpõem entre o direito entendido com ‘produto’ (lei, sentença, ato administrativo) e a
justiça entendida como demanda social daquilo que é justo. Assim como na economia,
substitui-se no direito, ou pelo menos deveria substituir-se, uma concepção concentrada no
supply side, por uma visão mais realística, na qual se insere igualmente, e assume grande
importância o demand side 87”.
Através dessa metodologia, o processo não é mais encarado como um fim em si
mesmo, como sua expressão predominante de ato de império, pelo qual o Estado faz cumprir
as suas normas, reestruturando a “ordem” na esfera social.

86
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores,
1996, p.303.
87
CAPPELLETTI, Mauro. “Acesso dos consumidores à justiça”. In TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.).
As Garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, pp. 324-325.

39
A jurisdição é apresentada, sob este enfoque, na qualidade de prestação de um serviço
público, vez que é dever do Estado promover a paz social pela heterocomposição dos
conflitos, por ter assumido o monopólio desse mister 88.
Como serviço de natureza pública, é direito dos consumidores (jurisdicionados) que
lhes seja prestado de modo eficiente, rápido e efetivo (numa clara dimensão teleológica de
origem valorativa).
“É precisamente esta nova perspectiva que melhor se adapta, obviamente, à sociedade
democrática livre, aberta, a qual deve pretender que os seus official processors cumpram a sua
função não com uma visão ‘ptolemaica’ do direito e do Estado, mas tendo em vista o bem-
estar dos consumidores: é como dizer que o direito e o Estado devem ser vistos por aquilo que
são – simples instrumentos a serviço dos cidadãos e de suas necessidades e não o contrário.”89
Neste ponto, o acesso à justiça atinge o núcleo da dogmática processual e transforma
os papéis do estudioso do processo e dos atores da relação processual.
Assim, explanando seu novo método para os estudos do processo civil, Cappelletti90
apresenta-nos um argumento de Galanter91, o qual entende ser a perspectiva sobre o fenômeno
jurídico centrada exclusivamente na figura do Estado uma espécie remanescente de
“Ptolomaismo” na seara dos estudos jurídicos.
Analisemos o conteúdo metodológico por trás deste entendimento.
Originada nos primórdios da ciência ocidental, a concepção de Ptolomeu sobre a
estrutura do universo, vigente durante longo período como a única aceita pelos acadêmicos,
recebendo a chancela oficial da Santa Sé, situava a Terra como o centro do sistema cósmico,
em torno do qual se formavam e se moviam os planetas e demais estruturas celestes – era o
geocentrismo.
Em contraste com esta acepção, surgiram as teses de Copérnico, Bruno e Galileo, que
ousaram retirar a Terra da posição central no axioma das esferas celestes, mesmo diante dos
riscos pessoais aos quais se submeteram, pondo o Sol como figura central na estrutura do
sistema planetário e demonstrando através de cálculos e experimentos as razões que levaram
ao estabelecimento de um novo modelo – o heliocentrismo.

88
Em regra geral, quando não tratar a hipótese apresentada de um dos meios alternativos à solução das
pretensões resistidas, previstos na legislação processual, tais como a conciliação e a arbitragem.
89
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit. nota 80, p.245.
90
Idem. Ibidem.
91
“[T]he state-centered view of legal phenomena is a kind of legal Ptolemaism”. GALANTER, M. “Justice in
many roons”. In CAPPELLETTI, Mauro (org.). Acess to justice and the welfare state. Alphen aan den Rijn:
Bruxelas, Stuttgart, Florença, 1981, p.147.

40
Tal mudança de paradigma, apresentada no início deste capítulo, ilustrou a alteração
de toda uma condição epistemológica em vigor, consolidando o modelo científico próprio de
inspiração liberal-burguesa.
Com a devida venia e sem querer ser presunçoso, o mestre Cappelletti utiliza deste
argumento analógico, comparando a dogmática tradicional ao modelo espacial “ptolemaico”,
preso à limites sistêmicos e a crenças não correspondentes à evolução da ciência de sua era.
No mesmo sentido, propõe o enfoque do acesso à justiça como substituto aos métodos
tradicionais organizativos da ciência do processo e do sistema de normas processuais, num
âmbito de atuação além das meras propostas de reforma, com repercussões operadas ao nível
da epistemologia.
Bem assim, exige o novo método mudanças na postura dos doutrinadores e operadores
do direito, que deverão deslocar parcialmente sua atenção do objeto estritamente normativo
para o atendimento aos anseios dos destinatários do processo – as partes – passando a analisar
a natureza de suas demandas, o tipo de pretensão envolvido, a existência de demandas
reprimidas, os efeitos do tempo despendido e do custo do processo no patrimônio dos
litigantes etc.
“O movimento do acesso à justiça, como enfoque teórico, embora certamente
enraizado na crítica realística do formalismo e da dogmática jurídica, tende a uma visão mais
fiel à feição complexa da sociedade humana. A componente normativa do direito não é
negada, mas encarada como um elemento, e com grande freqüência, não o principal, do
direito. O elemento primário é o povo, com todos os seus traços culturais, econômicos e
psicológicos92”.
Temas antes relegados ao plano político, mas sem nenhuma repercussão que atendesse
na realidade às questões postas, agora fazem parte do dia-a-dia dos professores universitários,
estudantes de direito, advogados, membros do ministério público e magistrados, a inquietar as
mentes por respostas e impulsionar estudos direcionados à transformar o sistema judicante
para o bem de seus usuários e cumprimento de seu dever de solucionar conflitos, com
efetividade e justiça social.

92
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit. nota 38, p.83.

41
Via de conseqüência, o dever da academia e daqueles profissionais da práxis forense
“[n]ão se trata ora de submeter os dados do processo a uma análise meramente abstrata e
neutra (ou aparentemente neutra) indagando-o de maneira abstrata e formal – buscando uma
mera ‘exegésis’ de palavras, ou simetrias e construções geométricas de sistemas –; senão de
ver, de maneira mais realística e responsável, seus efeitos dinâmicos e concretos na sociedade,
à luz das exigências e tendência reformadoras, de valores individuais e sociais descobertos
através de análises que com freqüência assumem necessariamente caráter histórico-
comparativo e sociológico93”.
Antes de operacionalizar seu objeto de estudo, ou seja, de aplicar seus princípios e
postulados à materialização de um litígio, o processualista deve retirar, por um instante, o
fenômeno processual das cátedras, das bibliotecas e das equações lógicas, fazê-lo “pisar no
chão” e dialogar com os anseios das comunidades, de modo a renovar-se como instrumento à
realização de direitos, em especial os novos direitos sociais e difusos.
Eis aqui, caros leitores, o novo método de estudo do fenômeno processual, o método
do acesso à justiça.

93
CAPPELLETTI, Mauro. “Introducciòn.” In Proceso, ideologías, sociedad, trad. Santiago Sentìs Melendo
Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974, p. XVII. Tradução livre para o português pelo autor. Este
volume comporta a tradução para o espanhol das obras “Processo e ideolgie” e “Giustizia e società”

42
3. As três ondas do movimento do acesso à justiça segundo Mauro Cappelletti.

3.1. A primeira “onda” do movimento: assistência judiciária aos pobres. 3.1.1


Comentários sobre o cenário brasileiro da assistência judiciária. 3.2. A
segunda “onda”: a tutela dos interesses difusos 3.2.1. Interesses difusos no
Brasil: atual contexto das associações civis em ações civis públicas.. 3.3. A
terceira “onda”: do acesso à representação em juízo a uma concepção mais
ampla de acesso à justiça. Um novo enfoque.

Neste capítulo, daremos tratamento em especial à subdivisão metodológica


estabelecida por Mauro Cappelletti, em relação ao movimento do acesso à justiça,
caracterizando cada momento, ou “onda” (como prefere denominar o autor, em clara alusão à
obra de Alvim Tofler, A terceira onda), conforme o direcionamento da abordagem e a escolha
do objeto mediato de estudo.94
Momentos estes, segundo opinião do autor95, surgidos numa seqüência mais ou menos
cronológica, inter-relacionando seus conteúdos e objetivos, na demonstração das
transformações conceituais do acesso à justiça, como paradigma a ser aplicado no estudo do
fenômeno processual e norteador de projetos de reformas dos sistemas jurídicos processuais,
através do mundo ocidental.
“As mutações que neste período atingiram o processo civil desenvolveram-se em torno
de algumas significativas ondas renovatórias, com a abertura da ordem processual aos menos
favorecidos da fortuna e à defesa de direitos e interesses supraindividuais, com a
racionalização do processo mesmo como meio participativo e menos burocrático e sobretudo,
com uma significativa mudança de perspectiva: como nunca antes, os arautos dessas novas
tendências vêm propondo que se pense prioritariamente no consumidor dos serviços que
mediante o processo se prestam, muito antes que na figura dos operadores do sistema. O
processo civil moderno quer ser um processo de resultados, não um processo de filigranas96”.
Serão identificadas as características pertinentes a cada uma das “ondas” e suas
interseções com as reformas do ordenamento processual brasileiro, ressaltando a experiência
operacional dos institutos e procedimentos nelas inspirados, com um olhar peculiar sobre
ordenamento processual brasileiro.

94
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Nortfleet. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1988, p. 31.
95
Idem. Ibidem.

43
3.1. A primeira “onda” do movimento: assistência judiciária aos pobres.

Os primeiros esforços no sentido de propiciar a realização do acesso à justiça foram


no sentido de promover a prestação de serviços jurídicos aos mais carentes, partindo-se do
seguinte axioma: quanto mais desenvolvido o ordenamento jurídico nos moldes modernos,
maior a necessidade da presença de um advogado, indispensável nas difíceis tarefas de
interpretar leis cada vez mais complexas e de decifrar os detalhes procedimentais referentes
ao ingresso e à permanência em juízo.
A dogmática processual já incluíra, de modo geral e em todos os ordenamentos, a
capacidade postulatória como um dos pressupostos subjetivos necessários ao desenvolvimento
válido da relação processual, implicando na necessidade da presença de um “patrono” para
cumprir a função representar os interesses da parte perante as instâncias pretorianas.
Esta primeira “onda” apresenta-se nas circunstâncias de um sistema jurídico ainda
com uma forte influência das concepções de processo baseadas no paradigma racionalista
(formal e sistemático), para as quais o acesso à justiça estaria realizado a partir da garantia do
direito de ação, considerando suficiente a oportunidade, ainda que formal, de todos os
indivíduos provocarem os poderes do Estado-juiz para a solução dos conflitos.
“Na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial,
senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos,
necessários para ajuizar uma causa. Os métodos para proporcionar a assistência judiciária
àqueles que não podem custear são, por isso mesmo, vitais97”.
O acesso, nesta ótica, teria de haver por ampliado o seu conteúdo para um patamar
transcendente da mera garantia formal do livre exercício do direito de ação, reforçando os
meios de atuação dos prováveis litigantes, independentemente de sua condição sócio-
econômica.
À concepção liberal sob a qual ainda resistem fundar-se os pilares da dogmática
processual, as portas dos tribunais estariam abertas a quem porventura precisasse da tutela
jurisdicional, restando a mera tarefa de cruzar os portais, levantar a vista e dirigir sua
pretensão ao pretor.

96
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do código de processo civil. 3ª ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1996, p.22.
97
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op. cit., nota 94, p. 32.

44
Entretanto, Cappelletti insurge-se contra a falácia contida neste argumento, citando o
jurisconsulto romano Ovídio (Amores, livro III, vol. VIII, p.55), para quem “Curia pauperibus
clausa est” – as portas dos Tribunais estão fechadas e trancadas para os pobres98.
Mais uma vez, seria verificada a não correspondência entre os planos jurídico e
material, na medida em que encontramos, mediante breve mudança de enfoque, uma
“demanda reprimida” – no uso do jargão dos economistas – em relação à requisição da
prestação jurisdicional, ocasionada pela presença do fator desigualdade econômica.
Eis aqui o primeiro obstáculo material à implantação do acesso à justiça, a ser
superado: o obstáculo econômico.
“O fenômeno da pobreza – e com isto não quero dizer a pobreza econômica, como
também, por exemplo, a pobreza lingüística e cultural, sempre que represente um obstáculo
para efetiva – ao invés de ser a conseqüência de um infortúnio do qual a lei não pode assumir
nenhuma responsabilidade, deve tornar-se relevante tanto legal como processualmente99”.
As pessoas economicamente menos favorecidas vêem-se levadas a renunciar à defesa
de seus direitos diante do alto custo do processo, representado pelo pagamento de custas,
taxas e emolumentos judiciários, bem assim dos honorários advocatícios.
“Estudos revelam que a distância dos cidadão em relação à administração da justiça é
tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa distância tem
como causas próximas não apenas factores económicos, mas também fatores sociais e
culturais ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com
as desigualdades económicas100”.
Outrossim, deixariam de exercer o direito de ação por desconhecimento das
implicações jurídicas das relações interpessoais, inclusive com o Estado, nas suas esferas
patrimoniais, na ausência de maiores esclarecimentos advindos de uma consultoria jurídica.
É neste contexto que esta “onda” enfoca a assistência jurídica como meio à
consecução dos ideais de efetividade e acesso à justiça, escolhendo como seu objeto mediato
de investigação as diversas medidas, sejam de origem legal ou referentes ao incremento das
infra-estruturas do aparelho administrativo, voltadas à promoção do ingresso em juízo.
Figuram entre as supracitadas medidas sucessivos modelos estruturais, cujas vantagens
e desvantagens trataremos individualmente ao longo deste item.

98
CAPPELLETTI, Mauro. “Social and Political Aspects of Civil Procedure – Reforms and Trends in Western
and Europe” In Michigan Law Review, v.69, n.5, pp.847- 886, abril, 1971, p. 872.
99
CAPELLETTI, Mauro. “Reflexiones sobre el rol de los estudios procesales”. In Revista de Processo. São
Paulo, a16, n.64, pp.145-157, out/dez, 1991, p.148.
100
SANTOS, Boaventura de Souza. “Acesso à justiça” In Pela mão de Alice: o social e o político na pós-
modernidade, 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2001, p.170.

45
No decorrer de um longo período, que abrangeu vários séculos, a questão da
assistência jurídica aos menos favorecidos esteve restrita ao plano da charitas individual, mais
ou menos organizada, inspirada no conteúdo privatista do processo romano.
A questão da prestação da assistência jurídica àqueles que dela necessitassem, naquele
momento, era vista través de uma concepção onde identificava-se com a idéia de beneficência
e de graça: “Não era um dever jurídico do rico, nem muito menos do governante e do Estado,
senão tão-somente um dever moral e meritório do homem piedoso101”.
Enquadraram-se no contexto descrito os “patronos” do período romano pré-imperial,
bem como os “oradores” que os substituíram mais tarde, os quais empregavam sua riqueza na
atuação e defesa do indivíduo demandante, mas com todas as implicações de sujeição,
também política e moral, derivadas desta atividade clientelar.
Tantos os patronos, como os oradores, tendiam a aceitar e posteriormente exigir,
vistosos presentes de toda a sorte, especialmente em ocasião de certas festividades. A idéia
romana da assistência como munus honorificum, era menos altruísta e desinteressada do que a
imagem passada por seus conceitos102.
Ainda se fosse abstraída a relação de clientela vista acima, por meio da qual
permanecia o assistido vinculado ao senhor patrono por uma obrigação que ia além da mera
gratidão, deve ficar claro que a prestação do referido múnus estava diretamente submetida aos
livres critérios de escolha da vontade deste e restrito às parcelas de dispêndio e tempo por ele
definida, restringindo o alcance das medidas apenas a uns poucos indivíduos e deixando
tantos outros excluídos.
Não pretendia este modelo por fim ao problema, apenas amenizá-lo no estrito plano
das aparências.
Com a constituição da fase imperial o patrocínio judicial passou a ser remunerado
como qualquer outra atividade profissional, deixando à margem qualquer questionamento
neste sentido.
Ao longo dos séculos seguintes, qualquer tentativa de promover a assistência jurídica
acabava por se identificá-la com a caridade, surgindo alguns órgãos ligados às congregações
religiosas, de atuação bastante limitada.

101
CAPPELLETTI, Mauro. “Pobreza y justicia” In Proceso, ideologías, sociedad, trad. Santiago Sentìs
Melendo Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974, p.155-156.
102
Ibidem, p.155.

46
Isolados ordenamentos medievais, como era o caso o de Veneza, e algumas normas de
processo canônico continham disposições que autorizavam o juiz a nomear ex officio um
defensor à parte pobre, obrigando-o a assumir o patrocínio gratuitamente103, sob pena
privação do direito de advogar. Entretanto, era faculdade do magistrado decidir quando, quem
e para quem seria prestado o serviço honorífico, o que reduzia as hipóteses e, certas vezes,
constituía-se numa penalidade indireta à parte ou ao advogado.
“Por muitos séculos, a assistência legal à parte pobre – consistente, sobretudo, em
assegurar à parte os serviços de um defensor, normalmente um advogado, não obstante a
incapacidade da parte em pagar por tais serviços – foi concebida, desde o início, como um
dever moral de caridade, mas não como um dever jurídico, e não como um verdadeiro e
próprio direito da parte necessitada. Isto foi verdade até as vésperas da Revolução
francesa104”.
Com o advento da revolução francesa, as legislações liberais adotaram, ao nível de
postulados essenciais, duas idéias sobre as quais se estruturaram os seus sistemas processuais:
a abolição de qualquer privilégio de parte ante à jurisdição e a administração gratuita da
função jurisdicional pelos juízes.
Estes postulados enquadram-se na idéia de isonomia burguesa, preocupando-se o
jurista em promovê-los no âmbito abstrato do processo e excluindo qualquer menção à sorte
das partes no mundo material.
“[N]o plano da revolução burguesa, que empregava ao extremo todas as forças na
destruição das estruturas e privilégios feudais, satisfazia a afirmação de uma igualdade
política formal, que, sem embargo, não tem, todavia, nem pretende ter, uma coloração
social105”.
Estes dois ideais revolucionários não se pretendiam a resolver o problema social da
prestação jurisdicional aos menos favorecidos, deixando subsistir uma barreira ao exercício
dos direitos a eles conferidos pelo ordenamento: o custo do processo.
Afastada estava qualquer forma de remuneração do magistrado pelos litigantes, mas
persistiam as expensas de outras sortes, vinculadas à existência da lide, compreendendo taxas
e selos judiciais, honorários de peritos e outros auxiliares e despesas cartoriais.
Da mesma feita, restava por presente a obrigação de remunerar os procuradores
judiciais, profissionais liberais em atuação numa economia de mercado. É de ser ressaltado,

103
Ibidem, p.157.
104
CAPPELLETTI, Mauro. “Appunti per una fenomenologia della giustizia nel XX secolo” In Rivista
Trimestrale di Diritto Processuale. Milano, 32 (4): 1381-1433, dic., 1978, pp.1423-1424.
105
Ibidem, p.159.

47
ainda, que os advogados de maior prestígio, experiência e/ou competência, tenderiam, em
regra geral e nas circunstâncias citadas, a dedicar pouco ou nenhum tempo à atividade
assistencial, em detrimento de seu ofício remunerado.
Apenas com a formação dos modernos Estados sociais e de direito, os welfare states, é
que as atenções dos doutrinadores e representantes legislativos, sob a pressão de ter de
materializar os surgidos e reclamados direitos sociais, “decidiram por arrancar o véu da já
inaceitável, falsa e inócua ficção106”, relativa à mera garantia formal do direito de ação.
Surgiram por meio de reformas legislativas levadas a cabo na Alemanha e na
Inglaterra, ao princípio do século XX, sob regimes social-democratas e trabalhistas, sistemas
de assistência judiciária que proporcionavam patrocínio judicial de causas, por meio de
advogados particulares remunerados pelo Estado, extensivo a todos aqueles que pleiteassem o
benefício 107.
Modelos que identificavam a assistência judicial como espécie de benefício, posto no
rol dos benefícios de seguridade social108.
Era o início do chamado sistema judicare (judicial care system), o qual tinha por
intenção proporcionar ao litigantes de baixa renda a mesma qualidade de representação
possível se tivessem condições de pagar a um advogado109, sob o custeio de recursos oriundos
do orçamento público.
“A assistência, neste modelo, cobre a atuação em juízo de quem, havendo preenchido
os requisitos legais, requerer a defesa de seus direitos, a qual recai sobre advogados
cadastrados para prestação deste serviço, que serão remunerados mediante o pagamento de
indenizações por serviços prestados, fomentadas por um fundo especial criado pela lei110”.
É um modelo que apresenta características e vantagens próprias, como também
desvantagens características, relacionadas com a outorga do múnus publico a prestadores
privados, as quais analisaremos a seguir.
São características diferenciadoras deste modelo: a) sua extensão por força de lei –
ministerio legis – a toda uma parcela ou setor da população, em função de seus ganhos reais,
sem prejuízo de sua determinação individual por meio de órgão judicial ou administrativo; b)
o reconhecimento do direito dos beneficiários de escolher livremente seus advogados; c) a

106
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota 98, p.162.
107
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p.32.
108
CAPPELLETTI, Mauro. “Patrocinio para el pobre: Italia y Francia”. In CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota
98, p.193-197.
109
Ibidem, p. 35.
110
BERIZONCE, Roberto Omar. Efectivo acceso a la justicia. Buenos Aires: Platense, 1987, p.17. Tradução
livre do autor.

48
organização de ofícios governamentais e procedimentos burocráticos para reger e controlar a
prestação do serviço, com a participação dos conselhos de classe111.
O sistema de assistência jurídica francês, de 1972, vem a trazer inovações quanto à
amplitude do judicare, ampliando seu raio de atuação para algumas pessoas situadas acima
do nível de pobreza e admitindo, nos casos regulamentados como “particularmente”
importantes, o seu deferimento para qualquer indivíduo, independentemente de seu patamar
de renda112.
Entretanto, tais inovações, apesar de implicarem num acréscimo de 1/3 da
remuneração dos advogados participantes, aumentou por demais a demanda, o que deixou a
remuneração dos advogados cadastrados ainda fora de um nível desejável.
O modelo judicare, como um todo, apresenta algumas desvantagens, listadas por
Berizonce113, que devem ser levadas em conta: a) sua insuficiência para suprir às necessidades
da prestação do serviço em lugares distantes, onde não existam ou sejam poucos os advogados
instalados; b) os advogados independentes mantiveram uma mentalidade individualista e
conservadora, que não é passível da aceitação dos movimentos para a reforma dos sistemas
jurídicos; c) tampouco podem ser difundidos os novos direitos à população, em virtude de
limitações de ordem ética à publicidade dos serviços de advocacia.
A estas desvantagens acrescentamos outra, de ordem econômica: a variável capacidade
financeira – ou interesse político na sua realização – dos Estados na quantificação do
montante que irá recompor os serviços prestados, contextualizada com os custos de
manutenção pessoal e profissional presentes especificamente em cada local, pode levar a um
queda na oferta de advogados interessados neste seguimento, que poderão procurar outros
mais vantajosos na iniciativa privada, deixando o serviço para poucos idealistas ou
profissionais com dificuldades de inserção no mercado.
Da mesma forma, ainda que insignificante a aludida queda de oferta, eventuais
insatisfações com a recomposição oferecida seriam fonte de desmotivação aos profissionais
envolvidos, comprometendo a qualidade do serviço por diversas razões, desde um natural
desinteresse à diminuição das horas dedicadas ao cumprimento do múnus assistencial, em
virtude de atividades complementares voltadas ao incremento de suas receitas.
Finalizando a análise deste modelo, o próprio Cappelletti tece seus comentários de
ordem crítica, apontando vantagens e desvantagens, sob a ótica de um critério finalístico,
verificando a natureza dos direitos atendidos.

111
Idem. Ibidem.
112
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 37.
113
BERIZONCE, Roberto Omar. Op.cit., nota 109, p. 18.

49
“O judicare desfaz a barreira de custo, mas faz pouco para atacar as barreiras causadas
por outros problemas encontrados pelos pobres. Isso porque ele confia aos pobres a tarefa de
reconhecer as causas e procurar auxílio, não encoraja, nem permite que o profissional
individual auxilie os pobres a compreender seus direitos e identificar as áreas em que podem
valer de remédios jurídicos. É, sem dúvida, altamente sugestivo que os pobres tendam a
utilizar o sistema judicare principalmente para os problemas que lhes são familiares – matéria
criminal ou de família – em vez de reivindicar seus direitos como consumidores, inquilinos
etc114”.
Noutra fase, ainda com características do sistema anterior e no esteio de minimizar a
situação supra observada, foram criados, originariamente nos Estados Unidos e logo depois na
Inglaterra, os escritórios de vizinhança (Neighbourhood Law Centres), situados em zonas de
população maioritariamente carente.
Nestes locais, são os cidadãos atendidos principalmente por profissionais de dedicação
exclusiva, servidores públicos com remuneração fixa, os quais assumem tanto a satisfação dos
assuntos individuais, como a de problemas sociais e comunitários. Seu financiamento é feito
com aportes de autoridades locais, fundações privadas e fundos públicos especiais 115.
Estes órgãos eram voltados ao auxílio das pessoas menos favorecidas na reivindicação
de seus direitos, tanto dentro como fora dos tribunais116.
Trata-se de um modelo de transição, em que era atingido um grande progresso em
relação ao sistema judicare, no qual, além de serem apresentadas em juízos as demandas
trazidas aos advogados, trabalha no esclarecimento dos direitos porventura não realizados e
produz advogados especializados nos interesses de classe e nas questões comunitárias.
Restam aqui, como desvantagens principais, os problemas quanto à alocação dos
limitados recursos entre casos importantes para alguns e outros para uma perspectiva sócio-
comunitária – o que pode ocasionar uma prestação aquém do normalmente esperado, bem
como uma tendência a tratar os beneficiários de modo paternalista.
“A solução de manter equipes de advogados se não for combinada com outras
soluções, é também limitada, em sua utilidade pelo fato de que – ao contrário do sistema
judicare, o qual utiliza a advocacia privada – ela não pode garantir o auxílio jurídico como um
direito. Para sermos realistas, não é possível manter advogados em número suficiente para dar
atendimento individual de primeira categoria a todos os pobres com problemas jurídicos. Por
outro lado, e não menos importante, é o fato de que não pode haver advogados suficientes

114
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 38.
115
BERIZONCE, Roberto Omar. Op.cit., nota 109, p. 20.
116
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 40.

50
para estender a assistência judiciária à classe média, um desenvolvimento que é um traço dos
sistemas judicare117”.
Boaventura Santos complementa o texto anterior, dissertando que os estudos críticos
do sistema judicare “conduziram mesmo à criação de um sistema totalmente novo baseado
em advogados contratados pelo Estado, trabalhando em escritórios de advocacia localizados
nos bairros mais pobres das cidades e seguindo uma estratégia advocatícia orientada para os
problemas jurídicos dos pobres enquanto problemas de classe, uma estratégia privilegiando as
acções coletivas, a criação de novas correntes jurisprudenciais sobre problemas recorrentes
das classes populares e, finalmente, a transformação ou a reforma do direito substantivo118”.
Em outros países, como Suécia, Austrália, Canadá e Holanda, reformadores
instituíram sistemas que combinam os dois principais modelos de assistência jurídica, na
tentativa de aproveitar o que há de melhor em cada um deles, “nos quais centros de
atendimento jurídico suplementam os esquemas estabelecidos de judicare119”.
Neste estágio é que se encontram as pesquisas acadêmicas e os estudos de legislação
comparada, bem assim as propostas de reformas dos ordenamentos processuais, voltados à
criação de novos modelos ou do aperfeiçoamento daqueles ora em atividade, com vistas
eliminar as barreiras postas à representação em juízo dos economicamente desfavorecidos,
utilizando-se das vantagens apresentadas nos sistemas anteriores.
Mais uma vez, Cappelletti adverte120 para a existência de alguns limites materiais que
devem ser obrigatoriamente considerados na desenvoltura dos projetos dirigidos à realização
da assistência jurídica:

1) para sua implantação, é necessária a existência de um grande número de


advogados no local, num montante que comumente pode exceder à oferta
disponível, especialmente em alguns países em desenvolvimento;
2) mesmo presumindo haver advogados em número suficiente, no país, é preciso que
eles se tornem disponíveis para auxiliar aqueles que não podem pagar por seus
serviços, fazendo necessárias altas dotações orçamentárias;
3) a assistência judiciária, ainda que em disponibilidade perfeita, não é hábil a lidar
com questão das pequenas causas individuais, visto estarem economicamente
limitados, quando altos são os riscos de serem sucumbentes;

117
Ibidem, p.43.
118
SANTOS, Boaventura de Souza. Op.cit., nota 99, p. 172.
119
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p.45.
120
Ibidem, p.47.

51
4) por fim, observa que o modelo de advogados de vizinhança (servidores públicos
vinculados a determinado órgão) dirige-se à necessidade de reivindicar os
interesses difusos dos pobres, enquanto classe, ao passo que outros importantes
interesses difusos, tais como os dos consumidores e da proteção ao meio ambiente,
não recebem, via de regra, a atenção destes órgãos.

Transpor estes limites e aferir os graus de eficiência dos modelos de assistência


jurídica adotados e de satisfatividade destes em relação aos usuários são os novos campos de
propagação para esta primeira “onda” do movimento pelo acesso à justiça.

3.1.1 Comentários sobre o cenário brasileiro da assistência judiciária.

A questão da promoção de assistência judicial aos indivíduos economicamente


desfavorecidos também integra a realidade dos estudos jurídicos e das construções legislativas
no Brasil, visto que, é facilmente sensível, entre nós, como em todas outros países em
desenvolvimento, na qualidade de obstáculo à realização do acesso à justiça.
No sistema processual decorrente de nosso ordenamento, via de regra, é patente a
necessidade da presença de um advogado a postular em nome da parte, para que a relação
processual possa formar-se validamente, pelo preenchimento do pressuposto processual
subjetivo da capacidade postulatória.
Há, inclusive, menção expressa no Estatuto da Ordem dos Advogado do Brasil, Lei n°
8.906, de 4 de julho de 1994, artigo 1°, I – lei federal em sentido estrito – estabelecendo a
atividade de postular pretensões perante qualquer instância do Poder Judiciário, como
privativa dos profissionais de advocacia, devidamente cadastrados em seu órgão de classe e
no gozo de pleno exercício de seus direitos profissionais, salvo exceções previstas ao longo da
legislação121.
Segue o mesmo norte a disposição do artigo 4° da norma citada acima, por meio da
qual são reputados nulos os atos privativos de advogado praticados por pessoa não
enquadradas nos requisitos listados supra, sem prejuízo de responsabilização penal,
administrativa e civil.
Em contradita, é inegável a existência de extensos bolsões de pobreza em nosso país,
bem como significativo número de pessoas identificadas como vivendo abaixo da linha de

121
O STF, no julgamento de medida liminar na ADIn n° 1.127-8, reconheceu a constitucionalidade do
dispositivo citado, excluindo expressamente de sua aplicação as demandas postuladas perante os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, à Justiça do Trabalho e à Justiça de Paz (esta ainda não implantada, apesar de
constitucionalmente prevista); nestes, a capacidade postulatória pode ser suprida pela própria parte.

52
pobreza, convivendo com caracteres de profunda miséria. Pessoas que mal têm acesso à
direitos fundamentais, tais como saúde, emprego, moradia, educação, estando boa parte delas
numa fração de instrução compreendida entre o analfabetismo absoluto e a educação
fundamental incompleta.
Então o que dizer de participação igualitária em litígios processuais se o própria
estrutura do Estado de Direito, englobando todo o sistema normativo e não apenas o
subsistema processual, é gênese de exclusão social?
Se, como já vimos, a concepção liberal-burguesa de direito não se adeqüa aos
problemas do mundo contemporâneo, a adoção de um sistema processual nela inspirado não
pode continuar imune a mudanças, principalmente na América Latina, em que as grandes
promessas da modernidade nunca deixaram de ser, decerto e sobre a visão do método
apresentado no capítulo anterior, meras abstrações retóricas.
A existência em paralelo de altos níveis de pobreza e de um sistema processual
tradicionalmente vinculado aos moldes formais do racionalismo liberal europeu, configuram
ambiente que demanda por reformas cuja finalidade seja implantar modelos de assistência
judiciária.
Essas características, contudo, também denotam o tamanho das dificuldades a serem
enfrentadas para a implantação e funcionamento destes modelos no dia-a-dia dos pobres em
seus conflitos de interesses levados à jurisdição.
Ressalto, antes do mais, o fato de significante parcela da população estar à margem do
próprio sistema legal, com grande possibilidade de transcorrerem todo o período de suas vidas
sem realizar interseções com a burocracia racional que o representa, salvo questões de
responsabilidade criminal ou de benefícios assistenciais e/ou previdenciários.
O que dizer então de obstáculos no acesso aos serviços judiciais, se muitos poderão
terminar sua existência sem jamais pensar em participar de um processo judicial, como
autores ou réus? As portas dos tribunais estão trancadas, assim como está o restante do
aparelho burocrático estatal para o grupo assinalado.
Entretanto, para não fugirmos à questão objeto deste item, dediquemo-nos à crítica dos
modelos de assistência judiciária presentes na ordem normativa brasileira.
Refiro-me a “modelos”, porque, nos dias atuais, convivem harmoniosamente institutos
com características particulares às três fases evolutivas dos sistemas de assistência, cada qual
apresentando conteúdo contextualizável ao período de sua criação, com a similaridade de não
ter havido uma implantação eficiente para todos.

53
Por uma opção metodológica, preferimos não apresentar nas breves linhas deste
trabalho as diversas facetas da assistência no decorrer dos momentos históricos da sociedade
brasileira, restringindo-nos a comentar os modelos ora em vigor, com asserções na legislação
que os implantou.
Os comentários seguintes, em virtude das mesmas razões, cingir-se-ão ao chamados
modelos oficiais (sob a tutela do estado) de assistência jurídica, em momento algum
menosprezando as importantes ações neste sentido levadas a efeito pelas universidades, pelas
igrejas, pela sociedade civil em geral.
A Constituição Federal vigente assume a prestação da assistência jurídica122, esta
englobando o auxílio judicial e extrajudicial, consagrando esta norma diretriz entre os direitos
e garantias fundamentais do cidadão, por integrá-la ao inciso LXXIV do seu artigo 5°.
Garantia fundamental esta que teve por obrigação ser instrumentalizada por órgãos
administrativos e leis inferiores, sob o perigoso risco de juntar-se às outras garantias formais
de inspiração liberal, presas à dimensão das normas de direito, mas não realizadas no plano
material.
A primeira delas é a Lei n.° 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, Lei da assistência
judiciária ao necessitados, um modelo ainda plenamente em vigor, cujo conteúdo engloba em
si feições do primitivo sistema do munus honorificum, associadas a características diretas do
sistema judicare.
O primeiro ponto que gostaríamos de ressaltar é o critério utilizado para identificar
dentre os cidadãos quais aqueles beneficiários do regime instituído por esta lei.
Tal critério pauta-se exclusivamente pelo princípio da boa-fé, exigindo para o
deferimento do benefício simples declaração unilateral da parte, afirmando não estar em
condições econômicas que lhe permitam arcar com os valores necessários ao pagamento de
custas e de honorários advocatícios, sem a implicação de prejudicar o sustento próprio ou de
sua família.
A referida declaração poderá ser impugnada pela parte adversa, sujeitando-se o
declarante de má-fé à revogação dos benefícios e à condenação ao pagamento do valor
equivalente a dez vezes o valor fixado para as custas iniciais.
Inexiste, portanto, a utilização de qualquer critério numérico, enquadrando os
beneficiários conforme o estabelecimento de faixas de rendimento ou fixando um valor teto

122
“Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se ao brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos seguintes termos:
............................................................................................................................................
LXXIV – O Estado prestará a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem a insuficiência de
recursos;” (Grifo nosso)

54
para este enquadramento: a seleção está submetida a critérios subjetivos, relacionados ao
binômio rendimentos mensais versus condições de dignidade na manutenção própria ou de
sua família, a cargo de apreciação judicial.
Uma vantagem – em favor do requerente dos serviços assistenciais – é que a
presunção legal, neste caso, opera-se no sentido favorável à concessão.
Noutro ponto, uma vez outorgada a condição de beneficiário, é concedida completa
isenção de todas as despesas processuais, bem como do pagamento de honorários, sejam ao
advogado patrono de sua causa, sejam ao advogado da outra parte, nos casos em que aquele
seja sucumbente (vencido) em sua pretensão.
Um terceiro ponto a ser analisado é voltado à questão dos advogados que prestarão a
assistência e ao modo de remuneração a ser utilizado. O regime instituído pela lei em comento
(Lei n° 1.060/50), neste sentido, aplica-se a três hipóteses distintas de atuação assistencial.
A uma, são cadastrados profissionais liberais de advocacia, por ente administrativo de
Estado-membro ou município com funções de organizar e fiscalizar os serviços de assistência,
para o desempenho do múnus de assistencial, mediante o pagamento de um valor
indenizatório fixo, cabendo-lhes o recebimento, com o trânsito em julgado da ação, de
honorários a cargo da parte vencida.
Ali está constituída a figura do chamado advogado de ofício ou, como
costumeiramente acostumamos a designar, membro da “assistência judiciária”, em alusão ao
referido órgão administrativo. Este modo de atuar é hoje encontrado em certos municípios, de
maneira suplementar ou complementar aos órgãos de defensoria, a exemplo dos programas
atualmente mantidos pelo Município do Recife.
Esta hipótese contém as características suficientes a configurar a adoção de um
modelo assistencial nos moldes do judicare.
A duas, há a suposição de não haver serviço de assistência organizado pelos entes
governamentais ou destes serviços não estarem disponíveis aos moradores de uma
determinada comarca.
Eram nomeados pelo magistrado nestes casos profissionais dentre os indicados pelas
seccionais estaduais ou subseccionais municipais ou, na ausência de subseção nos municípios
sob a jurisdição do juízo da Comarca em questão, dentre aqueles advogados existentes no
local.
Ambos os casos somente admitiam recusa pelo profissional nomeado mediante a
alegação comprovada de um dos motivos enumerados no artigo 15 da referida Lei, sendo
hipótese de atuação compulsória.

55
Desta forma, ser-lhe-ão cabíveis tão-somente o pagamento de honorários de
sucumbência, a cargo da parte vencida, quando a pretensão do assistido for vencedora.
A três, é o caso da parte que já possui advogado, mas este renunciou ao recebimento
de honorários extrajudiciais, aceitando aguardar por eventual verba sucumbencial, ou de parte
advogando em causa própria, que, todavia, demonstra sua hipossuficiência econômica em
arcar com as despesas e custas processuais, sendo-lhe deferida a isenção legal.
Estas duas últimas hipóteses descritas possuem elementos bastantes a posicioná-las na
classificação dos sistemas assistenciais por munus honorificum.
Atuando de maneira concomitante, está o regime de assistência jurídica previsto no
artigo 134 da Constituição Federal , cuja organização no âmbito da União e Distrito Federal,
bem assim as normas gerais para sua implantação nos Estados, estão fixadas na Lei
Complementar n° 80, de 12 de janeiro de 1994: a Defensoria Pública.
Dessa maneira, estava sendo criada a Defensoria na qualidade de instituição essencial
à função jurisdicional, mesmo status de que goza em nosso país o Ministério Público,
aproximando-se em seus elementos constitutivos aos Neighbourhood Law Centres, mas com
caracteres peculiares.
Seu quadro é integrado por servidores públicos providos por meio de concurso público
de provas e de títulos, remunerados por vencimentos mensais fixos, sendo-lhes conferidas as
mesmas garantias funcionais antes desfrutadas pela magistratura e pelos membros do parquet,
tais como inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos, independência funcional e
estabilidade (Lei Complementar n° 80/94, artigos 43 e 127).
Devido à sua condição de instituição essencial ao funcionamento da jurisdição, não
está vinculada administrativa ou financeiramente a nenhum poder de estado, o que faz com
que seus membros possam atuar com graus relativos de autonomia e independência, podendo
propor demandas em nome da parte carente até contra pessoas jurídicas de direito público ou
entes da administração indireta.
Por outro lado, estão vinculados os defensores públicos, no desempenho de suas
funções a rigorosos deveres funcionais, quais sejam exercerem a advocacia exclusivamente
em suas funções de múnus assistencial, não poderem receber honorários judiciais ou
extrajudiciais de qualquer sorte e residir obrigatoriamente na localidade em que irão prestar o
serviços públicos.
Uma peculiaridade das defensorias públicas brasileiras é que o grupo integrante de seu
primeiro quadro foi formado, devido a uma regra de transição presente na referida lei
complementar – artigo 137 – pela absorção dos advogados de ofício, atuantes no regime de
assistência judiciária da Lei n° 1.060/50, que desejassem integrar a carreira de defensor e

56
tivessem os seus atos de nomeação publicados em data anterior à abertura da Assembléia
Nacional Constituinte.
Mais um aspecto de nossas defensorias públicas é que, tal como descrito acerca dos
escritórios de vizinhança, começam estes órgãos, aos poucos, a atuar na defesa de interesses
coletivos da comunidade e de outros difusos, principalmente aqueles direta ou indiretamente
condizentes às populações123.
Este modelo, todavia, não atingiu todos os objetivos dos escritórios de vizinhança,
centrando suas atividades sobre a atuação judicial em nome das partes, como autores ou réus,
bem assim a postulação de interesses perante instâncias administrativas e deixando no plano
secundário atividades não litigiosas, em sua maioria restritas a sessões de conciliação prévia,
o que abre espaço para novos e futuros projetos, nas áreas de conscientização e de assessoria
negocial.
No pertinente à realidade da assistência jurídica oficial brasileira, a regra geral a
utilização do sistemas das defensorias públicas, aplicando-se o modelo da “assistência
judiciária” da Lei n°1.060/50 de maneira suplementar às suas atividades ou de modo
substitutivo nos lugares onde não estiver instalada ou estejam suspensos ou desativados seus
serviços.
Encerrando este tópico, ressaltamos que, tal como assinalado por Cappelletti124 ao
observar a implantação de modelos assemelhados em outros ordenamentos, a ausência de
programas de conscientização constantes e perenes, salvas isoladas e bem produzidas
tentativas, faz predominar entre os requerimentos aduzidos perante as defensorias questões
relativas à família, ao crime e a pequenas lides patrimoniais125.
É um campo árido e ainda pouco explorado pelos estudos que pretendam servir de
base a futuras propostas de reformas, a receber a atenção dos juristas – processualistas,
constitucionalistas, estudiosos da administração da justiça – sociólogos, cientistas políticos e
administradores públicos.
Somente o conjunto destas formas diversas de apreensão do fenômeno das demandas
judiciais reprimidas pelo obstáculo da deficiência de poder econômico poderá fornecer dados
suficientes à construção de soluções e novos modelos em condições de ampliar os campos
atingidos pelos serviços assistenciais.

123
Exemplo disto é a recente ação civil pública proposta perante Justiça Federal pela Defensoria Pública do
Estado de Pernambuco contra a inclusão de multas ilegais nas tarifas de telefonia celular.
124
Vide, neste sentido, texto relativo à nota 113 do tópico anterior. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant.
Op.cit., nota 94, p. 38.
125
É curioso que juntamente com os litígios de família e as questões criminais, estejam presente em grande
monta procedimentos de jurisdição voluntária da espécie alvará, dirigidos à liberação de valores retidos em
conta-corrente relativos a programas de assistência social como o PIS/PASEP e o FGTS, não sujeitos a
inventário, talvez por conta de suas simplicidade e relativa celeridade.

57
3.2. A segunda “onda”: a tutela dos interesses difusos.

Outro campo de aplicação do movimento de acesso à justiça, correspondente à


chamada segunda “onda”, refere-se à proteção dos interesses transindividuais, fenômeno que
surgiu com toda a força, de forma a por em evidência a absoluta falta de adequação dos
velhos esquemas, típicos da tradicional imposição individualista do processo civil, à tutela dos
direitos coletivos e difusos126.
Os conceitos de interesse difuso e de interesse coletivo, desde há tempos empregados
pela doutrina, nem sempre forma uníssona, foram incontestavelmente integrados ao sistema
processual brasileiro, encontram-se legalmente hoje fixados na legislação vigente127.
Difusos são os interesses transindividuais, de natureza indivisível, dos quais são
sujeitos pessoas indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato; coletivos são os interesses
transindividuais, de natureza indivisível, de que são sujeitos um grupo, uma categoria ou uma
classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte adversa por uma relação jurídica128.
Se, com o espalhar da primeira “onda”, os efeitos iconoclásticos do movimento pelo
acesso à justiça levaram a uma revisitação crítica da secular garantia formal do direito de
ação, atingindo o mito de que isonomia de liberdade levaria à de oportunidades, este segundo
momento de reflexão crítica e de proposta de reformas atingirá outros pilares da base formal
do processo, o alcance dos institutos da legitimidade ad causam e da coisa julgada.
Na dinâmica desta “onda” está a consolidação de meios voltados à efetivação dos
direitos sociais e difusos, originários de lutas e conquistas políticas, sociais, econômicas,
culturais; pois: da união de idéias, surgiu o interesse comum; dos interesses comuns, a
pretensão conjunta de fazê-los sensíveis; das pretensões conjuntas não realizadas, a demanda
por um processo civil hábil a tutela-las como um todo.
A tradicional concepção individualista e liberal de sistema processual tem quebrada
sua unicidade, vez que a pressão dos grupos sociais por reformas e por uma real, e não apenas
formal, proteção aos direitos comuns, transcende os protestos e o embate direto para os
campos de batalha no plano processual, descortinando problemas que o sistema tradicional
não encontra soluções em si mesmo.
“O processo era visto apenas como um assunto entre duas parte, que se destinava à
solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses

126
CAPPELLETTI, Mauro. “La protección de los interesses colectivos o difusos”. In XIII Jornadas
Iberoamericanas de Derecho Procesal. Ciudad del México: UNAM, 1993, p. 245. Tradução livre do autor.
127
MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. “La iniciativa en la defensa judicial de los interesses difusos y
coletivos (un aspecto de la experiencia brasilena)”. In Revista de Processo. São Paulo: 68 (17): 55-58, out../dez.
1994, p.55.
128
Artigo 81, parágrafo único, da Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).

58
individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do
público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes de legitimidade, as
normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas
por interesses difusos intentadas por particulares129”.
Manifesta-se, assim, o fenômeno definido por Cappelletti como povertà
organizzativa130, por meio do qual os grupos sociais adquirem a força necessária para
reivindicar a proteção judicial de situações jurídicas que os atingem coletivamente ou
individualmente, de maneira homogênea, bem como os interesses relativos à sociedade, como
um todo coeso e indivisível, estes sim, interesses difusos stricto sensu.
Esta segunda “onda” de reformas implica numa reflexão sobre noções tradicionais
básicas ao processo civil e sobre o papel dos tribunais, visto que não contemplavam a
proteção de interesses transindividuais.
O processo, sob larga influência do individualismo liberal e racionalista, era visto
como um assunto entre duas partes, destinado à solução de uma lide referente a estas mesmas
partes, a respeito de seus direitos individuais.
Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do
público não se enquadravam neste esquema.131 A ideologia incidente sobre o sistema
processual aparentemente neutro não admitia a tutela de tais pretensões, simplesmente as
excluindo “naturalmente” de qualquer possibilidade de acesso.
“A cultura jurídica dominante estabelece, por exemplo, a necessidade ou não de um
Código de Processo Civil, que por sua vez estabelece, através de seu artigos quais os conflitos
sociais que poderão vir a ser apreciados pelo Poder Judiciário. Ocorre que esta seleção de
conflitos que se pretende limitada a nível jurídico, traz conseqüências para as disputas que
travam os grupos e classes sociais pelo poder e pela riqueza social. Em outras palavras, a
tipologia dos conflitos sociais embutida em qualquer ordem legal é também vítima de da
estratificação social132”.
Em todos os casos que envolvam tais direitos, “somente rompendo com a tradicional
postura individualista do processo civil é que se poderá obter resultados capazes de tornar
efetiva a percepção daqueles benefícios. O indivíduo, isolado, jamais estará em condições de
obter uma tutela eficaz133”.

129
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 50.
130
CAPPELLETTI, Mauro. “Problemas de Reforma do Processo Civil nas Sociedades Contemporâneas”. In
MARINONI, Luiz Guilherme (org.). O Processo Civil Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994, p. 17.
131
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 50.
132
FALCÃO NETO, Joaquim de Arruda. “Cultura jurídica e democracia: a favor da democratização do
judiciário”. In LAMOUNIER, Bolívar; WEFFORT, Francisco C.; BENEVIDES, Maria Vitória (orgs.). Direito,
cidadania e participação. São Paulo: T. A. Queiroz, 1981, p. 5.
133
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota 126, p. 246.

59
Pois é incisivo constatar que um sistema processual incapaz de proteger toda uma
categoria de indivíduos contra atos que ilegitimamente afetam a categoria inteira é ineficaz e
deixa, com efeito, toda a categoria em questão privada de acesso à justiça134.
As normas procedimentais, as regras determinantes da legitimidade e a atuação dos
juízes não se destinavam a promover a tutela destes interesses, em relação a demandas
intentadas por particulares, o que desencadeou, em primeiro lugar, o surgimento de
precedentes jurisprudenciais (leading cases) e um processo de reformas legislativas
permitindo que indivíduos, grupos, associações civis e órgãos administrativos a atuarem na
representação processual destes novos interesses.
Em segundo lugar, para proteção de tais interesses, torna-se indispensável a
transformação do papel do magistrado, que por tradição afastava-se do mérito relativo à
aplicação de políticas públicas, e a ampliação do conteúdo e vários institutos processuais, tais
como a citação, o contraditório e a coisa julgada.
“Uma vez que todos os titulares de um direito difuso podem comparecer a juízo – por
exemplo, todos os interessados na manutenção da qualidade do ar, numa determinada região –
é preciso que haja um ‘representante adequado’ para agir em benefício da coletividade,
mesmo que os membros dela não sejam ‘citados’ individualmente. Da mesma forma, para ser
efetiva, a decisão deve obrigar todos os membros do grupo, ainda que nem todos tenham tido
a oportunidade de ser ouvidos. Dessa maneira, outra noção tradicional, a de coisa julgada,
precisa ser modificada”.135
A transformação demandada pelas novas condições desta “onda” atinge o núcleo
destes institutos do sistema processual, repaginando suas feições para a apreciação das
demandas que envolvam interesses transindividuais.
São conflitos que envolvem: a) partes desiguais e não individualizadas, de um lado um
segmento da coletividade e, de outro, uma grande organização pública ou privada; b) partes
com graus diferenciados de autonomia da vontade; c) partes relacionadas por vínculo de
subordinação econômica, política ou ambas136.
Indicativo disto é a significante alteração de conteúdo sofrida pelo instituto da
legitimidade ad causam em prol de permitir um livre e válido exercício do direito de ação,
dirigido à proteção de interesses difusos e coletivos, pela qual ocorrera a expansão conceitual
do instituto da substituição processual.

134
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota 130, p. 18.
135
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 50
136
FALCÃO NETO, Joaquim de Arruda. Op.cit., nota 132, p. 9.

60
Somente por meio dele o sistema jurídico recepciona a tutela conjunta de interesses
coletivos e difusos, permitindo que sejam pretendidos e apreciados no curso dum único
procedimento, sem a necessidade da formações de inviáveis e/ou imensos litisconsórcios
(pluralidade de pessoas num pólo da relação processual), dado que, salvas autorizações legais,
não é admitido pleitear-se em nome próprio direito alheio 137.
O acesso à justiça, como instrumento sensível de realização dos direitos sociais, neste
ponto, transcende à questão da assistência à parte individual na postulação de seus direitos e
abraça sua nova fase, instrumento de organização e realização de interesses de grupo.
“As inovações estruturais, nestes casos, ultrapassam o momento do ajuizamento da
ação e da legitimação para agir, para afetar todo o desenvolvimento do processo, conferindo
novo influxo às sua garantias, com o surgimento, por exemplo, da idéia de devido processo
social ou de grupo, na qual o right to be heard (o direito de ser ouvido) referir-se-á, não a
cada indivíduo membro da classe, mas ao legítimo e adequado representante de toda a
categoria138”.
Foram então, paulatinamente, mediante o exercício democrático e os debates nos
âmbitos acadêmicos e políticos, fixadas nas legislações as pessoas idôneas a preencherem a
condição de substituto processual para a defesa dos interesses difusos e coletivos, a saber, o
ministério público, os sindicatos, os partidos políticos, as entidades de classe e, num extremo
avanço para o sistema brasileiro, as associações civis.
A outorga de poderes de representatividade processual aos aludidos entes leva à
conjunção de forças demandada pela segunda “onda” do movimento pelo acesso à justiça:
nela, a fragmentação de interesses inerente ao processo liberal e individualista dá espaço à um
todo coeso relativo a uma pretensão pluripessoal, na qual os mecanismos de “pressão” por
reivindicações perante o Judiciário tendem na direção do equilíbrio entre as partes em litígio.
“Como as partes a serem confrontadas no Judiciário seriam ou o próprio Estado ou
poderosas instituições privadas, pode-se prever que, via de regra, elas estariam representadas
por advogados dotados de boa infra-estrutura administrativa, de boa formação e atualizada
informação, com maior disponibilidade de tempo para acompanhar processos, com maior
experiência adquirida no trato de sucessivas questões similares, com maior especialização,
com maior facilidade de estabelecer comunicações informais com os ocupantes de cargos do
Judiciário, com maior capacidade de para estabelecer estratégias que maximizem ganhos e
vitórias a longo prazo independentemente de eventuais perdas em casos isolados, com

137
Código de Processo Civil Brasileiro, artigo 6°.
138
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota 130, p. 18.

61
disposição para investir na gradual formação de jurisprudência futura com base em pequenos
ganhos atuais etc.139”.
O pequeno litigante individual, de modo geral, vê-se prejudicado pela falta de
habitualidade e de uma estrutura administrativa e funcional voltada para o enfrentamento de
litígios envolvendo os referidos novos direitos, tais como a economia popular, o patrimônio
histórico-cultural, o meio ambiente e a tutela das relações de consumo.
A adoção do instituto da substituição processual corrige esta distorção.
Com efeito, aplica-se a assertiva de Barbosa Moreira, para quem “um dos tópicos
‘clássicos’ da problemática atinente à tutela jurisdicional dos interesses difusos é o da
legitimação para agir, excluída por intuitivas razões a hipótese de exigir-se a presença em
juízo de todos os co-interessados, como litisconsortes ativos necessários140”.
A incidência da “onda” pela proteção dos interesses difusos e coletivos provocou uma
adaptação dos sistemas normativos contemporâneos, os quais par e passo reinventaram as
estruturas da condição legitimante do direito de ação, permitindo a expansão da representação
processual coletiva e difusa. A isto não se furtou a legislação brasileira.
“O primeiro passo foi dado pela Lei da Ação Civil Pública de 1985, que legitimou
expressamente às ações coletivas o MP, outros entes públicos e as associações que, pré-
constituídas há pelo menos um ano, tivessem entre seus fins institucionais a defesa dos bens e
direitos protegidos pela lei. A Constituição de 1988, como visto, ampliou o arsenal das ações
coletivas da LACP, com o acréscimo da legitimação do partido político e a supressão do MP
para o mandado de segurança coletivo. E o mesmo esquema foi preservado pelo Código de
Defesa do Consumidor, que acrescentou a legitimação de entes públicos, ainda que
despersonalizados, destinados especificamente à tutelados bens em questão. Paralelamente, o
CDC determinou a aplicabilidade de suas normas processuais à defesa dos interesses difusos,
coletivos e individuais (evidentemente, quando tratados coletivamente, por sua origem
comum)141”.
No que tange ao quesito da coisa julgada, também foi este instituto fundamental da
face formalista do processo revisitado pela doutrina do acesso à justiça, adquirindo novo
conteúdo, sem perder os seus caracteres inerentes, qual sejam a segurança jurídica, decorrente
da imutabilidade do provimento jurisdicional, e a executoriedade de seu conteúdo, após o
trânsito em julgado da decisão.

139
MACHADO, Mário Brockmann. “Comentários” In LAMOUNIER, Bolívar; WEFFORT, Francisco C.;
BENEVIDES, Maria Vitória (orgs.). Direito, cidadania e participação. São Paulo: T. A. Queiroz, 1981, p. 27.
140
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p.48.
141
GRINOVER, Ada Pellegrini. “O acesso à justiça no ano 2000”. In MARINONI, Luiz Guilherme (org.). O
Processo Civil Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994, p.35.

62
“Assim, até a visão tradicional de coisa julgada, que, como diziam os antigos, tertiis
neque prodest neque nocet, teve de ser amoldada às exigências desses ‘novos direitos142”.
Assume-se, desde então, o conceito de coisa julgada erga omnes, introduzido em
nosso ordenamento desde a adoção da ação popular (Lei 4.717/65), foi adotada e reiterada, no
âmbito da atual Constituição, pela lei da ação civil pública (LACP) e pelo Código de Defesa
do Consumidor (CDC).
A concepção milenária da res judicata, através da qual esta só poderia estender-se
somente às partes presentes em juízo, sofre uma grande mudança: de um simples actor da
classe representada, converte-se a parte em auto-representante de todos os membros da classe,
donde decorre outra conversão, trazendo uma nova concepção de coisa julgada, na qual esta
estende-se a toda a classe, dando possibilidade, na maioria dos ordenamentos, a cada membro
da classe de out put, ou seja, de auto excluir-se143.
Todos os membros da categoria envolvida, os interessados nos direitos difusamente
percebidos, bem como os detentores de direitos individuais considerados de maneira
homogênea, na forma do CDC, compartilham como uma universalidade infracionável dos
efeitos da decisão jurisdicional definitiva, ressalvada a hipótese destes últimos, os individuais
homogêneos, ainda poderem pleitear seu por ação individual posterior (res iudicata secundum
eventum litis).
“A solução do direito brasileiro, diversa da adotada nas class actions do sistema da
common law, apresenta-se como a mais aderente à realidade sócio-econômica brasileira e às
nossas peculiaridades sobre legitimação dos substitutos processuais; não incorria nas
dificuldades que o critério norte-americano do opt out ainda comporta; e não feria o princípio
constitucional da igualdade (nem mesmo o da igualdade de chances), porque de qualquer
modo a sentença condenatória, no processo coletivo em defesa de interesses ou direitos
individuais homogêneos, se limita a reconhecer a existência do dano geral e o dever de
indenizar, cabendo depois a cada interessado, em processos de liquidação necessariamente
individualizados, provar o seu dano pessoal e o nexo etiológico, além de quantificar a
indenização, todo em cognição exauriente e contraditório pleno144”.

142
CAPPELLETTI, Mauro. “Os métodos alternativos de solução dos conflitos no quadro do movimento
universal de acesso à justiça.” trad. José Carlos Barbosa Moreira. In Revista de Processo. São Paulo: 74 (19):
82-97, abr./jun. 1994, p.86.
143
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota 126, p. 251.
144
GRINOVER, Ada Pellegrini. Op.cit., nota 141, pp. 36-37.

63
Mas não somente avanços são registrados neste sentido, o dispositivo contido no
artigo 2° da Lei 9.494/98 representou um retrocesso nas transformações sofridas pelo instituto
da coisa julgada, já em suas feições difusa e coletiva, uma vez que limitou os efeitos
decorrentes das decisões jurisdicionais proferidas em ação civil pública à base territorial onde
está vinculado o órgão da jurisdição, implicando num aumento do número de procedimentos e
na dispersão da pretensão por vários juízos.
Neste caminho, a visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar
rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção coletiva, voltada a assegurar a
realização dos direitos públicos relativos aos interesses difusos e coletivos145.

145
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 51.

64
3.2.1. Interesses difusos no Brasil: atual contexto das associações civis em defesa de
interesses difusos e coletivos.

Importante ressaltar, no início deste tópico, o vasto trabalho de investigação em favor


dos direitos e interesses transindividuais na cena jurídica brasileira, desenvolvido nos campos
da doutrina, da jurisprudência e dos projetos legislativos.
Pedimos venia de não nos ocupar em uma exposição profunda e crítica dos conceitos,
postulados e institutos normativos surgidos, bem como tecer comentários à legislação vigente,
em virtude de que isto nos tomaria um grande espaço e excederia às pretensões desta
dissertação.
Escolhemos por fazer uma análise de dois tópicos apontados por Cappelletti como
integrantes das mutações processuais ungidas na segunda “onda” e que, nos dias de hoje, já
fazem parte da realidade brasileira, inclusive nos planos da administração burocrática, dos
centros urbanos e do próprio direito positivo, mas, relação aos demais temas, menos
explorados em sua interface com o método do acesso à justiça.
É especialmente interessante observar o contato efetuado entre a aglutinação de
interesses inicialmente privados, gênese da formação das associações civis com a nova
dimensão que se direciona à acessibilidade dos órgãos de tutela estatal, eminentemente de
direito público, tendo por elo de ligação os interesses transindividuais.
Neste modelo, também visualizado na action collective (na França e Bélgica) ou na
Verbandsklage (na Alemanha e Áustria)146.
A posição tomada pelo direito brasileiro, admitindo as associações civis como
legítimas à tutela dos direitos metaindividuais, observada por Barbosa Moreira, “[permitiu]
uma conjugação de esforços entre os órgãos públicos e as instituições privadas147”.
Compostas por integrantes dos segmentos sociais relacionados direta ou indiretamente
com os interesses cuja proteção é pretendida, ou por outras pessoas com vontade dirigida à
sua viabilidade, por razões de cunho filantrópico, religioso, cultural e étnico, dentre outras, as
associações civis configuram mais um caminho à aproximação dos cidadãos à jurisdição e,
objetivo final, à efetividade de seus direitos.
“As vantagens destas soluções encontram-se estão no fato de que as associações não
só têm a especialização requeridas nas matéria em foco, como também, ademais, encontram-

146
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota 142, p. 86.
147
MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. “La iniciativa en la defensa judicial de los interesses difusos y
coletivos (un aspecto de la experiencia brasilena)”. In Revista de Processo. São Paulo: 68 (17): 55-58, out../dez.
1994, p. 56. Tradução do autor.

65
se em grau de superar a debilidade do indivíduo isolado, podem multiplicar os recursos e
promover a defesa dos interesses do grupo inteiro, assim como dos indivíduos”148.
As reformas dirigidas à proteção dos interesses transindividuais avançam no sentido
de reconhecer o papel importante, e até mesmo essencial, dos grupos privados, ao
suplementarem, catalisarem, e mesmo substituírem as ações dos representantes judiciais de
natureza pública149.
Em nosso ordenamento brasileiro, o sistema de representação em juízos dos interesses
difusos, coletivos e, hoje, individuais homogêneos, originado na lei da ação civil pública e
ratificado pela Constituição de 1988 e pelo Código de Defesa do Consumidor, um critério
eclético150 de outorga dos poderes de legitimação a associações civis: desde que formalmente
constituídas há pelos menos um ano e possuam entre seus fins institucionais a proteção destes
interesses, sem questionar quais interesse ou a qualidade dos representados.
Essas associações podem dirigir-se aos interesses dos habitantes das periferias, das
minorias étnicas, dos grupos culturais e religiosos, pois bem, aqueles interesses e grupos
geralmente desorganizados, diluídos, difusos, de modo a incluí-los entre os recepcionado pela
nova idade da tutela jurisdicional, conquanto que se desenhe e se implemente na prática um
plano efetivo para organizar tais grupos de interesses151.
Porém, enquanto alguns interesses são bem organizados, como é o caso daqueles
relativos à relação de trabalho, no qual os sindicatos já a um bom tempo vêm se estruturando
e desenvolvendo um papel importante na defesa de sua categoria representada, outros, no
entanto, ainda não atingiram este nível de organização152.
Múltiplas são, entretanto, as dificuldades enfrentadas, visto que, em muitas ocasiões é
concedida àquelas pessoas jurídicas a qualidade de representantes legítimos em juízo dos
interesses transindividuais sob controvérsia, mas não são encontradas ações traduzidas em
políticas públicas voltadas a promover a organização e o fortalecimento destes grupos
privados.
“[É] necessário muito dinheiro e esforço para criar uma organização de porte
suficiente, recursos econômicos e especialização para representar adequadamente um
interesse difuso153”.

148
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit., nota 126, p. 249.
149
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 59.
150
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op.cit., nota 147, p. 56.
151
CAPELLETTI, Mauro. “Reflexiones sobre el rol de los estudios procesales”. In Revista de Processo. São
Paulo, a16, n.64, pp.145-157, out/dez, 1991, p.148.
152
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 59.
153
Idem. Ibidem.

66
Nestes termos e sem incentivos oficiais (não nos referimos aqui apenas ao fomento
econômico, mas a medidas de conscientização e educação para a convivência associativa), as
normas autorizativas de legitimação coletiva e difusa às associações civis tendem a ser letra
jurídica de efetividade reduzida.
Isto reflete-se de maneira clara na observação qualitativa das ações civis públicas
propostas, tomando por critério a natureza da pessoa que exercita o direito de ação.
É indicada por Barbosa Moreira a inexistência ou não publicação de estatísticas gerais
ao esse respeito, mas dados obtidos por ele, no ano de 1992, já indicavam a deficiência da
atuação das sociedades civis no contexto brasileiro154:

1. No estado do Rio de Janeiro, v.g., quase 100 ações deste tipo haviam sido resultado, até
então, de iniciativa do Ministério Público, enquanto as decorrentes do exercício do direito
de ação pelas associações civis eram panas uma dezena;
2. O panorama não é diverso em São Paulo. Em matéria de proteção do consumidor, a
relação era de 10 ações civis públicas de iniciativa privada para 95 do Ministério Público;
3. Ainda em São Paulo, com respeito às questões ambientais, uma pesquisa daquele
momento em cem comarcas revelou que a contribuição das associações civis representam,
muito modestamente, 4% do total de 444 ações civis públicas.

É uma diferença considerável, que nos leva a questionar que razões exoprocessuais
desmotivam a atuação judicial das associações civis relacionadas com interesses difusos e
coletivos, que, nos últimos anos, tiveram uma ampliação na sua taxa de crescimento.
“Chama a atenção a escassez de iniciativa das associações civis. Na realidade, o povo
brasileiro nunca deu mostras de propensão “associativa” muito acentuada, mas nunca se viu
surgir uma quantidade tão grande de associações moradores de bairro que vêm-se
empenhando em defender os interesses de tais comunidades ante aos poderes públicos155”.
Estas entidades, tão eficientes na resolução de problemas na esfera administrativa
relacionados com sua razão de existir (raison d’être), tem por comportamento excluir-se ou
recorrer ao Ministério Público, quando em questão demanda judicial. Identificar quais
motivos de ordem sócio-cultural e/ou econômica geram este fenômeno e a necessidade de
efetivos estímulos nesta área é proposta para estudos processuais futuros, através do método
do acesso à justiça

154
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op.cit., nota 147, p. 57.
155
Idem. Ibidem.

67
3.3. A terceira “onda”: do acesso à representação em juízo a uma concepção mais ampla de
acesso à justiça. Um novo enfoque.

Os progressos obtidos por meio de reformas na áreas da assistência jurídica e da busca


de mecanismos para a representação de interesses metaindividuais foram essenciais à
consolidação de um significado atual para o termo acesso à justiça. Estas reformas serão bem
sucedidas – e, em parte, já o foram – no objetivo de alcançar proteção judicial para interesses
em jogo, por muito tempo deixados à parte pelos sistemas processuais.
O reconhecimento da importância destas reformas não pode impedir-nos de
reconhecer suas limitações: voltam-se basicamente a promoção do direito de representação
judicial de interesses antes não representados ou mal representados, dentro do entendimento
de que o acesso seria realizado pela remoção de obstáculos à provocação do Estado-juiz para
o exercício da tutela jurisdicional.156
O enfoque do acesso à justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo.
A terceira “onda” de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por
meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além.
Ela centra sua atuação no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e
procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir litígios.
Cappelletti o denomina de “enfoque do acesso à justiça157” por sua abrangência,
consistente num método que aproveita as técnicas das duas primeiras “ondas” de reforma,
mas as entende como apenas algumas de uma série de possibilidades.
O derradeiro momento do acesso à justiça transcende aos anteriores, preocupados com
a representação legal e com a efetividade de direitos de indivíduos e grupos que, durante
muito tempo, estiveram privados dos benefícios da justiça igualitária.
Sem dúvida, esses movimentos iniciais receberam impulso através da influência
econômica recente e outras reformas que, de certa forma, alteraram o equilíbrio formal de
poder entre as partes.
Permanece muito difícil para os pobres, inquilinos, consumidores e outras categorias
tornarem efetivos os direitos oriundos do Welfare State.

156
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, pp. 67-71.
157
Idem. Ibidem.

68
Resta uma demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos, o que
força reflexão acerca da capacidade de suprimento do sistema – o sistema judiciário (físico), o
sistema processual (formal) – e impulsiona diverso conjunto de reformas, incluindo alterações
nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais, o uso de pessoas leigas,
modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a
utilização de mecanismos privados e informais de solução de litígios.
“Não somente as exigências metodológicas e técnicas devem continuar a dominar o
processo, não só com a assistência judiciária aos pobres deve preocupar os doutrinadores do
processo, mas cada aspecto de incapacidade e fragilidade que exorbita da competência
específica da jurisdição158”.
Se nas fases anteriores do acesso à justiça o obstáculo a ser transposto eram as
espécies de pobreza econômica e organizativa, o adversário, desta vez, é de grande estatura: o
obstáculo do momento é o próprio processo, a estrutura do sistema processual encontrado em
cada ordenamento em seus pontos de incompatibilidade com a efetivação dos novos direitos.
Pela denominação de obstáculo processual Cappelletti entende as hipóteses “em que
certas áreas ou espécies de litígio, a solução normal – o tradicional processo litigioso em juízo
– pode não ser o melhor caminho a ensejar a vindicação efetiva de direitos. Aqui a busca há
de visar reais alternativas (stricto sensu) aos juízos ordinários e aos procedimentos usuais159”.
Assim, modificações substanciais são verificadas nos ordenamentos processuais, nas
quais estruturas basilares do método processual são alteradas, visando à efetividade dos
direitos sociais.
“Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como
também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma
injustiça de qualquer ordem. Augura-se a caminhada para um sistema em que se reduzam ao
mínimo inevitável os resíduos de conflitos não jurisdicionalizáveis (a universalização da
tutela jurisdicional) e em que o processo seja capaz de outorgar a quem tem razão toda tutela
jurisdicional a que tem direito160”.
Estas questões de fato é implicaram na reinserção de método do acesso à justiça na
técnica processual, na mais para abrandar rigorosos conceitos e fazer realizáveis os propósitos
externos de representação judicial, mas agora com as forças reformadoras de suas “ondas”
voltadas à viabilização do processo ante seus escopos de instrumento de resolução dos
conflitos com justiça.

158
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milão: Edizioni di Comunità, 1971, p. 15. Tradução livre
do autor.
159
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., nota 142, pp.87-88.

69
“[O] programa do acesso está destinado tanto a fazer os novos direitos efetivos para
todos, como melhorar os meios para uma compensação legal, em primeiro lugar mobilizando
os interesses, mais tarde, melhorando a expedição do serviços legais e racionalizando os
serviços de compensação161”.
Ademais, leque de investigações ora se abre ao longo de novos procedimentos e da
renovação daqueles tradicionalmente existentes, contextualizando a dinâmica de seus
resultados com demandas do grupo social, situado em determinado tempo e espaço.
A dimensão valorativa novamente vem a ter interseção com o direito processual, visto
que as novas criações, decorrentes deste momento, encontram-se preenchidas pelos valores da
efetividade dos direitos e da celeridade da resolução.
Como primeiro ponto, tem-se o resgate das formas de resolução de conflitos
alternativas à jurisdição, não por saudades dos tempos dos duelos ou dos juízos das ordálias,
mas fundamentado na opção tomada por parte considerável dos indivíduos, renunciando a seu
direito de ação e comprometendo-se a aceitar outras fontes decisórias, desde que apresentadas
de modo célere.
Eis aqui retomados os institutos da arbitragem, da conciliação e da mediação, antes tão
presentes na evolução histórica dos meios de resolução dos conflitos de interesses e hoje
tomados pela terceira “onda” em uma nova feição.
“Essa idéia decerto não é nova: a conciliação, a arbitragem e a mediação foram sempre
elementos importantes em matéria de solução de conflitos. Entretanto, há um novo elemento
consistente em que as sociedades encontraram novas razões para preferir tais alternativas162”.
Forma-se a chamada justiça coexistencial destinada a tratar de conflitos mais simples,
geralmente relativos a partes destinadas a um contato próximo e duradouro, como é o caso das
questões mercantis, em relação aos quais um litígio formal e tradicional poderia levar à
exorbitância das paixões e dos contrastes, onde poderá ser mais eficaz uma decisão que não
provenha de uma relação entre vencedores e vencidos, mas antes de tudo, uma recíproca
compreensão, uma modificação bilateral ou multilateral dos comportamentos e das
pretensões163.

Os meios citados não se encontram mais banidos do ordenamento ou em contradição


com o poder jurisdicional, somente este último cede sua exclusividade no mister de resolver

160
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do código de processo civil. 3ª ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1996, p.21.
161
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., nota 99, p. 149.
162
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., nota 142, p. 88.
163
CAPPELLETTI, Mauro. “L’acesso alla giustizia e la responsabilità del giurista”. In Studi in onore di Vittorio
Denti, vol. I, Pádua: Cedam, 1994, p. 284.

70
os conflitos e confere, por intervenção de novas normas processuais, executoriedade,
reconhecimento legal e judicial, bem como definitividade da decisão, uma vez respeitadas as
garantias da em juízo, a exemplo do contraditório e da ampla defesa.
Noutro ponto, temos a questão da simplificação dos procedimentos, em que o
formalismo é relativizado ante à sua interferência na realização das pretensões em juízo.
Certas formas passam a ter sua exigência revista pelos ideais reformadores trazidos
pelo movimento pelo acesso à justiça, propiciando o surgimento de novas formas de
jurisdição, comprometidas com a solução efetiva das pretensões resistidas em um tempo
razoavelmente suportável, em relação aos procedimentos ordinários.
“A preocupação é, cada vez mais, com a ‘justiça social’, isto é, com a busca de
procedimentos que sejam conducentes à proteção dos interesses dos direitos das pessoas
comuns. Embora as implicações desta mudança sejam dramáticas – por exemplo em relação
ao papel de quem julga – é bom enfatizar, desde logo, que os valores centrais do processo
judiciário mais tradicional devem ser mantidos. O acesso à justiça precisa englobar ambas as
formas de processo164”.
E é dentro destes parâmetros que se desenvolveram em nosso direito os Juizados
Especiais Cíveis estaduais e federais, inspirados nas Small Clain Courts do direito da
common law, porém com maior amplitude, e organizado em um subsistema processual
próprio, com regras especiais que lhes afastam dos procedimentos comuns.
Um sistema destinado a servir às pessoas comuns, tanto como autores, quanto como
réus, caracterizado pelos baixos custos, informalidade e rapidez, por julgadores ativos e pela
utilização de conhecimentos técnicos bem como jurídicos. Ele deve ter, ademais, a capacidade
de lidar com litígios que envolvam relacionamentos permanentes e complexos, como entre
locadores e locatários. Essas características fazem emergir formas procedimentais
especializadas, oferecendo atração e capacitação dos indivíduos para reivindicar seus direitos
perante o judiciário 165.
Caracterizam-se por serem procedimentos simples em que predominam a oralidade na
prática dos atos processuais, o incentivo à conciliação, a isenção de custas, a desconsideração
das formas prescindíveis, o contato direto entre as partes fisicamente presentes ante o juiz, a
equalização das forças em juízo e a extrema limitação das instâncias recursais.
Têm por critérios de seleção dos conflitos amparados por este subsistema a atribuição
de um valor teto que corresponda à razão econômica dos interesses controversos – permitindo
desde questões de valor irrisório até a renúncia em relação a eventuais excedentes do teto

164
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 94, p. 93.
165
Idem. Ibidem.

71
fixado – bem como a seleção legal de hipóteses de fixação de competência,
independentemente do valores envolvidos no conflito judicial.
Da mesma maneira, integram-se à primeira “onda” do movimento pelo acesso à
justiça, permitindo a participação dos indivíduos, independentemente das suas condições de
renda familiar, na utilização do serviço judiciário mediante exercício simples do direito de
ação, por mera narrativa oral transcrita em termo circunstanciado, na maioria dos casos
dispensando até a presença de advogados, absorvendo demandas oriundas desde os mais
necessitados até os integrantes das classe média e alta.
Inovam, inclusive, por permitir que pequenas e médias empresas, assim constituídas
em seus regimes jurídicos e fiscais, participem deste procedimento exercendo seu direito de
ação.
Os efeitos desta “onda” atingem também as concepções clássicas relacionadas aos
poderes do juiz, na condução e na instrução do processo, irradiando contra o ele a quebra da
falsa postura arraigada à fiscalização formal e à atividade aparentemente “neutra”, em
decorrência da quebra da neutralidade do próprio sistema processual, visualizada supra, cujos
limites hoje se tornam permeáveis à questões sociais.
As reformas tendem desde então a uma expansão da atividade judicial, atuando em
campos que vão da produção de provas necessárias ao seu convencimento (não estando
adstrito à “verdade” formal por tempos vigente nos sistemas processuais) ao policiamento de
atos das partes atentatórios ao trâmite regular dos procedimentos (dispondo para tanto de
novos arsenais de sanções, aplicáveis dentro e fora do processo), assim como ampliação das
medidas tomáveis por iniciativa judicial – ex officio – imbuídas da proteção de interesses e da
prevenção do perecimento de direitos.
Ainda neste contexto, surgem opções direcionadas a atenuar a morosidade e a ausência
de efetividade, registradas no plano fático, que permeiam os processos de conhecimento,
extensa maioria das demandas apresentadas, a exemplo do processo monitório, cuja utilização
pode servir a produção imediata de um título executivo com dispensa de prévia atividade
judicial cognitiva, e dos provimentos antecipatórios de mérito (artigos 273 e 461 do Código
de Processo Civil Brasileiro) – também relacionados ao aumento dos poderes do magistrado e
à fiscalização da conduta das partes – nos quais é permitida a fruição imediata dos efeitos da
decisão jurisdicional final, talvez somente sentida com a execução de eventual decisão
favorável, da qual não haja mais oportunidade para recursos.
As reformas decorrentes do novo enfoque previsto na terceira “onda” do acesso à
justiça tornam mais freqüentes as revisitações aos tradicionais institutos e ferramentas formais
do sistema processual, fazendo com que o estudioso do processo ponha em questão, a todo

72
tempo, o seu objeto de estudo, mais uma vez aproximando a dimensão crítica à dogmática
processual.
“Descentralização, controle e participação, simplificação dos procedimentos
judiciários e administrativos, desregulação, desprofissionalização e promoção de um espírito
de colaboração e de pacífica coexistência (especialmente no âmbito das relações contínuas, de
comunidade e de vizinhança, representam, de fato, os cuidados que se procura introduzir
contra os perigos e a opressão do burocratismo governativo, do legalismo, do tecnicismo
jurídico-administrativo, com todos os seus riscos inerentes de retardo, de despesas inúteis e
complicações, de excessiva litigiosidade, de falsa separação das reais e permanentes
exigências da sociedade166”.
A arena para a apresentação de novas propostas de reforma está aberta, assim também
para estudos que pretendam aferir os graus de confiabilidade, eficiência e disponibilidade dos
“velhos” e dos “novos” institutos de direito processual, pelo emprego de meios sociológicos,
estatísticos, econômicos e administrativos, a partir de cujos dados serão feitas as inserções
jurídico-normativas.
O ícone da perfeição do sistema processual já foi quebrado: não há mais razões para
permanência ad infinitum de formas e procedimentos não aproveitáveis pelos membros da
sociedade e que não atendam à razão de sua criação, qual seja a resolução dos atuais e
prevenção de novos conflitos.

166
CAPPELLETTI, Mauro. “Acesso alla giustizia come programa di riforma e come metodo di pensiero”. In
Rivista di Diritto Processuale. Padova, 27 (2): 233-245, abr/jun,1982, p.243. Tradução livre do autor.

73
CAPÍTULO 4: Advertências de Cappelletti quanto às limitações e riscos ao enfoque de acesso
à justiça nas reformas dos ordenamentos processuais positivos: reflexos na recente reforma do
Código de Processo Civil brasileiro.

Diante das novas e ousadas reformas sofridas pelo direito processual, não podem ser
ignorados seus riscos e suas limitações. “Podemos”, inclusive, “ser céticos, por exemplo, a
respeito do potencial das reformas tendentes ao acesso à justiça em sistemas sociais
fundamentalmente injustos. É preciso que se reconheça que as reformas judiciais e
processuais não são substitutos suficientes para as reformas políticas e sociais.”167
As reformas da legislação processual não cumprirão seu importante papel no
aprimoramento do serviço de pacificação social, enquanto não tiver cumprido razoavelmente
os propósitos expressos nas três “ondas reformatórias” definidas por Cappelletti, mas, para
tanto, dentro da proposta de uma sociedade pluralista, marcada pela isonomia material, é
preciso um processo sem óbices sociais e econômicos ao pleno acesso à justiça.168
Se queremos um processo ágil e funcionalmente coerente com seus escopos, é preciso
também relativizar o valor das formas e saber utilizá-las e exigi-las na medida em que sejam
indispensáveis à consecução do objetivo que justifica a instituição de cada uma delas.
Todos os esforços desprendidos até então visam à efetividade do processo como meio
de acesso à justiça e a concretização desse desiderato é algo que depende menos das reformas
legislativas (sem jamais ignorar sua importância), do que da postura cultural dos operadores
do direito.
Transformar o processo liberal individualista em um processo de resultados
satisfatórios à sociedade adequado aos movimentos de acesso à justiça, sem, contudo
promover alterações na mentalidade dos profissionais de direito, fruto de sua formação
embebida no regime anterior, implica muito provavelmente no aparecimento de resistências e
em pequenos fracassos imediatos.
A conscientização, neste caso, é primordial, sob pena das reformas transcorrerem
numa vertical descendente, onde seus conteúdos não serão realizados, bem como não
atingidos os fins políticos e sociais que as impulsionaram.
Por outra via, os programas de reformas devem estar sempre sob a vigilância dos
meios acadêmicos, da sociedade civil organizada e, principalmente, de operadores do direito
conscientes de sua importância e posição no funcionamento do sistema processual, numa

167
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad.
Ellen Gracie Nortfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988., pp. 161-162.
168
ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini.
Teoria Geral do Processo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p.45.

74
apreensão crítica das mutações, de modo que boas inovações não sirvam a esconder
propósitos escusos de privilégios judiciais ou prejuízos indiretos às categorias e grupos
atendidos pelas mesmas, senão sob os riscos da atividade reformadora constituir instrumentos
de alienação, equiparando-as ao panis et circus romano.
Deve haver a consciência aberta para os riscos circunstanciais das reformas de modo a
que não influam negativamente os novos procedimentos em relação as garantias fundamentais
do processo civil169.
Do mesmo modo, conseqüência lógica da realização, ainda que parcial e longe de
plenitude, das “onda” do acesso à justiça é o incremento do montante de demandas judiciais,
com repercussões importantes de ordem material, desde alterar a razão da relação entre o
número de “processos” autuados e o número de funcionários e magistrados designados para
cuidar deles, até o comprometimento do espaço físico disponível para atendimento ao público
e armazenamento dos autos.
Necessário, agora e em complemento às reformas do acesso à justiça, é o
desenvolvimento do tema administração da justiça170, antes relegado à formação de esquemas
hierárquicos e organogramas de função, relativos às instâncias administrativas do Poder
Judiciário.
Sua acepção deve compreender a função judicial não na qualidade de ato de império
do Estado de Direito, nem tampouco como uma benesse caritativa para com os indivíduos,
mas com o conteúdo de um serviço171, direcionado à população; dever do ente estatal, direito
de todos os cidadãos.
Em sendo um serviço, é forçoso constatar ser ele realizado por pessoas, mediante o
emprego de recursos: pessoas, devidamente preparadas intelectual, física e psicologicamente
para o desempenho de suas funções, dentro de condições estritamente condizentes com sua
dignidade; recursos, empregados com moderação e parcimônia, evitando desperdícios e os
direcionando conforme as demandas apresentadas pelos grupos de usuários.
Da mesma maneira, é serviço público que deve ser prestado com comprometimento,
eficiência e efetividade, de modo a não interferir no acesso à justiça, fruto de estudos
doutrinários, introduzido por reformas legislativas e garantido na ordem normativa.

169
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op.cit., nota 167, p.163.
170
SANTOS, Boaventura de Souza. “O Acesso à Justiça”. In Justiça: promessa ou realidade: o acesso à justiça
nos países ibero americanos / org. Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997, pp.403-412.
171
CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit., nota 166, pp. 244-245.

75
CAPÍTULO 5: O acesso à Justiça como mecanismo de equilíbrio social no século que se
inicia - a releitura de Cappelletti enquanto doutrina propulsora das reformas processuais.

A título de conclusão e estando, neste momento, familiarizado com as premissas


teóricas informadoras do movimento pelo acesso à justiça, tal como divulgadas por
Cappelletti e por seus seguidores na doutrina internacional e nacional, chegamos no momento
de medir os ganhos e apresentar propostas.
Sabemos que o racionalismo, tal como expressão do modelo científico cartesiano,
influenciou o estudo sobre o direito, contribuindo, por meio dos elementos metodológicos da
pureza do objeto e da organização em sistemas lógico-racionais coerentes e universais, para
construção da dogmática jurídica, tal como se apresenta, em sua maior parte, até os dias de
hoje.
Neste contexto de idéias, são atingidos os pilares dos sistemas lógicos, de inspiração
cartesiana, uma vez descobertas as suas incompletudes e ineficiências, pela pesquisa
valorativa, apresentando os caracteres da interdisciplinaridade e da investigação valorativa,
no papel de instrumentos hábeis a permitir a sobrevivência dos diversos saberes amparados na
Razão, dentre eles, o jurídico.
Reflexo da condição pós-moderna e de suas interações com o modelo epistemológico
jurídico, a abordagem do acesso à justiça como método de pensamento, apresentada por
Cappelletti, provoca alterações no paradigma da ciência jurídica processual no momento em
que põe em posição privilegiada a satisfação dos consumidores da tutela jurisdicional.
Esta opção metodológica alternativa vai além dos estudos totalizadores vinculados ao
exame dos pilares processuais (as noções de ação, jurisdição e processo), para em paralelo
empenhar-se em analisar problemáticas mais concretas, decorrentes de intervenções
interativas com outros ramos do saber universal, v.g., a sociologia e a economia, com a
apreensão pela pretendida ciência jurídica processual de dados relacionados com o objeto de
estudo “processo”, externos às inferências estritamente normativas.
A abordagem do acesso à justiça propõe alterações epistemológicas que visam a tornar
a ciência processual fonte de soluções para os entraves (sistemáticos, políticos, econômicos,
etc.) à devida e eficiente prestação jurisdicional, de modo a atender aos valores efetividade e
justiça social.

76
“O movimento de acesso à Justiça trata então de analisar e procurar os caminhos para
superar as dificuldades ou obstáculos que fazem inacessíveis para tanta gente as liberdades
civis e políticas172”.
Centrado, sim, nos consumidores da prestação jurisdicional, o acesso à justiça dirige-
se a tornar o processo instrumento de realização dos direitos fundamentais, justamente pela
sua missão de pretender remover os empecilhos existentes, de ordem formal ou material, a sua
efetiva tutela judicial.
Surgem, desta feita as três “ondas” da atividade reformadora dos sistemas processuais
inspiradas no método do acesso à justiça e assim nomeadas por Cappelletti e Garth,
apresentando propostas de mudanças com vistas a diminuir os entraves em juízos, originados
em três questões de ordem fática: a pobreza econômica; a pobreza organizativa; os
obstáculos endoprocessuais à realização dos direitos.
Vimos que todas estas “ondas” foram recepcionadas pelo direito brasileiro, sendo
fonte de diversas construções doutrinárias e legislativas, com resultados palpáveis e de grande
repercussão, mas ainda passíveis de crítica, a exemplo das apresentadas neste trabalho.
Na qualidade de premissa final, foram trazidas as advertências de Cappelletti
relacionadas com a viabilidade dos programas de reforma e dos novos institutos
procedimentais, trazendo à tona temas como administração da justiça e formação dos
operadores jurídicos, externos ao campo normativo, mas importantes ao acesso à justiça, em
virtude da interferência material dos problemas inerentes a eles.
Todo o exposto foi colacionado com a finalidade de trazer à tona as concepções
teóricas deste movimento de implicações epistemológicas, jurídicas e político-reformadoras,
que mergulhou a Teoria Geral do Processo na supra apresentada dimensão social.
Isto porque, segundo Cappelletti, devemos estar conscientes de nossa
responsabilidade; é nosso dever contribuir para fazer que o direito e os remédios legais
reflitam as necessidades, problemas e aspirações da sociedade civil, desenvolvendo
alternativas aos métodos e remédios tradicionais, sempre que sejam demasiadamente caros,
lentos e inacessíveis ao povo173.
Procuramos, então, com este breve trabalho, contribuir para suprimento do vazio
existente na doutrina nacional, consistente na demanda por obras que exponham o
pensamento do acesso à justiça, em especial o de Cappelletti.

172
CAPPELLETTI, Mauro. “Os métodos alternativos de solução dos conflitos no quadro do movimento
universal de acesso à justiça.” trad. José Carlos Barbosa Moreira. In Revista de Processo. São Paulo: 74 (19):
82-97, abr./jun. 1994, p.83.
173
Idem. Ibidem.

77
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Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988.

1.2.Artigos:

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2. Estudos sobre a obra de Mauro Cappelletti:

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79
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BEDAQUE, José Carlos dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre
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BORGES, José Souto Maior. O contraditório no processo judicial. Uma visão dialética. São
Paulo: Malheiros,1996

CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais cíveis e ação civil
pública: uma sistematização para a teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

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DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5ª ed. São Paulo:


Malheiros Editores, 1996.

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1996.

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In Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. Recife: 10: 203-216: jan./dez., 2001

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84

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