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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E


FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SOCIOLOGIA E DIREITO

FABIANO GOSI DE AQUINO

O direito à saúde e a intermediação


decisória do STF nos casos dos
medicamentos não registrados pela
ANVISA

NITERÓI
2018
I

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRAUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

FABIANO GOSI DE AQUINO

O DIREITO À SAÚDE E A INTERMEDIAÇÃO DECISÓRIA


DO STF NOS CASOS DOS MEDICAMENTOS NÃO
REGISTRADOS PELA ANVISA

Trabalho apresentado ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para a obtenção
do título de doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Prof. Doutor Fernando Gama de


Miranda Netto.

Niterói, 2018
Ficha catalográfica automática - SDC/BFD

A657d Aquino, Fabiano Gosi de


O direito à saúde e a intermediação decisória do STF nos
casos dos medicamentos não registrados pela ANVISA / Fabiano
Gosi de Aquino ; Fernando Gama de Miranda Netto, orientador.
Niterói, 2018.
206 f.

Tese (doutorado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói,


2018.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGSD.2018.d.

1. Direito processual civil. 2. Direitos fundamentais. 3.


Precedente judicial. 4. Judicialização da saúde. 5.
Produção intelectual. I. Título II. Netto,Fernando Gama de
Miranda, orientador. III. Universidade Federal Fluminense.
Faculdade de Direito.

CDD -

Bibliotecária responsável: Elazimar Menezes - CRB7/3912


II
III

Dedicatória

Aos meus pais, verdadeiros alicerces da minha vida.


Aos meus irmãos Fábio e Juliana, por todo apoio e incentivo.
Ao meu filho João Vitor, que, mesmo inconscientemente, por
inúmeras vezes, foi o estímulo que me encorajava a seguir em
frente, nos momentos mais difíceis.
À minha esposa Adriana e meu enteado Emanuel, por
completarem a família que sempre desejei ter.
IV

Agradecimentos

Agradeço, inicialmente, à Universidade Federal Fluminense que, desde 1996, me


acolheu na graduação e me permite, hoje, cumprir mais uma etapa da minha formação.
Ao Professor Doutor Fernando Gama de Miranda Netto pelas prestimosas e
inestimáveis contribuições para esta tese e pelos incontáveis momentos de compartilhamento
do conhecimento.
A todos os demais professores e funcionários do Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Verdadeiros operários do
conhecimento científico.
Aos amigos do doutorado pelos debates que me enriqueceram enquanto indivíduo e
pesquisador.
Agradeço, também, aos meus alunos que me permitem uma constante oxigenação no
estudo do Direito.
Agradeço, por fim, a Deus.
V

RESUMO

O direito à saúde tem suscitado diversos temas relevantes para a ciência do Direito.
Não apenas no debate da aplicação de um direito fundamental, mas, especialmente, problemas
referentes à filosofia e à sociologia do Direito. A discussão sobre a concretização das
prestações de saúde pelo Estado transcende os limites da política e da economia. A ideia de
higidez do Direito também entra na pauta dos debates quando se pretende estabelecer uma
compreensão acerca das tensões formadas, quando considerados os papeis das instituições
integrantes da estrutura de um sistema de saúde. A experiência brasileira mostra-se pródiga
nos exemplos que mantém vivos os debates entre o positivismo jurídico e os movimentos de
superação que criticam o excessivo formalismo e tentam imprimir, no discurso, conteúdos
axiológicos, pretensamente altruísticos. Dentro da proposta investigativa, desenvolvida na
presente pesquisa, buscou-se estabelecer as conexões entre os direitos fundamentais e as
necessidades humanas com o propósito de fornecer um referencial objetivo de
fundamentação. Avançando sobre o problema da concessão de medicamentos sem registro na
ANVISA, o trabalho passa pela judicialização e a fundamentação das decisões proferidas no
âmbito do Supremo Tribunal Federal que consideram (in)contestáveis tais prestações
considerando o direito à vida e os procedimentos regulatórios para a verificação da eficácia,
segurança e qualidade dos fármacos.

Palavras-Chave:

Direito Fundamental. Saúde. Necessidades humanas. Judicialização


VI

ABSTRACT

The right to health has raised a number of relevant issues to the science of Law. Not
only in the debate about the application of a fundamental right, but, especially, problems
concerning to the philosophy and sociology of Law. The debate about the implementation of
health care by the State transcends the limits of politics and economy. The notion of integrity
of Law also compose the agenda of debates when it is intended to establish an understanding
about the tensions arising from the debate, when considering the roles of institutions that are
part of the structure of a health system. The Brazilian experience is rich in the examples
which keep alive the debates between legal positivism and the movements of overcoming
which criticize the excessive formalism and try to insert, in the discourse, axiological
contents, supposedly altruistic. In the research proposal, it has been tried to establish the
connections between the fundamental rights and the human necessity with the purpose of
providing an objective reference of justification. In order to advance in the issue of the supply
of medicines without registration in ANVISA, the work goes through judicial review and the
justification of the judicial precedents rendered by the Supreme Court that consider
(un)questionable such benefits, considering the right to life and the regulatory procedures to
verification of effectiveness, safety and quality of drugs.

Keywords:

Fundamental rights. Heatlh. Human necessity. Judicial review.


VII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1

METODOLOGIA DA PESQUISA.........................................................................................7

CAPÍTULO I – A RELAÇÃO E A JUSTIFICAÇÃO ENTRE AS NECESSIDADES


HUMANAS E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DIREITO À SAÚDE DENTRO
DE UMA PERSPECTIVA TEÓRICA

1.1 As necessidades humanas e os obstáculos epistemológicos.................................................9


1.2 Necessidades e evitabilidade de dano................................................................................ 21
1.3 As necessidades humanas e os direitos fundamentais: uma relação de
fundamentação..........................................................................................................................25
1.4 A identificação de necessidades universalizáveis dentro de uma perspectiva
racional......................................................................................................................................28
1.5 Os limites das necessidades: as fronteiras fáticas, financeiras e jurídicas..........................32
1.6 Os direitos fundamentais: o árido caminho entre a consagração e a integralização...........36
1.7 Direito à Saúde: a indefinição do conteúdo conceitual, jurídico e axiológico....................39
1.8 O Sistema Único de Saúde: entre o normativo e o real..................................................... 44
1.9 SUS: Integração e incorporação..........................................................................................48

CAPITULO II - O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E O REGISTRO DE


MEDICAMENTOS: ENTRE A METODOLOGIA E O TRATAMENTO

2.1 A regulação sanitária: situando os diversos problemas......................................................54


2.2 O modelo regulatório brasileiro..........................................................................................55
2.2.1 A regulação sanitária de medicamentos no Brasil...........................................................58
2.2.2 A Agência Nacional de Vigilância Sanitária...................................................................62
2.2.3 O controle das inovações farmacêuticas..........................................................................65
2.2.4 Os protocolos de registro de medicamentos....................................................................70
VIII

2.2.5 Audiências Públicas: educação, comunicação e cooperação...........................................75


2.2.6 O Tempo médio para o registro de novas substâncias.....................................................82
2.3 Análise comparativa com entidade congênere: Food and Drug Administration................85
2.4 O registro de medicamentos como uma preocupação global..............................................90
2.5 A inovação farmacêutica e a propriedade intelectual.........................................................93

CAPÍTULO III – A ATIVIDADE JUDICIAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE


SAÚDE: UMA CRISE SISTÊMICA

3.1 A separação de poderes: independência e (des)harmonia.................................................100


3.2 Os conflitos entre os campos regulatório e político..........................................................103
3.3 O Judiciário e os standards procedimento-tempo.............................................................107
3.4 A judicialização da política e os conflitos institucionais..................................................109
3.5 Os conflitos entre os atores: Microjustiça X Macrojustiça...............................................115
3.6 A panaceia principiológica: um deslumbramento hermenêutico......................................117
3.7 A teoria das capacidades institucionais: uma tentativa de compatibilização....................123

CAPÍTULO IV – A TENTATIVA DE CONSTRUÇÃO DE UMA RACIONALIDADE


DISCURSIVA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

4.1 Direito à saúde: um campo fértil ao idealismo argumentativo.........................................131


4.2 Os referenciais para obtenção dos dados..........................................................................133
4.2.1 As decisões monocráticas da Presidência do STF.........................................................135
4.2.2 Decisões monocráticas nos recursos e ações originárias...............................................141
4.2.3 Suspensão de Tutela Antecipada n.º 175......................................................................145
4.2.4 Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.501 (medida cautelar)..............................146
4.2.4.1 Tese vencedora...........................................................................................................148
4.2.4.2 Tese vencida................................................................................................................152
4.2.5 Recurso Extraordinário n.º 657.718..............................................................................153
4.3 Os fundamentos usuais: a invariabilidade argumentativa.................................................157
4.3.1 A indisponibilidade do direito à saúde: a fluidez conceitual.........................................158
4.3.2 As normas programáticas: integralidade ou paradigma?...............................................161
4.3.3 Periculum in mora inverso: a evitabilidade do dano individual em detrimento do
coletivo....................................................................................................................................164
IX

4.3.4 O registro em entidades sanitárias congêneres..............................................................165


4.4 A instabilidade decisória no âmbito da Suprema Corte: a (in)observância do caráter
normativo dos precedentes......................................................................................................167

CONCLUSÃO.......................................................................................................................176
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................180
X

ABREVIATURAS UTILIZADAS

ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade


ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade
AgRg – Agravo Regimental
AI – Agravo de Instrumento
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
CC – Código Civil
CD – Câmara dos Deputados
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CPC – Código de Processo Civil
CRFB – Constituição de República Federativa do Brasil
DJ – Diário da Justiça
DJe – Diário da Justiça eletrônico
DJU – Diário de Justiça da União
DOU – Diário Oficial da União
FDA – Food and Drug Administration
FUNRURAL – Fundo de Apoio ao Trabalhador Rural
MPF – Ministério Público Federal
MPE – Ministério Público Estadual
MS – Ministério da Saúde
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil
PL – Projeto de Lei
RE – Recurso Extraordinário
RESP – Recurso Especial
RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
RISTF – Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal
RISTJ – Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça
RMS – Recurso em Mandado de Segurança
SF – Senado Federal
SL – Suspensão de Liminar
XI

SS – Suspensão de Segurança
STA – Suspensão de Tutela Antecipada
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUS – Sistema Único de Saúde
TCE – Tribunais de Contas do Estado
TCM – Tribunais de Contas do Município
TCU – Tribunais de Contas da União
UPA – Unidade de Pronto Atendimento
1

INTRODUÇÃO

O direito à saúde tem suscitado inúmeros debates relevantes para o Direito,


repercutindo, sobremaneira, nos seus paradigmas estruturais, objetos e métodos
interpretativos. Na presente pesquisa buscou-se investigar a intervenção judicial nas
prestações públicas, especificamente, no tema de saúde pública no estado brasileiro
concessivas de medicamentos não registrados no órgão de vigilância sanitária. O trabalho
aborda os reflexos políticos, sociais e jurídicos da concessão de prestações de saúde não
autorizadas pela legislação brasileira, tentando identificar os fatores que interferem na decisão
judicial, especialmente, aquelas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Admitir-se que decisões judiciais afastem as indispensáveis investigações científicas


acerca da eficácia, da segurança e da viabilidade de medicamentos, constituí um risco de
variadas consequências. A hipótese, portanto, constrói-se na premissa que o Judiciário, ainda
que orientado pela pretensão de concretização das normas programáticas acerca do direito às
prestações de saúde, não deve admitir o completo afastamento das limitações legais que se
justificam por razões de ordem prática. O registro prévio de substâncias medicamentosas não
reside em mera formalidade ou fruto de uma interferência indevida do Estado na atividade
privada, mas encontra esteio nos desejos inquestionáveis de se conferir terapias sabidamente
aptas ao tratamento de doenças.

Para fins de delimitação do tema, visto que a discussão apresenta-se extremamente


vasta, optou-se pela análise das decisões no âmbito do Supremo Tribunal Federal concessivas
de medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que, de acordo
com o comando legal1, têm a sua circulação e uso proibidos em razão da ausência de
elementos que comprovem a sua eficácia, segurança e viabilidade econômica.

Inicialmente a proposta consiste numa abordagem acerca dos direitos fundamentais


tentando compreender sua justificação que antecede a assimilação jurídico-formal. A
compreensão dos direitos fundamentais exige uma investigação que possa encontrar
1
Art. 12 da Lei n.º 6360/76 “Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser
industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.”
2

sustentação lógica de sua gênese. Nesse sentido, buscou-se alcançar um embasamento dentro
de uma perspectiva filosófica capaz de fornecer um referencial hermenêutico, minimamente,
seguro. Insere-se, portanto, no contexto da presente tese, a relação entre os direitos
fundamentais e as necessidades humanas na ótica investigativa.

No primeiro capítulo, portanto, trilham-se alguns referenciais teóricos, passando por


diversos contextos histórico-filosóficos, que, direta ou indiretamente, realizaram uma
abordagem sobre o conceito de necessidades humanas. A partir de tais apreensões, objetivou-
se afirmar, nos direitos fundamentais, a função de realização das necessidades. Diversos
questionamentos derivam dessa possível conexão como o dimensionamento conceitual das
necessidades; os limites fáticos, jurídicos e políticos dos direitos fundamentais e a forma de
estruturação de um sistema interpretativo que permita delimitar os carecimentos humanos a
partir do pragmatismo da negativa de dano.

Ainda dentro da proposta de compreensão dos direitos fundamentais, realiza-se, uma


análise acerca do direito à saúde no Brasil no contexto da Constituição Federal de 1988.
Dentro da ideia de tripartição de funções, foi conferida, ao Executivo, a tarefa de promover as
medidas de atendimento de saúde pública seguindo os princípios da universalidade,
gratuidade, integralidade e igualdade. Entretanto, é importante estabelecer o papel dos demais
atores do campo político, máxime quando evidenciada a ineficiência do poder público e a
crescente demanda da população por prestações de saúde, repercutindo no redirecionamento
das demandas individuais para o Judiciário. A atuação judicial voltada, inicialmente, para a
fiscalização das políticas públicas previstas na Lei n.º 8080/90 e a implementação do
conteúdo programático estabelecido pela Constituição Federal, sofre uma modificação
passando para os Tribunais. Estes, em larga medida, assumem a tutela das prestações de todas
as espécies, como internações, cirurgias, terapias, próteses e fármacos.

Ainda no âmbito hermenêutico dos comandos normativos, indaga-se a abrangência


referida no art. 196 da CRFB ao delinear o Direito à saúde como um dever do Estado e um
direito de todos os cidadãos. Em função da ampliada margem interpretativa surgem
questionamentos acerca dos limites da aplicação do dispositivo, não sendo raros os casos de
decisões judiciais que determinam a realização de tratamentos experimentais no Brasil e no
exterior2, colocação de próteses e fornecimento de medicamentos com altos custos para o

2
A relevância do tema gerou a edição da recomendação n.º 31 de 30 de março de 2010 do Conselho Nacional de
Justiça. A recomendação foi fruto das conclusões alcançadas nas audiências públicas realizadas pelo Supremo
Tribunal Federal em 2009, convocada pelo Ministro Gilmar Mendes. De acordo com a orientação constante do
3

poder público e os pedidos de substâncias sem o prévio registro na ANVISA 3 são outros
exemplos de medidas concedidas pelos Tribunais de todo o país.

A edição da Lei n.º 8080 de 19 de setembro de 1990 representou o marco legal


central nesse cenário inaugurado pela Constituição Federal. A lei estabelece condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, criando um conjunto de ações e serviços
conferidos aos diversos órgão e entidades mantidos pelo poder público nas várias esferas da
federação, e que recebe a denominação de Sistema Único de Saúde. A interpretação
equivocada do princípio da integralidade, previsto no art. 7º, II da Lei n.º 8080/90, parece ter
legitimado a atuação judicial no sentido de conferir todas as prestações de saúde requeridas
pelos indivíduos acometidos das mais variadas enfermidades tornando o Estado uma espécie
de garantidor universal de todas as demandas dos cidadãos4.

Outro elemento a ser considerado no debate reside no comando proibitivo inserido


no art. 12 da Lei n.º 6360 de 23 de setembro de 1976 criando um ponto de conflito para a
própria higidez do Direito. O dispositivo veda a circulação de medicamentos não registrados
no órgão de vigilância sanitária5. Tal vedação justifica-se pelo fato de o procedimento de
registro permitir a aferição de sua segurança (efeitos terapêuticos devem superar os efeitos
colaterais), eficácia (capacidade curativa), qualidade (boas práticas de fabricação) e controle

item B.2 o CNJ recomenda que os Tribunais de Justiça dos Estados e Tribunais Regionais Federais orientem os
magistrados no sentido de que “Evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela
ANVISA ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei.”
3
Recentemente dois casos ganharam notoriedade nos Tribunas e noticiários de todo o país. A polêmica
envolvendo o uso do Canabidiol para o tratamento de doenças psiquiátricas ou neurodegenerativas como
esquizofrenia, mal de Parkinson, epilepsia e ansiedade, bem como a utilização da substância Fosfoetanolamina
sintética, descoberta que representa uma esperança para a cura do câncer. As drogas ilustram a polêmica do
embate jurídico provocado pela vedação legal quanto ao seu fornecimento e as decisões judiciais que autorizam
seu uso.
4
Como exemplo, dos mais variados pleitos que são apresentados na justiça, citamos o caso de um homem
acometido de disfunção erétil que propôs ação pretendendo o fornecimento de Viagra. Colaciona-se a ementa do
julgamento do recurso de agravo de instrumento interposto pelo Estado do Rio de Janeiro contra a decisão do
juiz de primeiro grau que concedeu a liminar. “Agravo de Instrumento interposto contra decisão que deferiu
tutela antecipada para fornecimento do medicamento VIAGRA. Somente se reforma a decisão concessiva ou não
da antecipação de tutela, se teratológica, contrária à lei ou à prova dos autos. Ausência dos requisitos necessários
à concessão da tutela, vez que os documentos que instruem os autos não deixam transparecer qualquer dano
irreparável à saúde do agravado. Matéria afeta à fase probatória da ação dita principal e após o devido processo
legal. ART. 557 § 1º-A DO CPC RECURSO PROVIDO.” Ag. Instrumento Nº. 0048009-42.2010.8.19.0000
5 Além do problema expressão do dispositivo legal referido há vedação relacionada à ética médica conforme
prevê o art. 102 da Resolução 1931/2009 do Conselho Federal de Medicina, que institui o código de ética
médica, estabelece que é vedado ao médico deixar de utilizar a terapia correta, quando seu uso estiver liberado
no país. Dessa forma, pode incorrer em infração disciplinar o médico que prescreva tratamento sem a prévia
autorização pelas autoridades sanitárias. No parágrafo único do referido dispositivo consta que a utilização de
terapêutica experimental é permitida quando aceita pelos órgãos competentes. Disponível em <
http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20667:codigo-de-etica-medica-res-
19312009-capitulo-xii-ensino-e-pesquisa-medica&catid=9:codigo-de-etica-medica-atual&Itemid=122> Acesso
em 22/02/2016.
4

(preço de circulação). Nesse sentido, questiona-se como deve ser enfrentado o problema da
atuação judicial diante da necessária aferição de critérios autorizativos puramente técnicos.

No segundo capítulo o trabalho apresenta um caráter mais descritivo, assentando-se


na análise do processo regulatório, especialmente no campo da vigilância sanitária. Objetivou-
se identificar os processos que compõem a circulação de um medicamento desde suas etapas
de pesquisa até seu final, com a verificação das consequências de seu consumo. O capítulo
justifica-se pela necessidade de se compreender a carga técnico-científica e os eventuais
efeitos decorrentes das múltiplas influências e interesses envolvidos.

Por outro lado, dentro de uma perspectiva de conformação entre as necessidades


humanas e a compatibilização de critérios de segurança e eficácia, é preciso discutir a
tolerabilidade, ou a flexibilização procedimental, e a manutenção de uma proposta de
legitimidade fruto de critérios específicos emanados de uma autoridade competente.

Nesse sentido, portanto, busca-se, compreender o procedimento estabelecido para o


registro de um novo medicamento bem como o tempo médio de autorização para
comercialização e uso. Com o propósito de estabelecer premissas, minimamente, válidas,
realizamos uma análise comparativa com a entidade de registro de medicamentos norte-
americana (Food and Drug Administration). A identificação do método, por meio de suas
etapas formais e a duração, permite alcançar algumas balizas aptas a justificar ou deslegitimar
a atuação judicial.

É importante frisar que a atividade judicial, em sede de controle de políticas públicas,


é admitida quando tendente a corrigir violações a direitos fundamentais e viabilizar o
exercício de direitos sociais quando inobservados os limites impostos pela legislação com
destinação dos gastos em saúde pública. A atuação judicial, neste caso, alinha-se com os
desejos da Constituição, já que força a implementação ou correção de políticas públicas e
encontra-se em sintonia com os resultados pretendidos pela sociedade não merecendo a
adjetivação de ativista.

Neste processo de judicialização da política muitos problemas são enfrentados, não


só no tocante às diversas ciências envolvidas no processo, como a sociologia, a filosofia, a
antropologia, a ciência política, mas também problemas internos, do próprio Direito, são
questionados. As questões relacionadas à separação dos poderes e às capacidades
5

institucionais são referenciadas para compreender os limites da deferência judicial quando


consideradas as decisões das instâncias político-representativas.

No quarto capítulo do trabalho serão abordados os aspectos da atuação judicial na


implementação dos programas de saúde pública, especialmente na delicada intermediação
decisória sobre o fornecimento de prestações proibidas pelo ordenamento jurídico. A
delimitação da atuação judicial demanda uma crítica acerca daquilo que passou a ser tratado
como ativismo judicial e os riscos para a estabilidade das funções estatais. O comportamento
judicial nos processos decisórios dos Estados democráticos requer uma análise crítica
concreta para se determinar suas reais atribuições, máxime no dimensionamento da
interpretação das normas constitucionais. Difícil, no entanto, é a definição dos limites das
normas em que se mostra imprescindível o debate político e se verifica possíveis invasões de
atribuições políticas pelo Judiciário.

Trata-se de uma confrontação entre os dados levantados para o registro de


medicamentos e a (in)justificadas interferências derivadas da atuação judicial. É preciso
compreender as exigências técnicas e os eventuais abusos praticados pelo órgão regulador
para se estabelecer padrões de conformação das decisões judiciais. Não basta o mero desejo
do julgador que, premido por sentidos altruísticos, autoriza a utilização de substâncias sem
conhecer sua eficácia e possíveis reflexos.

No quarto, e último, capítulo analisamos as decisões do Supremo Tribunal Federal


sobre os pedidos de concessão de substâncias desprovidas de registro. Dos acórdãos
analisados foram extraídos os fundamentos determinantes dentro do objetivo de se reconhecer
uma (ir)racionalidade argumentativa na Corte. Sob o ângulo de pretensa instância capaz de
proferir decisões tendentes à estabilização jurídico-constitucional, o STF serviu como
referencial para a identificação dos critérios hermenêuticos apresentados pelos Ministros.

É sempre importante relembrar que as decisões judiciais devem ser orientadas por
um dever de legitimação, evitando valorações extremadas ou inexistentes. Nesse sentido, cabe
ao aplicador do direito buscar posições racionais e procedimentais capazes de conferir o
atributo da validade bem como da eficácia. Pretende-se, compreender, a partir da análise dos
acórdãos sobre o assunto, as teses apresentadas para se conceder ou negar uma prestação de
saúde, considerando os fatores não apenas jurídicos vinculados ao caso, mas eventuais
circunstâncias como valores éticos, morais, clínicos, políticos ou econômicos.
6

Na análise das decisões judiciais e da construção do discurso pelo Supremo Tribunal


Federal o trabalho utilizará processos julgados em que o objeto da causa consistia na
concessão de medicamentos não registrados no órgão de vigilância sanitária. Serão utilizados
os pedidos de suspensão de tutela antecipada, suspensão de segurança, suspensão de liminar e
recursos extraordinários em que se possam identificar os elementos condutores da decisão
judicial.

A partir de tais informações, foi possível estabelecer algumas conclusões sobre os


fundamentos utilizados e os problemas decorrentes da coerência decisória dos julgadores.
Dentro da expectativa, reforçada pelo novo Código de Processo Civil, acerca do sistema de
precedentes, o trabalho caminhou no sentido de compreender se o STF estaria em
consonância com a proposta de padronização e estabilização decisória capaz de orientar as
demais instâncias da estrutura judiciária brasileira, bem como as futuras decisões da própria
Corte.
7

METODOLOGIA DA PESQUISA

No que diz respeito à metodologia, a pesquisa é bibliográfica e documental. Para fins


de obtenção de catalogação de dados foram coletadas informações sobre o tempo de registro
de medicamentos obtidos por meio de requerimentos formulados no Sistema Eletrônico de
Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC), registrados sob os números 25820002921201650,
25820003298201652, 25820003927201644, 25820004191201711, 25820004476201743 e
25820005098201715. O portal advém de uma exigência estabelecida na Lei n.º
12.727/2011(Lei de Acesso à Informação) que regulamentou o acesso dos cidadãos às
informações públicas. Nesse sentido, o Executivo, por meio da Controladoria-Geral da União,
criou o portal eletrônico (www.esic.cgu.gov.br) com o propósito de facilitar o acesso às
informações encaminhadas por um sistema que permite controlar prazos, interpor recursos e
fornecer dados estatísticos.

Dados importantes foram obtidos no sítio eletrônico da Agência Nacional de


Vigilância Sanitária (www.anvisa.gov.br), especialmente sobre o procedimento de registro de
medicamentos, formando a base analítica realizada no terceiro capítulo do presente trabalho.

No quinto capítulo, realizou-se a análise, exclusivamente, dos acórdãos proferidos


pelo Supremo Tribunal Federal no tema específico da ausência de registro de medicamentos.
A amostra foi obtida por meio de pesquisa realizada no sítio eletrônico do STF
(http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp). O tema “direito à
saúde” apresenta um vasto quadro de problemas buscando-se, dentro do recorte proposto,
pesquisas de decisões judiciais que contivessem “palavras-chave” que permitissem um
levantamento pertinente das decisões judiciais, dadas as inúmeras composições léxicas
possíveis. As consultas no portal eletrônico tiveram como parâmetros “medicamento e
registro”, “fármaco e registro”.

Diante do resultado, foram excluídas as decisões que não tratavam precisamente do


objeto da pesquisa. Com o propósito de realizar uma conferência quantitativa, foi
8

encaminhada uma solicitação de pesquisa para o Setor de Pesquisa de Jurisprudência, no sítio


eletrônico do STF (http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaEmail/criarSolicitacaoEmail.asp).
Trata-se de serviço disponibilizado no portal que permite, a partir do preenchimento de
formulário específico, obter o inteiro teor das decisões.

Foram analisados os debates travados na audiência pública realizada no Supremo


Tribunal Federal no ano de 2009, convocada pelo Ministro Gilmar Mendes cujo objetivo era
obter elementos decisórios para o julgamento dos inúmeros processos envolvendo pedidos de
concessão de prestações de saúde. As falas apresentadas na audiência estão disponíveis no
sítio eletrônico www.youtube.com. Por outro lado, a consulta dos memoriais apresentados no
processo foram obtidos no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal.

Dentro do cenário alcançado, considerando o material obtido no levantamento,


dividimos o estudo em dois segmentos: primeiramente realizamos uma exposição pontual
acerca dos argumentos esposados pelos Ministros em seus votos/decisões. Realizou-se,
portanto, uma análise sob um aspecto quantitativo. Na sequência, passou-se para uma
avaliação qualitativa dos fundamentos utilizados pelos Ministros, analisando as relações de
adesão/rejeição das teses pelos integrantes do órgão bem como as possíveis críticas às
interpretações emprestadas aos julgados.

Foram selecionados acórdãos proferidos em diversos tipos de ações originárias e


recursos extraordinários apreciados pela Suprema Corte. Originariamente o STF decidiu a
questão do fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA por meio de pedidos de
Suspensão de Liminar, Suspensão de Tutela Antecipada, Suspensão de Segurança e Ação
Direta de Inconstitucionalidade. Pela via recursal, o tema chegou ao Tribunal em recursos
extraordinário e agravos de instrumentos interpostos contra as decisões dos tribunais de
origem denegatórias de seguimento do apelo extremo.

Assim, buscou-se, como destacado na parte introdutória do trabalho, aferir os


parâmetros que pudessem estabelecer um critério hermenêutico na Corte e analisar as
perspectivas dentro de uma estrutura de coerência e aceitabilidade metodológica diante de
uma pretensa estabilidade decisória.
9

CAPÍTULO I – A RELAÇÃO E A JUSTIFICAÇÃO ENTRE AS NECESSIDADES HUMANAS


E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DIREITO À SAÚDE DENTRO DE UMA
PERSPECTIVA TEÓRICA

1.1 As necessidades humanas e os obstáculos epistemológicos

A formação de um conteúdo conceitual para as necessidades humanas é objeto de


análise em diversos segmentos do conhecimento como na filosofia e nas ciências sociais6. A
compreensão acerca da construção de uma ordem social que permita a compatibilização entre
as necessidades e os interesses individuais em um polo e no outro as políticas sociais sempre
vinculadas a fatores de governança e econômicos é tema de intensos debates, no qual as
respostas, muitas das vezes, carecem de um rigor acerca dos métodos e conclusões do
processo cognitivo.

O equilíbrio da ordem social está associado ao nível de satisfação das necessidades e


dos interesses individuais, ou seja, quanto maior o grau de satisfação menor o nível de tensões
sociais. A não satisfação das necessidades nos estados menos desenvolvidos é enorme, o que
gera potenciais desequilíbrios na organização social. Compreender o real conceito de
necessidades e de sua satisfação pode ser o meio apropriado para a introdução de políticas
públicas e, consequentemente, alcançar um padrão adequado de respeito aos direitos
fundamentais do ser humano.

É preciso enfrentar o tema estabelecendo as conexões entre direitos e necessidades


para a correta compreensão das repercussões e relações de interdependência ou, até mesmo,
de precedência. Afirmar a existência de uma necessidade confere um caráter de acolhimento
natural pelo Direito? É possível identificar necessidades passíveis de desconsideração pelo
ordenamento jurídico de determinado país? Novos contornos sociais podem atribuir
juridicidades às necessidades surgidas diante desses novos contextos? Sugere-se, portanto,

6
É possível citar autores como Aristóteles e Epicuro no campo da filosofia, Karl Marx e Herbert Marcuse com
uma abordagem sociológica e econômica, Abrahan Maslow com o tratamento voltado para a psicologia
motivacional, entre outros que, direta ou indiretamente, abordaram o tema das necessidades humanas.
10

uma abordagem que se afasta da perspectiva jurídico-formal dos direitos fundamentais para
encontrar sua justificativa introdutória.

Numa primeira consideração, é fundamental estabelecer as diferenças básicas entre


necessidades humanas e os desejos ou interesses. Os desejos estão no plano da
individualidade do sujeito, isto é, representam um conjunto de motivações subjetivamente
construídas. O surgimento de um desejo advém de uma deliberação interna e de um estado
mental em que a frustração produzirá efeitos na órbita particular7. Por outro lado, as
necessidades consolidam-se na afirmação de um bem-estar valorado eticamente e, portanto,
capaz de se abrigar numa perspectiva socialmente relevante.

É neste cenário, de inúmeros questionamentos, que a investigação procura


compreender a existência de uma natureza instrumental das necessidades humanas, enquanto
condicionante ou estrutura causal, com os direitos fundamentais, ou seja, determinar a
conexão entre a proteção jurídica em questões indissociáveis à afirmação das condições
básicas do indivíduo e a relação com as necessidades humanas elementares.

Essas questões surgem como elementares para a compreensão do conteúdo das


necessidades e seus reflexos para o Direito. Longe de qualquer pretensão de esgotar o tema, a
presente tese discorre sobre algumas questões fulcrais no intuito de inserir na análise a relação
entre as necessidades de sobrevivência, com a consagração do direito fundamental à saúde,
em especial na sua dimensão de concessão de medicamentos destituídos de regular registro
pela entidade de vigilância sanitária responsável.

Inicialmente, é preciso destacar que as necessidades humanas possuem caráter


generalizante estando, potencialmente, vinculado a fatores históricos, sociais, econômicos,
políticos, biopsicológicos e culturais. Portanto, dimensionar as necessidades humanas
pressupõe diversos elementos, o que torna uma definição empírica tarefa difícil num sentido
amplo. As necessidades de sobrevivência, de afirmação de uma identidade e de integração
social são exemplos que reforçam a ideia de que não está associada a fatores singulares
identificáveis no plano das vontades individuais. A integração entre os indivíduos e a

7
Nesse sentido “Afirma-se, de antemão, que as necessidades humanas básicas diferem dos interesses e desejos.
Enquanto as necessidades parecem referir-se aos constrangimentos à obtenção ou ao atingimento de objetivos ou
fins específicos que são geralmente aceitos como naturais e/ou morais, os interesses e desejos dizem respeito à
esfera precípua da volição. Portanto, justificam-se em razão de fins individuais, contrariamente às necessidades,
que são generalizáveis.” GUSTIN, Miracy B.S. Das Necessidades Humanas aos Direitos – Ensaio de sociologia
e filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey. 2009. Pag. 9
11

organização social permitiu o surgimento de práticas reivindicatórias. A consciência, pelos


atores sociais, acerca da situação de marginalidade, especialmente, em razão da sonegação das
carências fez surgir o ambiente de mobilização e organização na busca pelo reconhecimento
de necessidades comuns.

Contudo, como pressuposto fundamental de qualquer prática reivindicatória, e,


consequentemente, o reconhecimento e acolhimento das necessidades humanas, está a análise
sob a perspectiva individual, isto é, da autonomia do homem. É condição básica para a
evolução do processo de consagração a definição dos carecimentos isolados autonomamente,
como precedente lógico para a definição de objetivos coletivamente considerados e, por via
de consequência, nas finalidades do próprio Estado.

A autonomia é elemento transcultural e invariável quando analisado em seu contexto


social. O indivíduo autônomo é aquele que pode se determinar em suas escolhas e objetivos
pessoais mediante convicções e capacidades sobre sua forma de vida8. A essa modalidade de
autonomia de ação é preciso afirmar também a autonomia crítica, consistente na capacidade
de compreensão acerca dos reflexos de suas intervenções no âmbito social, ou seja, a aptidão
de reconhecer como suas interações podem repercutir no mundo onde vive.

Na verdade, a autonomia crítica surge como uma revisão de um modelo de autonomia


liberal, no seu sentido de autodeterminação e individualidade, já que não dispensa a
preocupação de suas ações num contexto de coletividade. Há uma liberdade de ação
dialogicamente justificável perante os demais membros da sociedade. Parte-se, portanto, de
uma ideia de autonomia perfeitamente justificável diante de limites socialmente admitidos.

O ser humano é uma criatura que apresenta uma autonomia relativa, pois depende do
meio ambiente onde vive, buscando estabelecer conexões com outros indivíduos. Além das
carências individuais, de conteúdo puramente biológico, o ser humano busca a satisfação de
outros elementos extraídos das trocas entre os membros de um meio social. Vê-se, portanto,
que as necessidades precisam ser compreendidas individualmente, como reflexo do exercício
das autonomias dos sujeitos, bem como analisadas no plano da coletividade.

Portanto, com base nas diversas concepções filosóficas a seguir coletadas, é possível
constatar que identificação das necessidades sofre com a tensão entre o individual e o social.

8
Numa análise etimológica do termo autonomia é possível identificar esse sentido de viver em conformidade
com suas próprias leis. autos: a si; nomos: regra ou lei.
12

O ser humano possui inegável individualidade, contudo é preciso destacar que se encontra
inserido em uma ordem social e as estruturas sociais são formadoras de novos carecimentos. É
preciso analisar se as demandas individuais, por si só consideradas, são insuficientes para a
concessão de mecanismos de satisfação ou se a construção decorrerá de um sistema mais
globalizado, considerando a preponderância dos anseios da coletividade.

A dificuldade metodológica na abordagem do tema comporta alguns problemas como


a definição do conteúdo, a fundamentação e a classificação das necessidades humanas. Todas
elas, em maior ou menor medida, apresentam conteúdos teóricos que dificultam um
tratamento único bem como uma argumentação imune às críticas. Todavia, o enfrentamento
de tais questões deve ser realizado, sob o risco de subtrair do debate a profundidade desejada
ou conferir características de superficialidade não desejadas no âmbito de um trabalho que se
pretenda científico.

O primeiro problema enfrentado reside na abordagem acerca da obtenção do conceito


das necessidades humanas, pois, inegavelmente, esta sofre com as variações de perspectivas
variadas. A sociologia, a antropologia, a filosofia, a ciência política e a economia colocam-se
como padrões epistemológicos influentes no momento de se determinar, objetivamente, a
noção de necessidade. Formalmente, recorre-se ao critério da definição pela negação, ou seja,
o método adotado consistiu em analisar as noções a partir dos efeitos produzidos diante da
não satisfação ou da privação permanente de uma necessidade e os reflexos identificados
pelas frustrações diante das situações de carência material.

Outro obstáculo encontrado reside na fundamentação das necessidades. A ausência


de uma análise empírica impede a criação de uma teoria precisa e uniformemente admitida
das necessidades humanas. Significa afirmar que, enquanto as necessidades não puderem ser
observadas objetivamente, haverá grande dificuldade em se afirmar, com precisão, sua
justificativa. A pluralidade de dimensões dificulta a apuração de medidas quantitativas
capazes de consubstanciar a apreensão de fundamentos objetivamente reconhecidos. Contudo,
a despeito das inúmeras variantes, muitas das propostas teóricas apresentadas partem de
referenciais metodológicos como o da natureza humana, do equilíbrio social e da qualidade de
vida.

A análise desenvolve-se no plano da fundamentação das necessidades, isto é, é


preciso compreender os sentidos da justificação para o reconhecimento ou surgimento de uma
13

necessidade, não se considerando como fundamental o aspecto de seu conceito. Consiste na


identificação do conteúdo argumentativo hábil a explicar o significado e a razão dos direitos
fundamentais dentro de uma racionalidade para o reconhecimento. É com esse viés que as
várias concepções, extraídas de momentos históricos diversos, serão abordadas, considerando
autores que direta, ou indiretamente, trataram do tema.

Em terceiro lugar, outra dificuldade reside nas propostas de classificação das


necessidades, ou seja, a disposição hierárquica das chamadas necessidades primárias ou
originárias e secundárias ou derivadas. No geral, as necessidades primárias estão relacionadas
àquelas necessidades fisiológicas, relacionadas à sobrevivência e nos aproximando dos
demais seres vivos, como a alimentação, água, abrigo, etc. Vale destacar que a classificação
ou hierarquização comporta algumas críticas, sobretudo pela fixação de outros critérios como
o conteúdo axiológico, compreendendo-se as necessidades primárias como aquelas
perseguidas, de fato, por todos os indivíduos. Por esta teoria, é possível afirmar uma
ampliação das necessidades fundamentais dos indivíduos em função dos valores
coletivamente relevantes como a associatividade, a comunicação, a cidadania, a igualdade,
entre outros.

Ainda dentro dessa proposta de categorização têm-se as necessidades típicas, cuja


característica é a sua invariabilidade, pois independem do contexto em que são identificadas e
as necessidades circunstanciais que oscilam a depender de condições especiais. Sob outra
perspectiva, afirma-se a existência de necessidades autênticas e necessidades falsas ou
criadas. Nesta classificação as necessidades autênticas seriam verdadeiras e imprescindíveis
para a sobrevivência do indivíduo independente do sistema experimentado, ao passo que as
falsas derivariam de um sistema capitalista em que o sujeito suporta a manipulação de
impulsos cognitivos capazes de criar elementos sem os quais não consegue se inserir como
parte da coletividade, ou seja, o indivíduo é controlado através das necessidades manipuladas
por uma doutrinação ideológica9.

Em momentos históricos distintos, vários teóricos deram, às necessidades humanas,


um caráter de referencial investigativo, abordando suas bases filosóficas e estabelecendo
críticas sobre sua identificação. É possível afirmar que muitas delas não se apresentam como

9
Autores como Marx e Marcuse utilizam tais categorias para a formulação da crítica ao capitalismo, máxime
para criticar as necessidades criadas que servem de propulsão para o consumo alienado e inconsequente pelos
indivíduos.
14

teorias excludentes, mas ideias que analisava o tema sob perspectivas diferenciadas, muitas
influenciadas por contextos históricos, antropológicos ou sociológicos.

De acordo com a visão aristotélica, por exemplo, o indivíduo, embora inserido num
contexto coletivo, assume papeis e necessidades voltadas para o alcance do bem coletivo.
Através de suas virtudes naturais, bem como aquelas desenvolvidas por força de treinamentos,
o ser pode perseguir o bem de todos. Para o agir virtuoso o indivíduo assume a capacidade de
escolha e, portanto, assume a aptidão de deliberar e optar pelas possibilidades existentes10.
Nesse sentido, o ser humano necessita de alguns objetos que lhe são preciosos, pois permitem
a elevação da sua virtuosidade como a sabedoria, a alma, a saúde, a justiça, mas também pode
ter necessidades desejáveis como a força, a honra, a riqueza, que podem ser utilizadas para o
bem ou para o mal.

Em Epicuro, já no período da filosofia helenística, há uma modificação na proposta


objetiva e determinista, associando-se, as necessidades, ao plano dos sentidos. O filósofo
propõe a ruptura das ideias que defendiam uma espécie de necessidade inevitável. A
finalidade do indivíduo deve ser a busca pelo bem do corpo e a tranquilidade da alma,
assumindo a liberdade da vontade em que o prazer11 será a principal orientação no
comportamento humano12.

10
Na obra Ética a Nicômaco, o filósofo busca identificar qual bem é mais valioso para o ser humano e, portanto,
capaz de guiar suas ações. Certamente, a felicidade é esse “sumo bem”, contudo, não é a felicidade em seu
sentido vulgar relacionada ao prazer, à riqueza ou à honra. A felicidade é um estado da alma alcançado por meio
da realização de suas virtudes. Aristóteles segue afirmando que as virtudes podem ser intelectuais, extraídas do
aprendizado e, portanto, resultado da experiência e do tempo, ou morais, que são incorporadas a partir de nossos
hábitos, como fruto do exercício deles. O destaque dado à obra decorre do fato de ser um importante referencial
teórico sobre o agir humano, o que viabiliza compreender, dentro da ótica filosófica de Aristóteles, identificar
onde as necessidades humanas encontram seu fundamento. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco (Coleção Os
Pensadores, vol. 2). São Paulo: Nova Cultural, 1991.
11
Importante destacar que o prazer, na doutrina epicurista, é a preponderância da medida adequada sobre os
excessos, isto é, o prazer não é alcançado pelos excessos, mas sim pela moderação. Esse prazer de se alcançar a
felicidade com as coisas simples da vida é o fator determinante para a identificação da necessidade do indivíduo
e, uma vez satisfeita, produz de equilíbrio, pois se elimina a dor do corpo e da alma. Conforme estabelece o
filósofo: “Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes
ou aos que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao
prazer que é a ausência de sofrimento físico e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes
contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor de peixes e iguarias de uma festa farta que tornam
doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda a escolha de toda a rejeição que
remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos.” EPICURO.
Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: UNESP. 2002. Pag. 43-45
12
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro:
Zahar. 2007. Pag. 93
15

Para o filósofo grego existem três tipos de necessidades: as necessidades naturais


essenciais que estão ligadas a fatores biológicos e, portanto, devem ser saciadas sempre sob
risco de morte (sede, fome, sono, etc.); as necessidades naturais e não essenciais que devem
ser buscadas moderadamente (não comer demais, não exceder nas práticas sexuais) e as
necessidades não naturais e não essenciais voltadas para uma natureza puramente artificial
como a gloria, a honra, a riqueza, o sucesso, entre outras.

Já no período medieval, pensamento científico caracteriza-se pela permanente tensão


entre a filosofia e os dogmas religiosos, especialmente aqueles decorrentes da doutrina cristã,
isto é, pelos conflitos entre os conceitos da fé e a razão filosófica e científica. Sem a ruptura
total com o pensamento clássico, alguns autores surgem, considerando as teorias platônicas e
aristotélicas, mas criando uma relação com os textos sagrados, sendo certa a precedência
destes em relação aos textos clássicos. A teologia cristã é o movimento da racionalização da
fé a partir de categorias filosóficas.

O período medieval, embora já no seu final, sofreu influência de outro teórico da


doutrina cristã. São Tomás de Aquino desenvolveu uma filosofia própria, tratando de temas
de teologia e se valendo de Aristóteles como seu ponto de partida e defendendo a
compatibilidade deste com o pensamento cristão. A filosofia tomista parte da construção de
bases racionais e empíricas na tentativa de demonstrar que a razão existe para confirmar os
mistérios da fé13.

Os principais teóricos do período exerceram forte influência no sentido de conciliar


os elementos sagrados com o conhecimento filosófico e a possível conexão entre a razão
humana e as revelações divinas. Em grande medida os dogmas cristãos promoveram o
desenvolvimento de uma moral – a despeito dos problemas morais que as religiões carregam
em si – capaz de estabelecer um modelo de comportamento, o autocontrole e o afastamento de
desejos negativos por receio de punição divina.

Diante dessa carga fortemente religiosa e de uma ética cristã, as necessidades


humanas no período medieval seguem a tendência de se aproximar do sagrado, ou seja, a
necessidade humana são identificáveis a partir daquilo que conduz o indivíduo a respeitar os
dogmas cristãos e, por via de consequência, aproximá-lo da figura de Deus, já que feito à sua

13
Na obra Suma Teológica, são Tomás de Aquino desenvolve as “Cinco Vias” em que busca demonstrar através
de elementos objetivos as provas acerca da existência de Deus, reforçando a ideia de compatibilização entre
razão e fé.
16

imagem e semelhança. As necessidades humanas, identificáveis como naturais ou artificiais14,


seguem a orientação da condução de um comportamento digno de satisfazer os propósitos de
Deus, não só no comportamento individual como também na aproximação com seus
semelhantes remediando as necessidades do outro.

Contudo, as concepções individualistas da era moderna alteraram o pensamento


filosófico predominante até então, baseado em aspectos religiosos, assumindo a forma de um
pensamento racional e empirista, especialmente com a criação de novos métodos de
investigação científica. O homem passa a ser visto como detentor de uma identidade própria,
superando a estrutura hierarquizada do período medieval, fortemente assentada no elemento
sagrado e tendo a filosofia como instrumento de justificação de aspectos religiosos. O
movimento humanista supera a visão teocêntrica reconhecendo a valorização da liberdade e
da capacidade de autodeterminação do indivíduo, ou seja, os propósitos individuais passam a
conduzir as ações do homem.

Nessa tendência de valorização do ser individual, há a elevação dos papeis e seus


inexoráveis reflexos coletivos. A capacidade de tomar decisões é, unicamente, do homem, de
acordo com suas necessidades e objetivos. Nesse sentido, identificam-se as necessidades
como questões pontuais, escolhidas dentre um conjunto de possibilidades livremente
colocadas para a escolha do indivíduo, de acordo com suas próprias preferências.

Para Hegel, a sociedade civil configura-se como um sistema de necessidades ou


como um conjunto de mecanismos de proteção à propriedade e às liberdades pessoais. As
relações interindividuais repercutem na vida social e tal sociedade pode ser analisada da
mediação entre as necessidades e o trabalho, pois permite a satisfação dos carecimentos
individuais bem como a dos demais membros da sociedade. O homem, enquanto criatura
natural tem sua subjetividade caracterizada por suas necessidades, desejos, paixões e
interesses diante do mundo objetivo do espírito. O autor, também, estabelece a distinção entre
desejos e necessidades, sendo os primeiros delimitados dentro da esfera psicológica, ao passo

14 Na Suma Teológica, são Tomás de Aquino identifica necessidades naturais (comida, bebida, vestuário,
transporte, habitação) e as artificiais que não são frutos da natureza, mas sim criadas pela inventividade humana
(dinheiro). São Tomás de Aquino. Suma Teológica. Pag. 932. Disponível em <
https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf> Acesso em 12/07/17
17

que as necessidades assumem um significado dentro da esfera política e econômica. Contudo,


ambas teriam a mesma origem, na autoconsciência e no processo de objetivação15.

Num segundo momento, surge a transformação das necessidades do plano individual


para o social, sendo, este, caracterizado pela totalidade dos interesses particulares e
motivações pessoais. Desse modo, a identificação das necessidades seria extraída da
totalidade dos interesses particulares voltados para a obtenção do trabalho e da propriedade. A
sociedade civil constitui-se através dos interesses particulares orientados pela obtenção da
satisfação da necessidade de propriedade e de divisão do trabalho, que acaba por estabelecer
uma estrutura social caracterizada pela desigualdade e egoísmo.

A relevância da teoria hegeliana está em reconhecer o caráter dialético e racional da


necessidade. A partir da análise de Hegel é possível compreender a necessidade como uma
categoria que se constitui do subjetivo para o objetivo, do particular para o geral, de um
processo de interiorização para exteriorização. É sobre essa perspectiva que o autor constrói
sua concepção de Estado, pois este não se assenta na satisfação das necessidades individuais.
O autor inverte a teoria liberal ao defender que o Estado é reflexo de uma unidade racional,
mas sim na constituição de um benefício ético coletivo.

Hegel entende que a vida social é a finalidade precípua do Estado é a


compatibilização da vontade coletiva racional que ultrapassa o arbítrio ou a vontade
individual. É, portanto, equivocada a visão de que a estabilidade social está assentada no
respeito às vontades individuais, sendo certo que o Direito e o Estado percorrem etapas que
iniciam na identificação de vontades livres, mas que se completam e se aperfeiçoam no
momento em que a vida social encontra-se harmonizada e organizada.

Outra abordagem de destaque, já no período contemporâneo, foi aquela realizada por


Hebert Marcuse, que na obra A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional,
trata diretamente sobre as necessidades humanas. Para o autor, as necessidades são divididas
em verdadeiras e falsas. As necessidades autênticas ou verídicas são aquelas em o indivíduo
tem o direito indiscutível à satisfação, consistindo nas necessidades vitais (alimento, roupa,
teto, etc.). Estão relacionadas à suavização da labuta e da pobreza. Por outro lado, as falsas

15
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. 2. ed. Tradução: Norberto de Paula
Lima, adaptação e notas: Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997. Parág. 189
18

necessidades16 consolidam-se a partir da aceitação de demandas sociais e, portanto, os valores


externos coagem o indivíduo, sem que ele consiga exercer controle. A sociedade capitalista
exerce forte influência no sentido de estabelecer como fundamentais necessidades supérfluas.
A manipulação das preferências dos objetos de consumo é realizada de modo a introduzir no
homem a vontade na satisfação dessas necessidades17. O indivíduo torna-se incapaz de
identificar as verdadeiras necessidades.

De acordo com Marcuse a delimitação da veracidade ou falsidade das necessidades


passa por uma análise volitiva e interna do próprio indivíduo, ou seja, somente pode ser
respondida pelo homem em sua exclusiva análise, desde que parta do pressuposto da
liberdade do sujeito. Apenas quando o indivíduo for livre para determinar a resposta para qual
necessidade apresenta-se como fundamental, sem a interferência de doutrinas ou
manipulações, será possível identificar a autenticidade das necessidades humanas. Somente
através de um processo de emancipação e libertação da subjetividade humana torna-se
possível o exercício da plena capacidade volitiva apta a proporcionar a autonomia do
indivíduo.

Para Marcuse, a revolução socialista é o modelo viável para a transformação e


libertação do indivíduo. O socialismo seria capaz de implementar um modo de vida
qualitativamente novo e a substituição do modelo que estabelece “a cada um segundo o seu
trabalho” para “a cada um segundo suas necessidades”. Residiria no modelo social em que o
sujeito planejaria e usaria os instrumentos de seu trabalho para a realização de suas
necessidades. Seria a primeira vez na história em que o homem agiria contra a necessidade
que limita sua liberdade passando a se orientar pelas necessidades, conscientemente,
autoimpostas18. A libertação dos indivíduos não significaria o retorno a um estado natural, de
simplicidade e de poucas necessidades, mas sim a criação de uma consciência emancipadora
que permita a identificação das falsas necessidades, da competição entre os semelhantes, do

16
“Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas como as falsas necessidades. ‘Falsas’ são aquelas
superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a
labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. Sua satisfação pode ser assaz agradável ao indivíduo, mas a
felicidade deste não é uma condição que tem de ser mantida e protegida caso sirva para coibir o desenvolvimento
da aptidão (dele e de outros) para reconhecer a moléstia do todo e aproveitar as oportunidades de cura. Então, o
resultado é euforia na infelicidade. A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e
consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de
falsas necessidades.” MARCUSE, Hebert. A ideologia da sociedade industrial – O homem unidimensional.
Tradução Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar. 1973. P. 26
17
“De fato, nos setores mais altamente desenvolvidos da sociedade contemporânea o transplante de necessidades
sociais para individuais é de tal modo eficaz que a diferença entre elas parece puramente teórica.” Op. Cit. P. 29
18
Op. Cit. P. 57
19

consumo manipulado e da dominação do dinheiro. Questiona-se se vale o preço pago por essa
sociedade irracional que dissemina a instabilidade social, a perpetuação da labuta e a
promoção da frustração.

A razão tecnológica instituída pelo capitalismo impede o exercício das subjetividades


autônomas e na sociedade contemporânea a conquista de bens e satisfação de necessidades
está restrita a pequenos setores da sociedade. Esse padrão é falso, vez que representa uma
prosperidade que encobre as distorções entre os indivíduos reforçando a ideia de
aprisionamento evidenciando o “Inferno dentro e fora de suas fronteiras”19.

A influência da obra de Marx nas teorias marcuseanas é nítida. Ambos identificam os


defeitos do sistema capitalista na criação alienada das necessidades, estabelecendo a solução
no modelo socialista. Embora Marx já identificasse a forma pelo qual o capitalismo adentrava
na consciência individual20 não podia prever os níveis alcançados no século XX. Marcuse, por
sua vez, explorando a realidade tecnológica de sua época, identifica uma nova característica
da sociedade industrial, sobretudo a manipulação da consciência pela publicidade das
mercadorias que não vendia o produto em si, mas sim um estilo de vida.

São obras que se aproximam, sobretudo pelo aspecto ideológico, sendo elementos
convergentes nas teorias apresentadas o processo de alienação provocado pelo capitalismo e a
manipulação das necessidades humanas. A falta de uma consciência livre dos indivíduos
impede a compreensão daquelas necessidades que são reais ou verdadeiras. Somente com a
libertação do sujeito haveria a possibilidade de emancipação e identificação das necessidades
legítimas que para Marx seria fruto de um contexto histórico e social enquanto que para
Marcuse partiria da vontade do homem, ou seja, a criação das necessidades surgiria a partir da
individualidade subjetiva que criaria constantemente novas necessidades qualitativamente
relevantes e a busca por meios de satisfação e essa seria a base do desenvolvimento humano21.

19
Op. Cit. P. 222
20
É aquilo que Marx na obra O Capital identifica como o “Caráter fetichista da mercadoria”. Op. cit. P. 204
21
No entanto, é preciso destacar que as investigações sobre necessidades humanas também sofreram com teorias
que partiam de metodologias distintas, refutando, em certa medida, a categoria materialismo histórico. Tais
teorias compreendem, portanto, as necessidades a partir das chamadas teorias motivacionais, alterando o
paradigma constituído pelo marxismo que compreendia as necessidades como objetos realizados por fatores
sociais e históricos. Por essa perspectiva, o comportamento humano é orientado por aspectos mentais e
instintivos no sentido de satisfação das necessidades capazes de conferir prazer e, consequentemente, obtenção
de felicidade. Nesse sentido, é possível citar Abraham Maslow que identificou as necessidades humanas a partir
de uma abordagem da psicológica, hierarquizando-as graficamente na figura da pirâmide onde, na base ficariam
as necessidades fisiológicas, passando pelas necessidades de segurança, relacionamento, estima, até chegar nas
necessidades de realização pessoal.
20

Ainda dentro da perspectiva de fundamentação das necessidades, Bobbio estabelece


o elemento histórico como fator de relevo na construção dos direitos. Para o autor os direitos
são históricos, não surgindo em um único momento. Novos direitos surgem de novos
carecimentos que, por sua vez, decorrem das novas condições sociais e do desenvolvimento
de inovações tecnológicas capazes de satisfazê-los. A atuação do homem é essencial nesse
processo de construção e transformação22.

Conforme sustenta o autor, na obra “A Era dos Direitos”, a natureza variável das
necessidades e dos direitos dificulta a identificação de um fundamento único para os direitos
humanos, sendo ilusórias as tentativas de se descobrir um “fundamento absoluto” capaz
alcançar a adesão universal. O relativismo histórico gera uma pluralidade de concepções que
impedem a construção de um argumento irresistível23.

A tentativa de fixação de um fundamento absoluto, na visão do autor, pode,


inclusive, representar um óbice ao surgimento de novos direitos24. A preocupação atual deve
ser não a busca pela justificação, mas sim a sua integral proteção. Devem-se buscar as
condições para a satisfação dos direitos, deixando para o segundo plano a questão filosófica, e
deixando o protagonismo para o campo político.

É, portanto, proposição central para Bobbio, de que os novos direitos decorrem da


afirmação das necessidades historicamente construídas, contando, para esse processo de
confirmação, com a participação dos agentes sociais. As necessidades humanas são esgotáveis
em um determinado momento e espaço, contudo, a constante redefinição de modos de vida da
sociedade, bem como a subjetividade dos desejos e carências, reorientam as necessidades e os
meios de atendimento através dos “novos” direitos.

22
“Essas exigências nascem somente quando nascem determinados carecimentos. Novos carecimentos nascem
em função da mudança das condições sociais e quando o desenvolvimento técnico permite satisfazê-los. Falar de
direitos naturais ou fundamentais, inalienáveis ou invioláveis, é usar fórmulas de uma linguagem persuasiva, que
podem ter uma função prática num documento político, a de dar maior força à exigência, mas não têm nenhum
valor teórico, sendo, portanto completamente irrelevantes numa discussão de teoria do direito.”BOBBIO,
Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier. 2004. P. 10.
23
Op. cit. P. 12
24
“Pois bem: dois direitos fundamentais, mas antinômicos, não Podem ter, um e outro, um fundamento absoluto,
ou seja, um fundamento que torne um direito e o seu oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. Aliás, vale a
pena recordar que, historicamente, a ilusão do fundamento absoluto de alguns direitos estabelecidos foi um
obstáculo à introdução de novos direitos, total ou parcialmente incompatíveis com aqueles. Basta pensar nos
empecilhos colocados ao progresso da legislação social pela teoria jusnaturalista do fundamento absoluto da
propriedade: a oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais foi feita em nome do fundamento
absoluto dos direitos de liberdade. O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão; em alguns casos, é também
um pretexto para de fender posições conservadoras.” Op. cit. P. 15
21

As práticas individualizadas dos sujeitos, ou através de movimentos associativos,


repercutem na instituição de melhores condições de vida e de bem-estar social, considerando
variáveis culturais e políticas, animando o processo de construção de novos direitos. Essa
articulação foi responsável por redimensionar os direitos de liberdade e igualdade nos
movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII e que, nos tempos atuais estão em
movimento de reconhecimento dos “novos” direitos como, por exemplo, o direito das
minorias, proteção ao meio ambiente, bioética, realidade virtual, entre outros25.

É preciso reconhecer que os direitos fundamentais apresentam uma íntima relação


com as necessidades humanas. A evidência inter-relacional será disposta a seguir. A proposta,
repita-se, consiste em se compreender o pressuposto dos direitos fundamentais, avançando
para além das justificativas tradicionais que conectam as fontes do Direito aos fatos sociais.

1.2 Necessidades e evitabilidade de dano

Diante das inúmeras teorias tratadas para a identificação do conteúdo teórico das
necessidades, ao longo de vários momentos e contextos, constata-se a dificuldade em se
atingir um conceito uniformemente aceito e, como destacado, a perseguição da noção de
necessidade não decorre de mero capricho investigativo, mas está na ordem de se instituir um
ponto de partida para as decisões políticas, econômicas e jurídicas. A definição conceitual
permite estabelecer um referencial de preservação e promoção do desenvolvimento humano.
Tenta-se, na árdua missão de se construir um conceito, uma definição permeada pela
neutralidade valorativa, sendo certo, contudo, que eventuais influxos ideológicos poderão
servir de referenciais de fundamentação a posteriori.

Num primeiro momento é preciso recordar que as necessidades encontram-se


determinadas em relação a um momento e num contexto social. Elas variam de sociedade para
sociedade e de um momento histórico para outro. A criação e a transformação das
necessidades associam-se à ideia de progresso e desenvolvimento dos potenciais humanos. No
entanto, qualquer que seja a configuração de tempo e espaço, as necessidades representam um

25
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo:
Alfa Omega. 2001. P. 164.
22

norte para a fixação de condições adequadas para existência humana, sendo certo que
providências nos campos político e econômico devem conformar-se com propósitos
evolutivos.

As necessidades humanas representam uma expressão da capacidade do ser humano


transcender seus limites e na aptidão de deixar estampado no mundo onde vive suas marcas.
As necessidades relacionam-se com objetos escolhidos pelas ações humanas voltadas para a
satisfação das carências mais elementares até aquelas capazes de aperfeiçoar suas condições
existenciais. O grau de satisfação de necessidades humanas serve como indicador do estágio
de desenvolvimento de determinado Estado.

A institucionalização de estruturas básicas, como a incorporação de bens e serviços


eficazes para a satisfação dos carecimentos e respeitabilidade de direitos fundamentais é o
meio conducente aos processos evolutivos. É possível, portanto, afirmar que o nível de
desenvolvimento do Estado está atrelado aos índices qualitativos e quantitativos de satisfação
das necessidades humanas.

A configuração da noção de necessidade aproxima-se de referenciais que permitem a


análise das diversas consequências negativas extraídas pelo prejuízo gerado por uma
necessidade insatisfeita. A valoração deste paradigma permitirá a construção da legitimidade
de uma proposição normativa, pois amparada no pressuposto material elementar de
consagração de direitos fundamentais. Portanto, o exame ora proposto, estabelece uma
aproximação entre as necessidades humanas e o conceito de dano.

Inicialmente, é preciso destacar que entre a identificação de uma necessidade e sua


satisfação alguns obstáculos podem surgir. Tais barreiras impedem o curso normal gerando
perturbações e interferindo, negativamente, no estado psicológico dos indivíduos. A
frustração criada pela insatisfação de uma necessidade reflete, inexoravelmente, como
condições negativas, criando uma situação de mal-estar. Há, portanto, uma definição negativa
das necessidades no sentido de que a negação permanente gera frustrações e conduz a
resultados patológicos, dentro de uma perspectiva sociológica26.

Contudo, a determinação conceitual de necessidade associada a uma ideia de


frustração mostra-se frágil e volátil, pois construído em sentidos de uma estrutura interna

26
BAY, Christian. Needs, wants and political legitimacy. Canadian Journal of Political Science. Vol I. 1968.
Pag. 241-260. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/3231290> Acesso em 21/09/2017
23

isolada e em preferências individuais. Caso a satisfação de uma necessidade se justificasse


como um meio de se evitar uma frustração estaríamos a reconhecer que qualquer abalo no
equilíbrio emocional de um sujeito mereceria uma medida de correção. É preciso estabelecer
parâmetros objetivos para as necessidades e que estas se dirigem a um fim ou um valor e não
estados psicológicos abalados por uma frustração.

A definição do dano pode ser extraída da ideia de privação e da identificação de bens


primários, isto é, como elementos valiosos para um indivíduo. Neste ponto, em especial, vale
reiterar o afastamento da definição de desejos enquanto pretensões de ordem estritamente
subjetivas. A teoria construída com base nos desejos parte da afirmação segundo o qual sofre-
se um dano quando se carece de algo desejado e concebido dentro de uma consciência,
puramente, individual.

Os desejos decorrem de estados mentais e, embora se possa verificar uma satisfação


quando correspondida, não são identificáveis de forma independente e objetiva ou não
encontram uma explicação positiva capaz de determinar uma valoração ética. Um desejo de
viajar a passeio para o exterior pode gerar uma frustração quando não satisfeito, todavia, no
sentido objetivo, não se pode afirmar um dano.

Por outro lado, o dano pode ligar-se à ideia de privação de bens, sendo, também,
fundamental considerar o caráter generalizante do conteúdo conceitual de bem. Sofremos um
dano quando somos privados de determinados bens, carecendo daquilo que necessitamos e,
portanto, tais bens são valiosos porque capazes de promover uma satisfação. A noção de
necessidade define o tipo e âmbito de atividades e instrumentos ideais para a promoção de
uma vida digna e plena de sentidos. Essas atividades e instrumentos podem ser considerados
os bens primários, sem os quais os prejuízos são identificáveis concretamente.

O conceito de necessidades humanas constitui-se a partir das condições definidoras


de bem-estar e dano. A ideia de necessidade está caracterizada pela definição de seu
antecedente, na formulação da premissa que compreende a necessidade como algo que
precisar ser satisfeito para se evitar um dano. Formula-se, portanto, um juízo que o
carecimento de algo necessário conduzirá a um estado de degeneração permanente na sua
qualidade de vida. Como destacado acima, não se trata de uma mera frustração ou um
infortúnio passageiro, mas sim a identificação concreta de um dano potencial ou
24

experimentado. Nessa perspectiva, a explicação sobre o que é uma necessidade pressupõe


percorrer a determinação de um dano ou as razões imperiosas de sua evitabilidade.

Apontar uma necessidade opõe-se à ideia de eleição realizada pelo sujeito. A adesão
encontra fundamento na identificação daquilo que é inevitável sob pena de um dano sério e
irreversível. Apesar de eventuais críticas acerca da indeterminação do conceito de dano, não
se pretende uma construção universalmente aceita, pois compreendemos que se trata de uma
questão de convenção, variável, nesse sentido, de acordo com o contexto inserido. Todavia,
em termos de premissas minimamente aceitáveis, podemos definir o conceito de dano num
sentido negativo, de inevitabilidade e indispensabilidade, em que a privação repercute, a partir
de processos de objetivação, de maneira igualmente grave nos indivíduos.

Diante de tudo que restou apurado, afastamo-nos das considerações que associam as
necessidades às concepões de meras frustrações, angústias ou perturbações, voltando-se para a
percepção da gravidade da desconstrução de sua integridade física ou moral e de sua
qualidade de vida. Nesse sentido, a necessidade é tudo aquilo que o individuo precisar ter
satisfeito para evitar um dano. É um estado de dependência que precisar ser correspondido,
pois inexiste alternativa racional ou negociável senão sua satisfação.

As necessidades estão na gênese da construção dos direitos fundamentais assim


como na implementação das políticas públicas e a ideia de irremediabilidade orientará a
produção de meios apropriados para a satisfação das carências. Não se pode supor que, na
formulação de políticas de atendimento, ocorra sem a plena consciência construída a partir de
processos de determinação dos sujeitos emancipados e de métodos de objetivação socialmente
aceitáveis, capazes de tornar genérico e eficaz o sistema normativo e a execução das decisões
estatais.

Ainda dentro dessa perspectiva entre necessidades humanas – dano – direitos


fundamentais, é preciso compreender as correspondências entre tais elementos e o
fornecimento de medicamentos sem o registro na agência de vigilância sanitária, como será
tratado adiante. Na verdade, o questionamento conduz o raciocínio sentido de compreender as
medidas reivindicativas, em especial no plano do Judiciário, voltadas para a obtenção de
fármacos destituídos de registro para a cura de doenças. É preciso analisar se, ao conceder um
medicamento, concretiza-se a proposta de se evitar um dano à saúde ou à vida de um enfermo
ou se, isso, pode resultar negativamente na sua condição.
25

1.3 As necessidades humanas e os direitos fundamentais: uma relação de fundamentação

São muitas as interrogações sobre o conceito e a justificação dos direitos


fundamentais e as normas reguladoras. A pesquisa trilha o caminho da investigação acerca
dos elementos de fundamentação consistindo em uma opção analítica, pois a renúncia à
identificação do suporte básico dos direitos fundamentais consistiria em limitação sobre suas
dimensões constitutivas. As propostas clássicas partem de pressupostos básicos de justiça e
legitimidade sistêmica pelo respeito à autonomia, liberdade, igualdade e solidariedade. A
concepção jurídico-formal mostra-se insuficiente diante de algumas situações concretas,
surgindo, portanto, um dever investigativo que possa, ao final, fornecer referenciais de
justificação material.

Nesse aspecto constitutivo ressurge debate antigo da filosofia do Direito ilustrada


pela segmentação teórica, metodológica e ideológica acerca do positivismo jurídico e do
jusnaturalismo e suas variações, especialmente na interferência das (in)existentes conexões
moral na formação do Direito. Na terceira via difundida pelos teóricos surge a discussão sobre
as proposições deliberativa decorrentes de uma racionalidade comunicativa e das ações
orientadas por um agir comunicativo entre os concernidos, tendo, neste último caso, como
principal teórico o alemão Jürgen Habermas.

Sem esboçar qualquer pretensão de afastamento dos modelos clássicos, o presente


trabalho aborda a questão da fundamentação dos direitos fundamentais e não de seu conceito.
Destaca-se que o cuidado é evitar uma integralidade metodológica, ou seja, não se busca
encontrar uma fundamentação de caráter absoluto e irresistível capaz de servir como um
referencial justificatório em todos os sentidos ou um critério hábil a criar convicções totais e
válidas ilimitadamente no tempo e no espaço.

Por outro lado, a teoria proposta não possui caráter excludente, isto é, não se assume
a existência de uma via alternativa para fazer frente à natureza metafísica do jusnaturalismo
ou ao pragmatismo empírico do juspositivismo. Ao associar as perspectivas necessidades aos
direitos fundamentais estabelece-se uma proposta de uma base metodológica racionalmente
constitutiva que sirva como critério de fundamentação.
26

Em termos gerais, tem-se trabalhado com a possibilidade de fixação da relação entre


direitos fundamentais e necessidades humanas, ou em que alcance o reconhecimento,
exercício ou proteção de um direito fundamental significa, em última análise, satisfazer uma
necessidade, entendida como uma exigência inafastável para o alcance e desenvolvimento de
uma vida digna. Dentro dessa proposta, considerando a seriedade e relevância dos direitos
fundamentais, chega-se a uma objetivação do fundamento no momento em que se dissocia da
ideia de desejos que, como destacado, circunscreve-se ao plano subjetivo. É preciso
consolidar a proposição de acordo com contextos axiológicos cultural e historicamente
defensáveis, reafirmando o conteúdo genérico e dinâmico das necessidades.

As situações que constituem hipóteses de privação ou configuradoras de um estado


de dano demandam a correspondente correção através da consagração ou aplicação do direito
fundamental. O estado de sofrimento intenso tende a se perpetuar enquanto as condições
permanecerem inalteradas, salvo sua eliminação por meio da satisfação da necessidade que
permita superar o processo de degeneração da qualidade de vida do sujeito.

A reivindicação sobre a normatividade de um direito alia-se à inevitabilidade de


satisfação de uma necessidade autêntica, ou seja, aquela necessidade em que a insatisfação
tensiona tanto a instabilidade individual quanto a coletiva. É, portanto, possível afirmar que os
direitos fundamentais são necessidades protegidas, ou em outros termos, o núcleo material das
decisões de normativização de direitos são as necessidades. Trata-se, como afirmado, de
encontrar um modelo argumentativo que justifique os direitos fundamentais para além
daquele que os compreendem como mero rol inserido em um diploma legal.

A virtuosidade das necessidades consiste em se situar no plano da racionalidade do


discurso prático, pois nos permite responder sobre o porquê determinadas ações são realizadas
ou tomadas certas decisões. As necessidades possuem razões sensíveis para sua realização ou,
como destacado por MacCormick, são razões que permitem sua predileção em detrimento de
outras em função de um dado contexto27. Os critérios definidores são relevantes, pois o dano,
a inevitabilidade e a inexistência de uma situação substitutiva forçam o reconhecimento e a
satisfação através da articulação de normas vinculantes.

Como afirmado, é preciso situar a teoria da gênese das necessidades a partir de


contextos históricos, sociais ou culturais, e, portanto, fruto de uma realidade fática em um
27
MACCORMICK, Neil. Limitis IF rationality in legal reasoning. In: An institucional theory of law. Vol III.
Dordrecht: Law and philosophy library. P. 189-206
27

determinado momento. Todavia, não se trata de abandonar outro elemento integrador, qual
seja, a capacidade de criar regras estruturantes. A construção formulada vai ao sentido de
identificar uma fundamentação para a integração normativista do Direito, ou, dentro da
proposta apresentada por Norberto Bobbio acerca das fontes do direito, como realidades
fáticas que estabelecem a relação de dependência construtivista do ordenamento jurídico
alicerçado nas normas jurídicas produzidas28.

As necessidades surgem a partir dos comportamentos e das interações humanas e não


como algo dado pela natureza e esse aspecto justificador deve estar aliado à ideia de
sistematização prescritiva do ordenamento jurídico. Dessa maneira, é possível identificar o
tema sob prismas distintos e, todos fundamentais para a teoria das fontes do direito. Indicar
uma fonte significa compreender: (a) a gênese, aspecto enfrentado pela sociologia diante das
questões sociais que interferem na criação do Direito; (b) a fundamentação cuja noção é
enfrentada pela filosofia e (c) as formas de estruturação do ordenamento, tema afeto à ciência
política, sobretudo na abordagem metodológica da criação de leis.

Ao se criar uma lei, consuma-se o processo de formação do Direito ou instrumento


de hábil a reconhecer o dever de satisfação de uma necessidade humana. Um direito
pressupõe uma necessidade, logo uma regra, para ingressar no ordenamento jurídico, depende
de uma necessidade e de um procedimento adequado perante os órgãos estatais legitimados.
As orientações sociais, históricas e culturais seriam originárias num sentido amplo, enquanto
que as necessidades seriam elementos de fundamentação ou justificação. A necessidade
humana cria a expectativa de um direito fundamental e, este sem necessidade é ilegítimo29.

A pesquisa desdobra-se nessa busca pela relação de causa e efeito entre as


necessidades básicas à vida e à integridade física ou mental e o direito à saúde ou, como mais
apropriado, direito às prestações de saúde. Admitindo-se a percepção sobre a indiscutibilidade
acerca desse direito fundamental, o trabalho realiza uma articulação sobre o suposto direito
fundamental aos medicamentos não registrados no órgão de vigilância sanitária e o
pressuposto da necessidade de preservação da saúde de pessoas enfermas no aguardo de
registro e liberação de fármacos.

28
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: Editora
Universidade de Brasília. 1999. P. 45
29
É possível relembrar o caso em que o Estado passou a impor a existência de kits de primeiros socorros nos
veículos automotores. Não seria concreta a afirmação que a existência do kit eliminaria um dano. Tratava-se de
imposição de limitação sem a correspondente necessidade, configurando-se, portanto, a ilegitimidade da medida.
28

A questão que se propõe a discutir, considerando a posição aqui assumida no sentido


de que as necessidades são identificáveis sob a perspectiva da evitabilidade de um dano,
reside em estabelecer um debate sobre a potencialidade de dano em função da ausência do
registro. Como será apresentado, o procedimento de registro de um medicamento tem como
finalidades essenciais a verificação de sua segurança, eficácia e viabilidade econômica.
Dentro da ótica da segurança, investiga-se o potencial de cura e os efeitos colaterais da
ministração da substância, ou seja, cabe ao órgão de registro aferir se o medicamento
corresponde à expectativa preservação da integridade dos destinatários ou se produzirá efeito
contrário.

Não são raros os casos em que pacientes abandonam os tratamentos tradicionais pela
busca de terapias experimentais ou sem a confiabilidade desejada, elevando a exposição ao
dano o que permite ponderar que tais substâncias não devem ser percebidas como meios de
satisfação de uma necessidade vez que o dano continuará latente. As expectativas de obtenção
de tais prestações, sob o argumento do direito fundamental, revelam-se altamente
questionáveis sob o prisma relação necessidade e afastamento de um dano30.

1.4 A identificação de necessidades universalizáveis dentro de uma perspectiva racional

Como abordado, as necessidades humanas caracterizam-se pela generalidade no


sentido de que todos os indivíduos precisam receber os mesmos padrões de satisfação. Nesse
contexto, deve-se considerar o papel que os indivíduos e o Estado recebem no arbitramento
das propostas e intenções das carências sociais. A resposta, inevitavelmente, estará modelada
pela concepção ideológica predominante no grupo social.

Para alguns, o Estado seria o único ente capacitado a fornecer, em graus adequados, a
satisfação demandada pelos indivíduos. Somente a atuação estatal viabilizaria o projeto de
conceder a todos níveis mínimos e igualitários de atendimento e, conferir a atribuição ao juízo
das individualidades repercutiria negativamente ao criar exclusões e desigualdades.

30
Sobre o tema remetemos à nota técnica 56/2015 da ANVISA além da decisão do Supremo Tribunal Federal
nos autos da STA n.º 828 onde ambas revelam a preocupação com o abandono dos tratamentos tradicionais,
reiterando a possibilidade de circulação da substância denominada fosfoetanolamina sintética.
29

Por outro lado, nos Estados em que o modelo econômico liberal prevalece, o Direito
surge como ferramenta de proteção dos indivíduos contra o poder estatal. É equivocada a
percepção que defende a hipertrofia estatal, sobretudo em função da burocracia paralisante e
incapacidade de alcançar a satisfação de todas as necessidades individuais. A opção viável,
portanto, é aquela que assegura o fortalecimento das autonomias e dos mecanismos de decisão
coletiva, ou seja, os movimentos sociais deteriam liberdade para eliminar os efeitos danosos
da centralização estatal.

Essa proposta de elevação da importância da atuação estatal não colide com o


reconhecimento das liberdades individuais ou implica em qualquer defesa de tornar ilimitado
o poder do Estado, retomando a situação anterior àquela combatida pelos ideais iluministas.
Para Bobbio, apesar dessa apropriação pelo Estado, a sociedade civil encontra espaços de
atuação em função dos limites impostos ao próprio Estado. As teorias políticas modernas
consagram formas de limitação como a separação de poderes e a consagração da soberania
popular (democracia). Não é ação cujo equilíbrio seja alcançado facilmente, contudo surge
como alternativa para combater as ideias liberais onde o individualismo tem sido pouco
eficiente no reconhecimento e efetivação das necessidades geradoras de novos direitos.

Ainda na tentativa de se encontrar fundamentos teóricos para a questão da autonomia


e das necessidades, destaca-se a inestimável contribuição de Jürgen Habermas e a sua teoria
da ação comunicativa para a construção de uma estrutura democrática. Na visão do jusfilósofo
alemão, a ação dos indivíduos ou dos grupos necessita ser coordenada conforme critérios de
uma racionalidade comunicativa entre os indivíduos na busca de um consenso apto a
estabelecer um ambiente verdadeiramente democrático para o Direito. Na medida em que os
indivíduos entregam, dentro de um ambiente discursivo, suas pretensões, é possível identificar
suas necessidades e alcançar, através da ação comunicativa e obtenção de consensos, os
instrumentos normativos validamente observáveis.

Nesse sentido de racionalidade através da linguagem e da comunicação entre os


atores, Habermas opõe-se às visões individualistas e de autossuficiência, instituindo um
pensamento em que a racionalidade depende diretamente da capacidade de falar e agir dos
sujeitos. Supõe que os atores devem interagir coordenadamente pela linguagem expressando
seus desejos e interesses com pretensão de validade e de justiça.
30

Na visão habermasiana a comunicação não é dominada por aquele interlocutor que


apresenta a melhor capacidade de fala, o mais habilitado a formular premissas
gramaticalmente corretas ou estabelecer uma retórica mais conveniente. A comunicação
adequada é aquela que apresenta um elemento mediador capaz de construir interações e
proporcionar o entendimento dos envolvidos. O ato de fala só é aceitável quando confere, ao
ouvinte, a possibilidade de identificar as pretensões do orador, nesse sentido, é fundamental
identificar o nível de compreensão dos interlocutores, permitindo conhecer as condições para
aceitar ou recusar uma proposição. De acordo com Habermas, a condição necessária de
validade procedimental é a obtenção de consenso por meio exclusivo da razão e dos
argumentos.

O autor aborda o problema da legitimidade e da legalidade, afirmando que a


legitimidade apresenta-se através de elementos naturais como costumes, usos, tradição,
encontrando, na legalidade a estruturação institucional do Direito. Esta última demandaria
instituições administrativas para a realização e aplicação coativa das normas escritas
(Legislativo e polícia). Seria o modelo clássico, criticado pelo autor em função da ausência de
representatividade direta dos envolvidos e pela crença de que a observância à lei decorre do
temor da coerção, por força de um cálculo acerca da relação custo/benefício onde são
avaliados se os benefícios obtidos pela transgressão compensam os custos decorrentes das
sanções e “ameaça de um poder vingador”31.

Na perspectiva habermasiana, por sua vez, a legalidade deve ser construída mediante
o uso de princípios democráticos discursivamente constituídos. A validade depende da criação
de normas de conduta e regras de controle através da participação daqueles diretamente
interessados, isto é, através da observância de um processo discursivo elaborado por todos e
para todos. Por outro lado, a facticidade encontra assento nos processos históricos e sociais
espontaneamente constituídos e elaborados pela comunidade. Nesse caso, os agentes agem em
conformidade com a lei em função do convencimento sobre sua legitimidade e não pelo
motivo coercitivo do dever.

Na teoria filosófica do autor alemão, além de trabalhar com a construção de uma


base racional de legitimação das normas, aborda-se o problema relacionado à autonomia
privada e pública. A análise das tensões provocadas por esses dois campos ganha contornos

31
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – Entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997. P. 43.
31

relevantes no presente trabalho no sentido de compreender o ponto de partida das


necessidades humanas.

Para Habermas, as autonomias privada e pública são cooriginárias, ou seja, deve-se


privilegiar um modelo de legislação que estabeleça uma ideia de supremacia ou subordinação
de uma em detrimento da outra, como esclarece, “O sistema de direitos não pode ser reduzido
a uma interpretação moral dos direitos, nem a uma interpretação ética da soberania do povo,
porque a autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobreposta e nem subordinada à sua
autonomia política.”32 A origem comum está fundamentada na teoria discursiva e que a
autolegislação estabelece uma confusão entre as figuras dos autores e dos destinatários.

Nesse sentido Habermas sustenta a preponderância de um modelo procedimental


capaz de se ajustar aos dogmas liberais e de estado social. Tal paradigma procedimental
permite eliminar as tensões entre as autonomias privada e pública. Da mesma maneira que se
revela importante a preservação das ações individuais e a defesa da posição de membro
portador de autonomia, é preciso compreender que o homem não é um ser isolado, vivendo
em um ambiente social sendo, portanto, fundamental o reconhecimento ético e político das
proposições jurídicas.

O antagonismo, que estabelece em um polo o modelo de ordem jurídica baseada no


respeito às liberdades e preponderância da individualidade subjetiva e, na outra ponta, a
dogmática do direito que prestigia a originalidade social, em que, dentro da perspectiva
contratual hobbesiana, justifica-se em razão das considerações teleológicas de todos os
participantes, antes de tudo, mantém o estado de permanente tensão e conflito. Segundo
Habermas, do ponto de vista de uma teoria jurídica moderna, o modelo discursivo-
deliberativo legitima o sistema normativo ao substituir o modelo contratual ou da busca do
indivíduo pela satisfação de interesses pessoais. Somente pela prática compartilhada
intersubjetivamente, de forma solidária e emancipada, será possível estabelecer as bases
democráticas da ordem jurídica.

Portanto, somente através da inserção de expedientes discursivo-deliberativos haverá


condições de obtenção de recursos para a satisfação das necessidades. O estado democrático
de direito seria construído por reconhecimento não apenas das necessidades materiais,
identificáveis individualmente, mas, especialmente, pela possibilidade de

32
Op. cit. P. 138
32

autorregulamentação articulada com a finalidade de pretensões universalizáveis. A


racionalidade comunicativa legitimaria as necessidades não só sob o aspecto substancial, mas
também procedimental de construção.

1.5 Os limites das necessidades: as fronteiras fáticas, financeiras e jurídicas

Como produtos de uma realidade social, histórica ou cultural num dado momento, as
necessidades estão em constante processo de criação e aprimoramento. De estável e universal,
apenas aquelas necessidades consideradas básicas, cuja satisfação decorre pelo simples fato
de permitir a sobrevivência do indivíduo. A base da transposição de uma situação para outra
sofre influxos de diversas ordens. Cada vez mais são anunciadas novas gerações de direitos,
influenciados pelas novas tecnologias, pelo multiculturalismo e pelos intentos de conservação
do meio ambiente natural.

As políticas governamentais passam por constantes problematizações, pois são


regulares os questionamentos acerca da adequação entre meios e fins no momento em que
surgem novas demandas sociais. As novas tecnologias trazem consigo a perspectiva da
evolução, com novos saberes e práticas, favorecendo o surgimento de novas demandas dos
indivíduos. Nesse contexto, de oferta de novas tecnologias e procura pelos indivíduos, o
Estado é instado a viabilizar a adequabilidade dos interesses, devendo considerar que os
hiatos normativos não impedem a concretização de direitos, sobretudo os fundamentais.

Mas é preciso considerar alguns elementos limitadores das necessidades, isto é,


compreender que algumas necessidades não alcançam um nível ideal de satisfação em razão
de impossibilidades concretas e insolúveis nas dimensões de tempo e espaço. A existência de
normas suficientes para proporcionar a satisfação de necessidades é a regra dentro da ideia de
confirmação dos direitos fundamentais, contudo, é preciso perceber que a normatização não é
capaz de alcançar e esgotar todas as possibilidades. A expectativa da unidade e da
integralidade do ordenamento jurídico sucumbe às limitações práticas.

Algumas limitações são impostas e a conformação entre uma necessidade e sua


satisfação resta inviabilizada por elementos circunstanciais intransponíveis. É possível
destacar que o não atendimento de algumas necessidades são influenciadas por
33

impossibilidades físicas, financeiras ou jurídicas e, portanto, as carências são mantidas diante


de fatores que transcendem a capacidade humana de dar respostas a todas as demandas
surgidas.

A afirmação pode ser confirmada naquelas situações em que determinadas


necessidades não são atendidas pelo fato de o conhecimento humano não ter desenvolvido
uma tecnologia capaz de supri-la. Dentro da perspectiva construída no presente trabalho, por
exemplo, existem inúmeras doenças que carecem de uma terapia curativa. Alguns tratamentos
dependem de prolongados estudos científicos para seu desenvolvimento, além do
procedimento de seguir rigorosos protocolos. A preservação do direito à vida e a preservação
da integridade física e mental dependem dos avanços da tecnologia farmacêutica, que não são
alcançados em sua plenitude. A inovação dos fármacos não acompanha a acelerada
velocidade do surgimento e transformação dos vetores de doenças. Trata-se de limitação
objetiva e insuperável em um prazo curto.

Outra limitação para o acolhimento das carências humanas reside na insuficiência de


recursos financeiros por parte dos Estados que assumem o caráter prestacional aos mais
necessitados. No bojo daquilo que é conhecido como Estado social, diversos direitos são
consagrados com o propósito de prover aquilo que é, minimamente, indispensável para a
subsistência da condição humana digna. As críticas realizadas ao modelo liberal, sobretudo no
segundo pós-guerra, fez germinar um grande número dos direitos sociais, conferindo, aos
Estados, o dever de proteger e prover as necessidades através de ações governamentais
tendentes à eliminação das desigualdades sociais.

Dentro da ideia de separação de poderes, ao Executivo foi confiada a função de


instituir programas de longo, médio e curto prazo na busca pela consecução dos objetivos
prestacionais. Tal planejamento estatal, inevitavelmente, realiza-se a partir de recursos
financeiros obtidos através várias fontes de receita, mas que, dependendo dos arranjos estatais
e da amplitude que se pretenda dar, serão suficientes ou escassos. Não obstante os meritórios
ideais de criação de uma sociedade justa e solidária aliados aos propósitos de erradicação da
pobreza, é preciso destacar que, na realidade brasileira, existem limites orçamentários para a
consecução desses fins.
34

A teoria da reserva do possível33 surge no sentido de tentar justificar a incapacidade


financeira do Estado frente às demandas crescentes da população ou na experimentação da
escassez de recursos num cenário de crescentes necessidades. A inegável defesa do Estado vai
na proposta de afirmar a indissociabilidade da dimensão econômica dos direitos pretendidos e
da necessidade de respeito à responsabilidade administrativa.

Assim sendo, afirma-se que a reserva do possível pode ser enfrentada sob óticas
distintas, a fática e a jurídica. Sob o prisma fático, sustenta-se tese de que não se pode exigir
uma prestação do Estado diante da inexistência material de recursos, sendo questão
objetivamente aferível. Por outro lado, a impossibilidade jurídica da teoria baseia-se no fato
de os gastos públicos dependem de lei orçamentária que serve como orientação para os gastos
públicos e, uma vez instituídas tais diretrizes, revela-se a opção por destinar o dinheiro para
satisfação de outras necessidades sociais, diversas daquela buscada pelo indivíduo.

O planejamento do orçamento do Estado defronta-se com decisões complexas, pois


os limites são reais e as escolhas inevitáveis. A condução política deverá considerar as
prioridades que beneficiem o maior número de sujeitos ou se orienta por atender necessidades
individuais específicas. Invariavelmente, demandas são levadas ao Judiciário com a pretensão
de obter prestações de saúde não constantes de protocolos ordinariamente fornecidos pelo
Estado. Muitas apresentam valores elevados e os Tribunais, em algumas situações de maneira
imponderada, acaba por conceder, atingindo o planejamento do orçamentário estatal34.

33
Como indica Ingo Sarlet, destaca-se a origem alemã da teoria (Der Vorbehalt des Möglichen). De acordo com
o autor, a reserva do possível propõe que a efetividade dos direitos sociais dependeria da reserva de capacidade
financeira estatal, pois os direitos fundamentais são prestações financiadas pelos cofres públicos. As noções
foram desenvolvidas pelo Tribunal Constitucional alemão, onde a Corte firmou o entendimento de que existem
limitações fáticas para a satisfação de todas as demandas de acesso a um direito. A questão controvertida
consistia na pretensão de um estudante que buscava o acesso ao ensino superior, sendo que Alemanha adotava
uma política de restrição do número de vagas por turma, com vistas a manter a qualidade do ensino. O Tribunal
fixou o entendimento (caso que ficou conhecido como numerus clausus) de que o acesso à universidade deve
considerar algumas condicionantes: (a) o indivíduo somente poderá exigir aquilo que é razoável exigir da
sociedade, ou seja, mesmo havendo o direito e recursos somente se podem pretender prestações razoáveis; (b)
existir regulamentação prévia; (c) prova da incapacidade material do Estado por insuficiência de recursos e (d) a
comprovação de que o Estado envidou todos os esforços governamentais para proporcionar a prestação, no caso,
cabia ao Estado provar que adotou todas as ações administrativas para aumentar o número de vagas. SARLET,
Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, mínimo existencial e direito à saúde:
algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.º 24, julho/2008. Disponível em
HTTP://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.html Acesso em 28/09/2017
34
Apenas para ilustrar a complexidade do tema destacamos a Suspensão de Tutela Antecipada 198 requerida no
STF. Tratava-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal visando a concessão, em favor
de um menor, do medicamento denominado Elaprase, não registrado na ANVISA. O medicamento apresentava
um custo anual aproximado para os cofres públicos no valor de R$ 2.600.000,00. Outro caso similar foi o da
STA 223. Outro caso que merece destaque foi o julgado na STA 1053, em que o autor, portador de doença rara
(Síndrome Hemolítico Urémico Atípica), obteve decisão obrigando o estado do Acre a fornecer o medicamento
35

Bobbio destaca uma preocupação dos juristas e dos políticos modernos, fazendo uma
comparação entre liberdades e poder, afirmando que são figuras incompatíveis já que o uso de
poderes pode inviabilizar o exercício de liberdades. Significa que o exercício ilimitado de
direitos fundamentais levará à restrição de outros, como ocorre no caso da saúde, em que a
sua plenitude pode levar à diminuição de outros direitos igualmente caros à sociedade. É
nesse sentido que as normas que estabelecem direitos sociais em uma Constituição, embora
elogiáveis quanto às suas finalidades, encontram limites em disponibilidades de diversas
ordens35.

Destaca-se que o desenvolvimento de terapias, além de sofrer com as limitações de


ordem científica, também encontra motivo em outros elementos como o neglicenciamento das
indústrias farmacêuticas, sobretudo em países de baixo desenvolvimento econômico e social,
que, na análise da relação custo x benefício, entendem não ser viável o desenvolvimento de
tecnologias curativas.

Por fim, outra limitação para a satisfação das necessidades consiste na limitação
jurídica, isto é, quando o ordenamento jurídico proíbe determinada medida de atendimento
pela orientação firmada pela instância representativa. Como será apresentado de maneira mais
ampliada, existem prestações de saúde demandadas que encontram o óbice normativo para
sua concessão36. A proposição limitadora assume o espírito de se restringir, em certa medida,
a absolutização de um direito fundamental.

Assim como ocorre nos casos das interferências do Judiciário no problema


orçamentário, são diversos os casos de decisões judiciais que concedem prestações de saúde
vedadas no sistema legal. No geral, são decisões que procuram assumir o caráter da eticidade

Solliris, que apresentava um custo total de aproximadamente R$ 600.000,00. O destaque deste caso era o fato de
o medicamento, além de apresentar custo elevado, não possuía o registro na ANVISA, não havendo, portanto,
certificação acerca dos riscos e da eficácia da substância. Neste caso, a Ministra Carmem Lúcia indeferiu o
pedido de suspensão da tutela antecipada, confirmando a decisão do Tribunal de Justiça do Acre no sentido de
obrigar o poder público a fornecer o medicamento.
35
Como aponta o jusfilósofo italiano “Quando digo que os direitos do homem constituem uma categoria
heterogênea, refiro-me ao fato de que — desde quando passaram a ser considerados como direitos do homem,
além dos direitos de liberdade, também os direitos sociais — a categoria em seu conjunto passou a conter
direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou
suspensa a proteção de outros.” Op. cit. P. 24.
36
Exemplo emblemático é o da substância conhecida como Canabidiol. Derivado da maconha, a substância
apresente dois óbices. Primeiramente, a ausência de registro no órgão de vigilância sanitária impediria sua
circulação. Por outro lado, o fato de ser derivado da maconha seu consumo seria proibido. Não foram poucas as
decisões judiciais que autorizavam, inclusive, o plantio e produção do extrato do canabidiol pelos próprios
requerentes. Em julho de 2017 a substância em questão foi categorizada, pela ANVISA, como medicamento
específico, conforme RDC nº 24/2011, por conter, como princípios ativos, dois fitofármacos: tetraidrocanabinol
e canabidiol, isolados da espécie vegetal Cannabis sativa.
36

ao estabelecer conexões entre o Direito e conteúdos metajurídicos propondo, o julgado, uma


atividade hermenêutica que ofereça interpretação em consonância com as exigências de
justiça para o caso concreto, moldando e adaptando a norma dentro de um quadro de correção
moral37.

O conjunto sistemático de normas vigentes, a partir de um procedimento de


elaboração legítimo, em uma sociedade representa uma das características centrais do
positivismo jurídico. Esse complexo de normas toma como pressuposto a necessidade de
verticalização das normas, entendendo-se ordenamento jurídico como uma estrutura
caracterizada pelos atributos da unidade, coerência e completude. A unidade está relacionada
ao fato de todas as normas decorrerem de uma mesma origem comum, do mesmo órgão
legitimado para sua produção. Consiste num aspecto de unidade formal em que a importância
está na sua produção e não em seu conteúdo.

Como exposto, a satisfação das necessidades humanas encontra limitações fáticas e


normativas e, consequentemente, é possível afirmar que os direitos fundamentais sofrem
restrições de igual ordem. O direito às prestações de saúde existe diante da necessidade
humana mais fundamental, mas é preciso reconhecer restrições práticas. Pensar na
absolutização do direito fundamental à saúde implica em buscar o impossível ou se amparar
em incoerências naturais relacionadas à finitude da existência dos seres vivos, por mais
longevo que possa ser o tempo de vida.

1.6 Os direitos fundamentais: o árido caminho entre a consagração e a integralização

Os direitos fundamentais decorrem de movimentos históricos de luta por liberdades e


afirmações dos indivíduos frente a realidades adversas impostas por regimes que prestigiavam
a manutenção de um estado de subserviência. A ruptura gradual proporcionou – ainda que de
modo insuficiente num primeiro momento – o reconhecimento das liberdades individuais,
evoluindo-se para o alcance da proteção dos direitos políticos e sociais, como o resguardo das

37
Segundo Dimitri Dimoulis: “O moralismo da interpretação oferece respostas aos dois maiores problemas
práticos da interpretação jurídica. O que fazer quando uma norma clara e concreta entra em conflito com valores
morais que o julgador considera de crucial importância? A posição moralista é que o julgador deve adaptar a
norma aos requisitos de correção moral. Deve-se interpretar e analisar o direito ‘sob o olhar vigilante das
exigências do direito justo’.” DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: Introdução a uma teoria do direito e
defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. P. 92.
37

relações de trabalho, a saúde, a educação, a segurança, a assistência social, entre outros. É


preciso destacar, também, que as práticas reivindicativas, fruto de uma proposta
autossuficiência e de mudança nas condições de sobrevivência dão o caráter dinâmico aos
direitos fundamentais. São condições que se estruturam através de uma resistência racional
em espaços existentes para a consolidação da dignidade humana.

Enquanto exigências, caracterizadas pelo profundo conteúdo axiológico, os Direitos


Fundamentais não emergem de uma espécie de geração espontânea, sendo formados em
constante processo de construção e desconstrução38. Portanto, a definição, ou o
enquadramento, daquilo que é tratado como direito fundamental é mutável com o passar do
tempo. Aspectos sociais, econômicos, políticos, ideológicos, interferem consideravelmente
nos programas estatais bem como nas demandas da sociedade acerca de proteção dos ditos
direitos. Apenas a título de ilustração, numa breve retomada de um passado recente, é possível
verificar a substantiva ausência de proteção aos direitos dos consumidores, crianças ou
idosos39.

O movimento de ruptura da idade média e o surgimento da era moderna fez surgir


um novo dogma centrado na figura do homem, afastando-se das ideias religiosas que
preencheram as orientações culturais, filosóficas, políticas no período medieval. As teorias
antropocêntricas, especialmente elevadas pela retomada do humanismo, provocaram a
superação do jusnaturalismo teológico prevalecendo um senso de justiça baseado numa razão
humana universal. O desenvolvimento científico também colaborou para o avanço de uma
racionalidade assentada numa ética humana universal instruída a organizar a vida em
sociedade. Contudo, o momento mais fértil quanto à consagração e proteção dos direitos
fundamentais ocorre no movimento de revisão que tenta retirar dos domínios dos Estados a
exclusividade de sua tutela, dado o seu notório caráter supranacional.

38
LAFER. Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt,
Cia das Letras, São Paulo, 1988. P.134
39
Como destacou Bobbio “Em segundo lugar, os direitos do homem constituem uma classe variável, como a
história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e
continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das
classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. Direitos
que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram
submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas; direitos que as declarações do século XVIII
nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes
declarações. Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer
podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida
também dos animais e não só dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O
que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras
épocas e em outras culturas.”BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004. P. 13
38

A concepção hobbesiana de centralidade do Estado sofre um duro golpe, sobretudo


em razão das violações verificadas durante a segunda guerra mundial, e os direitos humanos
passam a ser compreendidos diante de uma perspectiva de centralidade do indivíduo e na
consolidação de uma concepção de proteção integral, não só no âmbito interno dos Estados
autônomos, mas também no seu plano internacional. A universalização dos direitos
fundamentais, portanto, estrutura-se a partir de tratados que reafirmam essa visão global
fundada em ditames éticos e solidários.

O aspecto da validade dos direitos está intimamente relacionado com o resultado da


comunhão entre experiência e razão, devendo ser rejeitado qualquer conteúdo normativo que
colida com tais premissas. A vida, a liberdade, a igualdade, saúde, educação, informação, são
direitos umbilicalmente ligados à própria existência do homem e, todo conteúdo normativo
editado como fruto da vontade de um órgão legislativo deve observar esses preceitos sob
riscos da afirmação da sua ilegitimidade.

Não obstante o mérito dos movimentos de reconhecimento dos direitos


fundamentais, outro fator revela-se igualmente notável, não podendo ser subtraído do debate,
qual seja, a sua efetividade. Como destaca Bobbio, o problema atual, quando considerada a
temática dos direitos fundamentais, está não mais na necessidade de considerá-los, mas sim na
obrigação de respeitá-los, de se fazer cumprir. Evidencia-se, hoje, como um problema de
garantia cuja preocupação deve orientar políticas públicas no sentido de preservar valores
fundamentais e extremamente caros às sociedades modernas40.

Portanto, é possível afirmar que o destaque do termo “direitos do homem” está


vinculado ao reconhecimento e à proteção nas constituições democráticas. O estado de paz e
equilíbrio subordina-se ao processo progressivo de democratização das diversas esferas
(econômica, social, jurídico-ideológica). Somente com o reconhecimento efetivo dos direitos
fundamentais será viável a promoção de condições mínimas de existência e solução pacífica
dos conflitos individuais, além, de permitir a delimitação das tendências autoritárias dos
Estados. A denominação direito fundamental revela, sobremaneira, a preocupação do
ordenamento jurídico, desde a sua formação, capaz de conferir uma convivência digna,
igualitária e livre para todos.

40
“Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo,
político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são
direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para
impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.” Op. cit. P. 17
39

1.7 Direito à Saúde: a indefinição do conteúdo conceitual, jurídico e axiológico

No sentido das afirmações dos direitos fundamentais, são inegáveis as preocupações


com a inserção de políticas públicas voltadas para a saúde dos indivíduos. A Constituição de
1988, no art. 6º reconhece a saúde como um direito social além de, no título que cuida da
ordem social, encerrar a saúde como um direito de todos e dever do Estado (art. 196),
realçando a preocupação do legislador constituinte com a introdução de mecanismos de
prevenção de enfermidades e de recuperação de doentes.

No entanto, é preciso eliminar, inicialmente, o equívoco gerado pela expressão


“direito à saúde” como um direito de não ficar doente. A se pensar desta maneira, o Estado
assumiria o dever de impedir que seus indivíduos contraíssem doenças o que é imponderável
e inalcançável. Deste modo, mostra-se mais apropriada a análise sob a perspectiva conceitual
do direito ao acesso às prestações de saúde.

O direito às prestações de saúde recebeu variados sentidos ao longo da história


brasileira. Até a consolidação enquanto direito na Constituição Federal de 1988 percorreu-se
um longo caminho nas representações sociais e políticas, restando, sua concepção,
influenciada por elementos diversos, que marcavam a visão do indivíduo quanto ao papel do
Estado na implementação das políticas de saúde.

O acesso às prestações de saúde, vista inicialmente como uma benesse estatal em


favor do indivíduo, apresentava-se de modo frágil visto que passível de supressão a qualquer
tempo pelos governos. Não se afirmava a garantia de sua permanência, sobretudo diante da
ausência de previsão normativa acerca dos direitos sociais41. Portanto, diante da inexistência
de regramento específico capaz de conferir ao Estado um dever prestacional, prevalecia a
orientação da discricionariedade atribuída aos poderes políticos.

As campanhas curativas e de higienização afirmaram a saúde como um assunto de


Estado, contudo, não retiraram a discricionariedade quanto à sua adoção. Como afirmado, não
existiam instrumentos que garantissem a exigibilidade do caráter universal das prestações de
saúde, significando um benefício que, em determinados momentos, assumia um caráter

41
Apenas como referencial pode-se citar o art. 72 da Constituição de 1991 que inaugurava da seção da
declaração dos direitos não elencando a saúde como um direito dos indivíduos.
40

autoritário com campanhas de sanitarização impostas à população sem, contudo, perder o


sentido de benesse estatal42.

As tentativas de implementação do estado de bem estar no Brasil, notadamente a


partir da década de 30, com significativa produção legislativa, sobretudo nas questões
trabalhistas e previdenciárias, demonstram uma mudança de cenário no tratamento conferido
pelo Estado às prestações de saúde. Trata-se de momento em que são verificadas algumas
transformações no cenário brasileiro com a tentativa de regulação das relações sociais e a
interferência pública no acesso às necessidades fundamentais dos indivíduos que passam a ser
prestadas, em boa parte, pelo Estado.

Nota-se, nesse período, que as prestações de saúde surgiam como um proveito para
aqueles que contribuíam para o sistema de previdência social. Os trabalhadores com vínculos
regulares dispunham dos serviços médicos refletindo a conexão da saúde como repercussão
de um direito trabalhista. Sem perder a característica de serviço público, a saúde vinculava-se
a uma contraprestação do indivíduo que mantinha regular relação de emprego e contribuía
para o sistema. Para os demais indivíduos, que não possuíam vínculos empregatícios, abriam-
se dois caminhos: contar com as entidades de caridade, como as Santas Casas ou aderir às
Caixas e Institutos de aposentadoria e pensão43.

O viés não universal e excludente da saúde foi modificado nas décadas seguintes
com as propostas que objetivavam conferir ao Estado um dever voltado para as políticas
sociais de saúde. O movimento da Reforma Sanitária, nascida no início da década de 70,
primava pela adoção de um conjunto de propostas de mudança e regulação do sistema de
saúde e, consequentemente, a melhora nas condições de vida da população. O movimento
pautava suas reivindicações no reconhecimento da essencialidade do direito à saúde como
algo inato ao ser humano e um dever do Estado, sendo a ideia embrionária da proposta
universalista e isonômica da assistência à saúde44.

42
Como ilustração cite-se o movimento denominado revolta da vacina, ocorrido em 1904, em decorrência da
vacinação obrigatória para combater o surto de varíola.
43
O modelo das Caixas serviu de referencial inicial para o surgimento dos primeiros planos de saúde no Brasil.
Disponível em< http://www.ans.gov.br/aans/quem-somos/historico> Acesso em 18/04/2017.
44
“Com isso, uma das principais bandeiras do movimento de reforma sanitária foi o princípio da integralidade,
que se traduz na ideia de que o indivíduo deve ser visto como uma totalidade bio-sociopsíquica, além de ter
direitos aos serviços de saúde de baixa, média e alta complexidade de forma humanizada. Ao mesmo tempo, tal
princípio preconiza que os problemas de saúde vão além da mera presença ou ausência de doença, pois
envolvem condicionantes sociais de múltiplas naturezas. Buscou-se, ainda, promover medidas que afastassem a
exclusividade da noção de especialidade médica no cuidado em saúde, de modo a constituir uma atenção em
41

O movimento da Reforma Sanitária, concebido, num cenário de luta contra a


ditadura apresentava, também, a marcante presença da ideologia marxista45, ampliando-se
para assumir uma feição, naturalmente, mais orientada pela centralidade estatal na condução
da providências de satisfação dos carecimentos sociais. Para o movimento, era preciso
reconhecer as dimensões sociais, políticas e econômicas das práticas médicas e, dessa
maneira, as prestações de saúde sofreriam uma mudança de paradigma com o afastamento da
concepção limitada na prevenção e cura, voltando-se para a idealização de um novo cenário
de medicina social. A transformação institucional e normativa passou a ser perseguida pelo
movimento como forma de se alcançar as camadas menos favorecidas da população.

Contando com uma ampla produção acadêmica de intelectuais, sanitaristas e


estudantes o movimento, o movimento contou com ambientes de debates e difusão de ideias
como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), em 1976, e a Associação Brasileira
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), em 1979, proporcionando a rediscussão
dos papeis de atores e instituições voltados para a mudança substanciais no sistema de saúde
eficiente e democrático. As bases das reformas foram lançadas, defendendo-se,
especialmente, a maior participação social, políticas de prevenção de doenças, criação de um
sistema unificado e a universalidade de acesso às prestações de saúde46.

O período de redemocratização no Brasil foi, também, marcado, pela grande


mobilização social por reformas no sistema de saúde. Como resultado da realização a 8ª
Conferência Nacional de Saúde47 surgiram propostas para o fortalecimento do setor público
de saúde, especialmente com a criação de um sistema único capaz de expandir a cobertura de
saúde para todos os cidadãos. Percebe-se, nitidamente, através do movimento sanitário um
traço de homogeneidade consistente no interesse em que o Estado assumisse a
responsabilidade central das políticas de prevenção, controle, tratamento de medidas de saúde
pública.

saúde mais integral, que considerasse o usuário como um sujeito partícipe do seu processo de prevenção,
proteção e recuperação.” ASENSI, Felipe Dutra. Direito à Saúde: Práticas sociais reivindicatórias e sua
efetivação. Curitiba: Juruá. 2013. Pag. 140
45
Por todos, cite-se o viés marxista na tese de doutoramento apresentada por Antonio Sérgio da Silva Arouca
intitulada “O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva”,
apresentada em 1975 na Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
46
PAIVA, Carlos Henrique Assunção; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Reforma sanitária e a criação do Sistema
Único de Saúde. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.1, jan.-mar. 2014. P. 15-35.
47
A conferência foi convocada pela Presidência da República por solicitação do Ministro da Saúde contando
com quase cinco mil participante, sendo 1000 delegados indicados por instituições e organizações de saúde o que
respeitou os ideais do movimento de reforma sanitária de integração conjunta em espaços públicos com a
participação social. O contexto político abriu-se para as reivindicações sociais na tentativa de construção de um
modelo de sistema integrado.
42

Assumiu-se, portanto, a percepção que cabe ao Estado desenvolver medidas de


proteção, promoção e recuperação, orientando políticas sociais e econômicas com este
propósito. Deve dispor de providências de acesso universal e igualitário, colocando à
disposição da população ferramentas que se revelem aptas a eliminar o sofrimento das mais
variadas ordens, provocados pelos inúmeros fatores que interferem na saúde humana.

Outra dificuldade encontrada consiste na delimitação daquilo que compete ao Estado,


enquanto promotor de medidas de acesso às prestações de saúde. A definição de saúde é algo
difuso, pois se espraia por diversos ramos do conhecimento, não ficando circunscrito ao
campo da medicina. De acordo com a Constituição da Organização Mundial de Saúde a
“saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de
doenças ou enfermidades”48. Nesse sentido, surgem, como elemento orientador das políticas
estatais, as ações voltadas para a integralização dos bem-estares, devendo-se estabelecer
providências mediadoras nessa relação interdisciplinar para a promoção da saúde.

Na visão de Sérgio Arouca o conceito de saúde não se confunde com o fato de não
estar doente. Está, na verdade, atrelado ao desenvolvimento de qualidade de vida para os
indivíduos, de bem-estar proporcionado pelo respeito ao direito ao trabalho, educação,
saneamento, vestimenta, alimentação e pelo exercício de liberdades, obtendo, assim, uma
existência digna49. No campo normativo é possível perceber esse abastamento conceitual
conforme previsto no art. 3º da Lei n.º 8080/9050 quando elenca, como fatores determinantes e
condicionantes da saúde, vários aspectos cujo alcance depende da conjugação de diversas
áreas do conhecimento, ratificando-se a ideia de que o conceito de saúde está intimamente
vinculado a muitos elementos que transbordam a existência de hospitais, de médicos, exames
e medicamentos.

48
Disponível em <http://www.who.int/about/mission/en/.> Acesso em 15/07/2016
49
Conforme destacou um dos maiores sanitaristas do Brasil na palestra de abertura da 8ª Conferência Nacional
de Saúde “Talvez seja interessante a gente pensar um pouquinho sobre o que significa isso, o que significa esse
conceito de saúde, colocado quase como algo a ser atingido. Não é simplesmente não estar doente, é mais: é um
bem-estar social, é o direito ao trabalho, a um salário condigno; é o direito de ter água, à vestimenta, à educação,
e, até, à informações sobre como se pode dominar este mundo e transformá-lo. É ter direito a um meio ambiente
que não seja agressivo, mas que, pelo contrário, permita a existência de uma vida digna e decente; a um sistema
político que respeite a livre opinião, a livre possibilidade de organização e de autodeterminação de um
povo.”AROUCA, Antonio Sérgio da Silva. Democracia é Saúde. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde.
Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1987.
50
“Art. 3o Lei n.º 8080/90 - Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a
saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio
ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços
essenciais.” (Redação dada pela Lei nº 12.864, de 2013)
43

Portanto, o fecundo conceito de saúde ultrapassa a ideia de “não doente”


aproximando-se da concepção de bem-estar. A compreensão de saúde está associada à forma
como os indivíduos relacionam-se com o ambiente onde vivem, nas suas relações sociais,
econômicas, políticas além, é claro, das boas condições físicas e mentais. Conceituar saúde,
assim, consiste numa tarefa que tem, no geral, a marca da imprecisão.

O conteúdo axiológico do direito à saúde conduz a incomensuráveis contextos e


pretensões que devem refletir as propostas de atuação do Estado. Agindo como interlocutor
dessa gama de especialidades, cabe ao poder público regulamentar, fiscalizar, controlar e
desenvolver políticas de maneira coordenada entre suas várias esferas de modo a alcançar a
universalidade das prestações como anunciado no texto constitucional.

Na proposta constitucional de proteção à saúde, o art. 196 da Carta de 1988 introduz


comandos, igualmente, alargados, com propostas de universalidade e igualdade no acesso às
prestações, conferindo ao Estado o dever de assegurar o direito a todos os indivíduos. Trata-se
de uma concepção de função estatal amplificada, com a pretensa finalidade de abranger
prestações de diversas ordens criando um modelo de Estado-Providência articulado em
arranjos institucionais orientados para a prevenção e tratamento das mais variadas
enfermidades.

Consiste numa noção distinta daquela adotada em outros países, como em Portugal,
onde o direito à saúde é tratado como um direito fragilizado pela insuficiente regulamentação
e pela atribuição de corresponsabilidade entre Estado e indivíduo, neste último caso,
atribuindo-se ao sujeito o dever de cuidar de si, verdadeira estratégia cujo propósito é
amenizar os impactos econômicos dos serviços de saúde51. A despeito do seu regular
funcionamento e de níveis satisfatórios nos indicadores de saúde, o fato pode ser explicado
por sistemas de terapia alternativas, especialmente em áreas rurais, onde a medicina oficial
soma-se à medicina popular de produção artesanal52.

51
“Sociologicamente, o efeito da responsabilização do indivíduo por sua própria saúde torna cada indivíduo um
‘doente em suspenso’, que é responsável pela procura das suas suscetibilidades. Expressões como ‘obrigação
moral’, ‘dever público’, ‘domesticação da incerteza’, culto da saúde’ e ‘empreendedorismo moral’ passam a ser
uma constante nos organismos internacionais e o no próprio Estado português para enfatizar a
corresponsabilidade do indivíduo pela efetivação de sua própria saúde.” ASENSI, Felipe Dutra. Direito à Saúde:
Práticas sociais reivindicatórias e sua efetivação. Curitiba: Juruá. 2013. P. 183.
52
“Recorda-se, a propósito, a segunda hipótese geral deste trabalho de deixarmos acima formulada como se
segue: <<as deficiências da produção estatal de saúde e segurança social são em parte compensadas pela
sociedade-providência. Neste campo, o que caracteriza especificamente a sociedade portuguesa é a forte
presença da medicina popular de produção artesanal ao lado da medicina oficial e funcionando como mecanismo
44

Constata-se, portanto, que a imprecisão da expressão “direito à saúde” reflete não só


em termos conceituais e de conteúdos, mas, também, ressoa na discussão acerca do alcance do
comando ao reconhecer o direito de todos e o dever do Estado. Diante da amplitude
conceitual das prestações de saúde que se pode tomar em conta, é inegável que o tema
medicamento encontra-se inserido neste contexto. É possível perceber tal preocupação quando
a Lei n. 8080/90 insere como objetivo do Sistema Único de Saúde a formulação de políticas
de medicamentos53. Como ressaltado, na proposta de recorte temático do presente trabalho,
serão tratados os aspectos relevantes dos fármacos enquanto instrumento de efetivação do
“direito à saúde”.

1.8 O Sistema Único de Saúde: entre o normativo e o real

Como reflexo dessas aspirações sociais, a Constituição de 1988 alça a saúde como
um dever do Estado, inaugurando um imperativo normativo de verdadeiro direito fundamental
no sentido de universalização das prestações de saúde. A institucionalização permitiu a
consolidação de princípios e programas cujo desenvolvimento e observância por parte dos
poderes políticos encontrariam sua viabilidade no denominado Sistema Único de Saúde. O
art. 198 da CRFB surge como ponto de partida para a criação de um sistema normativo
próprio de significação das prestações de saúde, estabelecendo as diretrizes de uma estrutura
institucional para todas as esferas, ou seja, um modelo de arranjos voltados para a
consolidação das prestações de saúde em todos os entes federativos, contando ainda com a
participação da comunidade.

O SUS surge com a ambiciosa missão de tornar acessíveis as medidas de saúde de


maneira universal, integral, igualitária, participativa e descentralizada. A universalidade deve
ser compreendida como a característica inicial de prestação de prevenção, promoção e
recuperação da saúde a todo e qualquer cidadão. Trata-se de uma proposta de abrangência
ampla no que diz respeito à população demandante das medidas de saúde. Enquanto direito

compensatório das deficiências da medicina estatal ou da inacessibilidade da medicina privada. Neste sentido é
legítimo falar-se de articulação de modos de produção de saúde como característica global da sociedade
portuguesa no domínio dos cuidados de saúde>>.” SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado, a sociedade e as
políticas sociais – O caso das políticas de saúde. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 23. 1987. P. 13-74.
53
Art. 6º, VI Lei n.º 8080/90
45

fundamental, cabe ao Estado proporcionar meios para o pleno e efetivo exercício, sem a
consideração de fatores distintivos individuais.

Por sua vez, a integralidade traduz-se de ideia de acessibilidade às prestações


efetivamente disponíveis, abrangendo o conjunto de providências preventiva e curativas de
modo a proporcionar a efetivação da saúde. A questão que põe em dúvida reside na
concepção pretendida no sentido de abarcar prestações sem a comprovada eficácia e sem
observância dos trâmites legais de incorporação, tema que será desenvolvido adiante.

A igualdade pressupõe a adoção de políticas públicas capazes de alcançar a proposta


de justiça social, eliminando eventuais desigualdades entre as regiões do país, cabendo, ao
Estado, adotar providências e destinar recursos às localidades da Federação mais carentes de
assistência.

A participação da sociedade também surge como um dos vetores das políticas de


saúde, expressando a necessidade de efetiva participação e controle social. Assegura que a
adoção de políticas públicas de saúde seja precedida de debates com a sociedade. Sem dúvida,
a principal providência que viabilizou a proposta foi a criação dos Conselhos de Saúde que
contam, na sua composição, com a participação paritária de entidades representativas dos
usuários, profissionais médicos, prestadores de serviços e gestores públicos54.A
descentralização do sistema único de saúde traduz-se na ideia de considerar as peculiaridades
das realidades locais. Estabelece que gestores locais fiquem responsáveis pela rede de
assistência nos limites territoriais de sua atuação. Todos os entes federativos devem trabalhar
em conjunto para a implementação das políticas públicas de saúde.

O Sistema Único de Saúde tem viabilizado prestações de saúde variadas como os


programas de vacinação para a prevenção de diversas doenças55, o fornecimento de
medicamentos antirretrovirais para o tratamento da AIDS, realização de procedimentos
hospitalares de diversas naturezas (transplantes, hemodiálises, quimioterapias, radioterapias,
reprodução assistida, etc.), fornecimento de medicamentos gratuitamente ou com descontos
nas chamadas Farmácias Populares, remoção de pacientes através do Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência (SAMU), dentre outras prestações de saúde.

54
Relação dos atuais integrantes, conforme eleição realizada em novembro de 2015. Disponível em
<http://conselho.saude.gov.br/expediente/Composicao_CNS.pdf> Acesso em 18/04/2017.
55
Prestações referenciadas em organismos internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e
Organização Pan-americana de Saúde
46

No entanto, em que pese a tentativa constitucional de acessibilidade universal,


integral e igualitária, é fundamental guardar uma análise crítica acerca do sistema de saúde
como faticamente ele é experimentado, isto é, é preciso perceber que há, na realidade, um
Sistema Único de Saúde no plano normativo e outro no concreto. A pretendida organização
regionalizada, hierarquizada e descentralizada entre os entes da federação objetivava alcançar
as diretrizes fundamentais do sistema considerando as peculiaridades regionais e locais,
contudo dificuldades de várias ordens impedem a concretização dos objetivos
constitucionalmente expostos no art. 196.

O fato objetivo é que, após a criação do SUS, evidenciou-se um estado permanente


de crise sistêmica. Embora o discurso consagrado no texto constitucional fosse voltado para
um programa de caráter inclusivo, as prestações de saúde, objetivamente, sofreram com
inúmeros reveses na sua concretização. O SUS gozava de um apoio normativo e discursivo
favorável, mas a prática destoava de sua essência. O subfinanciamento, má gestão dos
recursos disponíveis, a existência de um modelo paralelo de saúde privada, dentre outros
fatores, serviram para o subdesenvolvimento do sistema público de saúde.

A visão experimentada atualmente não destoa da realidade retratada desde a


promulgação da Constituição. Ainda hoje é possível perceber o afastamento entre o normativo
e o real, situação que vem sendo agravada com novos elementos de exasperação das
dificuldades da estrutura de saúde do Estado.

A proposta de universalização da saúde introduz desafios para sua efetivação no


sentido da extensão das medidas. Os desafios vão desde a definição das prioridades nos
termos das prestações de saúde até o alcance aos indivíduos e que, neste último aspecto,
precisa contar com ações verticalizadas e horizontalizadas entre os entes federativos distintos
sob perspectivas políticas e factuais.

Hoje, alguns temas ganham destaque, pois refletem diretamente no funcionamento


do Sistema Único de Saúde. Os tratamentos de alto custo56, concessão de tratamentos
experimentais e fornecimento de medicamentos sem registro no órgão de controle são

56
A questão do fornecimento de medicamentos de alto custo teve a repercussão geral reconhecida pelo STF no
recurso extraordinário n.º 566.471. Somente como ilustração da relevância da questão, citamos a situação
noticiada pelo CNJ que apresenta o caso do Estado do Rio de Janeiro que gasta 11,8 milhões de reais para
custear o tratamento de 13 pacientes com a doença de Pompe. Somente para se ter uma ideia, o mesmo Estado
gasta 21 milhões para atender 120 mil pacientes por ano em uma Unidade de Pronto Atendimento. Disponível
em <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80770-rj-cria-estrutura-propria-para-atender-casos-de-saude-que-chegam-
a-justica> Acesso em 21/02/2010.
47

exemplos de prestações requeridas no âmbito dos Tribunais, repercutindo consideravelmente


no planejamento e na execução das prestações de saúde. Dois desses temas tiveram a
repercussão geral reconhecida no Supremo Tribunal Federal57, demonstrando a necessidade
de uma definição acerca da amplitude de cobertura do SUS diante do aumento da demanda e
da escassez de recursos.

São frequentes as notícias sobre o aumento considerável das despesas do Estado com
o cumprimento de decisões judiciais concessivas de medidas de saúde, dificultando o
adequado planejamento das prestações pelo SUS58. Conforme se extrai do levantamento feito
junto ao Ministério da Saúde a linha de crescimento, nos últimos cinco anos, é acentuada,
conduzindo o Estado a destinar, cada vez mais, recursos para o cumprimento de decisões
judiciais concessivas de prestações de saúde.

ANO VALORES GASTOS QUANTIDADE DE COMPRAS


2011 208.415.179,51 2892
2012 324.454.303,77 3.173
2013 438.823.909,94 2824
2014 698.831.712,49 3154
2015 1.013.331.821,30 4252
201659 599.140.982,30 666
Fonte: Departamento de Logística em Saúde do Ministério da Saúde60

Os dados apresentados estão relacionados apenas aos gastos com aquisição de


medicamentos, materiais médico-hospitalares e suplementos alimentares, não incluindo,
portanto, despesas com procedimentos cirúrgicos e internações o que eleva, ainda mais, os
valores dispensados pelo governo com o custeio de prestações de saúde decorrentes de
determinações judiciais de todo o país.

Dentro da necessidade de recorte temático do presente trabalho e da despretensão de


esgotar o vastíssimo tema envolvendo os problemas do Sistema Único de Saúde, que, como

57
Recursos extraordinários n.º 657.718 sobre a obrigatoriedade, ou não, de o Estado fornecer medicamento não
registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA e o Recurso Extraordinário n.º 566.471em
que se discute a obrigatoriedade de o Estado prover medicamentos de alto custo.
58
No ano de 2014 o Estado teve um gasto de R$ 838,4 milhões somente com o cumprimento de decisões
judiciais conforme relatado no portal da saúde do governo federal, disponível em <
http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/20195-em-cinco-anos-mais-de-r-2-1-
bilhoes-foram-gastos-com-acoes-judiciais> com acesso em 21/02/2016.
59
Os dados fornecidos pelo DLOG/SE/MS para o ano de 2016 referem-se apenas àquelas aquisições realizadas
até o mês de junho do referido ano.
60
Dados obtidos através de requerimento realizado no portal da transparência do Governo Federal de
responsabilidade da Controladoria Geral da União no endereço eletrônico
<http://esic.cgu.gov.br/sistema/Principal.aspx> realizado em 22/07/2016, respondido em 15/08/2016. O
protocolo recebeu o n.º 25820003298201652
48

afirmado, guarda enorme distância entre o legal e o real, optou-se por analisar uma questão
que vem agravando, especialmente no aspecto financeiro, a crise do sistema de saúde,
causando sérias implicações quanto às pretensões de alcance de suas propostas iniciais. A
obrigatoriedade de realização das prestações de saúde em razão da judicialização da pretensão
de medicamentos não registrados pela ANVISA, além de gerar custos não previstos no
orçamento do Estado, introduz importante debate acerca da compreensão do Direito.

1.9 SUS: Integração e incorporação

O art. 198 da CRFB instituiu o regramento inicial do Sistema Único de Saúde


estabelecendo a criação de uma rede regionalizada e hierarquizada assentada sob as diretrizes
da descentralização entre os entes federativos, a integralidade no atendimento em caráter
preventivo e assistencial, além da participação da comunidade na definição das políticas
públicas de saúde. É possível identificar também, como premissas básicas do sistema, o
financiamento público e a introdução de instrumentos de fiscalização, avaliação e controle das
despesas em todas as esferas de governo.

Em seguida foi editada a denominada Lei Orgânica da Saúde (lei n.º 8.080 de 19 de
setembro de 1990) dispondo sobre as condições de promoção, proteção e recuperação da
saúde, além de estabelecer regras sobre a organização e o funcionamento dos serviços de
alcance das prestações de saúde61.

A lei n.º 8.142 de 28 de dezembro de 1990, que também compõe a rede normativa
básica de regramento do Sistema Único de Saúde, define os preceitos acerca das
transferências de recursos financeiros entre os entes federativos e estabelece regras sobre a
participação da comunidade na gestão do SUS. A proposta de um sistema participativo deu-se
com a redefinição das atribuições do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que inicialmente
possuía função meramente consultiva e de apoio ao Ministro da Saúde62, passando a
representar a instância máxima de deliberação, fiscalização, acompanhamento e

61
A lei n.º 8080/90, desde sua criação, foi consideravelmente alterada por vários diplomas legais como lei n.º
9836/1999, lei n.º 10.424/2002, lei n.º 11.108/2005, lei n.º 12.401/2011, lei n.º 12.466/2011, LC n.º 141/2012,
lei n.º 12.864/2013, lei n.º 13.097/2015
62
Órgão instituído pela Lei n.º 378/1937 e reformulado pelos Decretos n.º 34.347/1957, 45.913/1959 e
847/1962.
49

monitoramento das políticas públicas de saúde, sendo composto por representantes da União,
Estados, Distrito Federal e Municípios; dos trabalhadores da área da saúde e das entidades de
representação dos usuários do sistema63. A representação dos demais entes federativos
ocorreu com a criação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho
Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS)64.

Integrando a rede normativa do sistema de saúde foram editadas as normas


operacionais básicas65 cujos objetivos consistiam na definição detalhada, de cada esfera de
governo, sobre as condições necessárias para que Estados e Municípios pudessem assumir
posições no processo de implementação do sistema de saúde.

Merece destaque, também, o denominado Pacto pela Saúde de 200666 que consistiu
em um conjunto de compromissos e ações articuladas entre os vários níveis de governo no
sentido de desenvolver e reforçar as políticas públicas de saúde, definindo de maneira
inequívoca as responsabilidades na promoção, proteção e recuperação de saúde. As propostas

63
“Os conselhos de saúde são órgãos colegiados deliberativos e permanentes do SUS, existentes em cada esfera
de governo e integrantes da estrutura básica do Ministério da Saúde, das secretarias de saúde dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios, com composição, organização e competência fixadas pela Lei nº 8.142, de 28
de dezembro de 1990. Atuam na formulação e proposição de estratégias, e no controle da execução das políticas
de saúde, inclusive em seus aspectos econômicos e financeiros. Suas decisões devem ser homologadas pelo
chefe do poder legalmente constituído, em cada esfera de governo. As regras para composição dos conselhos de
saúde são, também, estabelecidas no texto legal, devendo incluir representantes do governo, prestadores de
serviços, trabalhadores de saúde e usuários, sendo a representação dos usuários paritária (50%) em relação ao
conjunto dos demais segmentos. A criação dos conselhos deve ser objeto de lei ou decreto, em âmbito municipal
ou estadual. O Conselho Nacional de Saúde (regulado pelo Decreto n° 99.438, de 1990) estabeleceu
recomendações para constituição e estruturação dos conselhos estaduais e municipais de saúde, quais sejam:
garantia de representatividade, com a escolha dos representantes feita pelos próprios segmentos; distribuição da
composição, sendo 50% usuários, 25% para trabalhadores de saúde e 25% para gestores e prestadores de
serviços; eleição do presidente entre os membros do Conselho.” Referência constante do documento elaborado
pelo Ministério da Saúde, intitulado O SUS de A a Z: Garantindo a saúde nos municípios. Brasília: Ministério da
Saúde, 2009. Pag. 98-99
64
Como destaca Asensi, a criação dos conselhos de saúde, em todos os níveis da federação, pode ser apontado
como um dos fatores criadores de uma cultura de reivindicação das prestações de saúde no plano do Judiciário,
contribuindo, em importante escala, para a enorme judicialização de pretensões voltadas para a efetivação do
direito à saúde. Como destaca o autor “Não é por acaso que a cultura política que se constituiu no Brasil, ao
menos no que concerne àqueles cidadãos que são menos influenciados pelos obstáculos econômicos e
socioculturais de acesso à justiça, esteve relacionada a uma radical judicialização da saúde. A cultura política
brasileira encontrou solo fértil na judicialização para efetivara o direito à saúde, inclusive promovendo uma
relativa concorrência – ainda que pouco visível – das instâncias participativas mais tradicionais, tais como os
Conselhos e Conferências de saúde.” ASENSI, Felipe Dutra. Direito à Saúde: Práticas sociais reivindicatórias e
sua efetivação. Curitiba: Juruá. 2013. P. 293.
65
NOB/SUS 01/91 aprovada pela Resolução n.º 258 de 07 de janeiro de 1991; NOB/SUS 01/93 aprovada pela
Portaria n.º 545 de 20 de maio de 1993; NOB/SUS 01/96 aprovada pela Portaria n.º 2203 de 06 de novembro de
1996; NOAS/SUS 01/01 aprovada pela Portaria 95 de 20 de janeiro de 2001 e NOAS/SUS 01/02 aprovada pela
Portaria n.º 373 de 27 de fevereiro de 2002. Com exceção da primeira norma, editada pelo do Instituto Nacional
de Assistência Médica da Previdência Social, extinto pela Lei n.º 8689/93, todos os demais atos normativos
foram editados pelo Ministério da Saúde.
66
Portaria do Ministério da Saúde n.º 399 de 22 de fevereiro de 2006
50

reforçam os objetivos de descentralização e hierarquização, sobretudo no sentido de corrigir


as diferenças regionais e alcance de referenciais de equidade do direito social à saúde.
Enquanto instrumento consagrador da convergência de vontades, o Pacto pela Saúde tentou
elevar as intenções das políticas públicas, em cada esfera de gestão, ao nível desejável de
atendimento das demandas das prestações de saúde.

Em todas as propostas de normatização do Sistema Único de Saúde percebe-se a


preocupação da legislação quanto ao regramento da vigilância sanitária e, por via de
consequência, dos medicamentos e insumos destinados à proteção, controle e combate de
enfermidades.

Na proposta de análise do presente trabalho, a referida lei insere no âmbito de


atribuições do Sistema Único de Saúde a execução das ações de vigilância sanitária o Art. 6º
da Lei n.º 8080/90 (Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde: I
- a execução de ações: a) de vigilância sanitária;) bem como estabelece a competência da
esfera nacional do SUS para definir e coordenar os sistemas de vigilância sanitária (Art. 16. A
direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete: III - definir e coordenar os
sistemas: d) vigilância sanitária; VIII - estabelecer critérios, parâmetros e métodos para o
controle da qualidade sanitária de produtos, substâncias e serviços de consumo e uso
humano e XII – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse
para a saúde). Dessa maneira, reforça-se a preocupação do legislador em inserir na ordem das
prestações de saúde o cuidado com a circulação dos medicamentos destinados ao consumo da
população.

Ainda no aspecto da vigilância sanitária, especificamente na fiscalização e controle


da circulação de medicamentos, a Lei n.º 8080/90 sofreu importante alteração pela Lei n.º
12.401/2011 que inseriu regras sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia
em saúde pelo SUS. Dentro da proposta de fornecimento de prestações de saúde pelo sistema
público, foi criada a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS
(CONITEC), responsável pela avaliação e eventual aprovação de prestações a serem
incorporadas.

A CONITEC, regulamentada pelo Decreto n.º 7646/2011, propõe-se a assessorar o


Ministério da Saúde na incorporação, alteração ou exclusão do Sistema Único de Saúde de
medicamentos, equipamentos e procedimentos. Portanto, cabe ao órgão aferir os benefícios e
51

riscos das novas prestações dentro de um cenário de compatibilização entre os benefícios para
os usuários e os impactos orçamentários e logísticos para o SUS.

Trata-se de sistema inspirado em modelos similares, como do Reino Unido e


Austrália, em que o interessado, órgãos e instituições, públicas ou privadas e pessoas físicas,
deverá formular pedido de incorporação da terapia, apresentando estudos que demonstrem a
eficácia, segurança, viabilidade econômica e impacto orçamentário. Os estudos são realizados
em parceria com universidades bem como conta com a realização de audiências públicas,
tendo como instância final deliberativa o plenário composto por integrantes do Ministério da
Saúde, Conselho Federal de Medicina, ANS, ANVISA, CNS, CONASS e CONASEMS. Na
ilustração abaixo é possível compreender todas as etapas para a incorporação de terapias no
SUS.

A CONITEC é responsável pela elaboração de uma lista de medicamentos essenciais


que devem ser disponibilizados pelo SUS. A relação nacional de medicamentos essenciais
(RENAME) revela-se como um instrumento de promoção de assistência farmacêutica e
disponibilização racional de medicamentos. A relação define as responsabilidades de
financiamento entre os entes federativos, estabelecendo uma racionalidade e transparência na
52

promoção da saúde, considerando a complexidade das necessidades da população, a


velocidade no surgimento das novas tecnologias e a capacidade de financiamento e
organização da União, Estados e Municípios.

De acordo com sua proposta institucional, o trabalho desempenhado pelo órgão deve
ser permanente de modo a realizar uma revisão constante dos medicamentos disponibilizados
pelo SUS. Difere do procedimento de registro adotado no âmbito da agência de vigilância
sanitária, pois, como será visto adiante, a ANVISA realiza um procedimento de aferição de
segurança, eficácia e viabilidade econômica, ao passo que a CONITEC analisa a possibilidade
de incorporação do medicamento considerando a viabilidade financeira e a escolha da terapia
mais vantajosa diante das alternativas existentes.

Os interessados na incorporação de determinada tecnologia devem formular


requerimento endereçado para a secretaria executiva do órgão com os fundamentos e
documentos que evidenciem a eficácia e a viabilidade econômica. De acordo com o art. 24 do
Decreto n.º 7646 de 21 de dezembro de 201167, que dispõe sobre a CONITEC e o processo
administrativo de incorporação, exclusão e alteração das tecnologias disponibilizadas pelo
SUS, o procedimento deve ser concluído em 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias. O órgão
disponibiliza relatórios anuais com o balanço das decisões sobre os pedidos de incorporação,
exclusão e alteração68. No gráfico abaixo é possível identificar, em termos quantitativos, o
total de prestações incorporadas, não incorporadas e excluídas entre os anos de 2012 e 2016.

30

25

20
INCORPORADO
15 NÃO INCORPORADO

10 EXCLUÍDO

0
2012 2013 2014 2015 2016

67
Art. 24. “O processo administrativo de que trata este Capítulo deverá ser concluído em prazo não superior a
cento e oitenta dias, contado da data em que foi protocolado o requerimento, admitida a sua prorrogação por
noventa dias, quando as circunstâncias exigirem.”
68
Disponível em <http://conitec.gov.br/decisoes-sobre-incorporacoes> acesso em 01/01/2018
53

A partir dos pedidos de incorporação apresentados à CONITEC o Ministério da


Saúde publica, a cada dois anos, as atualizações da Relação Nacional das Ações e Serviços de
Saúde (RENASES) e da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) 69. Nesse
sentido, há uma periodicidade estabelecida com o propósito de atualizar as terapias fornecidas
pelo Sistema Único de Saúde.

Sob essa perspectiva, o SUS pretende estabelecer-se como um sistema eficaz que,
com base em evidências científico-financeiras, procura ampliar a disponibilidade de terapias
nos três níveis de governo e alcançar a sociedade em geral. A metodologia busca assentar-se
numa racionalidade que alie eficácia e segurança às diretrizes de bom uso dos escassos
recursos públicos.

69
O período de dois anos para as atualizações da RENASES está previsto no art. 22 parágrafo único e do
RENAME no art. 26 parágrafo único do Decreto n.º 7508 de 28 de junho de 2011.
54

CAPITULO II: O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E O REGISTRO DE


MEDICAMENTOS: ENTRE A METODOLOGIA E O TRATAMENTO

2.1 A regulação sanitária: situando os diversos problemas

O art. 197 da Constituição Federal impõe ao Estado o dever de fiscalizar e controlar


as ações e os serviços de saúde, representando verdadeiro comando voltado para a
preservação de interesses inestimáveis para a coletividade. Nesse contexto, representando
uma das seções da atividade estatal no controle do direito à saúde tem-se a atividade de
regulação e vigilância sanitárias. Como será tratado adiante, o poder regulatório é função
tipicamente estatal, inserindo-se, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, num
sistema composto por outras autarquias com atribuições especializadas.

A ANVISA desempenha importante papel na regulação de diversas substâncias e


tecnologias que, direta ou indiretamente, são destinados ao uso humano como alimentos,
agrotóxicos, cosméticos, medicamentos, tabaco, saneantes, sangue, dentre outros. A atuação
estendida demanda uma estruturação compatível com seus fins institucionais, além de gozar
de inafastável autonomia regulatória e decisória, capaz de afastar intervenções indevidas
capazes de colocar em risco os indivíduos.

O desenvolvimento que segue analisa os fatos antecedentes que culminaram na


criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária bem como a definição de suas
atribuições. A abordagem desloca-se no sentido de compreender as justificativas técnicas para
pressuposição autorizativa dos medicamentos, considerando as etapas procedimentais
obrigatórias e o tempo para seu cumprimento. Em especial, neste último elemento, mostra-se
fundamental compreender se o tempo de registro compatibiliza-se com referenciais razoáveis.
Na fixação de um padrão comparativo buscamos informações sobre o tempo de registro de
medicamentos na Food and Drug Administration, entidade norte-americana congênere.

Como propusemos no trabalho, o debate sobre a interferência judicial na concessão


de medicamentos sem registro na ANVISA é questionável sob diversos aspectos. A proposta
de integridade do Direito e respeito às funções institucionais são temas que naturalmente
55

surgem diante dos problemas pontuados, contudo, é preciso compreender se surge uma
margem de justificação da interferência judicial diante de atrasos irrazoáveis nas respostas aos
pedidos de registro de fármacos.

2.2 O modelo regulatório brasileiro

O poder regulatório sempre se apresentou de maneira ínsita à atividade do Estado. A


utilização da propriedade de entidades estatais voltadas para o fornecimento de bens e
execução de serviços públicos essenciais representou o principal modo de regulação do
mercado e consagração da primazia do interesse público, pois evitava os riscos dos
monopólios privados, nem sempre eficientes, e, ao mesmo tempo, buscava o equilíbrio e
desenvolvimento equânime das diversas regiões, muitas vezes marcadas por enormes
desequilíbrios.

A primeira metade do século XX, notadamente marcada por grandes conflitos


bélicos entre países, presenciou o movimento de estatização dos serviços públicos, servido de
suporte de políticas governamentais que, via de regra, buscavam a captação de recursos
capazes de financiar a atuação dos Estados nas guerras e reforçar a ideia de segurança
nacional. Esse movimento de um estado monopolista, logicamente, provocou a retração da
atividade privada.

O período do pós-segunda grande guerra, além de marcado pelo luto provocado pelos
milhões de mortos, serviu de momento de reflexão acerca da presença do Estado na
economia. O movimento de desestatização70 consolidava-se na formulação de medidas de
organização e gestão de serviços confiados aos particulares e a concessão de liberdades não
compatíveis com a rigidez das regras observáveis pela administração pública71.

70
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Desestatização, Privatização, Concessões e Terceirizações. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000. P. 9
71
“Havia chegado o momento da reversão das tendências estatizantes, de recompor a afetada autonomia da
sociedade e de recuperar a desgastada dignidade da pessoa: uma grande obra que haveria de se iniciar na Europa
justamente a partir dos países cujas gerações mais haviam sofrido com as consequências daquelas funestas
ideologias concentradoras de poder no Estado: a Itália e a Alemanha.” NETO. Diogo de Figueiredo Moreira.
Mutações nos Serviços Públicos. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de
Direito Público da Bahia, n.º 1, fevereiro, 2005. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br> Acesso em
28/07/2016
56

Nos Estados Unidos estendeu-se o movimento institucional de regulação dos


serviços públicos e fornecimento de bens com a criação das agências especializadas e
independentes, denominadas agências reguladoras72. A especialização técnica e científica das
entidades permitiu um modelo de fiscalização das empresas privadas capaz de conferir a
execução de atividades permeadas por valores como o profissionalismo e a eficiência.

Portanto, é possível destacar, como características fundamentais das agências


reguladoras, a expertise no contexto de aproximação entre agência e setor regulado e pelo fato
de permitir que a regulação ocorra de modo tecnicamente ajustado com as necessidades do
mercado, eliminando-se os entraves de uma burocracia estatal tradicional. Por outro lado, é
possível identificar, também, a credibilidade gerada pela autonomia das agências reguladoras
diante do afastamento das influências políticas. A volatilidade das decisões tende a
desaparecer visto que não subordinadas ao modelo governamental alterado pelos ciclos
eleitorais.

Esse novo modelo de governança expandiu-se por diversos países, sobretudo em


função do protagonismo exercido pelos Estados Unidos e Inglaterra na instituição do modelo
governamental no contexto de economia globalizada, influenciando sobremaneira os países
periféricos, como os latino-americanos, sobretudo em função do estado de dependência
econômica vivenciado por estes.

No Brasil, as primeiras experiências regulatórias surgiram na primeira metade do


século XX, especialmente durante a Era Vargas. As ideias centrais das reformas eram
proporcionar a redefinição de estruturas institucionais e incrementar os mecanismos de
controle e organização das diversas atividades. A criação da Superintendência da Moeda e do
Crédito (SUMOC), através do Decreto n.º 7293 de 1945 almejava controlar o conturbado
mercado financeiro e combater a inflação. O órgão foi predecessor do Banco Central, criado
pela Lei n.º 4595/64, estruturando-se sobre o modelo de autarquia responsável por promover o
reordenamento do sistema financeiro73.

72
Noticia a existência de um modelo regulatório nos Estados Unidos desde 1887 com o Interstate Commerce
Act. e o Interstate Commerce Comission que cuidavam da regulação das estradas de ferro.
73
Disponível em <http://www.bcb.gov.br/pre/Historia/HistoriaBC/historia_BC.asp> Acesso em 08/08/2016.
57

Outra experiência regulatória marcante decorreu da criação da Comissão de Valores


Mobiliários (CVM), entidade autárquica, criada pela Lei n.º 6385/76, com o objetivo de
fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores mobiliários no Brasil 74.

Contudo, a onda regulatória foi substancialmente ampliada com o movimento de


desenvolvimento implementado através do denominado Programa Nacional de
Desestatização, instituído pela Medida Provisória n.º 155 de 1990, transformada,
posteriormente, na Lei n.º 8031/90. A reorganização da posição do Estado na economia
conduziu à transferência da exploração das atividades de fornecimento de água, energia
elétrica, gás, telecomunicações e de transportes públicos, além da construção e conservação
de estradas ferro e rodovias.

As agências reguladoras vieram na sequência com a criação da Agência Nacional de


Energia Elétrica – ANEEL, através da Lei n.º 9427/96; Agência Nacional de
Telecomunicações – ANATEL, criada pela Lei n.º 9472/97; Agência Nacional do Petróleo,
Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, Lei n.º 9478/97; Através da Lei n.º 9782/1999 foi
criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA; Agência Nacional de Saúde
Suplementar – ANS, criada pela Lei n.º 9961/2000; Agência Nacional de Águas – ANA, Lei
n.º 9984/2000; Agência Nacional de Transportes Terrestres e Agência Nacional de
Transportes Aquaviários – ANTT e ANTAQ, criadas pela Lei n.º 10.233/2001; Agência
Nacional de Cinema – ANCINE, prevista na Medida Provisória n.º 2228-1/200175 e Agência
Nacional de Aviação Civil – ANAC, criada através da Lei n.º 11.182/2005.

Nesse contexto, o modelo de arranjos regulatórios no Brasil seguiu uma tendência


experimentada pelas políticas governamentais de diversos países, sobretudo diante do cenário
de privatizações de serviços públicos e de atividades antes desempenhadas diretamente pelo
Estado. O movimento, contudo, não se mostra imune às críticas e a demandar ajustes para a
busca de avanços76. As pressões do campo político, indubitavelmente, continuam a
representar o grande risco para o modelo, principalmente, diante das tentativas de

74
Disponível em < http://www.cvm.gov.br/menu/acesso_informacao/institucional/sobre/cvm.html> Acesso em
08/08/2016.
75
Discute-se a inconstitucionalidade da ANCINE, criada através de Medida Provisória sendo que a Constituição
determina no art. 37, XIX que somente por lei específica poderá ser criada autarquia.
76
Com essa finalidade de ajustes no modelo regulatório foi apresentado o Projeto de Lei n.º 3337/2004 dispondo
sobre a gestão, a organização e o controle social das agências reguladoras, passando a integrar o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007. Também em 2007 foi editado o Decreto n.º 6062 dispondo sobre o
Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação – PROREG, objetivando
implementar melhorias no sistema regulatório como a coordenação entre instituições do sistema, mecanismos de
prestação de contas, a participação e monitoramento da sociedade civil e a qualidade da regulação dos mercados.
58

implementação de matrizes ideológicas e inserção de indivíduos desprovidos do


conhecimento técnico exigível para as entidades regulatórias.

A melhoria da atividade regulatória segue a tendência de se normatizar e controlar as


atividades conferidas à iniciativa privada, tornando atrativo o mercado brasileiro aos
investimentos além de proporcionar a proteção dos destinatários dos serviços prestados.

2.2.1 A regulação sanitária de medicamentos no Brasil

A regulação sanitária no Brasil tem precedentes no início do século XX, período em


que o relativo crescimento econômico do país e o comércio internacional de produtos como o
café, demandava especial atenção em função da grande circulação de produtos e pessoas,
sobretudo nas regiões portuárias. Verificou-se a necessidade de criação de uma estrutura
sanitária que pudesse fiscalizar e controlar os produtos exportados, cuidar do processo
migratório e conter o surto de algumas doenças como a febre amarela e a malária.

Em 1900 foi criado o Instituto Soroterápico Federal cujo objetivo era fabricar soros e
vacinas contra doenças, sendo transformado e ampliado posteriormente para uma Diretoria
Geral de Saúde Pública. O órgão, dirigido pelo sanitarista Oswaldo Cruz, teve sua atuação
ampliada, não se restringindo à fabricação de vacinas, passando a acumular as atividades de
pesquisa e qualificação de recursos humanos. Boa parte das atividades iniciais estava voltada
para o combate à epidemia de febre amarela e de varíola, além de políticas de saneamento e
higiene pessoal77.

Com a criação do Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos, hoje Instituto


Oswaldo Cruz, foram instituídas normas para o controle de mosquitos, vetores da febre
amarela, bem como a criação de expedições científicas que objetivavam a interiorização das
políticas sanitárias no país. Na área de medicamentos, em 1918, foi instituída a política de
medicamentos oficiais, ficando o Instituto responsável pela produção de fármacos para o
tratamento de doenças endêmicas.

77
Disponível em < http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/cronologia-historica-da-saude-publica>
Acesso em 04/08/2017
59

Outro marco no processo de aprimoramento das políticas sanitárias foi a criação do


Departamento Nacional de Saúde Pública e a posterior edição do Decreto n.º 3987 de 2 de
janeiro de 1920 que regulamentou e organizou os serviços de saúde pública. No tocante aos
medicamentos, o Decreto n.º 16.300 de 31 de dezembro de 1923 estabeleceu regras sobre o
controle e fornecimento de medicamentos oficiais. O Departamento ficou responsável,
também, pelo licenciamento de medicamentos, inclusive os remédios novos78,sem, contudo,
estabelecer regras de aferição da eficácia e segurança dos produtos.

Outro momento importante na política regulatória de medicamentos ocorreu com a


edição do Decreto Federal n.º 19.606 de 19 de janeiro de 1931 que regulamentou a atividade
farmacêutica e o seu exercício. Nesse decreto, a atuação da indústria farmacêutica passava a
observar regras de licenciamento de medicamentos, conferindo ao Departamento Nacional de
Saúde Pública a exclusividade na concessão das licenças79. O licenciamento prévio para a
produção e circulação de agentes medicamentosos dependeria do controle sobre
procedimentos de verificação de segurança e eficácia, além de determinar a apresentação de
informações relevantes aos consumidores como a indicação do fabricante, dosagem, exigência
de prescrição médica, princípios ativos, dentre outras exigências de observância obrigatória
pelo fabricante, imputando sanções administrativas e criminais no caso de descumprimento.

As décadas de 30 e 40 do século passado foram férteis no tratamento da regulação


sanitária de medicamentos. A criação de órgãos como o Serviço Nacional de Fiscalização da
Medicina80 e as comissões de biofarmácia e de revisão farmacopeica restringiram, ainda mais,
a circulação de medicamentos. Por outro lado, no campo normativo, o Decreto n.º 20.397/46
estabeleceu novas regras para a especialidade farmacêutica e para a legalização de produtores.

O Decreto n.º 49.974-A de 21 de janeiro de 1961, regulamentou o Código Nacional


de Saúde (Lei n.º 2312/54), reafirmando a competência da autoridade sanitária federal para o
licenciamento a produção, manipulação e comércio de drogas bem como a fiscalização de
estabelecimentos destinados a sua fabricação.

78
Decreto n.º 16.300 de 31/12/1923 – “Art. 256. É indispensavel licença do Departamento Nacional de Saude
Publica para a venda de antisepticos ou desinfectantes preparados pharmaceuticos e remedios novos.”
79 Decreto n.º 19606 de 19/01/1931 – “Art. 37. O Departamento Nacional de Saude Publica é a única autoridade
competente em todo o território da República para conceder licença para serem dadas ao consumo público as
especialidades farmacêuticas e poderá exigir a modificação de sua fórmula quando ficar demonstrado pelo
progresso da ciência que uma das substâncias componentes da mesma, julgada até então terapeuticamente util, é
nociva à saude.”
80
O Decreto n.º 3171 de 02 de abril de 1941 reorganizou o Departamento Nacional de Saúde, criando diversos
órgãos como o SNFM
60

Outro evento histórico importante no campo da regulamentação sanitária foi a década


de 70 do século passado. Nesse período destaca-se a criação da Central de Medicamentos81
(CEME) que serviu como órgão de deliberação e regulação da produção de medicamentos.
Com a reforma administrativa e a reestruturação do Ministério da Saúde, implementada pelo
Decreto n.º 79.056 de 30 de dezembro de 1976, foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância
Sanitária que, dentre outras atribuições assumia o controle e fiscalização de medicamentos
através de divisão específica (DIMED).

Por outro lado, as Leis n.º 5991/73 e 6360/76 passaram a regular o controle sanitário
mais amplo sobre medicamentos, inserindo na atividade da fiscalização sanitária o
componente qualidade, pois os fabricantes ficaram obrigados a relatar às autoridades de
vigilância sanitária as reações adversas decorrentes da ministração de medicamentos. O
Decreto-lei n.º 6437/77 instituiu regras acerca das infrações à legislação sanitária, prevendo
punições para os infratores responsáveis pela produção e circulação de medicamentos sem o
prévio registro no órgão de controle.

Como destacado anteriormente, a década de 1980 foi marcada pelo movimento


sanitário que defendia uma mudança estrutural no setor da saúde. Profissionais de diversas
áreas ligadas à saúde foram responsáveis pela organização de uma rede de propostas de
reformulação das práticas e políticas públicas sobre o tema. Como destacado anteriormente,
as conferências nacionais de saúde representavam um campo fértil para o debate e ao
surgimento de ideias e propostas no campo sanitário brasileiro e influenciaram
consideravelmente o novo diploma constitucional na versão abrangente do direito à saúde.

No início da década de 90 o país passou por uma nova reforma administrativa com o
início do governo Fernando Collor de Mello cujo objetivo consistia, especialmente, em
estabelecer um processo de desestatização e a consequente redução do tamanho do Estado,
flexibilização das regras do comércio internacional e de investimento estrangeiro e a
diminuição da intervenção estatal no setor privado. O período foi caracterizado, ainda, pela
fértil produção normativa, destacando-se, para o presente objeto, a Lei n.º 8078/90 (Código de
Defesa e Proteção do Consumidor) e a Lei n.º 8080/90 (Lei Orgânica da Saúde).

81
Decreto n.º 68.806 de 25 de julho de 1971. O decreto 75.985 de 17 de julho de 1975 revogou o anterior,
estabelecendo novas disposições para a Central de Medicamentos.
61

O cenário político conturbado refletiu na Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária.


As constantes trocas de secretários do órgão82 e denúncias de corrupção dificultavam o
processo de modernização do órgão e fixação de um modelo gerencial eficiente. A onda
reformista também alcançou a secretaria, especialmente com o lançamento do Projeto
Inovar83 que possuía entre seus princípios básicos a redução da ingerência estatal sobre as
empresas farmacêuticas, estabelecer regras para a modernização da vigilância sanitária
reduzindo o tempo e os custos para o registro de medicamentos, primando pela qualidade dos
produtos colocados em circulação no mercado consumidor.

Dentro dessa perspectiva de redução do tempo de registro dos medicamentos e a


tentativa de zerar os processos pendentes de julgamentos, houve a liberação irregular de
inúmeros produtos sem a adequada observância dos critérios técnico-científicos. A tentativa
de redução da interferência estatal, seguindo a linha do Programa Federal de
Desregulamentação instituído pelo Decreto n.º 99.179/90, desconsiderou os critérios de
proteção próprios de um sistema de vigilância sanitária, colocando em risco os interesses
coletivos84.

Mesmo diante do cenário conturbado politicamente e os inúmeros questionamentos


provocados em função dos riscos de registro de medicamentos de qualidade duvidosa, o
projeto foi implantado até ser revogado em 1993. Contudo, a presença dos interesses políticos
e a prevalência de medidas voltadas para jogo de conveniência da indústria farmacêutica
mantinha uma relação inadequada dentro de um sistema que se pretendia confiável já que
embasado em decisões de cunho estritamente técnico.

Em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso, instituiu um projeto de


reformulação da vigilância sanitária, tendo como medidas de destaque a transformação da
Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária em autarquia de caráter especial objetivando a
reestruturação dos mecanismos de controle, o combate à falsificação de medicamentos 85 e a

82
Somente entre abril/90 e novembro/92 foram três secretários Baldur Oscar Schubert (04/90-12/91), Sérgio
Wiener (12/91-02/92) e João B. Risi Junior (02/92-11/92)
83
Projeto Inovar. Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária. Brasília: Ministério da Saúde. 1990.
84
“Ignorou-se a natureza protetora das ações de Vigilância, como se a doutrina do liberalismo e a
desregulamentação pudessem sobrepor-se às práticas da Vigilância, como se fosse possível esquecer que o modo
de produção cria lógicas que entram em choque com os interesses sanitários da coletividade.” COSTA, EA., e
ROZENFELD, S. Constituição da vigilância sanitária no Brasil. In: ROZENFELD, S., org. Fundamentos da
Vigilância Sanitária [online]. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. 2000. P. 36
85
O anticoncepcional Microvilar e o Androcur, utilizado para o tratamento do carcinoma de próstata, são dois
exemplos ganharam notoriedade no período em função de adulterações. A comoção e a instabilidade social
provocados pelo escândalo dos medicamentos falso teve como resposta do governo das leis 9677/98 e 9695/98
que a alteraram os dispositivos do Capítulo III do Título VIII do Código Penal, incluindo na classificação dos
62

instituição de um órgão regulatório capaz de fazer frente às pressões do setor produtivo. O


controle sobre o credenciamento de empresas também constituía uma das preocupações do
novo governo, sobretudo pelo crescimento na produção dos medicamentos genéricos86.

A transformação completa da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária ocorreu


com a edição da medida provisória n.º 1.791/98 que resultou na edição da Lei n.º 9782/99 que
definiu as regras do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e criando a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária como entidade regulatória para a proteção e promoção da saúde da
população através da intervenção nos riscos derivados da produção e utilização de produtos e
serviços destinados ao consumo e à saúde da população. Surge com a visão de ser uma
instituição capaz de promover saúde e a regulação sanitária de maneira ágil, eficiente e
transparente.

Para o alcance de seus objetivos institucionais foi preciso estabelecer um modelo de


gestão com independência administrativa, estabilidade nos quadros diretivos e autonomia
financeira, seguindo a proposta das agências reguladoras, como descrito acima.

2.2.2 A Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Através da Lei n.º 9782/1999 foi criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária –
ANVISA, autarquia sob regime especial, responsável pela promoção da saúde da população,
por meio do controle sanitário da produção e comercialização de produtos e serviços
destinados ao consumo, cabendo, também, a fiscalização dos ambientes, processos, insumos e
tecnologias relacionados à saúde pública, além de exercer o controle portos, aeroportos e
fronteiras87.

Para o desenvolvimento de seus objetivos a ANVISA conta, atualmente, com um


quadro de 1977 servidores permanentes, 13 nomeados para cargos em comissão e 17
servidores requisitados de outros órgãos, contando com um orçamento consignado para o ano

delitos considerados hediondos crimes contra a saúde pública bem como alterando as penalidades das infrações
sanitárias nos casos de falsificação de medicamentos.
86
Destaca-se que a primeira regulamentação sobre os medicamentos genéricos ocorreu em 1993 com o decreto
793 contendo, basicamente regras acerca da denominação genérica. Foi somente com a Lei n.º 9787/99 houve a
efetiva implementação de uma política de medicamentos genéricos.
87 Art. 6º Lei n.º 9782/99
63

de 2016, de R$ 850.053.831,00. Nesse montante, estão incluídos os recursos repassados pelo


governo federal além das receitas obtidas com taxa de fiscalização e multas que no ano de
2016 totalizaram R$ 488.670.016,4888.

A autarquia é formada por uma diretoria colegiada, que possui a função precípua de
direção da entidade, definindo a administração estratégica e propondo ao Ministro da Saúde
políticas e diretrizes governamentais destinadas ao cumprimento de seus objetivos, editar
normas sobre matérias de sua competência, realizar a gestão de pessoal e apresentar os
relatórios e dados sobre a gestão da agência.

A diretoria colegiada é assessorada por órgãos de apoio como a procuradoria, o


conselho consultivo, a ouvidoria, a auditoria e a corregedoria que desempenham funções
específicas definidas no regimento interno da entidade89. Destaca-se, dentro dessa estrutura, a
figura do conselho consultivo, órgão de composição heterogênea, contando com a
participação de representantes da sociedade civil, da comunidade científica, de setores
produtivos (Confederação Nacional da Indústria e Confederação Nacional do Comércio), de
consumidores e integrantes da administração pública. Diante desse caráter plural, percebe-se
uma abertura para o ingresso de propostas de políticas governamentais e discussões
estratégicas no setor da vigilância sanitária.

No plano operacional, a autarquia estrutura-se em diretorias com funções específicas


de acordo com o segmento de atuação. A diretoria responsável pelos procedimentos de
fiscalização e controle das autorizações e registros sanitários é a DIARE, contando, no plano
específico dos medicamentos, com a Gerência Geral de Medicamentos e Produtos Biológicos

88
Os dados foram obtidos através de solicitação realizada em 30/08/2016 no Sistema Eletrônico do Serviço de
Informação ao Cidadão registrada sob o número de protocolo 25820003927201644. Segue a íntegra da resposta
no sistema e-SIC: “Em atenção ao seu questionamento manifestaram-se a Gerência de Gestão da Arrecadação -
GEGAR, Gerência de Orçamento e Finanças - GEFIC e Gerência–Geral de Gestão de Pessoas - GGPES,
conforme abaixo: 1) Quantidade de servidores efetivo e comissionados da autarquia; ATIVO PERMANENTE -
1.977 REQUISITADO - 13 NOMEADO CARGO COMIS. - 17 REQ.DE OUTROS ORGAOS - 01 2) O
orçamento da ANVISA para o ano de 2016; O orçamento consignado para Anvisa para o exercício de 2016 é de
R$ 850.053.831,00 distribuído nas ações de governo conforme demonstrativo em anexo. 3) Os valores
repassados pela União para o ano de 2016; Relativamente aos recursos financeiros repassados pela União, até a
presente data foi repassado o montante de R$ 380.477.710,50. 4) As receitas auferidas nos últimos 5 anos com a
taxa de fiscalização de vigilância sanitária; 2011 - R$ 331.035.376,09 - 2012 - R$ 331.560.959,59 - 2013 - R$
342.142.547,05 - 2014 - 367.212.527,09 - 2015 - 459.417.257,36. 5) As receitas auferidas nos últimos 5 anos
com multas decorrentes de ações de fiscalização. 2011 - R$ 51.111.710,72 - 2012 - R$ 22.438.581,14 - 2013 -
R$ 24.293.580,44 - 2014 - R$ 31.903.282,04 - 2015 - R$ 29.252.759,12 Esclarecemos que as informações
supramencionadas nos itens 4 e 5 podem ser acessadas por meio do sítio eletrônico http://
transparencia.gov.br/receitas/consultas.asp.”
89
RDC n.º 61 de 03/02/2016
64

(GGMED). O registro de novos medicamentos é realizado pela Gerência de Avaliação de


Tecnologia de Registro de Medicamentos Sintéticos (GRMED).

O controle público de suas atividades é realizado pelos órgãos de controle do Poder


Executivo, pelo Poder Legislativo e pelo Tribunal de Contas da União. É possível identificar
também um controle externo, realizado pela sociedade civil sobre os processos de
regulamentação sanitária da autarquia, sob a forma de consultas e audiências públicas, sendo,
este, processo fundamental de participação e controle social, evitando as influências do setor
privado e eventual desvirtuamento de seus objetivos institucionais.

Dentro da proposta estabelecida no art. 196 da CRFB de direito às prestações de


saúde, de acesso universal e igualitário, conferindo ao Estado o dever de implementar
políticas econômicas e sociais para a redução dos riscos de doenças, a ANVISA integra o
complexo sistema de mecanismos institucionais voltados para a finalidade de promoção de
uma situação de bem-estar físico, mental e social dos indivíduos.

As atribuições da autarquia mostram-se demasiadamente estendidas, sobretudo


quando identificado seu campo de atuação consistente na regulamentação, registro,
fiscalização, educação e pesquisa sobre os mais variados assuntos, como, agrotóxicos,
alimentos, cosméticos, laboratórios analíticos, medicamentos, tabaco, saneantes, sangue,
tecidos, células e órgãos. Dessa forma, é possível identificar a amplitude das ações
desenvolvidas pela entidade.

O fato é que a ANVISA surge dentro de um cenário de processo político conturbado,


necessitando instituir mecanismos capazes de repelir o aprisionamento por parte de grupos
econômicos influentes, como o da indústria farmacêutica, e apto a estabelecer processos de
fiscalização que possam conferir legitimidade na sua atuação e, consequentemente, alcançar a
credibilidade desejada da comunidade científica e dos consumidores dos produtos e serviços
sob sua órbita de atuação.

Diante da natural tendência de gerar conflitos nas ordens social, econômica e


política, tanto no plano interno quanto no internacional, a autarquia busca instituir-se como
um agente integrador dos diversos atores envolvidos no processo da regulação sanitária. Para
além de um debate puramente ideológico, portanto, ultrapassando as acusações de
consolidação de um projeto político de cunho neoliberal, com a preponderância dos interesses
65

do mercado e a redução da interferência estatal, a ANVISA avança como um elemento


agregador de decisões técnicas e de fiscalização dos agentes econômicos.

A despeito das eventuais influências políticas, como se poderia denotar pela


indicação dos diretores-presidentes, é importante deter-se pelo desenvolvimento de uma
atuação estritamente técnica, velando pela promoção dos interesses sociais, afastando-se das
possibilidades de captura pelo setor produtivo. A finalidade institucional deve pautar-se pelo
combate aos riscos decorrentes da circulação de produtos nocivos ao consumo humano. A
desordem do segmento sanitário, nos diversos períodos da história brasileira, demandava uma
reestruturação das instâncias regulatórias de modo a afastar as interferências nocivas, muitas
vezes infiltradas através do campo político, e proporcionar condições satisfatórias para a
circulação de produtos dentro de padrões desejáveis de segurança e eficácia.

Na tentativa de adequar-se ao Plano Nacional de Saúde, aprovado pelo Conselho


Nacional de Saúde em junho de 2016, a ANVISA definiu um planejamento estratégico, para o
período 2016-2019, com o propósito de proporcionar uma modernização no sistema de
gerenciamento bem como nos seus processos internos, especialmente naquilo que define os
processos de gestão das ações pré e pós-mercado90.

2.2.3 O controle das inovações farmacêuticas

A inovação científica é fator de fundamental relevância para a saúde dos


consumidores e para a expansão da atividade comercial. Além das questões relacionadas à
segurança, qualidade e eficácia, é preciso determinar precisamente a realidade da inovação
terapêutica e a influência que poderá exercer sobre o mercado consumidor, sobre os
profissionais de saúde e órgãos de controle. A identificação concreta da contribuição
científica deve passar por rigorosas etapas para excluir aquelas terapias que não trazem
qualquer acréscimo ou não representem uma invenção farmacêutica. É inegável o interesse
comercial envolvido, já que a descoberta de uma nova droga pode representar um peso
elevado na lucratividade do setor de medicamentos. É nesse sentido que consiste a
importância de se compatibilizar os múltiplos interesses envolvidos no processo de circulação
de um medicamento.
90
Disponível em < http://portal.anvisa.gov.br/planejamento/projetos> Acesso em 30/08/2016
66

O afastamento da apreensão da indústria farmacêutica deve orientar as políticas


públicas de controle, conferindo independência aos órgãos de vigilância sanitária, priorizando
o combate às práticas de captura, nem sempre notadas explicitamente. Basta, para tanto,
ilustrar com a prática da invenção de doenças, conhecida no idioma inglês como disease-
mongering, representando uma publicidade indireta, já que recai sobre a doença e não sobre o
medicamento, criando uma percepção de que a solução para o problema estaria, portanto, na
utilização do “novo medicamento”.

A elevação da ansiedade sobre futuras doenças em indivíduos saudáveis, a promoção


de tratamento farmacológico agressivo de sintomas e doenças mais leves, a introdução de
novos diagnósticos questionáveis - como os transtornos pré-menstruais ou transtorno de
ansiedade social – que, na prática, são difíceis de distinguir das adversidades normais do
cotidiano e a propaganda sobre drogas como uma solução eficiente para solução de problemas
anteriormente não considerados médicos, como comportamentos disruptivos de estudantes em
sala de aula ou relações sexuais problemáticas são alguns exemplos de necessidades criadas
ou potencializadas tendo como única solução o uso de medicamentos91.

Dentro dessa concepção de inovação, é possível identificar, de acordo com a doutrina


médica, dois tipos: a inovação não linear e a inovação linear92. A inovação não linear
consistiria naquele tipo de inovação inesperada e imprevisível, em que a nova terapia advém
de um resultado não objetivado pela pesquisa, mas as observações quanto aos efeitos abrem
caminho para um novo tratamento93. Por outro lado, a inovação linear consiste em uma
investigação prévia e orientada, ou seja, com propósitos específicos e definidos. Neste caso, a
inovação recai sobre o desenvolvimento de medicamentos mais seguros a partir de uma
mesma classe terapêutica.

Portanto, no âmbito das pesquisas e desenvolvimento de fármacos, é possível dividir


as novas substâncias em duas categorias: os medicamentos que surgem a partir de novas

91
MINTZES, Barbara. Disease Mongering in Drug Promotion: Do Governments Have a Regulatory Role?
Disponível em < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1434509/> Acesso em 10/08/2017
92
“Non-linear, quantum leap innovation, which is unexpected and unpredictable, where the future goal is
unclear or non-existent (such as the discovery of totally new therapeutic drug classes that are currently not
linked to disease mechanisms); and Linear, ‘logical’ innovation, based on incremental improvements, dedicated
to reaching superior, well-defined goals (such as aiming to improve on existing therapies by discovering safer or
better drugs within the same therapeutic class).” SMITH, Ester F. e SMITH, Denis A. Should scientific
innovation be managed? Drug Discovery Today. Volume 7. Artigo 18. Elsevier. 2002. P. 941-945
93
Em 1928 o médico Alexander Fleming, ao pesquisar o vírus influenza descobriu um agente bactericida eficaz
para o tratamento de uma série de infecções. Embora não fosse esse o objeto de sua pesquisa, as observações
realizadas nos seus experimentos, acabou por desenvolver a penicilina. Esse é um bom exemplo de uma
inovação não linear.
67

entidades moleculares ainda não descobertas e o grupo de medicamentos que já se encontram


disponíveis para tratamento de doenças, mas que sofre um aperfeiçoamento em suas
características farmacocinéticas, isto é, alterando o tempo de absorção, níveis de interação,
modificação da quantidade de doses, dentre outros benefícios.

Dentro da regulamentação estabelecida pela ANVISA os medicamentos novos são


classificados dois tipos: inovação radical e inovação incremental. A primeira caracteriza-se
pelo desenvolvimento de uma nova molécula ou insumo farmacêutico ativo não registrado no
país, enquanto que a inovação incremental consiste no desenvolvimento de melhorias em um
fármaco já registrado94.

Ainda dentro desta perspectiva da inovação científica dos fármacos é possível


estabelecer outra distinção importante que consiste no agrupamento dos novos medicamentos
entre sintéticos e biológicos. Os primeiros são obtidos através de manipulação química de
substâncias e componentes ativos não encontrados na natureza. Por outro lado, os
medicamentos biológicos são desenvolvidos a partir de células vivas (plantas e
microorganismos). Parte-se da possibilidade de modificação genética de células permitindo a
obtenção de uma proteína específica. Trata-se de processo mais complexo por pressupor a
manipulação de um organismo vivo possível graças ao avanço das técnicas de engenharia
genética a partir de meados do século XX95.

Contudo, é preciso destacar que o desenvolvimento de novos medicamentos não é


um processo simples, demandando pesquisas prolongadas. O tempo médio para o
desenvolvimento de um novo medicamento é de 10 a 15 anos96 e, além dos obstáculos
naturais (desenvolvimento das pesquisas pré-clínicas e clínicas e de registro) outras variantes
influenciam, como interesses comerciais que orientam os investimentos em novos produtos e
a exploração otimizada daqueles que já se encontram em circulação.

94
Resolução da ANVISA RDC 60/2014 art. 4º XVIII e XIX.
95
Entre 2015 e 2017 foram registrados 71 novos medicamentos. Do total, 33 foram de medicamentos sintéticos e
38 de medicamento biológicos. A consulta foi realizada no portal do Parecer Público de Avaliação de
Medicamentos do Ministério da Saúde <http://www.anvisa.gov.br/datavisa/Fila_de_analise> utilizando os
parâmetros de pesquisa “Categoria regulatória: novos” e “período de publicação: 01/01/2015 a 31/07/2017
96
Informação extraída do relatório fornecido pela entidade americana que representa as empresas que
desenvolvem pesquisas biofarmacêuticas (Pharmaceutical Research and Manufacturers of America). Disponível
em < http://phrma-docs.phrma.org/sites/default/files/pdf/biopharmaceutical-industry-profile.pdf> Acesso em
02/08/2017. De acordo com relatório divulgado em 2016 pela INTERFARMA (Associação da Indústria
Farmacêutica de Pesquisa), a estimativa seria em torno de 10 anos. Disponível em <
https://www.interfarma.org.br/public/files/biblioteca/109-relatario-anual-de-atividades-site.pdf> Acesso em
11/08/2017
68

Outro fator determinante em uma pesquisa sobre novo fármaco está no custo.
Estima-se que a indústria farmacêutica tenha investido, no ano de 2015, quase 150 bilhões de
dólares em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos. Já o custo aproximado para o
desenvolvimento de uma única droga é de 2,6 bilhões. No entanto, é importante destacar que,
a despeito do altíssimo investimento realizado, o retorno para as empresas alcançam valores
igualmente elevados. A título de ilustração, em 2014, o mercado farmacêutico mundial
alcançou US$ 997 bilhões97.

Na cadeia de um medicamento inovador são identificados estágios importantes para


o desenvolvimento de uma nova entidade molecular. As etapas da pesquisa básica e o
desenvolvimento – esta, em especial, com o propósito de identificar os padrões
farmacológicos e toxicológicos – e a produção em escala piloto, são desenvolvidas através de
técnicas laboratoriais com experimentações em animais. Trata-se de um momento
fundamental para a obtenção de uma substância promissora com capacidade de interação com
o objetivo pretendido.

A cadeia do medicamento descreve a sequência da vida de um medicamento,


passando pelo momento de sua concepção, desenvolvimento e utilização. Trata-se de um dos
temas mais complexos dentro de uma política sanitária diante da multiplicidade de atores
envolvidos nas diversas fases da vida do medicamento. A investigação e concepção do
fármaco, os ensaios clínicos, registro, fabricação, comercialização, distribuição, prescrição,
dispensação e consumo são etapas que contam com um número elevado de sujeitos,
permitindo a conclusão pela complexidade do tema e o correlato e natural cuidado no seu
regramento.

O desenvolvimento de um medicamento passa por uma serie de ensaios pré-clinicos


e clínicos objetivando a comprovação sobre a qualidade, segurança e eficácia. Os ensaios pré-
clínicos são realizados em laboratório, sobre amostras biológicas em animais, cujo propósito é
identificar as reações farmacocinéticas98, farmacodinâmicas99 e toxicológicas. São etapas

97
Informações obtidas no relatório “The Pharmaceutical Industry and Global Health: Facts and figures 2017”
elaborado pela International Federation of Pharmaceutical Manufacturers & Associations. Disponível em <
https://www.ifpma.org/wp-content/uploads/2017/02/IFPMA-Facts-And-Figures-2017.pdf> Acesso em
11/08/2017.
98
Consiste na análise sobre o caminho percorrido pelo medicamento no corpo. Não tem por objetivo identificar a
forma de atuação, mas sim as etapas percorridas desde a administração até a excreção.
99
O termo indica a área da farmacologia que estuda os efeitos de um medicamento no tecido que é o alvo do
tratamento. Trata-se de identificar como a droga age no corpo do paciente.
69

fundamentais considerando a eliminação dos riscos pois as etapas seguintes são desenvolvidas
com a aplicação das substâncias em seres humanos sadios e doentes.

Superada esta etapa, são iniciados os ensaios clínicos, separados em quatro fases: Na
fase I é examinada a segurança do fármaco com a determinação da posologia para as etapas
posteriores, a verificação da toxidade e farmacologia clínica. Consiste na fase que conta, em
regra, com a participação de voluntários saudáveis. Na fase II a eficácia é o ponto de
investigação. São estudos terapêuticos em grupos de pacientes para a identificação das
respostas para as análises farmacocinéticas e farmacodinâmicas. Já a fase III é o momento de
identificação do valor terapêutico em comparação com o placebo e outros medicamentos. Por
fim, a fase IV, realizada no momento de comercialização onde são estudados os efeitos em
condições distintas das autorizadas, sua segurança e eficácia considerando a utilização num
cenário de prática clínica diária.

Neste ponto, em especial, é preciso observar que a pesquisa com seres humanos no
Brasil deve observar os protocolos instituídos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP), vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS). Cabe, à comissão, instituir
normas e diretrizes regulamentadoras das pesquisas que envolvem seres humanos, tendo,
portanto, como responsabilidade fundamental garantir a integridade dos participantes. Propõe-
se, também, a desenvolver uma função educativa acerca da ética na ciência, sobretudo, em
temas delicados como genética e reprodução humana, novos dispositivos para a saúde,
pesquisas em populações indígenas, pesquisas conduzidas do exterior e aquelas que envolvam
questões relacionadas à biossegurança.

A comissão é integrada por uma rede de comitês criados nas diversas instituições de
pesquisa. Consistem em órgãos colegiados independentes e interdisciplinares, de caráter
consultivo, educativo e deliberativo com o objetivo de proteger a integridade e dignidade dos
participantes de pesquisas e a realização dos estudos dentro de padrões éticos.

A CONEP e os Comitês de Ética em Pesquisa foram criados pela resolução n.º


196/96 do CNS e, atualmente, são regulados pela resolução n.º 466/2012 e pela norma de
procedimentos n.º 006/2009100. Dentro da normatização da comissão, destaca-se o

100
No dia 15/02/2017 o plenário do Senado Federal aprovou o PLS n. 200/2015 que dispõe sobre a pesquisa
clínica com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos.
Dentre outras providência prevê a extinção do CONEP e a criação da Instância Nacional de Ética em Pesquisa
Clínica e estabelece regras para a composição e atribuições dos CEPs. Atualmente o projeto de lei tramita na
Câmara dos Deputados com o n. 7082/2017.
70

procedimento de consentimento livre e esclarecido a ser observado como etapa obrigatória


para a realização da pesquisa. Consiste na obtenção da anuência, autônoma e consciente, do
participante, cabendo ao pesquisador prestar todas as informações, em linguagem clara e
acessível, e permitindo o tempo adequado para a reflexão. Finaliza-se o procedimento com a
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que deverá conter cláusulas sobre
os objetivos, justificativas, metodologia, possíveis riscos e medidas de correção, possibilidade
de retirada, garantia do sigilo e privacidade e reparações por conta de eventuais danos
decorrentes da pesquisa.

A necessidade de altos investimentos e o tempo exigido para a pesquisa e


desenvolvimento de um novo medicamento acaba por restringir os interesses para os grandes
grupos farmacêuticos, gerando uma estrutura concentrada. Os investimentos públicos são
reduzidos e, dentro da realidade brasileira, em regra, ficam limitados a alguns centros de
pesquisa, especialmente de natureza universitária. Resta clara a distância entre as duas frentes,
reduzindo as expectativas de ampliação dos estudos, o que se apresenta equivocado,
especialmente num país rico em recursos naturais exploráveis para a pesquisa farmacêutica.

2.2.4 Os protocolos de registro de medicamentos

Em observância aos ditames da Lei n.º 6360/80, especialmente em seu art. 12 que
estabelece a vedação de circulação de medicamentos sem o prévio registro, além da
necessidade de compatibilização das diretrizes da Política Nacional de Medicamentos,
prevista na Portaria n. º 3816/1998, do Ministério da Saúde, foram criadas regras e definidas
as competências para a verificação dos requisitos de produção, segurança e eficácia dos
medicamentos destinados à circulação.

Dentro dessa proposta de modernização dos procedimentos, merece destaque a


certificação de produtos. Objetivando-se alcançar maior celeridade e transparência no
processo de registro, as medidas de modernização, seguem o caminho da incorporação de
práticas utilizadas por entidades análogas, sem perder o cuidado com a garantida da
qualidade, da segurança e eficácia dos produtos sujeitos à supervisão da entidade.
71

A verificação da segurança, eficácia e qualidade dos fármacos decorre de custosas


provas de laboratórios e ensaios clínicos realizados em animais e humanos. Trata-se de
procedimento fundamental para se obter a certeza acerca do alcance da finalidade terapêutica
proposta, do controle dos materiais empregados na produção e, por fim, a constatação de que
inexistem riscos para a utilização pelas pessoas.

A análise da qualidade consiste na verificação dos preparativos e processos para que


haja certeza acerca de sua qualidade das matérias-primas empregadas nos processos
produtivos. A eficácia consiste na demonstração sobre a proposta inicial e os efeitos
pretendidos além de demonstrar a capacidade terapêutica do medicamento. Por fim, a
segurança relaciona-se à certificação dobre o cumprimento de padrões farmacopeicos bem
como a verificação dos resultados de estabilidade, de toxicidade e os eventuais efeitos
colaterais. A avaliação de riscos é, portanto, etapa essencial no processo de inclusão de um
medicamento para o mercado consumidor. Alguns episódios indicam a necessidade de
especial atenção das entidades regulatória na avaliação da segurança101.

No entanto, com o propósito de identificar os requisitos de registro e o tempo de


tramitação dos pedidos de incorporação de medicamentos novos, passa-se, neste momento,
para uma abordagem procedimental das etapas obrigatórias de registro. A necessidade de
estrito cumprimento de todas as etapas induz à conclusões de indispensabilidade em nome da
segurança do consumo das substâncias, reiterando os riscos de decisões políticas e judiciais
autorizativas de fornecimento dissociadas dos estudos técnicos de viabilidade e efetividade no
tratamento.

As exigências de conformação com os padrões estabelecidos para o registro e,


consequente, autorização de circulação de medicamentos indica a preocupação com as
substâncias destinadas ao tratamento de doenças, sendo imprescindível a verificação de sua
efetividade. Além disso, faz-se fundamental um cuidadoso levantamento acerca dos riscos
inerentes ao uso de medicamentos de qualquer natureza, seja sintético, semissintético ou
natural.

A ANVISA, em seu sítio eletrônico, define as regras necessárias para a regularização


de empresas e registro de medicamentos. Trata-se de um amplo guia contendo informações

101
Para ilustrar, cite-se o caso da substância denominada Talidomida que, ministrada em gestantes, provocava a
deformação física dos fetos.
72

sobre a autorização e licença de funcionamento de empresas, regras sobre boas práticas na


fabricação de produtos, além do registro e certificação de medicamentos102.

O pedido de registro de medicamento começa com o cadastramento da empresa no


sistema da ANVISA, o que permitirá o acesso aos serviços da autarquia, tais como
peticionamento eletrônico e recebimento de notificações. Dessa forma, todas as empresas que
produzem e colocam em circulação produtos e serviços passíveis de regulação pela entidade
deverão realizar o cadastro, demonstrando a regularidade quanto ao seu funcionamento, além
das certificações de boas práticas de fabricação, armazenamento e distribuição de produtos.

Dentre outras informações, no cadastramento, serão inseridos os dados do


representante legal da empresa (pessoa designada no estatuto ou contrato social como
responsável pela representação ativa e passiva em processos judiciais e procedimentos
extrajudiciais), o responsável técnico (pessoa física com habilitação para o acompanhamento
dos processos de produção e prestação dos serviços da empresa) e um gestor de segurança
(pessoa responsável por gerenciar as senhas de acesso ao sistema de peticionamento da
ANVISA). Além disso, o sistema requer o correto enquadramento do porte da empresa de
acordo com a sua capacidade econômica, auferido nos termos do faturamento bruto anual. Tal
exigência tem conexão com as taxas de fiscalização de vigilância sanitária103 cobradas pela
autarquia, isto é, há uma cobrança diferenciada a depender do porte da empresa.

Uma vez finalizada a fase inicial de cadastramento da empresa, abre-se a


possibilidade de peticionamento junto à autarquia, seja naquilo que se relaciona à abertura de
procedimento, seja no que respeita àqueles já instaurados. O peticionamento poderá ser
viabilizado manualmente ou por meio eletrônico. No peticionamento, a empresa requerente
deverá informar o código do assunto relacionado à petição, pois, a partir desse
esclarecimento, será direcionado o atendimento. O próprio sistema conduz o procedimento de
peticionamento, sendo, ao término, gerada a Guia de Recolhimento da União (GRU) referente
à taxa de fiscalização de vigilância sanitária.

Na sequência, o solicitante deverá anexar todos os formulários e documentos listados


no sistema, variando conforme o requerimento formulado, além do comprovante do
pagamento da taxa de fiscalização. Esta etapa é denominada protocolo, e representa o
momento de início do processamento da solicitação realizada com o registro da petição e

102
O procedimento está regulado pela Resolução RDC n.º 222 de 28 de dezembro de 2006
103
Tributo instituído pelo art. 23 da Lei n.º 9782/99
73

juntada dos demais documentos na ANVISA, podendo ser realizado por meio físico (postal ou
presencial) ou virtual.

O acompanhamento do processo poderá ser realizado no portal de consultas à


situação de documentos. O preenchimento do número do protocolo, denominado número de
conhecimento, permite o acesso às informações acerca do trâmite das solicitações
direcionadas à autarquia.

Atualmente, o registro de medicamentos está regulado pela Resolução de Diretoria


Colegiada (RDC) n.º 60/2014 que tem por objetivo estabelecer os critérios e documentações
mínimas para a concessão e renovação de registro de medicamentos com princípios ativos
sintéticos e semissintéticos novos, genéricos e similares, buscando assegurar a qualidade,
segurança e eficácia dos medicamentos destinados ao consumo e tratamento de enfermidades.

Os medicamentos são registrados na ANVISA através de sua Gerência Geral de


Medicamentos (GGMED). No caso de medicamentos novos104 o procedimento é avaliado
pela Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos (GEPEC).

A análise do pedido de registro de medicamento novo é dividida em três etapas: a


análise farmacológica, a análise de eficácia e a análise de segurança. Na tentativa de agilizar o
processo e facilitar a incorporação de medicamentos capazes de curar as mais diversas
doenças, as análises destacadas são realizadas concomitantemente, proporcionando maior
celeridade, sem perder o foco nos consumidores das novas fórmulas de tratamento.

A análise farmacológica é realizada em duas etapas. A primeira consiste na


verificação de toda a documentação exigida para o registro. Nesse momento a empresa
requerente deve apresentar a petição de registro, o comprovante de pagamento da taxa de
fiscalização de vigilância sanitária, a licença de funcionamento, certificado de
responsabilidade técnica, certificado de boas práticas de fabricação e controle emitido pela
própria ANVISA.

Além dos documentos comprobatórios da regularidade da empresa, serão


apresentados os dados relacionados ao produto que se pretende registrar. Dessa forma, o

104
De acordo com a ANVISA, o termo “medicamento novo”, sem outra adjetivação, é, na prática, utilizado para
se referir a medicamentos novos com princípios ativos sintéticos e semissintéticos, associados ou não, que são os
avaliados pela GEPEC. Quando se utiliza o termo “medicamento novo” sem outro complemento não se está
referindo, portanto, a produtos biológicos, fitoterápicos, homeopáticos, medicamentos ditos “específicos”,
medicamentos isentos de registro, e nem tampouco a cópias (genéricos e similares). Disponível em
<http://portal.anvisa.gov.br/conceitos-e-definicoes7> Acesso em 06/09/2016
74

requerente deverá anexar relatórios técnicos contendo informações dos estudos clínicos e dos
aspectos farmacotécnicos do produto. São informações de conteúdo técnico de estrutura e
princípios ativos que constarão da bula do produto no caso de deferimento do pedido de
registro. Além disso, a análise farmacotécnica abrange todas as etapas de fabricação do
medicamento, desde a aquisição de matéria prima, produção, controle de qualidade,
estocagem e circulação dos produtos finalizados.

As análises de segurança e eficácia são destinadas à aferição dos riscos e das


vantagens de incorporação de medicamentos novos. Os estudos clínicos são realizados por
especialistas, em até quatro fases distintas, com a participação de voluntários sadios e
portadores das enfermidades a serem tratadas pelos fármacos em análise. Pretende-se, com
estas etapas, comprovar a capacidade curativa da substância bem como identificar possíveis
riscos como reações adversas.

Uma vez deferido o pedido de registro do medicamento de referência 105 passa-se


para a avaliação dos custos do medicamento cuja análise é da atribuição da Câmara de
Regulação do Mercado de Medicamentos – CMED106, órgão interministerial responsável pela
regulação do mercado e definição de critérios para a fixação e reajuste de preços. A ANVISA
exerce a função de secretaria executiva da câmara auxiliando no monitoramento dos preços
dos medicamentos, valendo-se das informações obtidas durante o procedimento de registro
dos medicamentos.

O prazo de validade do registro de medicamentos é de cinco anos, a contar do


deferimento do registro no Diário Oficial da União. Findo o prazo, a empresa deverá requerer
sua renovação107. O pedido de renovação do registro deverá ser protocolado com 6 meses de
antecedência para o término do prazo.

Diante da complexidade da fiscalização exercida pela ANVISA é normal concluir


que todas as etapas procedimentais demandarão um tempo ampliado para o alcance do
resultado cientificamente desejado. Nesse aspecto, passamos para uma análise do tempo de
tramitação médio dos pedidos de registro de medicamentos, fato que, inevitavelmente, poderá
repercutir na judicialização de pretensões tanto por parte daqueles peticionantes que não

105
A definição de medicamento de referência está na RDC n.º 60/2014, Art. 4º XXV - medicamento de
referência – produto inovador registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária e comercializado
no País, cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto ao órgão federal
competente, por ocasião do registro (Lei nº 9.787, de 10/02/1999);
106
Criada pela Lei n.º 10.742 de 06 de outubro de 2003.
107
Art. 43 da Resolução da Diretoria Colegiada RDC n.º 60/2014
75

obtêm num prazo razoável a resposta para o pedido de registro, bem como pelos inúmeros
indivíduos acometidos por diversas doenças sem um tratamento eficazmente apropriado.

2.2.5 Audiências Públicas: educação, comunicação e cooperação

O conceito de representação popular passa por um processo de transformação, pois


atualmente. Surge um novo palco de amadurecimento de visões capazes de redesenhar os
ideais democráticos, já que se reforça a possibilidade de os indivíduos discutirem as regras
jurídicas no interior das instâncias de aplicação. As audiências públicas podem servir como
importante instrumento de integração decisória, desde que observado seu caráter cooperativo,
não servindo apenas como mero rótulo diante de uma pretensa intenção de legitimação.

Quando se estabelece, como regra constitucional, o direito à educação, não se está


somente afirmando que o Estado deve proporcionar educação básica de qualidade para formar
indivíduos capazes de desenvolver suas plenas capacidades laborais, mas sim permitir, a esse
membro, a efetiva participação no processo de construção do aprendizado e, ainda, que possa
adicionar seu desenvolvimento na solidificação da cidadania plena. A educação deve
pressupor a inclusão real e efetiva dos sujeitos proporcionando uma capacidade de falar e agir
com o escopo de buscar transformações na sua vida bem como no meio onde está inserido. O
processo de envolver os sujeitos, preparados adequadamente através de processos que
proporcionem o desenvolvimento cognitivo, permite criar uma expectativa de discussões
capazes realizar o convencimento, tanto no aspecto ativo quanto no passivo108.

A interessante análise feita por Antonio do Passo Cabral converge para o mesmo
sentido de se oxigenar democrática e pluralisticamente a atuação estatal. Ao agregar os

108
“quem participa de processos de comunicação ao dizer algo e ao compreender o que é dito — quer se trate de
uma opinião que é relatada, uma constatação que é feita, de uma promessa ou ordem que é dada; quer se trate de
intenções, desejos, sentimentos ou estados de ânimo que são expressos —, tem sempre que assumir uma atitude
performativa. [...] A atitude performativa permite uma orientação mútua por pretensões de validade (verdade,
correção normativa, sinceridade) que o falante ergue na expectativa de uma tomada de posição por sim/não da
parte do ouvinte. Essas pretensões desafiam a uma avaliação crítica, a fim de que o reconhecimento
intersubjetivo de cada pretensão particular possa servir de fundamento a um consenso racionalmente motivado.”
HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1989. P.40-42
76

valores e os argumentos da sociedade, num debate político, atribui-se um viés de legitimação


da decisão do Estado além de significar o reforço de uma democracia deliberativa109.

Para Friedrich Muller, a inclusão é parte do processo de construção democrática.


Segundo o autor, a ideia de exclusão social não está atrelada apenas ao conceito de pobreza ou
marginalização, mas, sobretudo, a uma reação em cadeia de exclusões, perpassando pela
econômica, a jurídica, a sociocultural e a política. Por isso, a comunicação e cooperação
servem como o meio para equilibrar o sistema, dificultando a manutenção de uma elite no
poder, além de sustentar a construção democrática coletiva110.

Os constantes avanços científicos e pressões corporativas inserem-se como


parâmetros de uma agenda regulatória que precisa se pautar pelo alcance das necessidades
humanas – e por correspondência dos direitos fundamentais – e a segurança da coletividade.
Os múltiplos interesses dos atores envolvidos demandaram, por exemplo, a inserção, nos
processos da ANVISA, de consultas e audiências públicas na tentativa de democratizar o
processo de tomada de decisões.

Entre 2005 e 2016 foram realizadas 25 audiências públicas sendo 13 sobre


medicamentos. No mesmo período foram 1052 consultas públicas, sendo desse total, 80 sobre
o tema medicamentos. Sobre as audiências públicas foi possível constatar que, dos resultados

109 “Impende haver uma preocupação maior em agregar o indivíduo ao debate coletivo, principalmente diante
das peculiaridades da vida moderna, que muitas vezes contribuem para a anomia política e o afastamento do
indivíduo da esfera pública , gerando o enfraquecimento do potencial reivindicatório da sociedade civil. A
democracia exige aproximação recíproca e contínua entre Estado e sociedade, que devem unir esforços em prol
do bem comum e não ser compreendidos como entes antagônicos ou cujas iniciativas devam excluir-se
mutuamente.” CABRAL, Antonio do Passo. Os Efeitos Processuais da Audiência Pública. RDE. Revista de
Direito do Estado. Vol. 2. 2006. P. 121
110
“Para fazer frente a esse quadro, é importante que na esfera das ‘massas’ mais ou menos organizadas, ou
organizáveis, existam um interesse e um empenho reais pela democratização exitosa, ao menos com vistas ao
longo prazo. Sem comunicação e cooperação com esse fator, nenhuma elite consegue manter-se no poder,
indefinidamente. A democratização, que se constrói com mais chances de êxito «de baixo » do que « de cima »,
processa-se precisamente a partir de uma multiplicidade de iniciativas de auto-ajuda, de auto-proteção, de
afirmação dos direitos civis e de outras formas de resistência. Mas, justamente aqui a exclusão social é
gravemente impeditiva e deve ser combatida com todas as forças, com vistas à realidade (futura) de um sistema
democrático.
A questão colocada pelo tema deste texto não deve ser respondida apenas em termos éticos; daí que
tenha sido necessário operacionalizar melhor conceitos centrais, de modo a possibilitar enunciados quantitativos.
Nessa perspectiva, a miséria maciça, primordialmente econômica, diz respeito ao povo-destinatário; a miséria
sócio-cultural, que acarreta a apatia política, diz respeito ao povo ativo; e a exclusão jurídica em acepção mais
estrita (violência ilegal, desigualdade inconstitucional, negação da proteção jurídica, impunidade dos
responsáveis pela opressão) consiste em violações do status do povo como instância de atribuição.” MÜLLER
Friedrich. Democracia e Exclusão Social em Face da Globalização. Revista Jurídica. v. 7, n. 72. Maio. 2005.
Brasília.P 01-10. Disponível em < https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/444/438>
Acesso em 03/01/2018.
77

disponibilizados no sítio eletrônico da autarquia, todas resultaram em atos normativos da


Diretoria Colegiada da entidade111.

Constatou-se, ainda, que as audiências tiveram a média de 110 participantes, sendo a


ampla maioria integrante de membros do setor regulado como indústrias farmacêuticas, por
meio de representantes diretos ou associações. Os órgãos de representação de classe, como
Conselhos de Farmácia e Medicina, entidades de defesa dos consumidores, profissionais de
saúde, instituições integrantes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e entidades
governamentais também se fizeram presentes, contudo em número bem reduzido.

Conforme demonstrativo abaixo, é possível identificar as datas, o setor responsável


pela convocação da audiência pública, o tema de deliberação e o resultado.

DATA SETOR PARTICIPANTES ASSUNTO RESULTADO


RESPONSÁVEL
07/12/2016 Gerência-geral 93 Implantação do Editada RDC n°
de Sistema 157, de 11 de
Medicamentos e Nacional de maio de 2016,
Produtos Controle de que dispõe sobre
Biológicos Medicamentos a implantação do
Sistema Nacional
de Controle de
Medicamentos e
os mecanismos e
procedimentos
para rastreamento
de medicamentos
e dá outras
providências.
23/12/2014 Gerência-geral 147 Criação e Não disponível
de implantação do
Medicamentos e Comitê Técnico
Produtos do Sistema
Biológicos Nacional de
Controle de
Medicamentos -
SNCM, objeto
da RDC nº 54,
de 10 de
dezembro de
2013

111
Os dados foram obtidos no sítio eletrônico da agência reguladora (www.anvisa.gov.br)
78

11/02/2014 Secretaria 81 Proposta de Aprovado o


executiva da Resolução que Comunicado nº
Câmara de estabelece a 11, de 12 de
Regulação de forma de agosto de 2015
Mercado de apresentação do que definiu a
Medicamentos Relatório de periodicidade
Comercializaçã semestral de
o com dados de entrega e o novo
faturamento modelo do
referentes ao Relatório de
primeiro Comercialização
semestre de a ser preenchido
2014. de acordo com as
instruções que
constarão no
Manual de
Utilização do
SAMMED
11/02/2014 Secretaria- 81 Proposta sobre Resultado: Não
Executiva da medidas a Disponível
Câmara de serem adotadas
Regulação do junto à
Mercado de ANVISA pelos
Medicamentos – titulares de
CMED registro de
medicamentos
para a
intercambialida
de de
medicamentos
similares com o
medicamento de
referência,
conforme
Anexo
24/07/2013 Gerência-geral Não disponível Critérios de Aprovada a RDC
de aceitabilidade nº 59, de 10 de
Medicamentos e de nomes outubro de 2014
Produtos comerciais de que dispõe sobre
Biológicos medicamentos os nomes dos
medicamentos,
seus
complementos e a
formação de
famílias de
medicamentos.
29/05/2013 Gerência-geral 147 Implantação do Aprovada a –
de sistema nacional RDC nº 54, de 10
Medicamentos e de controle de de dezembro de
Produtos medicamentos e 2013 que
79

Biológicos os mecanismos dispunha sobre a


e procedimentos implantação do
para sistema nacional
rastreamento da de controle de
produção, medicamentos e
comercialização os mecanismos e
, dispensação e procedimentos
prescrição de para rastreamento
medicamentos. de medicamentos
na cadeia dos
produtos
farmacêuticos e
dá outras
providências.
Posteriormente
foi revogada pela
RDC nº 157
27/09/2012 Não disponível Não disponível Estabelecimento Não disponível
de Ações do
Sistema
Nacional de
Vigilância
Sanitária para a
implementação
prática da
exigência de
apresentação de
receita no ato da
compra de
medicamentos
sujeitos à
prescrição
28/06/2012 Não disponível Não disponível Controle Aprovada a RDC
sanitário do n.º 41, de 26 de
funcionamento, julho de 2012 que
da dispensação altera Resolução
e da RDC nº 44, de 17
comercialização de agosto de
de produtos e da 2009, que dispõe
prestação de sobre Boas Prá-
serviços ticas
farmacêuticos Farmacêuticas
em farmácias e para o controle
drogarias. sanitário do
funcionamento,
da dispensação e
da
comercialização
de produtos e da
prestação de
80

serviços
farmacêuticos em
farmácias e
drogarias e dá
outras
providências, e
revoga a
Instrução
Normativa nº 10,
de 17 de agosto
de 2009
23/03/2011 Núcleo de Não disponível Retirada do Aprovação da
Gestão do mercado RDC nº 50, de 25
Sistema brasileiro dos de setembro de
Nacional de medicamentos 2014 que dispõe
Notificação e inibidores do sobre as medidas
Investigação em apetite por de controle de
Vigilância problemas comercialização,
Sanitária relacionados prescrição e
com a dispensação de
segurança e medicamentos
eficácia destes que contenham as
produtos substâncias
anfepramona,
femproporex,
mazindol e
sibutramina, seus
sais e isômeros,
bem como
intermediários e
dá outras
providências e
RDC Nº 52, de 06
de outubro de
2011 que dispõe
sobre a proibição
do uso das
substâncias
anfepramona,
femproporex e
mazindol, seus
sais e isômeros,
bem como
intermediários e
medidas de
controle da
prescrição e
dispensação de
medicamentos
que contenham a
81

substância
sibutramina, seus
sais e isômeros,
bem como
intermediários e
dá outras
providências.
29/04/2010 Gerência-geral Não disponível Regras de Aprovada a RDC
de Inspeção, autorização de nº 10 de 21 de
Monitoramento funcionamento março de 2011
da qualidade, para empresas que dispõe sobre
controle e importadoras de a garantia da
fiscalização de medicamentos qualidade de
insumos medicamentos
médicos, importados e dá
produtos, outras
propaganda e providências
publicidade
24/03/2010 Gerência-geral Não disponível Medidas para o Não disponível
de Inspeção, controle da
Monitoramento prescrição e da
da qualidade, dispensação de
controle e antibióticos
fiscalização de
insumos
médicos,
produtos,
propaganda e
publicidade
24/08/2006 Não disponível Não disponível Boas Práticas de Não disponível
Manipulação de
Medicamentos
para Uso
Humano em
Farmácias
13/04/2005 Não disponível Não disponível Atividade de Não disponível
Fracionamento
nos
Estabelecimento
s de
Dispensação de
Medicamentos

Nesse sentido, as audiências públicas oportunizam uma tendência interpretativa mais


aberta quanto mais plural for o grupo de participantes no processo. É a afirmação de que a
construção coletiva de uma decisão, amadurecida pela deliberação argumentativa, possuindo
o condão de provocar a aceitação e transparência dos mandamentos soberanos emanados
82

pelas instâncias decisórias112. No entanto, registramos, novamente, que o propósito essencial


das audiências públicas depende de um ajuste que permita uma real participação dos atores
interessados, no sentido de se compreender como parte do processo decisório.

2.2.6 O Tempo médio para o registro de novas substâncias

O registro de medicamentos, como destacado em passagem anterior, observa


procedimento complexo e custoso, objetivando a aferição da segurança, eficácia e viabilidade
da substância destinada ao tratamento de enfermidades. Como visto, a complexidade inerente
reflete, inexoravelmente, no tempo para a realização de uma investigação precisa de forma a
eliminar os riscos aos destinatários. Apesar da urgência natural, evidenciada pelos anseios de
pessoas doentes pela busca de novas terapias e das corporações com objetivos comerciais, é
fundamental destacar que a precipitação pode se aliar à imprudência tornando evidentes os
prejuízos nos tratamentos.

Para a análise do tempo de registro de medicamentos foram colhidas informações


obtidas na ANVISA, considerando os registros deferidos e indeferidos entre os anos de 2011
e 2016, de forma a obter um tempo médio de tramitação do pedido de registro e, a partir da
informação, estabelecer uma análise comparativa a fim de buscar a identificação de um
referencial ideal. Para tanto, serão utilizados os dados da Food and Drug Administration,
órgão norte-americano de vigilância sanitária, referencial regulatório para outras entidades
similares113. Na metodologia de análise do trabalho considerou-se o prazo em dias para
registro dos medicamentos novos, sem realizar a verificação de eventuais suspensões geradas
por exigências documentais em relação à empresa solicitante ou ao próprio procedimento de
ensaios da pesquisa.

112
“Ao lado da representação democrática em sentido estrito, isto é, do exercício da autoridade pelo Parlamento
eleito para representar os interesses do povo, pode-se falar também em uma representação argumentativa. A
ideia de Democracia deixa de ser vista como apenas um sistema que contém não mais que um processo de
tomada de decisão centrado na ideia de eleição e da regra majoritária, mas passa a ser estendida para
compreender também os processos argumentativos que ocorrem no interior das instâncias de tomada de
decisão.” BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a aplicação de
regras jurisprudenciais; São Paulo: Noeses. 2012. P. 37-38
113
Os dados da ANVISA foram obtidos através de solicitação no portal da transparência registrado sob os n.º
25820002921201650 e 2582000509820175. As informações sobre o tempo de registro de medicamento na FDA
estão disponíveis no sítio da entidade (https://www.accessdata.fda.gov/scripts/cder/daf/index.cfm)
83

Para a identificação dos prazos e obtenção de um tempo médio de tramitação a


pesquisa considerou a data do protocolo do pedido de registro e a data da publicação da
decisão final pela ANVISA. Nesse período estão compreendidos os dias em que a solicitação
aguardou o tempo de análise técnica, o prazo para cumprimento de exigências apresentadas
pelo órgão e período dos eventuais recursos e pedidos de arquivamento.

De acordo com os dados apresentados no sítio eletrônico da ANVISA o tempo médio


de registro para medicamentos varia de acordo com a classificação do fármaco. Apenas para
ilustrar, medicamentos biológicos têm um tempo médio de tramitação de 543 dias, enquanto
que a duração do procedimento de registro de um medicamento genérico é de 1286 dias 114.
Entre 2011 e 2016, o tempo médio para a aprovação de uma nova substância foi de 577 dias.

Já naquilo que diz respeito aos medicamentos novos, a tabela abaixo revela um
aumento no tempo para registro das inovações farmacêuticas ao longo dos últimos seis anos.
Numa comparação entre os anos de 2011 e 2016 pode-se perceber que o aumento foi de
110%. Isso representa um grande prejuízo para os pacientes que aguardam a liberação de
novas substâncias bem como para o setor produtivo de medicamentos, que fica
impossibilitado de explorar livremente suas atividades econômicas. O tempo registrado na
prática excede muito aquele fixado pelo art. 12 § 3º da Lei n.º 6360/76 que fixa 90 dias para a
concessão do registro.

Tabela 1 – Tempo de tramitação do pedido de registro (em dias)

1400 1316

1200

1000
816
800 716
642 622 Deferido
539 Indeferido
600 495
420462
375
400
184
200
0
0
2011 2012 2013 2014 2015 2016

114
Disponível em < http://portal.anvisa.gov.br/fila-de-analise > Acesso em 23/08/2017
84

Conforme levantamento realizado, destaca-se, também, o número de substâncias


novas submetidas para registro desde 2011 até 2016. É possível verificar um aumento gradual
com o passar dos anos nos prazos para o deferimento do registro de medicamentos, superando
o tempo médio quando comparado com entidades congêneres, como a Food and Drug
Administration, cujo período médio de análise é de 300 dias conforme será tratado adiante.

Tabela II – Quantidade de pedidos de registro: ANVISA

39
40

35

30
25 24
22 22 23
25
Deferido
20
15 Indeferido
15
8 9
10 7
3
5
0
0
2011 2012 2013 2014 2015 2016

O tempo de registro de um medicamento pode sofrer variações de diversas ordens.


Apesar da urgência identificada em alguns casos, especialmente aqueles que representam uma
inovação radical ou incremental visto que inexistente substância correlata eficaz para o
tratamento de algumas doenças. Entre o pedido de registro apresentado pelo fabricante e a sua
concessão, podem surgir exigências documentais acerca da comprovação dos testes clínicos,
sobre a situação cadastral da empresa, comprovação da sua capacidade de produção do
produto em larga escala, sobre os custos para a aquisição do insumo ativo fundamental, entre
outras informações que podem demandar tempo para a obtenção e apresentação. Em
contrapartida, fatores internos à entidade de vigilância sanitária inevitavelmente influirão na
tramitação.
85

Na clara tentativa de reduzir o tempo de registro e pós-registro de medicamentos, o


Congresso Nacional aprovou a Lei n.º 13.411/2017 que alterou a redação da Lei n.º 6360/76,
estabelecendo prazos reduzidos para o procedimento. De acordo com o diploma alterador, a
ANVISA deverá estabelecer, através de ato próprio e com metodologia definida, uma
classificação para enquadramento de categorias de medicamento em prioritária e ordinária115.
Conforme definido no diploma, o registro de medicamento prioritário deverá ocorrer em 120
dias enquanto que o ordinário terá prazo máximo de 365 dias, havendo a possibilidade de
prorrogação, por decisão fundamentada da autarquia, por um terço do prazo original.

Com o propósito de obter contribuições sobre a classificação das categorias previstas


na lei, a ANVISA promoveu consulta pública entre 10/08/2017 até 08/10/2017 para rever os
critérios de priorização estabelecidos pela RDC 37/2014. Trata-se de medida que objetiva
estabelecer critérios objetivos para o enquadramento de priorização das análises realizadas,
enfatizando a investigação sobre aqueles medicamentos que surgem como uma alternativa
terapêutica para doenças negligenciadas, emergentes ou reemergentes; identificação das
emergências em saúde pública ou condições sérias debilitantes; medicamentos novos, nova
forma ou novas indicações terapêuticas destinadas à população pediátrica; vacinas a serem
incorporadas no Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde e substâncias que
apresentem inovação incremental ou radical para o insumo farmacêutico ativo fabricado no
Brasil.

O adequado enquadramento serve não apenas como um referencial objetivo para o


órgão de vigilância sanitária como também serve para as empresas solicitantes de registro. As
empresas deverão observar os critérios para a solicitação do pedido de prioridade sob o risco
de responsabilização e indeferimento do pedido de registro, devendo o interessado formular
um novo requerimento116. A medida atende, por fim, os interesses dos pacientes que, em tese,
terão uma disponibilidade farmacêutica mais célere.

2.3 Análise comparativa com entidade congênere: Food and Drug Administration

115
Art. 17-A da Lei n.º 6360/76
116
A definição objetiva de enquadramento evitará pedidos de priorização aleatórios e sem nenhum fundamento.
Apenas para ilustrar, no ano de 2016, dos 233 pedidos de prioridade apresentados, 135 foram indeferidas, ou
seja, aproximadamente 60% dos pedidos.
86

Com o propósito de fornecer um referencial comparativo acerca do tempo de registro


do medicamento, optou-se por investigar o tempo de registro de um medicamento novo no
órgão de vigilância sanitária norte-americano. A FDA – Food and Drug Administrations é
uma agência federal vinculada ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS),
assumindo a função de proteção à saúde da população americana.

A entidade teve origem no século XIX, estando vinculada ao Departamento de


Agricultura dos Estados Unidos desde 1862. Em 1906, com a criação da lei de alimentos e
medicamentos puros, a agência assumiu suas atuais funções regulatórias e, somente em 1930
passou a ser denominada como FDA117. Assim como a agência regulatória brasileira, a FDA
possui uma vasta área de atuação, assumindo atribuições de regulação sobre o consumo de
produtos biológicos, medicamentos, cosméticos, tabaco, pesticidas, equipamentos e produtos
radiológicos, segurança alimentar e nutricional, produtos veterinários e pesquisas
toxicológicas.

De acordo com a entidade, o sistema de vigilância farmacêutica possui mecanismos


avançados e eficazes de proteção aos consumidores americanos contra práticas nocivas,
charlatanismo bem como fornecendo aos médicos e pacientes informações indispensáveis ao
uso dos medicamentos. O principal órgão de controle da FDA é o Center for Drug Evaluation
and Research (CDER), possuindo como principal função a avaliação acerca de novas drogas
antes de sua circulação.

O procedimento utilizado pela ANVISA é bastante próximo daquele adotado pela


entidade norte-americana, ou seja, as empresas farmacêuticas devem realizar os testes pré-
clínicos e clínicos118. Antes que uma droga possa ser testada em pessoas, a empresa
farmacêutica ou o patrocinador realizam testes em laboratório e animais para identificar como
o medicamento funciona e a probabilidade de eficácia quando aplicados em humanos. Em
seguida, uma série de testes em pessoas é iniciada para determinar se o medicamento é seguro
quando usado para tratar uma doença e se proporciona um benefício real para a saúde.

Posteriormente, as empresas enviam as evidências de seus testes à CDER com o


propósito de provar a segurança e eficácia do fármaco. Já no Centro, a substância é avaliada
por uma equipe composta por médicos, estatísticos, químicos, farmacologistas e outros

117
Disponível em <https://www.fda.gov/AboutFDA/WhatWeDo/History/default.htm> Acesso em 25/08/2017
118
Como visto, a ANVISA conta com consultores externos (ad hoc), normalmente farmacêuticos, médicos,
professores que validarão os dados apresentados pelas empresas requerentes dos registros.
87

cientistas que analisam os dados da empresa. No procedimento não há a aplicação das


substâncias, mas sim a revisão das informações prestadas pelas empresas requerentes. A
aprovação pela FDA de uma substância significa que os dados referentes aos efeitos do
fármaco foram aprovados pelo CDER e o medicamento é viável para fornecer os benefícios.

O procedimento de aprovação ocorre dentro de um uma estrutura que inclui a análise


das condições dos objetivos e dos tratamentos disponíveis. Os pesquisadores da FDA
analisam a condição ou a doença para o qual o medicamento será destinado e ponderam os
riscos e benefícios da substância. É viável a incorporação no mercado de uma droga caso haja
a comprovação de que seus benefícios superam os riscos diante de um cenário de uma doença
potencialmente fatal. Ademais, cabe ao órgão, estabelecer padrões informativos sobre as
estratégias de gerenciamento de riscos, determinando a inserção de informações em rótulos e
bulas além de impor ao fabricante a apresentação de um plano contendo uma Estratégia de
Gerenciamento e Mitigação de Riscos (REMS).

Outro ponto que merece destaque no sistema de fiscalização e controle da FDA


reside na fixação de critérios procedimentais diferenciados contemplando características
específicas e a potencialidade curativa da substância. Em determinadas situações é adotada a
aprovação acelerada do medicamento no caso das terapias promissoras para condições graves
ou fatais, onde os tratamentos disponíveis restaram ineficazes. Essa abordagem permite a
aprovação de um medicamento em um momento anterior àquele que seria o seu padrão. Essa
possibilidade de aprovação é especialmente útil nos casos de drogas destinadas ao tratamento
de doença cujo curso de testes clínicos é logo, assim como é longo o período para atestar sua
capacidade curativa e a identificação de seus efeitos. Nesta hipótese, o fabricante fica
obrigado a realizar estudos posteriores à comercialização do produto com o objetivo de
verificar e documentar os benefícios produzidos pela substância, sob pena de cassação do
registro de aprovação preliminar.

Nesse sentido, poderá uma substância obter uma aprovação acelerada se os estudos
clínicos verificarem que o fármaco, cujo objetivo inicial só será conhecido após longo tempo
de pesquisa, apresenta evidências de eficácia para se alcançar um benefício clínico
razoavelmente considerável. Por exemplo, uma substância com o propósito inicial de estender
a vida de pacientes com câncer, mas que demanda um tempo grande de pesquisas e estudos
para a identificação dos resultados, pode ter uma aprovação acelerada se restar evidenciado
que a droga é eficaz para provocar uma redução do tumor. Nesta hipótese, a comprovação da
88

redução do tumor ocorre de maneira mais rápida do que a identificação do prolongamento da


vida dos doentes, sendo, portanto, possível a adoção do procedimento de aprovação acelerada.

Depois da adoção do procedimento de aprovação acelerada, instituído em 1992,


várias drogas foram introduzidas no mercado e tiveram um impacto significativo no combate
à algumas enfermidades, como o caso dos medicamentos antirretrovirais utilizados para o
tratamento da AIDS que alteraram, substancialmente, os parâmetros de tratamento da doença.

Antes da aprovação, o medicamento passa por um processo detalhado de revisão pela


FDA, havendo dois níveis de revisão, a padrão e a prioritária. De acordo com critérios
estabelecidos para o enquadramento, o fabricante poderá requerer a revisão prioritária o que
reduz o prazo de dez meses (revisão padrão) para seis meses. A designação de revisão
prioritária direciona atenção e recursos globais para a avaliação do medicamento com a
realização dos testes clínicos necessários e buscando-se manter o mesmo padrão científico.

A FDA também utiliza outras abordagens para incentivar o desenvolvimento de


determinadas substâncias, sobretudo aquelas drogas que podem significar o primeiro
tratamento disponível ou sinalizam para um incremento substancial em relação aos
medicamentos já existentes. Essas designações destinam-se buscam atender a necessidades
específicas, garantindo que terapias sejam disponibilizadas preponderando os benefícios em
detrimento dos riscos. As designações utilizadas pela agência são: fast track e o breakthrough
therapy.

O Fast Track consistente num processo utilizado para facilitar o desenvolvimento de


medicamentos destinados às doenças graves e preencher uma demanda não atendida pelas
terapias disponíveis, sendo certo que a autorização parte dos dados obtidos nos testes
promissores em animais e humanos. Quando o medicamento é credenciado no procedimento
acelerado há a permissão de que os pesquisadores do desenvolvedor do medicamento
trabalhem em conjunto com os técnicos da agência para a realização dos testes e obtenção dos
dados relevantes. Neste procedimento o FDA pode aprovar a circulação da substância após a
revisão dos dados do estudo da fase 2119.

O Breakthrough Therapy – que parte de uma proposta de aceleração da aprovação


de substância inovadora voltada para o tratamento de doenças graves e que representam uma
clara vantagem em relação à substância disponível. A determinação da melhoria substancial

119
Disponível em < https://www.fda.gov/ForPatients/Approvals/Fast/default.htm> Acesso em 31/08/2017
89

da terapia disponível depende de um julgamento deliberativo realizado pelos técnicos da


agência quando identificados uma melhoria na duração dos efeitos da droga ou um acentuado
aprimoramento no desfecho clínico pretendido.

Portanto, Fast track e breakthrough therapy são marcações dadas a determinadas


substâncias. Recebendo tais marcações ela poderá seguir o procedimento de aprovação
acelerada (são fixados marcadores no estudo do medicamento para a investigação rápida de
sua eficácia). A revisão prioritária, por sua vez, ocorreria num momento procedimental
posterior que permite encurtar o prazo de liberação de 10 meses para 6 meses.

De acordo com o gráfico abaixo é possível identifica a quantidade de medicamentos


novos aprovados pela FDA desde 2011, apresentando uma proximidade com os dados
apresentados para o registro de novos medicamentos pela ANVISA.

Tabela III – Quantidade de pedidos de registro: FDA

50
45
45 41 41 41 41 41
39
40 36 35
35
30
30 27
25 22 DEFERIDO

20 INDEFERIDO

15
10
5
0
2011 2012 2013 2014 2015 2016

De acordo com os relatórios apresentados pela FDA120, no ano de 2015, das 45 novas
substâncias aprovadas 14 (31%) obtiveram a designação fast-track e 10 (22%) foram

120
Disponível em < https://www.fda.gov/Drugs/DevelopmentApprovalProcess/DrugInnovation/default.htm>
Acesso em 01/09/2017
90

consideradas breakthrough therapies. Desse universo, 24 (53%) tiveram o procedimento de


revisão prioritária e 6 (13%) a aprovação acelerada. Em 2016, das 22 novas drogas aprovadas,
8 (36%) foram classificadas como fast-track e 7 (32%) como breakthrough therapy. Do total
de substâncias aprovadas 15 (68%) observaram o procedimento de revisão prioritária e 6
(27%) tiveram a aprovação acelerada.

A FDA possui um tempo médio de tramitação prioritária de seis meses ao passo que
a tramitação padrão de um medicamento é de dez meses. Como observado no levantamento
apresentado acima, nos últimos três anos a ANVISA apresentou um tempo médio para o
registro dos novos medicamentos de 715 dias, o que representa um prazo, aproximadamente,
quatro vezes superior. Se é fato as críticas relacionadas os riscos de se aprovar uma substância
através de um processo acelerado sem se obter elementos mais confiáveis acerca de sua
segurança, também é criticável um prazo demasiadamente estendido, pois priva as pessoas de
terapias eficazes para o tratamento de doenças.

2.4 O registro de medicamentos como uma preocupação global

O direito à saúde tem um caráter comunitário e não se orienta com o propósito de


regular somente as relações dentro dos Estados. É preciso compreender o tema de maneira
mais ampla, partindo-se de uma ideia de cooperação, pois o problema da saúde é
transnacional. Mostram-se equivocadas as políticas governamentais estabelecem o foco no
combate à chegada de doenças oriundas de outros países, pois é preciso compreender que as
enfermidades surgem como um problema multilateral, requerendo ações coordenadas de todos
os Estados121.

Diante dessa preocupação que ultrapassa as fronteiras dos Estados a Organização


Mundial da Saúde assume um papel importante no desenvolvimento de estratégias, programas
e iniciativas acerca de questões médicas, sanitárias, nutricionais, entre outras. Destaca-se que
as recomendações e diretrizes da OMS assumiram certa autoridade normativa como outros

121
“Así, en el siglo XIX y principios del XX las pontencias europeas coordinaban sus accione para contener la
llegada de enfermedades infecciosas desde sus colônias. Era una época en la que se <luchaba> contra la
enfermedad. Sin embargo, hoy en día existe una visión comprehensiva de la salud y las enfermedades
infecciosas se abordan como una problemática común que requiere la cooperación y la adopción de textos
multilaterales en los que participen todos los Estados.” HERNÁNDEZ, Xavier Seuba. La protección de la salud
ante la regulamentación internacional de los productos farmacêuticos. Madrid: Marcial Pons. 2010. P. 41
91

textos legais e tratados internacionais, sobretudo em razão da necessidade de uniformização


de mecanismos internacionais de controle e tratamento de enfermidades.

Dentro dessa perspectiva de regulamentação do direito à saúde, além das regras


inseridas nas constituições de vários Estados, somam-se as duas declarações importantes da
OMS – Declaração de Alma-Ata e Declaração de Ottawa – a primeira por considerar o caráter
universal das prestações sanitárias e a segunda por destacar o vínculo entre o direito à saúde,
as promoções de saúde e a participação dos destinatários dos serviços na gestão da saúde.

É inegável que a saúde é um dos temas que se apresenta de maneira mais evidente
nessa interdependência global. Os desafios sanitários, epidêmicos, ambientais, entre outros
representam preocupações que não se restringem a determinada fração do território, assim
como a repercussão em produtos específicos, como os medicamentos. A regulação dos
medicamentos insere-se neste contexto de preocupação global com a saúde. Diversos são os
textos normativos com especialização positiva cujo propósito coincide com o alcance do bem-
estar físico, mental e social multilateral. Dentre da tendência crescente da globalização as
normas jurídicas internacionais relacionadas à saúde e aos medicamentos têm origem nos
princípios de direito internacional público como na produção normativa dos organismos
criados com essa finalidade institucional.

Além da OMS outras entidades têm buscado meios de conciliar o direito


fundamental à saúde com os da investigação biomédica. A Organização das Nações Unidas
promoveu convênios, declarações e princípios relacionados à investigação médica. A
UNESCO também estabeleceu regulamentos acerca da cooperação técnica, seguindo uma de
suas funções centrais que é estimular a ciência. Um dos resultados alcançados pela UNESCO
foi a adoção da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.

Além das referidas entidades, outros organismos não governamentais, preocupados


coma regulação das investigações médicas em caráter complementar, assumem função de
destaque. São três as principais: a Conferência Interncional de Harmonização dos Requisitos
Técnicos para Registro de Fármacos (CIART), a Associção Médica Mundial e o Conselho
para Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS).

A CIART consiste em um organismo que conta com a participação da indústria


farmacêutica e das três principais autoridades reguladoras de fármacos (norte americana,
europeia e japonesa). Sua atividade consiste em harmonizar os requisitos para o registro de
92

medicamentos através de diretrizes que são incorporadas pelos respectivos órgãos de


regulamentação. Já a Associação Médica, criada em 1947, é composta por profissionais
médicos e tem como objetivo promover a ética médica e a liberdade profissional, além de
servir de fórum de discussão de assuntos sanitários, éticos e educativos. Por fim o CIOMS é
organismo não governamental criado pela OMS e UNESCO, como o propósito de facilitar e
promover as atividades internacionais no campo da biomedicina.

A regulação acerca do desenvolvimento de fármacos decorre justamente dos códigos


éticos criados pelos organismos não governamentais carecem de força normativa. A ausência
de capacidade de influir na regulação nacional e sobre as organizações profissionais e
agências de fomento de investigação médica retiram o caráter impositivo e vinculante de seus
códigos. Todavia, muitos dos textos possuem um viés técnico-científico por serem oriundos
de opiniões coincidentes em diversos países.

Contudo, embora desprovidos de força normativa, tais códigos e declarações


expressam seus fundamentos básicos, levando alguns autores a considerarem uma prova da
existência de uma opinio juris que permite indicar o caráter consuetudinário desses
fundamentos básicos ou, até mesmo, princípios gerais de direito internacional. Pode-se indicar
um início de regulação internacional.

As diferenças regulatórias nos diversos países provocam dificuldades de ingressos de


novos medicamentos em muitos mercados, gerando custos para as empresas do ramo. Tal
situação gerou um movimento de cooperação entre as indústrias farmacêuticas norte
americanas, europeias e japonesas no sentido de harmonizar regra para o registro dos
fármacos.

A padronização não se resume aos padrões e procedimentos de segurança, eficácia e


qualidade, pretendendo-se algo mais amplo capaz de criar standards mais gerais. Nessa
tentativa de instituir padrões, destacam-se os esforços de diversos organismos no sentido de se
estabelecer uma uniformidade sobre a denominação dos fármacos, ou seja, criação de
nomenclaturas internacionais para a facilitação da prescrição de medicamentos; a criação de
uma farmacopeia universal, onde as especificações químicas, fisioquímicas e biológicas
estivessem registradas sobre os produtos farmacêuticos objeto de comércio internacional.
Além disso, defende-se a padronização nas práticas de fabricação, registro e
farmacovigilância.
93

A OMS também empreendeu esforços no sentido de criar padrões farmacêuticos.


Diante da inexistência de um órgão centralizador dessa atividade, nos anos 1970, a OMS
voltou-se para uma de suas atividades constitucionais122 consistente no desenvolvimento de
padrões farmacopeicos. Contudo, a atividade não se desenvolveu de maneira uniforme, já que
as orientações adotadas pelo organismo consistiram na adoção de textos científicos e
orientativos, sem, contudo, preocupar-se com a adoção de um regramento específico no
âmbito farmacêutico. Por isso, é possível afirmar que a heterogeneidade da atividade
normativa da OMS complica a sistematização do setor.

Outro sinal de preocupação acerca da padronização é verificada nas diretrizes da


Conferência Internacional sobre a Harmonização dos Requisitos Técnicos para o Registro de
Fármacos para uso humano (CIART). Consiste em um organismo atípico que procura
estabelecer medidas de cooperação no tema da harmonização de padrões de qualidade,
segurança e eficácia para medicamentos. O organismo nasceu com o objetivo de baratear
custos das indústrias farmacêuticas e facilitação do registro de fármacos. O organismo sofre
uma série de críticas e questionamentos, em especial, o fato de a CIART ser administrada pela
Associação Internacional das Indústrias Farmacêuticas (IFPMA). Outra crítica dirigida à
entidade reside na complexidade dos padrões estabelecidos, muitos injustificáveis, o que
induz a uma forma de eliminar competidores. Por fim, há o problema da limitação na
participação e representatividade do organismo, visto que, muitos dos destinatários dos
medicamentos, como os países em desenvolvimento, não participam ativamente das suas
deliberações.

2.5 A inovação farmacêutica e a propriedade intelectual

Outro tema que merece reflexão consiste no conflito entre os direitos humanos e a
propriedade intelectual em termos gerais, contudo, no contexto do presente trabalho, a análise
consiste basicamente no confronto entre a inovação farmacêutica os efeitos sobre o direito à
saúde. A análise perpassa pelas considerações sobre o direito à propriedade intelectual como
instrumento de desenvolvimento de novas tecnologias e tratamentos e a gestão de valores
sociais superiores.

122
Art. 2u e art. 21e da Constituição da OMS
94

O destacado processo de construção e reconstrução dos direitos fundamentais e a


característica essencial da universalidade estabelecem outro debate central de sua
consolidação. O movimento de consolidação dos direitos fundamentais é constante e
adaptável considerando as alterações de todas as ordens e, por conta da necessidade inevitável
de adequação, é possível afirmar que a liberdade real e efetiva deve ajustar-se à possibilidade
de fruição dos benefícios incorporados pela inventividade humana. No outro ponto dessa
afirmação é preciso reconhecer que a proteção não pode residir apenas na concretização das
benesses por parte dos necessitados, mas, também, afirmar a proteção aos interesses dos
autores intelectuais dos avanços científicos123.

A questão tomou conta de alguns fóruns internacionais de discussão, sobretudo em


função das defesas construídas no sentido de outorgar ao direito à propriedade intelectual a
característica de um direito fundamental ou, até mesmo, no sentido de consagrá-lo como um
direito natural de seus autores ou inventores124. Na verdade, o caráter instrumental dos direitos
de propriedade intelectual, que propõe a propriedade como um instrumento institucional
decorre de uma visão utilitarista no momento em que justifica a proteção de um invento
através da propriedade como forma de estímulo à criatividade do ser humano125.

Como resultado desse debate de nível internacional, tem-se o tratado multinacional


adotado pela Organização das Nações Unidas, denominado Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ratificado por diversos países126, vigente desde
janeiro de 1976. No referido tratado, os países signatários assumem o compromisso de
programar medidas para que as pessoas possam desfrutar dos benefícios do progresso
científico, tanto sob a perspectiva dos autores quanto dos destinatários127.

123
Nesse sentido destaca-se o art. Artigo 27° da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “1.Toda a pessoa
tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no
progresso científico e nos benefícios que deste resultam.
2.Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária
ou artística da sua autoria.” Disponível em <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/> Acesso em
22/08/2017
124
SALAZAR, Silvia. Intellectual Property and the Right to Health. In Intellectual Property and Human Rights.
World Intellectual Property Organization. Geneva. 2007. P. 65
125
HERNÁNDEZ, Xavier Seuba. La protección de la salud ante la regulamentación internacional de los
productos farmacêuticos. Madrid: Marcial Pons. 2010. P. 155
126
No Brasil o Tratado foi incorporado pelo Decreto n.º 591 de 6 de julho de 1992.
127
Art. 15 - 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de:
a) Participar da vida cultural;
b) Desfrutar o processo científico e suas aplicações;
c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária
ou artística de que seja autor.
95

De fato, o Direito reconhece a expressão inventiva e sua proteção como integrantes


pelos direitos fundamentais. A proteção das expressões criativas, inegavelmente, resulta em
benefícios, sobretudo, sob o aspecto do progresso científico e cultural. Trata-se de direito que
passou a merecer proteção em diversas partes do mundo e que encontrou no século XIX um
crescimento elevado de diplomas reguladores em diversos países.

Não são isoladas as defesas no sentido de se afirmar a flexibilidade do direito à


propriedade intelectual quando confrontado com do direito à saúde, sobretudo em países
pobres e em desenvolvimento, desestimula a criação de novas fórmulas destinadas ao
tratamento das principais doenças dos referidos países e, dessa forma, é possível perceber um
maior interesse na investigação de fármacos destinados à cura de doenças dos países ricos. A
maior proteção da propriedade intelectual poderia resultar num maior número de inovações e,
portanto, uma das medidas capazes de promover o incentivo para a pesquisa de novos
fármacos seria a subvenção das pesquisas e incentivos fiscais, conjugando-se ambos os
interesses em jogo.

Todavia, o regime de proteção à propriedade intelectual deve ser tratado de modo


coerente, tomando-se em conta os benefícios materiais e morais decorrentes da criação
humana. Assim como deve haver a proteção ao avanço científico, deve existir relação
correspondente, em igual nível de preocupação, de acesso ao mesmo. A proteção da
criatividade inventiva deve estar condicionada ao bem-estar da sociedade, dos seus benefícios
materiais e morais, compatibilizando-se com outros direitos fundamentais como a saúde. A se
pensar de outra forma incorreríamos no equívoco de considerar que uma proteção integral ao
direito de propriedade intelectual poderia resultar numa inacessibilidade aos resultados
benéficos da invenção.

Soma-se a isso a violação à concepção de que a propriedade deve exercer uma


função social conforme instituído no art. 5º XXIII da CRFB. A propriedade intelectual é um
produto social e tem uma função social e, nesse sentido, qualquer tentativa de se conferir
preponderância exclusivamente privada aos direitos dos autores merece ser rechaçada, para se

2. As Medidas que os Estados Partes do Presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno
exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à convenção, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da
cultura.
3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa
cientifica e à atividade criadora.
4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do
desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.
96

afirmar a criação de um regime jurídico que anuncie um balanço equilibrado considerando os


impactos da inovação científica para a coletividade128.

A preocupação com a formulação dessas políticas que proporcionem um balanço


adequado entre esses direitos pode ser percebido no momento em que a OMS, na assembleia
geral realizada em 2008, institui a Estratégia e Plano de ação globais sobre saúde pública,
inovação e propriedade intelectual, fruto de um esforço intergovernamental criado para
debater e apresentar propostas sobre o tema. Significou o documento mais importante sobre o
assunto. Seguiu-se a esta providência a reestruturação do secretariado da OMS em que a
matéria saúde pública, inovação e propriedade intelectual passaram da secretaria de
medicamentos especiais para a diretoria geral através de secretaria especial para gestão do
assunto.

A difícil intermediação desses interesses suscita algumas propostas para a


compatibilização dos desejos público e privado. A obrigação de integralizar o direito à saúde
e a relação com a inovação farmacêutica demanda medidas positivas de estímulos capaz de
conferir, aos diversos atores, a satisfação. Uma das propostas consistiria na criação de um
regime que contasse com estímulos privados de patrocínio à pesquisa com benefícios fiscais
suficientes para conjugar a subvenção pública com os investimentos privados129.

Outra proposta consistiria na adoção de um regime de propriedade intelectual


recompensado por uma premiação que deveria variar considerando alguns aspectos de
relevância da inovação. A realização do cálculo econômico agruparia o valor terapêutico do
fármaco, traduzido no seu impacto nas taxas de mortalidade e capacidade curativa130.

Por fim, outra tentativa de compatibilização dos interesses seria a criação, a nível
internacional, de parcerias público-privadas com o compromisso de estimular a inovação
farmacêutica tendo como foco a saúde pública e sendo interessante para o setor privado diante
do mercado consumidor a ser alcançado pelas descobertas. Através de um compromisso, de
caráter complementar aos tratados internacionais existentes sobre o direito à saúde, as

128
“há desafio de redefinir do direito à propriedade intelectual à luz da concepção contemporânea dos direitos
humanos, da indivisibilidade, interdependência e integralidade destes direitos, com especial destaque aos direitos
econômicos, sociais e culturais e ao direito ao desenvolvimento, na construção de uma sociedade de aberta, justa,
livre e plural, pautada por uma democracia cultural emancipatória.” PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e
Propriedade Intelectual. 2007. P. 39. Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2665 >
Acesso em 22/08/2017.
129 HERNÁNDEZ, Xavier Seuba. La protección de la salud ante la regulamentación internacional de los
productos farmacêuticos. Madrid: Marcial Pons. 2010. P. 165
130
Op. cit. P. 166
97

diversas partes implicadas, como Estados, empresas, organizações não governamentais,


fundações e entidades ligadas ao assunto, aturariam na gestão dos interesses público e
privado131.

Embora todas as propostas sejam passíveis de críticas de diversas ordens, o fato é


que a conjugação dos interesses deve estar na ordem de discussão dos interessados e,
sobretudo, em função da responsabilidade social dos diversos atores com a promoção do
direito fundamental à saúde.

De fato, a participação estatal no processo de inovação farmacêutica deve ser


observada, sobretudo, em função do dever de proteção do direito à saúde. O controle dos
padrões de qualidade, eficácia e segurança dos fármacos imputa ao Estado a posição de
garantidor da população. O cuidado deve percorrer todas as etapas da vida de um
medicamento, ou seja, deve perpassar toda a cadeia, desde os ensaios clínicos até a chegada
ao destinatário final. A exclusão do Estado em qualquer das etapas viola a ideia de proteção
ao direito fundamental à saúde.

Neste sentido, é equivocada a concepção de exclusividade do interesse privado na


pesquisa farmacêutica. O sistema de proteção à saúde que estabeleça padrões de qualidade,
segurança e eficácia de medicamentos é componente fundamental do sistema de vigilância
sanitária. É elemento básico de um conjunto de medidas de prevenção e tratamento de
enfermidades. O Estado deve assumir o papel de controlar os medicamentos e proteger as
pessoas de maneira igualitária, harmonizando os interesses de todos aqueles envolvidos na
cadeia de circulação de medicamentos, com especial propósito de assegurar que, no destino
final do medicamento, encontrem-se todas as diversidades de grupos aptos a receberem um
tratamento eficiente.

A necessidade de integração dos direitos fundamentais conduz à conclusão de que


deve haver uma unidade do ponto de vista estrutural do ordenamento jurídico internacional.
Ademais, a existência de normas gerais primárias de alcance universal e de primazia também
servem para sustentar a unidade do direito internacional. O reconhecimento dos direitos

131
Xavier Seuba cita exemplos de parcerias público-privadas criadas com propósito específicos para o estudo e
desenvolvimento de fármacos para enfermidades específicas como Tabacco Free Initiative, Making Pregnancy
Safer Initiative, International AIDS Vaccine Initiative, South African AIDS Vaccine Initiative, Medicines for
Malaria Venture, European Malaria Vaccine Initiative, Global Alliance for Tuberculosis Drug Development,
Paediatric Dengue Vaccine Initiative, human Hookworm Vaccine Initiative, Rotavirus Vaccine Accelerated
Development and Introduction, Pneumococcal Vaccine Accelerated Development, entre outras. Op. cit. P. 169-
170
98

humanos como um valor compartilhado em diversos ordenamentos jurídicos reforçam a ideia


de uma nova dimensão dos princípios gerais de Direito internacional.

A falta de proteção dos consumidores diante de produtos farmacêuticos que


apresentem riscos para a saúde deve ser encarada como uma violação à obrigação estatal de
proteção ao direito à saúde. A ausência de regulamentação e de fiscalização quanto às práticas
das indústrias farmacêuticas ilustra bem essa violação ao direito fundamental que deve ser
afastada por boas práticas protetivas de qualidade, segurança e eficácia. Fato é que no plano
real as obrigações de proteção e de integralização do direito à saúde estão dissociadas,
assumindo mais um exemplo das carências dos países em desenvolvimento. Portanto, é
possível afirmar que o direito à saúde pode ser violado em função da inação do estado como,
também, pela inadequação de instrumentos de controle.

Outro tema debatido está na preocupação em se compatibilizar os interesses


envolvidos naquilo que diz respeito aos preços dos medicamentos, sobretudo no aspecto dos
preços proibitivos de acesso aos medicamentos para as camadas mais pobres. A necessária
harmonização entre os interesses entre as regras de proteção à propriedade intelectual e
inovação científica, de um lado, e o direito das pessoas de receberem tratamentos adequados
para suas enfermidades, deve pautar as políticas estatais de acesso aos fármacos. Nesse
sentido, muitos países passaram a adotar medidas para conter os custos dos medicamentos e
torná-los acessíveis, tais como a introdução de medicamentos genéricos, a retirada de
remédios de baixa utilidade terapêutica, a diminuição das margens de distribuição, a fixação
de preços de referência, o controle da publicidade, medidas de informação e educação dos
profissionais e consumidores e o aumento da contribuição dos usuários no financiamento dos
medicamentos132.

Como analisado no presente capítulo, inúmeros são os temas que envolvem o registro
de um medicamento. O tempo de registro de um medicamento, a conciliação dos interesses
público-privados, a segurança dos consumidores, a proteção da propriedade intelectual, são
apenas exemplos diante da amplitude dos interesses em jogo. Inevitavelmente, as oposições
de ideias repercutem no plano do Judiciário, cabendo, aos Tribunais, solucionar questões que,
invariavelmente, ultrapassam os limites da dogmática do Direito.

132
Op. cit. P. 205.
99

No próximo capítulo discutiremos as diversas perspectivas, positivas e negativas,


desse direcionamento dos conflitos para o Judiciário. A análise seguirá uma crítica sob
variadas formas que interferem, inexoravelmente, na expectativa da integridade do Direito e
na estrutura das instâncias e funções estatais. É preciso compreender que o tema em debate é
apenas mais um, dentre muitos, que são levados aos Tribunais e que produzem os mesmos
questionamentos sobre os riscos e possibilidades de um suposto ativismo judicial e nas
tentativas de teorização de limites para a atuação dos juízes. Como será visto, a pretensa
eticidade do discurso que introduz conteúdos metajurídicos, como a moral, produz efeitos
intraorgânicos merecedores de análises que possam encontrar um ponto de equilíbrio ou de
restauração de um modelo que se intente íntegro.
100

CAPÍTULO III – A ATIVIDADE JUDICIAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE


SAÚDE: UMA CRISE SISTÊMICA

3.1 A separação de poderes: independência e (des)harmonia

No geral, a realidade construída durante longo período da história humana foi


marcada pela existência da concentração de poder centrado em uma figura que se legitimava
em elementos como a força, a tradição ou a religião. Com o surgimento dos Estados modernos
altera-se a lógica inicial da acumulação para a da separação, sendo a diretriz mais adequada
para se combater o abuso de poder e proporcionar o fortalecimento das instituições
estabelecidas. Dentro da perspectiva do ideário liberal da tripartição de poderes, então
crescente, somente seria possível conferir o equilíbrio e estabilidade pretendidos se seguido o
novo modelo arranjos institucionais.

Na antiguidade clássica, especialmente a partir das ideias de Aristóteles, já se fazia a


defesa da limitação de poderes através da repartição de funções essenciais. Apesar de
apresentar um conteúdo menos preciso, dentro da perspectiva compreendida atualmente, o
grande mérito do filósofo grego, foi o de estabelecer reflexões iniciais sobre a existência de
atividades distintas de governo e de destacar os riscos decorrentes da concentração de poder.

O tema ainda foi retratado nas obras de outros autores referenciados pela relevância
na ciência política como Maquiavel que, apesar de defender a ideia tripartite, entendia que
essa seria uma maneira de justificar e conservar o poder do soberano. Em Locke, os três
poderes (Executivo, Legislativo e Federativo) possuíam funções específicas, mas destacava a
preponderância do Legislativo em relação aos demais. Na visão do autor, no momento em
legisla para todas as partes da sociedade, é natural seus status de supremacia133. Dentre os

133
Para Locke “Em todo caso, enquanto o governo subsistir, o legislativo é o poder supremo, pois aquele que
pode legislar para um outro lhe é forçosamente superior; e como esta qualidade de legislatura da sociedade só
existe em virtude de seu direito de impor a todas as partes da sociedade e a cada um de seus membros leis que
lhes prescrevem regras de conduta e que autorizam sua execução em caso de transgressão, o legislativo é
forçosamente supremo, e todos os outros poderes, pertençam eles a uma subdivisão da sociedade ou a qualquer
101

méritos da teoria de Locke, destaca-se a defesa da ideia de separação dos poderes que embora
insipiente foi amplamente adotada pelos teóricos no século XVIII.

No entanto, a proposta repartição como opção para combater a concentração do


poder, pressupondo que a independência produziria um funcionamento organicista harmônico,
viu-se frustrada no momento que a orientação de separação é associa-se à ideia de divisão e
não às proposições de coordenação e colaboração. É no fracionamento e segmentação que as
estruturas funcionais, através de seus agentes, estabelecem atritos na procura por espaços e
sobreposição. Na visão de Montesquieu “Todo homem que possui poder é levado a dele
abusar” e “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o
poder limite o poder”134 sendo evidente que apenas com a criação de sistemas de controle
recíprocos a estabilidade se afirmaria. É deste, a construção mais próxima do modelo
contemporâneo de organização dos poderes políticos.

Inspirados no pensamento iluminista, os movimentos revolucionários norte-


americano (1776) e francês (1789) tiveram o mérito de expandir os ideais de liberdade do
homem e, para tanto, era necessário combater a absolutização do poder soberano. Como
evidenciado num de seus documentos mais relevantes percebe-se a convicção na separação
dos poderes como condição sine qua non para a existência de uma Constituição e,
consequentemente, de um Estado135.

Ocorre que como criticado por Hegel, a independência consiste no problema mais
grave da proposta de separação dos poderes, com riscos de desintegração do Estado. A
independência entre os poderes gerou um estado de conflito, no momento em que se
enxergam, reciprocamente, como verdadeiros inimigos. Para a teoria hegeliana, a separação
não produziria o ideal de unidade, mas sim de destruição do todo, que somente seria retomada
pela violência. A ideia de divisão de poder é combatida pelo filósofo alemão que prefere o
tratamento de repartição organicista dos poderes, ou seja, defende o afastamento da tese de
poderes independente para a de poderes coordenados. Apenas através de suas mútuas relações

um de seus membros, derivam dele e lhe são subordinados.” LOCKE, John. Segundo Tratado de Governo Civil.
Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. São Paulo: Vozes. 2003. P. 76
134
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. Trad. Cristina Murachco. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 166
135
Conforme consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão “art. 16 - A sociedade em
que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição”. Disponível em < https://www.senat.fr/lng/pt/declaration_droits_homme.html> Acesso em
30/09/17
102

negativas ou nas limitações e controles recíprocos a unidade sistêmica do Estado seria


alcançada136.

A realidade experimentada, sobretudo a brasileira, induz a uma constante


instabilidade recíproca entre os atores institucionais, pois o viés cooperativo das instâncias
consta dentro de uma perspectiva apenas idealizada. O problema já sinalizado séculos atrás
por Hegel permanece evidente no sentido dos movimentos de sobreposição determina um
ambiente de hostilidade onde um tenta subjugar o outro. Nessa atmosfera adversarial, a opção
solução seria ditada pela adoção de sistemas de freios e contrapesos capazes de conferir o
equilíbrio desejado.

A Constituição revela o intuito de funcionamento independente e harmônico, todavia


os atritos gerados são constantes. O atual sistema de checks and balances revela a face
antagônica entre os atores políticos, pois o sentido cooperativo cede aos interesses
corporativos criando um funcionamento desarmônico e, portanto, nocivo à unidade orgânica
do Estado. A crescente participação do Poder Judiciário na definição e no acolhimento de
questões ligadas às políticas públicas e a posição ativista em razão da inexistência de regras
tendentes à “maximização” dos direitos fundamentais são ilustrações desses avanços.

O arquétipo de tripartição idealizado induz uma programação democrática através de


ajustes majoritários no Legislativo com a criação de normas gerais e abstratas. Dentro da
dialética criativa, forças dicotômicas – formadas pelo jogo situação X oposição – disputam
posições tendo como resultado a positivação comandos que se materializarão com a atuação
do Estado-juiz. Algumas críticas são desferidas contra certas decisões judiciais, especialmente
dentro de uma visão do senso comum, quando se apresentam impopulares, mas a
fundamentação das decisões judiciais resulta do debate travado entre os interessados e da
técnica do julgador cujo dever é pinçar no ordenamento jurídico a regra aplicável.

O atual contexto de insegurança e imprevisibilidade jurídicas tende a se manter


diante dos movimentos cíclicos de inflação de um poder em relação aos outros. Apenas com a
transformação da noção de repartição dos poderes caberá a aproximação o significado
desejado de equilíbrio e harmonia, pois é preciso considerar que o bem comum é a finalidade

136
Segundo Hegel “A Constituição é racional quando o Estado determina e em si mesmo distribui a sua
atividade em conformidade com o conceito, isto é, de tal modo que cada um dos poderes seja em si mesmo a
totalidade. É isto obtido porque cada momento contém em si a ação dos outros momentos e porque, ao
exprimirem a diferença do conceito, todos eles se mantêm em sua idealidade e só constituem um todo individual
único.” HEGEL, Georg Wilíelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino. São
Paulo: Martins Fontes, 1997. P. 244
103

de todas as ações dos sujeitos políticos. Contudo, o presente nos dá outro contexto, sendo
nítida a tendência de elevação dos conflitos, em especial pela atuação hiperbólica do
Judiciário.

Na hipótese tratada na presente tese, discute-se o problema do ativismo judicial sob a


ótica dos conflitos sistêmicos causados por decisões judiciais que obrigam o Estado a fornecer
medicamentos sem o regular registro na entidade de vigilância sanitária competente. Além da
crise causada pela violação ao ideal da separação dos poderes e ao positivismo jurídico, é
possível destacar a incoerência intestinal já que o Estado determina ao próprio Estado a
prática de um ato ilegal. A relação inata entre as necessidades humanas e os direitos
fundamentais determina que este encontre na prevenção/reparação de um dano sua
fundamentação. A atuação judicial deve pautar-se por decisões dispostas a satisfazer uma
necessidade e evitar um prejuízo e não potencializá-lo.

3.2 Os conflitos entre os campos regulatório e político

O formato idealizado para agências reguladoras, especialmente no tocante à


autonomia administrativa e especialização, encontram-se presentes na ANVISA, pois se
pretende reforçar o caráter técnico de suas decisões, afastando os aspectos políticos que
podem interferir nos processos decisórios. Como destacado anteriormente, o processo de
inserção no cenário nacional do modelo regulatório teve o propósito de proporcionar maior
segurança a investidores e consumidores, tentando alcançar a melhoria na eficiência e
efetividade em áreas consideradas estratégicas.

A atividade regulatória da entidade volta-se, primordialmente, para a produção


normativa de proteção à saúde e adequação das relações entre fornecedores, consumidores e
órgãos da administração pública. Diante desta realidade, para o alcance dos objetivos
institucionais, a sistematização de procedimentos surge como ponto de partida para a
implementação de uma metodologia que permita a identificação de indicadores precisos de
modo a tornar transparente o acesso à informação pelos interessados.

Contudo, o grande desafio do sistema regulatório é não se estabelecer como um


obstáculo ou se fixar como um fator de intervenção excessiva no domínio econômico,
104

sobretudo, no aspecto das inovações tecnológicas. Conseguir estabelecer uma normatização


que permita o avanço de novos conhecimentos, combater barreiras desnecessárias à livre
concorrência e aos investimentos, afastar-se dos riscos de uma burocratização excessiva e
evitar a possibilidade de apreensão por interesses de grandes corporações, entre outros, são
exemplos das dificuldades regulatórias num setor sensível para interesse social.

As medidas políticas e administrativas que se inserem dentro de um contexto de


regulação nos domínios da atividade privada podem ser justificadas do ponto de vista técnico,
orientadas para a consagração simbólica de um estatuto rígido no ajustamento dos interesses
dos vários atores. As possíveis tensões geradas pelos movimentos de adequação e
sobreposição de interesses merecem um tratamento delineado por orientações exclusivamente
técnicas, visto que a especialização não deve ceder às pressões do campo político.

Centrando-se no tema proposto no presente trabalho, sobretudo naquilo que se


relaciona com o registro dos novos medicamentos, a atividade regulatória da entidade volta-se
para a promoção e harmonização da cadeia de investigação, produção e controle das
tecnologias de inovação na saúde. É inegável a relevância do tema dentro do universo de
atribuições da ANVISA, pois, como afirmado, a compatibilização dos vários interesses
envolvidos revela a especial atenção quanto à sistematização normativa.

A atividade regulatória independente alinha-se com a proposta de tornar confiável a


fiscalização estatal além de demonstrar que os influxos políticos e pressões de lobbies de
grandes corporações não refletem na atuação do setor. As entidades responsáveis pela
regulação são alvos das tentativas de apropriação e interferência por parte de grupos variados
que, no geral, estão dissociados da intenção de preservação do interesse público. Essas
tentativas de cooptação foram identificadas pela doutrina como “Teoria da Captura”137.

Além dos riscos destacados, a experiência brasileira, fértil na produção de objetos de


estudo no plano da ciência política, conduz a um alargamento das interferências possíveis no
plano regulatório. A atuação do Legislativo, em muitas situações despe-se de uma atuação
puramente racional – e isso é natural – já que na política o imponderável é, também, tolerável.
No entanto, a atuação legislativa deve estar alinhada com elementos mínimos de segurança

137
Identificada inicialmente no debate regulatório norte-americano foi tratada pela doutrina brasileira por vários
autores como ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico. Rio de Janeiro: Forense. 2005. P. 365; NETO. Diogo de Figueiredo Moreira. Direito Regulatório.
Rio de Janeiro: Renovar. 2003. P. 212 e JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras
independentes. São Paulo: Dialética. 2002. P. 360-370.
105

jurídica. A atuação descuidada do Legislativo pode revelar, antes de tudo, uma fragilidade
institucional além de evidenciar que a responsabilidade de seus membros com um interesse
social maior na verdade sucumbe ao individual.

A edição da Lei 13.269 de 13 de abril de 2016138 é um claro exemplo dessa atuação


legislativa destituída de elementos mínimos de aceitabilidade. Diante de um cenário social de
intensos debates acerca da circulação de uma substância anunciada como a cura do câncer, o
Congresso Nacional aprovou a lei que autorizava seu uso. O referido diploma autorizava sua
utilização, dispensando, em caráter excepcional, o registro no órgão regulador139.

A atuação legislativa no caso evidenciou o descuido com as exigências mínimas para


a aferição de segurança e eficácia inafastáveis para qualquer substância destinada ao consumo
humano. Partiu-se da concepção de que os estudos clínicos realizados previamente ao registro
na ANVISA seriam formalidades passíveis de afastamento por mera disposição legal. Além
da elevação dos eventuais riscos permitidos pela lei, outra questão que exsurge é a
interferência do parlamento no campo regulatório, especialmente a precarização do sistema de
vigilância sanitária. É possível afirmar que a conduta, aparentemente adequada pela pretensa
virtuosidade, revela, na sua estrutura básica, as características da inconsistência e da
incorreção.

A despeito dos fundamentos apresentados pelas casas legislativas, enfatizando o


caráter humanitário e o atendimento aos legítimos anseios dos milhares de enfermos
acometidos pela doença, além de ampla adesão popular, é importante notar o cenário político
desenhado no momento da tramitação do projeto de lei e do envio do para a sanção. A grande
tensão existente no campo política criava um ambiente propício para medidas com resultados
potencialmente dissociados do interesse coletivo.

A aprovação da lei que autorizava a circulação da fosfoetanolamina coincidiu com a


tramitação no processo de impeachment da então presidente Dilma Roussef, que foi
autorizado pela Câmara dos Deputados no dia 17 de março de 2016, quatro dias depois da
sanção da referida lei. O clamor popular e o elevado caráter altruístico conduziam à aprovação
pela Presidência da República da lei, o que, de fato, ocorreu. A decisão de sancionar a lei

138
Autorizou o uso da substância denominada fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com
neoplasia maligna.
139
Art. 4º Ficam permitidos a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou
uso da fosfoetanolamina sintética, direcionados aos usos de que trata esta Lei, independentemente de registro
sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância.
106

contrariou os pareceres técnicos emitidos pelos órgãos consultados como o Ministério do


Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Saúde; Ciência e Tecnologia; ANVISA e Advocacia
Geral da União. Estava evidenciada mais uma tentativa de amenizar a crescente rejeição do
governo e evitar o desgaste de mais uma medida impopular, ainda que para tanto fosse
necessário desconsiderar os resultados das avaliações técnico-científicas da autoridade de
vigilância sanitária.

O resultado da edição da referida lei foi o questionamento de sua constitucionalidade


perante o STF através da ação direta de inconstitucionalidade n.º 5501 proposta pela
Associação Médica Brasileira em 14 de abril de 2016. A entidade autora sustentava que a
falta de submissão da fosfoetanolamina sintética aos testes clínicos em seres humanos
impossibilitava a identificação da toxicidade no organismo representando um risco à vida e à
integridade física dos pacientes além de não ser possível identificar indícios mínimos de
eficácia da substância.

Nas informações prestadas pelos órgãos responsáveis pela edição do ato, em especial
as casas do Congresso Nacional, são identificadas justificativas destituídas de um
embasamento técnico-científico sólido. O Senado Federal, por exemplo, fez alusão a alguns
estudos acadêmicos que atestavam efeitos positivos da substância tendo iniciado o processo
legislativo em função de notícias que davam conta de seu poder curativo. Já na Câmara dos
Deputados afirmava-se, também com base em estudos, que a fosfoetanolamina não
apresentava elevados índices de toxicidade por ser uma substância produzida naturalmente
pelo corpo humano além de a isenção provisória do registro representar um mecanismo de
combate ao mercado clandestino formado pela busca do “medicamento”. Por outro lado,
justificava-se a criação do diploma com o argumento da competência legislativa, ou seja, no
momento em que o Legislativo pode atribuir funções à autarquia de vigilância sanitária, como
o registro de medicamentos, pode suprimir, alterar ou manter tal competência, podendo, por
conseguinte, autorizar medicamento sem o prévio registro (“in eo quod plus est semper inest
et minus”).

A eficácia da Lei n.º 13269/2016 foi suspensa liminarmente pelo STF sob o
fundamento de que a circulação da substância dependeria de registro nos termos do art. 12 da
Lei n.º 6380/76140. De acordo com a decisão, o afastamento casuístico, promovido pela lei

140
No julgamento restaram vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes que
concediam a liminar para determinar a interpretação conforme no sentido de permitir a utilização da substância
para os pacientes em estado terminal.
107

impugnada, não se amoldava ao comando constitucional que impõe ao Estado o dever de


promover a saúde e eliminar os riscos e outros agravos. Ademais, registrou-se o respeito ao
princípio da separação dos poderes, reconhecendo que cabe ao Executivo, através do órgão de
vigilância sanitária, a atribuição controlar e fiscalizar a circulação de medicamentos no
território nacional.

Um parlamento livre, constituído por representantes democraticamente eleitos em


processo eleitoral livre dá, a esta instituição, o atributo de órgão capaz de impor limites ao
exercício do poder, ao respeito à pluralidade de opiniões e a possibilidade de interferir de
maneira justa e equilibrada na formação de políticas públicas no âmbito do Estado
Democrático. No entanto, o momento atual, aponta-se para um sentido diferente. Em
determinados casos até diametralmente oposto! Em muitos países, o Legislativo tornou-se o
local apropriado para a defesa de interesses individuais ou de grupos limitados, perdendo o
caráter generalizante de suas construções.

Atualmente, diversas críticas são atribuídas ao Legislativo e que, em certa medida,


revelam fatores que induzem a um movimento de declínio em relação aos demais Poderes. A
atuação dissociada de seu conteúdo conceitual colocou em questão o papel desempenhado
pelo Legislativo e o sistema de representação. A consequência não poderia ser outra, senão a
redução do grau de confiança nos parlamentos141. Um Legislativo eficiente não pode ser
medido pela quantidade de leis produzidas, mas sim pela qualidade delas.

3.3 O Judiciário e os standards procedimento-tempo

Essa outra linha de judicialização da saúde reforça uma característica das tensões
constantes das relações entre os indivíduos e o Estado. A correção pretendida, como ocorre
em outras linhas do tema direito às prestações de saúde, esbarra em questões complexas no
momento em transfere o eixo decisório para outra instância que precisa considerar diretrizes e

141
“De um lado, os parlamentos demonstraram o caráter fantasioso da sua pretensão de se erigirem em
instrumentos onipotentes do progresso social. Demasiadas leis foram emanadas demasiadamente tarde, ou bem
cedo tornaram-se obsoletas; muitas se revelaram ineficazes, quando não contraprodutivas, em relação às
finalidades sociais que pretendiam atingir; e muitas, ainda, criaram confusão, obscuridade e descrédito da lei.
Nem se esqueça que os parlamentos, nas sociedades pluralísticas, compõem-se na maior parte de políticos eleitos
localmente, ou vinculados eleitoralmente a certas categorias ou grupos. Os valores e prioridades desses políticos
são, por isso, muito amiúde valores e prioridades locais, corporativos ou de grupo.”CAPPELLETTI, Mauro.
Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1999. P. 44
108

protocolos técnico-científicos. A interlocução entre os atores tem se mostrado incapaz de


conduzir a decisões ajustada aos interesses envolvidos.

As decisões judiciais que concedem liminares para compelir a agência de vigilância


sanitária a analisar o pedido de registro insere, num cenário já complexo, outro problema.
Além da ordem determinada em razão da qualificação dada à substância para a utilização de
um ou outro procedimento, liminares inserem uma terceira fila de análise, interferindo,
diretamente, na gestão dos processos de registro.

Mas diante da realidade desenhada atualmente é possível perceber que, em episódios


cada vez mais frequentes, os Tribunais extrapolam os limites de atuação, interferindo
significativamente no controle das políticas públicas sem atentar para o fato de que uma
atuação aleatória traz prejuízos não só para as contas públicas, mas para um universo ainda
mais complexo por demandar requisitos técnico-científicos insindicáveis pela atuação
judicial.

É preciso destacar que a decisão de impor à agência reguladora a observância de


prazos segue na linha de consagrar um direito individual do requerente do registro do
medicamento dentro do tempo previsto em lei, sendo, portanto, inquestionável a sob o aspecto
estritamente legal. No entanto, existe uma questão subjacente que se apresenta ampliada e
complexa, consistente no direito da coletividade de acessar um medicamento que seja
plenamente eficaz e seguro e, para tanto, indispensável o respeito aos elementos apreciáveis,
exclusivamente pela entidade de vigilância sanitária.

A concepção superestimada do Judiciário, muito refletida como a última trincheira


da consagração de direitos, criou um cenário de acúmulo de inúmeras pretensões e aumento
exagerado de encargos que pode repercutir no seu próprio engessamento. Aquilo que não se
enxerga em outras funções, sobretudo a capacidade de gerar respostas rápidas, pode se perder
diante desse agigantamento, produzindo um efeito similar àquele destacado por Cappelletti ao
se referir ao Legislativo142.

142
“No entanto, exatamente em razão do enorme aumento dos encargos da intervenção legislativa, verificou-se o
fenômeno de obstrução (“overload”) da função legislativa, e este overload, que representa tema central da
ciência política atual, tornou-se típica característica, na verdade típica “praga” dos estados modernos, pelo menos
daqueles com regime não autoritário e pluralístico-liberal. Nesses estados, os parlamentos amiúde são
excessivamente abundantes e por demais empenhados em questões e discussões de política geral e partidária,
para estarem em condições de responder, com a rapidez necessária, à demanda desmedidamente aumentada de
legislação.” CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Op. cit. P. 43
109

A insatisfação com os atrasos na concessão dos registros de novos medicamentos


acaba por refletir no Judiciário, pois os requerentes dos registros, diante do descumprimento
do prazo legal por parte da autoridade de vigilância sanitária, buscam, através de ferramentas
processuais, como o mandado de segurança, a correção da ilegalidade. Não são raras as
decisões concessivas impondo à ANVISA a observância do prazo instituído em lei sob o
fundamento de observância dos princípios da moralidade, eficiência e razoabilidade143.

O tema tangencia uma relação complexa e, em muitos casos, inalcançável,


consistente na busca pela adequada relação entre o contraditório, ampla defesa e a duração
razoável do processo. A forma e tempo devem se apresentar como padrões indissociáveis,
todavia, a indeterminação Constitucional acerca da duração do processo abre margem para
leituras oscilantes. Ao estabelecer um trâmite razoável, a Constituição cria, para o julgador,
uma avaliação permeada por subjetivismos. É dentro desse conteúdo dinâmico que o juiz deve
considerar, faticamente, os diversos contextos, especialmente, os reflexos futuros de sua
decisão.

3.4 A judicialização da política e os conflitos institucionais

Não sem fundamento, a judicialização da política, passou a ser considerado como


movimento de redirecionamento dos locais de tomada de decisões do campo político para o
Judiciário. Tornou-se objeto comum o questionamento acerca de um dos primados
dogmáticos da ciência política que estabelece incumbir ao povo a definição dos rumos do
Estado. É o povo que, através de seus representantes, majoritariamente eleitos, e da
arrecadação tributária, quem pode definir a melhor aplicação dos recursos públicos144.

Na experiência brasileira, que sucedeu a de diversos outros países, a Suprema Corte


elevou seu nível de importância, assumindo papel de protagonismo, gozando, num recente
cenário, de um status em que uma deferência coletiva legitima a atuação judicial e valida as
decisões sobre variados campos num movimento constante de expansão. Vários fatores
convergem para esse papel de protagonismo, no entanto é preciso tentar desvendar em que

143
TRF1 0034002-35.2008.4.01.3400, AMS 0007607-93.2014.4.01.3400, REOMS 0067058-49.2014.4.01.3400,
REOMS 0047376-79.2012.4.01.3400
144 É a análise feita por Jeremy Waldron opondo-se à encampação do majoritarismo pelo ativismo judicial.
WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Clarendon Press. 1999. P. 232-254.
110

medida é adequada a decisão judicial que considera a proteção do direito fundamental à saúde
em detrimento da realidade fática e técnico-científica de ausência de autorização legal para a
circulação de medicamentos sem registro na ANVISA e, sobretudo, as linhas argumentativas
utilizadas para dar suporte às decisões.

O fenômeno do ativismo judicial perpassa por inúmeros fatores, como a crítica sobre
as instituições majoritárias, em especial pela demora na criação de soluções adequadas aos
novos contornos sociais postulantes de respostas concretas e transferência das
responsabilidades legislativas ao Judiciário com a inevitável transformação deste em
verdadeiro policy-maker. Esse movimento realça o deslocamento da centralidade acerca da
função normativa e administrativa, estabelecendo no Judiciário a função integralizadora dos
direitos sociais.

O movimento foi impulsionado no segundo pós-guerra, propondo-se, em linhas


gerais, a desconsiderar uma postura de soberania da lei e ver nas Constituições os verdadeiros
objetivos do Estado, afastando a ideia de mero conjunto de normas programáticas e
assumindo a forma de diploma recheado de significado axiológico, especialmente para a
defesa de direitos fundamentais. Nesse sentido, as referidas normas passaram a orientar os
trabalhos dos parlamentos e dos órgãos judiciários. Seguindo-se ao movimento norte-
americano, países europeus145 vivenciaram o crescimento do Judiciário como instância
competente para a guarda da Constituição e, por via de consequência, o Poder legitimado para
fazer o controle de leis além de maximizar os direitos fundamentais. Inegavelmente, esse foi
um dos fatores que contribuiu para o “empoderamento” de diversos Tribunais.

A postura ativa do cidadão mais reflexivo e consciente de seu papel no exercício e


expansão da cidadania, amparados por órgãos como o Ministério Público, a Defensoria
Pública e as associações fizeram com que questões, até então sonegadas, chegassem aos
Tribunais. A redemocratização e a garantia de direitos fundamentais viabilizaram a
exigibilidade de cumprimento de normas programáticas previstas na Constituição Federal.

A inércia do campo político não poderia ser entrave para o desenvolvimento do


campo social. A posição de uma espécie de “autismo” precisou ser afastada e os desejos
sociais passaram a se comunicar, formando uma rede ampliada em que as instâncias políticas,
por inúmeros motivos, optaram por negligenciar, fechando-se nas suas crises internas. Daí o

145
Em destaque o Tribunal Constitucional alemão com várias decisões paradigmáticas.
111

ressalto na função judiciária como alternativa para a pretendida maximização dos direitos
fundamentais.

Fato é que o movimento apontado encontra certa resistência, conforme as reflexões


trazidas por Boaventura de Souza Santos, discutindo os riscos da pura transferência de
atribuições políticas próprias do Legislativo e do Executivo e o surgimento de expectativas
positivas no Judiciário e as possíveis frustrações que podem decorrer dessas expectativas
equivocadas. Exigir que os Tribunais respondam por toda e qualquer demanda pode esbarrar
numa falta de capacidade operativa146.

Para Luis Roberto Barroso o conceito da expressão ativismo judicial pode ser
interpretada no sentido de englobar as vertentes de atuação judicial na integração de normas e
no controle de políticas públicas, assumindo feições de legitimidade quando dá máxima
abrangência aos princípios fundamentais consagrados na Constituição, ressalvando, contudo,
a necessidade de comedimento na interferência acerca de políticas públicas, devendo guardar
deferência em determinadas escolhas políticas147.

Ingeborg Maus apresenta uma abordagem sob um enfoque sociológico, que destaca a
mudança da visão depositada no Judiciário a partir da formação da consciência social que
passa a “venerar” as decisões judiciais a partir da idealização da figura paterna, ou seja, a
sociedade, ao se tornar órfã, busca restabelecer a centralidade. O impulsionamento das críticas

146
“Neste contexto – diferente de país para país, mas convergente no seu sentido geral -, temos mesmo vindo a
assistir, em alguns países, a um deslocamento da legitimidade do Estado: do poder Executivo e do poder
Legislativo para o poder Judiciário. Esta transferência da legitimidade é um processo gradual, nalguns Estados a
ocorrer mais rapidamente do que noutros. Esse movimento leva a que se criem expectativas positivas elevadas a
respeito do sistema Judiciário, esperando-se que resolva os problemas que o sistema político não consegue
resolver. Acontece que a criação de expectativas exageradas acerca das possibilidades de o Judiciário ser uma
solução é, ela própria, uma fonte de problemas. Quando analisamos a experiência comparada, verificamos que,
em grande medida, o sistema Judiciário não corresponde à expectativa e, rapidamente, de solução passa a
problema. Acresce que, se as expectativas forem muito elevadas, ao não serem cumpridas, geram enorme
frustração. Tudo isto ocorre num contexto de maior visibilidade social do sistema judicial, o qual, entretanto, se
tornou alvo e, por vezes, refém dos meios de comunicação social. Esta visibilidade alterou, profundamente, o
lugar do sistema judicial dentro da sociedade.” SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução
Democrática de Justiça. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2007. P.18
147 “A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na
concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois
Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da
Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do
legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com
base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de
condutas ou de abstenções ao Poder Público” BARROSO, Luis Roberto. Ativismo Judicial e Legitimidade
Democrática. Disponível em <http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf>,
acesso em: 15/07/2013
112

ao modelo liberal de ordenação legal, sobretudo em função do estado de bem-estar social


modificou a hermenêutica jurídica.

A autora esclarece a existência de críticas formuladas por aqueles que sinalizam uma
mudança no perfil da consciência coletiva, em que a figura paterna clássica, central e
dominante, cede espaço para uma autonomia capaz de extrair das interações sociais conceitos
autônomos objetivamente aferíveis. Para essa linha de pensamento, a formação do “eu” não
estaria mais centrada em refletir a imagem dominante do sujeito habilitado a solucionar todos
os carecimentos e adotar as decisões mais acertadas148.

Todavia, o processo de eliminação da assimetria produzia uma coletividade formada


por membro livres e iguais que, com o passar do tempo e a elevação inconsciente da sensação
de abandono, levava à reintrodução da figura paterna, capaz de, novamente, ditar as regras
aplicáveis ao clã. Um fator relevante nesse processo de retomada da centralidade consiste na
verificação da ausência de referenciais axiológicos e de padrões morais, o que abre a
oportunidade de inserção de sujeitos dispostos a assumir a função de censor dos “valores da
sociedade”.

É nesse contexto que a autora destaca o surgimento do Judiciário como instância


argumentativa capaz de promover decisões inquestionáveis para a consciência coletiva. As
discussões e processos políticos e sociais somente encontrariam a legitimidade se
contingenciados pela figura sacralizada do Judiciário enquanto superego da sociedade. De
acordo com Maus, estruturas políticas e jurídicas criam o ambiente adequado para a afirmação
dos Tribunais como autenticadores dos valores ideais, citando o modelo de jurisdição
constitucional norte-americana que além de permitir interferência na interpretação das
decisões políticas, produziu rol de juízes como verdadeiras personalidades149.

Ainda de acordo com Maus, na Alemanha há um sentimento de “veneração


religiosa” de sua jurisdição constitucional, contando, inclusive, com o apoio de forças
políticas antagônicas. As críticas às decisões do Tribunal contam com a suspeita e a
desaprovação da sociedade por serem consideradas antidemocráticas e violadoras do Estado
de Direito. Indica a tendência do Tribunal, sobretudo no pós-segunda guerra, de fazer emergir
um direito suprapositivo, baseado numa verdadeira jurisprudência de valores, onde a função

148
MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade. Tradução Geraldo de Carvalho e Gercélia
Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2004
149
Op. cit. P. 16
113

de julgar alinha-se com a proposta de maximização da densificação constitucional, pois a


Constituição, enquanto documento baseado em preceito fundamentais, deve admitir a
ampliação das representações axiológicas150.

A atividade das Cortes Constitucionais encontraria respaldo em enunciados


defendidos por teóricos como Dworkin, no sentido de que o Direito e a moral não podem ser
separados, isto é, os princípios morais são indissociáveis do conceito de Direito. Os textos
legais devem ser interpretados pelo juiz de acordo com as convicções morais objetivamente
aferíveis em determinada sociedade (community morality). A introdução da moral é capaz de
imunizar a decisão judicial contra as críticas e controles sociais pelo fato de o aparato
judicante do Estado conformar-se com um desejo superior moralmente aceito151.

A elevação do Judiciário ao último nível de consciência social tenta estabelecer um


método de aplicação do direito em sentido diverso do formalismo jurídico-positivista e
incorpora elementos de predileção variáveis e improváveis. Esse conteúdo metodológico
apoia-se numa pretensa convergência de interesses sociais, mas se desvincula de amarras
objetivas influenciando negativamente na “unidade do direito”152. Na perspectiva de inserir
conteúdos axiológicos à sistemática jurídica o Judiciário consolida-se como o superego, pois,
através de decisões “acertadas” ensina e corrige os indivíduos.

Contudo, o surgimento do Judiciário como censor da moral e definidor dos


comportamentos sociais merece algumas considerações, dado o seus reflexos sobre temas
próprios da ciência política. A legitimação superior permite a libertação do Judiciário das
amarras da lei, confrontando com a proposta inicial de adequação das decisões a preceitos
majoritários extraídos de processos políticos. Ao fundamentar decisões na retórica dos

150
“Contra o ‘domínio despersonificado da lei’ e sua base democrática, o Judiciário havia novamente valorizado
fortes elementos do domínio patriarcal e da decisão autônoma situacional ao relativizar matérias de leis
individuais envolvendo convenções morais e ‘valores’. Na autoencenação, como instância moral, está sua oferta
para a delegação do superego, por assim dizer, seu lado voltado para a libido social. Todavia, o output decisório
fático sequer chega perto de corresponder a esse autoentendimento e às expectativas sociais. Isso se aplica não
apenas a decisões imorais, mas também no que diz respeito à ambivalência dos conceitos morais do repertório de
fundamentação das decisões dos tribunais.” Op. cit. pag. 37
151
Vale destacar a crítica formulada por Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia ao destacar o equívoco de Maus
acerca da abordagem dada por Dworkin sobre o Direito e a moral. Para Alexandre, Dworkin entendia que os
conteúdos morais, éticos e pragmáticos eram importantes no processo legislativo e que, uma vez incorporada a
norma ao Direito, tais referenciais não podem mais ser invocados. Nesse momento, a jurisdição passa a contar
apenas com princípios jurídicos e não mais políticos. Ainda para Alexandre, a posição de Maus justifica-se em
razão da aproximação com as visões de Alexy e que, na verdade, este último autor é seria o responsável por
realizar uma aproximação entre o Direito e a moral ao defender, de maneira intransigente, a Corte Constitucional
alemã e a sua jurisprudência de valores. BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Ingeborg Maus e o Judiciário
como Superego da Sociedade. R. CEJ, Brasília, n. 30, p. 10-12, jul./set. 200.
152
Op. cit. P. 32.
114

argumentos morais, o Judiciário eleva ao seu exclusivo arbítrio os âmbitos interpretativos da


lei, conformando seu alcance de acordo com as suas expectativas. Ao ser compreendido como
última ou única instância moral limita a atuação dos demais poderes que, a ele, concedem
deferência e redirecionam os processos decisórios com o propósito de obter a chancela da
legitimidade153.

A ascensão do Judiciário ao status de superego coletivo desenvolve a consciência de


portador da tradição e fiador do interesse social, ou seja, o único sujeito apto a estabelecer
referenciais axiológicos capazes de decidir conforme uma consciência moral. No entanto, tal
condição apresenta os riscos da incerteza e da incorporação de argumentos metajurídicos que
viabilizam decisões construídas num utilitarismo fundamentado na moral ou, simplesmente,
no exclusivo alvedrio de quem o pratica, algo profundamente perigo para um regime
democrático154.

Diante dos indícios de aceitação social do modus operandi do Judiciário, a questão


de se levanta é “como as decisões são construídas?”155, pois o amplo espectro criado pela
“jurisprudência dos valores” aumentam os níveis de subjetividade e discricionariedade acerca
das escolhas tomadas pelos juízes. A pretensão de correção do direito pela moral, a despeito
da adesão social, esconde os riscos para a integridade do ordenamento jurídico. O debate
ganha contornos ainda mais desmesurados quando ingressa do plano dos direitos
fundamentais, pois, sob a afirmação de integralidade ou absolutização destes, as decisões
judiciais contam com a adesão já que fundamentadas em conteúdos humanitários e, por via de
consequência, inquestionáveis sob uma visão ética.

A denúncia apresentada por Maus procede, pois a liberdade incondicional da decisão


judicial viola liberdades políticas, criando arbitrariedades. A pauta atual do jurista é
compreender que a independência judicial não se confunde com liberdade do controle total
sobre a lei. O Estado de Direito representa o êxito da coletividade sobre as arbitrariedades

153
Exemplo ilustrativo da afirmação foi verificado na outorga da decisão acerca dos efeitos civis das uniões
homoafetivas. O legislativo não firmou posição, delegando ao Judiciário a definição sobre o tema.
154
Como afirmado por Lenio Streck “Ao que me parece, o que há nos ‘argumentos metajurídicos’ é, na verdade,
uma tentativa de ‘moralização do Direito’. Aposta-se no protagonismo judicial, considerado como inevitável
(conforme Kelsen já dizia). Mas o fato do intérprete atribuir o sentido não quer dizer que ele possa, sempre, dar o
sentido que lhe bem convier (como se houvesse uma separação integral entre texto e norma e como se estes
tivessem existências autônomas) e deixar de lado o texto constitucional. STRECK, Lenio Luiz. O Supremo não é
o guardião da moral da nação. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2013-set-05/senso-incomum-
supremo-nao-guardiao-moral-nacao> Acesso em 04/10/2017
155
STRECK, Lenio Luiz. Entre o ativismo e a judicialização da política: a difícil concretização do direito
fundamental a uma decisão judicial constitucionalmente adequada. Joaçaba, v. 17, n. 3, p. 721-732, set./dez.
2016
115

provocadas pela centralidade de um agente e é, portanto, fundamental combater a instituição


de uma metodologia que provoque o desvanecimento da lei. A autora constrói uma crítica
pertinente acerca daquilo que seria considerada uma autossuficiência do Judiciário e a figura
do juiz enquanto “encarnação da consciência viva da nação”.

3.5 Os conflitos entre os atores: Microjustiça X Macrojustiça

O ativismo judicial pode refletir-se também como uma possibilidade de atuações do


Judiciário frente aos demais Poderes, ora revelando-se no sentido de gênese normativa, ora
com significado de construção hermenêutica ampliativa ou supressiva das regras derivadas do
Legislativo. Pode ainda representar uma atuação de adequação entre as escolhas políticas dos
administradores e a realidade socialmente verificada. É uma constatação que revela um
grande número de variáveis na atuação judicial e que vem provocando profundos
questionamentos em todo mundo, principalmente sob o aspecto fundamental da tripartição de
poderes sistematizada por Montesquieu.

Vale destacar que nem todos os autores que abordam o assunto fazem distinção para
a expressão, considerando ativismo judicial toda e qualquer forma de interferência do
Judiciário em questões políticas através de demandas levadas pelos cidadãos para o interior
das Cortes156. Por outro lado há aqueles que conceituam o ativismo judicial como reflexo de
um movimento denominado neoconstitucionalismo em que o Judiciário investe-se na função
de protetor de direitos fundamentais consagrados no corpo da Constituição, ainda que para tal
propósito, adote critérios hermenêuticos adaptados pela conveniência, na tentativa de integrar
o ordenamento jurídico através de critérios contramajoritários157.

156
“Thus the judicialization of politics should normally mean either (1) the expansion of the province of the
courts or the judges at the expense of the politicians and/or the administrators, that is, the transfer of decision
making rights from the legislature, the cabinet, or the civil service to the courts, or at least, (2) the spread of
judicial decision-making methods outside the judicial province proper. In summing up we might say that
judicialization essentially involves turning something into a form of judicial process.” TATE, Chester Neal and
VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power. New York e London: New York University
Press, 1995. P. 15
157
“No neoconstitucionalismo, a leitura clássica do princípio da separação de poderes, que impunha limites
rígidos à atuação do Poder Judiciário, cede espaço a outras visões mais favoráveis ao ativismo judicial em defesa
dos valores constitucionais. No lugar de concepções estritamente majoritárias do princípio democrático, são
endossadas teorias de democracia mais substantivas, que legitimam amplas restrições aos poderes do legislador
em nome dos direitos fundamentais e da proteção das minorias, e possibilitem a sua fiscalização por juízes não
eleitos. E ao invés de uma teoria das fontes do Direito focada no código e na lei formal, enfatiza-se a
116

A expressão, como se percebe, é abrangente, revelando, em síntese, a expansão no


comportamento judicial nos processos decisórios dos Estados democráticos, assegurando uma
interpretação ampliada das normas constitucionais, de forma a garantir a efetivação de direitos
não contemplados pelas legislações ordinárias e por administradores públicos. Difícil, no
entanto, é a definição dos limites das normas em que se mostram imprescindíveis ao debate
político e se verifica a usurpação de competências pelo Judiciário. De certa maneira, a pior
forma de ativismo, máxime por conduzir a rupturas nas bases institucionais, é aquele que
desconsidera as opções legislativas, criando atrito com as escolhas e decisões do campo
político.

Na tentativa de organizar a definição, valendo-se das diversas vertentes conceituais


para a expressão “ativismo judicial”, podemos distinguir o termo conforme os motivos que
ensejaram a manifestação judicial. Por isso, sob o primeiro aspecto, a atuação ativista de um
Tribunal pode surgir por uma necessidade de integração do ordenamento jurídico, já que a
omissão mostra-se prejudicial, necessitando de correção da mora legislativa.

Sob esta perspectiva, o legislador ordinário não alcança completamente o comando


constitucional, gerando um vácuo capaz de amplificar injustiças pela impossibilidade de
obtenção, por parte da sociedade, de uma posição de vantagem. Por outro lado, surge ainda o
ativismo judicial, quando o legislador, embora criando uma regra, o faz de maneira
incompleta e deficiente. Neste caso, as cortes judiciais, valendo-se de princípios
constitucionais, interpretam as regras de maneira mais abrangente, de forma a extrair o
máximo de efetividade e contemplar sujeitos prejudicados pela atuação parcial do Legislativo.

A microjustiça, ou justiça do caso concreto, é realizada quando do julgamento dos


casos individuais levados ao Judiciário pelos jurisdicionados. Em tal situação, parte-se, a
priori, de interesses individualizados, cuja decisão repercutirá na órbita de interesses dos
envolvidos na relação processual. Por outro lado, a macrojustiça liga-se à solução de questões
que transcendem o plano individual, já que trasborda para questões sociais de interesse
coletivo. Como destacado, a referida função, dentro de uma perspectiva clássica, foi conferida
aos poderes Legislativo e Executivo. O avanço do Judiciário sobre tais interesses confronta

centralidade da Constituição no ordenamento, a ubiquidade da sua influência na ordem jurídica, e o papel


criativo da jurisprudência.” Sarmento, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil. Disponível em
<http://www.danielsarmento.com.br/wp-content/uploads/2012/09/O-Neoconstitucionalismo-no-Brasil.pdf>,
acesso em 15/07/2013
117

com uma dificuldade fulcral, decorrente da incapacidade de aferir as disponibilidades reais e


globais dos recursos e os reflexos da decisão.

A judicialização do direito à saúde, invariavelmente, repercutirá em decisões


políticas, sobretudo quando versar, por exemplo, sobre terapias de alto custo e tratamentos
experimentais. Os desejos de uma justiça distributiva convergem para o Judiciário quando não
observados pelos Poderes habilitados constitucionalmente. É nesse sentido que se destaca os
conflitos decorrentes do embate microjustiça X macrojustiça.

O ativismo judicial, portanto, igualmente se verifica quando os Tribunais decidem


sobre questões políticas, de opção do administrador público. Reside, basicamente, na conduta
do Judiciário, imiscuir-se no âmbito das escolhas políticas do Executivo para ditar o acerto ou
desacerto dos rumos definidos. A condução do Judiciário a ingressar na definição da
macrojustiça pode ser atribuída à atuação de órgãos como o Ministério Público e Defensoria
Pública além das entidades da sociedade civil organizada através de instrumentos como a ação
civil pública. A tutela dos direitos transindividuais invariavelmente tangenciam temas
relacionados às políticas públicas adotadas, na sua essencialidade, por decisões de políticas
governamentais.

Em apertada síntese, o ativismo judicial, derivado do conflito microjustiça X


macrojustiça, é o movimento de redirecionamento dos debates dos temas políticos para a
arena judiciária, isto é, o deslocamento do locus decisório passando, pretensamente, a contar
com uma filtragem mais discricionária e finalística. Os juízes não se sentem mais
constrangidos pelos primados da separação dos poderes, valendo-se de uma hermenêutica que
considera, ilimitada e demasiadamente, aspectos teleológicos e axiológicos, para compartilhar
a tomada de decisões políticas.

3.6 A panaceia principiológica: um deslumbramento hermenêutico

No início do século XX, com as tentativas de consolidação da doutrina do welfare


state, ao Estado foi atribuído o dever prestacional em relação a serviços como o de educação,
saúde, assistencial social, habitação, cultura, lazer, estruturação de regras trabalhistas, bens
fundamentais ao desenvolvimento social igualitário. No final, como objetivo maior, pretendia-
118

se alcançar o bem comum. As críticas ao modelo formalista positivista acarretou a introdução


de outros fatores tendentes a promover uma correção do Direito, visto que a lei já não era
mais suficiente para responder a todos os anseios sociais.

O ativismo judicial configura-se no momento em que é conferindo ao juiz poderes


interpretativos utilizáveis de acordo com sua conveniência. Faticamente, o tema enseja
debates permeados por argumentos cuja retórica reproduz as controvérsias entre a
previsibilidade e a incerteza, especialmente pela dificuldade de o campo político dar as
respostas de modo a solucionar as questões relacionadas aos direitos fundamentais. Essa
dualidade de perspectivas repercute no debate sobre o papel representativo dos tribunais e a
indeterminação e a discricionariedade judicial. Pode-se afirmar que o caráter formal da
democracia alinha-se com o plano majoritário, no entanto, é preciso considerar o conteúdo
substancial relacionada à concretização dos direitos fundamentais, estando, nessa dimensão, a
legitimação aspecto complementar do campo contramajoritário.

A validade do Direito é tema presente no debate jusfilosófico, pois se pretende


extrair um referencial capaz de conferir legitimidade a uma proposição produzida. No
positivismo jurídico, conforme assentado na teoria kelseniana, a aferição de validade de uma
norma jurídica depende de sua norma precedente que lhe dá sustento. Há, para Kelsen, uma
ideia de compatibilização entre um comando normativo e a sua norma precedente
hierarquicamente escalonada. O vértice da formação do ordenamento jurídico residiria na
“norma hipotética fundamental” que possuiria uma validade pressuposta pelos indivíduos e de
onde se irradiariam todas as demais normas. Dessa maneira, a sentença somente seria válida
se subsumida à lei e esta, por sua vez, somente seria adjetivada de válida se identificada com a
Constituição158.

Dentro das críticas formuladas contra o formalismo juspositivista, destaca-se aquela


que atribui a característica do empirismo exacerbado ou do modelo demasiadamente teórico
que se distancia da realidade dos fatos do mundo real. Tais objeções seguem no sentido de
reconhecer a necessidade de uma aproximação com a realidade social, considerando, portanto,
que a validade da norma também pressupõe critérios de aceitação ou, como destaca Dworkin,
uma “regra secundária fundamental”. A validade também possui matriz sociológica e não

158
STRECK, Lênio. “Ainda e sempre o problema da relação “regra-princípio”: uma análise em tempos pós-
positivistas”, in: George Salomão Leite e Ingo Sarlet (coord.). Jurisdição Constitucional, Democracia e Direitos
Fundamentais: estudos em homenagem ao Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Salvador: Juspodivm, 2012. Pag.
311-332.
119

apenas política. Na proposição Dworkiniana, o juiz teria o dever de manter uma integridade
do Direito, devendo, para isso, evitar decisões, potencialmente, baseadas numa reflexão moral
ou política. Para o autor, o juiz tem uma responsabilidade decisória prática, e os princípios
contribuem para esse afastamento das convicções pessoais.

O grande problema que se impõe ao debate da validade e aplicação do Direito está na


introdução de fatores flexíveis, numa suposta defesa da democracia através da
discricionariedade judicial. Se a validade da norma jurídica depende de um raciocínio
integrativo, resta o questionamento acerca dos limites hermenêuticos da decisão judicial. A
ausência de referenciais concretos preocupa no momento em que se atribui, ao juiz, a
discricionariedade ou decisionismo, indeterminando os limites interpretativos.

Ao colocar em xeque o positivismo jurídico, dentro da proposta de correção, abriu-se


margem para uma aplicação desmedida dos princípios, mormente com a inserção de
conteúdos axiológicos carregados de subjetivismos. Como batizado por vários autores, a
teoria pós-positivista ou neoconstitucionalista propõe, conforme a crítica de Daniel Sarmento,
a inserção de valores constitucionais na aplicação da norma, abrindo o campo para o ativismo
judicial159.

Ocorre que o movimento por muitos denominado neoconstitucionalismo não


apresenta uma teoria para identificar a validade do direito, mas sim uma proposta
procedimental argumentativa que toma a Constituição como o principal referencial normativo
do ordenamento jurídico160. É uma vertente de uma teoria contemporânea cuja preocupação
não se limita à análise estática do fenômeno jurídico, imprimindo um olhar dinâmico que

159
Conforme assinala Daniel Sarmento “No neoconstitucionalismo, a leitura clássica do princípio da separação
de poderes, que impunha limites rígidos à atuação do Poder Judiciário, cede espaço a outras visões mais
favoráveis ao ativismo judicial em defesa dos valores constitucionais. No lugar de concepções estritamente
majoritárias do princípio democrático, são endossadas teorias de democracia mais substantivas, que legitimam
amplas restrições aos poderes do legislador em nome dos direitos fundamentais e da proteção das minorias, e
possibilitem a sua fiscalização por juízes não eleitos. E ao invés de uma teoria das fontes do Direito focada no
código e na lei formal, enfatiza-se a centralidade da Constituição no ordenamento, a ubiquidade da sua influência
na ordem jurídica, e o papel criativo da jurisprudência.” SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no
Brasil. Disponível em <http://www.danielsarmento.com.br/wp-content/uploads/2012/09/O-
Neoconstitucionalismo-no-Brasil.pdf>, acesso em 15/07/2016
160
Como destacam Fernando Gama e Alexandre Garrido “Um sistema jurídico constitucionalizado caracteriza-se
pela existência de uma Constituição ‘invasora’, capaz de condicionar tanto a legislação quanto a jurisprudência e
a doutrina, assim como o conjunto das relações sociais que tem lugar em uma determinada comunidade jurídica.
O ordenamento jurídico encontra-se, consoante tal definição, ‘impregnado’ pela eficácia irradiante das normas
constitucionais que atinge os diferentes ramos do Direito, sejam eles de direito público ou de direito privado.”
SILVA, Alexandre Garrido da; MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Neoconstitucionalismo e pós-
positivismo: entre o judicial self-restraint e o judicial activism. in: Fernando Gama de Miranda Netto (org.),
Epistemologia & Metodologia do Direito, Campinas: Millennium Editora, 2011. P. 213/227
120

compreende as regras e os princípios dentro de uma estrutura argumentativa racional


invariavelmente vinculada a referenciais de moralidade.

Como defende Alexy, o neoconstitucionalismo metodológico confere normatividade


aos princípios constitucionais, consagrando, por sua vez, os direitos fundamentais. Esse viés
normativo seria o elo entre o Direito e a moral. Para o autor, cabe ao operador do direito
admitir e realizar uma argumentação jurídica aliada a conteúdos morais de modo a se realizar
uma pretensão de correção do Direito161. Acrescenta que, eventuais tensões devem ser
solucionadas pela ponderação, isto é, o exercício de fundamentação de uma decisão diante da
colisão entre direitos fundamentais. O sopesamento proposto pelo jusfilósofo alemão confere
uma discricionariedade decisória ao juiz, ainda que tal exercício hermenêutico permita lançar
mão de valores nas suas escolhas. Inevitavelmente, a referida teoria argumentativa, conduz ao
protagonismo judicial relativista.

A posição ora retratada abre um cenário de incerteza e instabilidade promovido pela


inserção de uma racionalidade axiológica que, apesar de meritório no aspecto ético,
desestabiliza as estruturas juspositivistas. A metodologia empregada por Robert Alexy, e
muito presente em algumas decisões do Supremo Tribunal Federal, confere, aos princípios,
“mandamentos de otimização” compreendendo que, diferentemente das regras que são
aplicáveis em caráter definitivo (tudo ou nada), tais mandamentos permitem a aplicação na
maior medida possível considerando circunstâncias fático-jurídicas162.

O neoconstitucionalismo, portanto, possui o caráter descritivo de um cenário


construído pelas transformações e anseios de uma nova realidade social e conquistas políticas.
A função promocial do Estado ganha contornos ampliados em que a moderação, não raro, é
subjetivamente afastada desequilibrando as estruturas formais do sistema jurídico. A ascensão
da teoria dos valores no âmbito do Judiciário, carregada de conteúdos ideológicos, dificulta
qualquer tentativa de se mediar as tensões metodológicas do Direito.

É preciso afirmar que o neoconstitucionalismo não desconsidera o direito posto,


contudo empreende uma leitura da Constituição e das leis em conformidade com conteúdos
axiológicos. Ao reconhecer o caráter normativo dos princípios abre-se o caminho para a

161
“Se e na medida em que essa pretensão tem implicações morais, fica demonstrada a existência de uma
conexão conceitualmente necessária entre direito e moral.” ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito.
São Paulo: Martins Fontes. 2011. P. 47.
162
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgilio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros. 2015. P. 90
121

inserção da moral na hermenêutica jurídica e, dessa maneira, permite que o aspecto descritivo
da regra compatibilize-se com a realidade dos fatos vivenciados pelos julgadores. Como
destacado, a referida doutrina não surge como um tertium genus na dicotomia juspositivismo
x jusnaturalismo, mas sim como uma técnica argumentativa em que o intérprete busca
legitimar a decisão por meio de uma racionalidade que confira correção e justiça aos olhos
dos destinatários.

O “oba-oba constitucional” identificado por Daniel Sarmento sinaliza para os riscos


decorrentes da aplicação irracional dos princípios já que juízes deslumbrados, em nome de
uma pretensa justiça, afastam-se de seu dever de fundamentação racional das decisões
judiciais e abrem margem para o decisionismo maquiado pelo conteúdo do “politicamente
correto”163. Os princípios conferem ao julgador o poder de transformar em verdadeiras
quaisquer premissas, impossibilitando a previsibilidade. Dificulta-se, inclusive, qualquer
tentativa de atribuir a adjetivação de certa ou errada, boa ou má, adequado ou inadequado,
pois o campo aberto pelos princípios é excessivamente amplo, comportando uma construção
argumentativa inclinada a contar com adesão de parte do grupo social diante da presunção de
justiça.

Centrando-se no tema do direito às prestações de saúde, o Supremo Tribunal Federal


vem ponderando as posições de defesa de argumentos capazes de proporcionar a
concretização de direitos fundamentais, necessitando decidir acerca da via mais adequada
para não provocar um desequilíbrio estrutural no funcionamento do Estado, que as diversas
teses surgem, ora no sentido de reconhecer a impossibilidade prestacional do Estado, ora para
conferir a integralização do direito fundamental. É possível extrair, de uma análise inicial, que
o Supremo Tribunal Federal adotou, em casos específicos, argumentos variados para
fundamentar suas decisões. Os princípios da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana
são exemplos de argumentos dispostos pela Corte para a defesa das teses voltadas para a
maximização das prestações de saúde.

Esse ambiente de incertezas e flexibilizações interpretativas, em que se confere ao


juiz ampla discricionariedade judicial em nome de um pragmatismo que entende ser
impossível dissociar o direito da realidade social. A oposição ao positivismo jurídico tornou-
se lugar comum, assumindo um sentido negativo as adjetivações de juiz legalista, exegético

163
SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: os dois lados da moeda. In: Livres e Iguais: Estudos de
direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2006. P. 200.
122

ou “boca da lei”. Nesse sentido, pretende-se conferir ao intérprete/aplicador a liberdade de


afastar a subsunção em nome da ponderação, ou seja, prestigiar os princípios posto que as
regras, na sua simplicidade normativa, não são capazes de se amoldar a todas as demandas
sociais, mormente em relação àqueles classificados como “casos difíceis”.

A discricionariedade judicial abre a possibilidade para a arbitrariedade e ao


voluntarismo dos juízes, pois ao magistrado é permitido eleger o princípio que entender mais
adequado à situação fática. O afastamento dos conteúdos metafísicos, promovidos pelo
positivismo jurídico, criou a um novo problema para a Filosofia do Direito. Os subjetivismos
interpretativos revelaram uma tendência de legitimar a atuação do juiz pelo fato deste ser
desbravador dos valores ocultos da regra.

Tal configuração, que destaca a discricionariedade principiológica e admite a


multiplicidade de respostas, precisa ser revista em favor da estabilidade e previsibilidade. Se é
certa a assertiva de que a rigidez das regras pode, em determinados momentos, colidir com a
complexidade e o dinamismo das relações sociais, igualmente é correto afirmar que a inserção
desmedida dos princípios produz excessos, sobretudo se consideradas as variáveis dos valores
de grupos econômicos, religiosos ou qualquer outro tipo de conteúdo moral.

O positivismo jurídico, sob um aspecto conceitual, estabelece-se como resultado de


um procedimento deliberativo, adotado por representantes que gozam, ao menos no sentido
ficcional, de conhecimentos necessários para a tomada de decisões que interferirão na
sociedade. Esta, por sua vez, orienta-se no sentido de acatamento e obediência geral às regras
criadas, pela simples concepção de que o sistema estabelecido funciona nos referidos moldes,
ou seja, pela crença de as regras são criadas por um órgão legitimada, e que deve observar um
procedimento, e, por outro lado, a comunidade em geral tem o dever de respeito, sob pena de
sanções.

Ainda que se possa questionar o positivismo jurídico pelo seu afastamento dos
conteúdos morais, dos questionamentos acerca da legitimidade do órgão responsável pela
criação das regras ou pela ilusória construção de respeitabilidade pelos indivíduos, é inegável
sua objetividade, especialmente, naquelas em que a elasticidade interpretativa poderia criar
mais incertezas e prejuízos, como ocorre na concessão de medicamentos destituídos de
registro perante os órgãos competentes.
123

Em muitos casos a aplicação da norma jurídica encontra várias proposições


possíveis. Nesse sentido, apresenta-se a teoria da argumentação jurídica na tentativa de
alcançar uma proposição normativa particular com a característica de conseguir reunir os
melhores fundamentos, isto é, as justificativas racionais mais adequadas ao caso. A decisão
judicial, assim como o Direito de modo geral, deve promover uma pretensão de correção,
pois, ao aplicar uma norma jurídica ele deve justificá-la bem como guardar a esperança de que
ela seja acolhida como correta pelas partes e por toda sociedade.

Portanto, resta evidente que a argumentação jurídica apresenta-se com papel


fundamental no tocante à concessão de uma solução que se revele adequada e acertada. A
construção da racionalidade decisória deve orientar a atuação judicial, assim como os demais
operadores do Direito.

3.7 A teoria das capacidades institucionais: uma tentativa de compatibilização

No trabalho intitulado Interpretation and Institutions164, Cass Sunstein e Adrian


Vermeule constroem a teoria denominada “Capacidades Institucionais” que se propõe a
estabelecer um método argumentativo para as discussões sobre a alocação do poder de
decisão entre instituições do Estado, a partir de seleções que considerem melhores
capacidades e métodos decisórios. De acordo com os autores, o problema central não está em
se identificar como, em tese, um texto deve ser interpretado, mas sim, como certas
instituições, considerando suas habilidades e limitações, podem interpretar um texto165.

O argumento elementar dentro da proposta das capacidades institucionais por ser


apontado a partir de considerações e análises empíricas sobre os efeitos de se atribuir a
prerrogativa decisória para determinado problema àquela instituição que, dentro de opções
possíveis, apresenta melhores condições de desempenhar a regulamentação. Exclui-se a
possibilidade de uma indicação abstrata e generalizante, reduzindo-se os reflexos da incerteza
e dos erros. Consiste, objetivamente, num mecanismo que procura considerar um argumento
de cunho mais genérico, ou seja, considerar que, dentro de uma estrutura orgânica, qualquer

164
SUSTEIN, Cass R. e VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Disponível em <
http://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1279&context=law_and_economics > acesso
em 10/11/2017.
165
Op. cit. P. 2
124

unidade de poder ou comportamento institucional deve considerar, reciprocamente, as


capacidades reais e os efeitos de uma decisão. Esse modelo incorpora importantes
componentes nos debates sobre eventuais sobreposições de competências, sobretudo quando
considerado, no caso específico do presente trabalho, as intervenções e escolhas judiciais
sobre os atos dos demais poderes.

A despeito de eventuais críticas contra a teoria das capacidades institucionais,


máxime por considerar apenas uma nova rotulagem para a separação dos poderes, há uma
coerência epistêmica que parte de conteúdos empíricos capazes de proporcionar comparações
das habilidades e limitações para atribuição das competências institucionais. A alocação das
funções deve ir além de um processo jurídico-formal, que tenha na Constituição ou em leis
seu único substrato legitimador, sendo necessário determinar-se a partir de capacidades reais
aferíveis objetivamente.

Outra questão fundamental expressa-se naquilo que os autores denominam “dynamic


effects”, que pode ser compreendido como as consequências, para os atores públicos e
privados, de escolhas feitas dentro de um cenário constitucionalmente instituído. É preciso
reconhecer a falibilidade dos juízes e, consequentemente, a possibilidade de erros pontuais,
não sendo este o problema do desequilíbrio institucional.

Os juízes enquanto seres humanos de carne e osso não se aproximam de figuras


heroicas ou olímpicas como aquelas descritas por François Ost 166. O problema está nas
reiterações dos equívocos interpretativos, que tenta se afastar da compreensão de um
desvalorizado do formalismo hermenêutico, incorporando outros elementos no debate como a
razoabilidade e a moralidade. O efeito dinâmico é, portanto, a possibilidade de se considerar
um cenário mais realista acerca das condições para a tomada de uma decisão pelo juiz.

Na verdade, o formalismo pode ser compreendido não como um método


interpretativo insuficiente, mas sim, em determinados aspectos, como uma resposta sensata e
pragmática para a discussão sobre os limites institucionais das desmedidas interferências
judiciais. Como destacado por Sunstein e Vermeule, a interpretação do Direito não pode ser
considerada sem resguardar questões institucionais, em especial medida nos temas regulados
por agências especializadas que sofrem com decisões de juízes generalistas. Teóricos como
Dworkin, que abordaram estratégias interpretativas, não se atentaram para o fato de que o

166
OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. In: Doxa, Cuadernos de Filosofia del
Derecho, n. 14, Alicante, 1993.
125

elemento humano (o juiz), e falível, e apenas avançam sobre questões ambiciosas por
entender que a teoria política é ineficiente ou inútil167.

No tocante às prestações de saúde, as teorias atuais de interpretação do direito não


proporcionam um referencial seguro e infalível com elevado grau de convicção. A abstração
recai sobre questões como democracia, legitimidade, competências e métodos, mas a análise
dos textos constitucionais e legais serve para fornecer elementos argumentativos num
primeiro plano, invariavelmente, sem considerar as repercussões ao longo do tempo as
consequências da decisão. As decisões judiciais afastadas o preestabelecido procedimento de
regulação sanitária sobre medicamentos são criticáveis sob o prisma das capacidades
institucionais, pois se realizam dissociadas de contextos empíricos e sem avaliar os efeitos
sistêmicos.

A experiência brasileira fornece exemplos que se amoldam aos riscos provocados


pelas interferências interinstitucionais e os custos provocados pelas consequências das
decisões ruins quando considerados seus efeitos dinâmicos. Na sequência, abordaremos casos
recentes desses desarranjos institucionais em que, a pretexto de uma hermenêutica perfeita,
determinadas instituições desvalorizam as limitações e habilidades e produzem interpretações
desfavoráveis à higidez do Direito.

Dentro dos inúmeros campos de verificação, no direito às prestações de saúde o


problema do ativismo judicial apresenta-se excessivamente dimensionado. Por tangenciar
conteúdos éticos, as decisões judiciais são as mais variadas, abarcando um grande número de
comandos voltados a tornar integral e universal o “direito à saúde”, ainda que, para tal
propósito, decisões governamentais acerca de políticas públicas sejam desconsideradas e, até
mesmo, o Estado seja obrigado a praticar uma ilegalidade.

167
“We have argued that issues of legal interpretation cannot be adequately resolved without attention to
institutional issues. An extraordinary variety of distinguished people have explored interpretive strategies
without attending to the fact that such strategies will inevitably be used by fallible people and with likely
dynamic effects extending far beyond the case at hand. Two mechanisms seem principally responsible for this
institutional blindness. One is a role-related trap: interpretive theorists ask themselves “how would I decide the
case, if I were a judge?”—a question whose very form suppresses the key consideration that the relevant
interpretive rules are to be used by judges rather than theorists. Another is a cognitive trap: specialists, such as
legal academics, criticize the insufficiently nuanced opinions issued by generalist judges in particular cases,
overlooking that the same judges might well have done far worse, over a series of cases, by attempting to
emulate the specialists’ approach. Overall, the key question seems to be, "how would perfect judges decide
cases?" rather than "how should fallible judges proceed, in light of their fallibility and their place in a complex
system of private and public ordering?" Op. cit. P. 46-47
126

A separação de poderes pressupõe a definição de desenhos institucionais no quais


determinadas funções devem ser acomodadas considerando as distribuições de competências
para conseguir resultados específicos. Nesse modelo de arranjos institucionais firma-se uma
presunção de adequação acerca das decisões assumidas, impedindo interferências que
extrapolem as balizas previstas na Constituição, dentro de uma proposta de controles mútuos
voltados para um funcionamento cooperativo e integrado. Tais atribuições são pré-dispostas
dentro da noção de especialidades funcionais complexas de necessário cumprimento, pois, do
contrário, o reposicionamento dos níveis de competência deslegitima a atuação institucional.
Como afirmado anteriormente, a teoria das capacidades institucionais não representa uma
nova roupagem para a separação dos poderes, mas se insere dentro de uma proposta de
superação da mera fundamentação jurídico-formal, para encontrar justificativas nas
competências firmadas a partir de dados empíricos e, portanto, reduzam os riscos das
incertezas decisórias.

Na medida em que os desacordos e tensões emergem, em função dos atritos entre as


esferas decisórias, o pretenso ideal coordenado e unitário dos fins estatais sucumbe, criando
ambiguidades e repetições, ou seja, um ambiente ideal para a instabilidade institucional. A
tese das “capacidades institucionais”168 deve ser utilizada como uma proposta argumentativa
capaz de reafirmar os compromissos orgânicos assumidos na Constituição. Decorre,
essencialmente, de análises sobre a definição das aptidões para o alcance dos melhores
decisões e resultados.

No contexto específico da certificação da confiabilidade de um medicamento, o


recurso argumentativo sistematizado pela teoria das capacidades institucionais é um caminho
para se fundamentar a exclusão da interferência do Judiciário diante das incertezas sobre os
níveis de confiabilidade das decisões que concedem fármacos sem o regular registro no órgão
de vigilância sanitária. A partir das capacidades institucionais são estabelecidos métodos
aptos a retirar ou, ao menos, diminuir a falibilidade dos resultados pretendidos,
particularmente, naqueles temas em que se exigem níveis elevados de sofisticação como
ocorre com as questões reguladas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE) e pela ANVISA.

168
Expressão cunhada por VERMEULE, Adrian e SUNSTEIN, Cass. Interpretation and Institutions. In: John M.
Olin Program in Law and Economics Working Paper No. 156, 2002. Disponível em <
http://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1279&context=law_and_economics > acesso
em 10/11/2017
127

É importante destacar que a definição das competências, dentro da proposta das


capacidades institucionais, não é fruto apenas de contextos normativos, embora seja elemento
importante na sua elaboração, mas é, sobretudo, consequência de formulações e
experimentações que permitem obter respostas correspondentes em situações similares e em
elevados níveis de segurança. Nesse sentido, ao se idealizar a inatividade decisória do juiz em
determinadas esferas, faz-se não apenas pela vedação legal, mas, especialmente, pelo
desejável acatamento em razão dos níveis de confiabilidade técnico-científicos emprestados à
decisão da instância competente. Tal grau de correção não se pode afirmar quando a atividade
judicial se espalha por campos cuja especificidade técnica revela-se fundamental e a
relativização, sob os argumentos de um suposto vácuo institucional, vulnera um cenário mais
amplo.

Sunstein e Vermeule destacam, no desenvolvimento da teoria das capacidades


institucionais, uma preocupação acerca das posturas orgânicas, destacando aquilo que eles
chamam de efeitos dinâmicos, isto é, as consequências das decisões, no tempo, para os atores
público e privado. Dentro do contexto que ora se analisa, significa dizer que o Judiciário deve
considerar as consequências das escolhas assumidas ao longo do tempo, dentro de uma
perspectiva de distribuição de capacidades.

O destaque da metodologia assumida pela ideia das capacidades institucionais não


reside apenas em sinalizar para uma necessária deferência entre as instâncias decisórias do
Estado, mas, também, por problematizar as consequências de decisões construídas em
diferentes teorias. Não se confunde, portanto, com as consequências de uma decisão pontual,
já que o juiz é falível enquanto homem, mas com os efeitos sobre o equilíbrio institucional da
adoção ampla de diferentes decisões.

No contexto do direito à saúde, as decisões judiciais, em regra, fundamentam-se em


termos ideais, ou seja, dentro de um plano ideal de proteção de algo inconteste como a vida.
No entanto, na composição das capacidades institucionais, é justificável abandonar a melhor
posição ideal em proveito da “second best”, isto é, daquela decisão que, embora não ideal
individualmente, produza efeitos gerais melhores. Uma decisão que se valha de regras
interpretativas diretas, sem considerar os arranjos institucionais, mostra-se imprecisa ou
incompleta169.

169
“These examples illustrate that, at the very least, institutional analysis is necessary, even if not sufficient, to
an adequate evaluation of interpretive methods. It is of course true, in these examples, that some first-best
128

É possível identificar nas decisões a invocação do princípio da separação entre os


poderes. Na verdade, consiste em tese fazendária que tenta refutar o acolhimento da pretensão
sob a alegação de que a concessão de prestação de saúde via Judiciário afronta a proposta de
independência entre os poderes. Conforme sustentam as defesas estatais, a definição das
políticas públicas é função administrativa e, portanto, não cabe aos juízes imiscuir-se no tema
sob o risco de quebra da convivência harmônica. No caso, denota-se, mais uma vez os riscos
revelados pelos conflitos institucionais e, como já destacado, os confrontos orgânicos
decorrem de uma disputa velada pelo protagonismo no plano político.

Há nítidos choques que impedem que o funcionamento cooperativo entre as


instâncias de poder. A interpretação conferida à palavra “independência”, no contexto atual,
revela uma disputa intestinal pela defesa das prerrogativas e afastamento de qualquer tentativa
que possa usurpá-las. Como afirmado em passagem anterior dessa obra, a proposta defendida
por Hegel acerca dos poderes estatais é de coordenação e cooperação, aproximando-se em
maior grau, portanto, com a segunda característica prevista no art. 2º CFRB (harmonia).

A despeito do desejo do Executivo de se instituir com a exclusividade de definir as


prestações de saúde, o Judiciário, no geral, não costuma acatar a tese defensiva, mormente
naquelas situações que revelam a ineficiência administrativa. Dentro da concepção de respeito
aos direitos fundamentais, o Judiciário impõe providências cominatórias efetivadoras diante
das omissões injustificadas pelos administradores públicos.

Ocorre que a hermenêutica constitucional, que confere aos integrantes das


instituições – em especial o Legislativo e o Judiciário – a função construtivista por indivíduos
bem intencionados nas suas finalidades, mas, naturalmente, falíveis demanda uma
interpretação faticamente inclusiva e viável. A visão romântica e idealizada do juiz perfeito e
capacitado para proferir a decisão mais acertada, partindo de uma interpretação “justa” e,
portanto, incontestável, sucumbe à realidade dos resultados. Como destaca Daniel Sarmento,

account is needed in order to define judicial error. Our minimal point is that the first-best account, taken by
itself, is necessarily incomplete. It is impossible to derive interpretive rules directly from the first-best account,
because institutional considerations always intervene. An intentionalist account of statutes’ authority, by itself,
tells us nothing about whether real judges should consult or not consult legislative history; a theoretical
injunction to avoid absurd outcomes, by itself, tell us nothing about whether real judges should be licensed to
use an absurdresults doctrine. In any of these settings, certain findings about institutional capacities might cause
the proponent of the first-best account either to adopt or reject the interpretive doctrine in question. Theory
without institutional analysis spins its wheels, unable to gain traction on the question of what interpretive rules
real-world judges should use.” Op. cit. P. 23
129

três fatores podem contribuir para o comprometimento da capacidade dos juízes na


concretização de uma hermenêutica constitucional ótima170.

Para o autor a sobrecarga de trabalho decorrente do elevado número de processos


dificultaria a adequada análise diante de casos de complexa resolução que demanda uma
interpretação minuciosa e sofisticada diante da singularidade de cada caso e, nesse sentido,
haveria necessidade de se empregar uma teoria hermenêutica que funcione adequadamente
diante de um contexto de uma jurisdição voltada para a solução de volumes enormes de
conflitos. Inevitavelmente, o magistrado enfrentará hard cases, sendo forçoso apoiar-se em
uma metodologia decisória mais mecanicista (subsunção a regras) e menos variável
subjetivamente (ponderação entre princípios)171.

Outro ponto destacado por Sarmento consiste na inabilidade dos juízes em lidar com
questões próprias de outros campos do saber. Apesar da aptidão para o enfrentamento das
questões jurídicas, o magistrado brasileiro, no geral, mostra-se inábil quando a
interdisciplinariedade surge no contexto do mérito da controvérsia deduzida em juízo. A
problemática das chamadas políticas públicas é um exemplo adequado dessa amplificação da
cognição do julgador, pois, inevitavelmente conteúdos de economia e política merecerão a
consideração no momento da decisão judicial.

Por fim, igualmente relevante para o debate suscitado pelo autor, existiria outra
limitação decorrente da dinâmica processual. O processo foi assentado sobre bases próprias
para solução de conflitos bilaterais de justiça comutativa. Há uma demanda para se repensar
um modelo estrutural capaz de proporcionar o enfrentamento de problemas de uma justiça
distributiva, em que se permita a participação de múltiplos atores interessados e,
eventualmente, afetados com a decisão judicial172.

Como destacado, a teoria das capacidades institucionais surge como um refinamento


da separação dos poderes no momento em que se assenta em premissas ideais de distribuição

170
Como adverte o autor “Em síntese, a hermenêutica constitucional não deve ser construída a partir de
idealizações contrafáticas dos intérpretes, sejam elas o ‘juiz Hércules’ de Dworkin, o legislador que encarna a
vontade geral do povo, ou até mesmo o dirigente da agência reguladora completamente técnico, apolítico e
independente. No debate jurídico brasileiro, é preciso superar a cegueira diante das capacidades institucionais
reais dos agentes que interpretam e aplicam as normas constitucionais, para construir teorias mais realistas, que
possam produzir, na prática, resultados que otimizem os valores constitucionais.” SARMENTO, Daniel.
Interpretação Constitucional, Pré-compreensão e Capacidades Institucionais do Intérprete. In: SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel e BINENBOJM, Gustavo. Vintes anos da Constituição Federal de 1988.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2009
171
Op. cit. P. 318
172
Op. cit. P. 319
130

e definição das competências institucionais, afastando os riscos de uma metodologia


interpretativa que coloque em risco os ideais de equilíbrio e cooperação entre as instituições
estatais. Não se trata de uma defesa intransigente e estática que remonta, por exemplo, a tese
da insindicabilidade do mérito administrativo, mas de um empirismo que sirva de norte para
definir, adequadamente, as atribuições estatais, ou seja, que a partir de uma expertise se possa
afirmar com segurança que tal ou qual entidade está melhor habilitada para o desempenho de
determinada função.
131

CAPÍTULO IV – A TENTATIVA DE CONSTRUÇÃO DE UMA RACIONALIDADE


DISCURSIVA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

4.1 Direito à saúde: um campo fértil ao idealismo argumentativo

A relevância do tema está em se definir, analiticamente, a atual posição do Judiciário


na concretização do direito à saúde. Embora a discussão acerca da definição da correta
aplicabilidade de recursos públicos espraie-se sobre outras searas, como a educação básica ou
assistência social, percebemos que é na saúde o grande problema a ser equacionado, pois não
raros são os casos em que a decisão reside sobre quem vive ou quem morre.

Investigar os fundamentos relevantes sobre o tema permite situar o problema bem


como identificar as soluções a partir as técnicas argumentativas. No atual contexto de
estímulo dos precedentes judiciais, estabelecer um padrão acerca da racionalidade jurídica é
questão central dentro de um sistema normativista das decisões judiciais. A partir da
representação dos signos é possível identificar a presença – ou não – de uma uniformidade,
capaz de proporcionar um referencial decisório ou se as variações marcam a atuação da Corte
e, nesse sentido, impedem a criação de uma convicção em razão das peculiaridades que
marcam cada caso.

A decisão judicial, considerada dentro do plano da argumentação jurídica, é


produzida através da linguagem, ou seja, um conjunto de signos aptos a estabelecer uma
estrutura comunicacional. Uma regra é descrita através de um conjunto de símbolos com a
finalidade de criar uma representação e o intérprete, no seu labor, estabelece um significado.
Ocorre que o mesmo signo pode produzir interpretações diferentes. É sob essa perspectiva
que é importante compreender o sentido semântico da norma aplicado pelo intérprete no seu
trabalho argumentativo e o Supremo Tribunal Federal, dentro da sua competência
constitucional, surge como um referencial importante considerando a abrangência e
vinculação de suas decisões.
132

Diante da necessidade de se fixar um recorte para a pesquisa, serão investigados os


acórdãos sobre a prestação de saúde concessivos de medicamentos desprovidos de registro na
entidade responsável pela vigilância sanitária no país. A abordagem tangencia a discussão
sobre a atuação judicial substitutiva das funções administrativa e legislativa.

O direito fundamental à saúde surge como um ambiente sujeito aos influxos dos
argumentos ideais, sobretudo em razão de uma consciência desenvolvida por valores naturais
capazes de justificar as críticas às teses que sustentam o caráter negativo das prestações em
certas situações. A Constituição, no art. 196, ao estabelecer a saúde como um direito de todos
e um dever do Estado, amplificando seu alcance de acessibilidade universal, criou espaços de
discricionariedade para o legislador. Alexy estabelece que tais espaços podem ser divididos
em espaços estruturais e espaços epistêmicos. No primeiro caso o legislador atua dentro dos
limites constitucionalmente dispostos, ou seja, naquilo que a constituição não ordena e nem
proíbe, ela libera e, nesse sentido, o legislador atua dentro desses espaços considerando as
finalidades, os meios certos/idôneos e a ponderação entre os valores dentro do quadro
constitucional173.

Por outro lado, nos espaços epistêmicos, ou de conhecimento, o problema não está
em definir os espaços de atuação, dentro daquilo que não é ordenado ou proibido e, portanto,
liberado pela Constituição. A questão está em se definir os limites da capacidade do
legislador, isto é, dentro de um quadro de incerteza. Dentro desse cenário, Alexy sustenta que
o legislador deve intervir tomando como referencial as premissas verdadeira a partir de
elementos empíricos. Logo, o legislador, formalmente legitimado, deverá exercer uma
discricionariedade, por meio do conhecimento cientificamente comprovado, para normatizar
e, tais escolhas, deverão ser respeitadas pelos Tribunais, inclusive as Cortes
Constitucionais174.

Por isso, precisamos compreender quais os limites de atuação do Supremo Tribunal


Federal ao decidir sobre as prestações de medicamentos não registrados pelo órgão de
vigilância sanitária, considerando os espaços epistêmicos e normativos. É preciso analisar se

173
ALEXY, Robert. “Ponderação, jurisdição constitucional e representação”. Constitucionalismo Discursivo.
Trad. Luís Afonso Heck. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2011. P. 79-80
174
É nesse sentido que destacam Miranda Netto e Lacombe “Alexy estabelece o princípio formal da
competência decisória do legislador democraticamente legitimado, o que significa que as decisões relevantes
para a sociedade são da responsabilidade do legislador e a Corte Constitucional deve respeitá-las.” MIRANDA
NETTO. Fernando Gama; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Representação argumentativa: fator retórico
ou mecanismo de legitimação da atuação do Supremo Tribunal Federal? Disponível em <
http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3589.pdf> acesso em 11/12/2017.
133

acertada a decisão do legislador ao proibir o uso de substâncias destituídas de registro a partir


de uma valoração empírica e se o STF deve posicionar-se de maneira autocontida ou se
legitimar de forma contramajoritária.

Por isso, os argumentos apresentados pelo Supremo Tribunal Federal devem ser
analisados detalhadamente para se compreender a atuação específica da corte neste “caso
difícil”. A saída encontrada pela Corte Constitucional deve ter o cuidado de considerar os
riscos de uma retórica que pode ser entendida como antidemocrática quando o pressuposto
dialógico entre as instâncias do Poder estatal são excluídas do processo construtivo do
ordenamento jurídico. Desconsiderar a representação democrática desestabiliza a harmonia
pretendida no texto constitucional.

A interpretação constitucional representa, na contemporaneidade, um dos problemas


centrais dos debates sobre as Teorias do Direito. A tese da atribuição da força normativa às
Constituições conciliada à ideia de efetividade, especialmente verificadas após os grandes
conflitos bélicos do século XX e a difusão dos ideais do Welfare State, alterou,
substancialmente, o cenário ao estabelecer uma prevalência das normas constitucionais. A
superioridade da Constituição passou a definir os limites para as possibilidades interpretativas
de todas as outras normas integrantes do ordenamento jurídico. As Cortes Constitucionais,
dentro deste cenário, assumiram o relevante papel na hermenêutica constitucional, sendo
instadas (como ocorre no caso brasileiro) reiteradamente a decidir por meio de uma
interpretação do ordenamento jurídico com as lentes das normas constitucionais.

4.2 Os referenciais para obtenção dos dados

A pesquisa foi realizada coletando dados no sítio eletrônico do Supremo Tribunal


Federal. Foram consideradas as decisões que tratavam do registro de medicamentos na
ANVISA. No levantamento dos precedentes, em que foram utilizados os parâmetros “saúde”,
“medicamento” e “registro” foi possível perceber que, somente a partir de 2000, O STF
passou a julgar tais conflitos.

Foram identificadas decisões monocráticas no âmbito de pedidos de suspensão de


liminar (SL) e suspensão de tutela antecipada (STA) sobre o tema; uma decisão no âmbito de
134

Ação Direta de Inconstitucionalidade, caso que ganhou notoriedade por sinalizar mais um dos
conflitos institucionais entre o Legislativo e o Judiciário, pois aquele aprovou lei permitindo a
circulação de substância sem registro na ANVISA e um recurso extraordinário cuja
repercussão geral restou reconhecida. Todas as decisões foram analisadas com o propósito de
estabelecer os referenciais decisórios adotados por cada magistrado.

Na análise dos fundamentos esposados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal


foram considerados, no geral, as teses de mérito, desconsiderando-se as questões anexas de
conteúdos formais como, por exemplo, o cabimento dos instrumentos processuais utilizados, a
legitimidade dos demandantes, ausência de agir dos postulantes. Entendemos que a
identificação das razões relevantes para o levantamento acerca do perfil decisório do STF
deve estar centrado na identificação dos fundamentos de mérito175. Todavia, nas decisões
monocráticas dos Ministros, especialmente no plano dos recursos, colacionamos alguns
julgados que, embora tratando de questões processuais, de maneira anexa serviram para obter
posições argumentativas de alguns julgadores, permitindo a identificação de um perfil
decisório.

Em alguns casos, os julgados foram agrupados de acordo com o Ministro-presidente


diante da invariabilidade da similaridade das questões controvertidas e dos fundamentos
utilizados no acórdão. A metodologia, portanto, pautou-se pela objetividade, sem, contudo,
perder o cuidado com a análise na identificação da ratio decidendi.

No levantamento, outro ponto relevante foi buscar a identificação dos fundamentos


determinantes nas decisões monocráticas e colegiadas com o propósito de estabelecer
possíveis referenciais decisórios quando considerados os Ministros em suas atuações
individuais e coletivas. Ao se analisar os votos dentro dessa perspectiva tenta-se identificar,
também, se a regra do colegiado pode interferir no sentido da posição assumida por um
Ministro quando comparado com suas decisões monocráticas.

175
No levantamento realizado, não se considerou destituído de registro medicamentos off label (ARE956045),
isto é, substâncias registradas para um determinado grupo de pacientes mas que eram prescritos por médicos para
outras pessoas. Situação muito comum quando considerada as faixas etárias previstas na certificação de
circulação fornecida pela ANVISA, mas que passavam a ser receitadas para pacientes inseridos em outro grupo
etário. Na hipótese, apesar de registrado, o medicamento apresenta dúvidas acerca de sua segurança e eficácia
diante da ausência de estudos clínicos comprobatórios quando destinados, por exemplo, ao tratamento pediátrico.
Em tais casos, o medicamento encontra-se registrado, cabendo ao especialista prescrever ou não a substância.
Desse modo, entendemos que essas situações ultrapassam o objeto da presente pesquisa.
135

4.2.1 As decisões monocráticas da Presidência do STF

Neste item, realizamos uma análise sobre as decisões monocráticas tomadas pelos
presidentes do Supremo Tribunal Federal, no exercício de uma de suas atribuições instituída
no art. 4º da Lei n.º 8437/92; art. 25 Lei n.º 8038/90; art. 15 Lei n.º 12016/2009 e art. 13,
XVII e art. 297 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. São pedidos de
suspensão de liminar, suspensão de tutela antecipada e suspensão de segurança dirigidas ao
Tribunal Superior. De acordo com os referidos dispositivos, compete ao Ministro-presidente a
apreciação monocrática de suspensão dos efeitos da decisão impugnada.

O STF estabeleceu entendimento no sentido de ser competente para julgar os pedidos


de suspensão dos efeitos das decisões desde que verificados três requisitos básicos: (a) ser a
decisão impugnada proferida por tribunal de justiça ou tribunal regional federal em única ou
última instância; (b) ter a potencialidade de causar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança
ou à economia pública e (c) ser baseada em controvérsia de índole constitucional176. Quanto a
este último requisito, dos julgados analisados, reconheceu-se o cabimento por entender que a
questão controvertida estaria refletida diante da necessidade de interpretação do art. 196 da
Constituição Federal.

Trata-se de incidente processual cuja decisão assume verdadeira conotação política,


pois o juízo valorativo conferido ao julgador reside na aferição de conformidade entre o ato
judicial impugnado e o risco de dano à ordem, à segurança, à saúde ou à economia pública.
No caso, a contracautela surge diante da potencialidade lesiva aos interesses públicos
relevantes destacados na legislação. O caráter político conferido ao presidente do Tribunal
não implica em desmedida discricionariedade, mas sim na verificação de razões,

176
Nesse sentido “EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA.
LIMINAR CONCEDIDA. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO. PRESSUPOSTOS. DECISÃO DE ÚLTIMA OU
ÚNICA INSTÂNCIA. REGIMENTO INTERNO. FORÇA DE LEI. RECEPÇÃO PELA
NOVA ORDEMCONSTITUCIONAL. 1. Suspensão da execução de liminar. Lei 8038/90, artigo 25, e RISTF,
artigo 297. Legislação especial que, de modo explícito, não inseriu na competência do Presidente do Supremo
Tribunal Federal o poder de suspender a execução de liminares concedidas por Tribunal Superior. 2. Para o
deferimento do pedido indispensável que se trate de decisão proferida, em única ou última instância, pelos
Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal. Ademais, necessária que a
causa tenha por fundamento matéria constitucional e que haja a demonstração inequívoca de que a execução
imediata do provimento liminar causará grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia. Precedente. 3.
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Inaplicabilidade. Alegação improcedente. As disposições do
Regimento Interno da Corte foram recebidas pela Constituição, que não repudia atos normativos anteriores à sua
promulgação, se com ela compatíveis. Precedente. Agravo regimental a que se nega provimento.”STA n.º 10
Ag.Regimental. Relator Min. Neri da Silveira
136

suficientemente, consistentes hábeis a determinar a suspensão de eficácia da decisão


impugnada diante dos interesses públicos e coletivos preponderantes177.

Na análise destacamos o número do registro dos autos no STF, o Ministro-


Presidente, a data da decisão e o(s) fundamento(s) determinante(s) do julgado. Objetivou-se
identificar a cronologia, o perfil dos magistrados e eventuais padrões argumentativos nas
decisões. Portanto, na sequência, exporemos, sinteticamente, os fundamentos determinantes
conforme as análises obtidas na pesquisa.

STA n.º 34. Min. Nelson Jobim. 07/06/2005 (Tenovir) – O caso tratava da pretensão de
obrigação de fazer de portador do vírus da AIDS para condenar, solidariamente, a União, o
Estado de São Paulo e o Município de São Paulo ao fornecimento de medicamentos para o
tratamento da doença, sendo certo que dois dos medicamentos pretendidos estavam
registrados e um sem registro. Neste último caso, a decisão apresenta fundamentação escassa,
limitando-se a afirmar que a ausência de registro não constituiria violação grave à saúde
pública. Nesse sentido, manteve a decisão do Tribunal de origem que havia determinado o
fornecimento do fármaco.

O Ministro-Relator, portanto, não enfrentou a questão da possibilidade de


fornecimento sem registro, limitando-se a considerar que a suspensão dos efeitos da decisão
impugnada não merecia acolhida diante da ausência de um dos pressupostos para o
requerimento pretendido.

SS n.º 2.873. Min. Nelson Jobim. 23/03/2006 (Miglustat) – O Ministro entendeu que a
ausência de registro não seria fundamento, por si só, para se vedar o uso do medicamento no
Brasil. A norma programática, prevista no art. 196 CFRB, não pode representar mero roteiro
para as decisões administrativas devendo ser considerada a efetividade do direito fundamental
à saúde. A saúde é o mais nobre bem da personalidade, merecendo a concretização das
normas programáticas. Considerou, ainda, a existência do periculum in mora inverso, hábil a
justificar a manutenção da decisão impugnada que concedeu o fornecimento do medicamento,
ou seja, o deferimento do pedido de suspensão poderia culminar na morte do paciente.

SL n.º 166. Min. Ellen Gracie. 14/06/2007 – Neste caso o paciente buscava o fornecimento
do medicamento denominado Avastin que, no momento da propositura da ação (dez/2006)

177
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o poder público. Salvador: Juspodivm. 2017
137

não possuía registro. A ministra indeferiu o pedido de suspensão formulado pelo Estado do
Rio de Janeiro, mantendo-se o fornecimento do medicamento. Fundamentou a decisão
considerando que o medicamento passou a ser comercializado no país em abril de 2007, com
o regular registro na ANVISA.

Neste caso, não se posicionou sobre a (im)possibilidade de concessão de


medicamento sem registro.

STA n.º 198 (22/12/2008), STA n.º 244 (11/11/2008), SL n.º 319 (28/10/2009), STA n.º 361
(20/11/2009), STA n.º 348 (27/11/2009), SS n.º 3.854 (10/12/2009), SS n.º 4.045
(07/04/2010), SS n.º 3.962 (07/04/2010), SS n.º 3.989 (07/04/2010), STA n.º 260
(20/04/2010). Min. Gilmar Mendes – Em todos os processos verificou-se uma repetição de
fundamentos nas decisões do Ministro-presidente. Inicialmente fez-se uma análise sobre o
cabimento das medidas de contracautela apresentados pelo Estado, fixando-se o entendimento
no sentido de que a suspensão da eficácia somente deveria ser acolhida diante da flagrante
violação ao interesse público, revelados pelo risco de lesão à ordem, à saúde, à segurança e à
economia pública. Quanto ao ponto específico da atuação judicial autorizativa de
fornecimento de medicamento sem registro, o magistrado considerou que os protocolos
clínicos e diretrizes sanitárias devem ser observados pelo Judiciário178.

Dessa maneira, o Ministro destacou a importância em se preservar o comando


estabelecido no art. 12 da Lei n.º 6360/76 que veda a circulação de substâncias
medicamentosas sem o prévio registro na ANVISA, excepcionando-se, tal regra, apenas nos
casos de dispensa de registro de medicamentos adquiridos por meio de organismos
multilaterais internacionais para utilização em programas de saúde pública do Ministério da
Saúde, conforme, expressamente, autorizado pela Lei n.º 9782/99. Foi possível perceber que

178
Conforme trecho extraído da decisão do Ministro nos autos da STA 260 “O segundo dado a ser considerado é
a existência de motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS. Há casos em que se
ajuíza ação com o objetivo de garantir prestação de saúde que o SUS decidiu não custear por entender que
inexistem evidências científicas suficientes para autorizar sua inclusão. Nessa hipótese, podem ocorrer, ainda,
duas situações distintas: 1º) o SUS fornece tratamento alternativo, mas não adequado a determinado paciente; 2º)
o SUS não tem nenhum tratamento específico para determinada patologia.
A princípio, pode-se inferir que a obrigação do Estado, à luz do disposto no artigo 196 da Constituição,
restringe-se ao fornecimento das políticas sociais e econômicas por ele formuladas para a promoção, proteção e
recuperação da saúde. Isso porque o Sistema Único de Saúde filiou-se à corrente da “Medicina com base em
evidências”. Com isso, adotaram-se os “Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas”, que consistem num
conjunto de critérios que permitem determinar o diagnóstico de doenças e o tratamento correspondente com os
medicamentos disponíveis e as respectivas doses. Assim, um medicamento ou tratamento em desconformidade
com o Protocolo deve ser visto com cautela, pois tende a contrariar um consenso científico vigente.” Disponível
em < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2633941> acesso em
31/10/2017
138

em todos os processos analisados pelo Ministro Gilmar Mendes, na qualidade de presidente


do STF, somente foram concedidos os medicamentos já registrados ou que obtiveram o
registro superveniente, ou seja, no curso da demanda.

A exceção à tese firmada pelo Ministro restou evidenciada no julgamento da STA n.º
244. No processo o magistrado indeferiu o pedido de suspensão da liminar, mantendo-se a
decisão do Tribunal de Justiça do Paraná que concedeu medicamento sem registro.
Fundamentou a decisão que autorizou o fármaco no perigo de dano inverso a ser suportado
pelo paciente em tratamento.

SS n.º 4.316 (07/06/2011) e SS n.º 4.304 (19/04/2011) Min. Cezar Peluso.– O Ministro-
Presidente entendeu que, a despeito da ausência de registro do fármaco na ANVISA, o
medicamento Soliris era reconhecido pela comunidade médica como eficaz para o tratamento
da Hemoglobinúria Paroxística Noturna. A ausência de registro na entidade de vigilância
sanitária não constituiria óbice para o fornecimento do medicamento, havendo, inclusive, a
previsão legal para a circulação de substâncias medicamentosas adquiridas por meio de
organismos multilaterais internacionais para uso em programas de saúde do Ministério da
Saúde conforme previsto na Lei n.º 9782/99. Afirmou, ainda, não existir risco de lesão à
ordem, à economia ou à saúde pública que pudesse justificar a suspensão da segurança.

Ainda nos fundamentos, afirmou que apesar da ausência de registro e de uma suposta
proibição prevista no art. 12 da Lei n.º 6360/76, o medicamento seria o único,
reconhecidamente, eficaz no tratamento da doença e, desse modo, haveria verdadeiro risco de
dano inverso, permitindo o fornecimento do remédio. Embora interposto agravo interno pelo
Estado de Rondônia contra a decisão monocrática, não houve o julgamento colegiado em
função do pedido de desistência decorrente do falecimento da parte agravada.

STA n.º 761 e SL n.º 815. Min. Ricardo Lewandowski. 07/05/2015 – O primeiro consistia
em pedido de suspensão de tutela antecipada formulado contra decisão do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal que havia mantido a decisão do juízo de primeira instância determinando o
fornecimento de medicamento (Soliris) indicado para o tratamento de doença grave
(hemoglobinúria paroxística noturna). Já na SL n.º 815 o processo versava sobre o
fornecimento do medicamento Sofosbuvir e Simeprevir para tratamento da doença cirrose
hepática decorrente de contaminação pelo vírus da hepatite C. Em ambos os casos, a
discussão central consistia no fornecimento de medicamento não registrado na ANVISA. A
sessão de julgamento de ambos ocorreu no dia 07 de maio de 2017, sendo certo que no mês de
139

março a ANVISA divulgou o registro dos medicamentos Sofosbuvir e Simeprevir. Em ambos


os processos reconheceu-se a competência do Supremo Tribunal Federal para a apreciação do
pedido foi fixada pelo fato de a controvérsia versar sobre o direito fundamental à vida e à
saúde (arts. 5º, 6º e 196 CRFB), conforme destacado pelo Ministro Ricardo Lewandowski.

Apesar da possibilidade, sob a ótica jurídico-administrativa, de se constituir para a


administração pública uma lesão ao patrimônio público, em razão dos altos custos dos
medicamentos pretendidos pelos pacientes, o Ministro considerou que os municípios
requerentes da suspensão das medidas concessivas não comprovaram qualquer das lesões
indicadas, indeferindo o pedido de suspensão.

O Ministro destacou que, a despeito da ausência de registro na ANVISA, o


medicamento já estava registrado na Food and Drug Administration, entidade congênere
norte-americana179. Ademais, na ponderação de valores em conflito privilegiou-se o direito à
vida e perigo de dano inverso no caso de não concessão par proporcionar uma vida
minimamente digna.

Contra a decisão monocrática do Ministro-presidente, houve a interposição de agravo


interno, com o objetivo de provocar a manifestação do plenário do STF. No julgamento
realizado pelo Pleno, estavam presentes, além do Ministro-presidente, os Ministros Celso de
Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Teori Zavascki e
Roberto Barroso. Não participaram da sessão os Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e
Luiz Fux. Neste caso, foi possível perceber que os Ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia,
Ricardo Lewandowski e Roberto Barroso autorizaram a concessão de medicamento
desprovido de registro.

Importante destacar que, futuramente, o STF julgaria situação semelhante (ADIN n.º
5501 que decidiu pela suspensão dos efeitos da lei n.º 13.269/2016 que autorizou a circulação
da substância denominada fosfoetanolamina sintética)180. Conforme será analisado a seguir,
tais Ministros assumiram uma posição diametralmente oposta, entendendo que a ausência de

179
Conforme destacou o Ministro-Presidente no acórdão “No entanto, pontualmente, quando há comprovação de
que uma medicação ainda não aprovada pela ANVISA é a única eficaz para debelar determinada enfermidade
que coloca em risco a vida de paciente sem condições financeiras, entendo que o Estado tem a obrigação de
custear o tratamento se o uso desse mesmo medicamento for aprovado por entidade congênere da agência
reguladora nacional.” Disponível em <
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8625237>acesso em 26/10/2017
180
Os argumentos serão explicitados adiante em tópico próprio
140

registro seria óbice para a circulação. Sinaliza, novamente, para a instabilidade decisória
dentro da corte.

SL n.º 1.019 (27/07/2016) e SL n.º 1.022 (28/07/2016). Min. Ricardo Lewandowski –


Nestes pedidos de suspensão de liminar os pacientes buscavam tratamento para a hemofilia.
No caso, havia um tratamento regulamentado pelo Sistema Único de Saúde consistente na
utilização de substância (combinado de Fator VIII) capaz de elevar os níveis de coagulação
sanguínea. De acordo com os requerentes, buscava-se elevar a quantidade das doses com o
objetivo de aumentar a reposição do fator de coagulação. No caso, o Ministro-presidente
deferiu o pedido de suspensão da liminar para determinar, ao Estado, o fornecimento da
substância nos moldes já fornecidos pelo SUS. Reafirmou a tese de que a ausência de registro
de medicamento pode ser desconsiderada, desde que evidenciado o risco de dano inverso pela
ausência de outra terapia disponível e a existência de reconhecimento da eficácia pela
comunidade médica ou o registro do medicamento em entidade congênere.

O autor pretendia, com a demanda, o fornecimento de determinada substância em


doses superiores àquelas já disponibilizada pelo SUS. A partir de perícia realizada nos autos,
restou afirmada a ausência de comprovação de resultados positivos após a modificação da
dosagem tradicional.

O caso não retratava discussão acerca do (in)existência de registro, sendo a questão


tratada como mero elemento anexo (obiter dictum). Contudo, optamos por manter a análise,
pois se reafirmou a tese de autorização de circulação de fármaco destituído de registro na
agência de vigilância sanitária nacional desde que existente registro em entidade congênere.

STA n.º 828 – Ricardo Lewandowski. 04/04/2016 – No julgamento do pedido liminar de


suspensão da tutela antecipada, o Ministro entendeu que não se poderia autorizar a circulação
da fosfoetanolamina sintética, conforme determinado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,
por não encontrar tal substância registrada na ANVISA e em nenhuma outra entidade
congênere. Permitiu, contudo, a circulação da substância enquanto existente em estoque no
laboratório do Instituto de Química de São Carlos. Em 08 de novembro de 2016, a Min.
Cármen Lúcia, sucessora na presidência do STF, determinou a suspensão de todas as decisões
concessivas em questão nos autos, respeitando-se, dessa forma, a posição assumida pelo
plenário do Tribunal quando do julgamento da liminar na ADIN n.º 5501.
141

Novamente, a despeito da inexistência de registro pátrio e estrangeiro, o Ministro


manteve o fornecimento da substância durante a existência em estoque. A tese da existência
mínima de protocolos de segurança, eficácia e viabilidade restou sufragada por uma outra
variável, até então, não disposta em nenhuma outra decisão.

SS n.º 5192. Min. Cármen Lúcia. 07/08/2017 – Tratava-se de pedido de suspensão de


segurança em razão de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Em mandado de
segurança a impetrante buscava o fornecimento do medicamento sem registro na ANVISA,
denominado Spinraza destinado ao tratamento da atrofia muscular espinhal. Na decisão, a
ministra-presidente considerou que a liminar deveria ser indeferida para manter a
determinação de fornecimento do medicamento. Fundamentou a decisão com o argumento de
que o não fornecimento poderia gerar dano inverso.

SL n.º 558 e SL n.º 633. Min. Cármen Lúcia. 08/08/2017 – Nos processos buscava-se o
fornecimento do medicamento Soliris. A ministra Cármen Lúcia (presidente) entendeu que
deveria se considerar a ponderação de valores com inevitável prestígio ao direito à vida. Neste
caso, discutiu-se, ainda, o problema do fornecimento de medicamentos de alto custo pelo
Estado, pois a substância pretendida no processo já foi considerado o medicamento mais caro
do mundo, conforme destacou a revista Forbes. O fármaco chega a custar, para cada paciente,
409,5 mil dólares por ano181. Todavia, não foram analisados os fundamentos específicos pelos
quais a ministra justificava o fornecimento do medicamento pelo Estado, colhendo-se, apenas,
aqueles relacionados à concessão pela ausência de registro.

No sítio eletrônico da ANVISA consta que o medicamento foi registrado em 13 de


fevereiro de 2017, ou seja, antes do julgamento do caso em análise. Contudo, a ministra não
mencionou tal fato.

Contra as decisões foram interpostos agravos internos, provocando o julgamento pelo


plenário (plenário virtual), com o não provimento do pedido de suspensão por unanimidade de
votos. Concluiu-se que, diante da não comprovação da lesão à ordem e do risco de dano
inverso o Estado foi obrigado a fornecer medicamento sem registro na ANVISA.

4.2.2 Decisões monocráticas nos recursos e ações originárias

181
Disponível em < https://www.forbes.com/2010/02/19/expensive-drugs-cost-business-healthcare-rare-
diseases.html> Acesso em 01/11/2017
142

AI n.º 809.734. Min. Cármen Lúcia. 06/08/2010 – Tratava-se de Agravo de instrumento


contra decisão que inadmitiu o recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal
de Justiça do Estado da Bahia que manteve a decisão interlocutória proferida pelo juízo
singular, autorizando o fornecimento de medicamento sem registro na ANVISA. A ministra
negou provimento ao agravo de instrumento por entender que a decisão recorrida
extraordinariamente não seria decisão definitiva, mas sim decisão interlocutória concedida em
sede de análise sumária. Somente seria admissível o recurso extraordinário no caso de
decisões definitivas. Com a decisão, a ministra manteve a autorização para a circulação de
medicamento sem registro.

AI n.º 824.946. Min. Dias Toffoli. 23/04/2013 – Neste caso buscava-se o fornecimento de
medicamento não registrado na ANVISA, mas constante da lista dos medicamentos
excepcionais fornecidos pelo estado do Rio Grande do Sul, ora agravante. O Ministro
considerou que não seria hipótese de aplicação do regime da repercussão geral, pois se
tratavam de situações diversas182. No recurso extraordinário n.º 657.718, primeiro processo
em que se reconheceu a repercussão geral do tema, de acordo com o Ministro, discute-se a
concessão de medicamento sem registro de origem estrangeira o que não se assemelhava ao
caso do Agravo de instrumento em análise. Como fundamento da decisão considerou que é
dever do Estado implementar o direito à saúde fornecendo os meios necessários para a sua
concretização.

Contra a decisão houve a interposição de embargos de declaração recebidos como


agravo interno, provocando o julgamento colegiado pela primeira turma do STF. Os Ministros
Luiz Fux, Dias Tofolli e Rosa Weber votaram pela manutenção da decisão agravada. O
Ministro Marco Aurélio estava presente mas não votou. Desta maneira, autorizou-se a
circulação de medicamento sem o prévio registro.

RE n.º 854.570. Min. Marco Aurélio. 21/01/2015 – O Ministro determinou a devolução do


recurso extraordinário para origem para aplicação da sistemática da repercussão geral
(sobrestamento). A consequência prática da decisão foi a manutenção dos efeitos da decisão
proferida pelo Tribunal de Justiça recorrido que determinou o fornecimento do fármaco.

182
Como se verá adiante, não há fato ou fundamento determinante que permita estabelecer uma distinção entre o
caso julgado e aquele em que foi reconhecida a repercussão geral. Ambos discutem a exigibilidade de
medicamento sem registro. Seria hipótese de suspensão dos feitos idênticos.
143

ARE n.º 842.853. Min. Cármen Lúcia. 16/02/2015 – A ministra entendeu que deveria negar
seguimento ao agravo de instrumento interposto contra a decisão do Tribunal de Justiça do
Mato Grosso do Sul que inadmitiu o recurso extraordinário interposto, pois não houve o pré-
questionamento da matéria na origem. A consequência prática da decisão foi a de impedir o
fornecimento do medicamento sem registro.

Petição n.º 5.828. Min. Edson Fachin. 06/10/2015 – Tratava-se de caso que a peticionante
impugnava a decisão do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo que suspendeu a
decisão que concedia a fosfoetanolamina sintética. O tribunal de origem considerou que
haveria risco grave de dano à ordem e à economia pública conforme art. 4º Lei n.º 8437/92. O
Ministro entendeu que a ausência de registro não configuraria risco de dano à ordem e a
economia pública. Concedeu a medida cautelar com base na presença dos requisitos do
fummus boni juris e do periculum in mora. Quanto à plausibilidade dos fundamentos
debatidos na causa, o ministro entendeu que a ausência de registro de medicamento na
ANVISA não representa risco de lesão à ordem pública bem como, quanto ao risco da
demora, considerou que a negativa do fornecimento poderia tornar ineficaz a medida diante
da possibilidade de ofensa ao direito à vida, ou seja, seguiu a teoria do periculum in mora
inverso. Autorizou, portanto, o fornecimento da substância.

Ação Cautelar n.º 4.094. Min. Edson Fachin. 27/01/2016 – O Ministro entendeu que a ação
cautelar, dada a acessoriedade, só poderia sem proposta nos casos de ação principal de
competência originária do STF, o que não era o caso. A requerente pretendia o fornecimento
da fosfoetanolamina sintética. O Ministro Edson Fachin considerou, ainda, que não houve a
prova da necessidade do tratamento, pois a requerente não apresentou laudo médico
comprobatório da doença. Negou seguimento para a ação, impedindo o fornecimento da
substância.

ARE n.º 959.299. Min. Luis Roberto Barroso. 14/04/16 – O Ministro determinou o retorno
dos autos para a origem para aplicar o regime da repercussão geral.

MS n.º 34.145. Min. Celso de Mello. 18/04/16 – A Associação Médica Brasileira propôs o
mandado de segurança para questionar a lei que autorizava a fosfoetanolamina sintética. No
entendimento do Ministro-Relator o mandamus não foi conhecido, pois a própria associação
médica ajuizara, na sequência, ADIN n.º 5.501 onde obteria, posteriormente, decisão liminar
de suspensão da lei. Seguiu entendimento sumulado no enunciado 266 da Corte no sentido de
não ser cabível o mandado de segurança para questionamento de lei em tese.
144

RE n.º 965.359. Min. Teori Zavascki. 30/06/16 – Tratava-se de recurso extraordinário contra
decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que ordenou ao Estado fornecer medicamento
sem registro. O recurso não foi conhecido por falta de pré-questionamento, isto é, o Estado de
São Paulo, ora recorrente, não impugnou, na origem, a questão da proibição do Estado em
fornecer medicamento sem registro. Outra questão processual que culminou na manutenção
da decisão recorrida com a manutenção da decisão que concedeu o fornecimento do
medicamento sem registro. O Ministro destacou, ainda, na decisão, que o medicamento fora
registrado pela ANVISA em 10 de agosto de 2015.

ARE n.º 937.288. Min. Marco Aurélio. 01/08/2016 – A questão versava sobre o
fornecimento de medicamento sem registro. Conforme laudo pericial, não havia comprovação
acerca da eficácia do medicamento para o tratamento da doença, reconhecendo a adequação
do tratamento disponibilizado no SUS. Contudo o Ministro considerou que a parte pretendia a
revisão de questões fáticas, não comportadas em sede de recurso extraordinário, negando
provimento ao agravo no RE para isentar o Estado do dever de fornecer medicamento sem
registro.

Reclamação n.º 24.759. Min. Cármen Lúcia 01/09/16 – A ministra entendeu que a
reclamação somente se aplica quando a autoridade da decisão do STF for violada, mas, para
essa verificação, é preciso aferir a identidade dos motivos determinantes na questão julgada
pela Corte e aquela proferida por outro órgão, supostamente ofensiva. No caso o Tribunal de
Justiça de São Paulo decidiu favoravelmente ao fornecimento de medicamento sem registro
(Revlimid), estando ausente a identidade material com o caso julgado na ADIN n.º 5501 que
cuidava da suspensão da lei que autorizava a circulação de substância diversa. A ministra
relatora não conheceu da reclamação, o que significou, na prática, a manutenção do
fornecimento do medicamento irregular.

RE n.º 998.542. Min. Edson Fachin. 28/09/2016 – O Ministro-relator determinou a


devolução por conta sobrestamento decorrente da aplicação do regime da repercussão geral.
No caso o recorrente buscava modificar decisão da Turma Recursal do Juizado Especial que
manteve a decisão de improcedência a respeito da pretensão de fornecimento da
fosfoetanolamina sintética. Manteve-se, dessa maneira, a rejeição do pedido de fornecimento
da substância sem registro.

ARE n.º 959.299 Min. Luis Roberto Barroso. 05/06/17 – O Ministro determinou a
devolução por conta da aplicação do regime da repercussão geral (sobrestamento). A decisão
145

teve como consequência prática a manutenção temporária da decisão que determinou o


fornecimento do medicamento sem registro. Contudo, conforme informado pela própria
ANVISA, o medicamento pretendido (Mabthera) possuía registro regular, mas permaneceu a
discussão, nos autos, sobre o dever do Estado em fornecer medicamentos de alto custo, tema
que, igualmente, teve a repercussão geral reconhecida.

Petição n.º 6.626. Min. Dias Toffoli. 28/04/17 – O Ministro entendeu que a via processual
utilizada não era adequada, razão pela qual não conheceu da ação por incompetência do STF.
Dessa maneira, nem o requerimento de liminar em tutela provisória de urgência antecipada,
nem o mérito foram analisados, permanecendo, portanto, a decisão do juízo de origem que
negou o fornecimento da substância fosfoetanolamina sintética.

4.2.3 Suspensão de Tutela Antecipada n.º 175

O pedido de suspensão da tutela antecipada, formulado pela União, foi analisado


pelo Ministro Gilmar Mendes, presidente do STF na ocasião. No processo, o STF, por
unanimidade183, negou provimento ao agravo regimental interposto pela União para manter a
decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que determinou à União, ao Estado do
Ceará e ao município de Fortaleza o fornecimento do medicamento.

Três eram as teses centrais debatidas no processo: dever do Estado na concessão de


medicamento sem registro na ANVISA, o reconhecimento da solidariedade entre os entes
federativos nas prestações de saúde e o fornecimento de terapias de alto custo. A primeira
questão teve uma solução adequada a uma realidade superveniente ao ajuizamento da
demanda, pois o medicamento Zavesca teve o registro deferido pela agência de vigilância
sanitária em 22 de janeiro de 2007, restando o debate apenas quanto aos outros fundamentos.

Embora pudesse parecer desnecessária a análise, diante do registro do fármaco, o


presente processo possuiu um elemento relevante e, portanto, digno de análise. O Ministro
Gilmar Mendes, considerando a relevância da matéria, convocou audiência pública, realizada
nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009, onde as contribuições prestadas pelos

183
Participaram da sessão de julgamento os Ministros Gilmar Mendes (relator), Celso de Mello, Marco Aurélio
Mello, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia e Dias Toffoli.
146

especialistas ouvidos conferiram relevância ao feito, resultando, inclusive, na elaboração da


recomendação n.º 31 do Conselho Nacional de Justiça184.

Como destacado no acórdão, o problema da judicialização vai além da determinação


do efetivo cumprimento de políticas públicas já incorporadas ao Sistema Único de Saúde. A
discussão revela-se complexa, pois atribui ao intérprete o dever de distinguir os motivos para
a não concessão. A negativa administrativa pode decorrer (a) de uma omissão política, (b) de
uma decisão administrativa em não fornecê-la ou (c) de uma vedação expressa acerca do
fornecimento. Especialmente sobre esta última, restou evidente, a partir dos esclarecimentos
prestados pelos especialistas, que ressalvadas as exceções, expressamente, previstas, é vedado
à administração pública fornecer a substância desprovida de registro. A ausência de
comprovação de benefício clínico afronta a ideia de preservação da saúde dentro de uma
perspectiva macro.

Nesse sentido, centrando-se na questão problematizada no presente trabalho, o


debate sobre a ausência de registro foi orientada no sentido de rejeitar a pretensão diante da
inexistência da comprovação sobre as evidências curativas. A desconformidade com os
protocolos sanitários contraria o consenso científico e a segurança das terapias
disponibilizadas para a coletividade e, portanto, inegáveis os riscos de potenciais danos.

Reitera-se que, a superveniência de registro do medicamento pretendido na demanda,


foi determinante para a retirada da centralidade da questão no acórdão. O recurso da União
não foi provido pelo fundamento da solidariedade entre os entes federativos e por reconhecer
que não havia indícios de lesão à ordem, à economia e à saúde pública capazes de infirmar do
dever prestacional do Estado nas políticas de saúde.

4.2.4 Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.501 (medida cautelar)

Optamos por destacar o presente julgado em razão da grande repercussão produzida


pelas notícias veiculadas acerca da “cura do câncer”. As informações de descoberta de uma

184
De acordo com o item I, b.2 da Recomendação n.º 31 de 30 de março de 2010, o CNJ resolve recomendar aos
Tribunais de Justiça dos Estados de Tribunais Regionais Federais que “Evitem autorizar o fornecimento de
medicamento ainda não registrados pela ANVISA, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções
expressamente previstas em lei”. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/recomendao-
n31-30-03-2010-presidncia.pdf> Acesso em 03/11/2017
147

substância (fosfoetanolamina sintética) capaz de curar os indivíduos acometidos de neoplasia


causou enorme comoção social a partir do ano de 2014. A substância produzida em pequena
escala e fornecida gratuitamente pelo Instituto de Química de São Carlos da Universidade de
São Paulo passou a ser objeto de diversas demandas judiciais que objetivavam obrigar o
Estado e a USP a fornecer o composto químico.

Importante um breve registro acerca da substância fosfoetanolamina sintética. O


composto químico, desenvolvido na década de 1970 no Instituto de Química de São Carlos
(IQSC) da Universidade de São Paulo pelo Doutor Gilberto Orivaldo Chierice. A
fosfoetanolamina consiste em um composto orgânico produzido pelo fígado humano e por
células de alguns músculos de mamíferos. Auxilia na formação de membranas celulares e
estimula uma espécie de “morte celular programada” (apoptose) sendo, esta função
importante já que auxiliaria o sistema imunológico, eliminando células malignas. Contudo, a
substância é naturalmente produzida pelo corpo em pouca quantidade.

O êxito da pesquisa realizada no IQSC foi o de conseguir sintetizar a versão artificial


da substância e, de acordo com os experimentos realizados em ratos, considerou-se que o
aumento da dosagem da substância no corpo humano ajudaria o sistema imunológico no
reconhecimento e posterior eliminação das células cancerosas, viabilizando a cura do câncer.
No entanto, um dos pontos críticos sobre a produção e circulação da fosfoetanolamina
sintética residia no fato da ausência de observância dos protocolos procedimentais para a
demonstração da eficiência e segurança da droga, ou seja, etapas como estudos clínicos
envolvendo em seres humanos não foram realizados, retirando a possibilidade de certificação
clínica de viabilidade da substância.

Em 2016 o Congresso Nacional aprovou a da Lei n.º 13.269 que autorizou o uso da
substância denominada fosfoetanolamina sintética pelos pacientes diagnosticados com
neolplasia maligna. De acordo com o diploma aprovado em 13 de abril de 2016, restou
autorizado o uso da substância, desconsiderando os protocolos estabelecidos pela agência de
vigilância sanitária para o registro e circulação de medicamentos no território nacional. No
contexto normativo instituído pela lei, a utilização da substância poderia ocorrer por livre
escolha dos pacientes, bastando a apresentação de laudo médico diagnosticando a
enfermidade e a assinatura do termo de responsabilidade pelo paciente ou seu representante
legal.
148

Diante da ausência de comprovação da eficácia e segurança do composto e da


aprovação da circulação pela indigitada lei, a Associação Médica Brasileira propôs a ação
direta com pedido de liminar para suspender os efeitos da lei bem como obter a posterior
declaração de inconstitucionalidade. A entidade alegava, em síntese, que a inexistência de
estudos clínicos comprobatórios da efetividade da substância seria um óbice intransponível,
inclusive por via de lei autorizativa. Ademais indicava os riscos de esvaziamento e
precarização do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária.

Os órgãos responsáveis pela edição da lei impugnada apresentaram argumentos


variados para defender o ato. Nas razões da sanção, a Presidência da República suscitou a
repercussão social criada pela necessidade de se proporcionar uma vida digna aos pacientes
com câncer. Já as casas legislativas, fundamentaram a aprovação na existência de estudos
científicos que revelavam a baixa toxidade da substância e, portanto, a inexistência de riscos
concretos para os seus usuários.

No julgamento realizado pelo Plenário do STF, realizado em 15 de maio de 2016, o


Tribunal, por maioria, suspendeu, em caráter liminar, os efeitos da Lei n. 13.269/2016.
Votaram pela suspensão dos efeitos da lei os Ministros Marco Aurélio (relator), Luis Roberto
Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Restaram
vencidos os Ministros Edson Fachin (revisor), Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes
que pretendiam aplicar a técnica da interpretação conforme para autorizar o uso da substancia
apenas para aqueles pacientes em estado terminal. Não participou do julgamento o Ministro
Celso de Mello.

Na tentativa de identificar um referencial argumentativo no julgamento da ADIn


5501, optamos por separar os fundamentos utilizados pelos grupos formados pela tese
vencedora e vencida. De início, verificou-se que os temas não sofrem variações, ou seja, os
Ministros adotaram os mesmo fundamentos, alterando, apenas, a perspectiva da abordagem.

4.2.4.1 Tese vencedora

Para os Ministros que se posicionaram pela suspensão liminar dos efeitos da Lei n.º
13.269/2016, há uma inegável solidariedade entre entes federativos na obrigação de proteger
149

o direito à saúde. Contudo, o diploma impugnado não se amoldava a esse propósito ao


permitir a circulação de substância sem a comprovada segurança e eficiência. Haveria, de
fato, um dever do poder público no sentido de impedir a circulação da substância, evitando a
exposição da população aos riscos à saúde185.

Na visão dos Ministros que se posicionaram pela suspensão cautelar dos efeitos da
lei impugnada, direito à saúde não seria efetivado com a autorização do uso de substância sem
um rigoroso controle científico, afastando, desse modo, charlatanismos e prejuízos aos
pacientes186. O Ministro-Relator destacou que representava requisito fundamental para a
circulação de um medicamento a prévia aprovação na ANVISA, nos termos do comando
estabelecido no art. 12 da Lei n.º 6360/76. A lei impugnada suprimiria, casuisticamente, essa
exigência.

Outro fundamento adotado pelo relator residia no fato de que, embora a Constituição
estabeleça o dever do Estado, incluindo-se nessa concepção todos os Poderes, é preciso
respeitar as repartições de atribuições ficando a cargo do Executivo a criação de autarquias
considerando a descentralização técnica para a fiscalização de atividades específicas, não
cabendo ao congresso, por lei, burlar a regra de distribuição das funções. Nesse ponto,
portanto, destacou-se da ideia de harmonia e independência entre os Poderes.

O Ministro Roberto Barroso seguiu a mesma linha de fundamentação apresentada


pelo relator. De acordo com o julgador, o consumo de medicamentos sem o prévio
procedimento de registro pode gerar danos aos pacientes e, quando Legislativo cria lei sem
considerar a expertise e capacidade técnica por meio de procedimentos de fiscalização da
ANVISA, coloca em risco a saúde da população. A exigência de registro constituiria
verdadeira cautela do órgão de regulação sanitária, não sendo mero procedimento burocrático

185
Conforme destacou o Ministro-Relator é “hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja,
proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto suficiente a atender ao valor maior atinente à
preservação da dignidade do homem (agravo de instrumento nº 232.469/RS, 12 de dezembro de 1998; recurso
extraordinário nº 244.087/RS, 14 de setembro de 1999; recurso extraordinário nº 247.900/RS, 20 de setembro de
1999; recurso extraordinário nº 247.352/RS, 21 de setembro de 1999, todos de minha relatoria).” Disponível em
< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039 > Acesso em 17/10/2017
186
Conforme asseverou o Ministro-Relator “É no mínimo temerária – e potencialmente danosa – a liberação
genérica do medicamento sem a realização dos estudos clínicos correspondentes, em razão da ausência, até o
momento, de elementos técnicos assertivos da viabilidade da substância para o bem-estar do organismo humano.
Salta aos olhos, portanto, a presença dos requisitos para o implemento da medida acauteladora.” Disponível em
< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039 > Acesso em 17/10/2017
150

e dispensável. A circulação do medicamento produz um risco de dano diante da ausência de


evidências científicas de segurança e eficácia da substância187.

O risco está presente também no fato de a lei autorizar o uso da substância bastando
a apresentação de laudo médico indicativo da existência de neoplasia maligna e a assinatura
do termo de consentimento de responsabilidade, ou seja, dá-se por livre escolha do paciente,
não sendo exigida a prescrição médica específica.

Em parte de seu voto o Ministro Barroso, assim como o relator, também destacou a
ideia de violação à separação dos poderes já que invade função regulamentar privativa do
Executivo. Citou a teoria da reserva da administração que estabelece a existência de um
núcleo funcional essencial conferido à administração e imune às ingerências do parlamento188.
O Legislativo, ao desconsiderar os procedimentos de natureza tipicamente administrativos da
agência de vigilância sanitária, viola a separação dos poderes. De acordo com o voto do
Ministro, a atuação da ANVISA deve ser respeitada por todos os órgãos de controle, inclusive
o Legislativo189.

Por fim, o Ministro Barroso valeu-se de outra questão para sustentar a tese da
inconstitucionalidade da lei. Destacou a resolução RDC nº 38/2013 da ANVISA que institui
um programa de uso compassivo de medicamento novo promissor para a utilização por
determinados grupos de pacientes (portadores de doenças debilitantes graves e/ou que
ameacem a vida e sem alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados no país)190.

187
“Não se trata aqui de negar às pessoas diagnosticadas com câncer a esperança de cura de doença tão grave e
devastadora. Em verdade, o que se busca é garantir que as expectativas de melhora com o uso de substâncias
medicamentais sejam fundadas em evidências científicas e clínicas, sem expor os pacientes a maiores riscos de
danos à saúde ou a tratamentos inócuos, que constituam somente ilusão.” Disponível em <
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039 > Acesso em 17/10/2017
188
A citada teoria é encontrada na defesa apresentada por CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina. 2003. Pag. 739
189
“Esse domínio legítimo de atuação administrativa da Anvisa, balizado pela lei, deve ser respeitado pelas
diferentes instâncias de controle, inclusive pelo Poder Legislativo. Trata-se de uma exigência que decorre
logicamente da separação de poderes. Daí porque a Lei nº 13.269/2016, ao substituir uma escolha técnica e
procedimental da Agência por uma decisão política do Legislador, interferiu de forma ilegítima no
funcionamento da Administração Pública, em afronta à reserva de administração e à separação de poderes.”
Disponível em < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039 > Acesso em
17/10/2017
190
A Resolução RDC n.º 38/2013 da ANVISA institui conceitos importantes acerca do acesso expandido e do
uso compassivo de medicamentos. De acordo com o art. 2º VIII – “programa de acesso expandido: programa de
disponibilização de medicamento novo, promissor, ainda sem registro na Anvisa ou não disponível
comercialmente no país, que esteja em estudo de fase III em desenvolvimento ou concluído, destinado a um
grupo de pacientes portadores de doenças debilitantes graves e/ou que ameacem a vida e sem alternativa
terapêutica satisfatória com produtos registrados” e inciso X – “programa de uso compassivo: disponibilização
de medicamento novo promissor, para uso pessoal de pacientes e não participantes de programa de acesso
expandido ou de pesquisa clínica, ainda sem registro na Anvisa, que esteja em processo de desenvolvimento
151

De acordo com o referido programa, a agência de vigilância sanitária dispensa,


episodicamente, alguns estágios do procedimento de registro de medicamento, autorizado seu
uso em caráter excepcional. Significa dizer que, já existe a possibilidade de utilização de
medicamento desprovido de registro definitivo, desde que cumpridas algumas exigências pelo
órgão regulador. Sustentou que a fosfoetanolamina sintética poderia ser oferecida no âmbito
deste programa, desde que autorizado pela ANVISA. De fato, não se trata de um novo
fundamento, mas sim, o reforço da tese de respeito à separação dos poderes, já que não
concorda com a transferência da atividade fiscalizatória e regulatória da ANVISA para o
Legislativo.

O Ministro Teori Zavascki seguiu a linha de pensamento dos ministros anteriores,


destacando em seu voto a necessidade de respeito à separação dos poderes e a
excepcionalidade da autorização de circulação de substância medicamentosa sem o registro
definitivo, condicionado à autorização da agência de vigilância sanitária.

O Ministro Luiz Fux, destacou o compromisso dos Tribunais no alcance de uma


visão humanizada da Justiça, ressaltando que o juiz deve considerar aspectos de caridade e
humanitários, isto é, o magistrado, enquanto agente conectado com a realidade social no qual
está inserido, deve estar sensível aos anseios humanos. Todavia, destacou em que isso não
retira a necessidade de se conduzir-se em conformidade com a observância da ordem jurídica.
Em seu voto reconheceu a inconstitucionalidade da lei diante da perspectiva de separação de
poderes e do risco de dano provocado pela circulação de substância sem registro. Estabeleceu,
na decisão, as premissas de proteção contra o perigo de dano inverso, ou seja, o risco de uma
substância não experimentada provocar mais prejuízos que benefícios.

Por fim, os Ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia reiteraram os


fundamentos da respeitabilidade da separação de poderes e da necessidade de evitabilidade
dos danos decorrentes da circulação de medicamentos sem o regular registro. Destacam-se na
fala dos Ministros duas questões que merecem consideração, pois no sentido da defesa
autocontenção judicial no tema. Por exemplo, o Ministro Lewandowski afirmou que o estado
de direito não pode permitir um agir irracional de suas instituições, permitindo a introdução
de razões de ordem metafísica e, portanto, desconsiderando aspectos científicos no caso da

clínico, destinado a pacientes portadores de doenças debilitantes graves e/ou que ameacem a vida e sem
alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados no país;”
152

saúde. Ainda na visão do ministro, não se pode poderia admitir que o STF considerasse
fatores metajurídicos em suas decisões e o Estado deve agir sobre bases empíricas.

Por sua vez, a Ministra Cármen Lúcia, refutou a divergência instaurada, no sentido
de emprestar interpretação conforme para reconhecer a constitucionalidade do ato impugnado
apenas para os pacientes em estado terminal. Na visão da Ministra, a ciência médica não
consegue identificar, com precisão, tal referencial, de maneira que a incerteza preservaria a
instabilidade institucional, além de alimentar os possíveis prejuízos aos usuários.

Em síntese, portanto, foi possível identificar no levantamento realizado que duas


foram as teses centrais na fundamentação dos Ministros. Primeiramente, a necessidade de
preservação da regra da separação dos poderes, pois caberia ao Executivo a atividade
regulamentar e fiscalizatória sobre a vigilância sanitária, não sendo admitido que o
Legislativo, por meio de lei, concedesse o registro a substância. Do contrário, haveria uma
afronta à proposta de funcionamento harmônico e coordenado entre as funções estatais. De
outra parte, os protocolos clínicos e científicos instituídos pela ANVISA servem para aferir a
segurança e eficácia dos medicamentos, sendo fundamental sua verificação sob pena de se
criar um risco de dano aos pacientes.

4.2.4.2 Tese vencida

No julgamento da ADIN 5501, a tese vencida considerou que deveria ser conferida
interpretação conforme para considerar a constitucionalidade da lei para autorizar o
fornecimento da substância fosfoetanolamina sintética apenas para os pacientes acometidos de
neoplasia em estado terminal. O revisor foi o Ministro Edson Fachin que abriu a divergência
para considerar que existem estudos científicos da comunidade médica que relatam a ausência
de toxidade da substância. Como destacado, o composto apenas fornece uma substância já
produzida naturalmente pelo corpo humano, contudo em quantidade insuficiente para eliminar
as células cancerosas. Informa que tais estudos foram juntados pelo Presidente do Congresso
Nacional não havendo violação ao direito à vida (art. 5º, 6º e 196 CRFB).

De acordo com o Ministro, era preciso considerar a liberdade de autoderminação


(autonomia privada), ou seja, se não há lei proibindo a substância deve ter seu uso autorizado.
153

Somente se comprovado o dano efetivo poderia haver interferência na autonomia da pessoa.


Acrescentou o fundamento de que a atividade fiscalizatória exercida pela ANVISA, nos
termos do art. 200 CRFB, não é privativa, pois deve ser exercida nos termos da lei. Portanto, a
concretização do direito à vida é realizada, em última análise, pelo Legislativo. Dessa
maneira, não haveria equívoco permitir a circulação de substância por lei.

Por fim, assentou a decisão na Resolução ANVISA n.º 38, de 12 de agosto de 2013,
que aprova o regulamento para os programas de acesso expandido, uso compassivo e
fornecimento de substância ou medicamento pós-estudo. O programa, de acordo com o
disposto e seu art. 2º, X, destina-se a disponibilizar “medicamento novo promissor, para uso
pessoal de pacientes e não participantes de programa de acesso expandido ou de pesquisa
clínica, ainda sem registro na ANVISA, que esteja em processo de desenvolvimento clínico,
destinado a pacientes portadores de doenças debilitantes graves e/ ou que ameacem a vida e
sem alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados no país”. Sugeriu que a
substância fosse ministrada administrativamente por meio dos órgãos de controle integrantes
do Sistema Único de Saúde191.

A posição vencida no julgamento contou com a adesão dos Ministros Rosa Weber,
Dias Toffoli e Gilmar Mendes que se utilizaram dos mesmos fundamentos apresentados pelo
Ministro Edson Fachin.

4.2.5 Recurso Extraordinário n.º 657.718

No recurso extraordinário n.º 657.718 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a


repercussão geral do tema. Trata-se de recurso interposto contra decisão do Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais que, no julgamento do recurso de apelação, negou à autora
o fornecimento do medicamento Mimpara que possui como princípio ativo a substância
Cinacalcet destinado ao tratamento do hiperparatiroidismo secundário em pacientes que

191
No voto o Ministro destaca “Nos termos do art. 200, I, da Constituição Federal, compete ao sistema único de
saúde “controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da
produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos”. O sistema único
é definido pela Lei 8.080/90 como sendo “o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e
instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações
mantidas pelo Poder Público” (art. 4º, caput).” Disponível em <
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039 > Acesso em 17/10/2017
154

sofrem de doença renal crônica. De acordo com o Tribunal recorrido, o Estado não pode ser
obrigado a fornecer medicamento sem registro.

Diferentemente da questão discutida no âmbito da ADIN n.º 5.501, a substância


Cinacalcet, apesar de não registrada na ANVISA, já possuía registro em órgãos congêneres
internacionais, em especial a Foods and Drugs Administration norte-americana e a European
Medicines Agency na Europa. Há, portanto, sensível diferença na questão surgida no presente
caso já que, a despeito do registro nacional, a eficácia, segurança e qualidade restaram
comprovados em entidade similar192.

Em 19 de setembro de 2011 o recurso extraordinário foi autuado no âmbito do STF,


sendo distribuído ao relator em 28 de setembro de 2011. No dia 17 de novembro de 2011 o
Supremo Tribunal reconheceu a repercussão geral do tema considerando a relevância
econômica e social da questão versada. Mesmo com o registro do medicamento na ANVISA
em 2013, o Tribunal manteve a análise da questão versada na repercussão geral, tendo,
contudo, a Procuradoria Geral da República opinado pela perda superveniente do objeto.

O julgamento do mérito da questão foi iniciado em 15 de setembro de 2016 com a


apresentação do voto do Ministro Marco Aurélio (relator) no sentido de negar provimento ao
recurso. O Ministro Luis Roberto Barroso pediu vista, retomando-se o julgamento em 28 de
setembro do mesmo ano entendendo pelo provimento parcial do recurso. O terceiro a votar foi
o Ministro Edson Fachin votou pelo provimento integral do recurso. Na sequência o Ministro
Teori Zavascki pediu vista. Diante deste contexto, é possível identificar apenas três votos no
julgamento da questão. Seguindo a proposta apresentada no presente trabalho, passaremos
para a análise dos fundamentos disponíveis.

O Ministro-Relator destacou que o registro é condição para a circulação de um


medicamento nos termos do art. 12 da Lei n.º 6360/76, representando verdadeiro ilícito a
inobservância do preceito legal. Por meio do procedimento a agência de vigilância poderá
aferir a segurança, eficácia e qualidade do fármaco, consistindo em flagrante ilegalidade o
descumprimento da exigência. Destacou que as decisões judiciais, a pretexto de concretização
do direito à saúde, colocam em risco a integridade do paciente, além de permitir o
experimentalismo à custa da população. Nesse sentido, é possível afirmar que os fundamentos

192
Vale registrar para fins de distinção que o art. 8º §5º da Lei 9782/99 (lei de criação da ANVISA) admite a
dispensa de registro de medicamentos adquiridos de organismos multilaterais internacionais. Neste caso, temos
organismos internacionais criados por meio de esforços conjuntos de vários países com um propósito de trabalho
conjunto em áreas específicas. São exemplos a ONU, FMI, OMC, Banco Mundial, entre outros.
155

indicados pelo relator são no sentido de observância da estrita legalidade no tema, elevando a
atividade fiscalizatória exercida pela ANVISA em nome da segurança contras os potenciais
riscos de danos decorrentes da incerteza sobre os benefícios clínicos.

No voto do Ministro Roberto Barroso ficaram assentadas algumas premissas


relacionadas ao necessário comportamento autocontido do Judiciário no tema em julgamento.
Conforme apresentado pelo Ministro, o ativismo judicial desmedido representa um risco para
as políticas públicas em saúde além de constituírem um perigo para a organização
administrativa por impedir uma racionalidade na alocação dos recursos públicos. Ademais,
era essencial respeitar o rigoroso processo de registro do medicamento realizado pela agência
de vigilância sanitária. De fato, a fala do Ministro vai ao encontro da reiteração da tese do
respeito à independência orgânica entre os poderes, sendo certo que a fiscalização e o controle
sanitário são atribuições administrativas especializadas na qual, a interferência judiciária
apenas conduziria a um quadro de deficiência estrutural.

O Estado não pode fornecer medicamento em fase experimental em hipótese


nenhuma, diante dos riscos diretos à saúde dos pacientes. O fornecimento de medicamento
sem registro, somente seria possível nos casos do fornecimento de substâncias
medicamentosas nos programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo
nos termos regulamentados193. O fornecimento de medicamento já testado, mas sem registro,
somente poderia ser autorizado no caso de mora irrazoável, que o Ministro entende como
sendo aquele atraso superior a 365 dias por parte da ANVISA 194. Mas estabelece requisitos
para a concessão nestes casos. De acordo com o Ministro deve: (a) haver pedido de registro da
substância na ANVISA, (b) existência de registro em órgão congênere renomado no exterior e
(c) inexistência de substância equivalente registrada no Brasil.

Extrai-se do voto do ministro que a reivindicabilidade do medicamento somente se


viabiliza diante da certeza acerca da eficácia, segurança e qualidade da substância autenticada
pelo órgão de registro sanitário competente, exigindo-se a ampla transparência metodológica
para fins de controle da atividade regulatória administrativa. Dessa maneira, o Estado não

193
Como informado, a Resolução RDC N.º 38 da ANVISA de 12 de agosto de 2013 estabelece regras para os
programas de acesso expandido, uso compassivo e fornecimento de medicamento pós-estudo.
194 Destaca-se dessa parte da fundamentação do voto a indicação de um prazo “razoável” para a concessão do
registro, sem, contudo, esclarecer qual o parâmetro para o estabelecimento do prazo apresentado. Não justifica o
requisito em qualquer critério legal, empírico, comparativo, apenas assentando o entendimento que seria
admissível aguardar o prazo de 365 dias para o trâmite de registro no órgão competente. Na visão do Ministro,
ultrapassado o lapso temporal “razoável”, o Judiciário poderia autorizar a circulação do fármaco.
156

estaria obrigado a fornecer a droga, pois, do contrário, haveria inegável exposição dos doentes
a riscos incertos.

O Ministro Edson Fachin lembrou que os artigos 6º, 196 e 198, II da Constituição
Federal impedem a concessão de fármaco sem registro, contudo, compreende que o direito à
saúde não pode comportar uma interpretação literal. Acrescentou que, por força do art. 5º §2º
da Carta, depreende-se a possibilidade de fornecimento de medicamentos de qualquer ordem,
pois, enquanto signatário do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
e pelo Protocolo de São Salvador195, as obrigações estatais envolvendo direito à saúde não são
exaustivas cabendo, aos Estados, a adoção de medidas até o máximo de seus recursos
disponíveis.

O Ministro desenvolve uma análise argumentativa no sentido de se admitir um


forçoso controle judicial em situações pontuais e excepcionais já que a atividade regulatória
do Estado, sobretudo na seara dos fundamentos técnicos, deve ser respeitada sob o risco de a
intervenção judicial provocar mais malefícios que justiça196. A racionalidade científica não
pode ser inferida pelo judiciário, sobretudo monocraticamente, por inegável óbice à
substituição do conhecimento técnico. É importante, todavia, que as decisões técnicas sejam
transparentes de modo a permitir um controle pelos afetados. Deve-se buscar recursos

195
De acordo com o PIDESC, Decreto 591/92 “ARTIGO 12 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem
o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os
Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão
as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade
infantil, bem como o desenvolvimento e das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho
e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras,
bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e
serviços médicos em caso de enfermidade. Acrescentando-se ainda o Protocolo de São Salvador, incorporado
pelo Decreto n.º 3321/99 “Artigo 10 Direito à saúde 1. Toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo
do mais alto nível de bem-estar físico, mental e social. 2. A fim de tornar efetivo o direito à saúde. os Estados
Partes comprometem-se a reconhecer a saúde como bem público e, especialmente, a adotar as seguintes medidas
para garantir este direito: a) Atendimento primário de saúde, entendendo-se como tal a assistência médica
essencial colocada ao alcance de todas as pessoas e famílias da comunidade: b) Extensão dos benefícios dos
serviços de saúde a todas as pessoas sujeitas à jurisdição do Estado; c) Total imunização contra as principais
doenças infecciosas; d) Prevenção e tratamento das doenças endêmicas, profissionais e de outra natureza; e)
Educação da população sobre prevenção e tratamento dos problemas da saúde; e f) Satisfação das necessidades
de saúde dos grupos de mais alto risco e que, por sua situação de pobreza, sejam mais vulneráveis. Disponível
em < http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/9/art20160929-02.pdf> Acesso em 25/10/17
196
Conforme destacou o Ministro Fachin “A indicação dos limites de intervenção do Poder Judiciário sobre o
controle dos atos multidisciplinares de regulação tem sido reformulada, na esteira do precedente acima
transcrito, de modo a abranger não apenas a exigência de obediência às regras de procedimento, mas também: (i)
indicação compreensível das razões de decidir; (ii) erro na aplicação da lei; (iii) precisão, confiabilidade e
consistência dos fatos; (iv) suficiência de provas para o exame de uma situação complexa; (v) erro manifesto na
apreciação dos fatos; ou (vi) abuso de poder.” E segue afirmando que “Trata-se, dessa forma, de assumir uma
postura mais deferente às escolhas técnicas ou democráticas tomadas pelos órgãos competentes, sem deixar que
a Administração ou as entidades regulatórias deixem de prestar contas de sua atuação.” Disponível em <
http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/9/art20160929-02.pdf> Acesso em 25/10/17
157

interpretativos que estabeleçam balizas de mediação entre a racionalidade jurídica e as demais


esferas do conhecimento como forma de permitir que, em circunstâncias específicas, haja a
formação de um controle dos atos regulatórios. Entendeu que o recrudescimento do
paradigma positivista precisava ser superado diante de determinadas realidades fáticas e
sociais197.

O julgamento foi suspenso diante do pedido de vista do Ministro Teori Zavascki não
tendo sido retomado até a data de finalização do presente levantamento. Dos votos analisados
foram identificados, como fundamentos determinantes, a teoria da separação dos poderes e
respeito à atividade fiscalizatória do Executivo, por meio de sua agência reguladora,
apresentando-se indevido o controle concorrente do Judiciário. Outro ponto destacado pelos
Ministros foi a necessidade de se respeitar o procedimento técnico-científico como forma de
eliminação dos riscos aos pacientes. Como visto, os fundamentos não sofreram variações
substanciais, mas meras mudanças argumentativas.

4.3 Os fundamentos usuais: a invariabilidade argumentativa

A análise das decisões sobre o fornecimento de medicamentos sem registro na


agência de vigilância sanitária permitiu estabelecer um diagnóstico sobre os principais
fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal. Invariavelmente, os Ministros
suscitam as mesmas justificativas para admitir ou proibir o fornecimento de medicamentos
não registrados.
197
“A definição do direito à saúde como demanda ética à equidade em saúde não conduz a outra resposta que
não o reconhecimento de garantias de um mínimo existencial e de efetiva participação, sob a perspectiva de ter
em devida conta as razões e demandas individuais opostas à decisão distributiva. Tal garantia, materializada na
atuação do Poder Judiciário, impõe que se realize, no caso concreto, de modo não cumulativo, (i) controle de
legalidade, vale dizer, não deve haver erro manifesto na aplicação da lei, nem pode existir abuso de poder; (ii)
controle da motivação, isto é, aferir se as razões do ato regulatório foram claramente indicadas, estão corretas e
conduzem à conclusão a que chegou a Administração Pública; (iii) controle da instrução probatória da política
pública regulatória, ou seja, exigir que a produção de provas, no âmbito regulatório, seja exaustiva, a ponto de
enfrentar uma situação complexa; e (iv) controle da resposta em tempo razoável, o que impõe à agência o dever
de decidir sobre a demanda regulatória que lhe é apresentada, no prazo mais expedito possível (art. 5º, LXXVIII,
da Constituição Federal). Em caso de descumprimento dos parâmetros pelos quais é feito o controle da atuação
da regulação, deve o Poder Judiciário garantir a participação, podendo, para tanto, determinar que o tema seja
novamente apreciado ou que haja manifestação pela Administração Pública das situações pontuais que não
foram objeto de deliberação. A participação garante, portanto, que a demanda dos cidadãos seja oposta à
comunidade científica e por ela apreciada em devida conta. Não autoriza, como não poderia fazê-lo, a validar
como regra medicamento ou procedimento não reconhecido pela agência. Há, porém, exceção: demonstração,
em juízo, do descumprimento dos controles acima fixados para a política regulatória.” Disponível em <
http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/9/art20160929-02.pdf> Acesso em 25/10/17
158

Dentro da racionalidade identificada foram assinalados os seguintes fundamentos: (a)


direito à saúde como um direito fundamental indisponível, (b) a concretude das normas
programáticas, (c) risco do periculum in mora inverso, (d) existência de registro em entidades
congêneres ou reconhecimento da comunidade médica e (e) conservação da proposta
constitucional de harmonia entre os poderes.

Dentro deste contexto de inúmeros fundamentos esposados, inegável a preocupação


em se indagar a profundidade teórica e a adequação sistêmica entre as justificativas e a
(i)legalidade nas prestações de saúde não autorizadas pelo órgão de registro. É importante, por
exemplo, compreender qual é o conteúdo da indisponibilidade de um direito fundamental, isto
é, para afirmá-lo como tal é preciso compreender o significado do objeto (direito
fundamental) e da qualificação estampada (indispensável).

4.3.1 A indisponibilidade do direito à saúde: a fluidez conceitual

Tema recorrente nas decisões é o fundamento da “indisponibilidade do direito à


saúde”. Novamente há um problema semântico a ser desvelado, pois o conteúdo dos signos
empregados na argumentação jurídica precisam ser claros sob o risco de tornar as
representações argumentativas abertas a axiomas e lacunas, facilmente ocupadas por
conteúdos retóricos. Vale lembrar que a indisponibilidade de um direito não encontra assento
constitucional198, sendo construído por meio de teses doutrinárias nos diversos segmentos do
estudo jurídico199.

Ao afirmar que um direito é indisponível cria-se uma confusão acerca da amplitude


da qualificação dada. O termo é lacônico e confuso, podendo ser entendido sob variadas
significações, por exemplo, dentro de uma acepção que considera a titularidade, ou seja,
aqueles direitos em que seu titular não pode dispor (modificar ou extinguir) em razão das
relações inerentes a ele200 ou da inaptidão para abdicar da situação de domínio201. Numa

198
Ressalvada a previsão do art. 127 da CRFB ao estabelecer que o Ministério Público tem como função
institucional defender os interesses sociais e individuais indisponíveis, sem, contudo, estabelecer sua amplitude.
199
MARTEL. Letícia de Campos Velho. Indisponibilidade de direitos fundamentais: Conceitos lacônicos,
consequências duvidosas. Espaço Jurídico. Joaçaba, v. 11, n. 2, p. 334-373, jul./dez. 2010
200
Como ocorre com as terras devolutas destinadas à proteção do meio ambiente (art. 225 § 5º CRFB), as terras
indígenas (art. 231 § 4º CRFB) ou
201
Caso do herdeiro em relação aos bens gravados com cláusula de inalienabilidade (art. 1911 Código Civil)
159

segunda posição, a indisponibilidade estaria reservada objetiva e especificamente a


determinada categoria de direitos que, diante da relevância, não podem ser mitigados pelos
titulares ou por qualquer outro sujeito (nem o Estado).

Faticamente, independentemente do conceito adotado, compreender a


indisponibilidade de um direito como a impossibilidade de se restringir ou renunciar chega-se
a conclusões que colidem com a liberdade de autodeterminação do ser humano. Nesse
contexto, imprimir a marca da inalienabilidade impediria, por exemplo, a doação de um
órgão, a prática de um esporte arriscado, o tabagismo, entre outras condutas de impõem uma
violação ou colocam em ameaça a integridade física ou a vida do indivíduo.

Por outro lado, assumir sua dimensão conceitual em conformidade com o conteúdo
normativo da indisponibilidade dos direitos fundamentais, igualmente, forma um rol de
prestações que, no aspecto pragmático, permitiria estabelecer infinitas prestações aos seus
obrigados e, nesse campo em particular, ao Estado. Apenas para balizar o problema dentro
dos parâmetros estabelecidos no presente trabalho, considerar indisponível o “direito à saúde”
conduziria a cenários de absolutização. Portanto, estabelecer o nexo entre a indisponibilidade
e a integralidade do direito fundamental à saúde justificaria exigências de toda sorte, tornando
o Estado um segurador universal, máxime dentro do ambiente denominado pós-positivista em
que a comunicação entre o direito e a moral é farta.

É imprescindível considerar que não basta a adjetivação de fundamental para


categorizar um determinado direito. É imperioso ir além! Dimensionar sua extensão depende
de investigação sobre sua essencialidade e natureza, afinal não basta chamar uma criatura de
cavalo-marinho para transformá-lo num quadrúpede. Como sustentado no primeiro capítulo
dessa obra, os direitos fundamentais são aqueles que surgem como instrumentos de satisfação
de necessidades humanas objetiva e coletivamente aferíveis, evitando-se, com isso, um dano
inconteste ao seu titular.

A imprecisão quantitativa e qualitativa acerca dos direitos fundamentais cria um


primeiro obstáculo que vem acrescido de outra questão tormentosa consistente na dimensão
aplicada à qualificação “indisponível”. Novamente, reitera-se que a imprecisão abre espaço
aos mais variados discursos e inevitáveis casuísmos. Não se pode adjetivar algo de
indisponível sem identificar o conteúdo semântico do objeto a ser qualificado.
160

O direito às prestações de saúde é considerado, por muitos, inclusive os tribunais,


como um direito subjetivo indisponível, não comportando violações pelos poderes públicos,
conferindo legitimidade o indivíduo e o Ministério Público para apresentarem pretensões
objetivando providências tendentes a efetivar e corrigir violações202. Apesar de assentar o
entendimento na indisponibilidade das prestações de saúde, devemos mensurar a amplitude do
direito fundamental a ser tutelado pelo Estado, incluindo-se a integração exercida pelo
Judiciário nessa missão.

Como defendido, o direito fundamental às prestações de saúde abarcam aquelas


providências comprovadamente curativas, tanto no sentido da eficácia quando no aspecto da
segurança. Só se pode imprimir a marca da indisponibilidade para os direitos fundamentais
naquelas prestações que não comportam questionamentos, pois irrefutável sua capacidade de
eliminar o risco de dano ao indivíduo.

Deve-se entender, como indisponível, um direito fundamental quando, embora


renunciável ou flexibilizado por seu titular, há, por parte de outro sujeito, a possibilidade ou o
dever funcional ou jurídico de sua proteção, ou seja, apesar da disposição pelo titular um
terceiro poderá empregar meios lícitos para evitar um dano ou um risco. É nessa percepção
que um médico deverá valer-se de todos os métodos e instrumentos disponíveis para impedir
a morte de um suicida ou a nomeação um defensor para aquele indivíduo acusado da prática
de um crime.

Somente será considerado indisponível aquele direto fundamental em que se pode


admitir a prática, por terceiros, de condutas que impeçam a livre disposição do titular. Isso
será autorizado sempre que se pretender evitar um dano. Justificar a concessão de um
medicamento sem registro na agência de vigilância sanitária sob a alegação de proteção a um
direito fundamental indisponível subverte a lógica do dever funcional de proteção pelo
terceiro. No momento em que não se pode mensurar a segurança e eficácia da substância
coloca-se em risco o próprio direito fundamental que pretensamente se busca proteger.

202
O Ministro do STF Celso de Mello destacou a tese da indisponibilidade do “direito à saúde” no Agravo
Regimental no RE n.º 685.230, in verbis: “O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz
bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder
Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a
garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.” (grifo
nosso)
161

A disponibilidade de um direito fundamental é prática que seu titular pode exercer


livremente, somente sendo considerado indisponível aqueles em que há um dever jurídico ou
funcional em contraposição, impondo ao terceiro um comportamento licitamente adequado
para impedir uma lesão. O direito fundamental à liberdade religiosa é abdicável pelo titular
que opte por não cultuar uma divindade, não havendo dever legal ou funcional que imponha
ao terceiro uma ação que objetive reverter a conduta do titular renunciante, sob o fundamento
de evitar-lhe um dano. Em contrapartida, aquele sujeito que abandonar o direito à segurança,
colocando-se em situação de risco, não impede que terceiro comporte-se de maneira oposta,
na tentativa de repelir o dano.

A ótica apresentada permite construir a afirmação que nem todos os direitos


fundamentais são indisponíveis e que a tentativa generalizante decorre de um reducionismo
analítico-teórico. A noção de que a indisponibilidade é intrínseca aos direitos fundamentais é
falseada pela ausência razões baseadas no método científico. Também não basta instituir uma
teoria da indisponibilidade jusfundamental apenas dentro de um patamar estritamente
normativo, por meio de catálogos em documentos legais.

O Supremo Tribunal Federal ao fundamentar suas decisões concessivas de


medicamentos sem registro na respeitabilidade do direito fundamental indisponível à saúde
distancia-se dos limites substantivos, aproximando-se de razões argumentativas ampliadas
pelos conteúdos axiológicos sem se preocupar com a essencialidade e a natureza dos
conteúdos dos direitos fundamentais. As imprecisões teórico-conceituais interferem
sobremaneira na estabilização da racionalidade hermenêutica e, consequentemente, na
estabilidade decisória almejada destinatários das decisões judiciais. A adesão à dimensão
normativa dos precedentes judiciais tende sofrer com os obstáculos produzidos pelas
oscilações e imprecisões conceituais no interior da própria Corte Constitucional. Ao projetar
sobre suas decisões amplos lastros de discricionariedade, inquestionavelmente, alinha-se com
o decisionismo e o predomínio de subjetividades integralizadoras de sentidos.

4.3.2 As normas programáticas: integralidade ou paradigma?

O conceito de norma programática, em apertada análise, pode ser alcançado


considerando a sua inserção no texto constitucional com o propósito de estabelecer padrões de
162

políticas devidas pelo Estado no sentido de alcançar a satisfação de interesses de


determinados grupos. Trata-se de verdadeiro projeto que pretende dar eficácia às políticas
públicas fundamentais para o desenvolvimento econômico e social. Originado dentro do
modelo do estado-social, legitimou a intervenção do Estado com vistas a reconhecer sua
condição de protagonismo e, por certo, único capacitado, ainda que por meio da ingerência no
domínio político, social e econômico, a alcançar ideais de liberdade, igualdade e solidariedade
entre os indivíduos e grupos sociais.

No geral, as constituições modernas alteraram a perspectiva de compreender como


materialmente constitucionais apenas as normas consagradoras de direitos civis, liberdades
políticas e limitações ao poder do Estado, introduzindo em seus textos fórmulas que
representavam projetos ideais cuja implementação deveria ocorrer plenamente, ainda que de
maneira gradativa. No entanto, a ausência de referenciais concretos acerca de sua
essencialidade inseriu um debate sobre sua eficácia, pois se pensava que as normas
programáticas serviam de simples estímulos éticos ou “conselhos” ao Legislativo, destituídas
de mecanismos aptos a torná-las individualmente reivindicáveis.

Num segundo momento, por influência dos ideais do welfare state, passou-se a
sustentar o caráter prospectivo das normas programáticas, conferindo contornos de efetividade
plena. Para essa linha de pensamento as normas programáticas deixam de ter conteúdo
meramente enunciativo, devendo ser aplicado um olhar progressista no sentido de dar
juridicidade concreta203. Para os adeptos, as normas programáticas se manifestam de modo
diferente em relação às normas de eficácia plena, pois há um óbice natural que é a falta
comando específico. Todavia, não se pode retirar sua juridicidade quando considerada a
vinculação imposta aos órgãos responsáveis pela elaboração de regras específicas. Tais
vínculos podem ser afirmados quando elas retiram a discricionariedade do Legislativo e,
também, quando imprimem um aspecto negativo, ou seja, impede a criação de normas em
sentido contrário.

Apesar de apresentar enunciados eticamente defensáveis, máxime quando


consideradas as situações jurídicas de vulnerabilidade como a tutela dos consumidores, das
crianças, do meio ambiente, é preciso destacar que a prospecção de direitos individualmente

203
GRAU, Eros Roberto. A Constituição brasileira e as normas programáticas. In: Revista de
Direito Constitucional e Ciência Política, Rio de Janeiro: Forense, ano III, n. 4, p. 40-47, jan./jun. 1985, p. 43 e
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da
doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004. P. 34, 35.
163

reivindicáveis, a partir das normas programáticas, demanda uma análise mais cuidadosa sob
pena de incorrermos em problemas já apontados no presente trabalho como a ausência de
critérios objetivos para o julgador, ensejando a prática do ativismo judicial e inserção de
axiomas nas decisões judiciais204. A complexidade é verificada em determinados direitos
sociais, especialmente aqueles que dependem de intrincadas providências estatais, não só no
aspecto do gasto público, mas igualmente no âmbito da atividade regulatória estatal.

Dar concretude a tais normas é, objetivamente, admitir uma característica


invasiva/ampliativa que afronta as propostas de equilíbrio estatal. São muitos os riscos
gerados ao se assumir que as normas programáticas possuem efeitos imediatos. Fundamentar
uma decisão judicial afirmando que as normas programáticas não devem ser transformadas
em promessas constitucionais inconsequentes apresenta uma integridade argumentativa
dificilmente refutada quando considerados os valores humanitários. Contudo, considerando a
necessidade de observância da integridade do Direito, o arcabouço axiológico da Constituição
deve orientar a construção das normas infraconstitucionais. O expansionismo exegético
produzido pelos juízes carece de legitimidade dentro da proposta de equilíbrio das forças
políticas do Estado democrático de direito.

Ainda que se trilhasse uma perspectiva pragmática, mais orientada para as


consequências e reflexos das decisões judiciais, o resultado não poderia ser diferente. O
pragmatismo jurídico, em certa medida avesso ao positivismo jurídico e tendente a legitimar o
ativismo judicial, não produziria efeito diverso daquele que nega uma prestação de saúde sem
a comprovação curativa. O juiz pragmático, que justifica sua atuação num sentido dinâmico
de adequação da norma à realidade social, não deve frustrar as expectativas da sociedade.
Ainda que não forneça uma segurança na perspectiva jurídico-formal, sua interferência na
realidade não pode significar instabilidade na perspectiva de orientação das decisões voltadas
para o futuro205.

204
Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma que “Naturalmente, a conjugação do constitucionalismo social com o
reconhecimento do caráter normativo e judicialmente sindicável dos preceitos constitucionais gerou efeitos
significativos do ponto de vista da importância da Constituição no sistema jurídico – ela assumiu uma
centralidade outrora inexistente – bem como da partilha de poder no âmbito do aparelho estatal, com grande
fortalecimento do Poder Judiciário, e, sobretudo, das cortes constitucionais e supremas cortes, muitas vezes em
detrimento das instâncias políticas majoritárias.” SARMENTO, Daniel. Constitucionalismo: trajetória histórica e
dilemas contemporâneos. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang. Jurisdição constitucional,
democracia e direitos fundamentais. Estudos em homenagem ao Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Salvador:
JusPodivm, 2012. P. 112-113
205
Como destaca Margarida Lacombe Camargo “A segunda observação refere-se à grande crítica que recai sobre
o pragmatismo jurídico: a falta de segurança social pelo desapego do juiz à norma posta pela autoridade legítima
e competente, que é o legislador. Essa crítica é respondida por Richard Posner do seguinte modo: o juiz
164

4.3.3 Periculum in mora inverso: a evitabilidade do dano individual em detrimento do


coletivo

Não foram raras as decisões analisadas que imprimiram na fundamentação o


elemento risco de lesão à vida/integridade física. Vários Ministros do STF consideraram que a
negativa do medicamento não registrado representaria um risco de dano inverso ao paciente.
No geral, o risco da demora na prestação jurisdicional retiraria o único meio possível para a
preservação da vida da parte e, diante da constatação do requisito fundamental para a tutela de
urgência, foram proferidas várias decisões que proviam o medicamento não registrado.

Invariavelmente, as tentativas do Estado em obter a suspensão de liminares


concedidas pelos Tribunais inferiores, sob a alegação do periculum in mora, foram refutadas
pelo STF sob o fundamento que haveria, de fato, verdadeiro risco de dano inverso, ou seja, a
negativa do medicamento poderia culminar na morte do paciente. Trata-se de interpretação
conferida ao antigo art. 273 § 2º do CPC/73 e do atual art. 300 § 3º do CPC/2015. Na verdade,
o requisito do periculum in mora inverso constitui verdadeiro impedimento para a concessão
da medida urgente, diante da possibilidade de se causar um dano maior do que aquele que se
busca afastar. Seria necessário considerar se a concessão de uma medida liminar seria mais
prejudicial ao réu do que o não deferimento em favor do autor.

Ocorre que, a nosso sentir, a questão do dano foi tratada de maneira superficial pelo
STF em algumas oportunidades. No sentido daquilo que se sustentou ao longo do presente
trabalho, o registro do medicamento, segundo os protocolos adotados pela agência de
vigilância sanitária, procura identificar os possíveis riscos derivados do uso de determinada
substância medicamentosa. O Supremo Tribunal Federal, ao consentir com o fornecimento do
fármaco, não se ajusta ao inafastável dever de fundamentação fático-jurídica. Embora natural
a superficialidade da cognição liminar, é notório que a falta de registro constitui provável

pragmatista, pelo próprio fato de ter em mira as consequências da sua ação, na prática não quer desapontar a
população, que espera garantia e previsibilidade de suas ações, conforme a lei. Isso leva a que o juiz considere
seriamente as lei e os precedentes judiciais. Sabe que existe grande expectativa da sociedade sobre suas ações.
Caso o juiz não a ofereça, fere a sociedade cuja credibilidade é garantida pelo respeito ao Direito posto. Afinal, o
Direito existe, antes de tudo, para oferecer segurança à sociedade.” CAMARGO, Margarida Lacombe. O
pragmatismo no Supremo Tribunal Federal brasileiro. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel
e BINENBOJM, Gusavo. Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2009. P. 369
165

perigo ao usuário e, portanto, o alegado risco de dano inverso torna-se um argumento


meramente retórico.

A positivação do direito fundamental à saúde surge como providência hábil a


satisfazer uma necessidade humana. Como visto, é necessário, ao homem, tudo aquilo que ele
precisa para eliminar ou impedir um dano. Um medicamento sem registro tem a incerteza
como característica e, nesse contexto, garantir seu acesso aumenta o risco de dano, havendo
incompatibilidade com aquilo que se pretende evitar, máxime se considerarmos o aspecto
coletivo, pois a concessão da substância, por meio do Judiciário, potencializa as práticas
reivindicativas por indivíduos em igual situação, como, efetivamente, ocorreu no caso da
fosfoetanolamina sintética206.

4.3.4 O registro em entidades sanitárias congêneres

Outro fundamento recorrente nas decisões do STF, especialmente na posição firmada


pelo Ministro Ricardo Lewandowski, consistia no reconhecimento da viabilidade de cessão do
fármaco, ainda que desprovido de registro na ANVISA, desde que noticiado o registro em
entidade similar reconhecidamente eficaz na formulação de protocolos sanitários para registro
de medicamentos. Inegavelmente, é o fundamento mais consistente dentro da ótica da
permissibilidade da circulação. Ao se considerar que o registro em entidade similar, com
notória atuação na fiscalização da eficácia, segurança e qualidade de fármacos, parte-se de
uma justificação que se alinha com a proposta da evitabilidade do dano.

Não obstante existirem agências reguladoras de referência, como a americana FDA


(Food and Drug Administration)207, a japonesa PMDA (Pharmaceuticals and Medical
Devices Agency)208 e a europeia EMEA (European Medicines Agency)209, com reconhecidos
êxitos no controle de medicamentos destinados ao consumo humano, é preciso destacar que a
legislação brasileira ainda é bastante restritiva quanto à possibilidade de circulação. A título

206
Conforme noticiado pelo jornal Estadão em 13/02/2016, a Procuradoria da Universidade de São Paulo
calculava cerca de 13 mil processos versando sobre o fornecimento da fosfoetanolamina sintética. Disponível em
<http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,acoes-por-pilula-do-cancer-travam-sistema-juridico-da-
usp,10000016211> Acesso em 07/11/2017
207
www.fda.gov
208
www.pmda.go.jp/english/
209
www.ema.europa.eu/ema/
166

de ilustração, o art. 18 da Lei n.º 6360/76 prevê o registro de medicamentos de origem


estrangeira, desde que comprovada a regularidade no registro no país de origem e a
observância dos protocolos de controle instituídos pela ANISA210. Até mesmo os
medicamentos novos de uso experimental dependem de expressa autorização do Ministério da
Saúde conforme previsto no art. 12 da referida lei211.

Importante destacar que a ANVISA possui procedimento especial para a autorização


de medicamentos sem registro, regulados na RDC n.º 38 de 12/08/2013. Na referida resolução
há expressa autorização para o uso de medicamentos sem registro nos denominados programa
de acesso expandido e programa de uso compassivo. No primeiro, a anuência da ANVISA é
para a utilização do medicamento por determinado grupo sendo exigido que o medicamento
esteja em estudo clínico de fase III212. Já no programa de uso compassivo, a anuência da
ANVISA é individual, devendo o paciente demonstrar a ausência de outros tratamentos
disponíveis bem como a substância comprovar evidencias científicas promissoras. A
resolução estabelece, ainda, a realização do monitoramento sobre os estudos e resultados
obtidos, evidenciando que, mesmo nestas hipóteses, existe um controle realizado pela agência
sanitária brasileira.

Ainda na esteira da excepcionalidade sobre a importação de medicamentos


registrados em entidades congêneres, a Lei n.º 9782/99 estabelece a possibilidade de dispensa
do registro para medicamentos adquiridos por meio de organismos multilaterais internacionais
para utilização em programas de saúde do Ministério da Saúde213. Trata-se da aquisição de

210
“Art. 18 - O registro de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos de procedência estrangeira
dependerá, além das condições, das exigências e dos procedimentos previstos nesta Lei e seu regulamento, da
comprovação de que já é registrado no país de origem.
§ 1º Na impossibilidade do cumprimento do disposto no deste artigo, deverá ser apresentada comprovação do
registro em vigor, emitida pela autoridade caput sanitária do país em que seja comercializado ou autoridade
sanitária internacional e aprovado em ato próprio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da
Saúde.
§ 2º No ato do registro de medicamento de procedência estrangeira, a empresa fabricante deverá apresentar
comprovação do cumprimento das Boas Práticas de Fabricação, reconhecidas no âmbito nacional.”
211
Art. 24. Estão isentos de registro os medicamentos novos, destinados exclusivamente a uso experimental, sob
controle médico, podendo, inclusive, ser importados mediante expressa autorização do Ministério da Saúde.
212
Como destacado na pag. 112 do presente trabalho, a fase III é o momento de identificação do valor
terapêutico em comparação com o placebo e outros medicamentos. Neste momento busca-se a identificação de
indicadores efetivos de melhoria ou evolução decorrentes do tratamento, pois já ministrados em pacientes
doentes.
213
Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos
e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 5o A Agência poderá dispensar de registro os imunobiológicos, inseticidas, medicamentos e outros insumos
estratégicos quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em
programas de saúde pública pelo Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas.
167

insumos, em caráter excepcional e urgente, diante da inexistência de terapias correlatas


regularizadas no mercado nacional.

As substâncias devem conter qualificação prévia conferida pela Organização


Mundial de Saúde ou apresentar registro no país de origem, evidenciando requisitos
fundamentais de segurança, eficácia e qualidade. Em 07/04/2017 a ANVISA abriu consulta
pública, pelo prazo de 60 dias, como o propósito de debater a criação de resolução específica
para dispor sobre critérios e procedimentos para importação de medicamentos214. Mesmo em
tais situações, não foi subtraída da ANVISA a atribuição de monitoramento do tratamento
realizado por meio dos medicamentos importados. Ainda que dispensado o registro, a agência
permaneceu com a sua indissociável função de vigilância sanitária.

Conquanto seja verossímil a eficácia e segurança dos medicamentos registrados em


entidades congêneres, as decisões do STF que concedem tais prestações distanciam-se dos
critérios de legalidade e de respeito das capacidades institucionais. Reitera-se que tal
justificativa decisória aproxima-se, dentre todas analisadas, da aceitabilidade da proposta de
eliminação dos riscos e, nesse viés, da satisfação de uma necessidade humana básica, no
entanto, há o fator objetivo no momento em que a lei impede a importação do fármaco sem o
prévio registro.

4.4 A instabilidade decisória no âmbito da Suprema Corte: a (in)observância do caráter


normativo dos precedentes

É possível afirmar que uma das consequências desse movimento de protagonismo


judicial é a crescente de aproximação entre os sistemas do common law e o sistema
continental romano-germânico. Não se afirma que exista uma convergência a ponto de
originar uma verdadeira confusão entre as tradições, mas, sim, a incorporação de
determinados institutos como a vinculação dos precedentes (stare decisis215), do
distinguishing e do overruling.

214
Disponível em <
http://portal.anvisa.gov.br/documents/10181/2970929/CONSULTA+PUBLICA+N+327+DIGES.pdf/9d9751f5-
3325-40da-a05f-01974032a7d5 > acesso em 07/11/2017
215
Stare decisis et non quieta movere (mantenha-se a decisão e não se mexa no que está quieto)
168

Não se sabe exatamente se o movimento é positivo ou negativo, se surgirá um


sistema de direito adequado às realidades sociais e econômicas ou se simplesmente
presenciaremos a criação de uma figura incapaz de atender de maneira satisfatória os anseios
sociais de maneira democrática. Mas é fato, por sua vez, que a tendência é uma realidade e
que não se pode fechar os olhos, mas sim, buscar um aprofundamento em todas as suas
nuances para entender o fenômeno e extrair da experiência o máximo possível.

O novo CPC traz em seu texto alguns mecanismos de padronização decisória e de


julgamento por amostragem. Na esteira dos movimentos de ampliação do sistema de
precedentes judiciais, a Lei 13.105 de 2015 refina alguns institutos previstos no Código
revogado, como o de julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos e a
repercussão geral. Por outro lado, insere mecanismos novos de padronização como o
incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência.

Importante destacar que a utilização de métodos de julgamento único extensível aos


demais feitos em situações similares não é novo, podendo ser percebido em institutos como o
litisconsórcio, a conexão, as ações coletivas, entre outros. No entanto, o novo Código de
Processo Civil, avança com a utilização da técnica de precedentes, estabelecendo um caráter
vinculante a ser observado pelos juízes, que deverão utilizar os referenciais decisórios dos
Tribunais216.

Como dito, a doutrina do stare decisis está profundamente ligada ao sistema do


common law, que consiste na utilização dos precedentes construídos pelas cortes para
aplicação a casos semelhantes, vinculando o julgamento futuro através de casos decididos no
passado. Importa destacar que o precedente pode ser horizontal (oriundo do mesmo tribunal)
ou vertical (originário de uma corte superior).

Os defensores da utilização da doutrina do stare decisis sustentam que ela é reflexo


de uma adequação racionalizada da experiência comum, pois os casos passados fornecem
exemplos do raciocínio judicial que já foram objeto de reflexão, sendo a consequência de uma
interpretação da lei. As decisões surgem como resultado de uma experiência momentânea,
pautada em experiências prévias, mas que repercutirão para o futuro. O juiz ficará vinculado

216
Registre-se a crítica apresentada acerca do caráter vinculante, sobretudo em razão da ausência de previsão
constitucional acerca da vinculação dos juízos singulares em relação às decisões dos tribunais superiores. O
efeito das súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal decorre de expressa previsão no texto
constitucional no art. 103-A caput CRFB ao passo que o efeito vinculante das decisões proferidas no IRDR
decorrem apenas do texto legal, violando, em tese, a independência funcional dos magistrados e a independência
entre os poderes.
169

às decisões provenientes de Tribunais hierarquicamente superiores e limitado às decisões


anteriores, prospectando para um caso presente os efeitos de uma decisão proferida há tempos
atrás217.

Ocorre que é preciso ter o cuidado para que haja a aplicação ajustada entre o
precedente e o caso presente. A aferição, que ficará a cargo do aplicador do precedente,
deverá levar em consideração as questões centrais (ratio decidendi) formadoras do
precedente. Para tanto, a intensa atividade interpretativa deve localizar os pontos de
semelhança entre as causas, sob pena de o sistema criar distorções e injustiças. Portanto, para
a justa aplicação do sistema de precedentes, é preciso identificar as questões que
influenciaram o julgamento do caso passado e as causas da nova, posta para julgamento.
Trata-se de conceito cuja definição é complexa, inclusive para os juristas dos países que
seguem a tradição anglo-saxônica218.

Em Luiz Guilherme Marinoni é possível perceber a defesa de que a ratio decidendi


deve ser extraída de elementos como a fundamentação, o dispositivo e o relatório, ou seja, as
reais razões que levaram o julgador a decidir de determinada maneira. Seria indicativo o
elemento que, uma vez ausente, levaria o juiz a decidir de outra maneira219. Para o referido
autor:

Seguindo a linha de defesa, os precedentes ganham autoridade por proporcionar


celeridade, estabilidade e justiça no processo decisório. A otimização do labor do magistrado
vê-se alcançada, no momento em que as causas idênticas têm o mesmo resultado, evitando-se
que a sobrevida de causas decorram de mera formalidade procedimental.

217
No dizer de Frederick Schauer: “Entretanto, de uma maneira igualmente se não mais importante, uma
argumentação por precedente se projeta também para o futuro, pedindo-nos para olhar as decisões de hoje como
um precedente para os julgadores do amanhã. Hoje não é apenas o futuro do passado; é, do mesmo modo, o
ontem do amanhã. Um sistema de precedentes, assim, envolve a responsabilidade especial que acompanha o
poder de comprometer o futuro antes de chegarmos lá.” SCHAUER, Frederick. Precedente. Coleção Grandes
Temas do Novo CPC. Coord. Fredie Didier Jr. Vol. 3. Precedentes. Salvador: Juspodivm. 2015. Pag. 51
218 Para ilustrar cite-se o trabalho de Jose María Salgado – Precedentes y control de constitucionalidad em
Argentina – em que o autor afirmar que alguns teóricos chegam a citar sessenta e quatro técnicas diferentes para
distinguir e identificar a ratio decidendi. SALGADO. Jose María. Precedente y control de constitucionalidad em
Argentina. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Coord. Fredie Didier Jr. Vol. 3. Precedentes. Salvador:
Juspodivm. 2015. Pag. 128
219 De acordo com o autor: “O conceito de ratio decidendi sempre foi muito discutido. Na verdade, a
dificuldade sempre esteve na sua identificação na decisão judicial, embora seja certo que a ratio não se confunde
com o dispositivo e com a fundamentação, mas constitui algo externo a ambos, algo que é formulado a partir do
relatório, da fundamentação e do dispositivo.” MARINONI, Luiz Guilherme. Uma nova realidade diante
do Projeto de CPC: a ratio decidendi ou os fundamentos determinantes da decisão. Disponível em <
http://www.marinoni.adv.br/home/artigos/pagina/3/>. Acesso em 11/04/2016.
170

Nos acórdãos analisados identificou-se uma profunda oscilação entre as posições


assumidas pelos Ministros integrantes da suprema corte. Chama a atenção não apenas a
variação na adesão aos fundamentos, mas, em especial medida, a mudança no sentido das
decisões. Ministros variaram suas posições em processos distintos, mas que apresentavam a
mesma questão de direito controvertida. Nas decisões analisadas, alguns julgadores chegavam
ao ponto de utilizar o mesmo fundamento, em sentidos opostos, para justificar sua decisão.

Apenas para ilustrar a afirmação acima, citamos a decisão do Ministro Ricardo


Lewandowski, nos autos do pedido de suspensão de tutela antecipada n.º 828. Conforme
analise realizada, objetivava-se suspender a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que
havia autorizado o fornecimento da fosfoetanolamina sintética. Embora, num primeiro
momento, tenha mantido a posição de somente conceder medicamento sem registro no Brasil
se existente registro em entidade estrangeira similar além do requisito da inexistência
substância oficial correlata, o Ministro permitiu que o fornecimento da substância em relação
ao estoque remanescente no Instituto de Química de São Carlos da USP220. Faticamente, a
parte final do julgado representou verdadeira contradição com a posição assumida em
situações correlatas bem como em relação ao voto emitido quando do julgamento da ADIN
n.º 5.501, ocorrido em 19 de maio de 2016, quando afirmou a necessidade de se respeitar a
atividade constitutiva do Estado e seu cuidado em evitar especulações e incertezas221.

Outro caso emblemático foi o do Ministro Gilmar Mendes, pois, enquanto presidente
do Supremo Tribunal Federal, enfrentou diversos pedidos de suspensão de liminar, de tutela
antecipada e de segurança222. De modo geral, assumiu uma posição autocontida e, portanto, de
deferência ao procedimento de registro sanitário de medicamentos. Considerou que a

220
Vale transcrever o trecho final da decisão em comento “Isso posto, defiro em parte o pedido para suspender a
execução da tutela antecipada concedida no Agravo de Instrumento 2242691-89.2015.8.26.0000, em trâmite
perante a 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim como todas as
decisões judiciais proferidas em âmbito nacional no mesmo sentido, indicadas ou não nos autos, que tenham
determinado à Universidade de São Paulo o fornecimento da substância “fosfoetanolamina sintética” para
tratamento de câncer, até os seus respectivos trânsitos em julgado, mantido, porém, o seu fornecimento,
enquanto remanescer o estoque do referido composto, observada a primazia aos pedidos mais antigos.” (Grifo
nosso) Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=STA&numero=828&origem=AP>
Acesso em 01/11/2017
221
“Então, não me parece admissível que hoje o Estado, sobretudo num campo tão sensível como é o campo da
saúde, que diz respeito à vida, e à própria dignidade da pessoa humana, possa agir irracionalmente, levando em
conta razões de ordem metafísica, ou fundado em suposições, enfim, que não tenham base em evidências
científicas.” Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=ADI&numero=5501&origem=AP>
Acesso em 03/11/2017
222
Citamos STA 198, STA 244, SL 319, STA 361, STA 348, SS 3854, SS 4045, SS 3962, SS 3989 e STA 260.
Todas as decisões foram analisadas acima.
171

circulação de medicamento sem registro somente poderia ocorrer em situações excepcionais


como no caso dos medicamentos adquiridos por organismo multilaterais internacionais para
aplicação em programas estatais de saúde pública223.

No entanto, apesar do aparente respeito à necessidade de registro da substância, no


julgamento da STA n.º 244, o Ministro não concedeu o pedido de suspensão da tutela
antecipada formulado pelo Estado do Paraná, significando a manutenção dos efeitos da
decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que determinou que o Estado fornecesse o
medicamento sem registro. Na decisão monocrática, proferida em 11 de novembro de 2008,
primeiramente, solicitou-se informações à ANVISA sobre eventual pedido de registro e a
posição do procedimento em trâmite na autarquia224.

No retorno do processo para a análise definitiva, ocorrido em 18 de setembro de


2009, o Ministro indeferiu o pedido de suspensão sob o argumento que o medicamento teria
obtido o registro no órgão de vigilância sanitária, razão pela qual o pedido de suspensão da
liminar merecia o indeferimento. O paradoxo decisório do magistrado, também, restou

223
“Como ficou claro nos depoimentos prestados na Audiência Pública, é vedado à Administração Pública
fornecer fármaco que não possua registro na ANVISA. A Lei Federal n.º 6.360/76, ao dispor sobre a vigilância
sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, determina em
seu artigo 12 que “nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser
industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”. O artigo
16 da referida Lei estabelece os requisitos para a obtenção do registro, entre eles, o de que o produto seja
reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe. O Art. 18 ainda determina que, em se tratando de
medicamento de procedência estrangeira, deverá ser comprovada a existência de registro válido no país de
origem. O registro de medicamento, como lembrado pelo Procurador-Geral da República, é uma garantia à saúde
pública. E, como ressaltou o Diretor-Presidente da ANVISA, a agência, por força da lei de sua criação, também
realiza a regulação econômica dos fármacos.
Após verificar a eficácia, a segurança e a qualidade do produto e conceder o registro, a ANVISA
passa a analisar a fixação do preço definido, levando em consideração o benefício clínico e o custo do
tratamento. Havendo produto assemelhado, se o novo medicamento não trouxer benefício adicional, não poderá
custar mais caro do que o medicamento já existente com a mesma indicação.
Por tudo isso, o registro na ANVISA mostra-se como condição necessária para atestar a segurança e
o benefício do produto, sendo a primeira condição para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua
incorporação. Claro que essa não é uma regra absoluta. Em casos excepcionais, a importação de medicamento
não registrado poderá ser autorizada pela ANVISA. A Lei n.º 9.782/99, que criou a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), permite que a Agência dispense de “registro” medicamentos adquiridos por
intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso de programas em saúde pública pelo Ministério
da Saúde.” Disponível em <
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=SL&numero=319&origem=AP> acesso
em 03/11/2017.
224 “Considerando a competência da ANVISA para regular, controlar e fiscalizar a segurança sanitária dos
medicamentos, função de fundamental importância para a proteção e a promoção da saúde pública, solicitem-se
informações à Agência Reguladora sobre o medicamento Naglazyme, objeto do pedido de suspensão. Informe a
Agência, no prazo de 10 dias, se há autorização para a importação do referido medicamento, em que estágio se
encontra seu pedido de registro no Brasil, se o fármaco é considerado seguro para o consumo e qualquer outra
informação técnica que julgue relevante.” Disponível em <
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=STA&numero=244&origem=AP>
Acesso em 03/11/2017
172

evidenciado no julgamento da ADIN n.º 5.501 quando o Ministro votou pela aplicação da
técnica da interpretação conforme, para autorizar o fornecimento da fosfoetanolamina
sintética para os pacientes em estágio terminal de câncer, desconsiderando os protocolos
clínicos225.

Outro contrassenso argumentativo foi identificado foi na participação do Ministro


Edson Fachin nos julgamentos do RE n.º 657.718 (repercussão geral) e da ADIN n.º 5.501.
No primeiro caso, o Ministro considerou que a possibilidade de reivindicação de um
medicamento estaria subordinada à comprovação de eficácia, segurança e qualidade por meio
dos protocolos e diretrizes sanitárias e, desse modo, o Estado não poderia ser obrigado a
fornecer medicamento sob o risco de exposição dos pacientes aos danos não aferidos226. Já no
julgamento da ADIN n.º 5.501, o julgador instaurou a controvérsia no sentido de se admitir o
fornecimento da fosfoetanolamina sintética para os pacientes acometidos com neoplasia
maligna, desconsiderando a necessária autorização da agência de vigilância sanitária,
acrescentando que a competência regulatória da agência não é privativa227.

Por fim, notou-se decisões em descompasso proferidas pela ministra Cármen Lúcia.
Por exemplo, no julgamento dos pedidos de suspensão de liminar n.º 558 e 633, a magistrada
justificou seu voto na ponderação de valores e a indiscutível prevalência do direito à vida.
Negar o fornecimento do medicamento, na visão da ministra, redundaria no risco de dano à
vida do paciente. Tais decisões foram proferidas após o julgamento da ADIN n.º 5.501 em
que a magistrada considerou que era preciso reconhecer o caráter indispensável do
procedimento de verificação da segurança, eficácia e qualidade, realizada pela entidade de

225
“Mas, a meu ver, estamos diante daquela hipótese em que o tratamento ainda não pode ser registrado, não
passou pelos testes da Anvisa, que são complexos, mas há situações que, de fato, exigem algum tipo de resposta.
É um tratamento de caráter alternativo. Se provoca um bem-estar que, como disse a Ministra Cármen, vai
propiciar um melhor desenvolvimento e um melhor estágio espiritual e, por isso, contribuir para com o
tratamento, inclusive, com os métodos ortodoxos, já será algo importante, significativo.” Disponível em <
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039> acesso em 03/11/2017
226
“Trata-se, dessa forma, de assumir uma postura mais deferente às escolhas técnicas ou democráticas tomadas
pelos órgãos competentes, sem deixar que a Administração ou as entidades regulatórias deixem de prestar contas
de sua atuação.” Disponível em <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/9/art20160929-02.pdf> Acesso em
03/11/2017. Lembramos que na ocasião do levantamento dos votos o feito estava suspenso em razão de pedido
de vista.
227
“A competência atribuída à agência não é privativa, porquanto, nos termos do art. 200, caput, da Constituição
Federal, é exercida nos termos da lei. Noutras palavras, a concretização da proteção à saúde é feita pelo poder
legislativo. A constituição de agência própria para realizar as atribuições controle é, nessa perspectiva, faculdade
do legislador, ou, como prefere parcela expressiva da doutrina nacional, a legitimidade da atuação regulatória
deve ser exercida intra legem. Sob essa perspectiva, não haveria impedimento para que determinada substância
viesse a ser regulada por meio de lei. A Anvisa não detém competência privativa para autorizar a
comercialização de toda e qualquer substância.” Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039> acesso em 03/11/2017
173

vigilância sanitária228. Contudo, como destacado, no julgamento dos pedidos de suspensão de


liminar a ministra pontuou a necessidade de se preservar o direito à vida, indeferindo,
portanto, o pedido de suspensão da liminar e, consequentemente, autorizando a circulação da
substância sem o regular registro.

No plano das decisões colegiadas, os ministros permaneceram mais vinculados à lei,


ao passo que, nas decisões monocráticas, pareceram mais sensíveis à condição dos pacientes-
requerentes.

Como afirmado, esses são apenas alguns exemplos das oscilações dos Ministros
sobre temas idênticos, fato que prejudica enormemente a formulação de um referencial
hermenêutico dentro da Suprema Corte. Como destacado por Fernanda Duarte, há um
comportamento do Judiciário que impede a formulação de uma lógica diante falta de
consensos, na verdade, a falta de uma mediação entre as interpretações possíveis acaba por
devolver o conflito para a sociedade229. Por essa lógica do contraditório230, como tratado pela
autora, as práticas discursivas reproduzem, de fato, uma disputa de teses em que a não
formação de consensos impede a construção de um diálogo argumentativo capaz de
convencer a sociedade interessada na decisão judicial.

Dentro de uma proposta de coerência decisória, alcançável intuitivamente por


qualquer indivíduo de mediana compreensão, espera-se que haja uma valorização interna dos
entendimentos firmados pelos Tribunais. Não foi diferente a orientação adotada pelo Código
de Processo Civil vigente, que estabeleceu a necessária estabilidade, integridade e coerência
das jurisprudências construídas pelos Tribunais. O Supremo Tribunal Federal, enquanto
guardião precípuo da Constituição Federal e principal elemento da realização da jurisdição

228
“Estou acompanhando o Ministro-Relator, com base na Constituição, no que se refere ao princípio da
precaução - que normalmente a gente usa em matéria ambiental, mas que acho que é para a saúde, e, portanto,
sem receio do perigo inverso -, especialmente pela possibilidade que a própria Resolução da Anvisa, a Resolução
nº 38, garante que aquele que esteja na situação de ter de se submeter àquele tratamento e demonstrar as
condições, não apenas nos termos previstos na Lei. Pela lei, seria apenas o diagnóstico de câncer e o
consentimento do interessado. Quem está no desespero pode tomar decisões mais graves do que a situação
vivida. E, às vezes, uma dor nos leva facilmente a aderir a alguma coisa sem passar pelos procedimentos que
dariam alguma segurança.” Disponível em <
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039> acesso em 03/11/2017
229
DUARTE, Fernanda. Método de decisão judicial e Supremo Tribunal Federal: Uma gramática a ser
descoberta. In: Cadernos Temáticos “Justiça Constitucional no Brasil: Política e Direito. Anais do Seminário
Nacional sobre justiça constitucional Seção especial da revista EMARF. TRF 2ª Região. Dez/2010.
230
Como destacado pela autora, a lógica do contraditório não se confunde com o princípio do contraditório. Este
encarado como uma proposta de audiência prévia das partes antes da tomada de uma decisão. A lógica do
contraditório, por sua vez, remonta uma tradição da civil law, com os exercícios oratórios/retóricos do trivium da
Escola de Bologna. Nesses exercícios, instaurava-se uma disputa dialética infinita entre os alunos do curso de
Direito. Op. Cit. P. 290
174

constitucional no país, desempenha função fundamental nesse propósito de elaboração


integrativa do sistema e de concessão de normatividade aos precedentes.

O modo deliberativo e decisório da Corte dificulta a elaboração de um viés


normativista da jurisprudência. Dois motivos são evidentes dentro da crítica observada por
meio dos acórdãos analisados. O primeiro reside na maneira em que os fundamentos são
apresentados para sustentar as decisões dos Ministros, ou seja, há uma variação nas peças
argumentativas construídas a partir de raciocínios distintos e independentes, com pouca
interação entre as manifestações individuais dos julgadores. Essa preponderância entre a
argumentação individual em detrimento do discurso coletivo interfere, sobremaneira, na
captação do sentido efetivo da decisão. É possível afirmar que muitas decisões do plenário do
Tribunal são colegiadas apenas no resultado, pois há uma grande individualidade nos
fundamentos expostos pelos Ministros. Desse modo, apesar de oriundas de órgão colegiado,
não se pode afirmar coletiva a decisão.

O outro fator negativo reside no tratamento dado à pretensa força vinculante da


jurisprudência, pois a inconstância decisória fragiliza a estruturação hierarquizada do sistema
de precedentes. A fragilidade é percebida em diversos momentos e sobre os variados temas231,
não apenas naqueles dispostos no presente levantamento. Grosso modo, o STF não interage
adequadamente com seus precedentes, valendo-se de decisões anteriores apenas para reforçar
uma tese232, assumindo um uso estratégico e não a utilização vinculada dos precedentes. O
tratamento inadequado da jurisprudência percebido dentro do próprio Tribunal reflete uma
lógica prejudicial para os demais órgãos do Judiciário. No momento em que o valor

231
A título de ilustração, podemos lembrar a recente discussão travada na Suprema Corte acerca da interpretação
do princípio da presunção de inocência e da possibilidade de execução provisória da pena. Apenas para
relembrar, em 2009 o STF julgou o HC 84.078, firmando o entendimento que não seria cabível prisão antes do
trânsito em julgado da sentença condenatória. Contudo, em 2016, o Tribunal julgou novamente a questão (HC
126.292) alterando o entendimento e passando a admitir o cumprimento provisório da pena após a condenação
em segunda instância. O tema ainda voltaria para a pauta do Tribunal no julgamento de medidas cautelares nas
ações declaratórias de constitucionalidade n.º 43 e 44, em que se manteve e entendimento que mitigava a
presunção de inocência. A despeito da posição firmada por apertada maioria (6X5), alguns Ministros aplicaram a
posição inicial, concedendo ordem em habeas corpus para afastar o cumprimento provisório da pena (por todos
citamos o caso julgado pelo Min. Ricardo Lewandowski no HC 137.063). Todavia, o tema voltará, em breve,
para discussão quando do julgamento definitivo das ADCs n.º 43 e 44 quando o Tribunal voltará a analisar o
tema, havendo possibilidade de inversão do resultado diante da alteração na composição da Corte.
232
“Considerando as citações de precedentes, observou-se que o STF também as faz geralmente para confirmar a
vigência e a aplicação do precedente. É o que se verificou em cerca de 94% das citações mapeadas. Raramente o
STF afasta ou supera expressamente um precedente citado – citações para afastamento não chegaram a 4%, e as
feitas para superação de precedente não chegaram a 2% do total. Os números sugerem que as citações são
inseridas nos votos para corroborar os pontos de vista defendidos pelos Ministros.” SUNDFELD, Carlos Ari e
SOUZA, Rodrigo Pagani. “Accountability” e Jurisprudência do STF: estudo empírico de variáveis institucionais
e estrutura das decisões. In: Vojvodic, Adriana et al. Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros.
2012. P. 89
175

normativo do precedente é descuidado por aquele competente por encabeçar a direção da


ascendência vertical e estabelecer a homogeneidade decisória, os reflexos são sentidos por
toda a ordem jurídica.

A inserção no Brasil de um modelo estruturante do Direito, que busca conferir


normatividade aos precedentes, enfrenta diversos questionamentos, especialmente diante das
fragilidades expostas por circunstâncias culturais. A repercussão completa da pretensão
integrativa dos precedentes não se sentirá apenas com uma previsão legal, necessitando de um
tempo de experimentação e adaptação. Contudo, certamente, esse processo de ajustamento
será retardado em razão desse comportamento desarmônico aferido no interior do STF.
176

CONCLUSÃO

Como visto, as discussões sobre o direito à saúde ramificam-se por diversas áreas do
conhecimento humano. No plano do Direito, vários debates são travados dentro da proposta
de se compreender as reais possibilidades de validade e eficácia dos juízos incorporados pelos
intérpretes. Não se pode desconsiderar que as posições assumidas repercutem no sentido da
adesão coletiva, pois ao se compreender a impossibilidade de absolutização do direito
fundamental à saúde, surgem possíveis recusas diante da carga humanitária do tema. Todavia,
marcar a posição pretendida no presente trabalho significa adotar o sentido do equilíbrio do
Direito bem como, dentro de uma perspectiva fático-pragmática, adequar-se à realidade
social, política e econômica brasileira, ainda que para tanto seja preciso assimilar as críticas
destacadas.

Buscamos estabelecer um referencial teórico propenso compreender a gênese e a


justificativa dos direitos fundamentais. As necessidades humanas são pontos de partida de
qualquer defesa de reconhecimento e consagração dos direitos fundamentais. Há óbvia
relação entre eles, de maneira que a ausência de satisfação de uma necessidade representará
inadmissível cenário de injustiça. No entanto, como sustentado, as necessidades humanas são
identificáveis a partir da inafastável preservação/evitabilidade de um dano. Somente diante do
dano, coletivamente reconhecido, serão legítimas as práticas reivindicativas de
reconhecimento ou efetivação de um direito fundamental.

É assentado nessas premissas que a tese assume a posição de rejeitar a posição que
procura absolutizar os direitos fundamentais sob a retórica da preservação da vida enquanto
bem maior do indivíduo. Não se pode afirmar o desempenho de uma necessidade humana a
concessão de medicamento destituído de registro já que incerto seu potencial curativo e, por
conseguinte, obstativo de um dano. Não que o procedimento de aferição de eficácia e
segurança realizado pelas entidades fiscalizadoras seja capaz de excluir integralmente os
riscos, contudo, há significativa redução e, desse modo, mostra-se sensato conservar o
irremediável pressuposto procedimental/fiscalizatório.
177

A intervenção judicial, que se revela como instrumento de uma pretensa


integralidade dos valores constitucionais, nesse aspecto, subverte a racionalidade democrática
além de apresentar uma argumentação permeada por incorreções axiológicas e subjetivismos
da ponderações de valores. O protagonismo exercido pelo Judiciário nas últimas décadas,
legitimou, ao menos no sentido do senso comum, a assunção de inúmeras posições de
conteúdos ativistas, contando, bem verdade, com a tolerância dos demais atores políticos.
Ocorre que, isso não é suficiente, nem mesmo adequado.

A tentativa de reformulação e superação teórica, metodológica e ideológica do


positivismo jurídico, sobretudo conduzidas pelas críticas do formalismo, legalismo,
burocracia ou, até mesmo de servir para a concretização de um modelo de estado liberal233, na
verdade, não são suficientes para provocar seu afastamento. Todas as propostas de ruptura e
superação representaram, faticamente, pequenas mutações teóricas, mantendo a matriz
fundamental. Tais teorias sucumbiram diante de contradições e inexistência de respostas
concretas para alguns obstáculos jurídicos, como o defendido no presente trabalho.

O juiz, ao autorizar o uso de uma substância desprovida de registro, desposando de


uma valoração defensável eticamente, desconsidera uma metodologia criada dentro de uma
perspectiva de competências e, por ele, inapropriável no plano cognitivo. Dessa forma, o cariz
substantivo das teorias que pretendem suplantar um suposto paradigma formal-normativista
do positivismo jurídico tem o benefício da eloquência, contudo, sucumbe diante das
incertezas criadas pelos critérios subjetivos e variáveis do intérprete só superados por uma
racionalidade empirista.

Ocorre que, em todas as perspectivas apresentadas, o desfecho reforça a expectativa


acerca dos riscos derivados do subjetivismo e do decisionismo, pois a quem cabe identificar o
maior ou menor grau de bondade ou maldade? Quais os referenciais de justiça podemos tomar
como corretos considerando uma “inexorável” discricionariedade para ponderar os princípios
em conflito? Como alcançar a melhor resposta partindo-se da premissa que o juiz Hércules
está no plano ideal e que, faticamente, contamos com juízes de carne e osso?

A segurança jurídica e a estabilidade devem permitir a previsibilidade das decisões,


evitando incoerências ou surpresas do ato decisório, especialmente por impedirem os

233
Curiosamente Dworkin destaca que o positivismo jurídico, chamado por ele de teoria dominante, sofre
críticas de ambas as matrizes ideológicas, ou seja, é acusado por uns como uma ideologia de “esquerda” e por
outros como uma teoria ligada à “direita” política. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo:
Martins Fontes. 2014. P. XII e XIII.
178

subjetivismos e arbitrariedades do aplicador. A despeito da polissemia do termo segurança


jurídica234, adotamos, aqui, o sentido de respeito às competências constitucionais, rejeitando
as teses que conferem, ao aplicador, poderes criativos ou aplicação de normas
desconsiderando uma perspectiva hierárquica. As eventuais distorções entre o plano das
regras e a realidade social devem ser corrigidas por meio de reformas derivadas da autoridade
constitucionalmente competente.

A segurança jurídica é um valor vinculado ao Estado de Direito através de


indicadores objetivos de correção estrutural, ou seja, por meio de formulações corretas das
normas integrantes do ordenamento jurídico e funcional, derivado da adequada observância
dos órgãos incumbidos da aplicação. Além dessa dimensão objetiva, há o aspecto subjetivo,
assumido pela certeza de cumprimento do Direito por seus destinatários que confiam no
respeito aos referenciais estruturais e funcionais.

Embora possa parecer uma escolha orientada por razões de contornos emocionais,
como “a escolha de Sofia”, a racionalidade prevalece se consideramos a fundamentação na
crença nas opções do Legislador. A discricionariedade judicial, admitida inclusive no plano
do positivismo jurídico235, deve se pautar por elementos objetivos. Na decisão entre o direito à
vida e o fornecimento de um medicamento sem registro o julgador deve compreender a
concepção do dano para rejeitar a prestação.

No caso discutido no presente trabalho, deve-se considerar que a regra inserta no


ordenamento veda o fornecimento do medicamento sem registro, partindo-se de uma decisão
política do legislador. Há de se considerar que, no momento da tomada da decisão,
considerações sobre prováveis reflexos da negativa poderiam derivar, restando, fixada a
impossibilidade de fornecimento.

A indagação que se extrai é: será que o legislador, ao instituir a vedação legal,


desconsiderou os casos de doentes que necessitam de medicamentos sem registro? A
discricionariedade decisória do legislador optou por preservar um interesse coletivo, diante
234
Como noticia Dimoulis, Gometz enumerou mais de dez significados para a expressão. DIMOULIS, Dimitri.
Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo:
Método. 2006. P. 197
235
Como destaca Lenio Streck “O juspositivismo, como demonstrei, está intimamente ligado à ideia de
discricionariedade judicial, desde suas versões primeiras. De início, encontrava-se no “legislador” que
soberanamente dizia o direito, que após seria apenas declarado pelos juízes. Posteriormente, e até os dias atuais,
houve um deslocamento para o Judiciário, de modo que tem sido considerada um fenômeno inescapável ou o
modo adequado de buscar o justo para o caso concreto.” STRECK, Lenio Luiz. A crítica hermenêutica do
Direito e a questão da discricionariedade judicial. Revista Direito e Liberdade – RDL – ESMARN. V. 18, n.º 1.
Jan./abr. 2016. P. 221-245
179

dos prováveis riscos decorrentes da circulação de substância de eficácia e segurança incertas.


Esse sistema de regras válidas e instituídas de modo precedente asseguram o equilíbrio a
partir do momento em que exclui tudo aquilo que não pode ser aferível ou valorado
objetivamente, transferindo para o plano metafísico ou irracional todas as conclusões não
experimentáveis.

Conforme destacado acima, dentro de uma das premissas estruturais do positivismo


jurídico, é preciso respeitar as competências constitucionalmente definidas, de modo a
fornecer estabilidade mínima aos indivíduos. Reforçamos a abordagem feita anteriormente
acerca das capacidades institucionais, na tentativa de rejeitar as propostas que flexibilizam e
transferem o local decisório.

Dos acórdãos analisados na pesquisa, revelou-se que o Supremo Tribunal Federal


assume um discurso que se caracteriza mais pela instabilidade que pela formação equilibrada
de padrões decisórios. As variações argumentativas restaram evidentes no plano individual e
coletivo. Com certa regularidade os Ministros, nas decisões monocráticas, aderiram à posição
favorável ao fornecimento de medicamentos sem registro, o mesmo não ocorrendo quando
dos julgamentos colegiados, quando a maioria foi formada no sentido de rejeitar tais
pretensões. Há nítida sinalização no sentido de não aderir à decisões moralmente reprováveis
quando instados a julgamentos isolados. Já nos casos julgados colegiadamente, a
despersonificação da decisão permite, ao juiz, assumir um discurso mais próximo do
empirismo metodológico, da validade e integridade do Direito. O propósito normativista dos
precedentes tende a fracassar diante do cenário de instabilidade de referenciais decisórios
concretos e de magistrados temerosos com as repercussões de suas decisões.

É preciso que o Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião último da


Constituição, promova a concretização dos direitos fundamentais, mas sem abandonar a
integridade do Direito, entendendo a integridade como uma defesa contra as arbitrariedades
interpretativas. Deve a Corte afastar-se da sedução do conjunto de princípios, do voluntarismo
e da discricionariedade, máxime quando se tratar de questões de demandem uma razão
técnico-científica conferida a órgãos seja pela ideia de separação de poderes, seja por conta
das capacidades institucionais.
180

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