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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 525

Judicialização da saúde: para onde


caminham as produções científicas?
Judicialization of health: where are heading the scientific
productions to?

Maria dos Remédios Mendes Oliveira1, Maria Célia Delduque2, Maria Fátima de Sousa3, Ana
Valéria Machado Mendonça4

RESUMO Neste estudo são analisados artigos, teses, dissertações e monografias produzidos no
Brasil, no período de 2009 a 2013. Os estudos sobre judicialização da saúde têm aumentado a
cada ano, demonstrando a importância do tema, buscando meios de compreender e apontar
soluções para o problema. O texto discute formalmente o descritor ‘judicialização da saúde’,
fazendo análises com os resultados encontrados em 20 estudos localizados a partir do banco
de dados da Biblioteca Virtual em Saúde e da Scientific Electronic Library Online. Este artigo
oferece um panorama sobre a temática e fomenta novas produções para que se compreenda o
fenômeno da judicialização da saúde.

PALAVRAS-CHAVE Judicialização da saúde; Acesso a medicamentos; Saúde pública.

ABSTRACT In this study are analyzed articles, theses, dissertations and monographs produced
in Brazil, in the period from 2009 to 2013. Studies about judicialization of health have increa-
sed each year, demonstrating the importance of the topic, looking for ways to understand and
point solutions for the problem. This text formally discusses the descriptor ‘judicialization of
health’, making analysis with the results found on 20 studies located from the databases of
the Health Virtual Library and Scientific Electronic Library Online. This article provides an
overview on the subject and fosters new productions in order to understand the phenomenon
of judicialization of health.

1 Universidade de Brasília KEYWORDS Judicialization of health; Access to medication; Public health.


(UnB) – Brasília (DF),
Brasil.
remediosmendes@hotmail.
com

2 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz) – Brasília (DF),
Brasil.
delduque@fiocruz.br

3 Universidade de Brasília
(UnB) – Brasília (DF),
Brasil.
mariafatimasousa@uol.
com.br

4 Universidade de Brasília
(UnB) – Brasília (DF),
Brasil.
valeriamendonca@unb.br

DOI: 10.1590/0103-110420151050002019 SAÚDE DEBATE | rio de Janeiro, v. 39, n. 105, p.525-535, ABR-JUN 2015
526 OLIVEIRA, M. R. M.; DELDUQUE, M. C.; SOUSA, M. F.; MENDONÇA, A. V. M.

Introdução públicas (CAMPILONGO, 2002). Com o setor da


saúde, esse fenômeno ocorre de maneira
O tema saúde como um direito não é um exacerbada, o que se convencionou chamar
‘objeto’ de estudo recente no Brasil, haja vista de judicialização da saúde.
a larga produção do conhecimento no campo Quanto a esse conceito, acompanhamos o
da saúde coletiva. Ainda assim, os estudos e entendimento de Brito (2011), quando concei-
as pesquisas sobre o tema do direito à saúde tua judicialização da política na perspectiva
carecem de um aporte de reflexões acadêmi- da expansão da influência e dos procedimen-
cas que possam dar o suporte teórico e delimi- tos do poder judiciário em áreas antes desig-
tar os marcos jurídico-legais da saúde como nadas ao executivo e ao legislativo. Menciona,
um campo de práticas sociais (SOUSA, 2007). por exemplo, a formulação de políticas pú-
A conquista do direito à saúde como blicas e afirma que o debate nacional tem se
dever do Estado, assegurado há mais de 25 norteado pelo conceito de judicialização da
anos pelo art. 196 da Constituição Federal, política traçado por Tate e Vallinder (1995),
promulgada em 1988 (BRASIL, 2012), ainda não conceito que vem sendo usado nos estudos
se constitui de fato em acesso aos bens e ser- de judicialização da saúde.
viços no âmbito do Sistema Único de Saúde Logo, o fenômeno da judicialização vem
(SUS). Nesse sentido, os cidadãos recorrem sendo adotado como estratégia dos sujei-
à prestação jurisdicional de maneira indivi- tos para garantir seus direitos recorrendo
dual ou coletiva, demandando do Estado o ao Poder Judiciário, e tem acontecido, so-
cumprimento do preceito constitucional. bretudo, em duas dimensões distintas: uma
No que afirmam Delduque e Oliveira (2009, individual e outra coletiva. Assim, a busca
P. 110), a conquista do direito à saúde não ter- da garantia do direito à saúde tem passado
minou com sua inscrição na Constituição pela atuação de diversas instâncias judiciais:
Federal de 1988. Dizem, ainda, que “[...] os o Poder Judiciário, o Ministério Público e a
tijolos assentados até agora na sua cons- Defensoria Pública.
trução, embora tenham representado um Nos primeiros anos da década de 1990,
enorme avanço, não foram suficientes para para assegurar o direito à saúde, a grande
levantar a morada desse direito para todos”. procura do Judiciário se dava em função
Afirmam, sobretudo, que, enquanto houver do acesso aos medicamentos como os antir-
indicadores sociais a demonstrar iniquida- retrovirais. Essa busca provocou no poder
des, injustiça social e quadros epidemio- público a criação da política pública de dis-
lógicos não favoráveis, o direito à saúde tribuição gratuita de medicamentos.
permanece em construção. Com o surgimento da Lei nº 9.313/96,
É certo que, embora a Constituição criada para garantir a distribuição gratuita
garanta o princípio da inafastabilidade do e universal de antirretrovirais, esperava-
órgão judicante para resolução dos confli- -se a diminuição da discricionariedade dos
tos, garantindo a qualquer cidadão recor- juízes e, consequentemente, a diminuição
rer ao terceiro poder para ver o seu direito da interferência do Poder Judiciário no
assegurado, em caso de lesão ou ameaça, campo da saúde. No entanto, o que se ob-
muitas vezes, a decisão jurídica pode servou foi justamente o oposto. Se, antes,
influir nas decisões coletivas tomadas pelo o artigo 196 era considerado uma norma
sistema político. E disso pode resultar um programática, a partir do ano de 1997,
Judiciário que decide politicamente sem o mesmo texto passou a ser reconheci-
a estrutura necessária para atuar com a damente uma norma constitucional de
lógica, o ritmo e a prática do sistema po- plena eficácia. Isso, no entanto, não é um
lítico, formulador e executor das políticas consenso no meio jurídico (MACHADO, 2011).

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O autor argumenta que, antes daquele ano, Metodologia


todas as ações (individuais e coletivas) en-
caminhadas à justiça, buscando a obtenção Este artigo se propõe a empreender uma
de bens e serviços de saúde, eram sumaria- revisão bibliográfica a fim de aprofundar o
mente negadas, ao passo que, a partir de referencial teórico-conceitual sobre a judi-
1997, quase todos os pedidos passaram a ser cialização em saúde. Com isso, pretende ilu-
aceitos pelo Poder Judiciário. minar as discussões do objeto da dissertação
Nessa direção, o debate em torno do uso no mestrado profissional em saúde coletiva
de ações judiciais referentes ao direito à da Faculdade de Ciências da Saúde/UnB,
saúde vem se expandindo concomitan- acerca da questão ‘As demandas judiciais em
temente ao crescimento do uso dessa via saúde pós-audiência do STF e a mediação
para o fornecimento de bens e serviços de sanitária como alternativa à judicialização’.
saúde. Tal crescimento é apontado pelos A metodologia utilizada foi a descritivo-
autores Messeder, Osorio-de-Castro e -analítico-reflexiva, que, segundo Marcolino
Luiza (2005), Vieira e Zucchi (2007) e Romero e Mizukami (2008), permite, por meio do em-
(2008), em estudos empreendidos no Rio de basamento em referenciais bibliográficos
Janeiro, em São Paulo e no Distrito Federal, existentes na literatura, a análise reflexiva
respectivamente. do tema proposto sob o modo descritivo.
Assim, a judicialização da saúde, ini- Para a realização da revisão, utilizou-se a
cialmente requerida de forma individual, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e a Scientific
acabou ganhando novos contornos e exigin- Electronic Library Online (SciELO), conside-
do um debate mais profundo, inclusive com rando-se as publicações em língua portuguesa,
a entrada da instância máxima desse poder: entre janeiro de 2009 e dezembro de 2013. Os
o Supremo Tribunal Federal (STF), que, sen- dados foram pesquisados durante o período de
tindo a necessidade de compreender para dezembro de 2013 a março de 2014. E, como
melhor decidir, quis ouvir os atores sociais descritor de interesse, foi utilizado judicializa-
dessa nova realidade, que desafia a refletir ção da saúde.
e impulsiona para novas condutas. Desse As produções científicas analisadas foram
modo, instalou a Audiência Pública em que provenientes de artigos oriundos de teses,
foram ouvidos 50 especialistas, entre advo- dissertações e monografias publicadas em
gados, defensores públicos, promotores e formato de artigos originais. O local de pro-
procuradores de justiça, magistrados, pro- dução ficou restrito à judicialização na saúde,
fessores, médicos, técnicos de saúde, gesto- no âmbito do SUS. Tomou-se como questão
res e usuários do SUS, nos dias 27, 28 e 29 de geradora da busca a seguinte pergunta: como
abril, e em 4, 6 e 7 de maio de 2009. Dessa se apresenta a produção científica sobre judi-
Audiência Pública surgiram as recomenda- cialização na saúde no Brasil de 2009 a 2013?
ções do Conselho Nacional de Justiça, para Os critérios de inclusão: (1) Estudos reali-
que os Tribunais Estaduais passassem a zados no Brasil de 2009 a 2013; (2) Produzidos
decidir de forma homogênea e conhecedora em português; (3) Que tratam da judicializa-
do SUS e para que, com isso, pudessem apro- ção de bens e serviços no âmbito do SUS. E os
fundar a discussão dos rumos da judicializa- critérios de exclusão: (a) Estudos que tratam
ção da saúde no Brasil. da judicialização do subsistema de saúde
O presente artigo tem como objetivo suplementar; (b) Publicações referentes a
descrever, de forma analítica e reflexiva, a relatos de experiências e artigos de opinião,
produção científica existente no Brasil, no resenhas de livros, notas técnicas; (c) Estudos
período de 2009 a 2012, acerca do tema da realizados fora do período delimitado para a
judicialização da saúde. busca da produção em literatura científica.

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A análise concentrou-se, essencialmente, na teses, dissertações e monografias, com o des-


revisão da literatura, complementada por re- critor: judicialização da saúde, provenientes
flexões subsidiadas pelas práxis das autoras. de 10 revistas nacionais, conforme verifica-
-se no gráfico 1. A produção sobre o tema foi
reconhecida pelo mundo acadêmico nos seus
Os caminhos das principais periódicos, revelando a importân-
produções científicas sobre cia dessa questão. Revela ainda ser esse um
assunto de alto interesse para os profissionais
judicialização da saúde da área da saúde coletiva/pública, que sempre
tiveram significativa presença na defesa dos
Dos 47 artigos pesquisados nas bases men- direitos individuais e coletivos no campo da
cionadas, foram analisados 20 oriundos de saúde e na construção do SUS.

Gráfico 1. Número e porcentagem de artigos de acordo com os periódicos de publicação

Revistas
Ciênc. saúde coletiva (4)
7%
13% 7% Rev. Saúde Pública (2)
6%
6% Rev Panam Salud Publica (1)
6%
62% 6%
6% Physis (1)
25%
6%
6% Cad. Saúde Pública (1)
6%
Rev. salud pública Bogotá (1)

Fonte: Elaboração própria

Com relação aos temas abordados nos para suas necessidades individuais por essa via.
artigos analisados, conforme se vê no gráfico Embora as políticas e ações públicas de
2, o maior número refere-se à pesquisa sobre assistência farmacêutica tenham avança-
judicialização para acesso a medicamentos. Os do, constatam-se dificuldades de acesso da
avanços das políticas públicas na assistência às população aos medicamentos necessários à
pessoas com HIV/Aids parecem ter animado assistência integral à saúde. Segundo estudo
outros movimentos sociais organizados e a realizado por Vieira e Zucchi (2007), estimou-
população em geral, pois, nas últimas décadas, -se que, no ano 2000, 41% da população bra-
pode-se constatar que a reivindicação judicial sileira não tinha acesso a medicamentos.
passa a ser largamente utilizada como mecanis- Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia
mo de garantia de direitos e ampliação de po- e Estatística (IBGE) (2004), a despesa com me-
líticas públicas, ampliando, inclusive, a atuação dicamentos representa o maior dispêndio das
do Ministério Público nesse âmbito (VENTURA ET famílias brasileiras no item saúde. A maioria
AL., 2010). Mas, também, constata-se a inclusão das ações que buscam o acesso a medica-
do recurso judicial no ‘itinerário terapêutico’ mentos é patrocinada pela Defensoria e pelo
(GERHARDT, 2006) de milhares de cidadãos que, de Ministério Público, sendo a urgência e a falta
forma individual, buscam garantir o forneci- de recursos financeiros as principais alega-
mento de insumos e procedimentos de saúde ções respaldadas nas decisões judiciais.

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Gráfico 2. Número e porcentagem dos artigos analisados

Temática Direito ao acesso a serviços


de saúde (1)
100%

Judicialização excessiva na relação


90%
entre médicos e pacientes (1)

80%
Marco histórico-conceitual
judicialização (1)
70%
Audiência pública da saúde (1)
60%

Fenômeno da judicialização da vida


50% na contemporaneidade (1)

40% Sistema de Pedido Administrativo,


perspectiva interdisciplinar (1)
30%
Assistência terapêutica (1)
20%
Análise das ações junto
10% aos tribunais (1)

0% Acesso a medicamentos (12)


Artigos
Fonte: Elaboração própria

Há estudos que analisam o acesso a me- por advogado particular não é indicador de
dicamentos específicos para determinadas que a elite é classe dominante na judicializa-
doenças, que, por atingirem um número res- ção por acesso a medicamentos de alto custo.
trito da população, são tratadas como doenças Ainda ressalta o custo médio de mais de
raras, e, por esse motivo, não obtém do poder R$ 1,1 milhão para a aquisição de medica-
público o interesse de criar políticas públicas mento por determinação judicial em cada
voltadas para esse público específico, que ação, exemplificando a submissão a que se
se protege na criação de Organizações Não sujeita o governo brasileiro na compra de
Governamentais (ONGs) e conta com o pro- medicamentos para as Mucopolissacaridoses
tagonismo do Ministério Público. (MPS): doenças genéticas raras, hereditá-
No acesso a medicamentos de altíssi- rias, causadas pela atividade deficiente de
mo custo, segundo estudo realizado por uma das enzimas envolvidas no catabolismo
Medeiros, Diniz e Schwartz (2013), as em- dos glicosaminoglicanos. Esses medicamen-
presas distribuidoras, bem como as indús- tos são distribuídos pelas empresas Uno
trias farmacêuticas, têm potencial interesse Healthcare, que embolsa 97%, e Genzyme
na judicialização, chegando a arcar com os Corporation, com 3% dos valores pagos.
honorários de advogados, e destacam haver
expressiva concentração de advogados pri- [...] Estudo realizado em 2007 revelou des-
vados. Assim sendo, o patrocínio da causa compasso entre gastos com saúde e com

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530 OLIVEIRA, M. R. M.; DELDUQUE, M. C.; SOUSA, M. F.; MENDONÇA, A. V. M.

medicamentos na esfera federal: enquanto em seu artigo segundo, quando menciona que
os gastos totais com saúde aumentaram em saúde é um direito fundamental do ser humano,
9,6%, aqueles com medicamentos tiveram devendo o Estado prover as condições indis-
incremento de 123,9% no período de 2002 a pensáveis ao seu pleno exercício (BRASIL, 2015).
2006. (GONTIJO, 2010, P. 609). Para garantir o que preconizam as
normas constitucionais, o cidadão recorre ao
Os artigos que tratam da judicialização Judiciário, a fim de resguardar seus direitos,
indicam que a maioria dos demandantes so- que são concedidos na maioria das vezes. Tais
licitaram medicamentos ao gestor público decisões são fundamentadas no que relatam
oriundos de receituário fornecido pelo setor sobre a situação e a condição do indivíduo, de-
privado e patrocinados por escritórios de cidindo por fornecimento de medicamentos,
advocacia, sugerindo que o cidadão, por em alguns casos, sem observar a Política de
ter um maior conhecimento de seus direi- Assistência Farmacêutica, causando impactos
tos, recorre ao Judiciário para garanti-los. importantes no orçamento, uma vez que os
Também apontam para a possibilidade de recursos financeiros são previstos e definidos
falha no SUS, por estar o cidadão buscan- para um período de gestão; assim, as deci-
do no Judiciário o acesso a medicamento sões judiciais acabam interferindo nas ações
já constante na lista dos fornecidos pelo de poderes autônomos (CHIEFFI; BARATA, 2009). O
sistema (MACHADO ET AL., 2011). judiciário tem tratado o direito à saúde como
O artigo que estudou o ordenamento disputa entre Estado e indivíduo. Marçal
jurídico brasileiro dá abrigo à proteção (2012, P. 29) cita em seu estudo a súmula 18 do
dos Direitos Humanos, que, por sua vez, Tribunal de Justiça de Pernambuco, quando
integra o ordenamento jurídico de Direito afirma: “É dever do estado-membro fornecer
Internacional. A saúde é direito relevan- ao cidadão carente, sem ônus para este, medi-
te garantido por norma constitucional. O camento essencial ao tratamento de moléstia
Estado brasileiro assegura a inviolabilidade grave, ainda que não previsto em lista oficial”.
do direito à vida, tendo no princípio da dig- Em estudo realizado em São Paulo, Minas
nidade humana um dos seus fundamentos. Gerais e Pernambuco, observa-se que, do
Assim, como dispõe a lei, todos têm direito grande número das ações judiciais, foram in-
à saúde. Nesse sentido, a Organização cluídos diversos itens aos componentes da
Mundial de Saúde declara que a saúde é um indústria farmacêutica, e a Relação Nacional
completo bem-estar físico, mental e social e de Medicamentos Essenciais (Rename) foi atu-
não a simples ausência de doenças e outros alizada, bem como os Protocolos Clínicos e as
danos (OMS, 1946). Rumo a afirmação destes Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) tem sido mais
preceitos, no Brasil, a Constituição Federal, ágeis, indicando uma melhora dos serviços de
no artigo 196, expressa que a Assistência Farmacêutica (AF). Ainda aponta
que a maioria dos medicamentos foi solicitada
saúde é direito de todos e dever do Estado, ga- por profissionais do serviço público, eviden-
rantido mediante políticas sociais e econômicas ciando que esses profissionais não aderiram
que visem à redução do risco de doença e de ou- aos medicamentos elencados. Tal situação in-
tros agravos e ao acesso universal e igualitário às quieta por não saber se as razões para a falta de
ações e serviços para sua promoção, proteção e adesão se devem ao desconhecimento de quem
recuperação. (BRASIL, 2012). prescreve ou se a Rename não atende às neces-
sidades terapêuticas dos usuários (MARÇAL, 2012).
Esses valores são reafirmados na Lei A produção com o tema judicialização
8080/90 que regulamenta o Sistema Único de da saúde, tratada no âmbito nacional, pre-
Saúde, denominada de Lei Orgânica da Saúde, dominou nos documentos pesquisados, de

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onde se conclui que este fenômeno tem tratando da judicialização da saúde não sig-
ocorrência em quatro regiões do País, apon- nifica dizer que esse fenômeno acontece
tando para o protagonismo do brasileiro no somente onde a literatura registra. Além de
exercício de sua cidadania, abandonando acontecer em todo território nacional, está
o status de cidadão de papel e assumindo também acontecendo em todo o mundo.
o status de cidadão de direito, exigindo do Apenas para exemplificar, na Espanha, a
Estado o cumprimento do seu dever, ainda mediação como alternativa ao processo judi-
que através da discricionariedade do Poder cial já é sistematizada e resulta na resolução
Judiciário. Percebe-se, como demonstra o extrajudicial dos conflitos decorrentes da
gráfico 3, uma concentração nas produções prestação de serviços sanitários, proporcio-
nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, nando às partes a solução da controvérsia,
Rio Grande do Sul e Pernambuco. sem imposição de uma decisão. Evita-se a
O fato de não constar resultado de estudo possibilidade de o conflito desembocar no
específico em cada um dos entes federativos Poder Judiciário (CAYÓN DE LAS CUEVAS, 2010).

Gráfico 3. Número dos artigos analisados por abrangência

Fonte: Elaboração própria

As produções nacionais são, sobretudo, de compartilhar conhecimentos, fortalecer e


das escolas de saúde pública e da Fundação consolidar o SUS, contribuindo para a qualida-
Oswaldo Cruz, além de universidades públicas, de de vida da população, fomentando a cidada-
reafirmando o compromisso dessas instituições nia, como se observa no gráfico 4.

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Gráfico 4. Número de artigos por instituição de origem

Fonte: Elaboração própria

Judicialização na saúde: Pereira percebe, assim, que há marcante


(re)visitando a lacuna entre diferença entre o ‘ser’ do mundo da natureza
e o ‘dever ser’ do mundo jurídico. Direito, por-
o direito do cidadão e o tanto, em uma compreensão lógica, é a ciência
dever do Estado do ‘dever ser’. Nesse contexto, o Estado, como
forma de organização política, tem um papel
Sendo o homem um ser eminentemente importante e existe para satisfazer as neces-
social, não vive isolado, mas em grupos, e sidades humanas, realizando a segurança, a
sua convivência impõe certa ordem, deter- justiça e o bem-estar econômico e social, me-
minada por regras de conduta. Essa impo- diante atividades que lhe são próprias.
sição pressupõe restrições que limitam a Surge, então, a Constituição Federal, con-
atividade dos indivíduos componentes dos siderada como lei fundamental do Estado,
diversos grupos sociais, mas que também com o fim de estabelecer direitos, deveres,
asseguram direitos que permitem ao princípios e responsabilidades aos agentes
homem a vida em sociedade, com acesso políticos e ao cidadão comum, como forma
aos bens e serviços que lhe garantam uma de possibilitar a convivência pacífica, a har-
vida digna. monia e que a paz social aconteça. Na visão
Para Pereira (1981, P. 8), de Silva (2011, P. 37), Constituição seria:

[...] o direito é o princípio de adequação do [...] a organização dos seus elementos essen-
homem à vida social. Está na lei, como exte- ciais: um sistema de normas jurídicas, escritas
riorização do comando do Estado; integra-se ou costumeiras, que regula a forma do Estado,
na consciência do indivíduo que pauta sua a forma de seu governo, o modo de aquisição
conduta pelo espiritualismo do seu elevado e o exercício do poder, o estabelecimento de
grau de moralidade; está no anseio de justi- seus órgãos e os limites de sua ação.
ça, como ideal eterno do homem; está ima-
nente na necessidade de contenção para a O primeiro direito do homem, sem
coexistência. dúvida, consiste no direito à vida,

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condicionador de todos os demais. Desde da cidadania, o Estado não cumpre o seu


a concepção até a morte natural, o homem dever constitucional. A omissão do Estado
tem o direito à existência, não só biológica, no cumprimento de suas atribuições, inser-
como também moral, cabendo ao Estado tas na Constituição Federal, vem trazendo
proporcionar os meios necessários para graves consequências para o cidadão.
que seu titular possa exercê-lo. No tocante à saúde, o legislador cons-
Morais (2010, P. 35) atesta que o direito à vida titucional consagrou a universalização, ao
“é o mais fundamental de todos os direitos, preconizá-la, no art. 196 (BRASIL, 2012), como
já que se constitui como pré-requisito à sendo direito de todos e dever do Estado.
existência e ao exercício de todos os demais Entretanto, a realidade nos mostra uma
direitos”. grande lacuna entre a efetivação desse im-
A atual Constituição (BRASIL, 2012) reconhe- portante direito e as ações do Estado, que,
ce a importância e a primazia do direito à em muitas situações, não está cumprindo
vida, que aparece, em seu art. 5º, caput, em com suas atribuições, nem com o desenvol-
primeiro lugar, antes do direito à liberda- vimento de ações sem planejamento ade-
de, à igualdade, à segurança e à proprie- quado. Assim, o mau gerenciamento dos
dade. Constata-se, ainda, que no art. 5º, recursos públicos leva o cidadão a judicia-
inciso XLVII, alínea ‘a’, relativo aos direi- lizar, através de procedimento próprio, um
tos e garantias fundamentais, o legislador direito que lhe é fundamental, garantido
constitucional volta a tutelar o direito à constitucionalmente. Percebe-se, ainda,
vida. Não há dúvida de que o direito à vida, que, ao tentar exercer seus direitos junto
da mesma forma que os demais direitos e aos órgãos estatais, o cidadão se depara
garantias fundamentais, decorre inequi- com uma burocracia exagerada. Tanto em
vocamente do princípio da dignidade da um caso como no outro, vidas são negli-
pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso genciadas, não restando à família outra
III do texto constitucional, ali apontado alternativa senão pleitear indenização,
como um dos fundamentos da República amparada no art. 37, § 6º da Constituição
Federativa do Brasil. Federal.
A dignidade da pessoa humana, que a Para Oliveira (2013, P. 80).
nossa Constituição inscreve como funda-
mento do Estado, significa não só um re- Há uma lacuna entre o que expressa a Carta
conhecimento do valor do homem em sua Magna e as demandas reais no cotidiano dos
dimensão de liberdade, como também de indivíduos, famílias e comunidades, sobre-
que o próprio Estado se constrói com base tudo no tocante às necessidades de ações
nesse princípio. Não há vida sem dignidade, e serviços de saúde, levando o cidadão a
significando esta, diferentemente das coisas, procurar a via judicial para prevalecer o seu
um ser que deve ser tratado e considerado direito e obrigar o Estado a assegurá-lo. A
como um fim em si mesmo, e não para a ob- partir da constatação dessa contradição, vá-
tenção de algum resultado. Como qualidade rios grupos sociais vêm buscando na Justiça
intrínseca da pessoa humana, a dignidade é o apoio no tocante a essas brechas entre o
irrenunciável e inalienável, e constitui ele- direito ideal e sua materialização no mundo
mento que significa o ser humano como tal real. Os fundamentos e alternativas legais
e que dele não pode ser destacado, fazendo para que o cidadão proponha ações judiciais
parte da personalidade do homem. com o objetivo de obter medicamentos e ou-
Apesar de todas as garantias constitucio- tros serviços de saúde, em face dos poderes
nais do direito à vida e, consequentemente, públicos, permitem uma reflexão mais acu-
da efetivação da dignidade do homem e rada desse fenômeno.

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À guisa de conclusão, embora a número de pesquisas sobre a judicialização


Constituição atual, de forma enfática, as- na saúde ocorreu para avaliar o acesso a me-
segure ao cidadão o direito à saúde como dicamentos, sejam os que constam em lista
fundamental, percebe-se, com clareza, uma pública do sistema de saúde, os que ainda
significativa lacuna entre o seu exercício e os não constam, por serem de alto custo, e os
meios não disponibilizados adequadamente que ainda se encontram em testes.
pelo Estado. Ao Estado cabe, através de seus A lei constitucional garante ao cidadão,
órgãos e poderes constituídos, assegurar o subtraído de seu direito, em razão dos bens e
exercício pleno da cidadania a todos os cida- serviços de saúde indicados ou mais adequa-
dãos, para que assim prevaleça a dignidade dos ao seu estado de saúde, conforme precei-
da pessoa humana e o estado democrático de tua seu médico eleito, pertencente ou não ao
direito. sistema público de saúde, ingressar com ação
judicial, de forma individual ou coletiva.
Está em ascensão o número de cidadãos bra-
Considerações finais sileiros, conhecedores do dever do Estado,
que, exercendo sua cidadania, buscam o ju-
O artigo apresentou as produções dispo- diciário para validar o seu direito. A judicia-
níveis nas bases de dados da BVS e SciELO lização na saúde apresenta-se como temática
acerca do fenômeno da judicialização na emergente e com tendência de aumento nas
saúde, com um único descritor, objetivan- pesquisas realizadas nas escolas de saúde
do evidenciar o que mais se judicializa na pública e nos programas de pós-graduação
área, totalizando 20 textos. A produção no Brasil, embora sua produção necessite de
revela que a hipossuficiência econômica e o investimento científico ainda maior frente
estado de urgência são as principais causas ao que já se examina nacionalmente quanto
dos pedidos. Observou-se que o expressivo à produção nessa área do conhecimento. s

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