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1989

Uma experiência interinstitucional de resolução de litígios


em saúde: percursos dos usuários no acesso ao direito e à
justiça
An interinstitutional experience in resolving health disputes: users' paths to access
to law and justice

Miriam Ventura1
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-
mail: miriam.ventura@iesc.ufrj.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8520-8844.

Luciana Simas2
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
luciana.simas06@gmail.com. ORCID: https://orcd.org/0000-0003-2494-8747.

Artigo recebido em 21/05/2020 e aceito em 26/11/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 3, 2021, p. 1989-2014.


Miriam Ventura e Luciana Simas
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/51143| ISSN: 2179-8966
1990

Resumo
Discute-se a Câmara de Resolução de Litígios em Saúde (CRLS), no Rio de Janeiro, no
tocante à mediação de conflitos, a partir de entrevistas com usuários das Defensorias
Públicas e análise documental. A experiência representa um avanço na busca da
efetividade dos direitos e políticas. Contudo, constata-se uma atuação focalizada na
redução da judicialização e no ajuste entre demanda dos atendidos e oferta do SUS,
buscando mitigar as deficiências dos serviços sem alcançar uma abordagem integral e
célere do acesso ao direito à saúde e à justiça.
Palavras-chave: Judicialização da saúde; direito à saúde; acesso à justiça.

Abstract
The Health Dispute Resolution Chamber (CRLS), in Rio de Janeiro, is discussed in terms of
conflict mediation, based on interviews with users of the Public Defender's Office and
documentary analysis. The experience is an advance in the search for the effectiveness of
rights and policies. However, there is a performance focused on reducing judicialization
and adjusting the demand of those served and the SUS offer, seeking to mitigate the
deficiencies of services without achieving a comprehensive and rapid approach to access
to the right to health and justice.
Keywords: Judicialization of health; right to health; access to justice.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 3, 2021, p. 1989-2014.


Miriam Ventura e Luciana Simas
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Introdução1

O litígio judicial para garantia do direito à saúde tornou-se um caminho alternativo para
o cidadão reivindicar prestações estatais, com jurisprudências favoráveis à
responsabilização dos governos, em contextos político-jurídicos bastante diversos
(FERRAZ, 2018). O entendimento das instâncias de direitos humanos é que Estados devem
fornecer tratamentos que atendam às necessidades de saúde dos indivíduos e
populações, ainda que a regulamentação estatal não tenha previsão desta cobertura, em
especial, àqueles que não possuem capacidade econômica (GILARDI et al., 2007).
Os direitos humanos como construção axiológica dinâmica pressupõem o
embate tanto no momento de produção quanto de aplicação da norma, evidenciando a
“tensão dialética entre regulação social e emancipação” (SANTOS, 1998, p. 11). Nesse
sentido, viabilizar a resolução dos conflitos é questão central na realização dos direitos,
sua maior e menor efetividade se dará de acordo com o contexto socioeconômico, as
culturas jurídicas e políticas locais, e a existência (ou não) de estruturas administrativas
que sustentam a aplicação dos direitos e o efetivo acesso à justiça (SANTOS, 2007).
Recente estudo sobre “determinações legais da saúde” no âmbito global reitera
o poder do Direito e das leis para intervir nas “causas sociais e econômicas subjacentes a
lesões e doença”. Destaca como uma de suas funções essenciais a “resolução das
disputas” entre indivíduos, organizações e governos, tanto nos tribunais de justiça
tradicionais como através de mecanismos alternativos, mediação ou arbitragem. Aponta
que os resultados dessas práticas podem ir muito além das partes envolvidas (GOSTIN et
al., 2019).
O desafio prático no acesso à saúde e à justiça é traduzir os direitos e as
prestações devidas pela Administração Pública em um sistema público que garanta
procedimentos e serviços (como a saúde e a advocacia pública e gratuita) capazes de
compatibilizar as dimensões coletivas e individuais dos direitos, interesses e
responsabilidades governamentais em disputa, com mecanismos adjudicatórios
eficientes.

1 Agradecimentos: À equipe de pesquisa –Elaneide Antonio Antunes, Érika Fernandes Tritany , Denise
Campos Verginio, Iaralyz Fernandes Farias, Luiza Lena Bastos, Neide Emy Kurokawa e Silva, Priscilla de Oliveira
Tavares, Renato Maciel Dantas. À Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro – DPERJ, nas pessoas da Dra.
Thaisa Guerreiro de Souza, Coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva, e Dra. Samantha Monteiro de Oliveira,
do Núcleo de Fazenda Pública/CRLS, pelo apoio à pesquisa. Ao CNPq, pelo financiamento do estudo (processo
n.º 402079/2016-7).
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A problemática da judicialização exige refletir sobre seus efeitos no acesso à


saúde e à justiça. O pressuposto deste estudo é que, na resolução de conflitos complexos
como os de saúde, as alternativas extrajudiciais podem favorecer esse acesso no caso
concreto. Contudo, é insuficiente pensar o acesso como o resultado de uma mera
regulação de utilização de bens e serviços de saúde e jurídicos, com equilíbrio entre oferta
e demanda, devendo-se ampliar a compreensão em uma perspectiva comunicativa e
participativa democrática voltada ao entendimento, que favoreça a (re)formulação das
leis e o (re)direcionamento das políticas de saúde centradas nas pessoas (BIEHL; PETRYNA,
2014).
No ano de 2012, foi criada a Câmara de Resolução de Litígios em Saúde (CRLS),
no município do Rio de Janeiro, como um arranjo interinstitucional que visa reduzir a
demanda judicial local através de solução extrajudicial. A estratégia é resultado das
articulações de atores locais da justiça e da saúde com diferentes iniciativas desenvolvidas
ao longo de cinco anos (SOUZA, 2016). Seu público-alvo são os hipossuficientes
econômicos, usuários das Defensorias Públicas.
O diálogo diretamente com a população atendida nesse serviço, sobre direitos,
regras, benefícios legais e de saúde implicados na demanda, mostrou-se promissor. Para
tanto, desenvolveu-se pesquisa qualitativa interdisciplinar – “Judicialização, acesso à
saúde e à justiça: um estudo sobre itinerários terapêuticos e litígios de saúde no município
do Rio de Janeiro”, com financiamento do CNPq, processo nº 402079/2016-7. Este artigo
é um dos resultados desta pesquisa e focalizará a discussão dos aspectos institucionais,
da dinâmica e dos mecanismos da CRLS no tocante à mediação dos conflitos dos usuários
das Defensorias Públicas no acesso ao direito à saúde e à justiça.
Em termos metodológicos, recorreu-se à literatura sociológica e crítica da saúde
coletiva e jurídica. Iniciou-se a investigação com a atualização bibliográfica e
levantamento documental sobre a CRLS. Realizou-se observação do atendimento ao
público durante três meses, registrando-se as dinâmicas cotidianas entre usuários e a
equipe da CRLS. Após a observação, foram entrevistados 27 usuários da CRLS, no período
de 20/02/2018 a 20/03/2018, com roteiro semiestruturado abrangendo questões sobre
os percursos dos usuários no sistema de saúde até sua chegada a CRLS. Os usuários foram
convidados a participar da pesquisa por ordem de chegada no atendimento, não se
registrando recusa. As entrevistas foram realizadas no local após apresentação dos
objetivos da pesquisa e com concordância registrada no termo de consentimento livre e

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esclarecido. Os princípios éticos jurídicos para a pesquisa científica foram cumpridos,


garantindo-se, sobretudo, o respeito à confidencialidade e privacidade dos entrevistados.
Buscou-se, a partir dos relatos, identificar diferentes contextos individuais, sociais e
programáticos envolvidos nas trajetórias, desde a identificação do problema de saúde e
os recursos e rede de informações acionados até o acolhimento de sua demanda na CRLS.
O estudo foi autorizado e teve apoio logístico da Defensoria Pública do Estado do Rio de
Janeiro e da CRLS. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(CAEE IESC-UFRJ: 71557817.8.0000.5286, Parecer 2.368.924) e financiado pelo CNPq –
Chamada Universal (processo 402079/2016-7).

1. Judicialização da saúde e o acesso ao direito à saúde e à justiça

No Brasil, o processo de judicialização da saúde iniciou-se no final da década de 1980 e se


respalda na nova configuração constitucional brasileira de 1988 (SANTOS, 2007). A saúde
é definida como um direito universal e dever do Estado, sem requisitos de contribuição
prévia ou prova de incapacidade, em um Sistema Único de Saúde (SUS) com cobertura
nacional, acesso gratuito, igualitário e integral, mantido pelos impostos. Tal configuração
possibilita que as demandas insatisfeitas dos indivíduos se transformem em demandas
judiciais.
Os efeitos desse processo no Brasil são controversos: alguns estudos o
consideram favorável à promoção da igualdade no acesso e à reformulação de políticas
públicas inefetivas (entre eles, VENTURA et al., 2010; BIEHL et al., 2018); outros enfatizam
que a demanda judicial é produtora de iniquidades e desajustes na gestão de saúde,
prejudicando a implementação de políticas universais de acesso (entre eles, WANG,
2015). O fato é que a judicialização tem apontado deficiências do sistema de saúde
brasileiro para responder de forma satisfatória às necessidades da população, bem como
insuficiências do sistema de justiça na resolução dos conflitos entre cidadãos e a
administração pública.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) se consolidou após
audiência pública promovida no ano de 2009, reafirmando a dimensão subjetiva do
direito à saúde e a legitimidade da intervenção do Judiciário nas políticas públicas.

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Ademais, atribuiu ao governo o ônus de demonstrar, em concreto, a existência de


alternativa terapêutica efetiva já disponível no SUS que atenda às necessidades de saúde
dos demandantes.
A partir de 2009, presencia-se a ampliação da interlocução entre as instituições
jurídicas e de saúde, juntamente com a formulação de uma política de resolução de
conflitos na saúde protagonizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), buscando-se
uma “exigibilidade pactuada” (FLEURY, 2012) e a adoção de medidas de racionalização da
utilização da via judicial. Fazem parte dessa nova conjuntura: o Fórum Nacional do
Judiciário para demandas em Saúde, com comitês nacional e estaduais (CNJ, 2010; CNJ,
2016a); os Núcleos de Assistência Técnica aos Juízes (NAT-Jus) para qualificação técnico-
científica da prestação jurisdicional junto aos Tribunais (CNJ, 2016b); a criação de um
banco de dados com informações técnicas para subsidiar os magistrados de todo o país
(CNJ, 2016c); as experiências locais de resolução extrajudicial de conflitos e a ampliação
do acesso às defensorias estaduais e da União (SIMAS; VENTURA, 2018).
As alternativas de resolução extrajudicial dos conflitos em saúde, conciliação e
mediações ganham significados diversos nas discussões acadêmicas e práticas locais
(RIBEIRO, 2013; PINHEIRO; ASENSI, 2015; SILVA; SCHULMAN, 2017; RIBEIRO, 2018;
DELDUQUE; CASTRO, 2015). Observa-se predominância da perspectiva de resolução de
problemas de gestão estatal, enfatizando o encerramento de processos por meio de
acordos, o controle estatístico da atuação jurisdicional e o estímulo de premiações a
instituições judiciais por sua eficiência. No estado do Rio de Janeiro, busca-se, ainda, dar
conta de sucessivas crises de governabilidade e denúncias de altos índices de corrupção
(FREIRE, 2019). Surgem diferentes rituais e práticas locais, que revelam “lógicas
coercivas” na condução da nova política de acesso à justiça em prol do “coletivo” e do
“bem comum”, propiciando um tipo de “harmonia coerciva”, que privilegia critérios de
pacificação dos conflitos, mas negligencia o papel garantidor de direitos e adota padrões
de um modelo de “justiça neoliberal” (GARCIA, 2018).
Para a análise articulada do acesso à justiça e à saúde como direitos humanos,
adota-se a concepção de acesso à saúde como dimensão do direito à saúde e à justiça
social, pautada pela equidade no atendimento às necessidades de saúde sem qualquer
discriminação. A compreensão incorpora a efetividade da assistência à saúde no que
concerne à utilização dos serviços e à satisfação das necessidades de saúde dos indivíduos
e populações, referendando o Estado como provedor de políticas e ações organizadas que

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culminem em mudança no estado de saúde e na qualidade de vida (SANCHO; SILVA,


2013).
Segundo o artigo 5º, inciso XXXV, da CRFB-88, o acesso à justiça no Brasil
representa um direito material, social e fundamental (BRASIL, 1990), não restrito à
garantia formal ao acesso à jurisdição. Assim, na mesma direção, amplia-se o conceito
clássico de acesso à justiça relacionado à capacidade de conhecer o direito e recorrer ao
Judiciário para resolução de um conflito (CAPPELLETTI; GARTH, 1988) e adota-se o de
“acesso aos direitos e à justiça” (PEDROSO, 2002; SANTOS, 1982), que inclui aspectos
relativos à educação para os direitos, a cultura jurídica, o conhecimento e a consciência
dos direitos, a facilitação do seu uso, a representação jurídica e judiciária por profissionais,
a resolução judicial e não judicial de conflitos (VITOVSKY, 2017).
A ampliação conceitual exige que os novos modos de resolução de conflitos
reduzam a complexidade e o formalismo jurídico, para chegar mais próximo dos cidadãos
e trazer o direito para um plano imanente, em referência à própria sociedade (BRANCO,
2008). Neste sentido, busca-se observar a existência de assimetrias no sistema judicial e
os modos alternativos de resolução de litígios disponíveis, questionando se as inovações
introduzidas são repressivas por não terem poder coercitivo para neutralizar as diferenças
de poder (PEDROSO, 2002; SANTOS, 1982).
A partir desses referenciais, será observado como esse modo alternativo de
resolução de litígio disponível representa um “caminho para retirar sobrecarga aos
tribunais ou pode, também, ser um meio de desenvolver e acentuar o acesso ao direito e
à justiça” (PEDROSO, 2002, p. 15).

2. A CRLS: estrutura, atores e funcionamento

O município do Rio de Janeiro (com 6,7 milhões de habitantes) possui uma extensa rede
de serviços municipais, estaduais e federal, continuando a ser um dos maiores
quantitativos de processos judiciais relativos à assistência à saúde no Brasil (PEÇANHA;
SIMAS; LUIZA, 2017).
O acesso à saúde pública no Brasil se dá por meio do SUS, hierarquizado e
descentralizado, com direção única, gestão nos três níveis de governo, com instâncias de
participação e controle social democrático, os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais

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de Saúde. Há, ainda, instâncias de articulação e pactuação integradas por gestores


municipais e estaduais que atuam na direção nacional do SUS, a Comissão Intergestores
Tripartites (CIT). E, localmente, a articulação e a pactuação dos gestores estaduais e
municipais se dão na Comissão Intergestores Bipartite (CIB).
No modelo federativo brasileiro de distribuição de responsabilidades e
competências, os municípios são responsáveis pela prestação direta de serviços de saúde,
organizando a porta de entrada do SUS e o fornecimento de medicamentos básicos,
constante em lista oficial. Aos estados cabem os procedimentos de média complexidade
e serviços especializados, como a dispensação de medicamentos especializados,
conforme a lista pactuada entre os gestores. A União Federal tem o dever de coordenar,
financiar e manter as políticas nacionais de saúde e os serviços de alta complexidade.
Assim, a judicialização da saúde refletirá as diferenças regionais relativas às
organizações político-jurídica, epidemiológica e socioeconômica brasileiras, tanto em
relação à intensidade quanto às respostas locais às demandas. Buscando identificar
características nacionais desse processo, o CNJ empreendeu estudo que, entre outros
resultados, propõe um índice nacional de processos judiciais por habitantes. O aspecto
relevante para esse estudo é que o estado do Rio de Janeiro ocupa o décimo lugar no
ranking no ano de 2017 e registra queda acentuada deste índice, que aponta 114,98
processos judiciais para a cada 100 mil habitantes no ano de 2009 e somente 15,97 no
ano de 2017, lançando a hipótese de que o decréscimo proporcional é atribuído à atuação
da CRLS (CNJ, 2019).
A CRLS foi constituída por meio de um Convênio de Cooperação entre o Tribunal
de Justiça do Estado, as Procuradorias Gerais do Município e do Estado do Rio de Janeiro,
as Defensorias Públicas do Estado e da União, as Secretarias Estadual de Saúde (SES) e
Municipal de Saúde (SMS), estabelecendo um conjunto de regras, organização e
processos que definem a coordenação desses atores e os procedimentos a serem
adotados no novo arranjo interinstitucional (DEFENSORIA..., 2012).
O objetivo do convênio é solucionar litígios de saúde de maneira conciliadora,
privilegiando-se a atuação extrajudicial na efetivação do acesso aos serviços públicos de
saúde, reduzindo tempo, custos e aumentando a eficiência dos serviços no atendimento
das demandas. O entendimento formal que orienta o convênio é que o governo deve
cumprir seu dever de promover a saúde de toda população e que a judicialização é uma
possibilidade de responder às necessidades de saúde dos cidadãos.

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O público-alvo é composto exclusivamente por pessoas que comprovem


residência no município do Rio de Janeiro e hipossuficiência econômica, considerados
aqueles com renda mensal líquida individual de até três salários-mínimos ou familiar de
até cinco salários-mínimos (DEFENSORIA..., 2017). No estado do Rio de Janeiro, cerca de
70% do total das demandas judiciais em saúde são conduzidas pelas Defensorias Públicas
Estaduais (DPGE) e da União (DPU). (SOUZA, 2018; VENTURA et al., 2010; PEPE et al.,
2010).
Os atores responsáveis pelo atendimento da população são a SES, SMS, DPGE e
DPU. As Procuradorias Gerais do Estado e do Município integram a articulação política
como representantes e na defesa dos interesses dos entes federativo, estadual e
municipal, respaldando as transações realizadas; o Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro é responsável por conduzir a mediação dos atores estatais em relação às
possíveis dúvidas e conflitos referentes à rotina de atendimento e possíveis obstáculos no
cumprimento do convênio (item 2.3) (DEFENSORIA..., 2012).
A SES e SMS se responsabilizam pela análise técnica das demandas dos usuários
com dois propósitos: a busca de solução administrativa junto à rede SUS e apoio técnico
à DPGE e DPU, nos casos de impossibilidade de solução administrativa. Em contrapartida,
as Defensorias se comprometem a direcionar seus usuários à CRLS e a submeter às
demandas de saúde à prévia tentativa de solução administrativa. O convênio estabelece
quais providências devem ser adotadas para análise da pretensão dos usuários por grupo:
1) medicamentos, insumos e materiais médicos; 2) exames e cirurgias de rotina/eletiva; e
3) internação.
Para o grupo 1, deve-se verificar se o objeto demandado é fornecido pelo SUS
para tratamento da patologia descrita no laudo médico e se está disponível na rede de
serviços. No caso de sua não disponibilidade, deve indicar alternativa terapêutica
disponível que atenda à necessidade de saúde do usuário, seguindo os parâmetros
estabelecidos pelo STF. Nos casos de constatação de desabastecimento, está prevista a
obrigação da SES/SMS de abertura de processo de compra informando à DPG/DPU da
previsão de entrega (item 2.2.4). A principal providência no atendimento do grupo 2 é a
verificação da inserção do demandante no sistema de regulação do SUS2 e sua

2O Sistema de Regulação – SISREG é um sistema web, criado pelo Ministério da Saúde, que permite gerenciar
consultas, exames e procedimentos da média e alta complexidade no sistema de saúde, de forma a regular a
oferta e a demanda em conformidade com as necessidades de saúde. O potencial de risco para a vida, agravos
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classificação de risco. No grupo 3, “internação”, caso o demandante não esteja inserido


no sistema de regulação, à vista do laudo médico e da urgência, a CRLS está autorizada a
inseri-lo, comunicando o fato à Corregedoria da SES e da SMS, com recomendações.
O convênio prevê também mecanismos conciliatórios entre os parceiros
conveniados, como: a possibilidade de instauração de procedimento interno para o
exame e providências cabíveis, quando identificados óbices administrativos – por
exemplo, a inexistência de alternativa terapêutica no SUS às necessidades de saúde dos
usuários (item 2.2.10); e a convocação de audiência, com representação de todos os
órgãos signatários, “conduzida por mediadores do núcleo de mediação do TJERJ, com o
escopo de solucionar as dúvidas na rotina de atendimento dos assistidos e de avaliar a
legitimidade da resistência pela SES e/ou SMS no atendimento da pretensão”. Os
procedimentos devem necessariamente ser instruídos de parecer técnico (item 2.3).
A CRLS é considerada um efetivo instrumento de gestão local do direito à saúde,
premiada nacionalmente como uma prática que contribui para o aprimoramento da
Justiça no Brasil (CRLS, 2014). Estudos apontam como alternativa necessária à
racionalização mais efetiva e econômica para o Estado, favorável à maximização dos
benefícios e à redução dos custos sociais, com maior rapidez no atendimento das
demandas e eficiência dos serviços de saúde (SOUZA, 2016). O modelo tem inspirado
serviços semelhantes em outros estados brasileiros (PINHEIRO; ASENSI, 2015).
As palavras que se encontram fixadas nos ambientes da CRLS são:
entendimento, acordo, eficácia, parceria; e frases como “resolução em saúde: é
conversando que a gente se entende”. A regra estabelecida é que o usuário deve ter sua
demanda respondida no mesmo dia, em um único atendimento. A CRLS possui quatro
setores que compõem o percurso do usuário: triagem, atendimento, análise técnica e
retorno.
A equipe da CRLS, no período da observação de campo, estava composta por 67
profissionais. O maior contingente era de profissionais da SES, no total de 29; sendo um
coordenador e dois assessores, seis médicos, quatro farmacêuticos, três enfermeiros, três
nutricionistas, sete assistentes sociais e três administrativos. A SMS disponibilizava oito
profissionais, sendo um coordenador, um médico, dois farmacêuticos, dois enfermeiros,

à saúde ou grau de sofrimento dos usuários identificados são classificados e sinalizados por cores, com o
objetivo de manter um fluxo de atendimento que estabeleça prioridade. Ver também
<http://www.subpav.org/download/sisreg/_SISREG_regulador_protocolo.pdf >.

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dois nutricionistas. O Departamento de Gestão Hospitalar da Secretaria de Atenção à


Saúde do Ministério da Saúde (DGH/SAS/MS) disponibilizava dois farmacêuticos e um
administrativo. A DPGE-RJ tinha o maior contingente de profissionais do setor jurídico,
um defensor e um assessor, quatro administrativos e quatro estagiários. A DPU
disponibilizava quatro profissionais administrativos.
Os atendimentos são classificados como: “resolução administrativa”, incluindo
todos os casos solucionados ou encaminhados para tentativa de solução administrativa;
e “judicialização”, quando se verifica a impossibilidade de solução administrativa. Esta
classificação não representa de fato a solução para as demandas dos usuários, apenas
indica como foram encaminhados os pleitos. Também serve para a constituição de um
banco de dados estatísticos dos atendimentos da CRLS.
O fluxo de atendimento inicia-se com a triagem realizada por assistentes sociais,
quando o usuário é cadastrado e recebe uma senha para o atendimento. O usuário deve
apresentar basicamente comprovante de renda, residência e laudo médico do SUS. Os
documentos são digitalizados, preenchido o cadastro com as informações e seguem para
o setor da análise técnica. Nos casos de documentação incompleta, os usuários são
orientados a obtê-la e a retornarem.
O setor de análise técnica é composto por profissionais de saúde subordinados
à SES e à SMS. As demandas são distribuídas internamente no setor, de acordo com a
origem do documento médico. Mais recentemente, foram incorporados técnicos
vinculados ao Ministério da Saúde do DGH/SAS/MS. O técnico realiza a análise, a
negociação com a rede SUS e define o encaminhamento a ser dado à demanda recebida.
As análises são elaboradas a partir dos documentos apresentados e informações inseridas
no sistema de regulação do SUS, sem qualquer contato com os usuários.
O setor de retorno é responsável pela comunicação com o usuário sobre o
encaminhamento e orientações. Os desfechos podem ser: 1) solução administrativa; 2)
orientação de retorno à unidade de saúde para providências e/ou dar continuidade à
tentativa de solução administrativa; 3) encaminhamento para as Defensorias Públicas
diante da impossibilidade de solução administrativa.
A distribuição dos casos para o atendimento pelas Defensorias Públicas se dá
em conformidade com as competências jurisdicionais das instituições e origem dos
documentos médicos apresentados. A DPU é responsável pelos processos judiciais em
face da União Federal relativos ao acesso aos serviços de saúde dos hospitais federais e

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universitários no município, além de todas as demandas na área de Oncologia, e de


medicamentos e procedimento que não possuam protocolo clínico de diretrizes
terapêuticas (PCDT) estabelecidos pelo Ministério da Saúde. A DPGE atende a todas as
demandas dos usuários não acolhidas pela DPU (item 2.1) (DEFENSORIA..., 2012).

3. Entre normas e documentos na busca de solução

A pesquisa identificou três tipos básicos de documentos gerados nos atendimentos:


ofícios, pareceres e declarações, que revelam aspectos da interação entre os atores
estatais e os usuários, bem como os mecanismos adjudicatórios utilizados.
Os ofícios confirmam o acordo estabelecido entre a equipe da CRLS e a rede de
serviços; são dirigidos à unidade de saúde e indicam o prazo em que o usuário deve se
apresentar para realizar a retirada do medicamento, exame ou consulta. Os pareceres
técnicos referem-se para as Defensorias e informam sobre a impossibilidade de
atendimento da demanda no SUS, com as considerações clínicas e sanitárias pertinentes.
As declarações são direcionadas à unidade de saúde com orientações aos assistidos e aos
serviços sobre as normas e procedimentos do SUS a serem seguidas para solução
administrativa do pleito. Um elemento importante é o registro da insatisfação do usuário
com o atendimento e/ou seu retorno à CRLS com a intenção de judicializar, com a ressalva
de que não se trata de ação judicial.
Os documentos recebidos pelos entrevistados3 ilustram bem as práticas e os
discursos mobilizados pelos agentes da CRLS na busca de resolução administrativa dos
pleitos.
Sr. Luiz (E18) tem 71 anos foi orientado por um amigo a procurar a CRLS. Ele é
aposentado, hipertenso, diabético, com graves problemas ortopédicos que lhe causam
limitação e muita dor. Ele tem nove atendimentos registrados na CRLS e possui um
processo judicial. Relata idas e vindas em diversas unidades de saúde durante oito meses
para obter uma consulta ortopédica, que só conseguiu com a “ajuda” da CRLS. No dia da
entrevista, retornava à CRLS para conseguir um novo exame e dar continuidade ao
tratamento. Recebeu uma declaração informando que não houve melhoras com o

3 Os entrevistados serão identificados por código numérico e nomes fictícios garantindo-se sua não
identificação.
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2001

tratamento fisioterápico e medicamentoso, e que o exame solicitado se fazia necessário


para uma avaliação neurológica. Além de informações gerais sobre o percurso do usuário
no sistema de saúde, o documento indicava que o mesmo já havia sido inserido no sistema
de regulação para o exame solicitado naquele atendimento na CRLS, e que deveria
aguardar um novo prazo de dez dias úteis, e “caso não seja solucionado, retornar para as
providências necessárias.”
A Sra. Deise (E4), 52 anos, dona de casa, relatou dificuldades semelhantes às do
Sr. Luiz (E18) e também retornos sucessivos à CRLS. Primeiramente, para conseguir uma
consulta com um especialista; em seguida, em razão da demora na realização de exame
diagnóstico. No dia da entrevista, a Sra. Deise (E4) lá estava para tentar a realização de
outro exame, a “eletroneuromiografia”, e agilizar a consulta neurológica. Na declaração
recebida constavam os seguintes avisos e informações na forma reproduzida abaixo:
RETORNOU A CRLS [...] veio à CRLS no intuito de JUDICIALIZAR:
ELETRONEUROMIOGRAFIA DOS MMII. (membros inferiores) ASSISTIDA
ESTEVE NESTA CÂMARA DIA [...] PARA ESTE FIM. “AMARELO: São situações
clínicas que necessitam um agendamento prioritário, podendo aguardar até
90 dias. DE ACORDO COM A REGULAÇÃO ENCONTRA-SE DENTRO DO PRAZO
PARA AGENDAMENTO.” Deste modo, A REQUERENTE DEVERÁ AGUARDAR O
PROCESSO DE REGULAÇÃO DE ACORDO COM OS PRAZOS ESTABELECIDOS
JUNTO À SUA UBS (Unidade Básica de Saúde) DE REFERÊNCIA. ENVIAREMOS
E-MAIL PARA SINALIZAÇÃO DO CASO.

O acesso à consulta com especialista e exames é regulado por meio do SISREG, e


a demora na realização e o agravamento do estado de saúde são queixas comuns entre
os entrevistados, que em geral são orientados a buscar junto ao médico da unidade de
saúde uma reavaliação de sua classificação do risco e alteração no SISREG.
Sra. Ana (E20), com 69 anos, estava pela primeira vez na CRLS encaminhada pela
própria unidade de saúde do SUS, para obter medicamentos e consulta em cirurgia geral
(hérnia). Recebeu três tipos de documentos. Um ofício dirigido à unidade de saúde para
o acesso aos medicamentos integrantes da lista oficial. Um parecer técnico à Defensoria
para obter o medicamento não incluído na lista. Uma declaração sobre a consulta. No
ofício, constava a informação de que os medicamentos listados no documento eram
padronizados, com a solicitação da CRLS de que o serviço de saúde se articulasse para o
fornecimento e/ou encaminhasse “relatório oficial” à CRLS, no caso de impossibilidade de
entrega à usuária, para direcionamento do caso à Defensoria Pública. Ao final,
recomendava expressamente que o serviço se empenhasse para evitar a demanda
judicial, e orientava a entrevistada a registrar seu pedido no serviço Disque-Remédio da
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2002

Prefeitura do Rio. Um dos medicamentos pleiteados não constava da lista pública, e em


resposta a esse pleito foi entregue um parecer técnico para o atendimento da
entrevistada na Defensoria. No parecer técnico, constavam todas as informações sobre
as evidências científicas do medicamento não fornecido e alternativa terapêutica
disponível no SUS, a partir do laudo médico apresentado. A Sra. Ana (E20) também
recebeu uma declaração para o pedido de consulta; o documento apontava que havia
pendências registradas no SISREG referente à ausência de justificativa clínica da cirurgia
necessária à marcação da consulta, e fazia a seguinte advertência:
Pedimos à direção da UBS que disponibilize ao assistido avaliações pela
equipe de saúde no intuito de orientar sobre os fluxos e procedimentos em
curso, acompanhar a evolução clínica e otimizar as terapias de controle
sintomático disponíveis no âmbito da Estratégia de Saúde da Família durante
os processos de regulação.

Ao final, orientava que a requerente se dirigisse à Direção da unidade e retornasse


à CRLS para informar sobre o andamento.
Como apontado por Freire (2019), e também observado neste estudo, os
encaminhamentos documentais da CRLS buscam estabelecer “diálogos
interinstitucionais” por meio de diferentes canais de comunicação, com maior ou menor
formalidade. Assim, são utilizados contatos por telefone, e-mails, ofícios, pareceres
técnicos e declarações. Obviamente, essas formas possuem pesos distintos e implicam
diferentes reações dos atores envolvidos. A CRLS constitui um arranjo híbrido ou mesmo
“ambíguo” (FREIRE, 2019), com instituições jurídicas e de saúde, que orienta os usuários
sobre um conjunto amplo de questões relativas ao acesso aos serviços de saúde e de
justiça, com direcionamentos de como devem conduzir seus pleitos nessas instâncias.
Neste sentido, a CRLS torna-se uma instância disciplinadora das relações entre
diferentes sujeitos e órgãos governamentais, regulando os procedimentos por meio dos
quais essas demandas devem ser conduzidas. Seu poder se concentra na coordenação
executiva, exercida pelo setor de saúde e sua equipe técnica, que definem quem, quando
e sob quais condições os usuários das Defensorias Públicas podem ingressar com uma
ação judicial.
Os encaminhamentos buscam um tipo de “harmonia coerciva” (GARCIA, 2018), e
indicam as condições para a pacificação do conflito na unidade de saúde e nos limites
preestabelecidos nos protocolos assistenciais, reforçando o poder e a discricionariedade
do gestor de saúde na oferta e na utilização dos serviços. Os encaminhamentos

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2003

registrados como “resoluções administrativas” pela CRLS expressam um poder


administrativo quase-judicial, que não se traduz como um autêntico diálogo
interinstitucional voltado para o entendimento, mas uma ação normalizadora de
condutas. Os usuários representam um tipo de mensageiro oficial, que nem sempre
compreendem as ordens da mensagem, mas as recebem com esperança, como uma
“ajuda” para pôr fim ao sofrimento e superar as barreiras no acesso aos serviços. O
usuário também teme a judicialização, que pode significar mais demora e o risco de
negativa.
Concordando com Biehl (2016), a judicialização da saúde como processo social e
político mais amplo se tornou uma para-infraestrutura na qual atores públicos e privados
se enfrentam e promovem resgates “caso a caso”, na tentativa de superar obstáculos na
concretização do direito à saúde decorrente da infraestrutura deficitária, instituições
públicas inadequadas e/ou ineficiência dos programas de saúde (BIEHL, 2016).

4. Os usuários na CRLS: Expectativas e desilusões em busca de uma “ajuda”

A renda dos entrevistados era majoritariamente igual ou abaixo de um salário-mínimo


(SM): cinco entre R$ 1.300,00 a R$ 2.000,00; doze apenas 1 SM; três, menos de um SM; e
sete estavam sem rendimentos. Doze entrevistados estavam na CRLS pela primeira vez.
Dez entrevistados foram encaminhados pelos serviços de saúde, oito pela própria
Defensoria local, seis por amigos e familiares; um identificou pela internet e dois não
informaram. A maior demanda dos entrevistados foi por medicamentos (28%), seguida
de consulta médica (20%) e exame diagnóstico (17%). Predominaram usuários residentes
em bairros mais pobres da cidade (60%). As entrevistas apontam que a CRLS tem sido
difundida como estratégia para o acesso a serviços de saúde pública, não se restringindo
ao encaminhamento realizado pelas Defensorias.
As barreiras no acesso aos serviços de saúde destacadas pelos entrevistados
foram as “burocráticas” (falta de informação institucional, demora no atendimento nas
unidades de saúde, tempo de espera para exames e cirurgias e mau funcionamento do
sistema de regulação) e relacionadas à escuta, ao acolhimento e às respostas às
necessidades identificadas no atendimento de saúde, bem como ao atendimento na CRLS.
Os usuários enfatizam a precarização dos serviços em razão da corrupção dos

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2004

governantes; e a possibilidade de obter a prestação na CRLS e/ou de encaminhar uma


demanda judicial como a “porta da esperança”, a “chance final”, uma “ajuda” de ter sua
demanda de saúde resolvida ou de comprovar seus “direitos” no serviço de saúde e
desobstruir barreiras, como expressam as falas dos entrevistados.
[...] Aqui é a nossa ajuda [...] se num fosse aqui, o que seria de nós? Que
esperasse chover canivete? Num tem como, né? [...] A finalidade daqui é
tudo. É tudo. [...] Da outra vez que a senhora teve aqui, o atendimento aqui
da câmara foi bem-sucedido? Sempre foi, né. Sempre foi. [E2]
Uma ajuda né... A pessoa que não tem condições de comprar a medicação, e
não tem né?! [E6]

Os usuários da CRLS também percebem o serviço oferecido como um


“instrumento de pressão” para obter algo negado no SUS. Mas a expectativa geral é a de
ter uma solução imediata e respostas objetivas, abrangentes e adequadas às múltiplas
necessidades de saúde apresentadas, que vão muito além do “produto” – termo utilizado
para registrar a demanda do usuário no banco de dados da CRLS – pleiteado naquele
atendimento. Neste sentido, identifica-se a frustação daqueles que relatam vários
retornos à CRLS para obter um novo “produto”, para cumprir alguma exigência ou
reclamar sobre o descumprimento dos prazos acordados para o atendimento. Os
encaminhamentos são considerados casuísticos ou mesmo “aleatórios” (FREIRE, 2019) e
pouco resolutivos, como expressam alguns entrevistados:
Que isso aqui não tem futuro. É uma coisa que ninguém olha. Se no meio de
100 pessoas se 1, 2, 3 conseguir, é muito. Porque eu tô aqui desde 2014 e é
um simples tratamento que eu tinha que fazer. Custava o quê? 200 reais
quando eu dei entrada aqui. Até hoje... agora já tá me causando vários danos
[...]. O mais que eu precisava era do meu tratamento pra ficar boa e voltar a
trabalhar. (E22)
Eu acho que aqui também é muito lento, entendeu? Muito lento. Teria que
ser mais positivo, entendeu? Com a decisão deles, eles vão cozinhando a
gente [...] Aí você fica naquela esperança que eles vão resolver. Mas não é
nada disso, porque já é a terceira vez que eu venho aqui, entendeu? Porque
se eles fossem, assim, nota dez, na primeira vez eles tinham que resolver. (E2)
Eu esperava já sair daqui com tudo resolvido; eu não ter que correr atrás, já
que é um direito meu, um problema de saúde não se brinca, independente
de qual seja. Então eu já queria sair daqui com meus problemas todos
resolvidos. (E25)

A linguagem médica e jurídica articulada dos encaminhamentos produz efeitos


simbólicos, e os documentos representam dispositivos de pressão junto à rede, ao mesmo
tempo que servem para enquadrar os usuários nas regras da administração. Alguns

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entrevistados, entretanto, expressam suas dúvidas sobre o poder de coerção dos


encaminhamentos da CRLS na resolução do problema:
Diz que o Posto perde ponto quando você vem pra cá, denunciar aqui, e aí
eles andam rápido. Mas comigo não tá acontecendo isso, entendeu? Porque
senão eu não tinha que voltar pra cá, aqui, vim aqui de novo, pela mesma
questão, entendeu? [E2]
Mandaram eu voltar na Clínica da Família porque já tinha que tá os exames
todos no SISREG. E eu tô aqui, vão me indicando isso, né. Aí eu vou lá; eu até
falei com a menina... “olha, mas eles tão de greve”. Quem tiver lá vai ter que
resolver isso, porque eles nem gostam da gente daqui. Então, assim, eles
resolvem. Assim eu espero[...] ela mandou eu voltar aqui de qualquer jeito.
Mesmo que ponham no SISREG, ela mandou voltar aqui com o laudo. [E25]
Eu tô retornando aqui pra ver se eu consigo mais um algo, uma declaração
pra levar lá no hospital. Porque só fica espera de telefone e sabe como é que
tá esses hospitais públicos. [E21]

A interação e comunicação dos usuários com a equipe da CRLS são uns dos
aspectos centrais do acesso ao direito e à justiça mais frágeis do serviço. Para a maioria
dos usuários, os encaminhamentos são pouco compreensíveis.
A fala da Sra. Helena (E3) é ilustrativa das dificuldades comunicativas. Ela buscava
um medicamento oftalmológico não inserido na lista pública de fornecimento e uma de
suas grandes dificuldades era compreender por que um medicamento prescrito por um
médico do serviço de saúde não pode ser fornecido:
Então eles mandaram que eu viesse na Defensoria Pública pra o Governo
conceder. Mas eles também dizem que não tem. Esse monte de coisa que eu
leio, leio e não entendo. [E3]

Outra entrevistada, a Sra. Francisca (E9), analfabeta, com 45 anos e 12 filhos,


buscava um aparelho respiratório para o filho de quatro anos, orientada pela pediatra do
hospital. A criança se encontrava internada há quase dois meses, e para dar continuidade
ao tratamento em casa necessitava do aparelho. A entrevistada, com saúde também
debilitada, expressa de forma simples e contundente sua angústia, esperança e as
inúmeras dificuldades de ter que buscar na CRLS uma “ajuda”:
É, eu entendi mais ou menos, minha filha entendeu mais, mas tomara que a
gente consegue, tá na mão de Deus, né? Eu entrei dia 7 de janeiro então ele
tem que ficar lá até eu conseguir o aparelho. Então, eu moro longe, eu vim
assim mesmo, tenho problema de saúde, tenho problema de pressão; não sei
ler, não sei escrever, meus filhos que me ajudam, minha filha, meu filho,
entendeu; [...]. Ele [o filho de 4 anos] precisa do aparelho, e depois eu tô com
os papéis do médico pra apresentar aí [...]. Deus quando leva você pra um
lugar você nunca vai à toa, você sempre tem a resposta de alguma coisa. E eu
não tenho a condição mesmo de comprar esse aparelho, entendeu, eu
preciso ter meu filho perto de mim. [E9]

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A característica híbrida da CRLS traz dúvidas aos usuários quanto a sua


identificação institucional. Alguns não têm clareza de quais órgãos estão atuando, por
vezes confundindo com a própria atividade jurisdicional. A Sra. Mary (E24), quando
perguntada sobre o serviço em que se encontra, responde: “Não. Eu vim pra ver esses
exames, se eu consigo resolver esses exames. Meu negócio é esse. Fui indicada por uma
amiga da saúde”. A Sra. Regina (E22) é enfática quanto a seu desconhecimento e também
na sua frustação em relação aos encaminhamentos, que não lhe permitiram dar
continuidade ao tratamento no hospital no qual já tinha vínculo há alguns anos:
Eu não sei nem explicar o que é isso aqui, eu vejo todo mundo aqui atrás de
alguma coisa, agora, o que é isso aqui, eu não sei. Eu sei que a gente corre pra
lá, corre pra cá, é um sofrimento. [...] Já tentei naquele balcão várias vezes[...]
“ah, só no SISREG, só no SISREG”. Botei no SISREG desde 2015 e não consegui
ir pro Servidores do Estado. Me mandaram pra Acari, tive duas consultas no
hospital de Acari. O hospital de Acari praticamente tá fechado, não tem nada
no Hospital. [E22]

A demora para a finalização do atendimento na CRLS foi apontada como uma


dificuldade, especialmente porque a maioria dos usuários tem problemas de saúde e
financeiros. Observou-se que o percurso completo do fluxo pode levar até cinco horas.
Então tô esperando há duas horas. Com dor, ficar assim parada é difícil. E
somos duas, eu tô aqui com a minha amiga [...] tô sentindo dor nas costas...
quadril... Eu não posso ficar nem muito tempo sentada, nem muito tempo em
pé. Eu quase não tô saindo de casa, eu só saio mesmo pra ir resolver as coisas.
[E24]
Eu espero que melhora o atendimento, entendeu? [...] tem pessoa que chega
só com o dinheiro da passagem e não pode nem mexer com o dinheiro da
passagem porque não tem nem como comer. Se mexer fica a pé, entendeu?
[E1]

Conjugando esses dois aspectos, alguns usuários criticam a falta de celeridade


processual, associando-a à atuação da própria Câmara
Dei entrada nesse processo em 2014. Em 2014, que era pro SUS pagar o meu
tratamento, porque não tem pelo SUS esse tratamento “feedback”. E eu tô
aqui até hoje, eles tão enrolando, meu processo já foi pra Brasília, já voltou.
A angústia da demanda de saúde soma-se, ainda, à falta de informações, ou de
contatos telefônicos em alguns processos já em andamento, como enfatizado pela Sra.
Marina (E23).
Eu não tô tendo... A demora, pra mim, não está resolvendo de nada! Porque
é muita demora e é o que eu falei, já estou aguardando há muito tempo, eu
que estou retornando porque ninguém me comunica nada e vamos ver agora
como é que... O que eles vão fazer agora, o que eles vão resolver, entendeu?

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2007

Mas a expectativa, eu gostaria que fosse das melhores, mas eu tô muito


decepcionada pela demora, entendeu? Pela necessidade que minha filha tem
da medicação, que é um risco de vida e eu tô esse tempo todo aguardando
uma justificativa deles aqui, coisa que eu não tenho. Nem ligação, nem carta
e nem nada, entendeu? É isso que me deixa insatisfeita. [E23].

A CRLS realiza mensalmente uma média de 1.400 atendimentos. A resolutividade


da sua atuação é questão central na discussão, especialmente no que se refere à
efetividade da intervenção para neutralizar as diferenças de poder entre os usuários e os
serviços de saúde na garantia do acesso. Estudo que analisa a “judicialização residual” da
saúde – demandas que não obtiveram êxito na resolução administrativa na CRLS – aponta
que, no ano de 2016, os percentuais de resolução administrativa foram 44,7% para
medicamentos, 43% para insumos, 70% para cirurgias, 88% para consultas e exames
(SOUZA, 2018).
No entanto, a “resolutividade” apontada nos estudos sobre a CRLS e nas
estatísticas do próprio serviço não é compreendida pelos usuários como solução; no
máximo sinalizam como uma “ajuda” ou mesmo uma “tentativa” de “conseguir algo
mais”. As expectativas de não mais retornar à CRLS e ter seu atendimento efetivo e a
mediação dos conflitos na própria unidade de saúde são afirmadas em quase todas as
falas. Durante a pesquisa, não se teve notícia de proposta de monitoramento sistemático
dos encaminhamentos pela coordenação da CRLS que pudesse avaliar a efetividade
destes junto à rede de serviços. Os retornos dos usuários e eventuais contatos são os
sinais para esta avaliação. Tal monitoramento pode colaborar na reformulação e
aperfeiçoamento da organização, fluxo e mecanismos utilizados.
Os aspectos favoráveis da atuação da CRLS observados e corroborados em outros
estudos (SOUZA, 2018; SOUZA, 2016) são de natureza administrativa e relacionados às
possibilidades de interação entre os atores estatais e a construção de consensos, o
atendimento organizado dos assistidos em um único local, das Defensorias e Secretarias
de Saúde; e a produção de dados estatísticos e pareceres técnicos para subsidiar
propostas de remodelamento de políticas de saúde. Estes últimos, são produtos
estratégicos e importantes no fortalecimento da atuação das Defensorias Públicas.
Respaldam ações coletivas e recomendações aos gestores de ajustamento de conduta
para reorientação de fluxos assistenciais e planejamento da rede SUS. Possuem, ainda,
importante valor informativo e formativo dos profissionais jurídicos sobre a

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2008

regulamentação sanitária e aspectos técnico-científicos na qualificação da demanda


judicial.
A Recomendação Conjunta DPERJ/DPU nº 002/2017 é um exemplo de medida
adotada pelas Defensorias Públicas, a partir do acúmulo de demandas judiciais
individuais, que exigiu do Ministério da Saúde a implementação, em um prazo máximo de
80 dias, do protocolo destinado ao fornecimento regular de insulinas destinadas ao
tratamento de diabetes mellitus tipo 1, incorporado à lista do SUS. Outro exemplo foi a
ação civil pública (nº 0501138-48.2015.4.02.5101/RJ), com sentença proferida em maio
de 2019, movida pela Defensoria Pública estadual, que obteve condenação do Estado à
incorporação dos medicamentos antiangiogênicos ranibizumabe (Lucentis) e aflibercepte
(Eylea) para o tratamento de pacientes portadores de degeneração macular,
estabelecendo o prazo de 180 dias para o fornecimento.
Durante a pesquisa observou-se inúmeros esforços e iniciativas das Defensorias
Públicas na busca de tratamento jurídico coletivo das demandas individuais reiteradas e
vocalizadas na CRLS. O projeto “Construindo o SUS com a Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro” é outro exemplo de iniciativa promissora de natureza preventiva e
coletiva favorável à garantia do acesso ao direito à saúde no Estado do Rio de Janeiro.
Contudo, observa-se que tanto os estudos sobre a CRLS como nas práticas
desenvolvidas no atendimento negligenciam a importância da participação ativa dos
usuários no âmbito da CRLS e em outras iniciativas de resolução extrajudicial. Este
envolvimento e participação social mais ampla é um aspecto central determinante no
efetivo acesso ao direito e à justiça.
O usuário percorre diferentes guichês, recebendo e fornecendo informações que
são decodificadas tecnicamente pelo setor de análise e que se concretizam em um
encaminhamento burocrático em linguagem de difícil compreensão. O principal objetivo
é adequar sua demanda à oferta da rede, sem observar outras violações subjacentes à
demanda e com possibilidades jurídicas de abordagem mais ampla, como, por exemplo,
as demandas de exames e consultas para comprovação junto à Previdência e Assistência
Social, ou para o acesso a outros benefícios legais. Neste sentido, a dinâmica e
instrumentos utilizados para articulação entre usuários e sistema de saúde torna-se
fragilizada em uma perspectiva comunicativa e participativa democrática, da
integralidade e da indivisibilidade dos direitos humanos implicados. Os mecanismos
adjudicatórios utilizados são dependentes da capacidade de interação dos usuários nos

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2009

serviços de saúde e dos limites da oferta desses serviços de saúde, sendo necessário sua
revisão à vista de maior efetividade ou resolutividade.
A perspectiva de atuação da CRLS, como já apontada, é a de regular a utilização
de bens e serviços de saúde e judiciário, além de buscar o equilíbrio possível entre oferta
da rede e demanda dos usuários. A adoção de tal perspectiva explica tanto as variações
nas práticas dos atores envolvidos, como as fragilidades da atuação da CRLS frente à
complexidade das demandas de saúde vocalizadas pelos entrevistados. Importante
reiterar a potencialidade do novo arranjo e seu necessário aperfeiçoamento no sentido
de ir além, buscando a efetividade de um conjunto de direitos sociais e adequações de
políticas em prol da redução das vulnerabilidades presentes e vocalizadas pelos usuários.

5. Considerações finais

As propostas de racionalização do acesso à saúde e à justiça se instrumentalizam com


encaminhamentos de cunho técnico-científico e com a organização de fluxos da rede de
serviços que buscam enfatizar aspectos clínicos, evidências científicas em relação às
terapêuticas disponíveis e a regulamentação sanitária. Desta forma, ajustam os direitos à
capacidade de resposta dos sistemas de saúde e justiça, reduzindo o potencial
transformador dos direitos e sua função social.
Os dados coletados permitiram avançar na compreensão de aspectos operativos
da inclusão de serviços judiciais como pontos privilegiados no percurso dos cidadãos na
busca de assistência à saúde. A estratégia metodológica se mostrou potente na
compreensão dos significados, interações pessoais e sociais, inclusive em contextos
institucionais.
A estrutura, os mecanismos e a dinâmica empreendidas pela CRLS são
funcionalizados para dar conta de um problema de governo que considera excessiva e
inadequada a judicialização de determinadas demandas dos governados. Assim, é
resolutiva na redução da sobrecarga de processos no Judiciário e órgãos do sistema de
justiça.
Porém a abordagem integral e célere do acesso ao direito à saúde fragiliza-se a
partir da dinâmica revelada neste estudo. O fluxo operacional da CRLS focaliza uma
resposta entre essa demanda e a oferta, gerenciando instâncias regulatórias diversas de

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2010

forma fragmentada. Instituir esta esfera de negociação interinstitucional é um avanço no


campo das políticas públicas, no entanto, identifica-se a necessidade de reformulações
que ampliem a efetividade do direito à saúde e à justiça, e não se transforme em mais
uma instância procedimental ou de contenção.
As formas de reação institucionais observadas têm adotado uma perspectiva
restrita de acesso à saúde e à justiça, com medidas necessárias, mas insuficientes,
voltadas para a resolução de problemas de gestão estatal de recursos e sobrecarga de
processos. Tratando-se de relações estruturais de poder, os mecanismos de solução dos
litígios se deparam com interesses e limites institucionais que esfumaçam caminhos
supostamente ágeis e eficazes.
Além da dimensão normativa do direito à saúde, não se pode perder de vista a
ação dos indivíduos e como os conflitos são equacionados no espaço institucionalizado da
CRLS. O efetivo acesso aos direitos e à justiça deve ser compreendido a partir das vivências
concretas, das articulações e interações sociais e negociações práticas sobre esse acesso.
Assim, repercutirá na vida diária de todos e suas famílias, de acordo com as possibilidades
construídas intersubjetivamente nos diferentes contextos e conjunturas vulneráveis.
É inevitável não recordar um texto de Franz Kafka, “Diante da Lei está um guarda”,
que aborda as dificuldades do acesso ao direito e à justiça. A narrativa do homem do
campo que pede para entrar na Lei, mas tem negado seu acesso pelo guarda, ao dizer
que, por enquanto, não pode autorizar sua entrada. E ao ser questionado se poderá entrar
mais tarde, o guarda responde: “É possível, mas não agora!”.

6. Referências Bibliográficas

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Sobre as autoras

Miriam Ventura
Graduada em Direito (1983). Mestre (2007) e Doutora (2012) Saúde Pública (Escola
Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz/ Fiocruz).
Professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) / UFRJ. Membro
do Conselho Diretor da Cepia – Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação e
Ação. Editora associada dos Cadernos de Saúde Pública (CSP) Fiocruz. Coordena o
Laboratório Interdisciplinar de Direitos Humanos e Saúde – LIDHS/UFRJ. Integra o
corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do
IESC e Faculdade Medicina da UFRJ, coordena a linha de pesquisa “Construção social
do acesso à saúde: interfaces entre sujeitos, direitos e políticas”, com orientações de
mestrado e doutorado. Desenvolve e orienta estudos sobre direito à saúde e o
sistema de justiça; acesso à saúde e à justiça; direitos sexuais e reprodutivos;
cidadania e saúde; saúde global e direitos humanos; ciência e tecnologia e direito à
saúde.

Luciana Simas
Doutora em Bioética, Ética Aplica e Saúde Coletiva (PPGBIOS / UFRJ), com intercâmbio
na Universidade da Flórida - Levin College of Law (2016). Mestre em Direito e
Sociologia (UFF); advogada, com especialização em Direito Público, graduada pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Consultora da UNODC/ONU, no Programa
Justiça Presente do Conselho Nacional de Justiça. Foi Pesquisadora Visitante na Escola
Nacional de Saúde Pública (Ensp/FIOCRUZ), tendo experiência como consultora
jurídica em projetos com pesquisa empírica e no magistério, nas áreas de Direito à
Saúde, Sociologia Jurídica, Prática Jurídica, Criminologia e Direitos Humanos.

As autoras contribuíram igualmente para a redação do artigo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 3, 2021, p. 1989-2014.


Miriam Ventura e Luciana Simas
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/51143| ISSN: 2179-8966

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