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Direito e Saúde INTERSECÇÕES


CONTEMPORÂNEAS
EVANDRO SIPPERT, Janaína Machado Sturza

Íthala

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T CC DEFINIT IVO
Jorge Fagundes

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍT ICA PÚBLICA DE MEDICAMENT OS. O DIREIT O À SAÚDE ENT RE A DIGNIDA…
Nairo Lopes

MONOGRAFIA - arquivo melhor (1)


Nat haly Bugelli Tudisco
JANAÍNA MACHADO STURZA
EVANDRO LUIS SIPPERT
Organizadores

Direito
e
Saúde
INTERSECÇÕES
CONTEMPORÂNEAS
CONSELHO EDITORIAL
Ana Claudia Santano – Professora do programa de mestra- cional pela UNIFOR-CE;. Consultora Jurídica na área de
do em Direitos Fundamentais e Democracia, do Centro Uni- Direito Urbanístico. É professora do Centro Universitário
versitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Pós-doutora em Di- Christus, em Fortaleza, nas disciplinas de Direito Adminis-
reito Público Econômico pela Pontifícia Universidade Católica trativo II, Coordenadora de Pesquisa da mesma Faculdade
do Paraná. Doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas e professora associada do Escritório de Direitos Humanos
pela Universidad de Salamanca, Espanha. vinculado ao Curso de Direito. É professora licenciada da
Daniel Wunder Hachem – Professor de Direito Constitu- Faculdade Paraíso - FAP, em Juazeiro do Norte-CE, de gra-
cional e Administrativo da Universidade Federal do Paraná duação e pós graduação. Presidente do Instituto Cearen-
e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutor e se de Direito Administrativo - ICDA desde 2014; Diretora
Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Coordenador Exe- do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico desde 2013;
cutivo da Rede Docente Eurolatinoamericana de Derecho É professora de Pós Graduação da Universidade Regional
Administrativo. do Cariri - URCA; Professora colaboradora do Instituto Ro-
Emerson Gabardo – Professor Titular de Direito Adminis- meu Felipe Bacellar desde 2006, em Curitiba/PR.
trativo da PUCPR. Professor de Direito Administrativo da
Luiz Fernando Casagrande Pereira – Doutor e Mestre em
UFPR. Pós-doutorado pela Fordham University School of
Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenador
Law - EUA. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito
Administrativo. da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade
Positivo. Autor de livros e artigos de processo civil e direito
Fernando Gama de Miranda Netto – Doutor em Direito eleitoral.
pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. Professor
Adjunto de Direito Processual da Universidade Federal Flu- Rafael Santos de Oliveira – Doutor em Direito pela Uni-
minense e membro do corpo permanente do Programa de versidade Federal de Santa Catarina. Mestre e Graduado em
Mestrado e Doutorado em Sociologia e Direito da mesma Direito pela UFSM. Professor na graduação e na pós-gradu-
universidade. ação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria.
Ligia Maria Silva Melo de Casimiro – Doutora em Direi- Coordenador do Curso de Direito e editor da Revista Direitos
to Econômico e Social pela PUC/PR; Mestre em Direito do Emergentes na Sociedade Global e da Revista Eletrônica
Estado pela PUC/SP; Especialista em Direito Constitu do Curso de Direito da mesma universidade.

Editora Íthala Ltda. Capa: Paulo Schiavon


Rua Pedro Nolasko Pizzatto, 70 Projeto Gráfico e Diagramação: Kamila Wilck
Bairro Mercês
80.710-130 – Curitiba – PR
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Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos publicados na


obra. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a
prévia autorização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº
9.610/98 e punido pelo art. 184 do Código Penal.
JANAÍNA MACHADO STURZA
EVANDRO LUIS SIPPERT
Organizadores

Direito
e
Saúde
INTERSECÇÕES
CONTEMPORÂNEAS

EDITORA ÍTHALA
CURITIBA – 2019
SUMÁRIO

PREFÁCIO .................................................................................7

APRESENTAÇÃO ......................................................................9

I – INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE:


A (IN) SUSTENTABILIDADE COMO FORMA DE (NÃO)
PROMOÇÃO DA SAÚDE .......................................................13
Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza

II – O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO


TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS: UMA VISÃO INTERDISCIPLINAR
ENTRE O DIREITO E AS CIÊNCIAS MÉDICAS .............................37
Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske

III – O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO


DA REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA E O
DIREITO À SAÚDE ...........................................................................55
Ana Elizabeth Lapa | Wanderley Cavalcanti
IV – A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PRISMA DA
JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ...................................71
Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol

V – O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO: UMA


PERSPECTIVA PARA A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS EM
UMA SOCIEDADE FRATERNA .......................................................89
Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez

VI – A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA: OS PROCEDIMENTOS DE ASTROPLASTIA
E A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ..........................109
Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle

VII – A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE


SAÚDE (IN)VIABILIZA A CONCRETIZAÇÃO MATERIAL DO
DIREITO À SAUDE(?): UM DEBATE NECESSÁRIO ....................129
Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade
Argerich

VIII – A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE


REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE EM PACIENTE
TESTEMUNHA DE JEOVÁ SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
JUDICIAL .........................................................................................153
Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa | Danilo Scramin Alves

IX – POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, DIREITOS


HUMANOS E DIREITO À SAÚDE: UMA INTERLOCUÇÃO
POSSÍVEL SOB O VIÉS DA INTERNACIONALIZAÇÃO DA
EDUCAÇÃO SUPERIOR .................................................................171
Lucas Gonçalves Abad | Francine Nunes Ávila
PREFÁCIO

É com imensa satisfação que prefacio o livro “DIREITO &


SAÚDE: intersecções contemporâneas”, organizado pelos pesquisadores
Mestre Evandro Luis Sippert e Pós Doutora Janaína Machado Sturza.
Pesquisadores dedicados ao enfrentamento dos nós críticos que atra-
vessam a temática da saúde, desempenharam com brilhantismo a tarefa
de selecionar textos para compor a presente obra coletiva de abordagem
interdisciplinar.
Os pesquisadores que contribuem com suas discussões para
construção da presente obra, apresentam o panorama atual da saúde e
seus enfrentamentos em diversos aspectos de interlocuções. São aborda-
gens que convocam o leitor a refletir sobre aspectos públicos e privados
que tocam o direito a saúde, a exemplo da judicialização, da organização
e programação do Sistema Único de Saúde, sustentabilidade, do prin-
cípio da reserva do possível, conflitos entre direito a saúde e orientação
religiosa.
Certamente a publicação periódica desta obra coletiva publi-
ciza resultados de sérias pesquisas, efetuadas com rigor metodológico,
que permitem ao leitor acompanhar as transformações interpretativas
do direito a saúde no tempo e espaço. A dedicação e seriedade dos or-
ganizadores da publicação tornam a apresentação da leitura didática e
convidativa, desvelando sentidos nem sempre explícito relacionados a
este direito.
A publicação de racionalidades interdisciplinares acerca da
temática, trás a baila a necessidade de formação educativa dos sujeitos
em saúde.
Almejo que esta obra coletiva se renove em seus volumes, per-
mitindo registrar as evoluções da temática ao longo do tempo, sob o olhar
atento da academia

Prof. PhD em Saúde Coletiva Letícia Lassen Petersen


Professora dos cursos de Graduação e Pós Graduação em
Direito e Educação da Fundação Educacional Machado de Assis

8 | Letícia Lassen Petersen - Prefácio


APRESENTAÇÃO

A presente obra “DIREITO & SAÚDE: intersecções contempo-


râneas”, tem por finalidade precípua, a divulgação da investigação cien-
tífica partindo de uma visão interdisciplinar do tema, interagindo com
todas as atualidades do Direito e da sociedade atual.
No capítulo I, o artigo “INTERFACES ENTRE SUSTENTABI-
LIDADE E SAÚDE: A (IN) SUSTENTABILIDADE COMO FORMA
DE (NÃO)PROMOÇÃO DA SAÚDE” de autoria de Evandro Luis Si-
ppert e Janaína Machado Sturza, tem por escopo delinear a relação da
sociedade pós-moderna e suas consequências sobre a saúde, perpassan-
do por alguns paradigmas atuais, quais sejam a sociedade de consumo,
novas tecnologias, ética e bioética, frente ao direito à saúde, pois é de
extrema importância a busca da sustentabilidade a sua ligação com o am-
biente, suas formas de vida, as condições do seu habitat, seus hábitos e
todo o contexto que podem, de alguma, forma exercer ou ter influência
na saúde e no bem-estar dos indivíduos.
Por sua vez, no capítulo II, o artigo intitulado “O DIREITO
À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE
ÓRGÃOS: UMA VISÃO INTERDISCIPLINAR ENTRE O DIREITO E
AS CIÊNCIAS MÉDICAS” de autoria de Claudine Rodembusch Rocha
e Henrique Alexander Keske, se propõe a trazer uma perspectiva inter-
disciplinar entre as ciências médicas e o direito, no que se refere à base
legal-normativa de nosso ordenamento, focado na política nacional de
transplante de órgãos; e tratando da necessidade do desenvolvimento de
políticas públicas eficazes, envolvendo o Estado e a sociedade como um
todo, para fazer frente a essa complexa dimensão existencial humana.
Já no capítulo III, o artigo que tem o título “O DIREITO AO
PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO
HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA E O DIREITO À SAÚDE”
cuja autora é Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, tem como obje-
tivo principal tratar da reprodução humana medicamente assistida como
parte integrante do direito humano e fundamental ao planejamento fa-
miliar e direito à saúde. Para tanto, entendeu-se necessário analisar o sig-
nificado de planejamento familiar, bem como a sua situação na legislação
brasileira, oferecendo-se ao final do trabalho, uma crítica à jurisprudên-
cia atual sobre a não cobertura das técnicas de reprodução assistida pelas
empresas de Planos de Saúde.
O capítulo IV, o artigo “A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍ-
VEL SOB O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚ-
DE”, de autoria de Andressa Julianny Morais Pacheco e Sabrina Cassol
tratam a forma como a judicialização do direito à saúde na legislação
brasileira permeia a dicotomia entre a garantia do mínimo existencial e
seu limitador a reserva o possível, criando um problema de gestão e de
efetivação de direitos frente a teoria da separação dos poderes. A solução
equitativa para esse problema ainda não foi alcançada, razão pela qual o
tema ainda merece ser estudado e analisado.
Já o capítulo V da presente obra, no artigo “O DIREITO À
SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO: UMA PERSPECTIVA PARA
A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS EM UMA SOCIEDADE FRA-
TERNA”, das autoras Lígia Daiane Fink e Charlise Paula Colet Gimenez,
trazem a baila a saúde na sociedade contemporânea considerada como
um bem de todos, um direito social inerente à manutenção da vida. Con-
tudo, o reconhecimento deste direito e sua eficácia têm sido discutidos
nos dias atuais pela sua (in)efetividade. Por essa razão,  sob o enfoque

10 | Janaína Machado Sturza | Evandro Luis Sippert - Organizadores


de proteger os princípios e garantias constitucionalmente assegurados,
além de proteger o Estado e sua ordem econômica contra a judicialização
“desmedida” é de se apontar que se faz necessário uma nova forma de
“pensar” o Direito, como também as políticas públicas para serem as-
segurados os direitos e deveres entre Cidadãos e Estado em diferentes
situações de conflito, o que justifica o presente estudo.
O capítulo VI, no artigo “A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR
NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: OS PROCEDIMENTOS DE
GASTROPLASTIA E A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚ-
DE”, as autoras Mariana B. D. Eickhoff , Paola Naiane Sippert e Alessan-
dra Leves Raichle, exploram a saúde como sendo um direito fundamen-
tal assegurado pela Constituição Federal de 1988, tendo como enfoque
central de pesquisa os casos de obesidade, considerada uma questão de
saúde pública, uma vez que impossibilita o indivíduo que está acima do
peso a ter uma vida digna, não havendo alternativa para muitos casos a
não ser a intervenção cirúrgica para, finalmente, ter direito ao bem-estar
e à qualidade de vida.
O capítulo VII, que tem o artigo intitulado como “A LISTA DE
MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (IN)VIABILI-
ZA A CONCRETIZAÇÃO MATERIAL DO DIREITO À SAUDE(?):
UM DEBATE NECESSÁRIO”, dos autores Ariel Cargnelutti Goi, Ber-
nardo Gheller Heidemann e Eloísa Nair de Andrade Argerich, tem por
base um estudo desenvolvido com o objetivo de identificar aspectos que
podem contribuir com a reflexão sobre a concretização do direito à saúde
a partir da lista de medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) – po-
lítica social promovida e implantada pelo governo federal, e demonstrar
que mesmo assim é possível evidenciar o descaso com os serviços e ativi-
dades do setor de Saúde Pública no Brasil.
O capítulo VIII do presente livro, no artigo “A RESPONSA-
BILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE
SANGUE EM PACIENTE TESTEMUNHA DE JEOVÁ SEM PRÉVIA
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL” os autores Manuelle Cristina de Albu-
querque Barbosa e Danilo Scramin Alves, trazem um estudo realizado
com o objetivo de verificar a existência, ou não, da responsabilidade civil

DIREITO E SAÚDE: Intersecções Contemporâneas | 11


do médico quando este realiza transfusão de sangue em paciente Teste-
munha de Jeová sem prévia autorização judicial. Buscou-se identificar
por meio de princípios expressos na Constituição Federal, jurisprudên-
cias, Código de Ética Médica e demais normas que regulam a atuação
do médico com o paciente, se a recusa da Testemunha de Jeová em fazer
transfusão de sangue, por razões religiosas, deve ser acatada em toda e
qualquer situação e se a conduta do médico em acatar ou contrariar a
vontade do paciente é suscetível de responsabilização.
Já no capítulo IX, o artigo intitulado, “POLÍTICAS PÚBLICAS
EDUCACIONAIS, DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE:
UMA INTERLOCUÇÃO POSSÍVEL SOB O VIÉS DA INTERNACIO-
NALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR”, os autores Lucas Gonçal-
ves Abad e Francine Nunes Ávila, tratam da educação como meio fun-
damental para modificação das estruturas sociais postas, no sentido de
aprimoramento e reconhecimento das diversidades e especificidades dos
indivíduos. Nesse sentido, os direitos humanos, o direito à educação e à
saúde, precisam ser difundidos e aplicados em políticas públicas educa-
cionais, fazendo parte de um todo, dada a sua universalidade e conse-
quente internacionalização, servindo estas intersecções como fundamen-
tos do presente artigo.
Desejamos a todos uma boa leitura!!!

Evandro Luis Sippert & Janaína Machado Sturza


Outono de 2019.

12 | Janaína Machado Sturza | Evandro Luis Sippert - Organizadores


I
INTERFACES ENTRE
SUSTENTABILIDADE E SAÚDE:
A (IN) SUSTENTABILIDADE COMO
FORMA DE (NÃO)PROMOÇÃO DA SAÚDE

Evandro Luis Sippert 1


Janaína Machado Sturza 2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Dentre as questões que mais intervêm na vida das pessoas, des-


taca-se o acesso à saúde de forma justa e com equidade. Devido à hipos-
suficiência econômica, provocada pelo atual modelo que distribui bens

1 Mestre em Direito pelo PPGD – Programa de Pós-Graduação em Direito da


Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ,
Bacharel em Direito pela Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ, Graduado em
História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS,
MBA em Gestão das Tecnologias de Informação e Comunicação em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS, Pós-Graduação
em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ. Contato: evandro.sippert@gmail.com.
2 Pós doutora em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Doutora em Direito pela
Escola Internacional de Doutorado em Direito e Economia Tullio Ascarelli, da
Universidade de Roma Tre/Itália. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz
do Sul - UNISC. Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas também pela
UNISC. Graduada em Direito pela UNISC. Professora na Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, lecionando na graduação
em Direito e no Programa de Pós Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado.
Integrante do grupo de pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos (certificado pelo
CNPq). Contato: janasturza@hotmail.com
e serviços de forma desigual e injusta, permite-se uma concentração de
capital na mão de poucos privilegiados e faz-se com que a maioria da po-
pulação sofra as consequências adversas da globalização. Esta se apresen-
ta irreversível e afeta a todas as pessoas de uma ou outra forma, excluindo
indivíduos e, consequentemente, não permitindo que vivam dignamente
e exerçam seus direitos humanos.
A proliferação de doenças epidemiológicas e o avanço de novos
tipos de enfermidades coincidem com a falta de acompanhamento de
medidas sanitárias preventivas, as quais acabam por onerar o Estado. O
direito à saúde, juntamente com os direitos políticos e sociais, está po-
sitivado na Constituição Federal de 1988, norteando toda a sociedade.
Assim, o indivíduo pode exercer seus direitos fundamentais, que são ins-
trumentos jurídicos de tutela em face do Estado, de forma equilibrada e
justa, buscando a efetividade dos ideais do Estado Democrático de Direi-
to, o que por vezes não se verifica na exata medida das demandas sociais.
O Estado também deve (ria) promover as condições básicas
para atingir tal finalidade, nomeadamente pela consagração e implemen-
tação dos direitos sociais, o que se dá principalmente no acesso à saúde,
com ações sociais que visem à inclusão do indivíduo. Cumpre destacar
que o setor privado com suas ações, também tem sua parcela de respon-
sabilidade em convergir para a consecução do acesso à saúde e o real
alcance de seus fins sociais.
Porém, o que por vezes se depreende, é que a busca à saúde e o
acesso à saúde pública, embora consagrados como direito fundamental e
positivados no ordenamento jurídico pátrio, não se alinham com a rea-
lidade fática, existindo uma enorme incongruência entre o que está pre-
visto, ou seja, entre o ser e o dever ser. Vários são os fatores que influen-
ciam para o malogro das prestações sociais no Brasil, os quais perpassam
desde a má alocação dos escassos recursos públicos, assim também como
a corrupção endêmica que toma conta de determinados setores da socie-
dade, tanto na esfera pública quanto privada.
Assim, estudar o homem enquanto ser que vive a relação dinâ-
mica e contextual com o seu meio, observando, discutindo, descrevendo
e explicando os fenômenos sociais no qual está inserido, faz-se extrema-

14 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


mente necessário para entender a relação entre a (in)sustentabilidade do
meio ambiente como forma de (não)promoção da saúde, e, também, a
(in)sustentabilidade e a sua ligação com o ambiente, suas formas de vida,
as condições do seu habitat, seus hábitos e todo o contexto que podem,
de alguma, forma exercer ou ter influência na saúde e no bem-estar dos
indivíduos.

2. O ESTADO ENTRE A (IN) SUSTENTABILIDADE E


AS DEMANDAS SANITÁRIAS

O Estado, é o grande responsável por assegurar as garantias e


direitos fundamentais, dentre as quais, aqui destacadas a vida sustentá-
vel e o direito à saúde, as quais foram adotadas por praticamente todas
Constituições modernas. No Brasil, como marco expressivo do Estado
Democrático de Direito, a Constituição Federal de 1988, também posi-
tivou estas garantias. Assim, faz-se necessário destacar quais as políticas
públicas adotadas, principalmente no tocante as questões relativas à saú-
de ambiental.
Nesse sentido, como definição de política adotada pelo Estado
brasileiro para destacar a importância da interface entre saúde e meio
ambiente sustentável, evidencia-se um dos conceitos definidos nos Sub-
sídios para a Construção da Política Nacional de Saúde Ambiental, do
Ministério da Saúde, no qual “A exploração da interface entre saúde e
ambiente, sob o marco da sustentabilidade, compreende a instituição de
uma política que expresse a multiplicidade de forças interativas geradas
em torno da promoção do bem-estar e da saúde humana” (BRASIL, 2007,
p. 14). Muitas atividades diretamente ligadas à saúde são atividades es-
senciais do Estado, vejamos:

[...] como o saneamento básico, a defesa contra a calamidade pú-


blica, a utilização de radioisótopos em medicina (art. 21, da CF),
o fracionamento industrial do sangue (art. 199, § 4º, da CF), a
manutenção e administração de banco de órgãos e partes do corpo
humano para transplante (Lei n. 8.489, de 18.9.92 e Decreto n.
879, de 22.7.93), o tratamento e abastecimento de água; a limpeza

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 15


urbana, o tratamento de lixo são atividades privativas do Poder
Público, algumas delas executadas pelo setor privado somente me-
diante permissão ou concessão, nos termos do artigo 175 da Cons-
tituição e da Lei 8.987, de 13.2.9527. (SANTOS, 1997, p. 260).

Evidencia-se, assim, a necessidade da pluralidade de atores que


devem atuar de forma a propiciar uma melhor qualidade de vida, de
acordo também com a visão da Política Nacional. A idealização e a ne-
cessidade cada vez mais em voga de relacionar saúde com meio ambiente
faz com que se tenha uma concepção de saúde ambiental, que permeia e
leva em conta várias razões, como a

[...] necessidade de “aprimoramento” do atual modelo de aten-


ção do Sistema Único de Saúde (SUS), de forma que a agenda da
promoção da saúde seja compreendida numa dimensão em que a
construção da saúde é realizada fundamentalmente, embora não
exclusivamente, fora da prática das unidades de saúde, ocorrendo
nos espaços do cotidiano da vida humana, nos ambientes dos pro-
cessos produtivos e na dinâmica da vida das cidades e do campo.
Busca-se compreender o ambiente como um território vivo, dinâ-
mico, reflexo de processos políticos, históricos, econômicos, sociais e
culturais, onde se materializa a vida humana e a sua relação com
o universo. É necessária e urgente a adoção de uma prática de saú-
de voltada para os determinantes e condicionantes da saúde. (...)
(BRASIL, 2007, p. 13).

Segundo os dados do Ministério da Saúde, o perfil de saúde da


população brasileira no quadro atual está composto por três cenários
principais, todos eles condicionados por diferentes contextos socioam-
bientais. O primeiro, traz de forma predominante doenças cardiovascu-
lares e neoplásicas que são, respectivamente, a primeira e a terceira causas
de óbito – destaca-se aqui a grande quantidade de óbitos em algumas
regiões do Estado do Rio Grande do Sul de causa neoplásica, destaca-
damente as regiões produtora de fumo, e, recentemente, a grande inci-
dência em regiões agrícolas produtoras de monoculturas, que utilizam
inseticidas e pesticidas.

16 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


Traz ainda o Ministério da Saúde, que esta situação é possível,
pois tais expressões mórbidas são consideradas como efeito de condições
genéticas, de vida e trabalho vivenciadas pelas populações, principal-
mente por aquelas expostas a determinados poluentes ambientais. Para
o Ministério da Saúde, o segundo cenário é conformado pelas doenças
infecto-parasitárias, as quais são determinadas também por condições
socioambientais. Já o terceiro cenário é composto pelas chamadas cau-
sas externas, que englobam os acidentes e as causas de violências. Assim,
para o Ministério da Saúde, “Pode-se dizer que esses três cenários cons-
tituem-se como acontecimentos socioambientais produtores de traumas,
lesões e doenças” (BRASIL, 2007, p. 13).
Como se verifica nos dados do Ministério da Saúde, o condi-
cionante socioambiental e as exposições a certos riscos estão entre os
fatores que mais causam doenças e óbitos na população em geral, tais
como, “[...] meio ambiente, fármacos, alimentos, drogas, condições e lo-
cais de trabalho, engenharia genética, bioética, saneamento, atividades
médicas e hospitalares, propagandas, atividades nucleares, etc.” (SAN-
TOS, 1997, p. 263).
Por isso, é fundamental que se tenha a ideia de promoção da
saúde e não da doença, ou seja, de forma preventiva e não atacando as
consequências que muitas vezes são nefastas, terríveis e quando não ir-
reversíveis, principalmente para as populações mais carentes, pois no
tocante à saúde, cabe ao Estado, “[...] uma série de condicionamentos
administrativos em prol do bem estar social, cabendo lembrar que dentro
do tema saúde vamos encontrar toda sorte de situações que interferem
com o bem estar individual e social (...)” (SANTOS, 1997, p. 263).
Portanto, os direitos sociais garantidos na Constituição devem
ser analisados e viabilizados ante a realidade dos diversos indivíduos que
a ela estão sujeitos para que possam atender as necessidades fáticas e pre-
mentes das populações. Nesse sentido, Sturza e Lucion (2014, p. 21) res-
saltam que

[...] políticas públicas de combate a doenças e epidemias que tenham


abrangência universal são essenciais para a garantia do direito à
saúde. Da mesma forma, políticas públicas de promoção do direito

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 17


à saúde também ocupam um lugar de destaque neste contexto, na
medida em que evitam a proliferação de doenças e contribuem para
assegurar a qualidade de vida das pessoas.

Destaca-se a disparidade entre a qualidade de vida e os meios de


acesso ao sistema sanitário, das diversas regiões do Brasil, principalmente
mais agravadas pela disparidade econômica, onde algumas regiões estão
mais suscetíveis a diversas formas de contaminação e proliferação de do-
enças e epidemias, embora isto já seja um problema recorrente em todo o
país, e que são cotidianamente agravadas por riscos e fatores novos,

[…] nas Américas, a Saúde Ambiental, antes relacionada quase que


exclusivamente ao saneamento e qualidade da água, incorporou
outras questões que envolvem poluição química, pobreza, equidade,
condições psicossociais e a necessidade de um desenvolvimento sus-
tentável que possa garantir uma expectativa de vida saudável para
as gerações atuais e futuras”. (CÂMARA; TAMBELLINI, 2003 apud
RIBEIRO, 2004, p. 78).

Em 1993, a Organização Mundial da Saúde apresentou a Carta


de Sofia, onde traz todos os aspectos que são tratados como fatores que
são determinantes e que possam prejudicar a saúde de gerações atuais e
futuras. Assim como resultado de um encontro da Organização Mundial
da Saúde, sediada na cidade de Sofia, tem-se o conceito de saúde ambien-
tal, o qual diz que

são todos aqueles aspectos da saúde humana, incluindo a qualidade


de vida, que estão determinados por fatores físicos, químicos, bioló-
gicos, sociais e psicológicos no meio ambiente. Também se refere à
teoria e prática de valorar, corrigir, controlar e evitar aqueles fatores
do meio ambiente que, potencialmente, possam prejudicar a saúde
de gerações atuais e futuras. (OMS, 1993).

Do conceito da Carta de Sofia, denota-se claramente a neces-


sidade de aliar a teoria à prática, no tocante de evitar os fatores do meio

18 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


ambiente que possam ser nocivos ou que tenham uma potencial capaci-
dade de prejudicar a saúde das gerações presentes e futuras. Nesse mes-
mo diapasão, o Brasil, por meio do Ministério da Saúde, também definiu
o conceito de saúde ambiental como aquele que compreende

[...] a área da saúde pública, afeita ao conhecimento científico e à


formulação de políticas públicas e às correspondentes intervenções
(ações) relacionadas à interação entre a saúde humana e os fatores
do meio ambiente natural e antrópico que a determinam, condi-
cionam e influenciam, com vistas a melhorar a qualidade de vida
do ser humano sob o ponto de vista da sustentabilidade. (BRASIL,
2007, p. 18).

Portanto, as políticas públicas precisam atender as especificida-


des de cada indivíduo, no tocante da sustentabilidade e da saúde pública,
sob pena de não surtirem o efeito desejado e estarem sendo desperdi-
çados os recursos sanitários escassos, não permitindo que a pessoa viva
com dignidade nem que exerça sua cidadania, permitindo assim,

[...] vida saudável à vida digna, aproximando conceitos de qualida-


de de vida e dignidade da pessoa humana, já que no direito à saúde,
que se manifesta de forma mais contundente a vinculação do seu
objeto (prestações materiais na esfera da assistência médica, hospi-
talar, etc), com o direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Para além do direito à vida, o direito à saúde encontra-se
umbilicalmente atrelado à proteção da integridade física (corporal e
psicológica) do ser humano, exigindo-se igualmente posições jurídi-
cas de fundamentalidade indiscutível. (SARLET, 1998 p. 296 apud
SOUSA, 2015, p. 7).

Assim sendo a Política Nacional do Meio Ambiente afirma que


seus objetivos são a preservação, a melhoria e a recuperação da qualidade
ambiental propícia à vida, a fim de assegurar a proteção da dignidade da
vida humana, que demonstra – pelo menos no plano teórico – o interesse
do legislador em proteger o meio ambiente o qual está ligado sempre a

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 19


“necessidade de garantir a vida e a sua qualidade, prevenindo riscos de
toda sorte, uma vez que a desordem do meio ambiente em algum grau
gerará uma desordem na saúde individual e coletiva, com demarcação
difícil de prever” (BRASIL, 2007, p. 18).
Embora haja uma preocupação do legislador, há uma enorme
diferença entre o ser e o dever ser. A não implementação e a falta de efe-
tividade das políticas públicas são o grande óbice a transpor para sair
do plano da lei para a prática do dia a dia das pessoas, trazendo como
consequência o adoecimento da população e vindo a onerar o próprio
Estado quanto ao tratamento, mesmo que precário, de tais moléstias. As-
sim, a falta destes e de tantos outros direitos fundamentais que poderiam
ser suscitados, afeta também a dignidade e garantia de bem-estar do ser
humano.

[...] a valorização de políticas públicas de acesso a medicamentos e


tratamentos médicos é notória, colocando a promoção da saúde e
da qualidade de vida nitidamente em segundo plano, o que acaba
por não solucionar o problema de maneira efetiva. Aliás, sob esta
ótica, o problema da falta de efetividade do direito à saúde corre
o risco de jamais ser solucionado, eis que o simples combate a do-
enças, sem evitar a sua incidência, ocasiona um crescente mal-es-
tar nos pacientes e um rombo no orçamento público, tornando-se
impossível cobrir todos os gastos de curar sem prevenir (STURZA;
LUCION, 2014, p. 21).

A prevenção da doença como forma de evitar o tratamento e


propiciar uma melhor qualidade de vida traz como consequência direta
a não oneração do Estado e, também, se aduz que uma população sau-
dável vive melhor, produz mais e tornaria, certamente, o Brasil melhor.
Obviamente não se busca a erradicação de doenças, pois historicamente
elas acompanham a humanidade, porém minorar ao máximo possível as
suas consequências na saúde das pessoas. Por isso, o Estado precisa atuar
sempre de forma a propiciar ao cidadão condições mínimas.
Para BUSS et al. (2012), é no o Plano Nacional de Saúde Am-
biental que se identificariam políticas, programas e projetos com o obje-

20 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


tivo de integrar diversos setores governamentais e da sociedade. Na ela-
boração destes planos compartilhados de desenvolvimento sustentável,
ambiente e saúde, nas esferas federal, estadual e municipal, nesta última
instância reconhecem-se instituições capazes de responder às necessida-
des socioambientais e sanitárias identificadas no território considerado,
no tocante as estratégias da atenção primária em saúde e da atenção pri-
mária ambiental, as quais são definidas como

estratégia de ação ambiental, basicamente preventiva e participa-


tiva em nível local, que reconhece o direito do ser humano de viver
em um ambiente saudável e adequado, e a ser informado sobre os
riscos do ambiente em relação à saúde, bem-estar e sobrevivência,
ao tempo em que define suas responsabilidades e deveres em rela-
ção à proteção, conservação e recuperação do ambiente e da saúde
(grifo do autor) (BUSS et al., 2012, p. 1486).

Assim, a consecução pelo Estado dos objetivos Constitucional-


mente previstos e intrínsecos do ser humano, como ter uma vida digna,
dispor de um ambiente saudável e próprio para o seu desenvolvimen-
to e para que tenha uma boa saúde, decorrem de alguns fatores, dentre
os quais destacam-se a reserva do possível, o mínimo existencial e até a
questão da judicialização das demandas.

3. VIDA (IN) SUSTENTÁVEL: UM DESAFIO PARA A


SAÚDE

O homem, através de suas atividades, tem se mostrado um de-


vastador implacável da natureza, destruindo e deteriorando seu habitat
natural, sem se preocupar com as consequências nocivas de seus atos da-
nosos, principalmente nas consequências imediatas sobre a sua saúde.

Em países onde ainda persistem grandes desigualdades sociais e


regionais, como é o nosso caso, observa-se que o perfil de morbi-
mortalidade apresenta características daquele encontrado nos países
capitalistas avançados, com doenças e agravos à saúde como stress,

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 21


cânceres, doenças cardiovasculares, isto é, as doenças degenerativas,
além de lesões e mortes decorrentes de causas externas (acidentes
de trabalho, acidentes de trânsito, homicídios, doenças correlaciona-
das à poluição, doenças vinculadas à precarização do trabalho, tais
como lesão por esforços repetitivos, cânceres ocupacionais, contami-
nações químicas, perda auditiva induzida por ruído etc.). Ao mes-
mo tempo, contudo, persistem e, nas últimas décadas, reaparecem e
recrudescem as doenças que tipificam a pobreza e a miséria, a falta
de saneamento básico, a má nutrição, ou seja, doenças infecciosas e
parasitárias próprias das péssimas condições de vida da maioria da
população. (COUTINHO, 2009, p. 168 apud SILVA, 2015, p. 438).

Nesse sentido, a preocupação com o meio ambiente e com a


saúde devem ser constantes, as leis postas em práticas, não adianta legis-
lar e não dar efetividade em colocar em prática tais leis. Deve(ria) existir
um contraponto, uma conscientização mínima para a exploração desen-
freada pois, obviamente, ainda por questão de sobrevivência da própria
espécie, é necessário explorar e utilizar de forma racional a natureza, pois
a implicação de questões como a “[...] segurança e soberania alimentar,
novos riscos tecnológicos, ocupacionais e ambientais e a migração e in-
trodução de novos hábitos entre nações, aumentam a lista de situações
preocupantes que podem afetar condições de saúde”. (VILLARDI, 2015,
p. 59). A grande maioria dos problemas atuais está relacionada com a
questão da falta de poder econômico e das desigualdades sociais,

(...) a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamen-


te com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de
saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para
doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo
apropriado, de ter acesso à água tratada ou saneamento básico (...).
Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência
da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coleti-
vas (...) e ameaças cada vez mais graves ao nosso meio ambiente e à
sustentabilidade de nossa vida econômica e social (SILVA, 2006, p. 9
e 19 apud SARLET; FENSTERSEIFER, 2010, p. 248).

22 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


A prática (in)sustentável adotada pelo mercado, que é quem re-
gula todos os meios de produção, a grande concentração de rendas e as
desigualdades sociais, é que está adoecendo e matando as pessoas, dia
após dia, não sendo compatível com um modelo de prevenção da saúde e
de um desenvolvimento sustentável que é

[...] coerente com políticas de cobertura universal por meio de siste-


mas de saúde integrais, equitativos e de qualidade – que não devem
ser reduzidos a seu componente de assistência médica aos indivíduos
doentes. No ‘integral’ é onde precisamente se encontra a ‘dimensão
ambiental’, parte do componente ‘saúde coletiva’ do sistema de saú-
de. Esta dimensão ambiental implica, entre outros componentes, na
execução por instituições públicas e empresas privadas de um con-
junto de ações sobre o meio ambiente que impactam diretamente
a saúde humana: saneamento do meio, abastecimento de água po-
tável, tratamento do esgoto, destinação adequada do lixo, controle
e ações sobre os fatores de risco presentes nos processos produtivos
urbanos e rurais (a exemplo da poluição do ar, solo e águas por re-
síduos industriais ou a questão dos agrotóxicos e fertilizantes), com
seus efeitos sobre a saúde dos trabalhadores e da população em geral.
(BUSS et al., 2012, p. 1486).

O que se verifica atualmente é que o modelo de governança se


volta para as “forças produtivas com forte acúmulo de poder político dos
empreendedores e promotores da política econômica associadas a uma
precária política ambiental de sustentabilidade vinculada a uma política
social redistributiva de cunho assistencial no campo da saúde e da assis-
tência social” (VILLARDI, 2015, p. 24). Tal modelo pressiona pela “desre-
gulação ambiental e social associada ao uso de tecnologias do agronegó-
cio, para geração de energia e polos empresariais, de forte impacto negati-
vo no ambiente e consequentemente na saúde” (VILLARDI, 2015, p. 24).
Conforme publicação da revista The Lancet (LANDRIGAN et
al., 2017), a Comissão Lancet sobre a poluição e saúde do renomado pe-
riódico traz uma importante análise global dos impactos da poluição, em
seus vários aspectos, dentre os quais ar, da água, do solo, onde se explora

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 23


os custos econômicos e a injustiça social da poluição, e afirma que a
poluição, que está na raiz de muitas doenças e distúrbios que afligem
a humanidade, pode ser totalmente evitável. Desta forma, o relatório
aponta que

Pollution is the largest environmental cause of disease and premature


death in the world today. Diseases caused by pollution were responsible
for an estimated 9 million premature deaths in 2015—16% of all deaths
worldwide— three times more deaths than from AIDS, tuberculosis, and
malaria combined and 15 times more than from all wars and other for-
ms of violence. In the most severely affected countries, pollution-related
disease is responsible for more than one death in four (LANDRIGAN et
al., 2017, p. 1).3

Assim temos que é a causa 16% de todas as mortes em todo o


mundo, sendo que as doenças causadas pela poluição foram responsáveis
em 2015 por um número estimado de 9 milhões de mortes prematuras,
o que correspondente ao patamar de 16% de todas as mortes em todo o
mundo, o que corresponde mais mortes do que a AIDS, a tuberculose e a
malária combinadas e quinze vezes mais do que todas as guerras e outras
formas de violência. Aponta o estudo também que isso mata mais pes-
soas que o tabagismo, a fome e os desastres naturais. Em alguns países, é
responsável por uma das mortes em quatro.

Pollution disproportionately kills the poor and the vulnerable. Ne-


arly 92% of pollution-related deaths occur in low-income and mi-
ddle-income countries and, in countries at every income level, di-
sease caused by pollution is most prevalent among minorities and
the marginalised. Children are at high risk of pollutionrelated di-
sease and even extremely low-dose exposures to pollutants during

3 A poluição é a maior causa ambiental da doença e a morte prematura no mundo


de hoje. As doenças causadas pela poluição foram responsáveis por um número
estimado de 9 milhões de mortes prematuras em 2015-16% de todas as mortes em
todo o mundo - três vezes mais mortes que a AIDS, tuberculose e malária combinadas
e 15 vezes mais que todas as guerras e outras formas de violência. Nos países mais
gravemente afectados, a doença relacionada com a poluição é responsável por mais
de uma morte em quatro (tradução livre) (LANDRIGAN et al., 2017, p. 1)

24 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


windows of vulnerability in utero and in early infancy can result in
disease, disability, and death in childhood and across their lifespan)
(LANDRIGAN et al., 2017, p. 3).4

Assim verifica-se também que a poluição atinge e mata despro-


porcionalmente os pobres e os vulneráveis, pois segundo o estudo, prati-
camente 92% das mortes relacionadas à poluição ocorrem em países de
baixa e média renda. Porém por ser um problema global, a poluição nos
países de alta renda, faz suas vítimas nas comunidades pobres e margina-
lizadas. Outro sério problema apontado pelo estudo diz respeito as crian-
ças que enfrentam exposições a substâncias químicas no útero e na pri-
meira infância podem resultar em doença e incapacidade vitalícia, assim
também como morte prematura, bem como a redução da aprendizagem
e do potencial de ganho, ou seja não ter uma vida saudável.

pollution endaangers planetary health, destroys ecosystems, and is


intimately linked to global climate change. Fuel combustion—fossil
fuel combustion in high-income and middle-income countries and
burning of biomass in low-income countries—accounts for 85% of air-
borne particulate pollution and for almost all pollution by oxides of
sulphur and nitrogen (LANDRIGAN et al., 2017, p. 3).5

Desta forma que se constata que a poluição está intimamente


ligada à mudança climática e à biodiversidade. Tem-se a combustão de

4 A poluição mata desproporcionalmente os pobres e os vulneráveis. Quase 92% das


mortes relacionadas à poluição ocorrem em países de baixa renda e de renda média
e, em países em todos os níveis de renda, a doença causada pela poluição é mais
prevalente entre as minorias e os marginalizados. As crianças estão em alto risco
de doenças relacionadas com a poluição e até exposições extremamente baixas e
poluentes durante as janelas de vulnerabilidade no útero e na primeira infância
podem resultar em doenças, deficiência e morte na infância e ao longo de sua vida
útil. (tradução livre) (LANDRIGAN et al., 2017, p. 1).
5 A poluição endurece a saúde planetária, destrói os ecossistemas e está intimamente
ligada à mudança climática global. Combustão de combustíveis - combustão de
combustíveis fósseis em países de renda média e alta e queima de biomassa em
países de baixa renda - representa 85% da poluição por partículas no ar e quase toda
a poluição por óxidos de enxofre e nitrogênio (tradução livre) (LANDRIGAN et al.,
2017, p. 1).

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 25


combustíveis fósseis em países de maior renda e a queima de biomassa
em países de baixa renda representam 85% da poluição por partículas
no ar, sendo que os principais poluentes são as grandes empresas, usinas
de energia a carvão, os produtores de produtos químicos, as operações
de mineração e os veículos, ou seja, a grande maioria com um mercado
global, grandes conglomerados econômicos e que não se coadunam com
um modo de vida sustentável.
Aponta o estudo que “Collaborations between government and
industry can catalyze innovation, create incent ives for cleaner produc-
tion technologies and cleaner energy production, and encourage transi-
tion to more sustainable, circular economy” (LANDRIGAN et al., 2017,
p. 3)6. Assim, tem-se a premente necessidade de acelerar a mudança para
fontes de energia mais limpas reduzirá a poluição do ar e melhorará a
saúde humana e do planeta.

Pollution is the largest environmental cause of disease and prema-


ture death in the world today. Pollution poses a massive challenge to
planetary health and deserves the concentrated attention of national
and international leaders, civil society, health professionals, and pe-
ople around the world. Yet, despite its far-reaching effects on health,
the economy and the environment, pollution— especially the rapi-
dly growing threat of industrial, vehicular, and chemical pollution
in low-income and middle-income countries—has been neglected
in the international assistance and the global health agendas. Stra-
tegies for control of industrial, chemical, and automotive pollution
in developing countries have been deeply underfunded (LANDRI-
GAN, 2017, p. 40).7

6 As colaborações entre governo e indústria podem catalisar a inovação, criar


incêndios para tecnologias de produção mais limpas e produção de energia mais
limpa, e incentivar a transição para uma economia circular mais sustentável
(tradução livre) (LANDRIGAN et al., 2017, p. 3).
7 A poluição é a maior causa ambiental da doença e a morte prematura no mundo
de hoje. A poluição representa um enorme desafio para a saúde planetária e merece
a atenção concentrada dos líderes nacionais e internacionais, da sociedade civil,

26 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


Assim temos que a vida (in)sustentável, em todos os seus aspec-
tos, é um grande desafio para a saúde a nível mundial, sendo que merece
a atenção do Estado e de toda a sociedade de uma maneira geral, que
devem se conscientizar da importância de se ter uma vida sustentável e
não negligenciar estes importantes aspectos da vida, pois seus efeitos de
longo alcance sobre a saúde e o meio ambiente, podem comprometer a
presente e as futuras gerações.

4. INTERFACE ENTRE SAÚDE E MEIO AMBIENTE


SUSTENTÁVEL: CONEXÃO PARA UMA BOA
QUALIDADE DE VIDA

Diante disso, denota-se que a interface entre saúde, seja ela


de forma individual ou coletiva, podendo ser saúde física ou men-
tal, está diretamente imbricada ao meio ambiente de onde se vive. A
responsabilidade é do Estado que está enfraquecido e corroído pela
corrupção e também pela iniciativa privada, com suas atividades eco-
nômicas exploratórias e depredatórias, com seu dinheiro conseguido
a qualquer custo e muitas vezes de forma escusa, que corrompe e a
tudo compra.
Assim, necessita-se que a sociedade e o Estado se coadunem
na idealização e efetivação de uma política pública “[...] ecológica, so-
lidária e democrática tendo a saúde como valor que traz a discussão
da sustentabilidade, da equidade, com a incorporação de uma política
social que interaja condicionando o desenvolvimento econômico e so-
cial” (VILLARDI, 2015, p. 24-25), para cumprir o mandamento que a

dos profissionais de saúde e das pessoas em todo o mundo. No entanto, apesar


de seus efeitos de longo alcance sobre a saúde, a economia e o meio ambiente,
a poluição - especialmente a crescente ameaça de poluição industrial, veicular e
química em países de baixa renda e de renda média - foi negligenciada na assistência
internacional e as agendas globais de saúde. As estratégias para o controle da
poluição industrial, química e automotiva nos países em desenvolvimento foram
profundamente insuficientemente financiadas. Tradução livre (LANDRIGAN et
al., 2017, p. 40).

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 27


Constituição Federal traz no seu preâmbulo, que é a instituição de um
Estado Democrático, o qual tem por finalidade precípua assegurar os
direitos de liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualda-
de e também justiça como valores da sociedade brasileira, que deve ser
fraterna8, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.
Entretanto, é possível ter qualidade de vida, com uma interface
possível entre um mundo sustentável e com acesso à saúde. Basta garantir
o acesso à saúde de forma justa, efetiva, socialmente viável, como con-
dição básica e um meio ambiente sustentável e equilibrado. Para tanto,
a sociedade e o Estado precisam se ressignificar, precisam de uma nova
postura. Nos estudos de CENCI (2014), requer

[...] uma nova hermenêutica, inovadora, que repercuta para além


do Direito, alcançando as políticas e práticas do Estado e para além,
construam junto aos cidadãos saberes ambientais sustentáveis, como
forma de um novo atuar social junto ao meio ambiente, de uma
nova educação ambiental, ressignificada, com a desconstrução de
conceitos edificados para novos paradigmas ambientais (CENCI,
2014, p. 44).

A forma de vida, assim como está posta com o modelo econô-


mico vigente, não será capaz de cumprir o mandamento constitucional
de preservar o meio ambiente para as gerações atuais e futuras. Por isso,
há a necessidade de estar atento a relação entre a sustentabilidade e a saú-
de como forma de prevenção de doenças e de viver melhor.

A sociedade atuante, com papel definido é fundamental na redução


dos riscos e na ação de redução das vulnerabilidades, estabelecen-

8 A fraternidade no direito ambiental significa uma construção e reconstrução da


sociedade, tendo como objetivo o bem de todos, a preservação de meio ambiente
ecologicamente equilibrado de forma que possa prover a sustentabilidade para toda
a humanidade. A fraternidade tem como objetivo a humanidade, sendo, portanto,
um direito que é de todos, não se limitando a fronteiras, tornando cada indivíduo
coparticipe nesta busca por um bem comum, o que consequentemente acarreta na
sensação de pertencimento a uma comunidade global (SILVA; BUSTAMENTE, 2017).

28 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


do-se assim a vigilância popular dos riscos como um processo de
comunicação-interação da população, em que a gestão do território,
do processo de produção e de consumo esteja pautada na agenda
política das comunidades. Redefinindo, assim, a agenda política dos
municípios e estados com a incorporação das questões sanitárias na
perspectiva da sustentabilidade social e ambiental, e não a ação ins-
titucional determinando os processos sociais, tendo como estratégia
o diálogo do desenvolvimento regional e intersetorial (VILLARDI,
2015, p. 64).

Algumas alternativas são adotadas apoiando o planejamento dos


Estados nacionais e que tendem a combater a pobreza-ambiente, como as
ações da ONU, mencionando aqui a Iniciativa Pobreza-Meio Ambiente
(Poverty-Environment Initiative), do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD) e do Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (PNUMA). Tal empreendimento,

[...] leva em conta os impactos das alterações climáticas sobre os


mais pobres e mais vulneráveis do mundo e a necessidade de ace-
lerar a integração do ambiente nos esforços de redução da pobreza.
Apostam na contribuição vital que uma melhor gestão ambiental
pode dar para melhorar as oportunidades de saúde, bem-estar e sub-
sistência, especialmente dos mais pobres e por isso incentivam que
a sustentabilidade ambiental favorável a essas camadas vulneráveis
das populações seja colocada no âmago das políticas, dos sistemas
e das instituições. Mais do que custo, veem como investimento na
construção de um futuro mais estável, sustentável e equitativo. (PE-
TERMANN; CRUZ, 2017, p. 30).

Nesse sentido, também se destaca a decisão do Supremo Tribu-


nal Federal (STF) na ADIN 3.540-1/DF, que teve como relator o Eminen-
te Ministro Celso de Mello, no dia 1o setembro de 2005, e reconheceu o
dever de solidariedade que se projeta a partir do direito fundamental ao
ambiente, gerando uma obrigação de tutela ambiental por parte de toda a
coletividade, ou seja, particulares e não apenas por parte do Estado.

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 29


Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Trata-se de um típico direito de terceira geração de novíssima di-
mensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206).
Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de
defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações,
esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ
164/158-161). O adimplemento do encargo, que é irrenunciável, re-
presenta a garantia de que não instaurarão, no seio da coletividade,
os graves conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao de-
ver de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem
essencial de uso comum das pessoas em geral. (BRASIL, 2005).

Denota-se que, com a respeitável decisão, o Estado não é o úni-


co responsável pela proteção ambiental, pois é uma responsabilidade de
todos, porém a atuação estatal é imprescindível para a defesa e proteção
do meio ambiente. Assim, também vem o entendimento do voto da Min.
Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Resp.
1.120.117/AC, no qual aduz sobre a imprescritibilidade do dever de repa-
ração do dano ambiental e sua relação com a vida e a saúde, “por se tratar
de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos
(...) antecedendo todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem
saúde, nem trabalho, nem lazer (...)” (BRASIL, 2009).
Para Oliveira et al. (2017), dependendo de como são feitas ou
executadas, as políticas e programas de saúde podem promover ou violar
os direitos humanos, incluindo o direito à saúde e também o direito a
uma vida sustentável, pois

A omissão das políticas de Saúde Pública em relação às populações


mais pobres caracteriza também uma violação dos direitos huma-
nos, na medida em que todos deveriam ter igual acesso à saúde.
As violações ou a falta de atenção aos direitos humanos podem ter
sérias consequências para a saúde. A discriminação visível ou im-
plícita na prestação de serviços de saúde viola os direitos humanos
fundamentais (OLIVEIRA et al., 2017, p. 21)

30 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


Portanto, dada a relevância de se ter um mundo sustentável e
ter acesso à saúde, pois ambos são direitos fundamentais consagrados no
ordenamento jurídico, o Estado é o principal implementador de políticas
sociais e econômicas que visem o bem comum. Assim, o Poder Público e
a iniciativa privada juntos devem procurar atingir os mesmos objetivos,
de combater as desigualdades e de melhorar o bem-estar de toda socie-
dade. Para Gabriel Ferrer, a sustentabilidade é o paradigma da pós-mo-
dernidade, visto que

[...] Uma sociedade que dê um salto significativo no progresso civi-


lizatório que deixe para trás ou ao menos minore as grandes chagas
da humanidade que a todos nos devem envergonhar, como a fome,
a miséria, a ignorância e a injustiça (...) A sustentabilidade é meta
e caminho. Meta, porque se trata de conseguir uma sociedade capaz
de perpetuar-se indefinidamente no tempo, e caminho, porque na
busca desse objetivo toda decisão, seja pública ou privada, deveria
tê-la presente como guia de ação, como princípio inspirador inex-
cusável (FERRER, 2015 apud PETERMANN; CRUZ, 2017, p. 36).

Colaciona-se o entendimento de Sarlet e Fensterseifer (2010),


no sentido de que a razão suprema da existência do Estado reside justa-
mente no respeito, proteção e promoção da dignidade dos seus cidadãos,
individual ou coletivamente considerados, objetivo este que deve ser con-
secutivamente concretizado e perseguido pelo Estado e pela própria so-
ciedade. Destarte, o Estado tem o compromisso de tutelar e garantir nada
menos do que uma vida digna e saudável aos indivíduos e grupos sociais,
o que passa pela tarefa de promover a realização dos direitos fundamen-
tais, entre eles a saúde e a vida sustentável, afastando possíveis óbices à
sua efetivação e impondo medidas de cunho protetor e promocional.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sustentabilidade relacionada com a saúde, são próprios da es-


sência da natureza e do homem, razão pela esta temática é atual e qualquer
problema relacionado a ele são questões globais, pois tais problemas não

INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 31


respeitam as fronteiras e qualquer tipo de desequilíbrio ou alteração de for-
ma mais significativa em vai gerar consequências e afetar todo o planeta.
Diante da diversidade torna-se tarefa inglória elencar e estudar
com profundidade todas as temáticas em suas várias nuances, que rela-
cionam vida sustentável e saúde, pois o tema é vivo, mutante e deveras
complexo. Assim, singelamente, trata-se a qualidade de vida como uma
interface possível entre a sustentabilidade e a saúde, corroborando que
para ter acesso à saúde e a uma vida sustentável, tem-se no Estado o prin-
cipal implementador de políticas sociais e econômicas que visem o bem
comum. Conjuntamente com toda a sociedade e cada um desempenhan-
do o seu papel, juntos devem procurar atingir os mesmos objetivos, isto é,
de combater as desigualdades e melhorar o bem-estar de toda sociedade.
Assim, a luz do bom debate, a partir de diferentes ângulos e vi-
sões, dado o caráter interdisciplinar, e também pela pluralidade e a diver-
sidade de autores, é que se denota que, somente com a integração efetiva
dos diversos setores das sociedades é que se conseguirá obter avanços
significativos e soluções viáveis para estes problemas cruciais que afetam
as pessoas. Por conseguinte, para que se tenha uma vida mais saudável e
sustentável, com uma preocupação na prevenção, ou seja, modificar as
“causas das causas”, das doenças que afetam as pessoas.
Portanto, a sociedade e o Estado precisam se ressignificar, no
sentido de idealização e efetivação de políticas públicas condicionadas
ao desenvolvimento econômico, social e sustentável. Desta forma, o Es-
tado conseguirá dar proteção e garantir uma vida digna e saudável aos
cidadãos. Portanto, a inter-relação entre saúde e sustentabilidade é uma
interface possível e tem no Estado o principal implementador de políticas
sociais e econômicas que visem ao bem comum, a uma vida saudável e,
consequentemente, a uma melhor qualidade de vida, efetivando assim
os direitos humanos e fundamentais, entre eles o acesso à saúde e a uma
vida sustentável.

REFERÊNCIAS

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32 | Evandro Luis Sippert | Janaína Machado Sturza


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INTERFACES ENTRE SUSTENTABILIDADE E SAÚDE ... | 35


II
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA
PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE
DE ÓRGÃOS: UMA VISÃO INTERDISCIPLINAR
ENTRE O DIREITO E AS CIÊNCIAS MÉDICAS

Claudine Rodembusch Rocha1


Henrique Alexander Keske2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Constituição Federal/88 apresenta um extenso rol de direitos


e garantias fundamentais, consubstanciando normas gerais de aplicação
imediata, que se irradiam para totalidade de nosso ordenamento, com a
finalidade de consagrar direitos sociais e, notadamente, disposições que
se enquadram na definição de direito humanos que, dessa forma, ao es-
tarem positivados, implicam em modelar e projetar sua eficácia como
alicerce do estado democrático de direito. Nesse sentido, sem dúvida
alguma, não há direito que antecede o direito à vida, raiz fundante de
todos os demais e, da mesma forma, vida humana implica, necessária
e basicamente em uma existência determinada pela saúde. Entretanto,
as condições existenciais próprias da vida humana, de inúmeras formas,

1 Doutora em Direito pela Universidade de Burgos-Espanha, Mestre em Direito


pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Pós-graduada em Demandas
Sociais e Políticas pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Advogada,
Professora do Curso de Direito da Faculdade Estácio do Rio Grande do Sul. E-mail:
claudinerodembusch@yahoo.com.br.
2 Doutor em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS,
Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/RS. Advogado.
Membro do Grupo de Estudos de Direitos Humanos e Transformação Social – Pós-
Graduação Universidade Ritter dos Reis. E-mail: hiquelkeske@hotmail.com.
muitas vezes, apresentam fragilidades que comprometem esse viver sau-
dável, levando a manutenção da vida a extremos preocupantes. A respos-
ta científica, precipuamente das áreas médicas, tem proporcionado uma
verdadeira revolução tecnológica, tendente a, cada vez mais, propiciar a
saúde e o prolongamento da própria vida. Nesse contexto, se insere a prá-
tica terapêutica do transplante de órgãos, tecidos e mesmo de partes do
corpo humano, que podem ocorrer entre vivos, ou entre mortos e vivos.
Assim é que, diante de diversas patologias crônicas e/ou incapa-
citantes das funções vitais, exsurge a necessidade premente da realização
de transplante de órgãos e/ou de tecidos, considerados como procedi-
mentos terapêuticos indispensáveis para oportunizar a reabilitação e au-
mento, quer da expectativa de vida, quer de sobrevida dos pacientes aco-
metidos por moléstias graves de inúmeras naturezas. Tais procedimentos
terapêuticos foram sendo disponibilizados a partir de uma verdadeira
revolução técnico-científica, empreendida, em nível global, a partir de
meados do século XX, tendo marcado sua presença em nosso país desde
o primeiro transplante realizado com doador cadáver, no Rio de Janeiro,
em 1.964 e que se referia a um transplante renal. (GARCIA, 2006, p. 314).
O Brasil possui um amplo programa público de transplante
de órgãos, cujas determinações encontram fundamento, tanto na Lei
9.434/97, quanto na Lei 10.211/2001, que tratam, precisamente acerca da
remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de trans-
plante e tratamento, que dispõe como diretrizes principais a gratuidade
da doação, a beneficência para com os possíveis receptores do órgão e/
ou tecido a ser transplantado, além da não maleficência em relação aos
doadores vivos, abrigando, dessa forma, o conteúdo dos principais prin-
cípios bioéticos elaborados para fazer frente aos desafios contemporâne-
os surgidos a partir das denominadas tecnociências médico-biológicas,
notadamente no que diz respeito aos impactos causados nos processos e
procedimentos relativos à vida e à saúde humanas.
Entretanto, tais dispositivos legais diferenciam-se, precipua-
mente, em função de que, a primeira normativa, de 1.997, trazia em seu
art. 4º a determinação de que, caso o pretenso doador não tivesse decla-
rado, expressamente, em seus documentos de que era não-doador, pre-

38 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske


sumia-se que autorizava a doação post mortem de seus órgãos e tecidos
para fins terapêuticos e de transplante; enquanto que a legislação poste-
rior, de 2.001, passou a adotar a doação somente de forma consentida,
firmada mediante a autorização de um familiar, desde que obedecida a
linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, firmada
em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação
da morte. Essa modificação legislativa, que avança, dessa forma, da au-
torização presumida para a consentida, assim, acaba, então, por consa-
grar outro importante princípio da bioética, que se refere à autonomia do
paciente, que deve ser respeitada em todas as instâncias envolvidas nos
procedimentos médicos.
A seu turno, o Registro Brasileiro de Transplantes, como veícu-
lo oficial da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos - ABTO, em
seu informe ano XXIII, nº 4, em que faz constar o dimensionamento dos
transplantes realizados no Brasil e em cada estado, afirma que:

A doação e alocação de órgãos é um processo trabalhoso e delicado


que depende da confiança da população no sistema e do comprome-
timento dos profissionais de saúde no diagnóstico de morte encefáli-
ca. O Brasil é o segundo país do mundo em número de transplantes
e, para consolidar essa conquista, é crucial a atuação do Ministério
da Saúde, dos governos estaduais, das entidades e profissionais de
saúde em todo o processo de doação e transplantes. (ABTO, Ano
XXIII, nº 4, 2.017, p.01).

No mesmo sentido, o referido documento atesta os dados nu-


méricos relativos à necessidade estimada e número de transplantes reali-
zados no Brasil, em 2.017, relativamente aos transplantes de córnea, rim,
fígado, coração, pulmão e pâncreas, que, apesar do significativo número
de cirurgias realizadas, ainda se enfrenta em nosso país uma fila de espe-
ra com mais de 32.928 pacientes. Além disso, porém, apresenta, em seu
Editorial um crescimento contínuo de tais procedimentos, o que implica,
por óbvio, no aumento de doadores, agora consentidos, a partir da evolu-
ção anual dos doadores efetivos no Brasil, de 16,6%, no ano de 2.107, em
relação ao ano anterior, de 2.016.

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 39


Quanto a tais dados, vale ainda ressaltar, porém, o alerta deixa-
do por Valter Duro Garcia, segundo o qual, para manter o crescimento
e obter melhores resultados, é fundamental que, em 2018, sejam incor-
porados no incremento financeiro do Ministério da Saúde, alguns pro-
cedimentos que “comemoram“ 20 anos sem reajuste, como o acompa-
nhamento pós-transplante, a intercorrência pós-transplante e os testes
imunológicos; e também o transplante de pâncreas e rim. (ABTO, Ano
XXIII, nº 4, 2017, Editorial, p.01). Assim, de forma direta, fica expresso
que o êxito em tais resultados se devem focar na retomada dos investi-
mentos financeiros a serem realizados pelo Poder Público, uma vez que
dotações orçamentárias para as áreas da saúde jamais devem ser entendi-
das pelo enfoque da redução de gastos.
Dessa forma, não basta uma base legal que procure regulari-
zar o sistema, como a que o ordenamento pátrio já dispõe, mas faz-se
absolutamente necessário um conjunto sistêmico de políticas públicas
que sensibilizem a população como um todo, da gravidade da situação e
complexidade que envolve a prática terapêutica de transplante de órgãos
e tecidos, em relação a todas as partes dedicadas a tais procedimentos,
desde os profissionais médicos e enfermeiros, perpassando por doado-
res e receptores, incluindo aí, sem dúvida, as famílias de todos os que
enfrentam tais problemas. Daí decorre que se deve, cada vez com mais
intensidade, propugnar pelo fortalecimento de uma verdadeira política
nacional de transplantes, perpetrada pelo Estado, mas envolvendo à so-
ciedade como um todo, no sentido de dar uma resposta adequada a esta
questão fundamental de saúde pública.

2. DAS ESPECIFICIDADES TÉCNICO-CIENTÍFICAS

Isto posto, mister se trazerem alguns conceitos acerca do tema


em comento, uma vez que transplante se refere a um tipo de intervenção
cirúrgica que consiste, fundamentalmente, na retirada de um órgão ou
material anatômico de um corpo que, às vezes está vivo, outras morto,
com o fim de reimplantá-lo em outro ser humano, para fins terapêuti-
cos. (PARILI, 2010, p. 22). Da mesma forma, pode-se defini-lo como a

40 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske


transferência, feita por meio de cirurgia, de tecidos, órgãos ou partes do
corpo humano, na mesma pessoa, entre mais de uma, ou, ainda, entre
uma pessoa e um animal, de forma que se refere à amputação ou ablação
de órgão, com função própria de um organismo, para ser instalado em
outro e exercer as mesmas funções. (DINIZ, 2010, p. 327-330).No mes-
mo sentido, pode-se ainda conceituar como:

Trata-se de uma técnica cirúrgica, denominada cirurgia substituti-


va, que se caracteriza em essência porque se introduz em um corpo,
um órgão ou tecido pertencente a outro ser humano, vivo ou faleci-
do, com o fim de substituir a outros, da mesma entidade pertencente
ao receptor, porém, que tenham perdido total ou sensivelmente sua
função. A natureza desse tipo de intervenção, do ponto de vista do
receptor – posto que, com relação ao doador, a situação éinversa – é
de estimulá-la, em consequência, como uma intervenção curativa,
sempre que exista a intervenção terapêutica e se aplique a técnica
adequada ao caso. (SANTOS, 1992, p. 139).

Na esteira de tais definições técnicas, deve-se, ainda esclarecer


algumas diferenças entre implante e enxerto, haja vista que, por este últi-
mo, se consideram as intervenções cirúrgicas nas quais se introduz no or-
ganismo de uma pessoa, como receptora de determinado órgão ou tecido,
o que fora retirado de outra pessoa, denominada como doador; ao passo
que, por implante se considera quando tecidos mortos ou conservados
são incluídos no corpo de alguém, bem como, por reimplante, quando
se reintegram ao corpo humano segmentos traumaticamente dele sepa-
rados, como dedos, orelhas, nariz, pedações de pele, couro cabeludo, etc.
(DINIZ, 2010, p. 331). No mesmo sentido, podem-se acrescentar ainda as
seguintes especificações, apresentadas por outro viés:

Chama-se transplante ou enxerto à operação cirúrgica com a qual


se insere no organismo hospedeiro um órgão ou tecido retirado de
um doador. Fala-se mais apropriadamente em implante ou inclusão,
quando se trata de tecidos mortos ou conservados. Assim, por efeito
do transplante, realizam-se entre os tecidos enxertados e o organis-
mo hospedeiro, os fenômenos vitais que recebem o nome de sobrevi-
vência, adaptação e desenvolvimento. (SGRECCIA, 1996, p. 567).

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 41


De imediato, porém, e com foco nas intrínsecas relações que se
estabelecem, atualmente, entre o direito e as novas tecnologias da área
médica, deve-se atentar para o fato de que as definições apresentadas,
sem exceção, referem-se a procedimentos que envolvem seres humanos
e, fundamentalmente, os estados vitais. Nesse sentido, isto traz, de for-
ma evidente, sérias consequências relativas a procedimentos que dizem
respeito, inclusive às partes integrantes de uma relação em que as pesso-
as envolvidas se posicionam ora como dadores, ora receptoras, ora vivas
e, ora já mortas e, logo, seus representantes legais. Ressalta-se, da mes-
ma forma, que as disposições jurídicas que tratam de tais temas, a seu
turno, encontram-se, como não poderia deixar de ser, eivadas de carga
principiológica relativa às diferentes concepções filosófico-religiosas que
embasaram a constituição dos respectivos diplomas legais, bem como se
referem às mesmas disposições de todos os envolvidos em tais procedi-
mentos, de tal forma que, por conta disso, se extrapolam as meras defini-
ções técnicas, para se inserirem em discussões acerca dos fundamentos
atinentes à própria condição humana. Nesse sentido e para se chegar a
um dimensionamento melhor acerca das consequências que podem ad-
vir de tais práticas, se deve ainda destacar algumas definições técnicas
relativas aos sentidos empregados para se definirem os conceitos relativos
a órgãos e tecidos.
Por conta disso, por órgão se deve compreender a parte do or-
ganismo que exerce uma função especial, enquanto que tecido pode ser
conceituado como o agregado de células similares que desempenham
uma mesma função. (GUIMARÃES, 2002, p. 235). Da mesma forma,
Cardoso adota os conceitos constantes da lei inglesa de transplantes –
Human Organ Transplant/ Act 1989, segundo a qual, órgão é qualquer
parte do corpo humano, que consiste em um conjunto estruturado de
tecidos, os quais, se removidos na totalidade, não podem ser reconstitu-
ídos pelo corpo. (CARDOSO, 2002, p. 115). Assim como, tanto órgãos,
quanto tecidos podem ser objeto de transplante e, logo, implicam em
procedimentos técnico-cirúrgicos diferenciados, em função de suas es-
pecificidades, deve-se ainda acrescentar:

O tecido é um agregado de células de diferenciação e função seme-


lhantes, unidas para a execução de determinada tarefa. Em um teci-

42 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske


do, por sua vez, há três componentes: as células características a ele,
um meio líquido intercelular e produtos intercelulares de atividade
celular. Esses componentes só raramente se equivalem em quantida-
de, pois, geralmente, um deles é predominante. Já no revestimento
dos órgãos, ou membranas, predominam as células. (GARDNER,
OSBURN, apud CARDOSO, 2002, p. 117).

Tais definições se revestem de importância, haja vista que de-


vem atender às especificações constantes da Portaria nº 3.407/98, expe-
dida pelo Ministério da Saúde, no sentido de que tanto tecidos, quanto
órgãos, ou partes do corpo humano, para serem doados e/ou utilizados,
deverão estar saudáveis e, principalmente, enquadrados nos requisitos
clínicos especificados nessa norma, uma vez que as atividades relativas
aos transplantes devem obedecer a esses regulamentos técnicos para se-
rem aprovadas pela Coordenação Nacional dos Transplantes, de forma
que, se não estiverem adequados, em função de tais critérios, são relega-
dos à exclusão. (PORTARIA nº 3.407/98, Ministério da Saúde). Frisa-se,
outrossim, que esta adequação se insere no contexto de propiciar uma
maior garantia de sucesso nos procedimentos e, mesmo, na qualidade de
vida futura do receptor, o que, por outro lado, pelo rigor das exigências,
acaba restringindo a própria quantidade de órgãos e tecidos realmente
aptos aos procedimentos, em função de tais exigências, fazendo com que,
nesse sentido, o número de doadores se torne maior do que o número
efetivo de transplantes realizados, pois, em função da gravidade de tais
situações, somente a boa vontade da doação não basta para a garantia de
sua efetiva realização e êxito na proposta vital implicada nos processos.
Entretanto, em que pese tais circunstâncias, deve-se ressaltar que:

Os transplantes de todas as formas beneficiam aos receptores, prin-


cipalmente aos pacientes portadores de doenças crônicas, pois eles
aumentam a sobrevida e as possibilidades de reabilitação destes,
incluindo, também, alguns pacientes portadores de doenças graves
como cardiopatias, hematopatia ou pneumonia terminal, em que o
transplante é a única opção terapêutica capaz de evitar a morte, es-

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 43


tabelecendo, para tais pacientes, pelo menos, alguma expectativa de
vida e sobrevida, sendo, senão, a sua única esperança de vida com
qualidade. (GARCIA, 2000, p. 19).

Outro fator decisivo a considerar, no que diz respeito às citadas


definições técnicas relativas aos conceitos de órgãos, tecidos e/ou partes
do corpo humano, refere-se, precisamente, ao fato de tais procedimentos
ocorrerem intervivos,e/ou entre um doador morto, ou seja, um cadáver
e um receptor vivo, o que leva, diretamente, à questão fundante de defi-
nição de morte, considerada, enquanto tal como a completa cessação da
atividade cerebral, ou seja, verificada nos pacientes que já se encontram
sem atividade cerebral instituída. (DALBEM; CAREGNATO, 2010, p.
728-735).
Nesse sentido, no caso de alguns órgãos, como rins, por exem-
plo, a doação poderá se dar através de um doador vivo, que deverá ser, por
força de lei, um parente próximo que tenha compatibilidade; entretanto,
existem órgãos que só são possíveis de serem doados por doador falecido,
como é o caso dos transplantes de fígado e coração, em que, normal-
mente, o óbito se deu por meio de acidentes fatais, de qualquer natureza.
Nesses casos, por óbvio, tais órgãos não estão acometidos por doenças de
alguma espécie. Além disso, existe um órgão que, independentemente do
tipo de falecimento do doador, por ser doado, que é a córnea, isto é, essa
membrana dura e transparente, situada na parte anterior do globo ocu-
lar, sendo, com frequência aproveitada em quaisquer que tenham sido as
circunstâncias de falecimento do doador. (GUIMARÃES, 2002, p. 132).
Por conta de tais definições técnicas fundamentais, se chega, logo, às duas
maiores possibilidades de realização dos procedimentos terapêuticos de
transplante de órgãos e tecidos e/ou partes do corpo humano, ao se refe-
rirem à doação em vida ou já com a morte do doador.

3. DA DOAÇÃO EM VIDA E POST MORTEM

De acordo com as determinações da Lei 9.434/97 e tendo em


vista a disposição própria de um corpo humano vivo, só é permitida a

44 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske


doação quando se referirem a órgãos duplos e desde que sua retirada
não comprometa as funções vitais do doador; e desde que este firme, em
documento escrito, junto de duas testemunhas, qual o órgão de seu corpo
que está oferecendo à doação, sendo que uma dessas vias deverá ser re-
metida ao Ministério Público, que fiscalizará a validade da doação. Nesse
sentido, por haver a vedação de doação quando se referir às partes vitais
do doador, o objetivo de tais limitações diz respeito à preservação de sua
vida e de sua saúde. Dessa forma, cita-se, in verbis, o que dispõe o art. 9º,
parágrafo terceiro, do referido diploma legal:

Só é permitida a doação referida neste artigo, quando se tratar de


órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja
retirada não impeça o organismo doador de continuar vivendo sem
risco para a sua integridade e não represente grave comprometimen-
to de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou
deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêu-
tica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. (BRASIL,
2018).

Além dessas disposições, acrescente-se que esses órgãos, teci-


dos e/ou partes do corpo humano podem ser doados entre pessoas vi-
vas, desde que juridicamente capazes e sendo parentes, ou caso não o
sejam, mediante autorização judicial prévia. Nesse sentido, basicamente
tais procedimentos se referem à possibilidade de doação de rins, fígado,
medula óssea e até o pulmão, sendo que a medula é a única que pode ser
doada a pessoas não aparentadas sem a necessidade dessa prévia autori-
zação judicial. Tais especificações dizem respeito à estrutura própria de
cada órgão ou tecido, pois os rins são órgãos que devem apresentar uma
compleição íntegra para o transplante, diferentemente do fígado, que tem
uma alta capacidade de regeneração e pode ser doado em fragmentos,
sendo possível a retirada de até metade do órgão para transplante; por
sua vez, a medula óssea é um tecido esponjoso presente no interior de
vários ossos, principalmente os da bacia, e tem a capacidade de fornecer
células que podem se diferenciar em qualquer tecido do corpo. Por con-
ta disso, desde o ano de 2.000, foram e estão sendo realizadas cerca de

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 45


20.000 intervenções cirúrgicas por ano, incluindo-se, neste dado, entre-
tanto, as doações post mortem, elevando esse número ao total de 335 mil
transplantes feitos pelo Sistema Único de Saúde, desde a elaboração das
pesquisas, considerando o referido ano-base. (MINSTÉRIO DA SAÚDE:
saiba quais órgãos podem ser doados ainda em vida, 2016).
Outras dessas disposições dizem respeito ainda à doação reali-
zada por gestante e menor, o que somente será permitido para a doação
de tecido a ser utilizado em transplante de medula óssea, desde que o
ato não ofereça risco à saúde. Além do que, conforme dispõe o pará-
grafo 8º, do artigo 9ºda referida Lei 9.434/97 e suas modificações pela
lei nº 10.211/2001, está prevista a possibilidade de autotransplante, em
que os órgãos e tecidos são implantados no próprio paciente, por coleta
realizada em seu próprio corpo, por exigências terapêuticas, dispondo
que, para sua realização é necessário apenas o consentimento do próprio
indivíduo, registrado no respectivo prontuário médico. Em se tratando,
porém, de incapaz, é imprescindível o consentimento de um dos pais ou
responsáveis legais. (LEIS nº 9.434/97 e nº 10.211/2001).
Na ocorrência de paciente em óbito, essa circunstância exige o
diagnóstico de morte encefálica, como definido pela resolução nº 1.480,
do Conselho Federal de Medicina, sendo que, imediatamente após a
constatação da morte encefálica, deve ser notificada a Central de Noti-
ficação, Captação e Distribuição de Órgãos – CNCDOs, independente-
mente de qual é a condição clínica do potencial doador, ou qual seja o
desejo de seus familiares. (ABTO – Associação Brasileira de Transplante
de Órgãos, Encarte, 2018). Isto se deve ao fato de que, uma vez admitida a
morte cerebral, o indivíduo, embora mantido em respiradores artificiais,
não consegue manter as demais funções em atividade por muito tempo,
podendo vir a comprometer seus órgãos e inviabilizar o transplante. Por
conta disso:

Com o diagnóstico de morte cerebral, a pressão arterial baixa e o


indivíduo passa a receber fortes doses de medicamentos, no intui-
to de prolongar as funções dos órgãos, para o procedimento de re-
tirada. O tempo é diretamente proporcional ao tipo de organismo.
Assim, se este for mais resistente, a(s) parte(s) a ser(em) retirada(s)
46 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske
consegue(m) persistir por 24 horas ou pouco mais. O ideal é que
o transplante seja realizado nas primeiras doze horas, a partir da
constatação da morte cerebral. (SÁ, 2003, p. 111-112).

Como é esse processo de morte encefálica que desencadeia todo


o processo de transplante post mortem, necessário se apresentar uma cla-
ra definição a seu respeito, bem como dos critérios a serem verificados
quando de seu diagnóstico, como se segue:

A morte encefálica representa o estado clínico irreversível em que


as funções cerebrais (telencéfalo e diencéfalo) e do tronco encefálico
estão irremediavelmente comprometidos. São necessários três pré-
-requisitos para defini-la: coma com causa conhecida e irreversível;
ausência de hipotermia, hipotensão, ou distúrbio metabólico grave;
exclusão de intoxicação exógena, ou efeito de medicamentos psico-
trópicos. Baseia-se na presença concomitante de coma sem reposta
ao estímulo externo, inexistência de reflexos do tronco encefálico e
apneia. O diagnóstico é estabelecido após dois exames clínicos, com
intervalo de, no mínimo, seis horas entre eles, realizados por profis-
sionais diferentes e não vinculados à equipe de transplantes. É obri-
gatória a comprovação por intermédio de exames complementares,
de ausência, no sistema nervoso central, de perfusão, ou atividade
elétrica de metabolismo. (MORATO, 2018, p.227).

Uma vez ocorrendo e sendo devidamente diagnosticada a mor-


te encefálica, poderão ser doados o coração, os pulmões, o fígado, o pân-
creas e os tecidos, como as córneas, os ossos, pele e válvulas cardíacas.
Entretanto, a morte pode ser diagnosticada, igualmente, por parada car-
díaca irreversível, quando ocorre a morte instantânea pela abrupta cessa-
ção da atividade do coração, caso em que podem ser doados somente os
tecidos como córneas, ossos, pele e válvulas cardíacas. No Brasil, não se
permite o transplante de nenhum outro órgão ou parte do corpo huma-
no, além dessas especificadas. (GOVERNO DO RJ: Programa Estadual
de Transplantes, 2018).

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 47


Em todos esses casos, porém, para a retirada dos órgãos de pes-
soas falecidas, torna-se imprescindível a autorização prévia, de autoria
do próprio paciente, agora falecido, como uma disposição antecipativa
de sua vontade, ou, caso não a tenha deixado declarada, exige-se a auto-
rização de seus parentes capazes, na linha reta ou colateral, até o segundo
grau, ou do cônjuge, que deve ser feita em documento assinado por duas
testemunhas. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA – Resolução nº
1.995/2.012). Importante, também, aqui destacar que, no que diz respeito
à manifestação de vontade da pessoa, temos o disposto no art. 14 do Có-
digo Civil, que trata da possibilidade de o indivíduo dispor de seu próprio
corpo após a morte, isto é, a sua vontade manifestada previamente, deve
prevalecer, mesmo depois de sua morte: Art. 14. É válida, com objetivo
científico, ou altruístico, a disposição gratuita dopróprio corpo, no todo
ou em parte, para depois da morte. Nesse sentido:

Não se trata mais da integridade física, mas do espaço de autonomia


ética da pessoa, de um direito de autodeterminação a ver respeita-
das as suas determinações para depois da morte. Há, portanto, uma
impossibilidade de se considerarem os direitos de personalidade de
um morto, porém, isso não implica que a garantia de proteção à
dignidade humana cesse, necessariamente. Pode-se dizer que existe
um prolongamento da personalidade após a morte. (BANDEIRA,
2001, p. 157).

Assim, em todos os casos, uma vez determinada a morte irre-


versível e depois de verificada a autorização do próprio falecido, ou de
seus representantes legais, em função deste potencial doador e com a de-
vida autorização para a doação, a função dos órgãos é mantida artificial-
mente, sendo tomadas as seguintes providências:

1. A Central de Transplantes inicia os testes de compatibilidade


entre o doador e os potenciais receptores, que aguardam em
lista de espera;
2. Quando existe mais de um doador compatível, a decisão so-
bre quem receberá o órgão passa por critérios previamente
estabelecidos, tais como: tempo de espera e urgência do caso;
48 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske
3. A Central de Transplantes emite uma lista de potenciais re-
ceptores para cada órgão e comunica aos hospitais e às equi-
pes de transplantes responsáveis pelos pacientes;
4. As equipes de transplantes, junto à Central de Transplantes,
adotam as medidas necessárias – meio de transporte, cirur-
giões e equipe multidisciplinar – para viabilizar a retirada
dos órgãos; e
5. Os órgãos são retirados e os transplantes retirados. (HOSPI-
TAL ALBERT EINSTEIN – Sociedade Beneficente Israelita
Brasileira, 2.018).

Vale ainda destacar que, com todos os procedimentos prévios


realizados e autorizados pelo finado, ou por seus familiares, é feita a ci-
rurgia para retirada dos órgãos, de forma a que se realize a reconstituição
do corpo, deixando-o em estado normal, sem deformidades aparentes,
podendo, portanto, ser velado e sepultado normalmente. Da mesma
forma, ressalta-se que existe uma Lista Nacional de Receptores, que são
separados e classificados em função do órgão de que necessitam, pelo
seu tipo sanguíneo e por outras especificações técnicas, considerando-se,
ainda, a compatibilidade genética com o doador. Importante esclarecer
que essa fila única de espera, em nível nacional, torna-se importante ins-
trumento de controle e de lisura de todo esse impactante processo que
visa garantir uma sobrevida paraa vida humana, sempre em melhores
condições. (HOSPITAL ALBERT EINSTEIN – Sociedade Beneficente Is-
raelita Brasileira, 2018).
Apesar da relativamente grande quantidade de procedimentos
realizados em nosso país, como já referido, é significativamente impac-
tante a quantidade de pacientes que aguardam sua oportunidade na refe-
rida Lista de Espera, uma vez que a oferta de órgãos e tecidos não supre a
demanda sempre crescente deste tipo de intervenção cirúrgica. Por conta
desse fator, então, e dada à complexidade das questões envolvidas, sur-
ge o problema de estabelecer critérios que embasem uma decisão séria
quanto à precedência de pacientes a serem atendidos. Nesse sentido, os
princípios da Bioética, notadamente o do emprego do conceito de justiça,

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 49


podem vir em auxílio de uma possível solução para os impasses surgi-
dos, de forma que se empregue a fórmula clássica de tratar igualmente
aos iguais e desigualmente aos desiguais, a partir de critérios tais como
o diagnóstico dos pacientes e o melhor prognóstico pós-operatório. De
qualquer modo, trata-se de uma decisão complexa, haja vista que o que
está sendo tratado diz respeito a processos vitais radicais. (GOLDIM,
1996, p. 11). Tais princípios bioéticos, a seu turno,porém, preconizan-
do posições utilitárias, poderiam justificar a realização dos transplantes
nos casos menos gravosos, para se conseguir, dessa forma, os melhores
resultados, ou seja, a sobrevida do receptor: daí se podem depreender
uma série de controvérsias no que diz respeito à escolha do receptor.
(BARROS, 2015, p.152).
A legislação em vigor, entretanto, estabelece como critério da
escolha do receptor somente o da ordem cronológica de inscrição na Lis-
ta de Espera, ou seja, aquele que primeiro se inscreve, independentemen-
te de seu estado de saúde ser melhor ou pior do que aquele que o precede
ou sucede na lista, receberá, antes, a tão esperada doação. Nesse sentido,
verifica-se que ai existe uma indiferença quanto ao real estado de saúde
dos pacientes, mesmo os mais graves e, por conta disso, se questiona o
referido princípio e/ou critério de justiça enquanto igualdade de trata-
mento antes referido. Essa igualdade, inclusive, pode ser aduzida a partir
de disposições constitucionais; que estariam, assim, em choque com os
dispositivos da Lei 9.434/97, que adota como definidora da igualdade so-
mente a questão da antiguidade, deixando de adotar o princípio de aten-
der em função do maior grau de necessidade apresentado por cada um.
Nesse sentido, chega-se a preconizar uma espécie de direito de burla na
fila de transplante de órgãos. (LIMA, 2006, p.01). Ainda assim e mesmo
levando em consideração tais questionamentos, o receptor de órgãos e te-
cidos deverá estar inscrito na lista de espera única, portar uma doença in-
capacitante ou progressiva e que seja irreversível através de outras formas
de tratamentos; bem como só poderá submeter-se ao transplante após lhe
serem dados todos os aconselhamentos referentes aos riscos inerentes a
tais procedimentos e, por fim, desde que consinta, expressamente, com os
mesmos. (DINIZ, 2009, p. 349).

50 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se perceber, dessa forma, o quão delicado é o processo


de doação de órgãos e de transplantes efetivos, pois se referem a ques-
tões extremas, relativamente à vida humana, pois envolvem uma série de
disposições morais e de conflitos éticos, além de filosófico-religiosos, a
implicar, tanto o profissional da área médica inserido nesses contextos,
quanto os pacientes e seus familiares, incluindo-se aí, tanto os doadores,
quanto os receptores, dado que se está a tratar dos significados da vida e
da própria morte, enquanto disposições fundantes das condições existen-
ciais humanas. Destaca-se, também, de maneira decisiva, que as crenças
pessoais, tanto do doador, quanto do receptor e, logo de suas famílias, a
partir do modo como encaram as questões relativas à vida e à morte, a
partir da doação dos órgãos e tecidos e da possibilidade dos transplantes,
podem servir como motivos facilitadores, obstaculizadores ou de resis-
tência à doação e ao transplante. (BENDASSOLI, 2001, p. 225-240).
Por fim, surge, em todo esse processo, outro problema não me-
nos impactante, como motivo a gerar inúmeras e pertinentes dúvidas em
relação aos benefícios que a doação possa trazer ao transplantado, visto
que existem muitos casos de insucessos nos transplantes e, logo, a possi-
bilidade de perpetuação da vida torna-se, então, irreal, bem como o ato
da doação pode ser considerado pela ótica da perda de valor, pelo fracas-
so em se chegar a uma sobrevida do paciente. Até mesmo os profissionais
da saúde, médicos e enfermeiros, envolvidos com tais procedimentos, a
seu turno, também, ao acompanharem todas as angústias e sofrimentos
dos pacientes e de seus familiares, bem como por observarem que mui-
tos dos transplantados não sobrevivem, acabam perdendo a esperança
de que a doação de órgãos possa ser o meio mais válido e, até mesmo o
único capaz de salvar as vidas humanas nesses casos extremos. (LIMA,
2012, p. 27-33).
A complexidade do tema em comento, a seu turno e como já
referido, não encontra abrigo completo na legislação que o regulamenta,
pois ocorre um hiato entre as práticas terapêutica da cotidianidade hos-
pitalar, que se vê diante do desafio de encontrar a melhor solução para

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 51


a manutenção da vida humana, através dos transplantes e as definições
legais que estabelecem como critério definidor apenas o caráter cronoló-
gico de antiguidade de quem primeiro foi registrado na já referida Lista
de Transplantes. Portanto, há que se pensar em discutir tais critérios e
desencadear legislação que seja capaz, pelo menos, de se aproximar mais
dos desafios apresentados pelas práticas médicas envolvidas nessas posi-
ções extremas a que se pode chegar em função de propiciar uma sobre-
vida aos pacientes.
Por fim, vale destacar o que já se afirmou desde o princípio do
presente artigo, ou seja, de que só a legislação não basta para resolver
essa demanda social, demasiadamente inserida no contexto de crenças
religiosas e fundamentos filosóficos, pois se refere ao fim irrecusável da
própria condição humana. Nesse sentido, mister se faz aprofundar os
princípios de uma verdadeira política brasileira de doação e transplante
de órgãos e tecidos, capaz de desencadear ações concretas do Estado, até
mesmo de conscientização da sociedade como um todo, a enfatizar que
este problema não se refere a uma questão isolada, mas, sim, a uma pun-
gente demanda social, cujo enfrentamento requer uma tomada de pos-
tura clara de todos os que venham a se envolver, compulsória e mesmo
voluntariamente em tais medidas.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA, Ana Cláudia Pirjá. Consentimento no transplante de órgãos:


à luz da lei 9.434/98, com alterações posteriores. Curitiba: Juruá, 2.001.
BARROS, Maurício Fenando de Almeida. Transplante de Fígado: as
controvérsias sobre os critérios de alocação. Revista Prática Hospitalar,
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BENDASSOLI, Pedro Fernando. Percepção do corpo, medo da morte,
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O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL NA PERSPECTIVA DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ... | 53


GOLDIM, José Roberto. Aspectos éticos e legais dos transplantes de
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GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário de Termos Médicos de
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54 | Claudine Rodembusch Rocha | Henrique Alexander Keske


III
O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR,
A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA
MEDICAMENTE ASSISTIDA
E O DIREITO À SAÚDE

Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti1

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O direito ao planejamento familiar é entendido como um direi-


to humano e fundamental. Trata-se de direito que permite que uma pes-
soa possa receber informações adequadas para decidir sobre a formação
de família, procriação e métodos contraceptivos.
A questão aqui desenvolvida interage com conceitos como dig-
nidade da pessoa humana, efetivação de direitos humanos, direito à saú-
de e bem estar, além da busca pela felicidade.
Numa sociedade em rede em que vivemos, a informação é es-
sencial para que o cidadão possa tomar suas decisões de forma conscien-
te. Assim, quando falamos em direitos reprodutivos, ou seja, no direito
de procriação, faz-se necessário que o Estado ofereça adequadamente e
por meio de Políticas Públicas eficazes, informações para que o indivíduo
possa decidir sobre métodos de concepção e contracepção, bem como o
tipo de família que pretende constituir.

1 Mestre e doutora em Direito Civil pela PUC de São Paulo. Professora dos cursos
de Graduação em Direito e Mestrado em Direito da Sociedade da Informação das
Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU. Membro da Comissão de Biodireito e
Biotecnologia da OAB/SP. Contato: aelwc@terra.com.br.
A infertilidade é tida como doença pela Organização Mundial
de Saúde - OMS e, graças às novas tecnologias pessoas com diversas for-
mas de infertilidade tem conseguido sanar seus problemas para a pro-
criação, por meio das mais diversas técnicas de reprodução medicamente
assistida. Contudo, essas técnicas ainda são de alto custo e não é qualquer
cidadão que consegue ter acesso a elas. Assim, o principal objetivo do
presente trabalho de pesquisa é analisar se o direito ao planejamento en-
globa também o uso das técnicas de reprodução humana medicamente
assistidas e se, por consequência, o fornecimento dessas técnicas deve
ser de caráter obrigatório para os Planos de Saúde, como forma de cum-
primento à legislação brasileira em vigor, possibilitando que pessoas que
possuem algum tipo de infertilidade possam exercer o seu direito ao pla-
nejamento familiar e à saúde.

2. PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO DIREITO


HUMANO E FUNDAMENTAL

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no seu


artigo 12, sustenta que: “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida
privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a
ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção
da lei contra tais interferências ou ataques” (grifos nossos).
Vemos, da leitura do mencionado artigo que, toda pessoa tem
direito e autonomia em relação à sua família, bem como à vida privada,
correspondência, honra e reputação. Assim, reconhece diretamente a De-
claração acima citada, o direito à formação familiar.
Salientamos, entretanto, que a procriação não é elemento es-
sencial para a formação de uma família, mas faz-se necessário assegurar
àqueles que queiram ter filhos, o direito à formação familiar por meio da
procriação seja natural ou assistida, bem como o direito a não procriar,
para aqueles que não pretende tê-los, como forma de respeito, também,
ao direito à intimidade e à dignidade do indivíduo.
A entidade familiar carrega na sua formação elementos éticos,
religiosos, morais e sociais que se moldam de acordo com a época, modi-
ficando, inclusive, a sua estrutura e conceito. A família moderna não é a

56 | Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti


mesma de épocas passadas, a família patriarcal e tradicional de outrora,
calcada no matrimônio e na procriação, já não tem mais espaço na socie-
dade em rede em que vivemos. Mas, sabemos que a família tem uma im-
portância decisiva na formação do sujeito, assim, na concepção moderna
de família, a família não é só a união de pessoas pelo laço consanguíneo
ou matrimonial, é também a base da organização da sociedade, além de
mecanismo para a realização individual do ser humano (CAVALCANTI,
2004, p. 17).
Neste aspecto, demonstram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo
Pamplona Filho (2017, p. 49) que: “É preciso compreender que a família,
hoje, não é um fim em si mesmo, mas o meio para a busca da felicidade,
ou seja, da realização pessoal de cada indivíduo, ainda que existam - e
infelizmente existem - arranjos familiares constituídos sem amor”.
Verifica-se, portanto, que a formação de família é parte inte-
grante dos direitos individuais do ser humano, levando-se em conta, es-
pecialmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, afinal, a noção
de dignidade da pessoa humana relaciona-se diretamente com as possi-
bilidades do sujeito alcançar a sua realização pessoal e, principalmente,
seu bem-estar e felicidade.
Em relação à legislação brasileira sobre o tema, importante dar
destaque à Constituição Federal de 1988 que, trata em seu art. 6º caput
dos direitos sociais dizendo que: “São direitos sociais a educação, a saúde,
a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição”. Chamamos, portanto, a
atenção aos direitos à saúde e à proteção à maternidade que estão direta-
mente ligados ao tema ora proposto.
Ainda na Constituição Federal de 1988, citamos o art. 226 § 7º
que determina:

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da pa-


ternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para
o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas. (grifos nossos)

O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ... | 57


Tendo em vista o disposto na Constituição Federal vigente em nos-
so país, não há como dizer que o planejamento familiar não se enquadre nos
ditos direitos fundamentais, uma vez que a sua posição fica comprovada com
a simples leitura dos artigos acima mencionados. Além disso, não podemos
deixar de ressaltar que a Organização Mundial da Saúde - OMS - reconhece
que o direito à saúde engloba tanto a saúde física como a saúde mental, além
da concretização do bem-estar e da ausência de doenças e outros agravos. As-
sim, o planejamento familiar pode sim interferir na saúde, em especial, das
mulheres que desejam ou não formar sua família por meio da procriação e,
negar isso, é, na verdade, negar um direito fundamental reconhecido pela nos-
sa legislação constitucional.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, no seu art.
196 “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas públicas sociais e econômicas que visem a redução de risco de
doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Contudo, sabemos
da dificuldade de ver políticas públicas eficazes no Brasil que garantam o
exercício pleno desse direito, como demonstrado nas palavras de Evan-
dro Luis Sippert e Janaína Machado Sturza (2018, p. 69):

No Brasil, destaca-se o acesso à saúde pública previsto na Carta


Magna como direito social de todos, e muito embora esteja positiva-
do no ordenamento jurídico, a sua efetivação na prática está longe
de ser implementada de forma eficaz, influenciada por diversos fato-
res, principalmente econômicos, políticos, operacionais, entre outros.
Em virtude da não concretização dos direitos sociais e quando o Es-
tado não garante um direito fundamental, acaba por não permitir
também a efetivação dos Direitos Humanos, acarretando um grande
número de pessoas vivendo em condições precárias, sem vida digna e
em condições de miserabilidade.

Se há dificuldade de acesso amplo e adequado ao direito de saú-


de no Brasil, há também falhas nas Políticas Públicas relacionadas ao pla-
nejamento familiar, uma vez que boa parte das técnicas utilizadas tanto
para a concepção como para a contracepção está ligada a atos médicos.

58 | Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti


Importante neste momento também salientar que o mesmo
art. 226 § 7º que reconhece o direito ao planejamento familiar ressalta
também o dever à paternidade responsável, ou seja, o planejamento é
um direito, mas uma vez que o indivíduo resolva ter filhos, passa a ser
responsável por eles. Tal questão é importante para fundamentar que o
direito ao planejamento familiar não pode ser considerado como absolu-
to, em especial pelo fato de que o resultado da procriação é justamente a
existência de um novo sujeito de direito e que como tal, deve ser tratado
igualmente com dignidade e respeito.
Complementando a posição do direito ao planejamento fami-
liar como direito humano, ressaltamos que a IV Conferência Mundial
sobre a Mulher da ONU de 19952 que ocorreu em Pequim, na China e
que teve como tema central “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e
a Paz” afirma, dentre outros direitos humanos das mulheres, o direitos à
saúde e direitos reprodutivos. Neste sentido são os dizeres do documento
resultado da mencionada Conferência no seu item 96:

Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter


controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua
saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas
questões, livres de coerção, discriminação e violência. A igualdade
entre mulheres e homens no tocante às relações sexuais e à reprodu-
ção, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa humana, exige
o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade comum pelo
comportamento sexual e suas consequências.

Portanto, entendemos que o direito ao planejamento familiar é


sim um direito humano e um direito fundamental, sendo que, seu exercí-
cio pode ser determinante para que um indivíduo alcance seu bem-estar
e sadia qualidade de vida. Contudo, é importante ressaltar, também, que
planejamento familiar não deve ser confundido com controle de natali-
dade, como veremos mais adiante.

2 <http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/>. Acesso em : 29
de setembro de 2018.

O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ... | 59


3. O CONCEITO DE PLANEJAMENTO FAMILIAR
NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O art. 1565 do Código Civil determina no seu § 2º que: “O pla-


nejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse di-
reito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas
ou públicas”.
Verifica-se, portanto, que a legislação infraconstitucional reco-
nhece a autonomia da vontade do indivíduo para decidir a respeito da
procriação, deixando para o Estado apenas a condição de educador e fa-
cilitador para o exercício desse direito, como forma de reafirmar o direi-
to ao planejamento familiar como um direito individual e fundamental.
Neste sentido, salienta ainda Rolf Madaleno (2013, p. 176) que o Estado
não pode limitar a natalidade, ao contrário do que ocorre em outras na-
ções, mas reconhece que os casais ultimamente têm, por conta própria,
decidido limitar o número de filhos muito por causa do trabalho e de re-
cursos financeiros. Isso, tem feito, inclusive, com que as pessoas tenham
filhos cada vez mais tarde, aumentando e muito o número de pessoas que
precisam de ajuda médica para que a procriação ocorra.
No Brasil, especificamente sobre o planejamento familiar, con-
tamos com a Lei 9263 de 1996, conhecida justamente como Lei do Pla-
nejamento Familiar e que define nos seus artigos iniciais (arts. 1º e 2º) o
conceito e conteúdo deste direito, como vemos a seguir:

Art. 1º O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado


o disposto nesta lei.
Art. 2º Para fins desta lei, entende-se planejamento familiar como o
conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos
iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher,
pelo homem ou pelo casal.
Parágrafo único: É proibida a utilização das ações a que se refere o
caput para qualquer tipo de controle demográfico.

E, posteriormente, nos artigos seguintes da Lei 9263 de 96, resta


esclarecido que o direito ao planejamento familiar é parte integrante do
60 | Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti
direito à saúde e como tal deve ser garantido e oferecido no Sistema Úni-
co de Saúde (art. 3º) e que o planejamento familiar orienta-se por ações
preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informa-
ções, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundi-
dade (art. 4º), como por exemplo, métodos de concepção e contracepção.
Mais adiante, no seu art. 9º, a Lei do planejamento familiar de-
termina que: “Para o exercício do direito ao planejamento familiar, se-
rão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção
cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das
pessoas, garantida a liberdade de opção”. E, finaliza a lei com a regula-
mentação da esterilização cirúrgica voluntária tanto de homens como de
mulheres como forma de planejamento familiar (arts. 10 a 13).
Percebe-se que a lei supramencionada ao tratar do conceito de
planejamento familiar fala em “fecundidade” como forma de tratar da
questão da fertilidade (possibilidade de ter filhos). Portanto, é objetivo
primeiro da lei em comento que as pessoas possam receber informações
e ações adequadas a respeito de métodos de concepção e contracepção
como forma de planejar com responsabilidade e autonomia a sua cons-
tituição familiar. Não se trata de lei que faz controle de natalidade, mas
sim que assegura o acesso às técnicas e informações para a procriação,
se assim for o desejo do indivíduo.
Este, entendemos, é a grande questão tratada neste artigo. Ou
seja, “planejamento familiar” se restringe apenas à atividade educacional?
Seria apenas fornecer informações sobre métodos de concepção e contra-
cepção? Ou seria algo além disso? Caberia no conceito de “planejamento
familiar” ações que propiciem aos indivíduos satisfazer seus desejos mais
íntimos a respeito da formação familiar? Caberia neste conceito entender
que todas as técnicas conhecidas que facilitem ou permitam a procriação
estão inseridas neste direito?
Estas perguntas são importantes para tratarmos do próximo ca-
pítulo que, justamente, levanta se caberia ou não como forma de plane-
jamento familiar, o uso de técnicas de reprodução medicamente assistida
que possibilitem a procriação humana.

O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ... | 61


4. O USO DE TÉCNICA DE REPRODUÇÃO
HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA COMO
FORMA DE PLANEJAMENTO FAMILIAR

As técnicas de reprodução humana, medicamente assistida, são uti-


lizadas com bastante êxito desde 1978 com o nascimento do primeiro “bebê
de proveta” - Louise Brown - na Inglaterra. Desde então, várias técnicas sur-
giram e no mundo todo nascem crianças provenientes do uso dessa tecnolo-
gia. Segundo a Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia
(ESHRE)3, mais de 8 milhões de pessoas já nasceram por este método.
No Brasil, de acordo com o SisEmbrio (Sistema Nacional de
Produção de Embriões - criado pela Resolução de Diretoria Colegiada/
Anvisa RDC nº 29, de 12 de maio de 2008 e, posteriormente modificada
pela RDC nº 23/2011) foram realizados somente em 2017, 33.790 ciclos
de Fertilização in vitro no Brasil, sendo que a maior parte dos tratamen-
tos realizados no país, ocorrem na região sul e sudeste, especialmente em
São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.4
Importante ressaltar que existem várias técnicas de reprodu-
ção humana medicamente assistidas (FREIRE DE SÁ e NAVES, 2018, p.
137). Chama-se inseminação artificial, a técnica que utiliza mecanismo
de concepção in vivo, ou seja, o sêmen é depositado no útero da mulher
por uma cânula e a fecundação do óvulo ocorre dentro do corpo huma-
no. Por outro lado, a fertilização in vitro - FIV - a concepção ocorre na
proveta e, após a concepção, o embrião é então transferido para o útero
da mulher. Apesar da diferença de metodologia, ambas as técnicas, muito
utilizadas, requerem acompanhamento médico e técnico.
Salientamos ainda que os tratamentos para reprodução humana
não são de baixo custo, muito pelo contrário. Assim, não é todo cidadão
que consegue pagar por estes tratamentos no nosso país. No Brasil, algu-
mas instituições públicas de saúde realizam o tratamento de reprodução
assistida custeados pelo SUS que, desde 2012, por meio da Portaria do

3 <https://www.eshre.eu/>. Acesso em: 29 de setembro de 2018.


4 <http://portal.anvisa.gov.br/documents/33840/2817584/11%C2%BA+Relat%C3
%B3rio+do+Sistema+Nacional+de+Produ%C3%A7%C3%A3o+de+Embri%C3%
B5es+-+SisEmbrio/7b02586e-afc8-4f96-b988-adb51650f68b>. Acesso em: 29 de
setembro de 2018.

62 | Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti


MS nº 3149 determinou a destinação de recursos financeiros para ins-
tituições de saúde que estivessem aptas a realizar tais tratamentos, mas
sabemos que não há vagas para todos e os requisitos requeridos por estas
instituições, dificultam o acesso às técnicas artificiais de reprodução.
Segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS, cerca de 10 a
15% dos casais no mundo sofrem com a infertilidade que é considerada
pela OMS como doença crônica e problema de saúde pública e está cata-
logada no CID 11 (Código Internacional de Doenças) atualizado recen-
temente em 18 de junho de 2018 pela OMS.5
No Brasil, não há legislação regulamentando a prática da repro-
dução humana medicamente assistida. Porém desde 1992 o Conselho Fe-
deral de Medicina - CFM, vem se preocupando sobre o assunto e, por este
motivo, vem desde esta data, emitindo Resoluções para regulamentar a
prática dos médicos nesta seara. As resoluções do CFM, vale destacar, são
normas deontológicas que estabelecem regras éticas profissionais, mas
não possuem conteúdo sancionatório penal ou civil. A última Resolução
emitida pelo CFM sobre as técnicas de reprodução humana medicamen-
te assistidas foi a de nº 2168 de 2017.
Resolução 2168 de 2017 do CFM nos seus princípios entende
que: “As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na
resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo
de procriação”. Assim, podemos dizer que as técnicas de reprodução hu-
mana medicamente assistida são encaradas pela medicina como forma
de tratamento da infertilidade e que propicia a realização da procriação.
Vemos aqui, nitidamente, a indicação de que a tecnologia utilizada per-
mite a concretização do planejamento familiar para pessoas, que por al-
gum motivo de saúde, não consegue conceber naturalmente.

5. A REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE


ASSISTIDA E A RESPONSABILIDADE DOS
PLANOS DE SAÚDE

De acordo com tudo que foi apresentado no presente trabalho,


entendemos que o planejamento familiar engloba também as técnicas

5 < https://icd.who.int/browse11/l-m/en>. Acesso em: 29 de setembro de 2018.

O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ... | 63


de reprodução humana medicamente assistidas como forma de concre-
tização desse direito, para o caso das pessoas que não conseguem natu-
ralmente procriar. E, tendo em vista esta postura, pretendemos verificar
como a nossa jurisprudência vem tratando a questão da obrigatoriedade
dos planos de saúde arcarem com os custos relacionados à essas técnicas.
Pois bem, a Lei 11.935 de 2009 alterou a Lei 9656 de 1998 que
dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, incluin-
do mais um artigo - art. 36-C, que assim determina:

Art. 36 -C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos:


(...)
III - planejamento familiar

Assim, o planejamento familiar passou a fazer parte do rol de


atendimento obrigatório dos planos e seguros privados de saúde. Porém,
em resolução de nº 192 de 20096, a Agência Nacional de Saúde Suple-
mentar do Ministério da Saúde editou norma que exclui a “insemina-
ção artificial” do conceito de planejamento familiar, na tentativa clara de
não considerar as técnicas de reprodução humana medicamente assistida
como procedimentos obrigatórios.
No que diz respeito à jurisprudência pátria, inicialmente,
algumas decisões judiciais reconheceram o direito da segurada em
requerer o custeio dos tratamentos de reprodução assistida pelo pla-
no de saúde, entendendo os juízes, nestes casos, que a questão afeta
a saúde da mulher e que, portanto, estaria dentro das obrigações do
plano de saúde. Este foi o entendimento, por exemplo, do julgado do
Tribunal de São Paulo transcrito abaixo:

PLANO DE SAÚDE - Exclusão contratual da fertilização in vitro


- Abusividade - Violação à Lei nº.9.656/98, que expressamente esta-
belece a obrigatoriedade de cobertura do atendimento nos casos de

6 A mencionada Resolução foi posteriormente alterada pelas Resoluções 338 de 2013,


387 de 2015 e 428 de 2017. E em todas consta o afastamento da obrigatoriedade no
caso de “inseminação artificial”.

64 | Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti


planejamento familiar - Patologia, ademais, prevista na Classifica-
ção Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados
com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde - Ação procedente
- Sentença reformada - RECURSO PROVIDO. Apelação com Revi-
são n° 0012087-34.2012.8.26.0562 Comarca: Santos Ação: Plano de
Saúde - Obrigação de Fazer Apte(s).: Rosangela da Silva Santana
(AJ) Apdo(a)(s).: Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de San-
tos (TJSP - 10ª Câmara de Direito Provado. Relator Desembargador
Elcio Trujillo. 03 de fevereiro de 2015).

Da mesma forma foi o entendimento do julgado do Tribunal de


Justiça do Distrito Federal que tomou como base a questão do consumi-
dor e a nulidade de cláusulas restritivas do direito ao tratamento corres-
pondente ao planejamento familiar como pode-se verificar da ementa:

CONSTITUCIONAL E CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL.


OBRIGAÇÃO DE FAZER. OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE.
FERTILIZAÇÃO IN VITRO. NEGATIVA DE AUTORIZAÇÃO.
EXCLUSÃO CONTRATUAL. ILEGALIDADE. 1. Os contratos de
plano de saúde estão sob a égide do Código de Defesa do Consu-
midor, razão por que os limites e condições de cobertura devem ser
vistos com maior amplitude, mostrando-se viável extrair do contrato
cláusula eivada de vício e, portanto, contrária aos princípios da bo-
a-fé e da equidade contratuais. 2. O artigo 35-C da Lei nº 9.656/98,
com a redação conferida pela Lei nº 11.935/2009, incluiu todos os
procedimentos de planejamento familiar como obrigatórios para as
operadoras de planos de assistência à saúde, dentre os quais se in-
serem as ações de concepção e de contracepção. 3. Deve prevalecer
o direito do consumidor ao tratamento indicado que lhe permita
constituir prole, sendo nula a cláusula contratual restritiva da ferti-
lização in vitro. 4. Recurso desprovido. (TJDFT Acórdão n.885696,
20140111100146APC, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Revi-
sor: JOÃO EGMONT, 2ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento:
05/08/2015, Publicado no DJE: 12/08/2015. Pág.: 205).

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo


que não há nenhuma abusividade no fato da ANS decidir sobre a ampli-

O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ... | 65


tude das coberturas dos planos de assistência à saúde. E que, a própria
ANS divulgou por meio de resolução que o planejamento familiar en-
globa atos e políticas educativas que propiciam a informação aos inte-
ressados em método de concepção e contracepção, bem como tratamen-
tos que assegurem a saúde para a prática da concepção e contracepção.
Contudo, entendeu o STJ que a reprodução assistida não se enquadra no
planejamento familiar e que, portanto, o plano de saúde não é obrigado a
cobrir este procedimento quando não foi expressamente contratado pelas
partes, conforme pode-se verificar da ementa abaixo transcrita:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE


OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. INFERTILIDADE
CONJUGAL. PLANEJAMENTO FAMILIAR. INSEMINAÇÃO AR-
TIFICIAL. EXCLUSÃO DE COBERTURA. ABUSIVIDADE. NÃO
CONFIGURADA. AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLE-
MENTAR. RESOLUÇÕES NORMATIVAS. FUNDAMENTO NA
LEI 9.656/98. 1. Ação ajuizada em 12/01/15. Recurso especial inter-
posto em 23/03/16 e concluso ao gabinete em 19/03/18. Julgamento:
CPC/15. 2. O propósito recursal é definir se a inseminação artificial
por meio da técnica de fertilização in vitro deve ser custeada por
plano de saúde. 3. A Lei 9.656/98 (LPS) dispõe sobre os planos e
seguros privados de assistência à saúde e estabelece as exigências mí-
nimas de oferta aos consumidores (art. 12), as exceções (art. 10) e
as hipóteses obrigatórias de cobertura do atendimento (art. 35-C).
4. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com a auto-
rização prevista no art. 10, §4º, da LPS, é o órgão responsável por
definir a amplitude das coberturas do plano-referência de assistên-
cia à saúde. 5. A Resolução Normativa 338/2013 da ANS, aplicável
à hipótese concreta, define planejamento familiar como o “conjunto
de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos de cons-
tituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem
ou pelo casal” (art. 7º, I, RN 338/2013 ANS). 6. Aos consumidores
estão assegurados, quanto à atenção em planejamento familiar, o
acesso aos métodos e técnicas para a concepção e a contracepção, o
acompanhamento de profissional habilitado (v.g. ginecologistas, obs-
tetras, urologistas), a realização de exames clínicos e laboratoriais,

66 | Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti


os atendimentos de urgência e de emergência, inclusive a utilização
de recursos comportamentais, medicamentosos ou cirúrgicos, rever-
síveis e irreversíveis em matéria reprodutiva. 7. A limitação da lei
quanto à inseminação artificial (art. 10, III, LPS) apenas represen-
ta uma exceção à regra geral de atendimento obrigatório em casos
que envolvem o planejamento familiar (art. 35-C, III, LPS). Não há,
portanto, abusividade na cláusula contratual de exclusão de cober-
tura de inseminação artificial, o que tem respaldo na LPS e na RN
338/2013. 8. Recurso especial conhecido e provido. (Recurso Especial
nº 1.734.445-SP (2017/0275661-9) Ministra Nancy Andrighi. Julga-
mento em 15 de maio de 2018).

Ressalta-se que decisões neste mesmo sentido já havia sido to-


mada anteriormente pelo STJ em dois outros momentos, no Recurso Es-
pecial nº 1692.179-SP (2017/0203592-6), relator Ministro Marco Aurélio
Bellize com julgamento em 05 de dezembro de 2017 e em outra opor-
tunidade no Recurso 1590.221-DF (2016/0067921-3), relatora Ministra
Nancy Andrighi com julgamento em 07 de novembro de 2017.
Portanto, verificamos que, apesar de entender que as técnicas
de reprodução humana medicamente assistidas podem permitir que uma
pessoa ou um casal consiga atingir seu objetivo de concepção e procria-
ção, como forma de exercício do seu direito ao planejamento familiar,
por outro lado, entendeu o Superior Tribunal de Justiça brasileiro que
não é abusivo permitir que a Agência Nacional de Saúde - ANS determi-
ne quais os tratamentos devem ou podem ser considerados obrigatórios
para as empresas particulares de planos de saúde, além disso, como se
trata de relação consumerista existe a possibilidade de cláusulas contra-
tuais de exclusão de cobertura.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo que foi acima exposto e pelo fato de entendermos o


direito ao planejamento familiar como um direito humano e fundamen-
tal, defendemos a tese de que equivoca-se o Superior Tribunal de Justiça
quando entende que não faz parte dos procedimentos obrigatórios a car-

O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ... | 67


go dos planos de saúde as técnicas de reprodução humana medicamente
assistidas como forma de efetivação do direito ao planejamento familiar,
posto que, tal entendimento vai de encontro com o que determina a pró-
pria Constituição Federal e a legislação ordinária vigente sobre Planos de
Saúde e de Planejamento Familiar.
Além disso, entender o direito à procriação e reprodução como
algo que é essencial para a manutenção da saúde, em especial, no seu as-
pecto psicológico é também reconhecer a dignidade da pessoa humana e
o seu direito a planejar e estruturar sua família.
Importa também lembrar que a família, apesar de não estar cal-
cada na procriação, é mecanismo que pode possibilitar que uma ou mais
pessoas concretize seus anseios mais íntimos por meio da maternidade
ou da paternidade e, negar isso a uma pessoa, pode ser o caminho para
sua infelicidade.
Se o Sistema Único de Saúde - SUS - oferece os tratamentos de
infertilidade e reprodução medicamente assistida como forma de efetiva-
ção do direito ao planejamento familiar, qual é realmente o motivo para
se negar esta responsabilidade aos Planos de Saúde? Entendemos que a
técnica é custosa, mas seria o critério econômico mais importante do que
o respeito aos direitos humanos? Para nós, esta não é a melhor justifica-
tiva. É preciso sim, discutir o conceito de planejamento familiar para que
tenhamos uniformidade de entendimento e decisões.
E, finalmente, no que tange à efetivação do direito ao planeja-
mento familiar, vemos a importância das Políticas Públicas para informar
aos cidadãos como podem planejar a constituição da sua entidade fami-
liar de forma consciente e responsável.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Fernando. A procriação Assistida e o problema da santidade


da vida. Almedina. Coimbra, 1999.
COSTA, Ana Paula Correia de Alburquerque. Direitos reprodutivos,
planejamento familiar e reprodução humana assistida no Brasil no
atual estado da arte. Cadernos iberoamericanos de Direito Sanitário,
Brasília 5(3):80-103, jul-set, 2013.

68 | Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti


CAVALCANTI. Ana Elizabeth Lapa Wanderley. Casamento e União
estável: requisitos e efeitos pessoais. Manole, São Paulo, 2004.
FEIRE DE SÁ, Maria de Fátima e NAVES, Bruno Torquarto de Oliveira.
Bioética e Biodireito. Del Rey, Belo Horizonte, 2018.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso
de direito civil: direito de família, v. 06, Saraiva, São Paulo, 2017.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Gen Editora, Rio de
Janeiro, 2013.
OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser
humano: um perfil constitucional da bioética. Almedina. Coimbra.
1999.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Livraria
do Advogado Editora, Porto Alegre, 2015.
SIPPERT, Evandro Luis e STURZA, Janaina Machado. Da prestação
sanitária à efetivação do direito à saúde: breves delineamentos
internacionais. In. CAVALCANTI, Ana Elizabeth; STURZA, Janaina
Machado e MARTINI, Sandra Regina. Direito à saúde na sociedade em
rede. Evangraf, Porto Alegre, 2018, p. 65 - 79.
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano
in vitro na era da biotecnologia. Atlas, São Paulo, 2006.
XAVIER, Anna Karina e ROSATO, Cassia Maria. Mulheres e direitos:
saúde sexual e reprodutiva a partir da Conferência da ONU. Revista
Artemis, vol. XXI jan-jul 2016, p. 116-130.

O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR, A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ... | 69


IV
A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB
O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO
DO DIREITO À SAÚDE

Andressa Julianny Morais Pacheco1


Sabina Cassol2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No âmbito nacional, a Constituição de 1988 foi a primeira a


consagrar de forma expressa o direito fundamental à saúde. Nos termos
do artigo 197 do referido diploma, “a saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à re-
dução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igua-
litário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Com efeito, as políticas públicas atinentes à efetivação do direito
à saúde são financiadas pela própria sociedade, por meio do pagamento
dos tributos, sendo atribuído aos poderes o papel de planejar onde esses
recursos serão empregados, de modo que seja assegurada a concretização
de prestações sociais mínimas a todos os indivíduos.
Não obstante o Estado deva garantir o mínimo existencial a to-
dos, as prestações sociais são excessivamente onerosas, o que impõe que
este proceda “escolhas trágicas” ao determinar onde empregará os recur-
sos disponíveis.

1 Andressa Julianny Morais Pacheco acadêmica do Curso de Direito da União


Educacional do Norte (Uninorte), e-mail: andressajulianny97@gmail.com
2 Sabrina Cassol. Professora de Direito da UFAC – Universidade Federal do Acre.
Mestre em Direito; Especialista em Direito Processual Civil pela UNISC; Advogada.
E-mail: binacassol@yahoo.com.br
Ante a escassez de recursos e a infinidade de demandas sociais,
surge a Teoria da Reserva do Possível, segundo a qual, restando com-
provada a incapacidade financeira do Estado de cumprir determinada
prestação social, nada se poderá exigir deste, já que não se mostra razo-
ável cobrar a efetivação das prerrogativas impostas pela Carta Magna de
quem não tem aporte financeiro para saldá-las.
Assim sendo, a melhor doutrina entende que o Estado é obri-
gado a efetivar as prestações sociais previstas no texto constitucional, na
medida do financeiramente possível, devendo, em caso de não efetivação
ou efetivação parcial, demonstrar categoricamente sua impossibilidade
financeira.
No que tange ao direito à saúde, percebeu-se um aumento sig-
nificativo das ações que pleiteiam a sua concretização, desempenhando o
Judiciário um relevante papel na tutela dos direitos negligenciados pelos
demais poderes.
A maioria das demandas na área da saúde são relativas ao for-
necimento de medicamentos e tratamentos médicos, sendo, grande par-
te delas, excessivamente onerosas aos cofres públicos. Destarte, não há
como atender todas as prestações sociais buscadas, uma vez que os re-
cursos existentes são escassos, razão pela qual o Judiciário, assim como
os demais poderes, deve proceder “escolhas trágicas” ao decidir quais de-
mandas merecem atendimento.
Conquanto, na prática, os magistrados, de forma geral, não de-
monstram a pertinente preocupação com as repercussões orçamentárias
que suas decisões podem suscitar e nem mesmo se o Estado detém meios
para cumpri-las. Isto posto, percebe-se que o Judiciário muitas vezes
deixa de observar o que preleciona a reserva do possível, o que acarreta
decisões irresponsáveis que, muitas vezes, determinam prestações arra-
zoáveis e/ou desproporcionais.
Dessa forma o presente artigo trará discussões sobre esse tema
atual e nebuloso, que faz com que a doutrina e a jurisprudência brasileira
não conseguem chega a uma solução equilibrada e justa, motivo que tona
o tema obscuro e atual. Para tanto, num primeiro momento será delimi-
tado os direitos fundamentais e o direito da saúde de forma a verificar a
problemática da reserva do possível.
72 | Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol
2. DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Direitos e garantias fundamentais são produtos de um processo


de constitucionalização dos direitos humanos, consistindo em prerroga-
tivas reconhecidas pelo direito positivo, voltadas a assegurar condições
mínimas de existência digna, livre, e igual a todas as pessoas.
Essas prerrogativas impõem ao Estado tanto o dever de forne-
cer prestações sociais aos indivíduos, quanto a obrigação de se abster de
intervir abusivamente na liberdade, segurança e propriedade destes (JÚ-
NIOR, 2014).
Os direitos e garantias fundamentais estão previstos no título
II da Constituição de 1988, que os agrupa da seguinte forma: direitos
individuais e coletivos (Capítulo I), direitos sociais (Capítulo II), direitos
da nacionalidade (Capítulo III), direitos políticos (Capítulo IV) e direitos
relacionados à participação em partidos políticos e à sua existência e or-
ganização (Capítulo V).
Nos termos do art. 6º da Constituição Federal são direitos so-
ciais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência, social, a proteção à maternidade e à infância e a
assistência aos desamparados.
Assim, denota-se que os direitos sociais são aqueles que exigem
uma ação positiva e concreta do Estado, seja pela intervenção e regulação
do mercado de trabalho, seja pela prestação de serviços, visando, dessa
forma, assegurar o bem-estar social e o pleno desenvolvimento da pessoa
humana. (JÚNIOR, 2014)
Dessa forma, sabe-se que o direito a saúde é um direito social
e que em face a esse trabalho focar nesse interim, passa a conceitua-lo.

2.1 DO DIREITO À SAÚDE

Nos termos do artigo 196, da Constituição de 1988, a saúde é


direito de toda a sociedade e deve ser garantido pelo Estado, “mediante
políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção e recuperação”

A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO ... | 73


Dessa forma, o direito à saúde, assim como os demais direitos
sociais, é materializado por meio das políticas públicas, que consistem
em ações estatais que objetivam a concretização das prestações de caráter
social e afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Tais políticas são financiadas pela própria sociedade, por meio
dos tributos, sendo atribuído aos poderes o papel de planejar onde esses
recursos serão empregados, de modo que os direitos constitucionalmente
protegidos sejam, de fato, efetivados.
No que tange à aplicabilidade do direito à saúde, tem-se que o
sistema de saúde brasileiro é formado pelo setor público e privado, sendo
o primeiro responsável por cobrir cerca de 75% da população, ao passo
que o segundo oferece atenção à 25% da população. (SANTELICES, 2016).
O setor público está constituído pelo Sistema Único de Saúde
(SUS), dispondo o artigo 198, da Constituição Federal de 1988, que “as
ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único”.
Embora responsável pelo setor público de saúde, o SUS também
presta serviços em estabelecimentos privados definindo a regulamenta-
ção desse setor, com cujas instituições estabelece convênios ou contratos
mediante pagamento de serviço. (SANTELICES, 2016)
Assim, uma vez averiguada de forma sucinta os direitos fun-
damentais, e os direitos sociais que são prerrogativas em que o Estado
possui o dever de prestação, importante, tecer alguns comentários sobre
a ineficácia desses direitos, principalmente naqueles ligados a saúde. Por
isso, relatar sobre a reserva do possível é de suma importância.

3. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL E A TEORIA


DAS ESCOLHAS TRÁGICAS X A TEORIA DO
GRAU MÍNIMO DE EFETIVIDADE DOS
DIREITOS OU MÍNIMO EXISTENCIAL

Os direitos sociais, por exigirem prestações positivas do Estado,


que dependem de recursos provenientes dos cofres públicos, estão sujei-
tos à denominada cláusula de reserva do possível.

74 | Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol


A referida cláusula consiste em uma limitação fática e jurídica
oponível, ainda que relativamente, à realização dos direitos sociais; isto é,
o Estado tem por dever a efetivação desses direitos, conforme previsto na
Constituição, mas na medida exata em que isso seja possível.

Em linhas gerais, o principio da reserva do possível regula a possibili-


dade e a extensão da atuação estatal no que se refere à efetivação de
alguns direitos sociais e fundamentais, tais como o direito à saúde,
condicionando a prestação do Estado à existência de recursos públicos
disponíveis. (SILVA, Leny Pereira da; 2009, p. 26)

Nesse sentido, deve-se levar em consideração que os recursos


públicos são finitos, razão pela qual, restando comprovada a incapacida-
de do Estado de cumprir determinada prestação social, nada se poderá
exigir deste, já que não é razoável cobrar a efetivação das prerrogativas
impostas pela Constituição de quem não tem aporte financeiro para sal-
dá-las. (BULOS, 2014)
Não obstante, cabe salientar que teoria da reserva do possível
não implica em um salvo-conduto para o Estado deixar de cumprir suas
obrigações constitucionais sob a alegação de que não possui recursos su-
ficientes. Isto posto, a não efetivação ou a efetivação parcial das presta-
ções sociais somente se justifica se o Estado demonstrar cabalmente a
impossibilidade financeira de realizá-las.
Assim, não se configura lícito e nem ético que os poderes públi-
cos aleguem carência de recursos para criar obstáculos ao cumprimento
dos deveres sociais estabelecidos na norma constitucional. É o caso das
omissões constitucionais, que devem ser severamente repudiadas. (BU-
LOS, 2014).
Ante o exposto, conclui-se que a teoria da reserva do possível
não pode servir como obstáculo genérico à concretização dos direitos
sociais, mas sim, como guia da forma pela qual os recursos públicos de-
verão ser alocados. (FARIA; 2014)
Assim verificada a teoria da reserva do possível, não pode-se
deixar de averiguar a teoria das escolhas trágicas, pincipalmente em face
a sua correlação.

A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO ... | 75


Na concepção de Flávia Ortega (2015), “a escassez de recursos
públicos, quando envolve questões peremptórias, por exemplo, à vida e à
dignidade humana, culmina em escolhas tidas como trágicas”
Nesse sentido, importa ressaltar que não existem direitos sem
custos. Dessa forma, até mesmo para a concretização dos direitos funda-
mentais de primeira geração – que exigem um dever de abstenção por par-
te do Estado – necessita-se da utilização de recursos de natureza pública.
Nesse sentido, a expressão “escolhas trágicas” é utilizada co-
mumente no campo dos direitos sociais para demonstrar o contraponto
existente entre o desejo de se atender um pedido de concretização de
uma prestação social e as dificuldades governamentais de viabilizar a alo-
cação racional dos seus finitos recursos financeiros (ALEXANDRINO;
PAULO, 2013)
Para Gilmar Mendes (2014), tais escolhas persistem em razão
da inexistência de recursos suficientes para a satisfação de todas as ne-
cessidades da sociedade. Assim, a formulação de políticas públicas para
a concretização dos direitos sociais, implica, forçosamente, em escolhas
alocativas, sopesadas todas as coordenadas do sistema econômico do país.
Como a Constituição de 1988 não oferece comando indecliná-
vel para a alocação de recursos, as chamadas escolhas trágicas devem se-
guir critérios de justiça distributiva, ou seja, a repartição de bens, direitos
e deveres entre os membros da sociedade, configurando-se como típicas
opções políticas pautadas por critérios de justiça social. Destarte, a es-
colha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva
em consideração fatores como o número de cidadãos beneficiados pela
política eleita, a efetividade e eficácia do serviço a ser prestado e a maxi-
mização dos resultados. (MENDES, 2014)
O procedimento usual para as escolhas trágicas no Brasil é atri-
buí-las ao Judiciário, ou, em alguns casos, ao Poder Executivo, que atua
com base nos delineamentos estabelecidos pelos legisladores.
Diante disso, importante faz averiguar sobre a teoria do grau
mínimo de efetividade dos direitos ou do mínimo existencial.
Como limitador da reserva do possível, tem-se o postulado
constitucional da garantia do mínimo existencial, que está intimamente
ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana e deve ser respeitado
por todos os entes que compõem a República Federativa do Brasil.
76 | Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol
Segundo a aludida teoria, o Estado está impedido de negar a
concretização de prestações sociais mínimas ao indivíduo, mesmo sob a
alegação de insuficiência de recursos.
Para Vincente Paulo e Marcelo Alexandrino (2013), as presta-
ções sociais mínimas devem ser capazes de assegurar ao indivíduo con-
dições adequadas de existência digna, com acesso efetivo ao direito à
liberdade e, também, à plena fruição de direitos sociais básicos (saúde,
educação, proteção à criança e ao adolescente, segurança, assistência so-
cial, moradia e alimentação).
Dessa forma, o mínimo existencial deve nortear o emprego dos
recursos estatais no estabelecimento das políticas públicas prioritárias
para a efetivação da dignidade da pessoa, de modo que somente após
serem disponibilizados os recursos necessários à sua promoção, deve-se
discutir, em relação ao remanescente, quais outras demandas serão aten-
didas. (NOVELINO,2014)
Verificados o princípio da reserva do possível e do mínimo
existencial importante saber que esses dois princípios criam uma dico-
tomia na doutrina e na jurisprudência, as quais não conseguiram deli-
mitar quais o mais correto para as realidades sociais, motivo pelo qual a
população utiliza-se da segunda para basear seus pedidos de efetivação
de seus direitos previamente garantidos na lei, enquanto o Estado frente
a sua falência administrativa utiliza-se do primeiro para negar os serviços
devidos. E essa guerra administrativa cai no Judiciário que decide das
mais inúmeras formas.
E desse contexto surge a judicialização do direito à saúde e a
construção doutrinária e jurisprudencial no Brasil, entregando ao Poder
Judiciário o domínio de decisão sobre a decisão.

4. A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE


FRENTE A RESERVA DO POSSÍVEL

Conforme disposto na Constituição Federal, os atos praticados


pela Administração Pública devem ser submetidos ao controle de legali-
dade pelo Poder Judiciário, ante o princípio da inafastabilidade da juris-
dição, previsto no art. 5º, inciso XXXVI, do referido diploma.

A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO ... | 77


Nesse sentido, quando o Legislativo ou o Executivo deixam de
agir ou agem insuficientemente para concretizar os direitos subjetivos
previstos na Carta Magna, não há outra solução aos cidadãos senão a de
recorrer ao Poder Judiciário, a fim de que haja a efetiva tutela dos direitos
negligenciados.
No que tange a judicialização das políticas públicas, a que é re-
correntemente debatida no direito brasileiro é a judicialização do direito
à saúde. Nos últimos anos, percebeu-se um aumento significativo no nú-
mero de ações judiciais que postulam a concretização desse direito por
parte do Estado, principalmente no que concerne ao fornecimento de
medicamentos e tratamentos médicos.
Como é sabido, o direito à saúde está intimamente ligado ao
direito à vida, sendo estes assegurados pelo princípio da dignidade da
pessoa humana. Dessa forma, considera-se que todo cidadão tem o direi-
to de obter o mínimo de prestação estatal que lhe garanta saúde e, con-
sequentemente, uma vida digna, ou seja, todos têm direito ao mínimo
existencial.
Assim, pode-se considerar que o aumento significativo no nú-
mero de ações que buscam a efetivação do direito à saúde, indica, de certa
forma, que o Estado não está assegurando o mínimo existencial a todos
os indivíduos.
Nessa esteira, conforme notícia veiculada no site da revista
VEJA, no ano de 2014, o Bloomberg, portal norte-americano especializa-
do em política e economia, realizou um estudo de eficiência dos serviços
públicos de saúde de 48 países. Para o cálculo, foram utilizados critérios
de expectativa de vida, custo relativo da saúde per capita e custo absoluto
per capita da saúde. Ao final da pesquisa, o Sistema Único de Saúde foi
alocado na última posição do ranking, demonstrando uma realidade já
conhecida pela população brasileira: a saúde do Brasil é cara, mas inefi-
ciente.
De acordo com o estudo, altíssimos gastos na área da saúde não
implicam, necessariamente, na melhor qualidade dos serviços prestados
pelo Estado. Não basta que se tenha recursos para investir na área; é ne-
cessário que estes sejam empregados de forma eficiente, a fim de garantir
minimamente a saúde da população.

78 | Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol


No que tange à judicialização do direito à saúde, Luzardo Fa-
ria (2014) cita que, cerca de um mês após a publicação da pesquisa su-
pramencionada, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região condenou a
União Federal ao custeio de uma cirurgia de transplante de órgãos, a ser
realizada nos Estados Unidos, que foi estimada em cerca de um milhão
de reais, além de multa diária no valor de cem mil reais, em caso de des-
cumprimento da decisão.
Ante o exposto, denota-se que a realidade da saúde pública no
Brasil é, de certo modo, um tanto quanto peculiar. Segundo o Ministro
Luís Roberto Barroso, o direito público brasileiro está passando por um
fenômeno que engloba dois extremos: da falta de efetividade à judiciali-
zação excessiva. (FARIA; 2014)
Conquanto, embora os direitos sociais, em especial o direito à
saúde, demandem uma atuação positiva do Estado para que sejam pres-
tados da forma mais efetiva possível, nem sempre a busca pela tutela ju-
risdicional se mostra a via mais adequada para a concretização desses
direitos.
Na lição de Luzardo Faria (2014), três são os motivos básicos
que explicam essa problemática, quais sejam: (i) o acesso ao Judiciário
é, mormente, um privilégio das classes média e alta da população, sendo
deixada de lado a parcela mais carente e necessitada da sociedade; (ii) a
maioria das ações judiciais que buscam a efetivação do direito à saúde
são de cunho individual e não coletivo e; (iii) compete à Administração,
e não ao Judiciário, o planejamento e execução de políticas públicas vol-
tadas para a área da saúde.
Desse modo, embora seja papel do Judiciário, por meio do con-
trole de legalidade, assegurar que os demais poderes cumpram os man-
damentos constitucionais de sua competência, o ativismo judicial desco-
medido pode se mostrar demasiadamente prejudicial ao Estado Demo-
crático de Direito.
Nesse sentido, a judicialização deve ser soldada de reserva, isto
é, só poderá ser utilizada nos casos de esgotamento dos meios convencio-
nais de solicitação ou em situações excepcionais, na lição de Márcio Dias
de Oliveira (2008):

A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO ... | 79


Não sendo as normas constitucionais sanitárias meras normas pro-
gramáticas, mas sim normas enunciadoras de um verdadeiro direi-
to público subjetivo, a jurisdicionalização é perfeitamente possível,
mas frise-se, a jurisdicionalização será (ou deverá ser) soldado de
reserva, utilizado somente em caso de esgotamento dos meios con-
vencionais de solicitação, ou em face de situações excepcionais, sob
pena de descaracterizar sua função de socorro, substituindo receitas
médicas por sentenças judiciais, verdadeiro absurdo. (OLIVEIRA,
Márcio Dias de; 2008, p. 90)

Assim sendo, a judicialização do direito à saúde não deve ser


encarada como a solução para a crise da saúde pública brasileira, mas
sim como ultima ratio, devendo o cidadão recorrer ao Judiciário quando
a Administração, de fato, se omitir diante das suas obrigações constitu-
cionais. (FARIA; 2014)
Nessa senda, ao apreciar as demandas da área da saúde, os ma-
gistrados, de forma geral, não demonstram a devida preocupação com os
impactos orçamentários que suas decisões podem acarretar e nem mes-
mo se a Administração Pública tem meios para cumpri-las, pelo que se
conclui que a reserva do possível muitas vezes deixa de ser aplicada aos
casos concretos, ignorando-se a premissa de que os recursos disponíveis
para as políticas públicas são finitos. (SILVA; 2009)
Desse modo, na busca quase desenfreada pela efetivação do di-
reito à saúde, o Judiciário acaba por proferir decisões fundamentadas de
forma irracional, que determinam prestações arrazoáveis e, muitas vezes,
desproporcionais. Isto porque, a concretização dos direitos sociais exige
todo um planejamento político prévio, uma vez que as finanças devem
estar bem distribuídas para que não se privilegie a concretização de um
direito em detrimento de outro. (FARIA; 2014)
O que tem se observado ultimamente é certa descaracterização
da função principal dos direitos sociais, que é a redução das desigualda-
des materiais entre a população. Diante de tantas ações judiciais em que
os magistrados condenam a Administração Pública ao fornecimento de
medicamentos e tratamentos de saúde de alto custo, a judicialização do
direito à saúde acaba por acarretar um aumento das diferenças sociais en-
tre os indivíduos e, consequentemente, um prejuízo para a saúde pública
brasileira (FARIA; 2014)

80 | Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol


Destarte, assim como os poderes Executivo e Legislativo fazem
as chamadas “escolhas trágicas”, ao definirem como os recursos serão em-
pregados na concretização das políticas públicas, o Judiciário, ao julgar as
demandas da área da saúde, também deve proceder tais escolhas, tendo
em vista a impossibilidade real de se atender a universalidade das ações.
Com efeito, não pode o Magistrado ignorar a viabilidade mate-
rial da sua decisão, ou seja, se esta é passível de cumprimento pelo Esta-
do, sem que haja um desequilíbrio na previsão orçamentária e prejudique
os serviços prestados pelo Serviço Único de Saúde.
Assim, entende-se que o Judiciário pode determinar que a Ad-
ministração Pública implemente ações positivas, com vistas a garantir o
mínimo necessário à saúde do cidadão, desde que não prejudique o que
foi fixado nas leis orçamentárias e privilegie sempre o direito coletivo em
detrimento do individual. (OLIVEIRA; VIEIRA, 2014)
Em outras palavras, o direito fundamental à saúde precisa ser
garantido pelo Estado, devendo o Magistrado reconhecer sua importân-
cia, bem como seus limites, a fim de que possa prever as consequências de
sua decisão. Por esse motivo, algumas vezes é mais coerente com o direito
à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana, negar provimento a um
pedido individual, do que adotar uma providência descomprometida.
(OLIVEIRA; 2008)
Conquanto, deve ser feita uma ressalva: não basta que o Estado
alegue impossibilidade financeira de cumprir a decisão judicial; é preciso
demonstrá-la. Isto posto, o argumento da reserva do possível só deve ser
aceito se a Administração Pública demonstrar, efetivamente, que a pres-
tação da tutela requerida causará mais danos do que vantagens, no que
tange à efetivação dos direitos fundamentais. (SILVA; 2009)
Na lição de SILVA (2009), as limitações impostas pela teoria da
reserva do possível podem ser contornadas pelo Judiciário mediante so-
luções criativas. Assim, por exemplo, ao invés do magistrado impor a
realização imediata do direito, pode exigir que a Administração Pública
inclua os recursos necessários à sua concretização na proposta orçamen-
tária do ano seguinte. Além disso, o poder público pode buscar parcerias
com organizações privadas para que estas ajudem pessoas na realização
de determinados tratamentos de saúde.

A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO ... | 81


Dessa forma, não obstante o direito à saúde seja um dever do
Estado estabelecido pela própria Constituição Federal, impossível aplicá-
-lo, indistintamente, a todas as situações, tendo em vista os limites orça-
mentários do Poder Público, que deve concretizar outros direitos sociais,
além da saúde, como, por exemplo, educação, segurança, transporte e
moradia. (NASCIMENTO; 2017)
Conclui-se, portanto, que somente é viável assegurar o direito à
saúde no caso concreto, se observados três elementos, quais sejam: distri-
butividade dos recursos, número de cidadãos atingidos e efetividade do
serviço a ser prestado, observando, em todos os casos, a teoria da reserva
do possível. (NASCIMENTO; 2017).
Após abordado os direitos fundamentais e sociais, focando di-
retamente no direito a saúde e na dicotomia entre a reserva do possível e
no mínimo existencial, passando pelas escolhas trágicas, verificou-se que
o problema da judicialização da saúde é um problema autêntico e notório
no direito brasileiro, o qual ainda não conseguiu se pronunciar de forma
a se adequar com a realidade sócio jurídica a qual se vive.
Muito se discute, muito se digladiam as vertentes doutrinárias
e o Pode Judiciário sobe o assunto, mas nenhum consegue alcançar uma
solução justa e equilibrada para todos os envolvidos, pois sempre uma
parte será lesada, ou o direito individual de quem ingressou na seara ju-
risdicional ou a coletividade pelo deferimento dessa ação singular. Na
verdade todos teriam o direito de ter consagrado suas garantias uma vez
que a própria Constituição Federal assim dispõe, porém o problema cir-
cunda em outra esfera, ou seja, o desequilíbrio das contas públicas. Sendo
assim, precisa-se encontrar de forma conjunta essa solução sonhada, para
que dias melhores surjam.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo evidenciou sobe a temática da ocorrência


da judicialização do direito à saúde, principalmente no que concerne a
concretização dos direitos fundamentais frente ao atual quadro social
brasileiro e o que o aumento do ajuizamento de ações de fornecimento

82 | Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol


de remédios está causando quanto a prevalência dos direitos sociais e
da própria interferência no orçamento do Estado para que esses serviços
sejam efetivados.
Num primeiro momento delimitou-se os direitos fundamentais
e sociais, priorizando o direito a saúde por ser objeto central do estudo.
Posteriormente explicou as teorias da reserva do possível e do mínimo
existencial cristalizando a dicotomia entre ambas e a sua fundamentação
nas decisões judiciais a partir delas. E desse entendimento demonstrou
que o Estado não consegue mais satisfazer os direitos sociais de forma
plena e universal o que abe portas para o crescimento do processo de
judicialização desses direitos.
Assim, verifica-se que esse sistema garantidor de direitos, rea-
lizado de forma eficaz pelo Poder Judiciário, por meio da judicialização
do direito a saúde deve continua a se utilizado pelos cidadãos, contudo,
em face a falência do Estado providência, as ações precisam selecionar
as exceções sociais comuns a qualquer a maio parte da coletividade seja
atingida e agraciada, independentemente do país.
Pois a judicialização adotada no sistema brasileiro está causan-
do um caos ainda pior no contexto brasileiro porque ela se operaciona-
liza de forma a retirar da maior parte da população carente o orçamento
direcionado a efetivação desses direitos. Não que isso seja correto e justo,
visto a previsão constitucional de sua efetivação.
Ocorre que em face a falta de fiscalização da aplicação dos re-
cursos e da própria má gestão, a realidade alcançou um parâmetro no
qual não haverá outa alternativa que a mudança de paradigma e a análi-
se mais profunda dos pedidos judiciais, pois quando se defere um pedi-
do individual e singular, cria-se reflexos na coletividade como um todo,
tornando o orçamento ainda mais deficitário, desiquilibrando a finança
institucional.
Em face a isso, o que deve-se alcançar é a definição de critérios
específicos para que delimitem em quais situações o Poder Judiciário terá
liberdade para analisar, julgar e obrigar o Poder Executivo a cumprir com
seu papel garantidor, utilizando a equidade de forma a operacionalizar a
satisfação desses direitos, sem contudo, retirar os direitos de outras pessoas.
O tema vem sendo debatido e há notícias que estão surgindo
decisões na mudança de paradigma tanto no âmbito internacional como

A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PRISMA DA JUDICIALIZAÇÃO ... | 83


no âmbito nacional. Agora caberá esperar essas decisões serem divulga-
das e passarem a ser analisadas. Importante nesse sentido enunciar que
não se pode afirmar de forma contumaz qual vertente é mais justa e me-
rece maior respaldo.
O que precisa-se é não fechar os olhos para o caos em que o povo
brasileiro está inserido e que os direitos fundamentais não estão sendo con-
cretizados como constitucionalmente previstos e esse contexto está cada
vez mais nefasto e sem solução, o que acaba criando confrontos entre os
Poderes e suas competências, sem contudo encontrar um caminho viável.
Importante saber que os poderes dentro de uma sociedade eram
distribuídos pela teoria dos freios e contrapesos que os equilibravam.
Essa teoria foi descrita na Constituição Federal de 1988, a qual delimitou
as funções típicas e atípicas de cada poder de forma originária – assim,
ao Poder Judiciário foi concedido a competência de julgar os desvios da
sociedade e da própria Administração Pública principalmente no que
condiz a lesão na efetivação dos direitos basilares dos cidadãos.
A Judicialização da demandas da saúde, principalmente no
tocante ao fornecimento de remédios criou um desequilíbrio da receita
orçamentária do Estado. E isso ocorre em face ao cidadão sentindo-se
desprotegido e desacreditado de seus direitos procura salvaguardar seus
direitos por meio de ordem judicial, usando de forma individual a exi-
gência da efetividade de seus direitos fundamentais, o que cria a dicoto-
mia ou a dissonância no orçamento previsto para a coletividade, o que
desarticula a função típica do Poder Executivo, criando um problema na
esfera da repartição dos poderes.
Assim, o presente arrazoado tentou delimitar a temática, apre-
sentando algumas ideias que contribuem para reflexão do problema que
assola a realidade brasileira e mundial. E nesse interim que o mundo real
tenta alcança soluções legítimas e concretizáveis para esse buraco negro
que ainda não se alcançou fim.

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<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=9137d1abcaf9bf4f>. Acesso
em: 19 de setembro de 2017.

88 | Andressa Julianny Morais Pacheco | Sabina Cassol


V
O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA
LEGISLAÇÃO: UMA PERSPECTIVA PARA A
CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS EM UMA
SOCIEDADE FRATERNA

Lígia Daiane Fink1


Charlise Paula Colet Gimenez2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O direito à saúde no Brasil é dever do Estado, assegurado pela


Constituição Federal de 1988 em seu artigo 196. Nesse sentido, há mais
de 28 anos, o ordenamento jurídico brasileiro protege os Direitos Huma-
nos que, por sua vez, integram a ordem jurídica internacional, sendo a

1 Mestranda em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e


Missões(URI), Campus Santo Ângelo-RS, vinculada à linha de pesquisa Políticas
de Cidadania e Resolução de Conflitos. Estudante no grupo de Pesquisas CNPQ
– Conflito, Cidadania e Direitos Humanos, liderado pelo Prof. Dr. João Martins
Bertaso e pela Profª Dra. Charlise Colet Gimenez da mesma Universidade.
Bacharela em Direito pelas Faculdades Integradas Machado de Assis(FEMA),
de Santa Rosa-RS. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade
de Educação e Tecnologia da Região Missioneira(FETREMIS) de São Paulo das
Missões-RS. Especialista em Direito Penal, Econômico e Tributário pela mesma
Faculdade. Pós-graduanda em Direito Previdenciário e Direito do Trabalho pela
Instituto Cenecista de Ensino Superior(IESA) de Santo Ângelo-RS. Funcionária
Pública Municipal. E-mail: ligia_daia@hotmail.com
2 Doutora em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Docente do
Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito, Mestrado e Doutorado da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus de Santo
Ângelo/RS, e do Curso de Graduação em Direito, também da mesma universidade;
Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, Brasil, charliseg@santoangelo.uri.br.
saúde um direito relevante. O Estado brasileiro assegura a inviolabilidade
do direito à vida, tendo no princípio da dignidade da pessoa humana um
de seus fundamentos, assim, todos os cidadãos têm direito à saúde.
Contudo, este direito ainda não se constitui de fato em acesso
aos bens e serviços no âmbito do Sistema único de Saúde (SUS), pois para
garantir o que preconizam as normas constitucionais, os cidadãos têm
de recorrer ao Poder Judiciário a fim de garantir seus direitos, o que se
convencionou de chamar de judicialização da saúde.
Destarte, sob o enfoque de proteger os princípios e garantias
constitucionalmente assegurados, além de proteger o Estado e sua ordem
econômica contra a judicialização “desmedida” é de se apontar que se faz
necessário uma nova forma de “pensar” o Direito, como também as po-
líticas públicas para serem assegurados os direitos e deveres entre Cida-
dãos e Estado em diferentes situações de conflito, uma vez que a decisão
jurídica influencia nas decisões coletivas tomadas pelo sistema político e,
em alguns casos, não observam a Política de Assistência Farmacêutica,
causando impactos no orçamento, interferindo nas ações dos poderes au-
tônomos, como também diretamente na vida das pessoas.
Por isso, o presente texto tem por objetivo expor o porquê dessa
judicialização, como atualmente são desenvolvidas as práticas legislati-
vas – leis - , uma vez que em sua maioria tem apenas a finalidade de ser
simbólica e acalmar as massas sociais, para tanto se faz necessário (re)
pensar as práticas legislativas, assim, é proposto a utilização da Teoria
da Legislação de Manuel Atienza e seus níveis de racionalidade, os quais
irão colaborar na elaboração das leis e na eficácia e efetivação da norma
jurídica em uma sociedade fraterna.

2. A PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE PELO


ESTADO BRASILEIRO

Os direitos fundamentais são frutos de conquistas históricas,


ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em
defesa de novas liberdades contra velhos poderes, surgem de modo gra-
dual, ao longo do tempo. Tais direitos estão elencados nos textos consti-

90 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


tucionais dos países democráticos, como fiel contrato social que atribui
aos Estados o dever de planejar políticas públicas, sendo que a concreção
desses direitos envolve uma série de medidas imperativas por parte do
Estado (BOBBIO, 2004).
No plano histórico, Bobbio sustenta que a afirmação dos direitos
do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica
da formação do Estado moderno, na representação da relação política,
ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos, relação esta que
cada vez mais é vista como os direitos dos cidadãos não mais súditos, pois
para que a sociedade seja compreendida é preciso entender e analisar os
indivíduos que compõe a mesma (BOBBIO, 2004).
Em 1948 houve a sistematização da Declaração Universal dos
Direitos Humanos a qual foi adotada e proclamada pela resolução 217
A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de
1948, em que se elencaram os direitos relacionados à preservação da vida
e da dignidade, os quais pressupõem o acesso à saúde e sua promoção
pelos Estados. Vários artigos da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos trazem de forma explícita e implícita a preocupação com a preser-
vação da vida, enquanto objetivo a ser perseguido pelos povos e nações
(PETERSEN, 2014).
A partir da Declaração Universal da Organização das Nações
Unidas (ONU), verifica-se uma nova fase na história dos Direitos Huma-
nos, caracterizada pela universalidade simultaneamente abstrata e con-
creta, através da positivação na seara internacional, dos direitos funda-
mentais reconhecidos a todos os seres humanos (SARLET, 2015).
Simultaneamente, no contexto gradativo do processo de demo-
cratização dos países e o processo de internacionalização dos direitos hu-
manos, está o Brasil como novo Estado constitucional, em específico com
a Constituição Federal de 1988, a qual ficou conhecida como constituição
cidadã (CARVALHO, 2007). Para Bahia, a Constituição Federal brasi-
leira de 1988 dedicou no artigo 1º, inciso III, o princípio da dignidade
da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de direito,
sendo este de valor supremo, conforme preceitua:

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) foi fruto da luta contra o


autoritarismo do regime militar, surgindo em um contexto de busca
da defesa e da realização de direitos fundamentais do indivíduo e da

O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO ... | 91


coletividade no Estado Capitalista que se constituía. Elegeu a insti-
tuição do Estado Democrático, o qual se destina “a assegurar o exer-
cício dos direitos sociais e individuais”, assim como o bem estar, o de-
senvolvimento, a igualdade e a justiça social, e seguindo a tendência
do constitucionalismo contemporâneo, incorporou, expressamente,
ao seu texto, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º,
inc. III) – como valor supremo –, definindo-o como fundamento da
República. (BAHIA, 2014, p. 2-3).

A dignidade da pessoa humana é o primeiro fundamento de todo


o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarda dos direitos
individuais, pois a dignidade direciona e orienta o que deve ser avaliado e
considerado por quem interpreta as normas. Assim sendo, a dignidade é
absoluta e plena, não podendo ser relativizada (RIZZATTO, 2009).
O princípio da dignidade da pessoa humana elencado no artigo
1°, inciso III da Constituição Federal de 1988 é considerado o valor fonte
de todos os direitos fundamentais. Esse princípio norteador de toda a
ordem política tem o intuito de reconhecer não apenas que a pessoa é
sujeito de direitos e créditos diante dessa ordem, mas é um ser individual
e social ao mesmo tempo (FERRAZ FILHO, 2012).
Nesse contexto, é direito do cidadão a obtenção de prestações
positivas do Estado, as quais ultrapassam a mera discricionariedade ad-
ministrativa. Ademais, os direitos sociais são delimitadores fundamen-
tais nas decisões constitucionais e políticas. De tal maneira, tais direitos
visam à melhoria das condições de vida dos cidadãos tidos como hipos-
suficientes, no afã de atingir a tão sonhada igualdade social, o que, evi-
dentemente, perpassa pela devida concretização do direito à saúde a que
alude o texto constitucional brasileiro (BAHIA, 2014).
Relacionando-se a saúde de modo direto à qualidade de vida,
ela não pode ser conceituada de forma inerte, pois se inclui em nosso
contexto social, no qual o Estado tem o poder/dever de programar, com
prestações positivas, ações que promovam a vida digna do cidadão, lhes
proporcionando uma vida saudável (BAHIA, 2014).

92 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


O direito à saúde, até o nascimento do constitucionalismo mo-
derno, por meio da Organização das Nações Unidas, esteve vinculado
apenas à existência de doenças. As ações em saúde se davam apenas
diante de uma moléstia grave, que afetava grande número de pessoas e,
consequentemente, o meio econômico, tendo em vista a queda de pro-
dução em virtude de falecimentos e/ou afastamentos, onde eram pensa-
das e oferecidas algumas preocupações diante dos fatos que ali ocorriam
(CARVALHO, 2007).
Em 1946, o conceito de saúde foi ampliado pela Organização
Mundial da Saúde, deixando de ser apenas curativa, mas preventiva,
referindo que a “saúde é o completo bem-estar físico, mental e social
e não apenas a ausência de doenças”, velando a vida e consequente-
mente a democracia, a igualdade, o respeito, desenvolvimento dentre
outros. “Assim, a boa qualidade de vida não está apenas vinculada a
questões médicas, mas também a moradia, educação, meio ambien-
te, proteção da família, do trabalhador, morte digna, informação, não
ter fome, assistência social, segurança e outros que venham a surgir,
visto que não são taxativos, mas apenas enumerativos e progressivos”
(CARVALHO, 2007, p.17).
No Brasil, o movimento de consolidação do setor primário na
saúde ganha velocidade a partir da década de 80, com o fechamento do
ciclo de industrialização propiciado pelo projeto nacional desenvolvi-
mentista que orientou a ação estatal desde os anos 30 (ELIAS, 2004). Mas
apenas com a Constituição de 1988, os direitos fundamentais tiveram
inovações de significativa importância. Afinal, pela primeira vez na his-
tória do constitucionalismo pátrio a matéria foi tratada com seu devido
valor, dada a extrema relevância destes direitos (SARLET, 2015).
O Direito à saúde é direito fundamental e deve ser assegurado
pelo Poder Público, conforme o que dispõe o artigo 196 da CF/88: “A
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).

O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO ... | 93


Para corroborar o artigo 196 da CF/88, sancionou-se a Lei n.º
8.080, de 19 de setembro de 1990, a qual dispõe sobre as ações e serviços
em saúde, e estabelece a saúde como um direito fundamental do ser hu-
mano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício.
Destarte, a saúde pública corresponde ao setor de interesse do
Estado, pois se vincula a direito humano e é essencial a outros direitos
humanos, como a vida, a dignidade, a igualdade e o desenvolvimento. No
Brasil, a saúde é naturalmente pública, em razão de ser responsabilidade
do Estado, podendo ser explorada pela iniciativa privada, todavia, sob
regulamentação e fiscalização do Ente estatal, em que pese, no Brasil, seja
objeto de política pública (CARVALHO, 2007).
O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida
elencados na CF/88, pressupõem que o direito à saúde é um direito fun-
damental e deve ser plenamente assegurado pelo poder público, em caso
de omissão, deve ser compelido a proceder sua efetiva realização. Nesse
viés, os cidadãos recorrem à prestação jurisdicional individual ou coleti-
vamente, demandando do Estado o cumprimento do preceito constitu-
cional, sendo que essas demandas podem resultar em um judiciário que
decide politicamente sem a estrutura necessária para atuar com a lógica,
o ritmo e a prática política do sistema político, formulador e executor das
políticas públicas (OLIVEIRA, 2015).
Em estudo recentemente realizado, publicado na Revista do
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde concluiu que a judicialização da
política de saúde em âmbito nacional tem maior ocorrência em quatro
regiões do País, indicando o cidadão brasileiro como protagonista no
exercício de sua cidadania, o qual abandona o status de cidadão de papel
e assume o status de cidadão de direito, pleiteando do Estado o cumpri-
mento de seu dever (OLIVEIRA, 2015).
Ainda, foi divulgado na Revista, que as maiores concentrações
de demandas judiciais na saúde são no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio
Grande do Sul e Pernambuco, além de ser constatado que a judicialização
ocorre em todo território nacional e também está acontecendo em todo o
mundo. Dessa forma, o sistema começa a apresentar sintomas graves de

94 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


insustentabilidade, vítima do excesso de ambição da falta de critérios e de
voluntarismos diversos, conforme aponta o atual Ministro do Superior
Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso:

[...]. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais,


que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoá-
veis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencia-
lidade -, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia
duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há
um critério firme para a aferição de qual entidade estatal – União,
Estados e Municípios – deve ser responsabilizada pela entrega de
cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por
acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes
entidades e mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí
incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário
enfatizar que tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e desfun-
cionabilidade da prestação jurisdicional (BARROSO, 2009, p. 35).

Sem dúvida, a normatividade das disposições constitucionais


estabeleceu novos parâmetros para o Constitucionalismo, os quais são
frutos de uma importante conquista no Brasil, sendo que o Poder Judici-
ário pode e deve intervir em determinadas situações, envolvendo direitos
sociais, em especial o direito à saúde. Todavia, essas intervenções pos-
suem várias críticas, como preceitua Barroso:

O art. 196 da Constituição Federal deixa claro que a garantia do


direito à saúde se dará por meio de políticas sociais e econômicas,
não através das decisões judiciais. A possibilidade de o Poder Judi-
ciário concretizar, independente de mediação legislativa, o direito à
saúde encontra forte obstáculo no modo de positivação do art. 196,
que claramente defere a tarefa aos órgãos executores de políticas pú-
blicas. (...) Pode-se entender que a melhor forma de otimizar a efi-
ciência dos gastos públicos com saúde é conferir a competência para
tomar decisões nesse campo ao poder executivo, que possui uma vi-
são global tanto dos discursos disponíveis, quanto das necessidades a
serem supridas (...) Talvez a crítica mais frequente seja a financeira,

O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO ... | 95


formulada sob a denominação “reserva do possível”. As políticas pú-
blicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades
econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel
de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aque-
les que tem acesso qualificado à justiça, seja por conhecerem seus
direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial.
(BARROSO, 2009, p. 45 e SS.).

Para Ana Paula Barcelos, o fato é que o jurista, e muito menos


o juiz, dispõe de elementos ou condições para avaliar, sobretudo em de-
mandas individuais, a realidade da ação estatal como um todo, pois se
envolve com a solução de casos concretos – que poderia ser denominado
microjustiça - e o juiz fatalmente deixa de atender necessidades relevantes
para o atendimento das demandas ilimitadas: a macrojustiça. “Ou seja:
ainda que fosse legítimo o controle jurisdicional das políticas públicas,
o jurista não disporia do instrumental técnico ou de informação para
levá-lo a cabo sem desencadear amplas distorções no sistema de políti-
cas públicas globalmente consideradas” (BARCELOS, 2006, p. 47 apud
BARROSO).
Importante salientar no que tange à proteção dos direitos hu-
manos, constitucionalmente assegurados que a judicialização é uma das
formas mais demoradas, onerosas e lentas de resolução de conflitos, pre-
judicando muitas vezes os cidadãos e o Estado, os quais estão vulnerá-
veis a interesses que visam potencializar lucros, muitas vezes por meio
da prescrição irracional de fármacos e o estímulo à busca de tratamentos
inovadores, não contemplados pelas políticas públicas.
O impacto dessas demandas judiciais proferidas pelo judiciário
vem aumentando gradativamente, tornando-se exacerbada, como pode-
mos ver no exemplo com gastos em remédios abaixo: “de 2006 a 2010, o
gasto do Ministério da Saúde com remédios via demanda judicial cresceu
1.611%. Saiu de R$ 7,7 milhões para R$ 132 milhões. No Paraná, o pano-
râmico é parecido: dos R$ 61 milhões usados para adquirir medicamen-
tos, 58% ou R$ 35,7 milhões foram comprados por ordem de um juiz”.
(BOREKI, 2011, apud, RAMOS, CHAI, 2014).

96 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


À vista disso, sabe-se que o tema judicialização da saúde, é
tratado tanto nacionalmente, quanto mundialmente, consequentemen-
te os países estão buscando alternativas para solucionar ou minimizar
o grande problema da judicialização, por exemplo, na Espanha, onde a
Mediação como alternativa ao processo judicial já é sistematizada e re-
sulta na resolução extrajudicial dos conflitos decorrentes da prestação de
serviços sanitários, proporcionando às partes a solução da controvérsia,
sem imposição de uma decisão, evitando assim a possibilidade do confli-
to terminar no Poder Judiciário (CAYÓN DE LAS CUEVAS, 2010, apud
OLIVEIRA, 2015).
Destarte, analisando as insuficientes respostas do Poder Judi-
ciário, na realização das práticas de cidadania, dos direitos fundamen-
tais e de pacificação social, notável é que se faz necessária uma mudança
nos mecanismos de resolução de conflitos, como também na produção
das leis, haja vista a forma mecanizada dessa produção. Nesse viés, no
próximo tópico será abordada a legislação simbólica e a importância de
uma teoria de legislação na elaboração das leis, obedecendo aos níveis de
racionalidade.

3. LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA E A NECESSIDADE


DE UMA TEORIA DE LEGISLAÇÃO PARA
ELABORAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS

A saúde na sociedade contemporânea é considerada como um


bem de todos, um direito social inerente à manutenção da vida, contudo,
o reconhecimento deste direito e sua eficácia tem sido discutidos nos dias
atuais, pela sua (in)efetividade. Para isso, analisa-se a legislação simbóli-
ca, uma vez que a hipercomplexidade da sociedade determinou a supe-
ração da concepção que a única finalidade da lei é direcionar condutas e
regular situações pelo legislador.
De acordo com Neves, foi atribuído ao direito positivo uma plu-
ralidade de funções (harmonização social, redutor de tensões), passando
o direito a exercer a função de “sistema garantidor de expectativas nor-
mativas e regulador de condutas”. É essa falta de consistência da função

O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO ... | 97


acessória da lei e da adesão de meios dinamizadores que a caracterizam
como simbólica, conforme dispõe Neves: “a legislação simbólica pode ser
definida como produção de textos cuja referência manifesta à realidade
é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a fi-
nalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico”.
(NEVES, 2007, p. 30).
Dessa forma, pode-se dizer que a legislação simbólica consiste
na produção de textos de lei com cunho político em detrimento a efetiva
concretização jurídica/normativa, impedindo de tal forma a solução legí-
tima dos conflitos sociais. Na legislação simbólica, o legislador se restrin-
ge na produção de normas sem ter preocupação com seus pressupostos
e a eficácia desta, pois possui como objetivo principal atender interesses
meramente políticos.
Marcelo Neves, com fundamentos em Horald Kindermann
apresenta um modelo tricotômico, classificando a legislação simbólica
em três pontos: a) confirmadora de valores sociais, b) demonstrar a ca-
pacidade de ação do Estado e, c) adiar a solução de conflitos sociais por
meio de compromissos dilatórios.
No tocante à “confirmação de valores sociais”, Neves afirma que
constantemente se exige do legislador, seu posicionamento acerca dos
conflitos sociais e valores; os grupos que estão envolvidos e que compre-
endem os debates defendendo determinados valores têm a vitória legisla-
tiva como forma de reconhecimento de seu poder, e não tem interesse na
eficácia normativa da lei, mas somente em interesses que satisfaçam suas
expectativas e confirmem seus valores (HOMMERDING, LIRA, 2016).
Acerca de “demonstrar a capacidade de ação do Estado - fazendo
os cidadãos confiar no seu governo - Neves baseado em (Kindermann),
trata isso como “legislação-álibi”, ou seja, o legislador elabora as leis com
o intuito de satisfazer as expectativas imediatas da população, sem, con-
tudo, observar a efetividade prática e a possibilidade de concretização do
direito contido na norma. Em outras palavras, esse tipo de função simbó-
lica converge para o sentido de aliviar clamores populares e mostrar que
o Estado está atento as reivindicações sociais (NEVES, 1994).

98 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


A legislação simbólica, quanto ao conteúdo da “fórmula de
compromisso dilatório”, tem por função adiar a solução dos conflitos so-
ciais por meio de compromissos que postergam a solução – dilatórios,
dessa forma, as divergências entre os grupos políticos não são resolvidas
pelo ato legislativo. “É possível concluir que a fórmula de compromisso
dilatório abranda um conflito político interno por meio de uma lei que
“aparentemente” é progressista, satisfazendo ambos os lados e transferin-
do a solução do conflito para um futuro indeterminado”, ou seja, apenas
propõe soluções a ser implementadas a longo prazo, não tendo a lei apro-
vada nenhum significado seja na realidade jurídica ou na social.
Expostas as tipologias da Legislação simbólica, nota-se que esta
problemática é muito complexa, uma vez que não se limita à questão da
irrelevância social ou da ineficácia normativa nos textos legais, mas sim
a interesses essencialmente políticos e não propriamente jurídicos (NO-
GUEIRA, BATISTA, 2017).
O sistema jurídico brasileiro está atualmente marcado pela cres-
cente judicialização da política como já referido no capítulo anterior, em
especial a política da saúde. Dessa forma, ocorrem mudanças de tensões
do Legislativo para o Judiciário, em especial nas questões da complexi-
dade moderna – direitos fundamentais e judicialização da política – que
parece priorizar mais as teorias da decisão judicial do que a própria lei.
Conforme preceitua Hommerding, no âmbito da decisão judi-
cial, não tem como assumir uma teoria cognitiva de interpretação das
leis, pois o juiz não é a boca da lei, tampouco, superdotado de pode-
res para conseguir descobrir a vontade do legislador (HOMMERDING,
2012). Na contemporaneidade, com a crescente judicialização da política
no Estado de Direito enunciado como neoconstitucional, ocasionou au-
mento na crise do direito, sendo caracterizada por uma crise de cresci-
mento do direito, crescimento este que não foi acompanhado com uma
adequada atenção na elaboração da legislação, pode-se dizer assim, que
a teoria do direito atentou apenas na aplicação do Direito –satisfação dos
cidadãos- não se preocupando com a questão da legislação.
Neste contexto, leciona Hommerding que a característica essen-
cial do Estado moderno é o protagonismo da lei, “que vem seriamente

O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO ... | 99


minado pelo lugar da crise da lei, culminando na perda de sua centrali-
dade, papel que ocupava desde a instauração do Estado liberal, e repre-
sentada em notas de caráter único, originário, supremo e incondicional”
(HOMMERDING, LYRA, 2016).
Como demonstrado, na contemporaneidade parece impera-
tivo atentar para a relação entre o direito e a moral, sob o prisma da
Ciência da Legislação, visto que a Teoria do Direito priorizou até o
momento apenas a aplicação do Direito como se pode citar o Direito
à Saúde, previsto constitucionalmente.
Neste sentido, com a mudança da política de saúde anterior, a
reforma sanitarista, assegurou no texto constitucional a criação de um
sistema universal e público de saúde, porém, a mera previsão não é sufi-
ciente para que todos os cidadãos usufruam dos bens e serviços criados
pela ordem constituinte, se assim formos considerar o tamanho do Brasil
e suas regiões, para tanto vale citar Sarlet:

[...] justamente pelo fato de os direitos sociais prestacionais terem por


objeto — em regra — prestações do Estado diretamente vinculadas
à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de
bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão eco-
nomicamente relevante, ainda que se saiba, como já frisado alhures,
que todos os direitos fundamentais possuem uma dimensão positiva
e, portanto, alguma relevância econômica (SARLET, 2007, p. 304).

O processo de elaboração de leis no Brasil não observa uma


Teria de Legislação quando na elaboração da norma jurídica, isso gera
uma contínua fragilização epistêmica; uma vez que a atual produção le-
gislativa decorre de políticas legislativas não atentando para uma teoria
legislativa, para a Sociologia do Direito e para a Filosofia moral, tornan-
do-se, assim, uma legislação simbólica, de cunho populista e/ou midiáti-
co. (HOMMERDING, 2016).
Dessa forma, abre-se uma lacuna para uma atividade jurisdicional
interpretativa ativa, e “a falta de observância a uma ciência da legislação na
produção da norma gera uma violência simbólica no plano da aplicação do
Direito, caracterizada pelo fato de que os juízes passam a ser considerados “o”
próprio Direito” (HOMMERDING, LIRA, 2016, p. 159).

100 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


Consoante Hommerding, como já referido, no âmbito da deci-
são judicial, não há como assumir uma teoria cognitiva de interpretação
das leis, pois o juiz não é a boca da lei, tampouco, superdotado de pode-
res para conseguir descobrir a vontade do legislador. Assim, apelar pela
vontade do legislador é pressupor uma racionalidade do legislador que
não existe e que serve como uma das técnicas que permitem a dogmática
reformular o direito positivo adequando a determinados ideais (HOM-
MERDING, 2012, p. 28).
Diante do exposto, uma das soluções que a dogmática jurídica
utiliza é a atribuição ao legislador de algumas propriedades de racionali-
dade que estão longe de caracterizar os legisladores da atualidade. Assim,
apresentar-se-á agora, para contribuir com a elaboração das leis e cola-
borar com os desafios já supramencionados, a Teoria da Legislação e seus
níveis de racionalidade.
A Teoria da Legislação é direcionada prioritariamente aos polí-
ticos e técnicos da administração envolvidos diretamente com a questão
da redação de normas, pensamento de Manuel Atienza. A Teoria da Le-
gislação tem um enfoque mais abrangente, uma que protege o processo
legiferante, bem como mantendo contato e relacionamento com outras
disciplinas, assim, explicando o fenômeno da legislação de forma mais
abrangente (HOMMERDING, LIRA, 2016).
Com intuito de elucidar a ideia de racionalidade da legislação –
tema pouco visto na atualidade diante da crise de crescimento do Direito
– Manuel Atienza propõe em sua pesquisa a distinção de 05 níveis de
racionalidade, para que se possa atingir uma unidade e articulação entre
os saberes que se envolvem nos processos de legislação, quais sejam:

Una racionalidad comunictiva o linguística (R1), em cuanto que el


emisor (edictor) debe ser capaz de transmitir con fluidez um men-
sage (la ley) al receptor (el destinatario); una racionalidad jurídi-
co-formal (R2), pues la nueva ley debe insertarse armoniosamente
em um sistema jurídico; una racionalidad pragmática (R3), pues la
conducta de los destinatarios tendría que adecuarse a lo prescrito em
la ley; una racionalidad teleológica (R4), pues la ley tendría que al-
canzar los fines sociales perseguidos; y uma racionalidad ética (R5),

O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO ... | 101


pues las conductas prescritas y los fines de las leyes presuponen va-
lores que tendrían que ser susceptibles de justificación ética (HOM-
MERDING, 2012, p. 36).

Na Racionalidade linguística e comunicativa (R1), o sistema ju-


rídico apresenta-se como um sistema de informação/comunicação, prio-
rizando a questão da linguagem, ou seja, a boa comunicação entre o legis-
lador e o destinatário final, conquistando uma claridade comunicativa.
Nesse nível o que importa é a comunicação entre legislador e destinatário
final; ou seja, ocorre de maneira efetiva quando o texto da lei chega ao
destinatário de forma clara, sem distorções, e que seja possível uma com-
preensão plena. Nesse contexto, para que aconteça o R1 se faz necessária
a utilização de conhecimentos de aspectos linguísticos, de lógica, psicolo-
gia cognitiva objetivando sempre evitar ambiguidades sintáticas, lacunas
e incoerências (HOMMERDING, LIRA, 2016).
No nível de racionalidade jurídico-foral (R2), pretende-se a sis-
tematicidade da atividade legislativa, os objetivos principais nessa fase é a
coerência do ordenamento jurídico como sistema, coerente, sem lacunas
e contradições. No R2, o sistema jurídico deve ser entendido como um
conjunto de normas validamente estabelecidas e estruturadas dentro do
ordenamento jurídico; Hommerding trata que a forma de evitar tal irra-
cionalidade é pela melhora da técnica legislativa e o aprimoramento dos
textos (HOMMERDING, LIRA, 2016).
Já no nível de racionalidade pragmática (R3), o foco é na ade-
quação das condutas dos destinatários ao que é prescrito pela lei, ou seja,
questiona se a lei de fato é observada e proporciona a integração social.
Nesse ínterim, o sistema jurídico é considerado como um conjunto de
normas eficazes e capazes de promover a regulação da sociedade (HOM-
MERDING, LIRA, 2016).
No que concerne o nível de racionalidade teleológica (R4), a
legislação é questionada em relação a suas finalidades, os editores são os
portadores dos interesses sociais, particulares e gerais, os destinatários,
por sua vez, são os particulares, os órgãos administrativos, como tam-

102 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


bém os indivíduos ou grupos não comprometidos com o cumprimento
da norma (HOMMERDING, 2012).
No que diz respeito ao nível de racionalidade ética (R5), a lei
é solicitada no que corresponde aos valores éticos, que legitimam e jus-
tificam os fins da legislação, princípios tais como a dignidade da pessoa
humana, da liberdade, igualdade e justiça. Assim, pode-se referir que a
lei é imoral e ilegítima se ela não seguir os ou violar os princípios éticos e
morais, conforme preceitua Homerdding:

Portanto, pensamos que a racionalidade ética vai ao encontro da ques-


tão relativa ao controle de constitucionalidade das leis, mormente pelo
fato de que a Constituição, na filosofia e na ciência do Direito é recebida
“como a fonte do Direito”, estabelecendo, no discurso jurídico, os valores
éticos e morais mínimos que possibilitam a vida em sociedade e, que, por
isso, devem regrar a elaboração e a aplicação das leis, conferindo, por fim,
a “unidade de valor” ao ordenamento jurídico (HOMMERDING, LIRA,
2016, p.170).

De acordo com Atienza, o sistema utilizado na produção da le-


gislação, é um processo dinâmico em virtude de envolver vários elemen-
tos notáveis, sejam os editores, os destinatários, o sistema jurídico, fina-
lidades e valores que se transpassam nos cinco níveis de racionalidade já
expostos. Notável é, que se utilizados os ensinamentos de Atienza, haverá
um aperfeiçoamento na lei, o que garantirá uma segurança jurídica para
os cidadãos, como também irá evitar o simbolismo da legislação, garan-
tindo assim, a efetividade dos direitos conferidos aos cidadãos, como ci-
tado, o direito fundamental à saúde.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente capítulo teve como escopo uma breve apresentação


do Direito à Saúde, sua evolução na sociedade e sua (in)efetividade diante
das evoluções do mundo globalizado. Nesse sentido, no primeiro tópi-
co, dissertou-se acerca da promoção da dignidade da pessoa humana e a
proteção da saúde pelo Estado, a historicidade, seus principais objetivos,

O DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO ... | 103


como também os principais desafios e sintomas de (in)sustentabilidade
que a sociedade contemporânea está enfrentando, uma vez que, para
garantir os direitos assegurados na Constituição, em especial o direito
à saúde, os cidadãos invocam à prestação jurisdicional irrestritamente,
ocasionando a judicialização da política.
Em uma sociedade que se torna cada vez mais complexa e que
com os processos de evolução aumenta sua multiculturalidade, são ne-
cessárias políticas democráticas que garantam e potencializem os direitos
humanos a nível universal, em especial o direito à saúde ora elencado,
sendo um grande desafio da sociedade contemporânea.
O processo de elaboração de leis no Brasil não observa uma Te-
ria de Legislação quando na elaboração da norma jurídica, o que gera
uma contínua fragilização; uma vez que a atual produção legislativa de-
corre de políticas legislativas não atentando para uma teoria legislativa ou
mesmo para outros campos importantes como a Sociologia do Direito e
a Filosofia moral, isso faz com que a legislação criada, tornando-se uma
legislação simbólica, de cunho populista e ou midiático, sem efetividade.
Essa não observância de uma técnica/teoria de legislação abre
uma lacuna para uma atividade jurisdicional interpretativa ativa, con-
tudo, a falta de observância a uma ciência da legislação na produção da
norma gera uma violência simbólica no plano da aplicação do Direito,
caracterizada pelo fato de que os juízes passam a serem considerados “o”
próprio Direito”.
Diante do contexto ora exposto, parte-se da premissa que se uti-
lizados os ensinamentos de Atienza, haverá um aperfeiçoamento na lei,
o que garantirá uma segurança jurídica para os cidadãos, como também
irá evitar o simbolismo da legislação, garantindo assim, a efetividade dos
direitos conferidos aos cidadãos, como o direito fundamental à saúde.

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108 | Lígia Daiane Fink | Charlise Paula Colet Gimenez


VI
A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: OS
PROCEDIMENTOS DE GASTROPLASTIA E
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Mariana B. D. Eickhoff1
Paola Naiane Sippert2
Alessandra Leves Raichle3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As constantes e inegáveis evoluções da sociedade refletem a ne-


cessidade de novas interpretações do Direito. A inflação legislativa e a
constante busca pela efetivação de direitos postos acabam por resultar em
novas perspectivas para a coletividade, pois não seria razoável que um Es-
tado Democrático de Direito mantivesse a concepção imutável de precei-
tos. Por tal razão, com o passar dos anos, muitos assuntos são reavaliados,
reinterpretados e remodelados a fim de atender as demandas dos cidadãos.
A saúde é um direito que vem sendo tratado de maneira ino-
vadora na atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CF/88), que destinou um capítulo específico para abordar a questão, o
que nenhum outro diploma havia feito até então. A partir do art. 196, a
Carta Magna dispôs a saúde como direito para todos e dever do Estado,
sendo de acesso universal e igualitário, e previu políticas sociais e econô-
micas para a redução de riscos, além da sua promoção, proteção e recu-

1 Acadêmica do Curso de Direito da UNIJUI – marianabertoldo24@hotmail.com


2 Acadêmica do Curso de Direito da UNIJUI – p-sippert@hotmail.com
3 Bacharel em Direito pela UNIJUI – alessandraleves@outlook.com
peração. Dispôs, inclusive, sobre o progressista e ímpar Sistema Único de
Saúde (SUS) e suas competências.
Ocorre que, por vezes, por mais que haja, formalmente, um sis-
tema completo, amplo e universal para dar conta das demandas de saúde,
o Poder Público impõe obstáculos para aquilo que deveria ser eficaz e
prático. Nesse sentido, quando direitos básicos, como a saúde, são nega-
dos em âmbito administrativo, a ultima ratio é acionar o Poder Judiciário
para que, mediante exaustão probatória, dispêndio de recursos financei-
ros e de tempo, seja contemplada a efetivação de direitos básicos do cida-
dão. A saúde é uma necessidade básica da existência do ser humano, e o
Estado se comprometeu a garanti-la, sendo, portanto, um direito subje-
tivo. A análise da questão, contudo, não se restringe a questões relativas
à prevenção ou tratamento de doenças. Com a inflação de diversos direi-
tos, a expansão da sua interpretação e as mutações constantes da socieda-
de, é necessário analisar a saúde em seus diversos aspectos, o que é uma
questão não só de direito básico, mas, também, de bem-estar, presente
em diversos setores do corpo social.
O bem estar de uma sociedade reflete positivamente em diver-
sos setores de um país, não podendo ser tratada apenas reflexa e secunda-
riamente. De nada adianta uma Constituição completa, com diversos di-
reitos consagrados, se a sua efetivação não se faz presente no meio social,
e o bem geral, tão almejado, não é alcançado. Nessa lógica, a questão da
obesidade é um dos novos, grandes e crescentes problemas da população
mundial, e vem sendo tratada secundariamente, recebendo apenas uma
atenção remota.

2. DIREITO À SAÚDE: TRAJETÓRIA DE


RECONHECIMENTO

A população acima do peso cresceu notoriamente, muito em


razão da qualidade de vida das pessoas, da falta de tempo, da má alimen-
tação aliada à falta de atenção e informação para problemas atinentes à
obesidade, o que faz com que o sobrepeso não seja tratado com a devi-
da preocupação. Em razão dos alarmantes dados sobre o crescimento da

110 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


população obesa, que implicam diretamente no bem-estar do indivíduo
no contexto social em que se encontra inserido, tem-se um novo proble-
ma de saúde pública. As pessoas portadoras de obesidade mórbida, por
exemplo, não conseguem realizar diversas atividades simples e rotinei-
ras, banais para qualquer pessoa dentro de padrões aceitáveis de Índice
de Massa Corporal (IMC). Ocorre que o problema, muitas vezes, é visto
como questão estética e puramente superficial, não tendo, por essa razão,
nenhum tipo de atenção especial.
Inegavelmente, na atual sociedade a obesidade acarreta conse-
quências tão graves e irreversíveis que, para determinados casos, não exis-
te outra saída a não ser as intervenções cirúrgicas. É nesse momento que
o direito à saúde encontra barreiras, pois ao não receberem atendimento
adequado para as suas necessidades, e encontrarem omissão estatal rela-
tiva a informações e políticas públicas práticas e efetivas para a questão,
as pessoas acorrem ao sistema público de saúde. Corriqueiramente, pe-
didos administrativos são negados, e como última alternativa, buscam o
Poder Judiciário para a consecução de preceitos. Todo esse caminho de
frustrações, negativas administrativas, gastos, tempo despendido, pode-
ria ser evitado com políticas que iniciem no nascedouro do problema,
tratando-se primeiro a causa, de modo que se evite a consequência. As
pessoas carentes de recursos financeiros (a maioria da população bra-
sileira) estão inseridas nesse contexto, pois não conseguem ter os seus
pedidos deferidos pelo Sistema Único de Saúde, visto que tratamentos
cirúrgicos da obesidade têm valor muito alto. Nesse sentido, a saúde, que
se apresenta como direito subjetivo, não tem efetividade universal quan-
do se fala em tratamentos para a obesidade, sejam eles de diagnóstico ou
prognóstico, o que resulta na péssima qualidade de vida para pessoas que
têm obesidade, pelo fato de existirem poucas alternativas para a resolu-
ção do problema.
A presente pesquisa analisa o atual problema da obesidade
como questão de saúde pública, e busca o entendimento acerca da efetiva
necessidade de o cidadão com sobrepeso ter acesso aos procedimentos
de gastroplastia, seja para conhecer o seu real motivo, as mudanças que
proporciona na vida, o bem-estar e os aspectos práticos da questão. A
saúde é um direito social fundamental, estritamente ligada ao direito à

A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 111


vida e à dignidade do ser humano. Embora desde os primórdios já se
buscasse o seu reconhecimento, foi somente a partir da promulgação da
atual Carta Magna que a saúde foi devidamente reconhecida como um
direito fundamental.
Nas palavras de Germano André Doederlein Schwartz (2001, p.
173), “A saúde aparece como meio de vida, um instrumento a serviço da
vida. Somente esse argumento já seria o bastante para justificar a neces-
sidade da efetivação do direito à saúde.” Janaína Machado Sturza e Maria
Cristina Schneider Lucion (2017) complementam que “a saúde pode ser
considerada como um bem comum a todos, como um direito social funda-
mental necessário à manutenção da vida [...].” Até um passado recente, a
saúde era entendida tão somente como a ausência de doenças, todavia, tal
entendimento já está devidamente ultrapassado, pois a saúde engloba con-
dições de vida que possibilitem o bem-estar, seja físico, mental ou social.
A saúde vai muito além da ausência de doenças, ela se estende
a fatores que oportunizam o bem-estar humano. Nesse sentido, o pre-
âmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS, 1946)
dispõe que:

A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social,


e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.
Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um
dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de
raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.
A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segu-
rança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos
Estados.

Nesse ínterim, a saúde não pode ser discutida apenas sob o


aspecto da funcionalidade do organismo humano, visto que a acepção
envolve muito mais que isso. O bem-estar físico está ligado também ao
bem-estar mental. O corpo e a mente funcionam concomitantemente e,
em consequência, há indubitável importância no atingimento do bem-
-estar social ligado à saúde de maneira ampla. Para Ieda Tatiana Cury
(2005, p. 42), “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental

112 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


e social, e não consiste apenas na ausência de doença de enfermidade.”
Complementa em seguida que: “Gozar do melhor estado de saúde que é
possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser hu-
mano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição
econômica ou social.”
A saúde e o bem-estar humano estão diretamente interligados,
e existem inúmeros impactos causados na saúde do ser humano que atin-
gem diversas esferas da vida, que não aquela individual pensada inicial-
mente. Qualidade de vida, portanto, não diz respeito apenas ao indivíduo
em sua singularidade, mas se refere também a questões de sociabilida-
de, de convivência, de trabalho e de relacionamentos. Quando a saúde
é negativamente atingida, há reflexo nas demais órbitas da vida, seja de
forma direta ou indireta. A obesidade, por exemplo, pode levar a inúme-
ras dificuldades, como de locomoção, para conseguir um emprego ou
para aproveitar os momentos de lazer. Indivíduos acometidos por obe-
sidade mórbida, por exemplo, possuem inúmeros problemas, sejam eles
de saúde, como hipertensão, dificuldades ao andar, levantar, fazer tarefas
simples, ou inerentes à vida em sociedade, como conseguir emprego e
formar uma família.
É importante salientar que a alimentação saudável é um direito
humano fundamental, com previsão legal a partir da Emenda Constitu-
cional nº 64, que incluiu a alimentação entre os direitos sociais fixados no
art. 6º da CF/88. Para Renato Luiz Abreu Machado (2018):

O Direito Humano à alimentação adequada tem duas dimensões:


o direito de estar livre da fome e o direito à alimentação adequada.
A realização dessas duas dimensões é de crucial importância para
a fruição de todos os direitos humanos. Os principais conceitos em-
pregados na definição de Direito Humano à alimentação adequada
são disponibilidade de alimentos, adequação, acessibilidade e esta-
bilidade do acesso a alimentos produzidos e consumidos de forma
soberana, sustentável, digna e emancipatória.

Conforme exemplificado a seguir, a principal causa para a obe-


sidade é o consumo de alimentos não saudáveis aliado à falta de atividade

A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 113


física, o que acarreta inúmeras consequências negativas para a criança.
A atual geração é rodeada de alimentos que não trazem benefício à saú-
de, pelo contrário, acarretam inúmeras doenças, como é o caso da pizza,
hambúrguer, hot dog, batata frita, entre outros.
Os dados alarmantes fizeram com que o país tomasse medidas
para evitar o crescimento desse grave problema, como refere o site eletrô-
nico da ONU Brasil (2018):

Para combater a obesidade e o sobrepeso, o Brasil assumiu compro-


missos consideráveis no âmbito da Década de Ação das Nações Uni-
das para a Nutrição. São eles: deter o crescimento da obesidade na
população adulta por meio de políticas de saúde e segurança alimen-
tar e nutricional; reduzir o consumo regular de refrigerante e suco
artificial em pelo menos 30% na população adulta; e ampliar em, no
mínimo, 17,8% o percentual de adultos que consomem frutas e hor-
taliças regularmente. A expectativa é cumprir essas metas até 2019.

A saúde e o bem-estar, portanto, caminham concomitantemen-


te, e a saúde não pode ser preservada somente quando há doença. Nesse
sentido, o Estado deve promover Políticas Públicas para evitar que al-
guma doença atinja o cidadão, promovendo o bem-estar a todos para
garantir uma melhor qualidade de vida.

3. A SAÚDE COMO UM DIREITO HUMANO


FUNDAMENTAL: A PROTEÇÃO INTERNACIONAL
À SAÚDE E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A saúde é direito fundamental garantido a todos os cidadãos. O


Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU,
1966) dispõe no seu art. 12 que:

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito


de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de
saúde física e mental.

114 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão
adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito
incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar:
a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil,
bem como o desenvolvimento das crianças;
b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e
do meio ambiente;
c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas,
endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra
essas doenças;
d) A criação de condições que assegurem a todos assistência
médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

No entendimento de Naiara Michele Butsch (2018), as organi-


zações internacionais

[...] possuem um papel de extrema importância no cenário mundial.


Essas organizações são formadas por Estados-membros, que juntos
cooperam objetivando um resultado  pré-definido,  possuem  tam-
bém uma estrutura e um regimento interno próprio. Em suma, são
dotadas de personalidade jurídica própria e são autônomas.  Exis-
te hoje, uma organização internacional destinada a amparar a saú-
de,  conhecida como a Organização Mundial da Saúde (OMS) ou
World Health  Organization (WHO), em inglês. Como já sabido,
possui suas origens ligadas ao pós-guerra, quando o cenário avistado
era de fome, miséria, desamparo, medo e doenças. Objetivando evitar
novos conflitos e estabelecer a paz mundial criou-se as Nações Unidas
e esta deu origem ao Comitê de Higiene, este considerado o embrião
da OMS. 

Na seara brasileira, o direito à saúde está contido na Carta


Maior. Anterior ao efetivo reconhecimento desse direito fundamental, o
entendimento de saúde se restringia à “ausência de doença”. E, embo-
ra seja um direito público subjetivo e indispensável, assegurado a todas
as pessoas, independentemente de cor, raça, classe social, foi somente a

A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 115


CF/88 que incluiu expressamente um título específico para o tema. Nesse
sentindo afirma Simone Letícia Severo e Sousa (2015, p. 58):

O Brasil teve sete Constituições. As Constituições brasileiras ante-


riores a 1988 não garantiam o direito à saúde. No máximo, cabia
ao Estado cuidar da assistência pública e da prestação de assistência
médica e hospitalar ao trabalhador filiado ao regime previdenciário.
A garantia do direito à saúde ao cidadão só apareceu 40 anos após a
Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O direito à saúde está expresso na CF/88, no capítulo II destina-


do à Ordem Social. No seu art. 6º estão estabelecidos os direitos sociais
fundamentais, como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância.

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o traba-


lho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição. (BRASIL, 2018, grifo nosso).

Mais especificamente, é a partir do art. 196 que consta o reco-


nhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido
por meio de políticas sociais e econômicas que visam à redução de doen-
ças e de outros problemas, bem como o acesso universal e igualitário às
ações para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 2018).

O artigo supramencionado usa as expressões “redução do risco


de doença”, “promoção”, “proteção” e “recuperação”, cujas expressões são
explicadas por Schwartz (2001, p. 27):

116 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


Quando fala em “recuperação”, a CF/88 está conectada ao que se
convencionou chamar de saúde “curativa”; os termos “redução do
risco de doença” e “proteção” estão claramente ligados à saúde “pre-
ventiva”, e a “promoção” é a qualidade de vida, posteriormente ex-
plicitada pelo art. 225 da Carta Magna.

Não obstante, a Lei n° 8.080/1990, em seu art. 2º, dispõe o se-


guinte: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o
Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.” Ainda
nesse sentindo, o art. 25, § 1º da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos de 1948, também preceitua que:

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si


e a sua família a saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e
direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viu-
vez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em
circunstâncias fora de seu controle. (ONU, 1948).

Claro está, portanto, que a saúde é direito de extrema importân-


cia que deve ser garantido a todo ser humano, sendo função do Estado o
cuidado para bem-estar para com sua população. Os textos relacionados
à saúde, mais precisamente os arts. 196 a 200 da CF/88, revelam a preo-
cupação dos constituintes com a prevenção e o bem-estar dos cidadãos,
dispondo que as políticas sociais devem visar à redução de riscos de pato-
logias, além de idealizar a proteção e recuperação, a fim de evitar doenças
e outros agravos.
Nota-se, portanto, que o direito à saúde está intrinsicamente
ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, explicitamente pre-
visto no art. 1º, inc. III da CF/88, visto que todo ser humano tem o direito
de viver dignamente e, para isso, o Estado deve disponibilizar todos os
meios para tanto. Noutro viés, a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, no seu art. 1º, reconhece a dignidade da pessoa humana: “Todas
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de
razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito
de fraternidade.” (ONU, 1948).

A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 117


A esse respeito se manifesta Sousa (2015, p. 70), ao afirmar que:
“O direito à saúde encontra-se na base do princípio da dignidade da pes-
soa humana, figura entre os direitos fundamentais e está positivado como
direito público subjetivo.” Nesse sentido, é dever do Estado assegurar à
população o acesso à saúde, observando o princípio da dignidade da pes-
soa humana e o próprio direito à vida. Isso significa que todas as pessoas
possuem direito a uma vida digna, de qualidade e igualitária. Não obs-
tante, no contexto dos direitos fundamentais, os princípios supracitados
se relacionam à ideia do mínimo existencial. Suscintamente, explica-se o
mínimo existencial como sendo o mínimo de condições básicas a uma
vida digna. O atual cenário brasileiro revela que há grande aumento nas
demandas judiciais em busca da concretização do direito à saúde, prin-
cipalmente ao que diz respeito às cirurgias bariátricas. Na maioria dos
casos, as pessoas que procuram, via administrativa, a concretização desse
procedimento, recebem a negativa para a sua consecução.
Segundo palavras de Schwartz (2001, p. 159):

[...] se é certo que a saúde é juridicamente protegida, também pode-


-se arriscar, com margem mínima de erro, que uma parcela de culpa
da inefetividade do art. 196, CF/88, encontra-se na falta de vontade
política, na ausência de respeito à Constituição por parte dos Po-
deres Públicos e na ausência de compreensão do porquê existirem
Poderes Constituídos imbuídos da defesa do interesse público – e que
no entanto não cumprem sua função.

Imprescindível tocar no tema judicialização do direito à saúde


sem mencionar o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem por objetivo
garantir o acesso integral, universal e gratuito de todas as pessoas aos
serviços de saúde. Entretanto, apesar da criação desse importante órgão
percebe-se que há um crescente aumento nas demandas do Judiciário,
tendo o Poder Judiciário papel de extrema importância na efetivação do
direito fundamental à saúde.
O acesso universal ao SUS, como explica a CF/88, faz justamen-
te referência ao fato de ser um programa que alcança a população em
geral, sem discriminações, atendendo a prerrogativa de que a saúde é um
118 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle
direito social e direito público subjetivo do cidadão. A esse respeito se
manifestam Figueiredo Neto et al. (2010):

A instituição do SUS, a partir da Constituição Federal de 1988, re-


presenta um marco histórico das políticas de saúde em nosso país,
pois na nova constituição, a atenção à saúde passa a ser assegurada
legalmente como direito fundamental de cidadania, cabendo ao Es-
tado a obrigação de provê-la a todos os cidadãos brasileiros e estran-
geiros que vivem no Brasil. E desde a sua instituição, quatro pontos
sobre a gestão têm sido apontados como fundamentais: a descentra-
lização, o financiamento, o controle social e a gestão do trabalho.
O direito à saúde, afirmado na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos de 1948, está claro na Constituição Federal de 1988 que define a
Saúde como direito de todos e dever do Estado, indicando os princípios
e diretrizes legais do Sistema Único de Saúde – SUS.

Segundo o art. 198 da CF/88, o SUS se organiza de acordo com


determinadas diretrizes, quais sejam:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede


regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, orga-
nizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preven-
tivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade (BRASIL, 2018).

Constata-se, portanto, a importância dada pela CF/88 à prote-


ção da saúde, prezando pela descentralização do atendimento para que
seja possível alcançar todas as regiões, mediante um atendimento integral
e prioritário para a prevenção, bem como valorizando a participação da
comunidade. No contexto de tais diretrizes, é notória a questão do aten-
dimento integral à saúde, que é assim entendida pela Fiocruz (2018):

A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 119


Pela perspectiva dos usuários, a ação integral em saúde tem sido
frequentemente associada ao tratamento respeitoso, digno, com qua-
lidade e acolhimento. Por isso, este valor paira como uma orientação
geral nos serviços de saúde, já que o Estado tem o dever de oferecer
um “atendimento integral, com prioridade para as atividades pre-
ventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”, como oficializou a
Constituição Federal de 1988.

Contextualizando toda a normativa da CF/88 referente à ques-


tão da saúde, observa-se que o legislador priorizou o tratamento da saúde
ao mencionar que a questão tem tratamento integral e preventivo.
O tratamento, tanto para prevenir a obesidade quanto para re-
verter casos, gira, principalmente, em torno de uma mudança de estilo
de vida, com a inclusão de uma alimentação saudável, exercícios físicos
e uma vida social equilibrada. Por vezes, contudo, mudar o estilo de vida
fica muito mais difícil, haja vista a demanda de tempo e trabalho que a
sociedade atual exige. Nesse sentido afirma Suzana Dias Freire (2018):

Não há outra forma para falar em prevenção à obesidade nos dias de


hoje, senão através de uma reflexão sobre alimentação saudável e prática
de atividades físicas. A modernidade incita ao sedentarismo. As facili-
dades tecnológicas trazem consigo a tendência ao mínimo esforço. Um
exemplo disso é a variedade de atrativos que estimulam as crianças a fi-
carem paradas em frente a videogames, computadores e DVDs. De outro
lado, o estresse e o acúmulo de atividades levam à inevitável sensação de
falta de tempo. Agendas assoberbadas e a necessidade de trabalhar, pro-
duzir e render cada vez mais fazem parte da rotina do dia a dia. Assim,
tanto a alimentação adequada, quanto os exercícios físicos são facilmen-
te deixados de lado.

É preciso, portanto, tratar a obesidade como questão de saú-


de pública e entender que ela envolve muitos setores, como alimenta-
ção, exercícios, atendimentos psicológicos, conversas e discussões sobre
o tema. Tudo isso para que seja possível perceber a obesidade como uma
doença e não apenas uma questão estética, superficial e alvo de precon-
ceitos, bem como encontrar meios que possibilitem não apenas a sua
cura mas um tratamento preventivo.

120 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


Como dito a obesidade é uma grave doença que atinge signifi-
cativa parcela da população brasileira. Devido ao excesso de peso e aos
diversos problemas aliados à patologia, muitas pessoas procuram meios
de cura. Dentre os tratamentos destacam-se os procedimentos de gastro-
plastia que, na visão de Mariana de Oliveira Silva (2018), constituem

[...] um meio de alcançar o objetivo de redução do peso, e depende


do empenho e determinação do paciente e da equipe de saúde, pois
a rotina diária desse cliente passará a contar com uma nova disci-
plina de autocontrole, cumprimento das orientações passadas pelos
profissionais, adequação a um novo estilo de vida e principalmen-
te, o desejo de se manter saudável. Cabe aos enfermeiros orientar e
acompanhar esse paciente para que o sucesso terapêutico seja real.

A intervenção cirúrgica é indicada para pessoas que possuem


índice elevado de gordura, e que devido ao excesso de peso podem de-
sencadear significativas patologias, exemplificadas na Figura 4. Segundo
Arthur Frazão (2018):

A cirurgia bariátrica pode ser feita em casos de obesidade mórbida ou


quando o IMC é maior que 35 kg/m2 e esteja presente alguma das seguin-
tes doenças, segundo o Conselho Federal de Medicina: [...]. No entanto,
apenas pacientes que não obtiveram resultados com tratamento clínico e
nutricional por pelo menos dois anos podem fazer a cirurgia.

Diferente do que na maioria das vezes se acredita, o procedi-


mento de gastroplastia é recomendado quando há casos de extremo des-
caso com a saúde, que pode desencadear outras patologias, como exem-
plifica a figura a seguir:

A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 121


Figura 1. Indicações da cirurgia bariátrica

Fonte: Frazão (2018).

4. DIREITO À SAÚDE E AO BEM-ESTAR: A


JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E
OS PROCEDIMENTOS DE GASTROPLASTIA

A cirurgia bariátrica, portanto, vai além da questão estética. Para


Chris Bertelli (2018), especialistas não cansam de reforçar que o procedi-
mento é um tratamento cirúrgico para uma doença grave – a obesidade.
A cirurgia bariátrica, contudo, não deve ser encarada pelo paciente como
uma forma rápida de se livrar dos quilos a mais sem muito esforço, pois
as questões complexas atinentes à cirurgia bariátrica não se concentram
apenas na dificuldade de deferimento pelo SUS, mas também em todo
o procedimento concreto, que demanda dedicação dos pacientes, bem
como o preenchimento de diversos requisitos. Assim sendo,

Para fazer uma cirurgia bariátrica é preciso haver identificação de


obesidade Grau III com Índice de Massa Corpórea (IMC) maior
que 40 kg/m2, que seja resistente ao tratamento convencional há

122 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


pelo menos dois anos contínuos de dietoterapia, psicoterapia, me-
dicamentoso e exercícios físicos, ou IMC de 35 kg/m2 associado a
doenças crônicas, como diabetes mellitus tipo 2, dislipidemias, hi-
pertensão arterial, ausência de patologias endócrinas, transtornos
mentais, entre outros, também associados à redução na expectativa
de vida. Ao cadastrar o paciente deve-se ter um médico-cirurgião
responsável com especialização em cirurgia bariátrica, reconhecido
pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e com experiência
profissional na área. (JORGE FILHO apud GÓES et al., 2012).

Para obter resultados duradouros é fundamental evitar os prin-


cipais motivos para a obesidade, que na sociedade atual são decorren-
tes da rotina com refeições rápidas, nada saudáveis, somados à falta de
exercícios físicos. A obesidade é originária de uma sociedade falida na
obtenção do bem-estar, e de um Estado que fracassou na consecução de
uma vida digna para as pessoas. Tudo isso acaba por tornar a obesidade
um grave problema de saúde. Como já exposto, em que pese o legislador
regulamentar quase que inteiramente a matéria atinente à saúde, o Poder
Público, por vezes, não atua na sua consecução, negando pedidos sob
diversas alegações, sobretudo de carência ou ausência de recursos. Nes-
te contexto situam-se as pessoas que portam algum tipo de obesidade e
têm o seu pedido de gastroplastia negado pelo SUS, que pré-conceitua as
pessoas acima da faixa do peso sob a ótica estritamente estética, quando
na verdade se trata da busca pelo bem-estar. O tema já é tratado como o
maior problema de saúde pública em esfera mundial.
A obesidade é uma doença crônica que pode ocasionar inúme-
ras outras doenças, acarretando significativas consequências, até mesmo
a morte, tendo em vista os agravos decorrentes de uma obesidade mór-
bida. Para reverter quadros sérios de obesidade existem as cirurgias bariá-
tricas, assim conhecidas popularmente. O procedimento de gastroplastia,
porém, é extremamente oneroso para a maioria da população brasileira,
que já tem dificuldades para manter as suas responsabilidades com um sa-
lário mínimo, quanto mais arcar com tais gastos. Por esse motivo há grande
procura pelo procedimento por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 123


Como já observado ao longo deste estudo, a busca adminis-
trativa para a consecução da cirurgia para reverter quadros de obe-
sidade não é simples e, na maioria das vezes, acaba sendo indeferida
sem qualquer fundamentação adequada para a negativa. Consequen-
temente, não há outra solução para a questão a não ser tornar a de-
manda litigiosa mediante a busca do Poder Judiciário para resolver a
questão. Somente analisando caso a caso será provada a real neces-
sidade de deferimento das cirurgias de gastroplastia custeadas pelo
SUS. Tendo em vista as fundamentações insuficientes ou, por vezes,
inexistentes para a negativa de pedidos de cirurgia bariátrica, o Poder
Judiciário acaba por ser a única saída para resolver o problema daque-
les que estão em estado de urgência para a realização da cirurgia.
Os procedimentos de gastroplastia são destinados àqueles que
possuem elevado grau de obesidade e não conseguem emagrecer pelos
métodos convencionais. É responsabilidade da União, Estados e Municí-
pios garantir direito fundamental à saúde do cidadão, sendo que os casos
de obesidade não podem ser vistos como mero problema estético, e sim
como grave problema de saúde pública. É inevitável que o Poder Judici-
ário seja acionado, haja vista as negativas administrativas e a ausência de
preparo do Estado para lidar com a questão da obesidade como problema
de saúde pública. Isso resulta, porém, na multiplicação de demandas que
sobrecarregam o Judiciário, o que poderia ser evitado com políticas e pro-
gramas que visem a educação e promoção de uma alimentação saudável.
As demandas que têm como objeto o direito à saúde são cada
vez mais crescentes, e a sua judicialização é tema cada vez mais presente
na vida prática. O que a sociedade necessita é, de modo geral, a forma
mais rápida e prática de efetivação dos seus direitos, que já lhe são garan-
tidos formalmente, de modo que não seja necessário usar desenfreada-
mente o Estado-Juiz para garanti-los.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A saúde, em que pese estar garantida pela Carta Maior, mui-


tas vezes não tem aplicabilidade na vida dos brasileiros, especialmente

124 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


para os carentes de recursos financeiros, que são a maioria neste país. Os
noticiários revelam diariamente um sistema de saúde público sobrecar-
regado, com falta de leitos, de profissionais, além de diversos outros pro-
blemas que impedem a concretização do direito à saúde pelo Poder Pú-
blico. O problema acaba se agravando mediante as mutações pelas quais
a sociedade vem passando. Novos métodos, novas teorias, novos direitos
e, consequentemente, novas demandas revelam a necessidade de um sis-
tema hábil para compreender a importância de cada questão que afeta a
vida dos brasileiros. A questão da obesidade vem tomando abrangência
singular mediante a comprovação do aumento do número de casos de
pessoas que estão muito acima do peso ou que atingiram um diagnóstico
de obesidade mórbida.
Com a falta de políticas públicas preventivas e educativas, as
cirurgias bariátricas se apresentam como uma solução para pessoas que
já não têm a capacidade de enfrentar o problema apenas com dietas e
exercícios físicos, necessitando, portanto, de intervenção cirúrgica. Ou
seja, para que um cidadão obeso viva com dignidade ele precisa de uma
nova demanda social, que é o deferimento da intervenção cirúrgica, com
risco de morte, para ter uma boa qualidade de vida. Essas pessoas, muitas
vezes, são carentes de recursos, e recorrem ao Sistema Único de Saúde
que reiteradamente nega tais pedidos.
A solução carece de agilidade e não necessita sobrecarregar o
Poder Judiciário, contudo, não é isso que se observa no cenário brasileiro.
Quando não há concretização de direitos de plano, aciona-se a adminis-
tração pública para ver o direito assegurado por um simples procedimen-
to. Havendo improcedência na via administrativa, não há outra saída a
não ser acionar o Poder Judiciário, fazendo nascer, assim, uma demanda
que requer recursos financeiros, tempo e paciência para que, talvez, direi-
tos sejam finalmente concretizados.
Nota-se, portanto, a atual imprescindibilidade no tratamento da
questão da obesidade, considerada um problema de saúde pública, visto
ser um problema desenfreadamente crescente. Nesse sentido, para que
não sejam necessárias cirurgias bariátricas, que requerem diversos cuida-
dos e detêm inúmeros riscos de vida, notória é a urgência de criação de
políticas públicas que tratem o problema na sua raiz, evitando-se, assim,
A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 125
todas as adversidades advindas de um descaso para com as pessoas acima
do peso. A criação de programas educacionais e preventivos, e o devido
estudo dos problemas sociais atinentes à origem dessa questão, melhora-
ria a qualidade de vida das pessoas e, consequentemente, o Judiciário não
precisaria ser acionado.

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126 | Mariana B. D. Eickhoff | Paola Naiane Sippert | Alessandra Leves Raichle


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A NECESSIDADE DE BEM-ESTAR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ... | 127


VII
A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE (IN)VIABILIZA A
CONCRETIZAÇÃO MATERIAL DO DIREITO
À SAUDE(?): UM DEBATE NECESSÁRIO

Ariel Cargnelutti Goi1


Bernardo Gheller Heidemann2
Eloísa Nair de Andrade Argerich3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A temática ora proposta parte das reflexões surgidas no traba-


lho de conclusão de curso de Direito da Universidade Regional do No-
roeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), realizado em 2017. Seu
objetivo, inicialmente, é demonstrar que o direito à saúde tem recorren-
temente ocupado espaço no debate acadêmico, nas instituições jurídicas
e na sociedade em geral, preponderantemente em razão dos pedidos de
liberação de medicamentos via judicial e a lista elaborada pelo Sistema
Único de Saúde (SUS).

1 Acadêmico do 9º semestre do curso de Direito da Universidade Regional do No-


roeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí); estagiário do Ministério Público
da Comarca de Ijuí. E-mail: ariel.cargnelutti.goi@gmail.com.
2 Bacharel em Direito pela Unijuí; pós-graduado em Direito Público pela Fundação
Escola Superior do Ministério Público (FMP); mestrando em Direito pela Univer-
sidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), linha de pesqui-
sa: Multiculturalismo. E-mail: berh123@hotmail.com.
3 Mestre, docente do curso de Direito da Unijuí, titular das disciplinas de Direito
Administrativo e Direito Constitucional; orientadora da pesquisa desenvolvida no
Trabalho de Conclusão de Curso. E-mail: argerich@unijui.edu.br.
Isto posto, aborda-se de forma breve, o conceito de Sistema Úni-
co de Saúde (SUS), bem como se refere os dispositivos legais que regulam
a forma como este deve funcionar, a fim de possibilitar o efetivo acesso ao
direito fundamental à saúde, garantido constitucionalmente.
Evidencia-se, portanto, a relevância indiscutível da lista de medi-
camentos do Sistema Único de Saúde para a efetivação do direito à saúde
daqueles que se encontram em condição de hipossuficiência em razão do
alto custo dos fármacos indicados para determinado tratamento médico.
Apresenta-se, também, uma reflexão sobre a lista de medica-
mentos do Ministério da Saúde, conhecida como “lista do SUS”, a qual
tem sido constante objeto de discussão pelo Poder Judiciário, a fim de
entender se as políticas públicas desenvolvidas pelo Poder Público no
âmbito da federação poderiam (in)viabilizar a concretização material do
direito à saúde.

2. O DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO


FEDERAL DE 1988

O direito fundamental à saúde está positivado no ordenamento


jurídico brasileiro como um direito fundamental e social, expresso no
texto constitucional, mais especificamente no rol dos direitos sociais,
arts. 6º, 196 a 200, os quais preceituam que a saúde é um direito de todos
e dever do Estado, e regulamentam a forma como o Estado deve efetivar
e fiscalizar o acesso da população a esse direito.
O art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 (CF/88) estabelece a educação, saúde, alimentação, trabalho, mora-
dia, segurança, proteção à maternidade e à infância, dentre outros, como
direitos sociais e fundamentais. Dentre todos esses direitos sociais e fun-
damentais, porém, o direito à saúde é visto como um dos mais relevantes
no âmbito social, visto que está inteiramente relacionado com o direito à
vida e à dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, Mariana Filchtiner Figueiredo (2007, pp. 63-64)
ressalta a importância dos direitos sociais, elucidando o conteúdo expres-
so no art. 6º da CF/88:

130 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
Um dos méritos da Constituição Federal de 1988 foi ter acolhido
expressamente os direitos sociais, a esses dedicando todo o artigo 6º,
ademais de outros dispositivos dispersos no texto e, com isso, positi-
vando-os como autênticos direitos fundamentais. Os direitos sociais
respondem pelo fornecimento dos recursos fáticos indispensáveis ao
efetivo exercício das liberdades e dos demais direitos fundamentais,
buscando assegurar a liberdade efetiva pela igualdade material. Os
direitos sociais são tão fundamentais quanto os demais “direitos e
garantias” reconhecidos constitucionalmente.

Tendo em vista a importância da garantia de uma saúde pública


efetiva por parte do Estado, o constituinte tratou o direito fundamental à
saúde de forma prioritária, reservando-lhe um capítulo próprio do texto
constitucional, qual seja, o Capítulo II, Seção II, composto por quatro
artigos específicos sobre o tema. Tais artigos expressam não só o direito,
mas a forma como ele deve ser assegurado pelo Poder Público, demons-
trando o efetivo cuidado que deve haver com esse bem jurídico.
O art. 196 da Carta Magna dispõe que a saúde é direito de todos e
dever do Estado, devendo ser garantida por meio de políticas sociais e eco-
nômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos, bem
como o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promo-
ção, proteção e recuperação por parte do Poder Público (BRASIL, 1988).
Com relação ao dispositivo supramencionado, Germano
Schwartz (2001, p. 97) dispõe:

[...] o dever do Estado em relação à saúde deve ser garantido me-


diante políticas sociais e econômicas. Aqui, estamos diante de um
estado interventor e, também, diante da primazia da ação estatal
positiva na defesa do direito à saúde – e jamais da inércia – e, co-
nectando-se, essencialmente, à ideia de um direito social da saúde
(como efetivamente também o é) [...].

Dentre os dispositivos constitucionais que tratam da regula-


mentação do direito constitucional à saúde, o art. 197 CF/88 prevê a re-
levância pública das ações e serviços de saúde, elucidando que cabe ao

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 131


poder público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle.
Essa fiscalização, segundo Schwartz (2001, pp. 99-100), é uma das fun-
ções do Ministério Público nos termos das atribuições previstas no art.
129, II, da CF/88, mostrando a relevância que assume no contexto das
políticas públicas:

[...] as ações e serviços de saúde são de relevância pública. Essa afir-


mação torna-se função institucional do Ministério Público a prote-
ção do direito à saúde, forte no art. 129, II, da CF/88.
[...]
Essas ações e serviços públicos relativos à saúde, que são de relevân-
cia pública, vinculam o Poder Público, tornando dever do mesmo
dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle (art. 197
da CF/88).
É uma questão de competência em duplo sentido. Por um lado, há
que verificar quem pode legislar sobre saúde, bem como quais são os
órgãos que devem “cuidar” dela.

A CF/88, em seu art. 198, estabelece que as ações e serviços pú-


blicos relacionados à garantia do acesso ao direito à saúde constituem o
Sistema Único de Saúde, o qual, segundo o texto constitucional, é com-
posto por três diretrizes, quais sejam: (1) a descentralização, com direção
única em cada esfera de governo; (2) o atendimento integral, com prio-
ridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assisten-
ciais; e (3) a participação da comunidade.
Schwartz (2001, p. 102) ainda menciona que:

[...] ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regiona-


lizada e hierarquizada, constituindo-se em um sistema único, de
acordo com os princípios de integralidade, igualdade e participação
comunitária, que são vinculativos tanto aos serviços executados di-
retamente pela Administração Pública, como àqueles efetuados atra-
vés de contratações, convênios, terceiros ou particulares.
Estabelece-se, pois, o SUS – o Sistema único de Saúde. Em outras

132 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
palavras, o art. 198 da CF/88 diz que: há a rede pública de saúde e a
rede privada (por contratação ou convenio). Ambas as redes formam
uma rede regional (para que sejam respeitadas as particularidades
locais) e hierárquica, que devem estrita observância aos princípios
do SUS (integralidade, igualdade e participação da comunidade).
Daí surge um Sistema Único de Saúde.

Com relação à participação da iniciativa privada nas questões


do direito fundamental à saúde, Schwartz (2001, pp. 113-114) dispõe que:

O art. 199 da Constituição do Brasil fixa a livre participação da ini-


ciativa privada no SUS. Todavia, o seu § 1º estabelece que a mesma
será feita de modo complementar, o que significa que dita participa-
ção somente ocorrerá quando o sistema não tiver os meios (físicos,
humanos, financeiros...) para suprir as necessidades sanitárias da
população [...].

Considerando o conjunto de ações que criaram o Sistema Único


de Saúde (SUS), surgiu a necessidade de sua regulamentação, razão pela
qual o constituinte criou o art. 200 da CF/88, que trata das competên-
cias do sistema supramencionado, além de outras atribuições nos termos
constitucionais e das legislações infraconstitucionais.
Schwartz (2001, p. 117), ao dispor acerca das competências cons-
titucionais do Sistema Único de Saúde, afirma que elas estão dispostas no
art. 200 da CF/88, ressalvando outras existentes em diplomas legais infra-
constitucionais, especialmente as dispostas nas Lei nº 8.080/90 e 8.142/90.
Com base nos dispositivos legais ora citados, José Afonso da
Silva (2011, p. 185) entende o direito à saúde como um direito funda-
mental social, que corresponde “[...] ao poder de exigir do Estado o
provimento de condições materiais, serviços e instituições capazes de
suprir bens e interesses pertinentes à situação econômica, social e cul-
tural dos indivíduos.”
Considerando que a saúde é um direito positivado no ordena-
mento jurídico brasileiro, surge a necessidade de criação de uma política
pública efetiva pelo Poder Público, a fim de garantir à população o acesso
ao direito assegurado no texto constitucional.

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 133


Diante dessa necessidade, “[...] os legisladores brasileiros ins-
tituíram o sistema organizacional de saúde do Brasil – o Sistema Único
de Saúde (SUS), que possui características pertencentes tanto ao mode-
lo americano quanto ao francês, de quem possui maior influência [...].”
(SCHWARTZ, 2004, p. 100).
A fim de possibilitar à população o acesso ao direito fundamen-
tal garantido pelo constituinte, o Estado criou a política pública deno-
minada Sistema Universal de Saúde (SUS), órgão público especializado
responsável pelo fornecimento de medicamentos, suplementos, insumos,
consultas médicas e procedimentos, custeados pelo Poder Público e en-
tregues à população. O SUS é regulamentado pela Lei nº 8.080/90, a qual
dispõe acerca das condições, organizações e funcionamento do órgão
(BRASIL, 1990).
Nesse sentido, dispõe Figueiredo (2007, p. 97):

O SUS é um sistema público nacional, baseado no princípio da uni-


versalidade, a indicar que a assistência à saúde deve atender a toda
população. Tem como diretrizes organizativas a descentralização,
como comando único em cada esfera governamental; a integralidade
do atendimento e a participação da comunidade. A Lei nº 8.080/90
dispôs sobre as condições, a organização das ações e o funciona-
mento dos serviços de saúde, tendentes à realização da promoção,
proteção e recuperação da saúde. Esse diploma prescreve normas
sobre: (a) organização, direção e gestão do SUS; (b) competências e
atribuições de cada uma das três esferas federais; (c) funcionamento
e participação complementar dos serviços privados de assistência à
saúde; (d) política de recursos humanos a ser adotada pelo SUS; (e)
recursos financeiros incluindo a respectiva gestão, planejamento e
orçamentos desses.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é o resultado das propostas da


“Reforma Sanitária” defendidas por movimentos sociais e apresentadas
durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1986/1987 em demons-
tração da “inadequação do sistema de saúde então vigente, inapto para
lidar com problemas sanitários diversos (quadro de doenças de todos os

134 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
tipos, baixa cobertura assistencial da população, ausência de critérios e de
transparência dos gastos públicos, etc. [...].” (FIGUEIREDO, 2007, p. 96).
Ressalta ainda a referida autora que:

[...] As ações de promoção da saúde de prevenção de doenças eram


desenvolvidas quase que exclusivamente pelo Ministério da Saúde. A
assistência médico-hospitalar era prestada pelo Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS – autarquia vin-
culada ao Ministério da Previdência e Assistência Social. Entretanto,
o sistema não era universal, pois alcançava somente os trabalhadores
da economia formal, segurados do Instituto Nacional de Previdência
Social – INPS – e dependentes, enquanto o restante da população ti-
nha “um acesso bastante limitado à assistência à saúde” – normal-
mente restrito às ações dos poucos hospitais públicos e às atividades fi-
lantrópicas de determinadas entidades assistenciais. (FIGUEIREDO,
2007, p. 96).

O SUS é a maior política pública existente no país no que tan-


ge ao direito à saúde. Regulamentado pela Lei n° 8.080/90, sua função
principal é promover o acesso universal do direito supramencionado por
meio de campanhas e atendimentos.
A Lei Orgânica do SUS, em suas disposições gerais, reafirma a
ideia de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, e deve garantir
o acesso a esse direito por meio de políticas públicas voltadas ao acesso
universal e igualitário. Descreve, ainda, as determinantes da saúde, quais
sejam, alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, traba-
lho, renda, educação, atividade física, transporte, lazer e acesso aos bens
e serviços essenciais.
Dentre os objetivos do SUS, previstos pela Lei n° 8.080/90, po-
de-se destacar: (a) a identificação de determinantes; (b) a formulação de
políticas assistenciais; e (c) a assistência integral e de prevenção. O SUS
é responsável por atuar nas questões relativas a: (1) vigilância; (2) assis-
tência integral; (3) colaboração na proteção do meio ambiente; (4) parti-
cipação em ações relacionadas ao saneamento básico; (5) ordenamento
na formação de recursos humanos; (6) criação de políticas de medica-

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 135


mentos, equipamentos e materiais sanitários; (7) fiscalização de serviços
e produtos, bem como substâncias e alimentos; (8) desenvolvimento tec-
nológico e políticas voltadas à doação de sangue e bancos de sangue.
Com relação aos princípios e diretrizes do SUS, a Lei nº 8.080/90,
em seu art. 7º, menciona os seguintes: (a) universalidade; (b) equidade;
(c) controle social; (d) preservação da autonomia; (e) direito à informa-
ção; (f) priorização epidemiológica; (g) participação da comunidade; (h)
descentralização; (i) intersetorialidade; (j) conjugação de recursos; (k)
resolutividade; e (l) organização dos serviços públicos, evitando a dupli-
cidade de meios para os mesmos fins.
Nesse mesmo rumo, Schwartz (2004, p. 104) afirma que:

O artigo 7º da Lei 8.080/90 corrobora a imposição constitucio-


nal de sistema de saúde único, ratificando o preceito constitucional
quanto ao cumprimento das diretrizes e fixando os princípios que
deverão ser seguidos no desenvolvimento das ações e dos serviços
de saúde pública e os serviços privados contratados ou conveniados.

A Lei Orgânica do SUS também é responsável por ditar a for-


ma como o referido sistema deve organizar a sua direção e gestão, o que
consta nos arts 8º até o 14, os quais especificam a forma como se dá a
organização do sistema. Esta deve ser regionalizada e hierarquizada, en-
quanto a direção do SUS deverá ser única e exercida pelo Ministério da
Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais. A lei também prevê acerca da
possibilidade de criação de consórcios intermunicipais para promover as
políticas de assistência que compreendem a função do SUS, bem como a
criação de comissões intersetoriais para tratar de assuntos que extrapo-
lam a esfera do sistema.
Com relação à regulamentação da participação da iniciativa
privada junto ao SUS, Schwartz (2004, pp. 107-108) refere que:

O art. 199 da Constituição do Brasil fixa a livre participação da


iniciativa privada no SUS, repetida pelos artigos 4º, § 2º, e 21, da
Lei 8.080/90. Todavia, seu § 1º estabelece que ela será feita de modo

136 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
complementar, o que significa que dita participação somente ocorre-
rá quando o sistema não tiver os meios (físicos, humanos, financei-
ros...) para suprir as necessidades sanitárias da população (art. 24,
da Lei 8.080/90).

A política de recursos humanos do SUS é responsável por or-


ganizar os cargos e funções de chefias, bem como regulamentar a forma
como são exercidos os referidos cargos e as atividades inerentes a cada
um deles. Tais regulamentações estão previstas no Título IV da Lei n°
8.080/90, e compreendem os arts. 27 a 30 da legislação, os quais não são
objeto deste estudo.
Como principal agente de saúde do país e responsável pela ga-
rantia do acesso ao direito fundamental à saúde, o SUS precisou se orga-
nizar no âmbito administrativo, criando portarias e normas internas de
funcionamento. Dentre elas estão os critérios de funcionamento da pres-
tação do serviço sanitário à população, a definição dos serviços prestados
e a forma como se dá o acesso ao SUS. Para tanto, o Ministério da Saúde
criou o documento conhecido como lista do SUS, a qual prevê todos os
medicamentos, suplementos, procedimentos e insumos fornecidos pelo
Poder Público à população. A lista do SUS está disponível junto ao site do
Ministério da Saúde (BRASIL, 2014).
Os medicamentos que integram a lista de fármacos disponibili-
zados pelo SUS foram definidos pelos profissionais médicos estatais com
base em pesquisas científicas que garantem a eficácia dos fármacos, bem
como o custo-benefício de cada um deles a fim de não onerar os cofres
públicos estatais. A última atualização considerável da lista do SUS foi
realizada no ano de 2014, quando passou a integrar mais de 800 fármacos
com dispensação gratuita à população, por meio das chamadas Farmá-
cias Públicas.
Apesar da existência do SUS e o fato de que o direito funda-
mental à saúde está expresso no texto constitucional supramencionado,
sabe-se que existem inúmeros fatores que dificultam o seu acesso, tais
como a demora no atendimento por parte do órgão público (SUS), a falta

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 137


de orçamento, a expressiva demanda e o baixo número de profissionais
e locais de atendimento. Dessa forma, o direito à saúde acabou sendo
levado até o Judiciário, que assumiu um importante papel na garantia do
acesso a esse direito.

3. A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: A LISTA


DE MEDICAMENTOS DO SUS (IN) VIABILIZA A
SUA EFETIVAÇÃO(?) - UM DEBATE NECESSÁRIO

O direito à saúde é garantido pela CF/88, tanto no seu art. 6º


quanto no art. 196, os quais preceituam que o acesso é universal e igua-
litário, sendo dever do Estado a garantia e o acesso à saúde pública de
boa qualidade por meio de políticas públicas. O SUS é a política pública
nacional responsável pela garantia e acesso ao direito fundamental à saú-
de, efetivado pela CF/88. As políticas públicas e sociais, porém, não têm
sido suficientes para assegurar a igualdade de tratamento para todos os
cidadãos no que tange ao direito fundamental à saúde.
Considerando que uma das principais funções do SUS é a dis-
pensação de medicamentos à população, surgiu a necessidade de orga-
nizar a forma de realizar essa função, bem como definir os fármacos a
serem dispensados. A partir dessa necessidade de organização nasceu a
lista de Fármacos do SUS.
A lista do SUS é um documento elaborado em parceria com
o Ministério da Saúde e as Secretaria Estaduais e Municipais de Saúde,
a qual contempla todos os fármacos, insumos, procedimentos e suple-
mentos disponibilizados à população, de forma gratuita, por meio das
chamadas Farmácias Públicas.
Os medicamentos/tratamentos que compõem a lista do SUS são
aqueles que possuem registro na Anvisa, os quais foram clinicamente tes-
tados a fim de comprovar melhor eficácia e menor custo de mercado, sem
onerar os cofres públicos estatais, responsáveis pela aquisição.
Na efetivação da prestação sanitária observa-se uma procura
significativa da população pelos órgãos de acesso à Justiça, quais sejam,
Defensoria Pública e Ministério Público, que garantem o exercício desse

138 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
direito. As decisões judiciais proferidas pelo Poder Judiciário represen-
tam a extensão do que é possível conseguir em juízo em relação à efeti-
vidade do direito social à saúde. Em princípio, as decisões judiciais têm
sido benéficas ao acesso à Justiça, notadamente quanto ao tratamento
aos hipossuficientes, fornecimento de medicamentos, insumos, proce-
dimentos, etc.
Em suas teses de defesa, o Poder Público sustenta que o direito
à saúde é garantido pelo Estado, porém, este direito está condicionado
aos fármacos, insumos e procedimentos contemplados pela lista do SUS.
Assim, com o aumento significativo da demanda envolvendo questões
de direito à saúde, bem como em razão da crise econômica que assola os
cofres públicos estatais em níveis nacionais, o Poder Judiciário começou
a questionar se apenas os fármacos presentes na lista do SUS seriam de
direito da população.
A partir disso, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Jus-
tiça (STJ) entendeu que o tema é repetitivo, razão pela qual formulou
o Recurso Especial n° 1.657.156 para julgamento pelo Sistema dos Re-
cursos Repetitivos. Assim, a questão submetida a julgamento trata da
“obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não
contemplados na Portaria 2.982/2009 do Ministério da Saúde (Programa
de Medicamentos Excepcionais).” O tema foi cadastrado no Sistema dos
Repetitivos sob o n° 106, e julgado no dia 25/04/2017 pelo STJ.
Debate-se, de maneira pontual, a forma de dispensa dos tra-
tamentos contemplados na lista do SUS, com enfoque principal para a
dispensa de medicamentos, visto que estes são os protagonistas da dis-
cussão, tanto na via administrativa, ou seja, diretamente nas farmácias
públicas, quanto na via judicial (ajuizamento de ação de fornecimento de
medicamento), abordando a celeridade e eficácia do serviço público no
que tange à prestação do direito à saúde.
O acesso a medicamentos é um direito de todos os cidadãos
brasileiros e pode se dar de duas formas: na via judicial ou na via admi-
nistrativa. A via administrativa trata das chamadas farmácias públicas,
postos de saúde, Secretarias Municipais ou Estaduais de Saúde, nos quais
há dispensação de medicamentos e/ou insumos com a simples compro-

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 139


vação da necessidade de seu uso. Dentre essas duas formas de acesso, a
via administrativa é a menos burocrática para se conseguir um fármaco
e/ou insumo, visto que apenas é necessário que o cidadão se dirija até a far-
mácia pública ou, alternativamente à Secretaria Municipal ou Estadual de
Saúde, acompanhado da documentação exigida pela entidade para efetivar
a retirada do medicamento. Com relação à documentação exigida, nor-
malmente trata-se do receituário médico que prescreveu o uso do medica-
mento, além de documento pessoal para formalizar o cadastro do paciente
junto ao Sistema Informatizado Estatal, chamado de sistema AME.
Como responsável pela efetivação do direito à saúde, o SUS é o
protagonista da discussão relativa à dispensação de medicamentos e/ou
insumos de forma gratuita à população. Para tanto, conforme já mencio-
nado anteriormente, o Ministério da Saúde criou o documento conhecido
como “lista do SUS”, que dispõe de todos os medicamentos disponibiliza-
dos de forma gratuita à população. Dessa forma, todos os medicamentos
presentes na lista são de direito do cidadão brasileiro que necessite fazer
uso de algum deles por meio de prescrição e/ou indicação médica.
A lista de fármacos do SUS é composta por mais de 800 medi-
camentos indicados para os mais variados tipos de doenças. Assim, para
organizar a questão orçamentária da compra de cada um dos medica-
mentos, o Estado os dividiu em áreas, referindo os fármacos de compe-
tência de dispensação por parte da União, dos Estados e, por fim, dos
entes públicos municipais. O critério para tal divisão é justamente a ques-
tão orçamentária. Os medicamentos de maior custo são adquiridos pela
União e remetidos aos Estados, que os repassam aos municípios; os me-
dicamentos de custo intermediário são fornecidos pelo governo estadual
aos municípios; e, por fim, os municípios são responsáveis pela compra e
dispensação dos fármacos de menor valor e são adquiridos pela União e
Estados. Dessa forma, o Poder Público divide obrigações a fim de prestar
o serviço sanitário à população, sem onerar os cofres públicos.
Assim, para receber os medicamentos na via administrativa,
basta que o paciente, munido do receituário médico, devidamente pre-
enchido por seu médico assistente, compareça à Secretaria Municipal e/
ou Estadual de Saúde para proceder na retirada do fármaco que lhe foi
prescrito.

140 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
Um dos grandes problemas encontrados pelos cidadãos na hora
de retirar os fármacos na via administrativa, contudo, é o seu estoque. Em
diversas ocasiões, muitos medicamentos estiveram em falta no estoque
ou com estoque parcial, o que dificultou a dispensação dos fármacos na
proporção indicada pelo médico assistente.
A falta de estoque dos medicamentos decorre de um fator que
vem assolando os mais diversos tipos de serviços essenciais disponibili-
zados pelo Poder Público, especialmente a falta de recursos orçamentá-
rios. Desta forma, sem os repasses orçamentários, não há como realizar
a compra dos medicamentos, e sem a sua compra, não há fármacos para
dispensar na via administrativa.
Outro fator que merece ser observado com relação à dispensa
de medicamentos na via administrativa é a exclusividade dos fármacos
contemplados na lista do SUS. Ou seja, os fármacos prescritos pelos mé-
dicos assistentes que não estiverem presentes na política pública estatal
de dispensação não serão fornecidos pela via administrativa, uma vez que
não fazem parte dos medicamentos disponibilizados pelo Poder Público.
Assim, em períodos de crise do sistema econômico, ou na hi-
pótese de o fármaco prescrito não estar disponível na lista do SUS, a via
administrativa deixa de ser caracterizada como a mais breve e menos
burocrática, e passa a ser a mais lenta e menos eficaz, fazendo com que
os cidadãos encontrem meios alternativos para assegurar o seu direito,
garantido constitucionalmente. A partir do momento em que o Poder
Judiciário entra em campo por meio de ação judicial ajuizada em face do
Poder Público, o cidadão pode ter acesso ao medicamentos e/ou trata-
mento que não lhe foi fornecido na via administrativa. A decisão proferi-
da pelo Juiz dirá se o cidadão irá ou não receber a medicação/tratamento
que lhe foi prescrito.
A função do Poder Judiciário, portanto, é a prestação da tutela
jurisdicional à sociedade nos termos expressos na CF/88 e na legislação
infraconstitucional, distribuindo a justiça de forma célere e eficaz.
O Poder Judiciário tem sido um grande protagonista na efetiva-
ção de inúmeros direitos sociais. Diante da ineficiência do Poder Público
em prestar certos serviços essenciais à população, na via administrativa, a

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 141


Justiça tem assumido o papel de compelir os entes públicos a cumprirem
com sua função por meio de ordens judiciais. A questão não difere com
relação ao direito fundamental à saúde, pois face a negativa do Poder
Público no atendimento de determinadas demandas relativas ao Direito
Sanitário, a problemática é levada até o Judiciário para que decida a ques-
tão e determine a garantia do direito fundamental.
Os inúmeros problemas de gestão enfrentados pelo Poder Pú-
blico no gerenciamento dos gastos públicos têm dificultado a prestação
do direito à saúde e o fornecimento de medicamentos na via administra-
tiva. Diante do altíssimo número de demandas e da falta de recursos para
custeá-las, o Direito Sanitário passou a ser prestado com certa ineficiên-
cia, de modo que o Poder Judiciário passou a integrar a relação paciente,
SUS e medicamento/ tratamento.
O início de toda a problemática que acabou por levar o direito
à saúde até o Poder Judiciário foi justamente a falta de estoque de medi-
camentos nas farmácias públicas e/ou o fato de que o fármaco prescrito
pelo profissional médico não estava presente na lista do SUS. Acrescen-
tam-se, ainda, situações como a demora no agendamento de consultas e/
ou procedimentos realizados pelo SUS na via administrativa, dentre ou-
tros problemas administrativos que dificultaram a prestação do serviço
sanitário.
Em se tratando de direito à saúde, situação na qual normalmen-
te se coloca em risco a questão do direito à vida, sabe-se que a prestação
deve ser rápida e eficaz, objetivando não somente o tratamento de doen-
ças já adquiridas pelo paciente, mas também a prevenção de eventuais
moléstias futuras ou até mesmo um agravamento do atual quadro clínico
do enfermo.
O direito à saúde está intimamente conectado ao direito à vida,
visto que aquele não se torna possível sem a existência deste. A garantia
do direito à saúde, seja pela via administrativa ou pela via judicial, é ex-
tremamente necessária para a promoção do direito à vida, o qual está po-
sitivado na Carta Magna. Neste sentido, o Poder Judiciário assume o pa-
pel de garantir o acesso ao direito à saúde por meio do processo judicial.
Outra discussão iniciada na via administrativa e que chegou ao
Judiciário foi a questão da lista de medicamentos do SUS. De acordo com

142 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
o Poder Público (União, Estados e Municípios), somente os fármacos
presentes na lista do SUS são devidos por direito à população. Ocorre
que em 70% dos casos, os profissionais médicos, inclusive os do SUS,
prescrevem medicamentos aos pacientes que não estão contemplados na
lista do SUS, de modo que ao chegar às farmácias públicas, o paciente não
encontra aquele fármaco pois não faz parte dos medicamentos adquiri-
dos pelo Poder Público.
A partir desse momento, o Judiciário passa a desempenhar um
importante papel em relação à dispensação dos medicamentos aos cida-
dãos, visto que por meio de decisões que deferem a tutela de urgência
postulado em Juízo, mais tarde confirmadas por sentenças, foi determi-
nado que o Poder Público forneça à população aqueles medicamentos
que não fazem parte da lista de suas competências, conforme indicação e
prescrição médica.
Após a enxurrada de decisões judiciais favoráveis à dispensa-
ção dos medicamentos não contemplados pela lista do SUS, bem como a
inquestionável crise econômica estatal vivida no país, surgiram questio-
namentos com relação a essa situação. Afinal, os fármacos “fora da lista”
são ou não de direito da população(?!); e a crise econômica(?!), já que
em tese, os medicamentos “fora da lista” seriam mais caros em relação
às alternativas presentes na lista do SUS(?!); e se o Estado mal conse-
gue manter os estoques dos fármacos de sua competência em dia, como
fornecer aqueles que sequer estão presentes na lista de sua competência,
justamente por serem mais onerosos para os cofres públicos(?!).
Após o significativo aumento do número de ações judiciais com
pedido de medicamentos, a maioria não contemplada pela lista do SUS,
surgiu o seguinte questionamento ao Poder Judiciário: se o medicamento
não está presente na lista do SUS, o Estado tem o dever de fornecê-lo?
Em suas teses de defesa, o Poder Público se utiliza, principal-
mente, do argumento de que se o fármaco prescrito não está presente
na lista elaborada pelo Ministério da Saúde, não é de sua competência
a dispensação. Alega, ainda, que o SUS possui um universo de mais de
800 fármacos para o tratamento de inúmeras enfermidades, motivo pelo

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 143


qual, sempre que possível, o medicamento prescrito pelo médico assis-
tente e não contemplado na lista do SUS deverá ser substituído por outro
fármaco similar presente na lista.
Diante de toda a controvérsia relacionada à competência ou
não de fornecimento dos fármacos considerados fora da lista do SUS, a
Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), entendendo que
se trata de tema repetitivo, afetou o Recurso Especial n° 1.657.156 para
julgamento pelo Sistema dos Recursos Repetitivos. Assim, a questão
foi submetida a julgamento que tratou da “obrigatoriedade de forneci-
mento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Portaria n°
2.982/2009 do Ministério da Saúde – Programa de Medicamentos Excep-
cionais (lista do SUS).” (STJ, 2017).

4. A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SUS (IN)


VIABILIZA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À
SAÚDE(?)

Conforme já mencionado anteriormente, o SUS foi criado para


ser a maior política pública nacional, responsável pela garantia do direito
à saúde, assegurado pela CF/88. Como responsável pelo fornecimento de
medicamentos, insumos, procedimentos e consultas médicas, o SUS pre-
cisou organizar-se, em âmbito administrativo, para possibilitar o acesso
ao Direito Sanitário da forma mais eficaz possível. Assim, foram criadas
portarias, recomendações e legislações internas e externas de funciona-
mento, atendimento e prestação dos serviços essenciais para a promoção
do direito fundamental à saúde.
Com relação à política de dispensação de medicamentos, o Mi-
nistério da Saúde elaborou um documento, conhecido como lista do SUS,
composto pelos fármacos de competência do Poder Público para forneci-
mento gratuito à população.
A lista de fármacos do SUS é composta por mais de 800 medi-
camentos, os quais são utilizados no tratamento dos mais diversos tipos
de enfermidades. Desta forma, sendo necessária a utilização de um me-
dicamento mediante prescrição de um profissional médico, o cidadão/

144 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
paciente poderá proceder a retirada do medicamento, de forma gratuita,
junto aos órgãos competentes para dar início e continuidade ao trata-
mento médico que lhe foi prescrito.
Esta lista, conforme já referido, foi elaborada pelo Ministério da
Saúde, e contempla os mais diversos tipos de medicamentos. Sua elabora-
ção previu dois aspectos fundamentais, quais sejam: (1) a eficácia clínica
comprovada com posterior registro do fármaco pela Anvisa; e (2) o custo
benefício dos medicamentos para não causar prejuízo aos orçamentos
estatais e aos cofres públicos.
Os medicamentos incluídos na lista do SUS foram elaborados,
testados e aprovados pela indústria farmacêutica, com registro na Anvisa
e indicados para o tratamento das respectivas doenças. Assim, cumpre
referir que todos os medicamentos disponibilizados pelo Poder Público
já esgotaram suas fases de testes e possuem eficácia clínica devidamente
comprovada, garantindo a sua eficácia no tratamento do paciente/cida-
dão que deles fazem uso.
O Poder Público é o responsável por garantir à população o
acesso a inúmeros outros direitos além da saúde pública. Neste sentido,
precisou adequar seus orçamentos para possibilitar a promoção desse di-
reito, sem causar prejuízos aos demais direitos garantidos pela CF/88. A
partir daí surgiu a preocupação não somente com a compra de medica-
mentos que fossem clinicamente eficazes, mas também que fossem eco-
nomicamente favoráveis ao orçamento estatal. Observa-se, nesse sentido,
que os fármacos que compõem a lista do SUS não são somente os que
melhor responderam aos testes clínicos aos quais foram submetidos, mas
também os menos onerosos aos cofres públicos estatais.
Uma das questões que atualmente tem provocado aumento do
indeferimento administrativo na liberação dos medicamentos/insumos
e/ou tratamentos médicos é o fato de que muitos deles não estão presen-
tes na lista de fármacos do SUS. Nesses casos, o indeferimento adminis-
trativo pelo SUS é certo, resultando na busca da Justiça para o ingresso de
demanda judicial a fim de compelir o Poder Público a fornecer o fármaco
prescrito pelo profissional médico.

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 145


Em sua defesa, o Poder Público, munido de um laudo técni-
co elaborado pelos médicos da Secretaria Estadual de Saúde (SES), cita
outras sugestões de fármacos/insumos e/ou tratamentos para a doença
do paciente/cidadão, e postula ao Juízo a intimação do médico assisten-
te do paciente/cidadão para que se manifeste acerca da possibilidade de
substituição do fármaco prescrito inicialmente por outro previsto na lista
do SUS. Tal pedido, normalmente, é acolhido pelo magistrado. Muitos
médicos, contudo, se mostram relutantes na opinião de que o fármaco
prescrito inicialmente é o mais indicado ao caso, porém, sem muitos fun-
damentos, acabam concordando com a realização de perícias pelo De-
partamento Médico Judiciário (DMJ), para que este dê por encerrada a
controvérsia entre os profissionais médicos do paciente e da SES.
Considerando o crescimento desenfreado das demandas judi-
ciais que visam o fornecimento de serviços sanitários, bem como a con-
trovérsia médica anteriormente apontada, o STJ acabou por afetar o Re-
curso Especial 1.657.156 da relatoria do ministro Benedito Gonçalves,
que tornou o assunto “fornecimento de medicamentos fora da lista do
SUS” um recurso repetitivo junto ao STJ, sendo cadastrado sob n° 106,
conforme expresso no site do STJ, em matéria publicada às 11h03min, do
dia 12.05.2017 (STJ, 2017).
Recentemente, no dia 25.04.2018, este recurso repetitivo foi jul-
gado pelo STJ, que regulamentou acerca da obrigatoriedade ou não do
fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS. A decisão proferida
fixa os requisitos para o fornecimento dos medicamentos “fora da lista”,
sendo tais requisitos válidos apenas para as ações judiciais distribuídas
posteriormente à data do julgamento do recurso.
Com relação aos novos requisitos para dispensação dos medica-
mentos fora da lista do SUS, e dispondo que há necessidade da presença
de alguns requisitos para o fornecimento de medicamentos, o STJ (2018)
assim se manifestou:

A tese fixada estabelece que constitui obrigação do poder público o


fornecimento de medicamentos não incorporados em atos norma-
tivos do SUS, desde que presentes, cumulativamente, os seguintes
requisitos:

146 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
1 - Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e cir-
cunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da im-
prescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da
ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos
pelo SUS;
2 - Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do me-
dicamento prescrito; e
3 - Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa).

Outro ponto de suma importância decidido pelos ministros do


Superior Tribunal de Justiça (STJ) diz respeito à modulação dos efeitos
da decisão:

O recurso julgado é o primeiro repetitivo no qual o STJ modulou


os efeitos da decisão para considerar que “os critérios e requisitos
estipulados somente serão exigidos para os processos que forem dis-
tribuídos a partir da conclusão do presente julgamento”.
A modulação tem por base o artigo 927, parágrafo 3º, do Código de
Processo Civil de 2015. De acordo com o dispositivo, “na hipótese de
alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Fede-
ral e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de
casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no
interesse social e no da segurança jurídica”.
Dessa forma, a tese fixada no julgamento não vai afetar os processos
que ficaram sobrestados desde a afetação do tema, que foi cadastrado
no sistema dos repetitivos sob o número 106. [...] (STJ, 2018).

Ademais, cumpre destacar, com base na decisão proferida pelo


STJ (2018), que a lista de fármacos do SUS não inviabiliza a efetivação do
direito fundamental à saúde, visto que por força de decisão judicial, os
medicamentos que não estão ali contemplados poderão ser fornecidos
à população sempre que restar evidente que são insubstituíveis no trata-
mento da moléstia que acomete o paciente/cidadão. Registra-se, ainda,
que é vedado ao Poder Público o fornecimento de fármacos que não pos-
suem registro na Anvisa.

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 147


Outro aspecto relacionado à decisão do STJ e que merece con-
sideração é a questão da hipossuficiência econômica do paciente. Se o
fármaco não estiver presente na lista do SUS, o médico assistente do pa-
ciente/cidadão deve manifestar a imprescindibilidade do uso do fármaco.
Entretanto, se o paciente não for hipossuficiente economicamente, não
será de responsabilidade do Poder Público o fornecimento da medicação.
Dessa forma, a decisão do STJ determinou o fornecimento de
fármacos “fora da lista”, contudo, delimitou os requisitos para que estes
sejam fornecidos pelo Poder Público, razão pela qual se entende que não
há inviabilidade na efetivação do direito à saúde.
Resta evidente, então, que o Poder Público possui o dever de
fornecimento das prestações sanitárias nos termos garantidos pela CF/88,
contudo, sem causar prejuízo/ onerosidade aos cofres públicos para fins
de proteção da garantia dos demais direitos garantidos pelo constituinte.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A saúde, enquanto direito fundamental, está positivado no


ordenamento jurídico brasileiro, tanto no art. 6º quanto no art. 196 da
CF/88, que dispõe que a saúde é um direito de todos e dever do Estado.
Em que pese o texto constitucional assegurar que a saúde é um direito
de todo cidadão e um dever do Estado, tanto o Poder Público quanto o
cidadão têm enfrentado algumas dificuldades para garantir o acesso ao
direito ou para acessá-lo em sua plenitude.
O Poder Público, como responsável pelo fornecimento dos
serviços sanitários aos cidadãos, precisou se organizar no âmbito admi-
nistrativo, criando normas administrativas que regulassem a política de
acesso aos serviços sanitários. Tais normas foram criadas para garantir
que o Estado efetive o direito garantido pelo constituinte sem ferir o or-
çamento público, visto que o Poder Público é o responsável não só pela
garantia do direito à saúde, mas também de outros direitos previstos no
texto constitucional.
Nesse rumo, o Ministério da Saúde criou o documento conhe-
cido como “lista do SUS”, que se constitui na relação de todos os medica-
mentos, insumos e/ou procedimentos dispensados ao paciente, integral-

148 | Ariel Cargnelutti Goi | Bernardo Gheller Heidemann | Eloísa Nair de Andrade Argerich
mente custeados pelo Estado. Na lista do SUS estão contemplados mais
de 800 fármacos utilizados em tratamentos das mais diversas enfermida-
des, os quais são distribuídos de forma gratuita à população por meio das
farmácias públicas.
Em muitas ocasiões, porém, o profissional médico que assiste
aos cidadãos prescreve determinados medicamentos que não estão pre-
sentes na lista do SUS. É a partir desse momento que inicia a participação
do Poder Judiciário e dos órgãos de acesso à Justiça nas questões que
envolvem o direito fundamental à saúde.
Ao criar a lista do SUS, o Ministério da Saúde incluiu os medi-
camentos avaliados como os melhores em termos de eficácia, mas tam-
bém os menos onerosos aos cofres públicos. Além disso, sabendo que
a indústria farmacêutica evolui constantemente, não seria viável incluir
nessa lista todo e qualquer fármaco criado pela indústria farmacêutica.
Assim, a partir do momento em que o cidadão, munido da in-
dicação médica de uso de determinado fármaco, se dirige até a farmácia
pública e verifica que aquele medicamento não se encontra na lista do
SUS, ou que está sem estoque disponível, pode acionar os órgãos de aces-
so à Justiça, quais sejam, a Defensoria Pública e/ou o Ministério Público,
para que estes lhe prestem auxílio na efetivação de seu direito. O pedido
será levado até o Poder Judiciário para que este decida pela liberação ou
não do acesso àquele medicamento.
Após a demanda excessiva de ações judiciais propostas, tendo
como pedido o fornecimento de medicamentos que não constam na lista
do SUS, ou a possibilidade de sua substituição por outro mais eficaz, o
tema chegou ao STJ como recurso repetitivo, foi cadastrado sob n° 106 e
julgado no dia 25.04.2018.
O STJ decidiu que ainda que os medicamentos postulados nas
ações judiciais posteriores à decisão proferida não estiverem presentes na
lista do SUS, é dever do Poder Público o seu fornecimento.

REFERÊNCIAS

BRASIL (Constituição, 1988). Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br>. Acesso em: 29 nov. 2017.

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 149


______. Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/leis/l8080.htm>.
Acesso em: 06 dez. 2017.
______. Lei n° 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a
participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS)
e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros
na área da saúde e dá outras providências. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L8142.htm>. Acesso em: 06 dez. 2017.
______. Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de
Processo Civil. Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em :17 maio 2018.
______. Ministério da Saúde. Lista de medicamentos do Sistema Único
de Saúde. Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/>. Acesso
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CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Defensoria pública e Ministério
Público – o que faz cada um? 2015. Disponível em: <http://www.cnj.jus.
br/noticias/cnj/77307-defensoria-publica-e-ministerio-publico-o-que-
faz-cada-um>. Acesso em: 17 maio 2018.
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde:
parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do
advogado, 2007.
OMS. Organização Mundial da Saúde. Relatórios mundiais de saúde.
Disponível em: <http://www.who.int/eportuguese/publications/pt/>.
Acesso em: 04 out. 2017
SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva
sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
______. O tratamento jurídico do risco no direito à saúde. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 34 ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

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STJ. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção define requisitos
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Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/ default/pt_BR/Comun
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não contemplados em lista do SUS é tema de repetitivo. 2017.
Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/ pt_BR/
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contemplados-em-lista-do-SUS-%C3%A9-tema-de-repetitivo>. Acesso
em: 17 maio 2018.
TJRS. Tribunal de Justiça do Estado Rio Grande do Sul. Sobre o
Tribunal de Justiça. Disponível em: <https://www.tjrs.jus.br/site/poder_
judiciario/sobre.html>. Acsso em: 17 maio 2018.

A LISTA DE MEDICAMENTOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ... | 151


VIII
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO
QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE
EM PACIENTE TESTEMUNHA DE JEOVÁ
SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL

Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa1


Danilo Scramin Alves2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O estudo foi feito com o intuito de apurar a existência, ou não,


da responsabilidade civil do médico quando este realiza transfusão de
sangue em paciente Testemunha de Jeová sem prévia autorização judi-
cial, utilizando como parâmetro a legislação brasileira e casos aplicados
no território nacional, partindo da origem da responsabilidade civil des-
de os primórdios até os dias atuais.
A pesquisa revelou, por meio de princípios expressos na
Constituição Federal, jurisprudências, Código de Ética Médica e de-
mais normas que regulam a atuação do médico com o paciente, se a re-
cusa da Testemunha de Jeová em fazer transfusão de sangue, por razões
religiosas, deve ser acatada em toda e qualquer situação e se a conduta
do médico em acatar ou contrariar a vontade do paciente é passível de
responsabilização.

1 Graduanda em Direito pela Faculdade Barão do Rio Branco – FAB/Uninorte.


E-mail: manualbuquerque26@gmail.com
2 Mestrando em Direito pela Universidade de Marília. Especialista em Direito e Pro-
cesso do Trabalho pela Universidade Anhanguera; Professor de Direito da Facul-
dade Barão do Rio Branco - FAB e do Instituto Superior do Acre - IESACRE, da
UNINORTE; Analista Processual do Ministério Público do Estado do Acre. E-mail:
daniloscramina@hotmail.com
A intervenção jurídica nesses casos, em que há conflito entre
direitos fundamentais, é importante para determinar, aplicando o direito
ao caso concreto, quais bens jurídicos devem prevalecer de modo que
não ocorram abusos nem injustiças nas decisões.
A relevância do tema para o direito brasileiro consiste na dis-
cussão jurídica e bioética sobre o direito à liberdade religiosa e o dever
juramentado do profissional de fazer o possível para salvar vidas. Dessa
forma, a temática se desenvolve na aparente colisão entre direitos funda-
mentais: de um lado o direito à vida, considerado o pilar do princípio da
dignidade da pessoa humana, e de outro, o direito à liberdade de crença,
de religião ou culto.
Isto posto, a questão analisada vai além do plano jurídico e legal
envolvendo também o contexto social, haja vista que a vida humana é um
bem coletivo, que interessa muito mais a sociedade do que ao indivíduo,
em contrapartida, considera-se a liberdade religiosa um direito autôno-
mo de natureza privada.

2. DA RESPONSABILIDADE CIVIL

O presente tópico visa trazer uma abordagem genérica sobre


a responsabilidade civil destacando a origem, desde os primórdios da
humanidade, trazendo o conceito, espécies e pressupostos para a com-
posição.

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE


CIVIL

A noção atual de reparação do dano é o resultado da soma dos


movimentos históricos, sociais e culturais. Dessa forma, os pressupostos
atuais da responsabilidade civil (dano, conduta, nexo causal e culpa) nem
sempre se fizeram presentes.
Nos tempos mais antigos, a noção de reparação pelo mal cau-
sado independia do fator culpa. Foi o povo romano que estabeleceu a
ideia de culpa aquiliana (Lex Aquilia), passando a regular a definição de

154 | Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa | Danilo Scramin Alves


responsabilidade civil atrelado com os pressupostos de prejuízo, culpa e
reparação. Assim, a reparação de um ilícito dependia quando não de um
evento doloso, ao menos de um evento culposo pela parte lesante.
A partir das ideias dos romanos, os franceses complementa-
ram a definição de responsabilidade civil estabelecendo a obrigação de
reparação ainda que houvesse culpa levíssima (in lege Aquilia et levissima
culpa venit), inaugurando a concepção de culpa contratual, e, por fim,
consagrando que a responsabilidade civil se funda na culpa (GONÇAL-
VES, 2016).
Seguindo os ditames do direito francês, no Brasil, até o Códi-
go Civil de 1916, a responsabilidade civil era subjetiva, sendo necessá-
rio comprovar a existência de culpa. Ocorre que, com o surgimento da
Revolução Industrial, a multiplicação das máquinas, fabricação de bens
em grande escala e circulação por meio de automóveis ocasionaram um
grande número de acidentes prejudicando a saúde dos cidadãos e fazen-
do surgir novas teorias acerca da responsabilidade civil que pudessem
trazer justiça social dentro do processo de humanização. Nesse seara,
surge a teoria do risco, trazendo um novo aspecto à reparação do dano e
fazendo surgir a responsabilidade objetiva, sendo aquela cuja reparação
é devida mesmo não havendo culpa, ou seja, imprudência, imperícia ou
negligência (GONÇALVES, 2016; DINIZ, 2015).
Hoje, no Código Civil (BRASIL, 2002) vigora como regra a res-
ponsabilidade civil subjetiva, trazendo de forma excepcional a responsabili-
dade civil objetiva nas hipóteses previstas em lei e quando a atividade desen-
volvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos
de outrem, conforme preceitua o artigo 927, parágrafo único do diploma.
Por fim, analisada a origem da responsabilidade civil, necessá-
rio minuciar a definição e espécies a fim de melhor compreender o tema.

2.2 CONCEITO E ESPÉCIES

A responsabilidade civil consiste no dever jurídico de reparar


algum dano derivado de conduta omissiva ou comissiva, dolosa ou cul-
posa. É o instituto que faz surgir uma relação jurídica entre alguém que

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 155


viola um direito (agente) e outrem a quem nasce um direito decorrente
dessa violação (vítima), independentemente da declaração da vontade. O
referido instituto visa trazer a restauração da situação anterior entre as
partes envolvidas.
A responsabilidade civil pode ser classificada quanto ao funda-
mento (objetiva ou subjetiva) e quanto ao fato gerador (contratual ou
extracontratual).
Diz-se subjetiva a responsabilidade que necessita da compro-
vação do dolo ou culpa na conduta do agente causador, ou seja, negli-
gência, imprudência ou imperícia. Essa conclusão pode ser extraída da
leitura conjugada de dois diplomas civilistas, quais sejam, artigos 186 e
927 (BRASIL, 2002). Objetiva é aquela que prescinde do elemento culpa,
e surge, conforme artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, em duas
situações: quando a atividade normalmente desenvolvida acarretar, por
sua natureza, risco a outrem (responsabilidade objetiva aberta), ou quan-
do a lei determinar (responsabilidade civil objetiva por determinação le-
gal). (JESUS et al, 2016).
A responsabilidade contratual surge de um acordo, um ajuste
prévio entre os contratantes, ou seja, é aquela que se origina de um con-
trato ou pela lei que crie vínculo jurídico anterior entre as partes. Essa
responsabilidade surge com o inadimplemento de uma obrigação pre-
viamente assumida, e por tal motivo, existência de contrato, entende-se
que a culpa é presumida, ou seja, basta que se comprove que não houve
cumprimento do avençado (CAVALIERI FILHO, 2012). De outro modo,
quando a responsabilidade não deriva de um contrato prévio, diz-se que
ela é extracontratual. Aqui não há vínculo anterior entre as partes, ela se
origina da violação de direito subjetivo do ofendido e dos deveres gerais
de abstenção ou omissão, podendo ser por ato ilícito, lícito ou abuso de
direito, conforme preceitua os artigos 186 e 187, do Código Civil (BRA-
SIL, 2002). A culpa analisada nessa modalidade é a chamada aquiliana,
sendo necessário, ao autor da ação, comprovar a existência de negligên-
cia, imprudência ou imperícia.
Enfim, encerrada a análise sobre o conceito e espécies da res-
ponsabilidade civil, abordar-se-á, no seguinte tópico, os pressupostos
para configuração desse instituto.

156 | Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa | Danilo Scramin Alves


2.3 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE
CIVIL

Os pressupostos da responsabilidade civil estão previstos no ar-


tigo 186, do Código Civil (BRASIL, 2002) e sem eles não se pode falar em
indenização do dano. Conforme a doutrina dominante, são eles: conduta,
nexo causal, culpa em sentido amplo e dano.
A conduta capaz de gerar responsabilidade é omissiva (negati-
va) ou comissiva (positiva), voluntária, licita ou ilícita, decorrente de ato
próprio ou não. (DINIZ, 2015; GONÇALVES, 2016).
Nexo causal é o componente indispensável em qualquer mo-
dalidade de responsabilidade. Conforme Gonçalves (2016), trata-se do
elemento imaterial, o laço que liga a conduta culposa ou o risco criado ao
dano sofrido. Vem disciplinado no verbo “causar”, previsto no artigo 186,
do Código Civil. Sua configuração é de suma relevância, pois em existin-
do o dano, cuja causa não tenha relação com a conduta do autor, inexiste
relação de causalidade, logo não há dever de indenizar.
A culpa capaz de gerar a responsabilidade deve ser entendida
em sentido amplo, compreendendo o dolo, que consiste no conhecimen-
to do dano e a intenção deliberada e consciente de praticá-lo e na culpa
stricto sensu ou culpa aquiliana, caracterizada pela imprudência (conduta
comissiva sem a devida cautela), imperícia (falta de aptidão técnica e ex-
periência) e negligência (conduta omissiva sem cautela, atenção etc) sem
qualquer intenção de violar um dever.
O último elemento caracterizador da responsabilidade civil é o
dano. Os danos podem ser divididos em materiais (patrimoniais), morais
(extrapatrimoniais), estético e novos danos (danos morais coletivos, da-
nos sociais ou difusos).
É necessário esclarecer, ainda, que há causas que excluem o
dever de indenizar. São elas: legítima defesa, estado de necessidade ou
remoção do perigo, exercício regular de direito, excludentes do nexo de
causalidade e cláusula de não indenizar.
Analisado as disposições gerais sobre a responsabilidade civil,
far-se-á, uma análise mais especifica acerca da responsabilidade civil do
médico no ordenamento jurídico pátrio.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 157


3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

A responsabilidade civil médica é um assunto que coleciona


grandes debates, haja vista as inúmeras estatísticas que demonstram a
existência de um aumento significativo de ações de reparação civil que
envolvem de um lado pacientes/vítimas e de outro médicos e hospitais.

3.1 NATUREZA DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

A responsabilidade civil do médico, como profissional liberal,


conforme disposto no artigo 951, do Código Civil, artigo 14, §4º, do
Código de Defesa do Consumidor, bem como no Código de Ética do
profissional (Resolução CFM 1.931/09) depende do elemento culpa, ou
seja, da existência de negligência, imperícia ou imprudência (FRAN-
ÇA, 2013).
Ressalte-se, ainda, acerca da responsabilidade do médico cirur-
gião plástico, que o Superior Tribunal Justiça, no REsp 985.888/SP, enten-
deu que a responsabilidade desse profissional é subjetiva, ainda que exista
presunção de culpa3.
Além de subjetiva, a responsabilidade do médico é considerada
como contratual. Para Venosa (2012), o contrato assumido pelas partes
(médico – paciente) é de prestação de serviço; de natureza singular; per-
sonalíssimo; bilateral; oneroso e de trato sucessivo.
Outrossim, no que se refere à obrigação assumida pelo profis-
sional, esta consiste em empregar, com a devida atenção e cautela, todos
os meios que estiverem ao seu alcance para proporcionar o bem estar
do paciente. Destarte, a obrigação assumida pelo médico é considerada
de meio ou diligências, onde o próprio esforço do profissional é obje-
to do contrato, prescindindo-se, deste modo, de resultado (FRANÇA,
2013; GONÇALVES, 2016).
Apesar de, em regra, o profissional assumir obrigação de meio, a
doutrina e jurisprudência entendem que em se tratando de cirurgia plás-
tica a obrigação assumida pelo médico é de resultado. O médico, nesse

3 REsp 985.888/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,


julgado em 16/02/2012, DJe 13/03/2012.

158 | Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa | Danilo Scramin Alves


tipo se procedimento, se compromete a alcançar um resultado específico
que constitui o fim da própria obrigação4.
No que se refere à relação médico-paciente, tem-se que o prin-
cipal elemento desta relação é o dever de informação. O dever de infor-
mação, segundo França (2013), está relacionado a todo e qualquer escla-
recimento necessário na relação médico e paciente, como informações
ao paciente, informações sobre as condições trabalho e informações no
prontuário médico.
A explicitação ao paciente sobre intervenções e condutas neces-
sárias, seus riscos e consequências não implica tão somente dar conheci-
mento, mais do que isso, significa uma condição prévia para o consenti-
mento ou não, tendo em vista que, pelo princípio da autonomia da von-
tade, é vedado ao médico realizar qualquer tipo de procedimento sem a
autorização do paciente. Trata-se do chamado consentimento esclarecido
um dos principais norteadores na relação médico e paciente (BARROS
JÚNIOR, 2011; FRANÇA, 2013).
O princípio do consentimento informado significa, antes de
tudo, respeitar a vontade do paciente, ou seja, sua liberdade e dignidade
como humano e, por ser tão importante, vem disciplinado nos artigos 22
e 24, do Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 1.931/09), no capí-
tulo IV referente aos direitos humanos.
No tópico que se segue, passa-se a estudar sobre a responsabi-
lidade civil do médico na transfusão de sangue em paciente Testemunha
de Jeová.

4. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO


NA TRANSFUSÃO DE SANGUE EM PACIENTE
TESTEMUNHA DE JEOVÁ

A transfusão de sangue em paciente da religião Testemunha de


Jeová é assunto que coleciona grandes debates pelo fato de envolver direi-

4 AGARESP 201500527865, RAUL ARAÚJO, STJ - QUARTA TURMA, DJE


DATA:11/12/2015 DTPB.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 159


tos fundamentais previstos na nossa Constituição, são eles: Direito à vida,
Liberdade religiosa, integridade física e autonomia da vontade.
As polêmicas surgem, principalmente, quanto da recusa do pa-
ciente Testemunha de Jeová em realizar a transfusão de sangue e o dever
do médico de realizar o procedimento. As discussões giram em torno de
quais bens jurídicos devem prevalecer e em quais casos.

4.1 DA TESTEMUNHA DE JEOVÁ

Os seguidores desta religião são considerados como estudantes


da Bíblia. Eles buscam levar suas vidas guiadas por esta de modo que apli-
cam os princípios e leis bíblicas não só no local de adoração, mas também
na vida cotidiana (SOARES, 2009). Este grupo religioso é mais conhecido
por seu trabalho regular e insistente de pregação de suas crenças de casa
em casa, nas ruas e em locais públicos e pela recusa em se submeter em
procedimentos que envolvam transfusão de sangue.
Nesta senda, a recusa em realizar tratamentos que envolvam
transfusão sanguínea por paciente Testemunha de Jeová decorre das pas-
sagens bíblicas de Gênesis (9, 3 a 5), Levítico (17, 10) e Atos (15, 20)
referentes à abstenção do uso de sangue. Argumentam que para Deus o
sangue é vida e em obediência a Ele se recusam a tomar ou receber san-
gue de outras pessoas (FARIAS, et al, 2015; SOARES, 2009).
Percebe-se, pois, que a não submissão à transfusão sanguínea
por Testemunha de Jeová põe em conflito direitos fundamentais, tais
como a autonomia da vontade, liberdade de credo e o direito à vida, atre-
lado ao princípio da beneficência médica.
Autonomia da vontade significa o poder de autogovernar-se, a
capacidade de cada ser humano de tomar decisões sobre sua vida, saúde,
integridade física e quaisquer atos que estejam dentro da ótica do direito
privado. Trata-se de possibilidade do próprio indivíduo impor regras a
própria conduta de modo a garantir seu bem-estar (RATTI, 2015; SOA-
RES, 2009). É um princípio próprio do direito civil e rege-se, principal-
mente, nas relações privadas, sofrendo, entretanto, limitações de ordem

160 | Janaína Machado Sturza | Evandro Luis Sippert - Organizadores


pública uma vez que com a constitucionalização do direito civil o referi-
do princípio é mitigado pelas regras previstas na Constituição de modo
que a autonomia da vontade não pode violar direitos e garantias funda-
mentais. É, assim, uma autonomia limitada, na medida em que a prática
ou abstenção de atos pelo titular não podem prejudicar terceiros ou a
coletividade (FARIA et al, 2015).
A liberdade de crença, prevista no artigo 5º, incisos VI a VII,
consiste não apenas na faculdade de se escolher uma religião, mais que
isso, trata-se da liberdade de mudar de religião quantas vezes lhe for con-
veniente, de ter várias crenças e, até mesmo, de não aderir a nenhuma
religião. Tem-se, portanto, que o princípio em comento exterioriza a lai-
cidade do Estado brasileiro e eleva o princípio da tolerância e respeito
à diversidade (LENZA, 2015). Segundo Barroso (2010), a liberdade de
crença é um direito fundamental que faz parte das escolhas existenciais
básicas do indivíduo, sendo, portanto, expressão da dignidade humana.
Assim, o Estado não tem o direito de restringir, tampouco de impor o
exercício de qualquer crença, salvo se violarem direitos de outrem.
O princípio da beneficência ou paternalismo médico refere-se
ao dever do profissional de agir da melhor forma para proporcionar o
bem estar do paciente, evitando-se assim quaisquer prejuízos ou danos.
Dessa forma, o direito à vida, expresso do caput do artigo 5º da Constitui-
ção Federal, está atrelado ao principio da beneficência médica, haja vista
que o profissional atua de modo a preservar, o tanto quanto possível, esse
bem jurídico de grande relevância.
Uma vez explanado sobre os princípios constitucionais con-
flituosos quanto da transfusão de sangue em paciente Testemunha de
Jeová, de suma importante é analisar sobre a teoria do filósofo alemão
Robert Alexy, que revela técnicas de ponderação e validade para resolver
conflitos envolvendo os princípios e normas de direitos fundamentais,
de acordo com uma análise crítica de cada caso concreto avaliando quais
princípios devem se sobrepor a outros. Sobre o assunto, buscar-se-á mi-
nuciar os detalhes sobre essa teoria que tanto contribuiu para o direito no
tópico que se segue.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 161


4.2 DOS CONFLITOS ENTRE PRINCÍPIOS A LUZ DA
TEORIA DE ROBERT ALEXY

Robert Alexy é um grande filósofo de direito alemão que contri-


buiu de maneira significativa para o ramo jurídico, tendo como uma de
suas principais obras a Teoria dos Direitos Fundamentais. Com a referida
a teoria, Robert Alexy, visou dar resultados racionais e fundamentados às
questões relativas aos Direitos Fundamentais (AMORIN, 2005).
Segundo o autor, na colisão entre princípios um deve ceder ao
outro, isto é, analisando as circunstâncias, o julgador deverá estabelecer
qual princípio tem que prevalecer sobre o outro (precedência condicio-
nada). Dessa forma, a solução encontra-se na técnica da ponderação:
quando dois princípios estiverem em conflito, considerando que cada
princípio possui um peso diferente, a solução consiste em valorar aque-
les que possuem maior peso em determinado caso concreto. Assim, a
técnica de ponderação deve ser dividida em três fases: 1) identificação
dos princípios, 2) atribuição do peso e da importância de cada princí-
pio; conforme as circunstâncias do caso concreto; e 3) decisão sobre qual
princípio deve prevalecer sobre o outro (AMORIM, 2005; ALEXY 2008).
Pelo exposto, considerando que no mundo atual, nenhum direi-
to é absoluto, havendo aparente conflito de princípios, faz-se necessário
preponderar os bens jurídicos em confronto de modo a trazer a solução
mais justa.
Após a análise da técnica de solução de conflito, passa-se a veri-
ficar como vem sendo solucionado o problema da responsabilidade mé-
dica na recusa da transfusão de sangue envolvendo paciente Testemunha
de Jeová sob a ótica doutrinária e jurisprudencial.

4.3 DA RESPONSABILIDADE MÉDICA NA


TRANSFUSÃO SANGUÍNEA EM
TESTEMUNHA DE JEOVÁ

Conforme tudo até aqui estudado, é possível verificar que a


questão da responsabilidade civil do médico, ante a transfusão de sangue

162 | Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa | Danilo Scramin Alves


em paciente Testemunha de Jeová coleciona grande polêmicas e diver-
gências doutrinárias, pois de um lado encontramos a liberdade de crença
e autonomia da vontade do paciente em decidir sobre sua vida e seu bem
estar e, de outro lado, temos dever juramentado do médico, ante a urgên-
cia do procedimento, de salvar, ou ao menos tentar salvar, a vida daquele
a quem socorre.
Nesse sentido, a transfusão de sangue realizada por médico em
paciente Testemunha de Jeová é considerada, por muitos, como legítima
e prescindível de responsabilização quando o profissional realiza o pro-
cedimento havendo iminente risco de morte. Aqui, sacrifica-se um bem
menor (liberdade) para salvar outro com maior relevância social (vida).
O direito à vida é o que da origem ao demais direitos, e em havendo vio-
lação do direito constitucional de liberdade, mesmo sem o consentimen-
to do paciente ou de seus familiares, não há o que se falar em ato ilícito
(GONÇALVES, 2015, JÚNIOR, 2011; FRANÇA 2013; LENZA,2015).
Entretanto, há outra corrente que defende a liberdade como o
princípio pilar dos direitos fundamentais. Entende-se, assim, que haven-
do conflito entre o direito à vida e o direito à liberdade de crença, a esco-
lha cabe ao titular do direito e não ao médico. Argumenta-se que o fato
do paciente estar em estado de risco não tira dele o direito à liberdade
religiosa e, em virtude disso, o médico que acata a decisão do titular do
direito e não realiza o tratamento, não pode ser responsabilizado, pois
que, estaria apenas permitindo o exercício de um direito fundamental
(FRANÇA, 2013).
Os filiados a essa corrente defendem que a Constituição, ao pre-
ver como direito fundamental à vida, refere-se a uma vida digna. Assim,
a dignidade humana, além de garantir o respeito à integridade física, con-
sagra as ideias de proteção à integridade psíquica, intelectual e condições
mínimas de igualdade e liberdade, abrangendo nessa última, a liberdade
religiosa, cuja violação afeta diretamente a dignidade humana bem como
a honra do paciente (FARIAS, et al, 2015; SOARES, 2009).
Outro ponto relevante sobre o tema diz respeito à capacidade
do paciente, uma vez que, segundo Farias (2015), no caso de paciente
menor ou sem discernimento para manifestar sua vontade, deve haver

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 163


intervenção médica. No caso específico dos menores, alega que não po-
dem os pais dispor do direito à saúde dos filhos e também pelo fato de
não ser certo que o menor, após atingir a maioridade, irá seguir a mesma
crença que seus representantes.
Quanto aos precedentes judiciais sobre o tema, tem-se que ju-
risprudência majoritária inclina-se no sentido de que o médico deve rea-
lizar a transfusão forçada quando iminente risco de vida.
Nesse sentido, um importante julgado sobre o assunto foi profe-
rido pela sexta turma, do Superior Tribunal de Justiça em 2013. Em sede
de Habeas Corpus, a referida corte discutia acerca da responsabilidade
sobre a morte de uma menina de treze anos, haja vista a recusa dos pais
em autorizar o procedimento por razões religiosas e a anuência do médi-
co que, sabendo do estado grave da menina, acatou a decisão dos repre-
sentantes. Na ocasião, foi decidido pela anulação da responsabilidade dos
pais, haja vista estarem apenas exercendo o direito de liberdade religiosa,
e atribuiu-se responsabilidade exclusiva ao médico, respondendo este
por homicídio culposo5.
De outro modo, na Ação Cautelar Inominada n. 2009.35.00.
003277-7, da Seção Judiciária do Estado de Goiás, a Juíza Federal Lucina
Laurenti Gheller, em 2009, julgando um caso que envolvia paciente de
Testemunha de Jeová, entendeu que em se tratando de paciente que de-
tenha capacidade civil e esteja ciente da gravidade de seu estado, a recusa
em se submeter à transfusão sanguínea é direito que lhe assiste, ainda que
haja risco de vida.
Percebe-se assim que a questão está longe de ser resolvida, uma
vez que a responsabilidade do médico deve ser verificada analisando cada
caso concreto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo que foi exposto, percebe-se que tem prevalecido na ju-
risprudência pátria, bem como na doutrina, que o médico não poderá ser

5 HC 268.459/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA


TURMA, julgado em 02/09/2014, DJe 28/10/2014

164 | Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa | Danilo Scramin Alves


responsável por realizar a transfusão de sangue em paciente Testemunha
de Jeová para salvar-lhe a vida. Isto porque a justiça entende que, diante
do conflito entre dois direitos fundamentais, deve-se utilizar a técnica de
ponderação de modo a analisar, no caso concreto, qual direito tem um
peso maior.
Assim, para nossa ordem jurídica, o direito à vida é considerado
o principal direito para que se torne eficaz o princípio da dignidade hu-
mana, possuindo prevalência neste caso específico.
Ressalta-se, ainda, que o médico que realiza este procedimento
amparado em tal emergência, não será responsabilizado pelo ato princi-
pal de transfundir, quer dizer, pelo fato de não ter respeitado a vontade
do paciente. Entretanto, se na prática desse ato, atuar de forma abusiva,
violando outros direitos (como deixar de esclarecer sobre o procedimen-
to ou deixar de aplicar método considerado adequado naquele caso), po-
derá ser responsabilizado. Resumindo: o médico, visando evitar a morte
do paciente, não será responsabilizado por realizar a transfusão sanguí-
nea, pode, porém, ser responsabilizado por excessos que ultrapassem os
limites do ato principal.
A conduta médica nestes casos já é considerada arbitrária, pois
que contrária à vontade do paciente. Dessa forma, o médico deve atuar de
forma mais benevolente e atenciosa de modo a evitar transtornos maio-
res do que os já causados.
À vista disso, considerando os apontamentos dos doutrinado-
res, o Código de Ética Médica e os entendimentos jurisprudenciais, é
possível concluir que diante do risco de vida é irrelevante que o paciente
seja capaz ou incapaz, consciente ou inconsciente, adulto ou criança, de-
vendo o médico, ainda que por recusa própria ou de seus representantes,
realizar o procedimento que entender melhor no tocante à sua saúde.
Aqui prevalece o bem estar físico do paciente em detrimento do sua au-
tonomia privada.

REFERÊNCIAS

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lio Afonso da Silva. 2ª ed 4ª triagem. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 165


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A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 167


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168 | Manuelle Cristina de Albuquerque Barbosa | Danilo Scramin Alves


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A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO QUE REALIZA TRANSFUSÃO DE SANGUE ... | 169


IX
POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS,
DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE:
UMA INTERLOCUÇÃO POSSÍVEL SOB O VIÉS
DA INTERNACIONALIZAÇÃO DA
EDUCAÇÃO SUPERIOR

Lucas Gonçalves Abad1


Francine Nunes Ávila 2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente capítulo trata das influências de organismos mul-


tilaterais na afirmação dos direitos humanos, sob o viés da internacio-
nalização da educação superior, para a construção de políticas públicas
educacionais em saúde. Essas, compõem um conjunto de proposições
que visam atender às necessidades da comunidade e estão relacionadas à
educação em saúde, em especial na formação médica do Brasil.
Os processos de internacionalização da educação superior per-
meiam todas as atividades que proporcionam o atendimento às necessi-
dades de formação para o mercado de trabalho, para a cidadania global e

1 Doutorando em Educação pela PUCRS. Participa da Linha de Pesquisa:


Formação, Políticas e Práticas em Educação. Mestre em Educação, Especialista em
Neuropsicopedagogia, Licenciado em Pedagogia, Tecnólogo em Gestão de Serviços
Jurídicos e Notariais e Graduando em Direito pela IMED-POA e Filosofia pela
UFPEL. E-mail: lucasgoncalvesabad@gmail.com  
2 Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela FEEVALE. Mestra em
Ciências Criminais pela PUCRS. Participa da Linha de Pesquisa: Inclusão Social
e Políticas Públicas. Advogada. Professora da Graduação em Direito no Instituto
de Desenvolvimento Educacional de Bagé – IDEAU. E-mail: francineavila@yahoo.
com.br
para a integração solidária. Diante desse contexto, organismos multilate-
rais como a Organização das Nações Unidas, Banco Mundial, dentre ou-
tros, por intermédio de políticas globais, atuam ao traçar diretrizes para
a educação superior, de forma que em todos os processos há o fortaleci-
mento da afirmação dos direitos humanos na educação.
As políticas públicas educacionais em saúde dialogam com a
formação em direitos humanos, especialmente quando tratam da legisla-
ção comparada, à luz do sistema internacional de normas e diretrizes, que
apontam para a formação integral do sujeito, em especial na área da saúde.

2. INTERNACIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
SUPERIOR E A INFLUÊNCIA DE ORGANISMOS
MULTILATERAIS NA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS

A Internacionalização da Educação Superior é entendida como


“qualquer esforço sistemático que tem como objetivo tornar a Educação
Superior mais respondente às exigências e desafios relacionados à glo-
balização da sociedade, da economia e do mercado de trabalho” (MO-
ROSINI, 2006, p 97). Dessa forma, as práticas de internacionalização
da educação superior, em contextos locais, buscam atender a políticas
globais, em especial aquelas provenientes de tratados e convenções in-
ternacionais, nos quais o Brasil é signatário, onde são sistematizadas por
intermédio de programas e projetos institucionais que dialogam com as
políticas educacionais locais, planejadas, executadas e avaliadas dentro
de um paradigma globalizado.
Em relação aos organismos multilaterais, conceituados segundo
Morosini (2006, p.108) como: “atores da internacionalização universitária
no âmbito intergovernamental”, citamos a Organização das Nações Uni-
das para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO, o Banco Mundial, a
Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico – OCDE,
Organização Mundial do Comércio – OMC, dentre outros produtores de
políticas globais, que associados à internacionalização da educação supe-
rior, influenciam nos contextos particulares (MOROSINI, 2006).

172 | Lucas Gonçalves Abad | Francine Nunes Ávila


Por conseguinte, a ONU, UNESCO, UNICEF, Banco Mundial
e outros organismos internacionais, a partir do Fórum Mundial de Edu-
cação de 2015, realizado em Incheon, na Coréia do Sul, adotaram a De-
claração de Incheon para a Educação 2030, traçando Objetivos de De-
senvolvimento Sustentável (ODS) que propõem assegurar uma educação
que seja:

inspirada por uma visão humanista da educação e do desenvolvi-


mento, com base nos direitos humanos e na dignidade; na justiça
social; na inclusão; na proteção; na diversidade cultural, linguística
e étnica; e na responsabilidade e na prestação de contas comparti-
lhadas. Reafirmamos que a educação é um bem público, um direito
humano fundamental e a base que garante a efetivação de outros di-
reitos. Ela é essencial para a paz, a tolerância, a realização humana
e o desenvolvimento sustentável. (ONU, 2015)

Depreende-se da Declaração de Incheon, que os Estados Mem-


bros estão empenhados em desenvolver políticas com objetivos de de-
senvolvimento sustentável que visam dentre outros, a educação como
bem público e direito humano fundamental. Além disso, a respeito de
uma das finalidades da educação em direitos humanos, é necessária uma
reflexão quanto à tarefa de humanizar-se, de forma que “humanizar é a
principal tarefa da educação como prática de liberdade” (CARBONARI,
2014, p. 171).
Também, na concepção freiriana, a educação libertadora aten-
ta para o olhar crítico quanto à historicidade do ser humano dentro do
processo educacional e proporciona que a própria historicidade confere
a necessidade de reconhecimento desses sujeitos, como sujeitos de direi-
tos, onde as violações são denunciadas quanto à afirmação de proteção
de todos os direitos humanos como parte do processo de humanização
(CARBONARI, 2014).
Ressalta ainda Carbonari (2014), quanto à praticidade da edu-
cação em direitos humanos como forma de afirmação desses direitos a
todo homem, o seguinte:

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE ... | 173


Fazer da educação uma prática de direitos humanos é, acima de
tudo, fazer perpassar nela (não só transversalmente, mas em todos
os sentidos, práticas e processos) os direitos humanos. Trata-se de
compreender que não há como desenvolver qualquer ação de edu-
cação engajada na humanização sem que nela se responda positi-
vamente dizendo que aquela é uma ação que promove os direitos
humanos. (CARBONARI, 2014, p.179)

Sendo assim, a educação em direitos humanos deve estar em-


penhada em compreender esse processo como prática idiossincrática
do ensino, nas diversas área do conhecimento, levando em conta que a
cultura hegemônica manifestamente imposta pelas políticas neoliberais
ofuscaram a memória coletiva objetivando uma amnésia histórica e pode
ser considerada “parte tão importante do projeto social e pedagógico de
transformação radical da direita” (APPLE, 2017, p. 161).
A partir disso, destacam-se movimentos contra hegemônicos
em todas as partes do mundo, com educadores ativistas que propunham
a (re)criação de identidades coletivas e a aproximação da escola e seus
agentes das comunidades oprimidas, prezando pela manutenção de pro-
cessos democráticos e solidários. Não obstante, esses movimentos ressal-
tam a importância do papel da escola na sociedade, reforçando o reco-
nhecimento do trabalho cultural e a importância da atuação de profes-
sores e ativistas comunitários em processos participativos que envolvem
governo, escola e sociedade (APPLE, 2017).
Em contraponto a esses movimentos, a visão neoliberal, direi-
tista, visa mitigar os direitos individuais de cidadãos já excluídos histo-
ricamente e socialmente, reduzindo a escola a simples produção de su-
jeitos que atendam as demandas de formação para um mercado global
altamente competitivo.
Ainda assim, importante salientar que o engajamento de movi-
mentos sociais e educacionais que reforcem o combate ao neoliberalis-
mo, por meio da construção alternativa de propostas e participações edu-
cacionais mais democráticas, como é o caso do Orçamento Participativo
e das propostas da Escola Cidadã, em debates apresentados por Apple
(2017) trata de responder ao questionamento da possibilidade da edu-
174 | Lucas Gonçalves Abad | Francine Nunes Ávila
cação mudar a sociedade, tornando assim o processo educacional mais
crítico e democrático.
Ainda Apple (2017), tratando da participação aberta da comu-
nidade, em deliberações políticas de investimento e recursos, especial-
mente na Educação, confere a essa mais autonomia na formação de su-
jeitos em uma perspectiva de educação emancipatória. Sendo o reconhe-
cimento desses deveres/direitos, a constituição que parte de uma cons-
trução histórico-social de afirmações de direitos humanos, garantidoras
de condições básicas e elementares que conferem a toda humanidade a
dignidade, como garantia irrestrita e irrenunciável de qualquer cidadão.
Nesse sentido, desenvolver propostas formativas com olhar
para as diferenças, reconhecendo o outro como sujeito constituidor de
sua própria existência, pressupõe ações colaborativas e o fortalecimento
de políticas garantidoras de direitos humanos que visam o bem comum,
pautado no reconhecimento de direitos universais, com um olhar para os
processos de interculturalidade existentes na sociedade, balizados pelo
respeito, cooperatividade e de exercício da prática da humanidade.
Sendo assim, a importância de processos formativos onde haja
o reconhecimento do papel fundamental do docente, com olhar crítico
para a influência positiva desse profissional em uma sociedade que apoia
políticas globais de formação, proporcionam os diálogos com as deman-
das sociais, culturais e econômicas.
Para tanto, compreender o educador como agente sociocultural
é o que nos propõe Candau (2012) ao contextualizar a emergência de
novos paradigmas, político-sociais, culturais, científicos, pedagógicos e
éticos, onde a desnaturalização da profissão docente é necessária, uma
vez que é preciso ressignificar saberes na construção de uma educação de
qualidade para todos.
De outra forma, o contexto internacional não favorável à afir-
mação cultural dos Direitos Humanos, onde, segundo Candau (2007, p.
399) as “realidades que estão acentuando a exclusão, em suas diferentes
formas e manifestações”, ocasionadas pela globalização, políticas neoli-
berais e segurança global, criam tensões e conflitos e reforçam o papel da
educação em direitos humanos para o reconhecimento da diferença, nas
diversas áreas do conhecimento.

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE ... | 175


Ademais, apesar do caráter de universalidade dos direitos hu-
manos, há que se levar em conta a heterogeneidade das diferentes comu-
nidades, países e regiões do mundo, as quais possuem dentro de um con-
texto de diversidade, algo rico e único, caracterizando assim os processos
interculturais existentes na sociedade globalizada.
Nessa busca por universalidade e diversidade ao mesmo tempo,
torna-se necessário reconhecer que os sistemas e direitos de cada povo,
gira em torno de um determinado costume, que marca exatamente a
razão da sua exclusão perante a sua sociedade, muito embora algumas
características sejam constantes de discriminação de forma geral hodier-
namente, a citar raça, cor, gênero e orientação sexual.
Para Trindade (2000), a discriminação de uma forma geral é
combatida e criticada somente em relação aos direitos civis e políticos,
sendo tolerada como inevitável em relação aos direitos econômicos, so-
ciais e culturais, onde vemos uma condenação de qualquer tipo de dis-
criminação quando se trata do direito individual, ou mesmo de direitos
políticos, mas uma tolerância absoluta quando se trata de disparidades
em matéria de salários, de renda e demais categorias correlatas, o que ao
invés de ajudar no combate à discriminação, valida a diferença de impor-
tância entre as gerações dos direitos.
Exemplifica o autor que na China, para os chineses, ao contrá-
rio dos norte-americanos, os verdadeiros direitos são econômicos e so-
ciais, demonstrando as individualidade dos direitos humanos, apesar de
universais.
Se traçarmos um paralelo entre as perspectivas de direitos hu-
manos no Brasil e o que isso significa para os indivíduos do oriente mé-
dio, do mundo oriental como um todo, são incomparáveis, sendo que
para estes direitos humanos são a importação e imposição dos valores
ocidentais, muitos rechaçando por se tratar de uma imposição cultural
externa e hegemônica, já que sua perspectiva e olhar são do devir, lógica
totalmente diferente do pensamento materialista brasileiro.
Na visão de Roberto Kant de Lima (2001), esse seria um efeito
da mundialização e da internacionalização:

Perquirir os princípios que delimitam e constituem este espaço, colo-


car em foco as categorias de generalidade e localidade na abrangên-

176 | Lucas Gonçalves Abad | Francine Nunes Ávila


cia das regras que o regulam, de universalidade e particularidade
na sua aplicação, de interpretações autorizadas ou de literalidade
dos enunciados que fundam sua legitimidade, afigura-se tarefa con-
temporânea das mais relevantes, que serve tanto à reflexão sobre o
ofício de antropólogo como quanto aos limites em que a liberdade
de indivíduos ou grupos pode ou deve ser exercida nesse mundo ex-
tremamente visível, heterogêneo, midiático em que vivemos todos.
(LIMA, 2001, p.08)

De toda sorte, é necessário pensar direitos humanos de uma


forma universal, respeitando as particularidades de cada indivíduo, o
espaço geográfico e as características de cada cultura, pensando a dig-
nidade da pessoa humana como conceito basilar de onde emana e para
onde são direcionadas todas as políticas afirmativas, tal qual a internacio-
nalização do ensino superior no que diz respeito aos direitos humanos,
especialmente sobre as influências de projetos e políticas de organismos
multilaterais sobre a educação superior, em especial a educação em direi-
tos humanos.

3. POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS EM


SAÚDE NO BRASIL, O DIREITO À SAÚDE E A
AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Em relação à temática de Direitos Humanos, a Constituição Fe-


deral (CF) brasileira manifesta-se expressamente, quanto à regência das
relações internacionais, na observância do princípio da prevalência dos
direitos humanos, que associados a outros princípios, tutelam esses direi-
tos, podendo estar vinculados aos direitos e garantias fundamentais ou
outros decorrentes da ordem jurídica nacional e internacional.
Tais tutelas manifestam, por exemplo, que os “tratados e con-
venções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados,
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quin-
tos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais” (BRASIL, 1986), assim como definem a competência

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE ... | 177


aos juízes federais (Art. 109, V/CF) para processar e julgar as causas
relativas a direitos humanos, nas hipóteses de violação desses direitos e
ainda conferem à Defensoria Pública, fundamentalmente, a promoção
dos direitos humanos.
De outra forma, a carta magna define a competência exclusiva
da União para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional,
conforme expresso no artigo 22, inciso XXIV. Destacando ainda, no ar-
tigo 205 do mesmo dispositivo legal que “a educação, direito de todos e
dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a cola-
boração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(BRASIL, 1988).
Atendendo ao disposto na CF, o legislador edita a Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), disciplinando sobre
a educação e demonstrando que para a Educação Básica, os currículos
devem abordar conteúdos relativos aos Direitos Humanos, bem como
a prevenção de todas as formas de violência. De outra forma, na Educa-
ção Superior, dentro do exercício de sua autonomia, serão asseguradas às
universidades, fixar os currículos de seus cursos, observando as diretrizes
gerais pertinentes (BRASIL, 1996).
Como bem explicita Sifuentes (2009, p. 65) “o direito à educação
é um direito fundamental social, pois implica a necessidade de atuação
positiva por parte do Estado em favor do cidadão, uma das características
do Estado social”. Dessa forma, torna-se o Estado responsável pela tutela
do direito à educação, de maneira que atendendo à legislação maior, deve
garantir a todos, por intermédio de ações e políticas educacionais, o aces-
so aos níveis elementares do ensino, pautados na perspectiva da educação
em direitos humanos.
Silva e Tavares (2013), apontam que na análise da educação em
direitos humanos, dentro de uma estrutura e organização de planos de
ação, destaca-se a necessidade de formação de profissionais de maneira
prioritária, tendo em vista a dificuldade na formação em direitos huma-
nos para a efetividade dos planos de ação que transformem projetos pon-
tuais em políticas públicas com foco na educação em direitos humanos.

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O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNE-
DH) ressalta que a formação cidadã deve estar pautada no compromisso
do reconhecimento de todos como sujeitos de direitos, destacando ainda
que a Constituição Federal e a LDBEN afirmam o exercício da cidada-
nia, de forma que o PNEDH apoiado nesses dispositivos nacionais e em
outros internacionais, baliza a educação em direitos humanos, buscando
“contribuir para dar sustentação às ações de promoção, proteção e defesa
dos direitos humanos, e de reparação das violações”(BRASIL, 2007, p.26).
Dentre as linhas gerais de ação em relação à formação e capa-
citação de profissionais, o PNEDH propõe “inserir o tema dos direitos
humanos como conteúdo curricular na formação de agentes sociais pú-
blicos e privados” (BRASIL, 2007, p.29). Especificamente em relação à
Educação Superior, na exposição da concepção e princípios, o PNEDH
elenca uma série de princípios que devem nortear a educação superior
na contribuição na área de direitos humanos, dentre eles o de ser a edu-
cação em direitos humanos uma prática permanente, contínua e global,
buscando a construção de projetos coletivos, difusão de valores democrá-
ticos com a finalidade de transformar a sociedade.
A respeito disso, Leite e Fernandes (2010) admitem que, para
que a mudança ou transformação seja possível, os professores devem as-
sumir a posição de educadores, críticos e reflexivos, de forma que pos-
sam propiciar a formação global de seus alunos ainda que identifican-
do dificuldades no trabalho colaborativo de seu exercício profissional.
Entretanto, algumas tensões podem ser apresentadas na implementação
da Educação em Direitos Humanos dentro de políticas internas de cada
país, em especial após a Constituição Federal de 1988, conforme destaca
Lafer (2005):

Entendo que o princípio de prevalência dos direitos humanos (art.


4º, II) possui a característica de uma política jurídica exterior de
Estado e não de governos, por ser uma das importantes notas iden-
tificadoras da passagem do regime autoritário para o Estado demo-
crático de direito, em consonância com o texto e o espírito da Cons-
tituição de 1988. (LAFER, 2005, p.18)

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE ... | 179


Outrossim, o diálogo existente entre educação, direitos huma-
nos e direito à saúde, perpassam caminhos estreitos, onde as propostas
de discussões na construção dos currículos de formação profissional, de-
vem estar pautadas em atenção especial aos direitos fundamentais dos
indivíduos, como o caso da educação e da saúde, em uma perspectiva de
direitos humanos.
Ainda como afirmam Sturza e Martini (2016), o reconhecimen-
to do direito à saúde, garantido por um acesso igualitário e satisfatório,
fruto de ações integradas entre Estado e sociedade, contribui para a pre-
servação e qualidade de vida. Ainda as autoras ao abordarem o direito à
saúde na perspectiva internacional, destacam que:

a promoção, garantia e especialmente a efetivação do Direito à Saú-


de necessitam, em síntese, não só de estratégias que envolvam todos
os segmentos da sociedade, mas também de um aparato de instru-
mentos legais tanto nacionais quanto internacionais, em um esforço
conjunto para buscar o acesso igualitário a este direito de impres-
cindível relevância para o pleno desenvolvimento do Estado de Bem
Estar Social. (STURZA e MARTINI, 2016, p.47)

Sendo assim, promover a efetivação do direito à saúde, por in-


termédio de propostas de intervenção da educação em direitos humanos,
propõe um diálogo com as políticas públicas, que deve estar presente,
uma vez que elas tratam da “gestão de problemas e demandas coletivas
através da utilização de metodologias que identifiquem as prioridades,
racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento
como forma de atingir os objetivos e metas predefinidos” (DIAS, 2011.
p.261).
Nesse sentido, vislumbrar o pleno acesso e garantia de direitos
humanos, quando se tratam de situações voltadas para a efetivação e tu-
tela do direito à saúde e à educação, em propostas que garantam dentro
da construção de políticas educacionais, a modificação de paradigmas
atuais em novos modelos ideais, conferem à sociedade a possibilidade
de colocarem nas arenas de discussão, propostas de avaliação e reflexão
sobre novas políticas públicas.
180 | Lucas Gonçalves Abad | Francine Nunes Ávila
No entendimento de Secchi (2013, p.10), a diferença entre a si-
tuação atual e uma situação ideal possível para a realidade pública é o
próprio problema público, caracterizado por uma situação inadequada e
relevante para a sociedade. A respeito disto, ressalta o autor, que política
pública é um conceito abstrato que se materializa por meio de instru-
mentos variados, como exemplo de programas públicos, projetos, leis,
campanhas, etc.
O Estado como grande nutridor de políticas públicas visa a re-
solução de problemas coletivamente relevantes, de forma que possam
equalizar as diferenças sociais e econômicas existentes em determinada
sociedade, diferenças estas que forçam o distanciamento entre as situa-
ções reais e o ideal comum.
Para Secchi (2013), a busca pelo equilíbrio ou consenso dentro
de um processo de formulação de políticas públicas se inicia com a atua-
ção, em uma arena decisória, de grupos de pressão, que atuarão de igual
forma na análise de políticas já implementadas, para que as avaliem, ve-
rificando se os princípios da legalidade e eficiência administrativa estão
sendo atingidos, de tal forma a observar os direitos básicos dos sujeitos
envolvidos.
Dessa forma, a legislação infraconstitucional atua como efetiva-
ção de políticas públicas, uma vez que nascem da tensão existente entre
paradigmas contrapostos que ao mesmo tempo que divergem situações
ideais ou não ideais, convergem em propostas de melhoria e possibili-
dades de efetivação de políticas públicas nas diversas áreas, em especial,
nas políticas educacionais, como por exemplo, aquelas que promovem
diretrizes para a educação.
Em relação às Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os
cursos de graduação vinculados à área da saúde, especificamente para a
formação médica, por intermédio das DCN do curso de Graduação em
Medicina, instituídas pela Resolução CNE/CES N° 3, de 20 de junho de
2014, destacamos o artigo 3º, que trata as características básicas da for-
mação médica, propondo que o curso deve aliar à formação do graduado
em Medicina a uma:

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE ... | 181


formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade
para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de pro-
moção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos
individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com
a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do
ser humano e tendo como transversalidade em sua prática, sempre, a
determinação social do processo de saúde e doença. (BRASIL, 2014)

Sendo assim, o documento que baliza a formação do médico no


Brasil, assume a responsabilidade e compromisso, além da defesa da cida-
dania e da saúde integral do ser humano, a defesa da dignidade humana,
que segundo Andrade (2013), é legitimada por intermédio dos direitos
humanos que concentram os mais elevados valores morais, e constitui-se
em um valor absoluto e incondicionado, uma vez que assegura os direitos
básicos de todos os seres humanos, já proclamados na Declaração Uni-
versal de Direitos Humanos (DUDH).
Ainda, no que tange aos conteúdos fundamentais para a for-
mação médica, as DCN do curso ressaltam para abordagem dos direitos
humanos em temas transversais do currículo, de maneira sistematizada
envolvendo conhecimentos, vivências e reflexões. De outra forma, dentro
de dimensões éticas e humanísticas, deve haver o desenvolvimento no
aluno, de atitudes e valores voltados para os direitos humanos, sempre
promovendo em ações de monitoramento o estímulo ao compromisso de
transformações práticas e culturais em defesa do direito à saúde.
Por conseguinte, importante salientar que a DUDH em seu ar-
tigo 25 declara o direito que todo ser humano tem a “um padrão de vida
capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimen-
tação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indis-
pensáveis(...)” (DUDH, 1948).
Resta claro que, assim como a saúde, “a educação não é um di-
reito humano apenas porque está expresso em declarações ou em códi-
gos legais” (ANDRADE, 2013, p. 26), mas por expressar direito básico
de toda pessoa e constitui objeto de políticas públicas que asseguram o
exercício desse direito/dever que não somente compete ao Estado, mas a
todos os envolvidos no processo educativo.
182 | Lucas Gonçalves Abad | Francine Nunes Ávila
Outrossim, as DCN da graduação em Medicina, resguardam
em seção específica, o objetivo da educação em saúde propiciar a am-
pliação de oportunidades de aprendizagem por intermédio de programas
de mobilidade e redes estudantis, nos âmbitos nacionais e internacionais,
além de que, o documento também ressalta a importância do Projeto
Pedagógico do Curso na contribuição com o fomento e difusão de prá-
ticas, considerando os contextos internacionais e históricos, dentro de
uma perspectiva intercultural (BRASIL, 2014).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando o legislador constitucional se manifesta quanto à pre-


valência dos direitos humanos como princípio do Brasil em suas relações
internacionais e confere aos tratados e convenções internacionais, que
versem sobre a temática, a equivalência a emendas constitucionais, tende
a reafirmar a importância dada pelo Estado brasileiro no reconhecimento
dos direitos humanos a todos, indistintamente, ainda reconhecendo-os
como sujeitos de direitos.
Ademais, a Constituição Federal reconhece a educação como
dever do Estado e da família, reforçando que a mesma objetiva no preparo
para a cidadania. Com isso, tendo em vista a formulação de diretrizes que
norteiam a educação, o legislador infraconstitucional promoveu a edição
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que regulamentou
de maneira geral a educação no país, tornando expressa a obrigatorieda-
de da abordagem de conteúdos de direitos humanos à Educação Básica,
sem mencionar essa obrigatoriedade na Educação Superior. Entretanto, o
dispositivo legal destaca a autonomia das instituições de ensino superior
para a construção de seus currículos visando à formação profissional do
sujeito de acordo com as diretrizes curriculares de cada área.
Quando divulga o Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos, elencando uma série de princípios a serem observados na
Educação Básica e Educação Superior, o Comitê Nacional de Educação
em Direitos Humanos propõe, com o documento, vincular ações que in-

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, DIREITOS HUMANOS E DIREITO À SAÚDE ... | 183


tegrem as políticas públicas nacionais e institucionais no âmbito da edu-
cação básica e superior, de forma que as diretrizes possam ser adequadas
visando o atendimento da política proposta.
De outra forma, ao buscar atender as demandas sociais geradas
nos processos de constituição de políticas públicas, em especial as educa-
cionais, o Estado, como garantidor de direitos à educação e à saúde, busca
a promoção de direitos humanos por intermédio de planos, projetos e
legislações específicas que atendam aos objetivos propostos constitucio-
nalmente e aqueles decorrentes de tratados internacionais onde o Brasil
é signatário.
Ainda assim, o diálogo existente entre educação, direitos huma-
nos e direito à saúde, em uma interlocução proposta internacionalmente,
tem sua estrutura consolidada dentro de políticas educacionais internas
e externas que representadas por diretrizes nacionais, refletem na cons-
trução de propostas curriculares para a formação de profissionais que
atendam demandas e promovam soluções eficazes na garantia de direitos
humanos, em especial direitos à saúde e à educação.

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186 | Lucas Gonçalves Abad | Francine Nunes Ávila


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foram plantadas para este fim, e produzido com
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