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TEXTOS & CONTEXTOS


(PORTO ALEGRE)

Textos & Contextos Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 1-12, jan.-dez. 2021


e-ISSN: 1677-9509

http://dx.doi.org/10.15448/1677-9509.2021.1.38618

SEÇÃO: ARTIGOS E ENSAIOS

Cultura de Paz: Aspectos históricos e conceituais


Culture of Peace: Historical and Conceptual Aspects

Simone Barros de Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir a concepção de paz
como constructo cultural e de oposição à passividade diante da injustiça social.
Oliveira1
orcid.org/0000-0002-7314-3550 Realiza um percurso histórico e conceitual sobre a construção da Cultura de Paz,
simoneoliveira@unipampa.edu.br
trazendo as principais apreensões sobre paz que influenciaram a organização da
vida em sociedade. O estudo é oriundo de revisão bibliográfica, utilizando-se do
método crítico-dialético para investigação analítica e exposição dos resultados
da pesquisa. As análises evidenciaram que a Cultura de Paz, ao buscar resolver
Monique Soares Vieira1
orcid.org/0000-0002-4463-5724
os conflitos, contribui para o enfrentamento da cultura dominante, em que a
violência é combatida por meio do confronto e construtos ideológicos que a
moniquevieira@unipampa.edu.br
justifica e naturaliza. Desse modo, é possível asseverar que Cultura e a Educação
para a Paz são potencialidades para a construção do conhecimento e afirmação
da democracia, pois buscam a edificação genuína das relações humanas, em-
Letícia Brum1 basadas em valores de justiça social, solidariedade e liberdade.
orcid.org/0000-0001-8760-4373
leticiabrumleticia@gmail.com Palavras-chave: Estudos de paz. Violência. Cultura de paz. Comunicação não
violenta.

Abstract: This article aims to discuss the concept of Peace as a cultural con-
structo and as an opposition to passivity in the face of social injustice. It carries
Recebido em: 16 jul. 2020. out a historical and conceptual journey on the construction of the Culture of
Aprovado em: 16 nov. 2021. Peace, bringing the main apprehensions about peace that influenced the orga-
Publicado em: 30 dez. 2021. nization of life in society. The study comes from a bibliographic review, using the
critical-dialectic method for analytical investigation and exposure of research
results. The analyzes showed that the Culture of Peace, in seeking to resolve
conflicts, contributes to the confrontation of the dominant culture, in which vio-
lence is combated through confrontation and ideological constructs that justify
and naturalize it. In this way, it is possible to assert that Culture and Education for
Peace are potentialities for the construction of knowledge and the affirmation of
democracy, as they seek the genuine edification of human relations, based on
values of social justice, solidarity and freedom.
Keywords: Peace studies. Violence. Culture of peace. Nonviolent communication.

Introdução
Este artigo é fruto de um estudo exploratório de cunho bibliográfico que
visa discutir a importância da cultura de paz para resolução de conflitos
de forma pacífica. O objetivo é realizar uma reflexão histórico-conceitual
sobre como a cultura de paz vem conformando-se como potencialidade,
para o enfrentamento à violência nas complexas dimensões.
As reflexões tecidas neste trabalho são frutos das discussões e es-
tudos realizados pelo Grupo de Pesquisa Educação, Direitos Humanos
Artigo está licenciado sob forma de uma licença
e Fronteira da Universidade Federal do Pampa (Campus São Borja),
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

1
  Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), São Borja, RS, Brasil.
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fundado em 2010, com aproximadamente 20 modelo analítico de Johan Galtung, que explica
integrantes entre pesquisadores, discentes e o fenômeno a partir do “triângulo da violência”,
profissionais comprometidos com as três linhas em que a violência estrutural juntamente com
de pesquisa, voltadas para os estudos nas áreas a cultural aparecem na base triangular, como
de direitos humanos, cultura de paz, comunicação elementos que determinam as relações sociais
não violenta e políticas públicas. e, no topo da pirâmide, a violência direta, ou seja,
Os estudos para a paz atuam como alternativa aquela que se pode ver, que causa comoção e/
para a construção das relações humanas, dian- ou revolta e, portanto, tem repercussão midiática.
te a sociedades violentas, em que a violência Já no terceiro tópico, constrói-se um diálogo
se apresenta como componente estrutural nas entre a cultura tradicional e a cultura de paz e,
realidades capitalistas. “A violência fere e marca nessa construção, são apresentadas as diferenças
a humanidade da vítima” (MULLER, 2007, p. 39), conceituais entre as duas culturas, sinalizando as
mas as marcas da violência nem sempre são limitações da cultura tradicional para a resolução
visíveis; as disparidades sociais, em sociedades dos conflitos e as potencialidades da cultura de
desiguais como a brasileira, mediada pela heran- paz na processualidade histórica para mediação
ça escravagista, colonial e pela lógica destrutiva das relações humanas.
do capitalismo dependente, darão um contorno No quarto momento da discussão, apresen-
abissal na divisão entre as classes sociais. ta-se a cultura de paz, como matriz inovadora
Em contextos como esse, a violência apre- para transformação criativa e não violenta dos
senta-se banalizada e naturalizada, acarretando conflitos. Nesse tópico, aborda-se a necessidade
uma cultura que adota a indiferença perante o do conflito para restauração das relações sociais.
sofrimento do outro, como tônica para relações Evidencia-se que, na cultura de paz, o conflito
desumanizadas e destrutivas de subjetividades. não possui enfoque negativo, mas transformativo,
Essas conexões humanas balizadas pelos valores pois permite que, por meio da ação política, a
capitalistas da concorrência, do individualismo, sociedade seja organizada com base na justiça
da dominação e exploração destroem a essên- e no respeito aos direitos de cada sujeito.
cia humana e transformam os sujeitos em coisa
(WEIL, 1996). Cultura de paz: contribuições históricas
Diante desse contexto de violência banalizada, em perspectiva
é importante que se busquem valores e formas O entendimento sobre az, ao longo da história
alternativas não destrutivas de relacionamento da humanidade, tem se apresentado por meio
em sociedade e uma resolução de conflitos não de uma simbologia própria impregnada de sen-
violenta, alicerçada nos direitos humanos em so comum. De forma bastante banal, o termo
direção a uma cultura de paz. Nessa direção, o “paz” está presente no cotidiano humano. Existe
presente trabalho foi desenvolvido a partir de uma culturalidade nas sociedades de se desejar
pesquisa bibliográfica, com enfoque qualitativo paz a outrem, estando associado ao anseio de
à luz do direcionamento da teoria crítica. ausência de perturbações e problemas na vida
O artigo foi dividido em quatro momentos. do destinatário, logo, a paz, nessa perspectiva,
Primeiramente, realiza-se um percurso histórico é relacionada à passividade.
acerca da construção da percepção de paz, per- No senso comum, prevalece esta sinonímia:
passando da tradição grega ao movimento dos a paz ter a equivalência de significação da pas-
direitos civis no século XX, em que a paz assume sividade, que em outros termos denota inércia,
papel central na luta por direitos e rompimento apatia e escassez da ação. Ordinariamente vincu-
de relações opressoras. lada à ausência da guerra, sendo essas inclusive
Em um segundo momento, são tecidas re- linguisticamente antônimas (SILVA, 2002).
flexões sobre a violência, apresentando-se o Oliveira (2009) refere que, diante da pluralidade
Simone Barros de Oliveira • Monique Soares Vieira • Letícia Brum
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do conceito de paz ao longo da história, torna- sume uma grande gama de significações, mas,
-se pertinente observar algumas percepções sobretudo um sentido de totalidade e completude
e tradições culturais ocidentais influentes que irretocável, em que não há espaço para melhora-
foram estabelecidas em relação a ela. A paz está mento, pois shalom já seria o que há de melhor.
presente em diversas culturas e é entendida sob “Percebe-se, na compreensão judaica de paz,
diferentes prismas. Vejam-se as principais: alguns elementos já presentes na tradição grega,
A tradição grega: Os gregos da antiguidade como a simbólica da abundância e a vinculação
trouxeram a paz incorporada a uma divindade com a justiça, e, em muitos círculos, uma recusa
feminina mitológica, Eirene, que é a deusa dos e oposição da simbólica militarista romana” (GUI-
frutos e também atribuída às estações do ano, MARÃES, 2011, p. 103).
juntamente com as irmãs: Eunomia (a Boa Ordem A paz relacionada diretamente à religião está
e a Equidade) e Diqué (Justiça), ligada à abun- sedimentada na passagem de Jesus pela Terra,
dância (ROLDÁN, 1998). que dá origem ao advento do cristianismo. A fi-
Diante do contexto mítico de Platão, Eirene gura de Jesus Cristo “herda a tradição profética e
(conduta pacífica) é apresentada em interde- assume a paz como um dos elementos centrais
pendência com as irmãs que, atuando juntas, as de sua proposta” (MAÇANEIRO, 2013, p. 72).
deusas teriam maior eficácia nas ações, inclusive O Cristo, para a tradição judaico-cristão, ex-
na própria promoção da paz (SERIQUE, 2011). A pressa-se pela rejeição à violência e institui a paz
paz grega, portanto, remete a um equilíbrio tanto como algo que deve ser alcançado cotidianamente
da natureza quanto da pólis, e essa harmonia e que estabelece características de consonância
conferida pelos deuses aos mortais, não deve e harmonia, além de um sentido de paz que é
ser dissipada pelos humanos (GUIMARÃES, 2011). inclusiva e abrangente. A eirene do Cristo tinha
Na tradição romana, percebe-se que a paz uma proposta diferente da paz romana.
estava diretamente ligada ao âmbito político de Em Cristo, a paz revela-se nos princípios de
Roma pela figura do imperador e, na esfera reli- generosidade aos estrangeiros, valorização das
giosa com Marte, o deus da guerra, os quais eram pessoas dos estratos mais baixos da sociedade,
aliados no intuito de realizar a manutenção da rompimento das relações díspares de gênero.
paz de forma ofensiva e tirânica (SERIQUE, 2011). Cristo seria uma espécie de a voz à denúncia dos
Nesse empenho combativo em preservá-la é sistemas injustos, comprovando que a eirene do
que surge a expressão Pax Romana, assegurada Cristo, “para os cristãos primitivos, era substan-
pelas forças militares imperiais. A Pax Romana cialmente diferente da paz oferecida pelo Império
está indissoluvelmente ligada ao Império Roma- Romano” (SERIQUE, 2011, p. 130).
no, uma paz estabelecida pelo centro do poder. É No entanto, a história do cristianismo ocidental
perceptível o caráter ideológico que marca a Pax é repleta de episódios sombrios de violência por
Romana, em que torna qualquer ação do império, parte da Igreja Católica, a exemplo da própria
inclusive a mais brutal, justificável em seu nome. Santa Inquisição e as lutas pela catequização
Guimarães (2011) atenta para o fato de que a dos colonizados. Eventos que se distanciam da
Pax Romana ainda influencia significativamente base de valores associados à paz estabelecida
as sociedades ocidentais, onde a paz é alcançada pelo Cristo.
via força armada. “Se queres a paz, prepara-te Os movimentos pacifistas do século XX foram
para a guerra” (Si vis pacem para bellum) (GUI- orientados pela concepção da não violência, e um
MARÃES, 2011, p. 98). Essa postura reforçava tal dos maiores expoentes é Mohandas Karamchand
ditado latino, muitas vezes, utilizado por quartéis Gandhi (1869-1948), que recebeu a alcunha de
e escolas ocidentais. Mahatma, em sânscrito, “A Grande Alma”.
A tradição judaico-cristã traz à tona a palavra Gandhi entra em contato com a ideia de não
hebraica shalom, que no Antigo Testamento as- violência, a partir da obra O reino de Deus está em
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vós de Leon Tolstói, em que Tolstói defende: “não consistia por condições igualitárias entre negros
respondais à violência com a violência. O autor e brancos nos espaços públicos, pelo direito ao
russo rejeita a máxima jurídica comumente aceita: voto e outras marchas e ações expressivas. Seu
vim vi repellere (repelir violência com violência)” legado consiste, essencialmente, na possibilidade
(BOFF, [1994]). histórica de protestar a partir da não violência
Além disso, Gandhi aproximou-se com o jai- Nesse sentido, a profusão das ideias sobre paz no
nismo, uma das religiões mais antigas da Índia, hemisfério ocidental e o valor cultural e simbólico
familiarizando-se com a ahimsa. A ahimsa é um através dos tempos, influenciou hodiernamente
preceito que preconiza, conforme Diskin (2003, as sociedades. Nessa perspectiva, é fundamental
p. 3) “o compromisso de não causar dano físico, dialogar com o ideário de paz que é disseminado
moral, psicológico ou de qualquer espécie de na sociedade e que organiza as relações e insti-
modo proposital e deliberado”, a qualquer ser tuições sociais, religiosas, políticas e econômicas.
vivo e a si mesmo. A ahismsa, consiste na recusa Guimarães (2011) alerta para o fato de a paz
a qualquer tipo de violência e/ou ódio, posterior- ocidental ser uma complexa teia de significações.
mente foi traduzido do sânscrito para o inglês Por isso, torna-se essencial reconhecer não só a
por Gandhi, como “no violence” (não violência). pluralidade de sentidos, mas também as divergên-
Outro termo importante ligado ao Mahatma cias, a fim de não se cair em um reducionismo e
Gandhi e cunhado por ele mesmo é satyagraha, simplificação. Por vezes, a paz pode ser concebida
que vem a ser a união de duas palavras em sâns- como um “antídoto mágico” para combater a vio-
crito: satya (verdade) e agraha (firmeza), o que lência e a guerra.
seria equivalente à firmeza da verdade. A satya- Oliveira, Almeida e Brum (2019) afirmam a neces-
graha significa opor-se inteiramente a qualquer sidade urgente de superação do olhar simplista so-
tipo de injustiça, nem que para isso fosse preciso bre a paz e os desdobramentos, a partir da imersão
desrespeitar a lei (MULLER, 2007). na história da humanidade, resgatando o processo
Segundo Gandhi, o resistente pacífico poderia histórico da construção da paz. No período da
expressar-se de três maneiras: modernidade, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804)
rompe paradigmas ao afastar da esfera religiosa a
1) protestos pacíficos exigindo direitos civis e
políticos; 2) por meio de boicotes a produtos
reflexão filosófica e política acerca da paz. Com a
que simbolicamente representassem o objeto obra em forma de tratado internacional: “Projeto
de sua reivindicação ou tivessem alguma liga-
ção com este; 3) pela não cooperação, visando
para paz perpétua” (1795), a paz é apresentada
à conquista de direitos sociais (SÁ, 2006, p. 1). como uma meta a ser estabelecida e baseada no
fundamento jurídico (OLIVEIRA, 2007).
A desobediência civil, como um caminho pos- Kant realiza a desvinculação da paz com a reli-
sível para a não violência de Gandhi, ganha um gião e conecta a democracia à questão. A demo-
status de prática – o comprometimento com a cracia evoca os princípios de uma paz como direito
conduta da não violência como um modo de vida, firmado no Estado e, consequentemente, um dever:
um agir estratégico direcionado pela conquista
[...] como um processo de instauração progres-
de direitos pela via do pacifismo.
siva do direito e, de um ponto de vista prático,
Outro importante líder pacifista que utilizou da como uma tarefa comprometida com cada
instituição do Estado. Por isso a instituição de
não violência como estratégia em nível político
uma paz universal e duradoura não é apenas
foi Martin Luther King (1929-1968), que obteve o objetivo último do Direito das gentes, mas
grandes conquistas no movimento pela igual- é o fim terminal de toda a doutrina do direito,
concernente à relação racional do homem com
dade racial. King protagonizou entre os anos de todo outro (ROHDEN, 1997, p. 14).
1950 e 1960, um intenso movimento pelo fim do
sistema segregacionista estadunidense e luta Nesse sentido, “o projeto kantiano de paz per-
pelos direitos civis da população negra. Sua luta pétua está embasado em pressupostos morais,
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jurídicos e políticos” (LIMA, 2012, p. 92). A paz ponsabilização no microcosmo da esfera pessoal
só seria selada por um pacto tomado de forma e coletiva das relações.
racional (GUIMARÃES, 2011), além de um con- Galtung inaugura um ideário de paz, em que
texto de ordem jurídica ancorado nos preceitos todos são responsáveis por promovê-la. Afinal
de liberdade e igualdade entre os cidadãos, sob quem não pratica a violência em algum nível
a égide de uma legislação comum e no direito contra o outro ou ainda contra si próprio? O autor
internacional (ROHDEN, 1997). traz à tona uma perspectiva inovadora sobre a
A análise habermasiana evidencia que Kant paz, desenvolvendo os conceitos de paz negativa
limita-se ao conceito negativo de paz, em que e a paz positiva, em 1969. A priori expôs que a paz
bastaria a ausência de guerras, o que contem- não é apenas a ausência da guerra, e sim que a
poraneamente percebe-se a insuficiência em paz é a ausência de violência.
atender as necessidades mais amplas de paz Como paz negativa, Galtung (1985) propõe que
evocadas pela esfera social (OLIVEIRA, 2007). seja considerada a ausência de violência direta ou
pessoal, “que é aquela física ou verbal identificável
Estudos de paz: Johan Galtung e a nas formas de condutas humanas, a qual implica
triangulação da violência uma relação direta de uma ação violenta com o
A sistematização atual da perspectiva de paz a propósito de agredir, ofender ou eliminar, numa
partir dos estudos de violência terá no norueguês relação conspícua entre os envolvidos” (AMARAL,
Johan Galtung (1930) um expoente para análise e 2015, p. 105). Essa concepção de paz é estreita e
conceituação que, instigado pelos horrores da II minimalista, pois se baseia em fenômenos violen-
Guerra Mundial, desenvolverá os estudos de paz tos aparentes a olho nu, sendo o prisma tomado
ou peace research. pelo senso comum (OLIVEIRA, 2017).
Os estudos para a paz têm a origem como A paz negativa dar-se-ia em situações de fim
resposta ao pós-guerra na metade do século XX, ou intervalos de guerra como o cessar-fogo en-
com a criação do “Institut Français de Polémologie, tre grupos bélicos, ou poderia ainda ser imposta
o Laboratório de Pesquisa da Paz de Theodore ditatorialmente de forma opressiva econômica e/
Lenz, em Saint Louis e com a difusão do Journal of ou politicamente, por exemplo (FERREIRA, 2014).
Conflict Resolution na Universidade de Michigan, Em razão desse simplismo da concepção de paz
em 1957” (DISKIN, 2009, p. 22). na perspectiva negativa, a paz que se encerraria
Johan Galtung, em 1959, na cidade de Oslo em si mesma. Será na ausência de violência per-
(Noruega), funda e coordena o Instituto de Investi- ceptível, que Galtung (1985) oferece a inovadora
gação para a Paz (Peace Research), conferindo-lhe formulação da paz positiva, a qual não vem a ser
relevância mundial. Os estudos para paz possuem o oposto da guerra.
como objetivo compreender a gênese dos conflitos A paz positiva é complexa na medida em que
e as possíveis medidas para a prevenção, diminui- se caracteriza como a ausência da violência es-
ção e suplantação, com aporte teórico e científico. trutural, que por si só já pressupõe uma ampla
A concepção de paz irá abranger também a ideia. Por estrutural pode-se compreender uma
transformação criativa e não violenta de conflitos, forma de violência indireta, menos perceptível e
e que estabelece um marco no sentido de não mais difícil de ser reconhecida, entretanto não
restringir a violência ao universo das forças béli- menos impiedosa. Um sinônimo para injustiça
cas. A concepção atual de paz compreende que social (JARES, 2007).
o “mal” e a guerra não são produtos de apenas Galtung (1985) traz a banalização das desigual-
dois ou mais exércitos e/ou inimigos em conflito dades no âmbito socioeconômico, assim como
circunscritos a um território, como se a privação no acesso a serviços como sendo gerador de
da paz fosse causada apenas por soldados. Essa oportunidades de vida distintas, sobremaneira no
é uma limitação que causa a crença de desres- que se refere ao poder de decisão a respeito da
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desigual distribuição dos recursos. Essa forma de dades coletivas, as quais promovem a solidez e a
violência está entranhada à estrutura e mostra-se permanência de determinadas ordens sociais, em
como um poder díspar. que as formas de violência (direta e estrutural) são
Para Galtung (1985) o conceito de violência es- naturalizadas (GALTUNG, 1990).
trutural é o oposto da justiça social, ou seja, “é a Percebe-se que a principal função da violência
lacuna, ou a distância, entre o atual e potencial” cultural é a de realizar a manutenção e o fomento
(HAAVELSRUD, 1999, p. 66). Em primeira instância, das referidas demais, como se fosse a propulsora
essa violência não é visível, todavia obstaculiza as invisível da articulação entre elas. É uma espécie
potencialidades individuais e sociais como o não de “pano de fundo” que facilita, banaliza e legitima
acesso à saúde e à educação, o que pode impedir as outras violências.
o florescimento das capacidades criativas humanas. Dissemina-se “como uma forma simbólica de
Todo o direito negado e que fere a dignidade pensar e agir, na qual se legitima o menosprezo,
humana é uma violência, assim como as privações a manipulação, a subordinação e segregação de
de toda a ordem, e que acabam por incidir nas outro ou outros, a partir de um sentimento de
relações, produzindo marginalização e condições superioridade autocentrado – e nunca verificado!”
para uma fragmentação social, consequentemente (DISKIN, 2009, p. 21). Portanto, perpetua-se na
reforçando a existência de diversos conflitos sociais. reprodução de preconceitos como o racismo, o
Diante de um cenário de desigualdade, Galtung machismo, os nacionalismos, fundamentalismos
(1985) recomenda ao pesquisador perguntar-se religiosos e meritocracia, os quais são instrumentos
sobre quais fatores, excluindo a violência direta ideológicos geradores de discriminação e exclusão,
ou a iminência, inclinam-se a colaborar com uma e consequentemente de violência (OLIVEIRA, 2017).
situação de desigualdade. É imprescindível apontar que a violência cultural
E, para isso, é necessário atentar-se para as se expressa também na sociedade de consumo
ciências que estudam as estruturas sociais, a fim que não vende apenas produtos, mas um ideal de
de lograr-se compreensão acerca da violência felicidade, um estilo de vida por meio da publici-
estrutural. Não será suficiente mensurar a violência dade e propaganda, que direcionam os desejos
com base no número de mortes, mas também humanos e ainda se introjetam na subjetividade
a partir de outros indicadores relevantes, como das crianças, que desde a tenra idade, já são alvos
quanto a expectativa de vida reduz-se em um da mídia do consumo (FARIAS, 2010).
cenário exposto à violência estrutural. Ao passo A partir das conceituações sobre a violência
que a violência direta gera um dano mais rápido e acima expostas, Galtung fecha o “triângulo da
aparente, a violência estrutural ocasiona um dano violência” (1996), e está no topo da pirâmide a
mais lento e profundo (FERREIRA, 2014). violência direta e, nos dois vértices da base, a
Johan Galtung, entre os anos de 1980 e 1990, violência nas formas indiretas: a estrutural e a
desenvolve o conceito de violência cultural, a qual cultural.
refere-se aos aspectos da cultura simbólica da Ao fazer uma sobreposição do triângulo sobre
existência humana, contidas na religião e na ideo- o seu conceito de paz, Galtung (1996) produz
logia, na linguagem, na arte, nas ciências empírica e uma equação. Nela, a paz negativa constitui-se
formal, na educação e nos meios de comunicação pela extinção da violência direta e a paz positiva
e que pode ser um meio para a justificação e/ou dá-se pela eliminação da violência estrutural e
legitimação da violência direta ou estrutural. cultural, as duas formas de violência indireta.
A violência cultural faz com que a repressão O resultado da equação galtunguiana é que
ou a exploração sejam vistas como fatos normais a paz se constitui da soma entre a paz negativa
e justificadamente aceitáveis. Tais manifestações e a paz positiva (PAZ = Pn + Pp), e a paz positiva
simbólicas agem por mecanismos sutis, que exer- é a adição da paz estrutural mais a paz cultural.
cem grande influência na construção das identi- Essas conceituações mais recentes trazidas por
Simone Barros de Oliveira • Monique Soares Vieira • Letícia Brum
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Galtung emergem em uma conjuntura altamente 1980, é que a cultura de paz se torna um movi-
influenciada pelo ideário de uma nova ordem mento de abrangência mundial, preconizando o
mundial (OLIVEIRA, 2017). fomento de uma nova forma de visão e ação sobre
paz, baseada nos valores universais de respeito
Cultura tradicional e cultura de paz: à vida, à liberdade, à justiça, à solidariedade, à
aspectos históricos tolerância, aos direitos humanos e à igualdade
A construção histórica da paz evidencia duas entre mulheres e homens (RAYO, 2004).
culturas distintas entre si: a tradicional e a de paz, Entretanto, “nem mesmo os participantes do
em que o conceito tradicional de paz emerge no Congresso sabiam, exatamente, os significados
ocidente como já referido e provém da raiz cul- que a expressão ‘cultura de paz’ abrangeria” (IZZO,
tural grega (eirene) e da paz romana (pax). A paz 2008, p. 11). Já na década de 1990, realiza-se o
grega alude à busca da harmonia e perfeição. Já a primeiro Fórum Internacional sobre a Cultura de
Pax Romana liga-se ao ideal de respeitar e manter Paz em que se fomentou o debate acerca do
a ordem e a lei, tendo um forte traço político. estabelecimento de um direito da paz, delinea-
Dadas as diferenças conceituais, ambas vão ao do na “Declaração de Viena” em 1993, em que a
encontro uma da outra na dimensão da semântica democracia, os direitos humanos e o desenvolvi-
negativa da paz dentro da cultura tradicional, uma mento são apreendidos como interdependentes
vez que se admitem como ausência de guerras e reforçando-se mutuamente.
(CALLADO, 2004). Em 1995 os Estados-membros da UNESCO
Ao senso comum, a cultura de paz pode soar deliberaram que a organização deveria con-
como uma ferramenta em que as pessoas fa- centrar esforços focalizando a cultura de paz.
lam todas no mesmo tom de voz, comedidas e Assim, foram estabelecidas estratégias, como
repletas apenas de bons sentimentos e estão o projeto transdisciplinar “Rumo à Cultura de
sempre em comum acordo beirando um estado Paz” para vigorar entre 1996 e 2001, e que teve
onírico, o que concerne a um grande equívoco. muitos adeptos empenhados em disseminar a
É necessário desconstruir a atual cultura que se cultura de paz.
movimenta na perspectiva da violência, que está O aprimoramento do conceito de cultura de
disseminada na estrutura social. paz teve ênfase no I Fórum Internacional sobre
Apesar da expressão “Cultura de paz” ter sido Cultura de Paz, em fevereiro de 1994, em El
cunhada pela Organização para a Educação, a Salvador, com uma parceria entre o governo e a
Ciência e a Cultura das Nações Unidas (UNESCO) UNESCO. As conclusões decorrentes do Fórum
em 1989, já no pós-segunda guerra, em 1946 no tiveram o clímax quanto à integração da paz com
ato de criação da UNESCO, o ideário de cons-
a indivisibilidade e universalidade dos direitos
trução da paz foi expresso dessa forma (COMITÊ
humanos.
PAZ, 2001):
Destaca-se, nesse evento, a construção da paz
[...] que a paz baseada exclusivamente nos como multidimensional, que integra vários níveis
arranjos políticos e econômicos dos governos de relações que se entrelaçam, desde os indiví-
não seria uma paz que pudesse assegurar o
apoio sincero, unânime e duradouro dos po- duos entre si, com o meio ambiente das esferas
vos do mundo, e que a paz, para que perdure, locais até as globais. As discussões do Fórum
deve, por esse motivo, ser fundada sobre a
solidariedade moral e intelectual da humani- legaram a importantíssima herança de posicionar
dade (ORGANIZAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO, A o conflito como algo inato às relações humanas
CIÊNCIA E A CULTURA DAS NAÇÕES UNIDAS,
1946, p. 20). e a resolução por meio pacífico, incorporando,
dessa forma, realismo ao conceito (IZZO, 2008).
Durante o Congresso Internacional para a Paz Para o I Fórum Internacional sobre Cultura de
na Mente dos Homens, no final da década de Paz, o objetivo da cultura de paz consiste em:
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[...] assegurar que os conflitos inerentes ao rela- violenta de conflitos”. Reitera-se que é necessário
cionamento humano sejam resolvidos de forma
não violenta, com base nos valores tradicionais deixar de tratar o conflito como sendo apenas
de paz, incluindo-se a justiça, liberdade, equi- danoso, mas será a partir dele que se progredirá
dade, solidariedade, tolerância e respeito pela
dignidade humana. Uma cultura de paz requer nos processos de paz.
aprendizado e uso de novas técnicas para o Jares (2002, p. 133) refere que “o conflito con-
gerenciamento e resolução pacífica de conflitos.
As pessoas devem aprender como encarar os siste em uma distinta percepção de interesses,
conflitos sem recorrer a violência ou dominação ou na convicção de que as aspirações atuais
e dentro de um quadro de respeito mútuo e
diálogo permanente (DISKIN, 2009, p. 25). das partes não podem ser simultaneamente
alcançadas”. O autor salienta a condição do con-
Em 1997, a Assembleia Geral das Nações Uni- flito ser inevitável diante da vida em sociedade
das proclamou o ano 2000 como o Ano Inter- e seu importante papel na dimensão dialógica
nacional por uma Cultura de Paz, e a década das relações. Está presente no conflito a capa-
2001-2010 como a Década Internacional para uma cidade de compreensão de diferentes ângulos
Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças de percepção do entorno e posicionamentos,
do Mundo, ficando sob coordenação da UNESCO bem como o crescimento tanto individual quanto
(COMITE PAZ, 2001). coletivo que a pluralidade pode trazer.
A principal contribuição da proclamação do A rejeição ao conflito e aos mecanismos para
ano 2000, que abriu a Década Internacional da encará-lo é o que promove a violência, pois
Cultura de Paz, pela ONU e UNESCO é a de que a o conflito posiciona-se como ator direto, sem
paz só poderia ser alcançada pelo comportamen- nenhuma espécie de mediação, conferindo as-
to cotidiano e não apenas uma condição política sim, à força física o mais aproximado de uma
ou uma pretensão ética, mas uma categoria moral solução que tende a querer eliminar o outro na
e cultural (PUREZA, 2000). expectativa de ver o conflito sanado. À medida
Sob o slogan “A paz está em nossas mãos”, em que não se aceita o conflito, nega-se o outro
o manifesto de 2000, impulsionou a campanha (FALEIROS, 1998).
de ação pela cultura de paz das Nações Unidas, Na leitura de Faleiros (1998) a respeito do
com forte apelo para compromisso individual de conflito, há a corroboração de Sémelin (1983) que
efetivar os seis princípios, que são: “respeitar a ressalta a necessidade de diferenciar a agressão
vida, rejeitar a violência, ser generoso, ouvir para ou qualquer tipo de comportamento violento do
compreender, preservar o planeta e redescobrir conflito em si. Nessa percepção, a violência e o
a solidariedade” (DISKIN, 2009, p. 18). conflito são tidos como iguais, quando na verdade
Observa-se que a noção de uma cultura de a violência é apenas um meio para a resolução
paz faz emergir o conflito não como um fim em do conflito, na tentativa de suprimi-lo e eliminar
si mesmo, mas como uma “ponte” para paz e, o adversário. “A violência é um meio, o conflito,
portanto, como possibilidade latente positiva, em um estado” (SÉMELIN, 1983, p. 44).
uma profunda contraposição aos status negativo Esse novo olhar diante do conflito possibili-
perpetuado historicamente pelo senso comum ta novas ramificações de possibilidades, para
das sociedades. pensá-lo e solucioná-lo dentro de um contexto
pacífico, uma vez que, sem ele (o conflito), não
Dialogar com o conflito: construir uma existiria território para renovação e possibilidade
cultura de paz de evolução. Logo, “para construir uma cultu-
O enfoque inovador a respeito do conflito ra de paz é preciso mudar atitudes, crenças e
quebra um paradigma estabelecido nas raízes comportamentos, até se tornar natural resolver
históricas da sociedade. A nova compreensão de os conflitos de modo não violento (por meio de
conflito em Galtung (1996, p. 18) entenderá que acordos) e não de modo hostil” (MALDONADO,
a paz “é também a transformação criativa e não 1997, p. 96).
Simone Barros de Oliveira • Monique Soares Vieira • Letícia Brum
Cultura de Paz: Aspectos históricos e conceituais 9/12

Por isso, a concretização da paz não está lo- que algo não estava sendo executado da forma
calizada na eliminação dos conflitos, mas sim em correta e sugeriram outra forma de realização,
como são conduzidos e solucionados, fatores que gerando uma melhoria da condição.
demandam um gerenciamento construtivo e não Em contraponto ao conflito, o confronto possui
violento. Diskin (2009) é assertivo ao pontuar que uma intenção destrutiva, embebida na cultura de
a anulação do conflito por si só é uma violência, extermínio, em que se busca anular o outro tanto
no sentido em que se buscam o silenciamento no âmbito ideológico como no físico. No conflito
e a abolição da vontade do outro diante de uma almeja-se convencer, no confronto deseja-se
dissonância de opiniões entre uma ou mais partes. vencer. Enquanto o primeiro ocasiona mudança,
Há que se reconhecer o conflito como um o outro ocasiona perda (CORTELLA, 2014).
trampolim do desenvolvimento, que não busque A exemplo da eliminação do outro pelo con-
a eliminação, e sim modos criativos e menos fronto pode-se tomar as torcidas dos times de
violentos de resolução para eles, o que em al- futebol. O confronto se resolveria de maneira
guns casos implicará também provocá-los. E, fácil se houvesse apenas um time, entretanto,
para tanto, emerge a necessidade de criação de não haveria mais jogo. É indispensável e inclu-
condições para o diálogo em que se possibilitem sive vital evitar que o conflito gere o confronto,
negociações e acordos que solucionem o conflito pela via pacífica de resolução. Esse é o caminho
(GUIMARÃRES, 2011). para a paz que evita a recorrência dos confrontos
Jares (2007) expressa que ao ignorar ou ocultar (D’AMBROSIO, 2008).
o conflito, a longo prazo acarreta uma cristaliza- Jares (2002) contribui definindo a estrutura do
ção, ficando a resolução mais complexa. Destaca conflito em quatro dimensões: causas, protago-
ainda que, para entender e intervir na dinâmica nistas, processo e contexto. O autor aborda que as
do conflito, é substancial analisar tudo o que causas desencadeadoras de um conflito podem
está relacionado, seja visível ou invisível, ao uso ser de natureza ideológico-científica, referente ao
do poder, pois esse é quase sempre central ao poder ou à estrutura, e também à esfera pessoal
conflito, inclusive nas redes de relações. e interpessoal, podendo residir na autoestima
Nessa perspectiva, a própria postura de evi- e na comunicação deficiente, e é necessária a
tar conflito mostra-se como uma estratégia de compreensão dessas diferenças, a fim de se
manutenção e controle do status quo para os criarem possibilidades para o enfrentamento.
detentores do poder. Dessa forma, o poder re- Em relação aos protagonistas, devem-se bus-
laciona-se diretamente com a capacidade de car os diretos e os indiretos. Os diretos são os
controle sobre “recursos econômicos e sociais; geradores do conflito, os indiretos são os que
nível cultural e educacional em geral, e o conhe- continuaram com os desdobramentos de tal con-
cimento técnico em particular; recursos materiais, flito, intervindo e podendo influenciar a solução.
fontes de informação, tomadas de decisões e O processo do conflito ou a forma como os
controle/manipulação sobre os desejos do outro” protagonistas encaram o conflito é elencado da
(JARES, 2007, p. 38). seguinte forma: um processo estrutural-estra-
O conflito existe a partir de visões de mundo tégico, em que o poder e a burocracia são mais
e interesses que diferem e, nele, tem-se um po- evidentes e um processo emocional-afetivo, que
tencial construtivo se direcionado pacificamente consiste em atitudes, estereótipos e representa-
à resolubilidade. No contrário, o conflito tem alto ções que as partes formulam sobre o outro, é a
risco de transforma-se em confronto. O conflito expressão de personalidade dos protagonistas.
tem a potencialidade de conduzir uma direção Não menos relevante, o contexto é uma cate-
evolutiva, uma vez que na arte, na ciência, reli- goria crucial para a estrutura do conflito, sendo
gião e demais áreas tiveram avanços, por haver necessária a análise do micro, médio e macro
conflito por parte de pessoas que consideraram contextos inter-relacionados entre si. Além disso,
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Jares (2002) expõe as formas de enfrentamento de proteção às leis trabalhistas e com a negação
dos conflitos unidas em duas modalidades: os de direitos às pessoas em situação de risco e
que escolhem por enfrentá-los, podendo com- vulnerabilidade social.
petir, concordar, negociar e colaborar e os que Portanto, romper com a cultura tradicional que
optam por esquivar-se dos conflitos, podendo preserva os padrões de produção e reprodução
evitá-los e acomodar-se, o que é a conduta social da desigualdade e da violência nas vias institu-
mais comum. Essa última modalidade, ressalta cionais tem se constituído em um grande desafio
a facilitação da sensação de poder do agressor, atualmente. A violação dos direitos humanos e a
a exemplo do bullying (BROOKS, 2015). formação para a cidadania no Brasil vêm sofrendo
Diante da aproximação sobre o que vem a ser o duros ataques, demonstrando a fragilidade da
confronto, torna-se significativo perceber no que democracia e do estado democrático de direito
diferem a violência e a agressividade. De acordo (OLIVEIRA, 2009). Há um nítido descompasso entre
com o filósofo Muller (2007), que estuda as al- a Carta Magna brasileira e a realidade concreta da
ternativas não violentas de transformação social, efetivação e garantia de direitos. Há muito ainda que
a etimologia da palavra agressão é derivada de se perseguir quando se refere à cidadania ativa.
agreddi, na qual a raiz remete “andar em direção
a”, estando ligada ao enfrentamento de medos e Considerações finais
adversidades, como mecanismo de defesa para Questionar a violência estrutural e cultural é
a garantia de sobrevivência, sendo inerente a es- fundamental para a construção de uma socia-
pécie humana. De outra forma, a violência é tida bilidade edificada em relações genuinamente
por Muller como sendo de qualquer natureza, um humanas. A cultura de paz apresenta-se como
abuso e uma violação da humanidade do outro. potencialidade para o enfrentamento às injusti-
Notoriamente, no senso comum, há uma liga- ças gestadas pela atual estrutura social. Nessa
ção mecânica entre violência e agressividade, e direção, torna-se necessário constituí-la como
esta última é constituinte do instinto de sobrevi- uma prática materializável e acessível a todos,
vência e reprodução dos animais. No entanto, a sem, contudo, perder de vista o seu caráter hu-
raiz da violência não se situa apenas na projeção manizador, mas também científico.
do comportamento humano por meio do ins- A paz positiva galtunguiana atua em uma pers-
tinto de agressividade, devido à complexidade, pectiva em que confere autonomia, compaixão
outros fatores e circunstâncias engendram o e verdade nas relações humanas, à medida em
acometimento. que se inspiram na ahimsa de Gandhi pautada
Nessa perspectiva, Muller (2007, p. 33), asse- no comprometimento de não causar dano a
vera que a violência “não pode deixar de ser obra nenhum ser vivo e a si próprio, de maneira que
do homem” e, por conseguinte, “[...] a violência a violência fique propensa à dissolução. Nesse
apenas existe e age através do homem; é sem- sentido, a Cultura de paz é uma meta que deve
pre o homem que é responsável pela violência” ser edificada por todos os seres sociais e pelo
(MULLER, 2007, p. 30). Estado como promotor da justiça social.
Oliveira, Almeida e Oliveira (2020) argumentam A cultura de paz motiva uma transformação do
que a violência não é somente a ideia clássica senso-comum estabelecido pela cultura atual,
que se liga a armas, a brigas, a feridos e a mor- à medida em que fomenta e reconhece o pro-
tes, como a guerra ou homicídios, mas também tagonismo humano, preconizando o senso de
ocorre em outros níveis, quando as pessoas são cooperação ao invés da competição, em que
privadas de alcançarem a autossatisfação. Toma- se desenvolve a horizontalidade do diálogo e
-se como exemplo o Estado, quando dificulta o desenvolvimento da autogestão de conflitos.
acesso das pessoas à moradia, ao saneamento Cabe ressaltar que, devido à amplitude da
básico, à educação, à saúde ou impede políticas temática abordada, sugere-se que mais pesqui-
Simone Barros de Oliveira • Monique Soares Vieira • Letícia Brum
Cultura de Paz: Aspectos históricos e conceituais 11/12

sadores adentrem o vasto universo de possibili- GALTUNG, Johan. Hay alternativas! Cuatro caminos
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dades da Cultura de paz, a fim de aprofundar e
multiplicar as produções sobre o assunto, e que GALTUNG, Johan. Cultural violence. Journal of Peace
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paralelamente a isso, a penetração do conteúdo ponível em: https://www.galtung-institut.de/wp-con-
tenha grande alcance em diversos meios, para tent/uploads/2015/12/Cultural-Violence-Galtung.pdf.
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