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analisadas para que suas bases sejam dominação, constituídas a séculos, propõe
compreendidas. Da mesma forma, a busca uma rediscussão para melhor conhecimento e
por entender as epistemologias do Sul faz diálogo com culturas tão desvalorizadas. O
surgir um universo de incansáveis lutas, termo “subalterno”, muito utilizado na
evidenciando a heterogeneidade mundial em discussão das epistemologias do Sul, é
relação a costumes, crenças, culturas e entendido por Figueiredo (2010, p. 84) da
valores. Porém segundo Paiva (2015) no seguinte forma: o termo vem do latim,
desenvolvimento da história se sobressaiu “subalternus, que significa “aquele que
uma única configuração de conhecimento que depende de outrem: pessoa subordinada a
foi disseminada por séculos, minimizando e outra”. O autor enfatiza várias regiões, grupos
obscurecendo outras epistemologias e e indivíduos que não se enquadraram na
desconsiderando qualquer outra forma de supremacia e no poder hegemônico,
conhecimento. Esta configuração estava salientando o direito dos mesmos em possuir
relacionada ao Norte global, particularmente territórios delimitados, o que se aplica de
ao modelo da sociedade da Europa. Esta maneira clara na atualidade, aos povos
repressão sobre formas de saberes distintos originais.
acabou por sepultar outras epistemologias. Segundo Paiva (2015) as epistemologias do
De acordo com Santos e Meneses (2009) isso Sul discutem e enfrentam essas formas
se caracterizou como um “epistemicídio”, ou, autoritárias que se instalaram e se mantem
o assassinato de muitas epistemologias. A muito fortes até hoje. Essa hierarquização,
estas epistemologias marginalizadas e onde uma forma de conhecimento seria a
silenciadas é que a denominação de detentora de todas as culturas, costumes e
epistemologias do Sul se aplica. Ainda para os crenças se construiu através da exclusão e
autores, as epistemologias do Sul se segregação com vários povos ao longo de
comprometem em atender e reparar os toda a história. Assim, um pensamento com
estragos feitos pelo colonialismo e pelo forte matriz europeia, conduzida por homens
capital avassalador que tomaram conta do Sul brancos e pelo modelo capitalista tornou-se
global. Santos explica: este modelo hegemônico. Esta foi a tônica
durante séculos, especialmente com o
Esta concepção do Sul sobrepõe-se em parte com o Sul movimento das grandes navegações que
geográfico, o conjunto de países e regiões do mundo
expandiram as colônias europeias pelo
que foram submetidos ao colonialismo europeu e que,
com exceção da Austrália e da Nova Zelândia, não mundo.
atingiram níveis de desenvolvimento económico O período de expansão colonial foi marcado
semelhantes ao do Norte global (Europa e América do pela dominação dos colonizadores que se
Norte) (SANTOS; MENESES, 2009, p 12-13).
apropriaram das terras e de tudo que nelas
Compreende-se que as epistemologias do Sul habitavam. Segundo Paiva (2015, p. 2001)
possuem papel importante em relação a luta muitos povos “foram dominados pelo
pelos saberes suprimidos e ocultados. Sendo capitalismo e pelo colonialismo”. Porém,
uma perspectiva que estuda as formas de segundo Santos e Meneses (2009) a
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colonização não ocorreu apenas no processo Nessa toada, ao buscar as relações históricas
de povoamento de dominação, mas também do processo de colonialismo e seus
de soberania epistemológica. Com isso, houve desdobramentos, expressos na atualidade
um poder desigual que suprimiu muitos através do pensamento hegemônico e
conhecimentos, culturas e costumes, colonizador, podemos discutir alguns pontos
caracterizando o “epistemicídio”. Santos e que remetem ao autoritarismo e autonomia
Mendes (2018), citam três formas de poder estrutural desigual. Para representar tais
que atuaram neste processo de afirmação da formas de opressão, Santos e Mendes (2018)
hegemonia da matriz europeia: o capitalismo, estabelecem uma classificação quanto aos
o colonialismo e o patriarcado. Associados a “espaços de opressão”, da seguinte forma:
outras formas de dominação como o doméstico/patriarcado (violência sexual, pelo
autoritarismo político e religioso, formaram o feminicídio); produção/exploração (exclusão
arcabouço necessário à reprodução de de todos os que trabalham sem direitos);
formas de pensamento e dominação e, ao mercado/fetichismo (exclui todos os que não
mesmo tempo, desprezaram todas as formas têm recursos econômicos para serem
de cultura e conhecimento dos colonizados. consumidores); comunidade/desigualdade
Novamente evidenciamos que as (exclui pela xenofobia e racismo);
epistemologias do Sul remetem ao cidadania/dominação (internamento por
pertencimento de cultura, de terra, costumes e tempo indeterminado de refugiados);
saberes. Santos e Mendes (2018, p.18) mundial/troca desigual (invadir e destruir
afirmam “O objetivo das Epistemologias do países inteiros para provocar supostas
Sul é permitir aos grupos sociais oprimidos mudanças de regime). Em todos esses
representar o mundo como seu e nos seus espaços há a manifestação da violência,
termos, pois só assim poderão mudá-lo de realçando a desigualdade social e cultural.
acordo com as suas próprias aspirações”. Nesse ponto, cabe ressaltar que a violência da
Aqui cabe uma observação importante sobre atualidade é subproduto de uma larga
a atenção com o que estamos tratando, trajetória de embates e de um modelo
reconhecendo as diferentes perspectivas, epistemológico que se tornou hegemônico, o
mas, ao mesmo tempo, buscando sua modelo entendido como do Norte global. No
articulação para a especificidade deste caso do Brasil, o período colonial representa
estudo: um marco histórico que não pode ser
esquecido. Apresenta Schwarcz (2019) que a
Colonialismo pode ser compreendido como a formação colonização no Brasil não passou de uma
histórica dos territórios nacionais; o colonialismo
invasão violenta a um território densamente
moderno pode ser entendido como os modos
específicos pelos quais os impérios ocidentais povoado. Estima-se que cerca de 1 milhão a
colonizaram a maior parte do mundo desde a 8,5 milhões de nativos povoavam o território.
“descoberta”; e colonialidade pode ser entendida como Assim, ocorreu uma terrível perda não só de
uma lógica global de desumanização que é capaz de
indivíduos, mas de culturas, crenças, histórias
existir mesmo na ausência de colônias formais
(MALDONADO-TORRES, 2019, p.35-36). e conhecimentos. Pode-se caracterizar como
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Em relação a violência na linha abissal do Em síntese, a linha abissal divide dois lados,
direito, Santos e Meneses (2009) trazem a um com suas vantagens e autonomias e o
relação do autoritarismo durante a escravidão, outro com suas desigualdades e culturas
com a exposição aos trabalhos forçados, caladas. Como sugerem Santos e Mendes
tratados com agressão física e toda forma de (2018) o Norte sempre é a solução e o Sul o
desumanidade, porém, dentro dos direitos problema, sendo que o pensamento do Norte
estabelecidos para os patrões ou “donos” de é incapaz de reconhecer as exclusões e
escravos. Portanto, não é causa de mazelas do outro lado. Nesse sentido surge o
estranheza que grande parte dos países pensamento pós-abissal, que segundo Santos
colonizados, incluindo o Brasil, tenham e Meneses (2009) deve ser pensado a partir
construído histórias envoltas em muita dele mesmo e caminhar para além dele, afim
violência estrutural, desigualdades brutais, de combater a exclusão social.
mandonismos de toda ordem e,
principalmente, uma profunda e intolerância à O pensamento pós-abissal parte da ideia de que a
diversidade do mundo é inesgotável e que está
diversidade. Segundo Schwarcz (2019), o
diversidade continua desprovida de uma epistemologia
Brasil é um dos países mais violentos do adequada. Por outras palavras, a diversidade
mundo, perdendo atualmente apenas para epistemológica do mundo continua por construir.
Belize, Honduras, Colômbia e El Salvador. (SANTOS; MENESES, 2009, p. 44).
e violentas. Tudo isso é produto do modelo mundo com riquezas que foram sufocadas e
hegemônico dominante. Assim, precisamos estão desconhecidas, vários povos e grupos
da posição crítica para efetivamente justificar com sua especificidade e singularidade que
a ecologia de saberes de maneira razoável. marcam identidades próprias. O que deve
Portanto, é necessário o esclarecimento permanecer comum a todas as
realizado pelos autores sobre o tema. epistemologias da atualidade são valores
como respeito, compreensão e tolerância que
É uma ecologia porque se baseia no reconhecimento da foram sendo diluídos pelo colonialismo,
pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um
capitalismo e patriarcado e se tornaram um
deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e
dinâmica entre eles sem comprometer a sua autonomia. grande modelo unificador mantido pela força
A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o e violência física ou simbólica.
conhecimento é interconhecimento. (SANTOS;
MENESES 2009, p. 44-45).
Racismo Estrutural e sua naturalização
A democracia como parte importante da Após a discussão sobre as epistemologias do
estrutura e funcionalidade do país, torna-se Sul e sua constituição a partir do colonialismo
ainda mais importante em relação as e de como a violência foi utilizada nesse
epistemologias do Sul. Na lógica do período, trataremos do conceito de racismo
pensamento pós-abissal Santos e Mendes estrutural e suas ramificações. Partimos da
(2018) sugerem a redemocratização da reflexão sobre a sistematização da linha
economia capitalista, a democratização abissal, que divide toda a estrutura social em
também de toda relação de naturalização dois eixos, sendo um eixo marcado pelas
racial, cultural ou que caracterize o ser em desigualdades e sufocamento do
subalterno além de democratizar toda ação autoritarismo e mandonismo da época, com
que oprima qualquer ser humano por sua culturas invisíveis até hoje e, do outro lado,
escolha sexual. O pós-capitalismo, pós- um eixo caracterizado pelo poder, modelo a
colonialismo e o pós-patriarcado, com ser seguido, com suas únicas e “corretas”
objetivo de eliminar a linha pós-abissal formas de pensar e de conhecer, deixando de
através da democratização Santos e Mendes lado toda e qualquer outra epistemologia.Para
(2018, p. 21) afirmam: “Como todas as iniciar a discussão Almeida (2019) diz que o
exclusões minam o ser, criando não-seres, racismo estrutural se caracteriza como toda
trata-se de imaginar utopicamente uma forma de racismo, ou seja, todo racismo de
democracia pós-abissal que crie humanidade alguma forma é estrutural uma vez que é
na medida em que contribua para denunciar e plasmado na sociedade de modo a se
eliminar a linha abissal”. manifestar na política e economia, sendo
Nesse momento podemos compreender que naturalizado. O conceito de raça, segundo
os autores se remetem ao respeito, a Almeida (2019) está fortemente vinculado a
diversidade e a pluralidade como grandes ideia de classificação, inicialmente pensada
alternativas de fortalecimento das em partes biológicas, plantas, animais e seres
epistemologias do Sul. Vivemos em um humanos. Porém, a sistematização de
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categorias entre seres humanos veio mais lugares de trabalho na sociedade. Houve,
tarde a partir do século XVI. Aníbal Quijano portanto, uma divisão racial do trabalho. Com
(2005) também destaca a questão fenotípica essa classificação de grupos, estruturou-se e
em relação a raça. Para ele, essa naturalizou-se um controle de trabalho e,
diferenciação dos indivíduos se deu entre os “consequentemente, o controle de uma forma
colonizadores e colonizados de forma a específica de trabalho podia ser ao mesmo
diferenciar os grupos. Como consequência da tempo um controle de um grupo específico de
colonização sugiram as relações de poder, gente dominada” (QUIJANO, 2005, p.119).
hierarquias foram criadas, e muitas das Almeida (2019) amplia esta perspectiva ao
identidades dos grupos foram se firmando argumentar que a ideia de raça está atrelada
nas relações sociais através de camadas de às seguintes categorias: racismo, preconceito
poder, de acordo com as função e papéis na e discriminação. Por mais que ambas estejam
hierarquia. Quijano (2005, p. 117) reflete sobre estreitamente relacionadas e interligadas,
isso dizendo, “Em outras palavras, raça e cada categoria possui seu diferencial.
identidade racial foram estabelecidas como Portanto, o racismo não se caracteriza
instrumentos de classificação social básica apenas como exclusão ou ofensa a outrem,
da população”. vai além, existem atitudes, expressões,
Cabe ressaltar que para o autor Almeida gestos, olhares que apresentam o racismo. As
(2019), o significado de raça está fortemente palavras ditas são apenas uma forma dessa
vinculado com as circunstâncias históricas de discriminação. Assim, conceitua-se racismo
cada época. Essas circunstâncias estão como:
atreladas ao autoritarismo constante, com
relação clara de poder, violência e conflito. [...] uma forma sistemática de discriminação que tem a
raça como fundamento, e que se manifesta por meio de
Mais tarde, os colonizadores relacionaram a
práticas conscientes ou inconscientes que culminam
raça com a cor, havendo uma categorização em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a
racial. Quijano (2005) afirma que essa depender do grupo racial ao qual pertençam. (ALMEIDA,
classificação inicialmente ocorreu com os 2019, p. 32).
Nesse ponto fica clara a ligação entre os com os conflitos de forma criativa, para que
vértices propostos no estudo. A cultura de paz os mesmos possam ser resolvidos e atenda o
e os direitos humanos estão num ponto de bem comum dos conflitantes. Diz o autor:
convergência com a redução das
O futuro exige mais do que nunca a construção da paz
discriminações e do racismo estrutural que,
através da ciência, da cultura, da educação e da
por sua vez, é uma construção história a partir comunicação, motivo pelo qual o respeito ao direito
dos processos de colonização, capitalismo e humano à paz, inspirado no ideal democrático de
patriarcado. Assim, as epistemologias do Sul dignidade, igualdade e respeito à pessoa, é a via mais
segura para lutar contra a exclusão, a discriminação, a
nos mostram com clareza, a divisão de
intolerância e a violência que ameaçam a coesão da
poderes na sociedade, através da linha abissal sociedade [...]. (RAYO, 2004, p.35)
que Santos e Meneses (2009) descrevem
muito bem em sua obra. A esse respeito, os Portanto, uma educação fundamentada pelos
autores concluem: “é que esta realidade é tão princípios da cultura da paz não é ingênua
verdadeira hoje como era no período colonial” nem superficial. Ao contrário, vai buscar a
(SANTOS; MENESES, 2009, p 31). É fato que reflexão na história e nos processos de
tivemos alguns avanços em relação à violência da humanidade para então
conquista de direitos, porém, não podemos reconstruir trajetórias a partir dos problemas
fechar os olhos para as injustiças e e contextos atuais. A diferença positiva, neste
desigualdades que ainda acontecem ao nosso caminho, é que não ocorre apenas a
redor. A discriminação racial, fruto do racismo declaração dos problemas históricos e a
estrutural, ainda é um problema a ser busca de culpados, mas sim, o favorecimento,
enfrentado cotidianamente na sociedade. o conhecimento e a compreensão mútua das
A linha pós-abissal a que Santos e Meneses situações de violência que marcam a
(2009) se referem, propõe ao pensamento de existência humana. Com isso, a sociedade se
ações para um futuro melhor, ou seja, “um move na busca da superação dos modelos de
aprender com o Sul usando uma cultura de violência para formas relacionadas
epistemologia do Sul. Confronta a à cultura de paz. O campo educacional será
monocultura da ciência moderna com uma fundamental para o desenvolvimento destas
ecologia de saberes. É uma ecologia, porque propostas de superação.
se baseia no reconhecimento da pluralidade
de conhecimentos heterogéneos [...]. (SOUZA; Considerações finais
MENESES, 2009, p. 44). Nesse sentido, é Com base nos estudos e argumentos
imprescindível trabalhar nos meios apresentados, ressaltamos a importância do
educacionais a importância das multiculturas, tema para a atualidade. Em relação às
diferenças de saberes e pensamentos. Deixar epistemologias do Sul, precisamos
claro que a paz é um direito humano sem compreender que o Sul global possui culturas,
distinções. Segundo Rayo (2004) a paz não se conhecimentos e formas de viver que devem
responsabiliza apenas pela diminuição da ganhar maior projeção e ser integrados com
violência, mas sim desenvolver e trabalhar outras formas de conhecimento, ao invés de
serem sufocados pela hierarquia do Norte
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crianças desde muito cedo. Esses hábitos FIGUEIREDO, Carlos. Estudos subalternos: uma introdução.
estão introduzidos no cotidiano e se Revista Raído, Dourados, v. 4, n. 7, p. 83-92, jan.-jun. 2010.
manifestam através do tratamento desigual
GALTUNG, Johan. Sobre La Paz. Barcelona: Fontamara,
dos seres humanos, acabando por alavancar
1985.
ainda mais os índices de violência e
segregação. MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e
De forma a rever o cenário atual, trouxemos da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In:
BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES,
apontamentos sobre a cultura de paz. São
Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.) Decolonialidade e
reflexões que trazem esperança na medida pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica
em que abrem possibilidades de Editora, 2019.
enfrentamento destes problemas através da
ONU. Brasil sobe duas posições e passa a ter 7ª maior taxa
informação histórica crítica, do diálogo e da
de homicídios das Américas, diz OMS. Disponível em:
solução pacífica dos conflitos. A geração <https://nacoesunidas.org/brasil-sobe-duas-posicoes-e-
atual e as novas gerações precisam estar passa-a-ter-7a-maior-taxa-de-homicidios-das-americas-diz-
mais conscientes dos problemas históricos oms/> Acesso em: 05 ago. 2019.