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126 PEDAGOGIA DECOLONIAL SURES/JUNHO/20

EPISTEMOLOGIAS DO SUL EM CONTRASTE A


NATURALIZAÇÃO DO RACISMO ESTRUTURAL:
COMBATE A SOCIEDADE DESIGUAL
CAROLINA CRISTINE DE GOSS(1)
NEI ALBERTO SALLES FILHO(2)

Resumo Southern epistemologies in contrast to the


O presente estudo tem por objetivo analisar os vértices naturalization of structural racism: combating
das epistemologias do Sul na relação com o racismo unequal society.
estrutural, viabilizando seu enfrentamento através da
Abstract
perspectiva da cultura de paz. Se caracteriza como uma
pesquisa qualitativa de caráter bibliográfico. São The present study aims to analyze the vertices of
discutidos temas como: a construção do racismo, sua southern epistemologies in the relation to structural
naturalização na sociedade e a análise de meios de racism, enabling their confrontation through the
enfrentamento do racismo estrutural e através do olhar perspective of the culture of peace. It is
da cultura de paz. Os principais autores utilizados para o characterized as a qualitative research of
estudo foram: Rayo (2004), Almeida (2019), Santos e bibliographic character. Topics such as: the
Meneses (2009) entre outros. Através da literatura, pode- construction of racism, its naturalization in society
se constatar que o racismo estrutural está naturalizado and the analysis of ways of coping with structural
em nossa sociedade, advindo das formas autoritárias e racism and through the view of the culture of peace
de dominação explicadas pelo colonialismo. A cultura de are discussed. The main authors used for the study
paz, nesse contexto, devidamente ancorada nos direitos were: Rayo (2004), Almeida (2019), Santos and
humanos, complementa a reflexão do estudo, trazendo Meneses (2009) and others. Through the literature, it
aspectos de integração para a análise do tema. can be seen that structural racism is naturalized in
our society, coming from the authoritarian and
Palavras-chave: Epistemologias do Sul, Racismo domination forms explained by colonialism. The
Estrutural, Cultura de Paz, Direitos Humanos. culture of peace, in this context, properly anchored in
human rights, complements the reflection of the
study, bringing aspects of integration to the analysis
of the theme.

Keywords: Epistemology of South, Structural Racism,


Culture of Peace, Human Rights.

(1) (Universidade Estadual de Ponta Grossa, carolgoss73@gmail.com);

(2) (Universidade Estadual de Ponta Grossa, nei.uepg@gmail.com)


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Introdução Por fim, a pesquisa traz subsídios para


O presente estudo tem por objetivo geral analisar o racismo estrutural e todas as
analisar os vértices das epistemologias do Sul formas de violência através da cultura de paz.
em relação à discussão sobre o racismo “A paz é um processo que implica uma forma
estrutural, viabilizando seu enfrentamento de relação dos seres humanos entre si e
através da cultura de paz. O estudo tem através das distintas formas de organização
caráter qualitativo/bibliográfico e está social que exclui a violência em todas as suas
comprometido em analisar e relacionar os manifestações” (RAYO, 2004, p. 31). Partindo
temas pertinentes através da literatura. Os desta premissa, a cultura de paz deve ser
objetivos propostos para o estudo foram: manifestada e ampliada através da educação
conceituar epistemologias do Sul, racismo como prática democrática. Portanto,
estrutural e cultura de paz, através de fontes entendemos que a análise sobre a cultura de
bibliográficas; compreender a construção do paz pode trazer dimensões importantes na
racismo e sua naturalização; investigar meios construção de enfoques sobre os direitos
de enfrentamento ao racismo estrutural e toda humanos, devidamente refletidos a partir da
forma de violência através da cultura de paz. discussão de problemas históricos. Assim
O primeiro vértice da pesquisa será a sendo, entender a dimensão das
discussão das epistemologias do Sul a partir epistemologias do Sul, em relação ao racismo
da reflexão da histórica dos processos de estrutural, nos dá oportunidade de pensar
colonização. A partir da literatura, como dialogar com estes problemas na
discorremos pela trajetória histórica do Brasil, atualidade. A alternativa que propomos para
mencionando desde o genocídio dos povos isso é o enfoque da cultura de paz, no que diz
indígenas até a fase da escravidão, quando o Rayo (2004, p.29): “A paz como necessidade e
racismo tomou força, trazendo consigo aspiração humana significa não só uma
desigualdades, injustiças e exploração que se diminuição de todo tipo de violência (direta,
tornaram um traço de nosso país. Os autores estrutural ou cultural), mas também como
utilizados na análise são Santos e Meneses condição indispensável para que os conflitos
(2009) com importantes contribuições na possam ser transformados [...]”.
discussão sobre a subordinação do Sul global
em relação ao Norte global. Epistemologias do Sul: trajetória histórica
Em seguida, a pesquisa concentra-se na colonial.
exploração sobre o conceito de racismo Epistemologia, segundo Paiva (2015, p. 200),
estrutural e de que forma o mesmo foi “é toda concepção refletida ou não sobre as
naturalizado e incorporado na sociedade condições de conhecimento válido”. Dessa
brasileira. Neste vértice do estudo nos forma, conhecimento só se torna ele mesmo
apoiamos em Almeida (2019). Para o autor, quando existem, em sua construção, atores
todo racismo é estrutural, na medida em que é sociais que através de diferentes práticas
construído nas relações históricas e sociais. fazem surgir epistemologias distintas. Estas
epistemologias devem ser estudadas e
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analisadas para que suas bases sejam dominação, constituídas a séculos, propõe
compreendidas. Da mesma forma, a busca uma rediscussão para melhor conhecimento e
por entender as epistemologias do Sul faz diálogo com culturas tão desvalorizadas. O
surgir um universo de incansáveis lutas, termo “subalterno”, muito utilizado na
evidenciando a heterogeneidade mundial em discussão das epistemologias do Sul, é
relação a costumes, crenças, culturas e entendido por Figueiredo (2010, p. 84) da
valores. Porém segundo Paiva (2015) no seguinte forma: o termo vem do latim,
desenvolvimento da história se sobressaiu “subalternus, que significa “aquele que
uma única configuração de conhecimento que depende de outrem: pessoa subordinada a
foi disseminada por séculos, minimizando e outra”. O autor enfatiza várias regiões, grupos
obscurecendo outras epistemologias e e indivíduos que não se enquadraram na
desconsiderando qualquer outra forma de supremacia e no poder hegemônico,
conhecimento. Esta configuração estava salientando o direito dos mesmos em possuir
relacionada ao Norte global, particularmente territórios delimitados, o que se aplica de
ao modelo da sociedade da Europa. Esta maneira clara na atualidade, aos povos
repressão sobre formas de saberes distintos originais.
acabou por sepultar outras epistemologias. Segundo Paiva (2015) as epistemologias do
De acordo com Santos e Meneses (2009) isso Sul discutem e enfrentam essas formas
se caracterizou como um “epistemicídio”, ou, autoritárias que se instalaram e se mantem
o assassinato de muitas epistemologias. A muito fortes até hoje. Essa hierarquização,
estas epistemologias marginalizadas e onde uma forma de conhecimento seria a
silenciadas é que a denominação de detentora de todas as culturas, costumes e
epistemologias do Sul se aplica. Ainda para os crenças se construiu através da exclusão e
autores, as epistemologias do Sul se segregação com vários povos ao longo de
comprometem em atender e reparar os toda a história. Assim, um pensamento com
estragos feitos pelo colonialismo e pelo forte matriz europeia, conduzida por homens
capital avassalador que tomaram conta do Sul brancos e pelo modelo capitalista tornou-se
global. Santos explica: este modelo hegemônico. Esta foi a tônica
durante séculos, especialmente com o
Esta concepção do Sul sobrepõe-se em parte com o Sul movimento das grandes navegações que
geográfico, o conjunto de países e regiões do mundo
expandiram as colônias europeias pelo
que foram submetidos ao colonialismo europeu e que,
com exceção da Austrália e da Nova Zelândia, não mundo.
atingiram níveis de desenvolvimento económico O período de expansão colonial foi marcado
semelhantes ao do Norte global (Europa e América do pela dominação dos colonizadores que se
Norte) (SANTOS; MENESES, 2009, p 12-13).
apropriaram das terras e de tudo que nelas
Compreende-se que as epistemologias do Sul habitavam. Segundo Paiva (2015, p. 2001)
possuem papel importante em relação a luta muitos povos “foram dominados pelo
pelos saberes suprimidos e ocultados. Sendo capitalismo e pelo colonialismo”. Porém,
uma perspectiva que estuda as formas de segundo Santos e Meneses (2009) a
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colonização não ocorreu apenas no processo Nessa toada, ao buscar as relações históricas
de povoamento de dominação, mas também do processo de colonialismo e seus
de soberania epistemológica. Com isso, houve desdobramentos, expressos na atualidade
um poder desigual que suprimiu muitos através do pensamento hegemônico e
conhecimentos, culturas e costumes, colonizador, podemos discutir alguns pontos
caracterizando o “epistemicídio”. Santos e que remetem ao autoritarismo e autonomia
Mendes (2018), citam três formas de poder estrutural desigual. Para representar tais
que atuaram neste processo de afirmação da formas de opressão, Santos e Mendes (2018)
hegemonia da matriz europeia: o capitalismo, estabelecem uma classificação quanto aos
o colonialismo e o patriarcado. Associados a “espaços de opressão”, da seguinte forma:
outras formas de dominação como o doméstico/patriarcado (violência sexual, pelo
autoritarismo político e religioso, formaram o feminicídio); produção/exploração (exclusão
arcabouço necessário à reprodução de de todos os que trabalham sem direitos);
formas de pensamento e dominação e, ao mercado/fetichismo (exclui todos os que não
mesmo tempo, desprezaram todas as formas têm recursos econômicos para serem
de cultura e conhecimento dos colonizados. consumidores); comunidade/desigualdade
Novamente evidenciamos que as (exclui pela xenofobia e racismo);
epistemologias do Sul remetem ao cidadania/dominação (internamento por
pertencimento de cultura, de terra, costumes e tempo indeterminado de refugiados);
saberes. Santos e Mendes (2018, p.18) mundial/troca desigual (invadir e destruir
afirmam “O objetivo das Epistemologias do países inteiros para provocar supostas
Sul é permitir aos grupos sociais oprimidos mudanças de regime). Em todos esses
representar o mundo como seu e nos seus espaços há a manifestação da violência,
termos, pois só assim poderão mudá-lo de realçando a desigualdade social e cultural.
acordo com as suas próprias aspirações”. Nesse ponto, cabe ressaltar que a violência da
Aqui cabe uma observação importante sobre atualidade é subproduto de uma larga
a atenção com o que estamos tratando, trajetória de embates e de um modelo
reconhecendo as diferentes perspectivas, epistemológico que se tornou hegemônico, o
mas, ao mesmo tempo, buscando sua modelo entendido como do Norte global. No
articulação para a especificidade deste caso do Brasil, o período colonial representa
estudo: um marco histórico que não pode ser
esquecido. Apresenta Schwarcz (2019) que a
Colonialismo pode ser compreendido como a formação colonização no Brasil não passou de uma
histórica dos territórios nacionais; o colonialismo
invasão violenta a um território densamente
moderno pode ser entendido como os modos
específicos pelos quais os impérios ocidentais povoado. Estima-se que cerca de 1 milhão a
colonizaram a maior parte do mundo desde a 8,5 milhões de nativos povoavam o território.
“descoberta”; e colonialidade pode ser entendida como Assim, ocorreu uma terrível perda não só de
uma lógica global de desumanização que é capaz de
indivíduos, mas de culturas, crenças, histórias
existir mesmo na ausência de colônias formais
(MALDONADO-TORRES, 2019, p.35-36). e conhecimentos. Pode-se caracterizar como
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um legítimo genocídio pois, segundo inimagináveis e incalculáveis, culturas, jeitos,


Schwarcz (2019), a região perdeu durante a gestos, dizeres, leis e normas que foram
colonização cerca de um quarto da sufocados pelo outro lado. Para Santos e
população. Ainda nessa discussão temos: Meneses (2009, p.25), esse lado da linha
possui “conhecimentos populares, leigos,
O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da plebeus, camponeses ou indígenas [...]”. É
colonização não foi causado principalmente pela
justamente nessa linha abissal, do lado em
violência da conquista, nem pelas enfermidades que os
conquistadores trouxeram em seu corpo, mas porque que as epistemologias são invisíveis é que as
tais índios foram usados como mão de obra descartável, epistemologias do Sul emergem como ponto
forçados a trabalhar até morrer (QUIJANO, 2005, p.120). de partida. Denunciar e recriminar essa força
dominante é crucial para dar visibilidade ao
Santos e Meneses (2009) discutem que essa
Sul global. Assim, as “lutas contra a
forma de dominação violenta se originou pela
dominação apoiadas pelas epistemologias do
urgência na busca da soberania na era
Sul são aquelas que transformam qualquer
colonial. Existe uma certeza histórica de que
margem de liberdade, por pequena que seja,
este modelo imposto pela violência brutal
em oportunidade de libertação [...]” (SANTOS,
calou as demais epistemologias. Portanto,
2019, p. 106).
para os autores, a preocupação das
A violência está notoriamente presente nessa
epistemologias do Sul está relacionada com a
linha abissal, tomando dois rumos diferentes,
superação deste modelo epistemológico
sendo um em relação ao conhecimento e
moderno ocidental. Este modelo, para Santos
outro ao direito. Nesse lado da linha, o que
e Meneses (2009) é como uma “linha abissal”,
ocorreu em relação a linha abissal
entendida como um sistema de distinções,
epistemológica, segundo Santos e Meneses
particularmente entre os visíveis e os
(2009) foi a perversidade de uma violência
invisíveis. Assim, o pensamento abissal
onde os povos foram impedidos de usar suas
separada dois lados: Norte e Sul, dito de outro
línguas nativas, sendo obrigados a adotar
modo, os de dentro e os de fora. De um lado
nomes cristãos, destruir símbolos e locais de
da linha, no fundo do abismo, há uma
rituais e cultos, além de várias outras formas
realidade invisível e inexistente (Sul global) e,
de violência que feriram a cultura.
do outro lado, toda a realidade visível e
Compreender que a violência não se
existente, dominando e controlando toda
apresenta apenas como agressão física
forma de conhecimento (Norte global).
nesse contexto, é essencial para que nosso
A forma excludente que se distingue pela
mirante epistemológico se expanda,
linha abissal, reafirma o quanto há
permitindo ampliar a compreensão e reflexão
disparidade de um lado para o outro. A
para violências invisíveis e estruturais
questão da visibilidade e invisibilidade leva ao
atuantes ao longo da história e que se
questionamento “O que está invisível deste
perpetuaram pelos séculos.
lado da linha”? Pois bem, o lado dito
inexistente possui saberes e conhecimentos
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Em relação a violência na linha abissal do Em síntese, a linha abissal divide dois lados,
direito, Santos e Meneses (2009) trazem a um com suas vantagens e autonomias e o
relação do autoritarismo durante a escravidão, outro com suas desigualdades e culturas
com a exposição aos trabalhos forçados, caladas. Como sugerem Santos e Mendes
tratados com agressão física e toda forma de (2018) o Norte sempre é a solução e o Sul o
desumanidade, porém, dentro dos direitos problema, sendo que o pensamento do Norte
estabelecidos para os patrões ou “donos” de é incapaz de reconhecer as exclusões e
escravos. Portanto, não é causa de mazelas do outro lado. Nesse sentido surge o
estranheza que grande parte dos países pensamento pós-abissal, que segundo Santos
colonizados, incluindo o Brasil, tenham e Meneses (2009) deve ser pensado a partir
construído histórias envoltas em muita dele mesmo e caminhar para além dele, afim
violência estrutural, desigualdades brutais, de combater a exclusão social.
mandonismos de toda ordem e,
principalmente, uma profunda e intolerância à O pensamento pós-abissal parte da ideia de que a
diversidade do mundo é inesgotável e que está
diversidade. Segundo Schwarcz (2019), o
diversidade continua desprovida de uma epistemologia
Brasil é um dos países mais violentos do adequada. Por outras palavras, a diversidade
mundo, perdendo atualmente apenas para epistemológica do mundo continua por construir.
Belize, Honduras, Colômbia e El Salvador. (SANTOS; MENESES, 2009, p. 44).

Isso, para Schwarcz (2019, p. 153), demonstra


que “as taxas de mortes violentas são muito Para isso os autores propõem a ecologia dos
mais altas na América Latina do que no saberes, falando da importância de se
restante do mundo”. O que pode ajudar a considerar o mundo a partir da pluralidade de
explicar esse índice elevado de violência é a perspectivas e não como monocultura. O
trajetória histórica do país que deixou marcas mundo possui diversas formas de
profundas e que se transformaram em capacidades, vivências e razões. É necessário
cicatrizes naturalizadas. O Brasil tem a 7ª o respeito na existência de cada uma delas e
maior taxa de homicídios das Américas compreender que a epistemologia está em
segundo a Organização Mundial da Saúde constante transformação. Mesmo com uma
(OMS, 2018), e isso reforça o medo em que as postura crítica diante da relação Norte-Sul
pessoas vivem. Envolto a esse medo a global, é fundamental compreender que uma
sociedade passou a ter receio do “novo”, das ecologia de saberes pretende intercambiar o
novas gerações, novas tecnologias, novos conhecimento e avançar nas perspectivas da
valores. sociedade e da humanidade.
Todas as dimensões epistemológicas são
No nosso tempo, o bloqueio do novo aparece total e se legítimas e válidas no percurso histórico.
algum sinal existe de que algo novo pode emergir no Porém, o que não pode mais ser tolerado no
horizonte é mais motivo de medo do que de esperança.
processo de avanço civilizatório é a
Um empate histórico parece consumar-se à beira do
abismo, de tal modo que nem passos em frente nem dominação de discursos e formas de viver
passos atrás parecem possíveis (SANTOS; MENDES, que sejam excludentes, desiguais, autoritárias
2018, p.12).
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e violentas. Tudo isso é produto do modelo mundo com riquezas que foram sufocadas e
hegemônico dominante. Assim, precisamos estão desconhecidas, vários povos e grupos
da posição crítica para efetivamente justificar com sua especificidade e singularidade que
a ecologia de saberes de maneira razoável. marcam identidades próprias. O que deve
Portanto, é necessário o esclarecimento permanecer comum a todas as
realizado pelos autores sobre o tema. epistemologias da atualidade são valores
como respeito, compreensão e tolerância que
É uma ecologia porque se baseia no reconhecimento da foram sendo diluídos pelo colonialismo,
pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um
capitalismo e patriarcado e se tornaram um
deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e
dinâmica entre eles sem comprometer a sua autonomia. grande modelo unificador mantido pela força
A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o e violência física ou simbólica.
conhecimento é interconhecimento. (SANTOS;
MENESES 2009, p. 44-45).
Racismo Estrutural e sua naturalização
A democracia como parte importante da Após a discussão sobre as epistemologias do
estrutura e funcionalidade do país, torna-se Sul e sua constituição a partir do colonialismo
ainda mais importante em relação as e de como a violência foi utilizada nesse
epistemologias do Sul. Na lógica do período, trataremos do conceito de racismo
pensamento pós-abissal Santos e Mendes estrutural e suas ramificações. Partimos da
(2018) sugerem a redemocratização da reflexão sobre a sistematização da linha
economia capitalista, a democratização abissal, que divide toda a estrutura social em
também de toda relação de naturalização dois eixos, sendo um eixo marcado pelas
racial, cultural ou que caracterize o ser em desigualdades e sufocamento do
subalterno além de democratizar toda ação autoritarismo e mandonismo da época, com
que oprima qualquer ser humano por sua culturas invisíveis até hoje e, do outro lado,
escolha sexual. O pós-capitalismo, pós- um eixo caracterizado pelo poder, modelo a
colonialismo e o pós-patriarcado, com ser seguido, com suas únicas e “corretas”
objetivo de eliminar a linha pós-abissal formas de pensar e de conhecer, deixando de
através da democratização Santos e Mendes lado toda e qualquer outra epistemologia.Para
(2018, p. 21) afirmam: “Como todas as iniciar a discussão Almeida (2019) diz que o
exclusões minam o ser, criando não-seres, racismo estrutural se caracteriza como toda
trata-se de imaginar utopicamente uma forma de racismo, ou seja, todo racismo de
democracia pós-abissal que crie humanidade alguma forma é estrutural uma vez que é
na medida em que contribua para denunciar e plasmado na sociedade de modo a se
eliminar a linha abissal”. manifestar na política e economia, sendo
Nesse momento podemos compreender que naturalizado. O conceito de raça, segundo
os autores se remetem ao respeito, a Almeida (2019) está fortemente vinculado a
diversidade e a pluralidade como grandes ideia de classificação, inicialmente pensada
alternativas de fortalecimento das em partes biológicas, plantas, animais e seres
epistemologias do Sul. Vivemos em um humanos. Porém, a sistematização de
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categorias entre seres humanos veio mais lugares de trabalho na sociedade. Houve,
tarde a partir do século XVI. Aníbal Quijano portanto, uma divisão racial do trabalho. Com
(2005) também destaca a questão fenotípica essa classificação de grupos, estruturou-se e
em relação a raça. Para ele, essa naturalizou-se um controle de trabalho e,
diferenciação dos indivíduos se deu entre os “consequentemente, o controle de uma forma
colonizadores e colonizados de forma a específica de trabalho podia ser ao mesmo
diferenciar os grupos. Como consequência da tempo um controle de um grupo específico de
colonização sugiram as relações de poder, gente dominada” (QUIJANO, 2005, p.119).
hierarquias foram criadas, e muitas das Almeida (2019) amplia esta perspectiva ao
identidades dos grupos foram se firmando argumentar que a ideia de raça está atrelada
nas relações sociais através de camadas de às seguintes categorias: racismo, preconceito
poder, de acordo com as função e papéis na e discriminação. Por mais que ambas estejam
hierarquia. Quijano (2005, p. 117) reflete sobre estreitamente relacionadas e interligadas,
isso dizendo, “Em outras palavras, raça e cada categoria possui seu diferencial.
identidade racial foram estabelecidas como Portanto, o racismo não se caracteriza
instrumentos de classificação social básica apenas como exclusão ou ofensa a outrem,
da população”. vai além, existem atitudes, expressões,
Cabe ressaltar que para o autor Almeida gestos, olhares que apresentam o racismo. As
(2019), o significado de raça está fortemente palavras ditas são apenas uma forma dessa
vinculado com as circunstâncias históricas de discriminação. Assim, conceitua-se racismo
cada época. Essas circunstâncias estão como:
atreladas ao autoritarismo constante, com
relação clara de poder, violência e conflito. [...] uma forma sistemática de discriminação que tem a
raça como fundamento, e que se manifesta por meio de
Mais tarde, os colonizadores relacionaram a
práticas conscientes ou inconscientes que culminam
raça com a cor, havendo uma categorização em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a
racial. Quijano (2005) afirma que essa depender do grupo racial ao qual pertençam. (ALMEIDA,
classificação inicialmente ocorreu com os 2019, p. 32).

britânicos-americanos. Porém, a relação da


cor com a segregação racial ocorreu Já o preconceito racial é conceituado por
severamente aos grupos colonizados e Almeida (2019, p. 32) como “juízo baseados
explorados, especialmente aqueles que em estereótipos acerca de indivíduos que
ficaram historicamente classificados como pertençam a um determinado grupo
escravos. Ainda de acordo com Quijano (2005, racionalizado, e que pode ou não resultar em
p. 117): “Em consequência, os dominantes práticas discriminatórias”. Como exemplos
chamaram a si mesmos de brancos”. Desde temos as relações feitas por extremo
então surgiu a diferenciação de cor e a ordem preconceito racial como: orientais
hierárquica do poder. relacionados com produtos de baixa
Com essa classificação racial, originou-se qualidade, nordestinos como preguiçosos,
uma estrutura em relação aos papeis e  assim como os indígenas e as mulheres
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negras como empregadas domésticas. Todos segurança e moradia precária, falta de


esses exemplos são preconceitos recorrentes saneamento básico, ou seja, a falta de
e constantemente reforçados na sociedade. políticas públicas para suprir as necessidades
Portanto, o racismo estrutural, para Almeida básicas para a dignidade. Já a violência direta
(2019, p. 32) “é a atribuição de tratamento possui um autor específico que pratica a
diferenciado a membros de grupos violência contra o outro, como as agressões
racialmente identificados”. físicas, homicídios etc.
A partir disso Almeida (2019) relaciona Após a diferenciação de conceitos tratamos
discriminação ao poder, de forma que o uso sobre o racismo. Cabe ressaltar que segundo
da força atribui vantagens ou desvantagens a Almeida (2019), o racismo possui três
determinado povo por conta da raça. Para o concepções são elas Individuais,
autor a discriminação pode ser direta e Institucionais e Estruturais. Sobre o racismo
indireta. A discriminação direta para Almeida individual temos:
(2019, p.32) “é o repúdio ostensivo a
indivíduos ou grupos, motivados pela Segundo esta concepção, é concebido como uma
espécie de “patologia” ou anormalidade. Seria um
condição racial [...]”. Exemplos disso estão na
fenômeno ético ou psicológico de caráter individual ou
negação ao atendimento em lojas, ou em coletivo, atribuído a grupos isolados; ou ainda, seria o
unidades de saúde, na educação e segurança. racismo uma “irracionalidade” a ser combatida no
Em alguns países, ainda há a proibição da campo jurídico por meio de aplicações de sansões civis
[...]” (ALMEIDA, 2019, p. 36).
entrada de pessoas negras, judeus,
mulçumanos, árabes e outros em lugares
Em seguida temos o racismo institucional que
considerados “nobres”. Já a discriminação
se caracteriza por atuar de forma mais
indireta se dá quando grupos minoritários
disfarçada, porém, mantendo a exclusão e a
(negros, imigrantes, LGBTs, mulheres, pobres,
classificação como fatores persistentes em
entre outros) se tornam invisíveis. Como já
seus sistemas. Deste modo, as instituições
refletido anteriormente sobre as
“passam a atuar em uma dinâmica que
epistemologias do Sul, a invisibilidade desses
confere, ainda que indiretamente,
grupos e de suas culturas se classificam
desvantagens e privilégios com base na raça”
como discriminação indireta.
(ALMEIDA, 2019, p. 37). O fato é que as
Esta classificação de Almeida (2019) sobre
instituições naturalizam suas ações, advindas
discriminação direta e indireta, é semelhante a
de indivíduos com poder e comandando,
classificação de violência para Galtung (1985)
formando estratégias políticas e econômicas
onde classifica a violência estrutural ou
que influenciam e produzem estereótipos do
indireta e violência direta. A primeira é
que é aceitável e correto. Para Almeida (2019,
relacionada com a violência por detrás do
p 30) “as instituições são hegemônicas por
sistema societal, ou seja, não há um autor
determinados grupos raciais que utilizam
para o ato violento, mas sim toda a estrutura
mecanismos institucionais para impor seus
que permeia a sociedade. Como exemplos
interesses políticos e económicos [...]”. Isso
temos: a falta de educação de qualidade,
nos mostra que a cada passo da sociedade, o
.
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racismo ainda insiste em normalizar Não havia legislação que condenasse as


situações de preconceito, reproduzindo situações de poder, surgindo os “costumes
padrões de violência e dominação. Ainda para das terras”, caracterizados quando patrões e
Almeida (2019) o racismo não foi criado pelas senhores de engenhos juntos com a alta
instituições, porém ele é reproduzido por elas. sociedade da época estabeleciam seus
A terceira forma de racismo é o racismo próprios direitos. Assim, o poder foi destinado
estrutural, que engloba de forma enraizada a poucos, acarretando uma larga trajetória de
toda a sociedade e está infiltrada em todos os injustiças e tratamento desumano, abrindo as
meios de comunicação, instituições públicas portas para o que hoje entendemos como
e privadas e até mesmo nas famílias. Para desigualdade social.
Almeida (2019) o racismo se torna normal Durante o período da escravidão no Brasil, a
pela própria estrutura social, desprendendo-se população negra estava destinada aos
em um processo político e um processo serviços braçais e nada mais. Surge o
histórico. Ao mesmo tempo torna-se um estereótipo através da cor da pele, sendo que
processo político porque “como processo o branco possuiria maior inteligência e os
sistêmico de discriminação que influencia a negros eram vistos apenas como mão de
organização da sociedade, depende de poder obra. Assim, “o negro, escravo, é coisificado,
político; caso contrário seria inviável a sendo destinado para serviços braçais
discriminação sistemática de grupos sociais impostos por seus proprietários, como
inteiros” (ALMEIDA, 2019, p. 52). Um exemplo cozinha, plantações e até satisfação da libido”
que o autor traz é o discurso sobre o “racismo (BATISTA; MASTRODI, 2018, p. 2339). Já as
inverso” que seria feito das minorias as mulheres negras sofriam claramente de várias
maiorias, o que é muito improvável, pois manifestações de violência. De acordo com
segundo o autor os grupos minoritários Schwarcz (2019) as mulheres negras eram
podem até cometer preconceito e obrigadas a trabalhar exaustivamente,
discriminação, porém não possuem o poder acumulando as atividades domésticas,
de causar desigualdades e desvantagens aos amamentando os filhos dos senhores feudais
grupos majoritários. e, muitas vezes, acabavam abandonando seus
Obviamente, no Brasil, o racismo está ligado próprios filhos. Ainda para Schwarcz (2019) a
ao processo histórico, particularmente a partir mulata da época, que eram mulheres que
do legado da colonização e da escravidão viviam nas casas de seus senhores,
através da exploração dos negros trazidos ao acompanhando as senhoras em seus
país para um trabalho árduo desumano. Além afazeres, acabavam por saciar as vontades
disso, não podemos esquecer do genocídio da sexuais dos patrões. Estes exemplos são
população indígena. Como diz Schwarcz claros para mostrar como os africanos
(2019) no Brasil se instalou uma perversa transformados em escravos no Brasil, foram
soberania entre os séculos XVI e XIX, onde coisificados, violentados e aculturados. A
ocorreram muitas injustiças, pois não haviam cosmovisão africana, as crenças, cultura,
direitos que sustentassem estes indivíduos. formas de viver foram tornadas invisíveis e
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escondidas por mais de três séculos. cotidianamente, sem a percepção da prática


Ainda em relação às mulheres negras, um de racismo, transfigurando-se em ações
provérbio que define o preconceito e que até naturais e incorporadas aos indivíduos. Nisso
hoje costuma reproduzir-se no corpo social é: reside uma narrativa igualmente irresponsável
“As brancas são para casar, as negras para que trata o “politicamente correto” como algo
trabalhar e as mulatas para fornicar”. negativo. Pelo contrário, o que se entende
(SCHWARCZ, 2019, p.193). Essa coisificação pelo termo é o respeito à diversidade e
da mulher como um objeto, classificando-a de pluralidade, a empatia com o ser humano e,
acordo com suas formas físicas tornou-se fundamentalmente, passos para o avanço
contemporâneo assumindo novas formas de civilizatório. Um questionamento importante
desvalorização ao feminino. O Atlas da ao refletir sobre racismo é: de que forma o
Violência de 2019, relata que 4.936 mulheres naturalizamos? Almeida (2019) afirma que os
foram assassinadas em 2017, sendo o maior fatores históricos são determinantes e se
número em dez anos, 66 % dessas mulheres relacionam com o alto índice de
são negras, são em média 13 vítimas por dia. analfabetismo de pessoas negras, menor
A taxa de homicídios de mulheres negras acesso à educação, trabalhos menos
cresceu em torno de 29,9% em comparação qualificados e de menor prestígio social e,
com 4% de mulheres não negras. Interessante consequentemente, possuindo uma renda
contar que, na era colonial e escravocrata, salarial muito inferior. Para o autor, todos
surgiram manuais que foram distribuídos aos esses fatos são justificados devido a
senhores feudais das Américas e Caribe. Tais dominação de pessoas negras por pequenos
manuais, segundo Schwarcz (2019), grupos de soberania branca que ocupam os
aconselhavam como se impor perante os espaços de poder e decisão.
escravos. O objetivo desses livros era evitar a Seguindo a discussão considera-se verdade
fuga de escravos e também a forma de que a população negra apresenta menor
castigar os mesmos, sempre de forma escolaridade que pessoas brancas. O sistema
moderada a fim de não causar revoltas. Um do país, desde a colônia, privilegia os brancos
dos ensinamentos do manual era garantir tanto politicamente como economicamente.
algumas formas de diversão aos negros, Mas a pergunta que Almeida (2019) nos faz
como o cultivo de roças, criação de galinhas refletir é, “Por que os negros têm menor
de modo que esquecessem ou não tivessem acesso à educação que as pessoas brancas?
tempo de pensar em fugir ou se rebelar. E por que não há privilégios aos negros? É
Como vemos, o racismo estrutural pode ser comum naturalizarmos o racismo, isso é
visto em todos os sistemas e estruturas de perceptível quando não refletimos o motivo
uma sociedade. São caracterizados pela falta pelo qual pessoas negras não ocupam muitos
de pessoas negras em diversas áreas de espaços na medicina, no parlamento, em
visibilidade como na televisão e nos cargos de novelas e bancadas de jornais. A
prestígio. Também podemos encontrar o naturalização do racismo está presente
racismo nas piadas recontadas quando não nos damos conta que a grande
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parcela negra da população trabalha em Notadamente estes dados já contam muito


situações insalubres, moram nas ruas ou nas sobre a situação do racismo estrutural. O
favelas. Igualmente não nos damos conta que Brasil é um país onde a violência está se
a grande maioria dos encarcerados no Brasil tornando para a cultura, ou seja, há uma
são negros. Almeida (2019) traz um exemplo cultura de violência. Com isso, pensar em
claro: quando vemos uma pessoa negra alternativas, como a construção de uma
ocupando o cargo de um médico e um branco cultura de paz, torna-se inevitável, necessário
de olhos azuis e cabelos loiros ocupando o e urgente. A nível global, os temas da cultura
cargo de um gari, por que nos causa de paz e do desenvolvimento sustentável são
estranheza? Parece que as coisas estão “fora alvos prioritários da Organização das Nações
do lugar”? Respondendo a essas inquietações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
o autor afirma “[...] o racismo, enquanto - UNESCO, assim como a educação em
processo político e histórico, é também um direitos humanos, pacifismo entre culturas,
processo de constituições de subjetividades, boa governança, memória histórica, resolução
de indivíduos cuja consciência e afetos estão de conflitos e a consolidação da paz.
de algum modo conectados com as práticas Segundo a UNESCO (2017), o direito à vida e a
sociais”. (Almeida, 2019, p. 49) segurança deveriam ser de total apropriação
para qualquer indivíduo. Porém, hoje o Brasil
Cultura de Paz como alternativa ao sofre com muitos problemas estruturais,
autoritarismo e o racismo brasileiro como a pobreza, fome, desigualdade social,
O Brasil hoje está entre os países mais injustiça e a violação constantemente dos
violentos, segundo o Atlas da Violência de direitos humanos. Como ampliar e qualificar a
2019 ocorreram 65.602 homicídios em 2017, relação da dignidade com os direitos
uma taxa de 31,6 por 100 mil habitantes, é o humanos e a construção de uma cultura de
maior número na história do país. O que mais paz? Como pensar a cultura de paz onde
choca nesse cenário de violência é que a existem marcas tão presentes de racismo
maior parte desses homicídios ocorre com a estrutural? Ainda: como refletir estas
população jovem do país. Através dos dados questões a partir do Sul global, como
podemos notar o peso da desigualdade racial, propõem as epistemologias do Sul?
visto que ainda segundo o Atlas da Violência Bem, como sabemos, a educação está
de 2019, 75,5% das vítimas de homicídios são fortemente vinculada a cultura de paz,
negras. Vemos uma taxa de 43,1% de segundo a UNESCO (2017) a educação sem
homicídios para negros e 16,0% de não violência é a grande chave para desenvolver a
negros. Para cada indivíduo não negro vítima paz dentro das escolas e na sociedade. Sendo
de homicídio, temos 2,7 negros mortos. De uma prática constante no ambiente de ensino,
2007 a 2017 a taxa de homicídios de negros trabalhando com alunos, professores,
cresceu cerca de 33,1%, sendo que a taxa de gestores e comunidade, uma proposta de
não negros aumentou 3,3%. cultura de paz na escola pode ser
compartilhada com toda a sociedade, abrindo
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campo para a reflexão de práticas Conforme já discutimos ao longo do estudo, a


pedagógicas baseadas em não-violência, discriminação racial se faz constantemente
direitos humanos, mediação de conflitos entre presente na sociedade e ficando naturalizada.
outras, contribuindo para construção da paz. Rayo (2004) diz que a discriminação racial
Com o suporte da educação de qualidade dificulta em muito o alcance integral dos
pode-se combater diversos tipos de violência, direitos humanos. Por mais que hajam
desde a discriminação, racismo ou algumas conquistas nesse sentido, ainda
preconceito, até violência estrutural. A existe a segregação, exclusão, baseadas na
educação tem força para atuar diante das raça, origem e cor. Desse modo a
violências desde que desenvolvida discriminação racial se tornou uma meta
coletivamente. A UNESCO (2017) traz importante para as Nações Unidas. Ainda, de
algumas contribuições salientando a não- acordo com o autor, as Nações Unidas, em
violência no meio escolar bem como, 1962, demonstraram preocupação em relação
conhecer sobre os direitos humanos, respeitar aos preconceitos raciais e intolerância
diferenças, utilização do diálogo, prezar por nacional e religiosa, recomendando aos
soluções não violentas e promover valores Estados-membros um olhar mais apurado em
não violentos. relação a esse panorama. A Carta
Nesse caminho é importante salientar Internacional dos Direitos Humanos (1962)
algumas medidas que podem contribuir na propunha combater, segundo Rayo (2004, p.
eliminação da discriminação, preconceito e 55) “através da educação e por todos os
intolerância. Em relação a discriminação meios de informação, a criação, propagação e
racial, segundo Rayo (2004), após a criação disseminação de tais preconceitos e
das Nações Unidas, houve o surgimento de intolerância em qualquer de suas formas”.
pactos e declarações que afirmaram que Como forma de provar que a educação deve
todos os membros da família possuem estar relacionada a cultura de paz e destinada
direitos iguais e inalienáveis. Grande parte das a desenvolver medidas que visem acabar com
nações aceitaram tal condição e se a discriminação racial, a resolução aprovada
comprometeram a defender esses direitos. pela Assembleia Geral 1904 (XVIII) no
Isso mostra como os direitos humanos e a documento Declarações das Nações Unidas
cultura de paz são intimamente relacionados. sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Os direitos humanos têm a função de Discriminação Racial (1963) no artigo 8º
construir e preservar a dignidade humana. consta que:
Com a dignidade assegurada, ou seja, com as
Todas as medidas eficazes devem ser tomadas
condições mínimas para viver, as pessoas e a
imediatamente nas áreas de ensino, a educação e
sociedade avançam para uma cultura de paz. informação, com vista a eliminar a discriminação racial
Ao contrário, sem dignidade mínima (falta de e o preconceito e promover a compreensão, a tolerância
alimentação, moradia precária, desemprego e a amizade entre nações e grupos raciais, bem como
propagar os propósitos e princípios da Carta das
etc) pessoas e sociedade reproduzem a
Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos
cultura de violência. Humanos e da Declaração sobre a Concessão de
Independência aos Países e Povos Coloniais.
139 PEDAGOGIA DECOLONIAL SURES/JUNHO/20

Nesse ponto fica clara a ligação entre os com os conflitos de forma criativa, para que
vértices propostos no estudo. A cultura de paz os mesmos possam ser resolvidos e atenda o
e os direitos humanos estão num ponto de bem comum dos conflitantes. Diz o autor:
convergência com a redução das
O futuro exige mais do que nunca a construção da paz
discriminações e do racismo estrutural que,
através da ciência, da cultura, da educação e da
por sua vez, é uma construção história a partir comunicação, motivo pelo qual o respeito ao direito
dos processos de colonização, capitalismo e humano à paz, inspirado no ideal democrático de
patriarcado. Assim, as epistemologias do Sul dignidade, igualdade e respeito à pessoa, é a via mais
segura para lutar contra a exclusão, a discriminação, a
nos mostram com clareza, a divisão de
intolerância e a violência que ameaçam a coesão da
poderes na sociedade, através da linha abissal sociedade [...]. (RAYO, 2004, p.35)
que Santos e Meneses (2009) descrevem
muito bem em sua obra. A esse respeito, os Portanto, uma educação fundamentada pelos
autores concluem: “é que esta realidade é tão princípios da cultura da paz não é ingênua
verdadeira hoje como era no período colonial” nem superficial. Ao contrário, vai buscar a
(SANTOS; MENESES, 2009, p 31). É fato que reflexão na história e nos processos de
tivemos alguns avanços em relação à violência da humanidade para então
conquista de direitos, porém, não podemos reconstruir trajetórias a partir dos problemas
fechar os olhos para as injustiças e e contextos atuais. A diferença positiva, neste
desigualdades que ainda acontecem ao nosso caminho, é que não ocorre apenas a
redor. A discriminação racial, fruto do racismo declaração dos problemas históricos e a
estrutural, ainda é um problema a ser busca de culpados, mas sim, o favorecimento,
enfrentado cotidianamente na sociedade. o conhecimento e a compreensão mútua das
A linha pós-abissal a que Santos e Meneses situações de violência que marcam a
(2009) se referem, propõe ao pensamento de existência humana. Com isso, a sociedade se
ações para um futuro melhor, ou seja, “um move na busca da superação dos modelos de
aprender com o Sul usando uma cultura de violência para formas relacionadas
epistemologia do Sul. Confronta a à cultura de paz. O campo educacional será
monocultura da ciência moderna com uma fundamental para o desenvolvimento destas
ecologia de saberes. É uma ecologia, porque propostas de superação.
se baseia no reconhecimento da pluralidade
de conhecimentos heterogéneos [...]. (SOUZA; Considerações finais
MENESES, 2009, p. 44). Nesse sentido, é Com base nos estudos e argumentos
imprescindível trabalhar nos meios apresentados, ressaltamos a importância do
educacionais a importância das multiculturas, tema para a atualidade. Em relação às
diferenças de saberes e pensamentos. Deixar epistemologias do Sul, precisamos
claro que a paz é um direito humano sem compreender que o Sul global possui culturas,
distinções. Segundo Rayo (2004) a paz não se conhecimentos e formas de viver que devem
responsabiliza apenas pela diminuição da ganhar maior projeção e ser integrados com
violência, mas sim desenvolver e trabalhar outras formas de conhecimento, ao invés de
serem sufocados pela hierarquia do Norte
140 PEDAGOGIA DECOLONIAL SURES/JUNHO/20

global. É fato que a colonização trouxe grande epistemologias do Sul e do racismo


dominação e exploração de muitos grupos e estrutural. A partir disso é possível ampliar o
que persistem, mesmo com algumas conhecimento e superar o senso comum
metamorfoses. Atualmente, ainda sofremos traduzido em preconceitos, discriminação,
com a ideia de que o conhecimento e os intolerância e nas inúmeras formas de
países da Europa e da América do Norte são violência. Portanto, uma cultura de paz para o
superiores. Assim, as desigualdades, antes da Sul global precisa ser pensada sob estes
colônia e hoje da dependência econômica, caminhos, para propor caminhos adequados
influenciam nosso complexo de inferioridade. em sociedades como a brasileira, visando
Quanto ao racismo estrutural a ênfase foi em superar violências históricas, profundas,
detectar sua origem e naturalização com o estruturais reproduzidas nas pratica sociais
decorrer dos séculos. Desde o genocídio dos da atualidade.
indígenas pelos primeiros colonizadores até a
exploração dos negros, a construção do Referências
racismo estrutural deu origem ao que ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen,
2019. 255 p.
chamamos atualmente de descriminação,
preconceito e violência, todos advindos da BATISTA, Walesca; Miguel, MASTRODI, Josué. Dos
estrutura criada na cultura de inferioridade fundamentos extra econômicos do racismo no Brasil.
dos “não-brancos”. Como o mapeamento do Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2332-
2359, 2018.
racismo estrutural é difícil de ser estabelecido,
isso acaba por torna-lo ainda mais perigoso. CERQUEIRA, Daniel (coord.) Atlas da Violência 2019.
São práticas, hábitos e costumes que estão Disponível em:  <http://www.ipea.gov.br/portal/> Acesso
amarrados aos valores apresentados para as em: 30 março. 2020.

crianças desde muito cedo. Esses hábitos FIGUEIREDO, Carlos. Estudos subalternos: uma introdução.
estão introduzidos no cotidiano e se Revista Raído, Dourados, v. 4, n. 7, p. 83-92, jan.-jun. 2010.
manifestam através do tratamento desigual
GALTUNG, Johan. Sobre La Paz. Barcelona: Fontamara,
dos seres humanos, acabando por alavancar
1985.
ainda mais os índices de violência e
segregação. MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e
De forma a rever o cenário atual, trouxemos da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In:
BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES,
apontamentos sobre a cultura de paz. São
Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.) Decolonialidade e
reflexões que trazem esperança na medida pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica
em que abrem possibilidades de Editora, 2019.
enfrentamento destes problemas através da
ONU. Brasil sobe duas posições e passa a ter 7ª maior taxa
informação histórica crítica, do diálogo e da
de homicídios das Américas, diz OMS. Disponível em:
solução pacífica dos conflitos. A geração <https://nacoesunidas.org/brasil-sobe-duas-posicoes-e-
atual e as novas gerações precisam estar passa-a-ter-7a-maior-taxa-de-homicidios-das-americas-diz-
mais conscientes dos problemas históricos oms/> Acesso em: 05 ago. 2019.

expressos em temáticas como as


PAIVA, Marília. Um olhar sobre “Epistemologias do Sul” de
Boaventura de Souza Santos. Revista Uniara, São Paulo,
v.18, n. 1, p. 198-205, jun.-jul. 2015.
141 PEDAGOGIA DECOLONIAL SURES/JUNHO/20

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e


América Latina. In: LANDER, Edgardo (Coord.) A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO,
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2000. cap. 9,
p. 117-142.

RAYO, José Tuvilla. Educação em direitos humanos: rumo a


uma perspectiva global. Tradução de Jussara Haubert
Rodrigues. Porto Alegre: Artmed, 2004. 247 p.

SANTOS, Boaventura S. O fim do império cognitivo: a


afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2019.

SANTOS, Boaventura S.; MENESES, Maria P. Epistemologias


do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. 532 p.

SANTOS, Boaventura S.; MENDES, José M.


Demodiversidade: imaginar novas possibilidades
democráticas. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2018.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1ª


ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 273 p.

UNESCO. Declaração das Nações Unidas sobre a


Eliminação de Todas as Formas de Descriminação Racial.
Disponível em:
<https://www.oas.org/dil/port/1963%20Declara.pdf>
Acesso em: 30 março de 2020.

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