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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

escrituras
sensíveis

] relação entre processos


poéticos e metodologia de
pesquisa, textualidade
e plasticidades [

13

Brasília, 11 a 13 de novembro de 2015 - Anais do VI ComA: LIMIARES - ISSN: 2357-8831


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escrituras
sensíveis

Profa. Dra. Maria Ivone


dos Santos (UFRGS)
https://www.youtube.com/watch?v=kzaDRQxNbV8

Profa. Dra. Luisa Günther


Rosa (UnB)
https://www.youtube.com/watch?v=SfobkxuvisE

Profa. Dra. Fátima Aparecida


dos Santos (UnB)
https://www.youtube.com/watch?v=OQZWuK7uycM
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A educação estética
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

e as histórias em
Este trabalho é um recorte de minha dissertação e tem como objetivo uma
discussão teórica sobre as histórias em quadrinhos como uma metalinguagem

quadrinhos nas
a ser utilizada em sala de aula de forma lúdica, sendo este um elemento da
cultura pop atual. Desta forma, pretende-se criar uma interlocução que dialogue
entre alguns elementos que compõem a arte e os elementos que compõem

aulas de artes
uma história em quadrinhos (focando fundamentos da linguagem visual), bem
como a possibilidade de criação de roteiros, cenários, levando em conta toda
a trajetória de vida dos alunos e o meio social no qual estão inseridos.

Palavras-chave: Histórias em quadrinhos. Educação Estética. Sala de aula.

Abstract

Pablo Rodrigo Santoni


This work is an excerpt of my dissertation and its purpose is to create a
1 theoretical discussion about comics as metalinguistic medium to be applied
to study classes in a ludic way, being an element of current pop culture. With
this method, we strive to create a tight relation between some elements that
compose art and elements that compose the written history (emphasis on visual
language elements), while also encompassing scripts creative process and
scenarios with the whole process being executed under the lens of the student
trajectory of life and experiences and the social environment he is inserted.

Keywords: Comics. Aesthetic Education. Classroom.

Introdução
Desde a graduação, na grande maioria das vezes em que alegava pesquisar sobre
quadrinhos na educação ou quadrinhos nas salas de aula, as pessoas costuma-
vam a associar de alguma maneira que minha proposta envolvesse a produção
de quadrinhos por parte dos alunos. Porém, além de reconhecer esta metalin-
guagem como uma ferramenta em sala de aula para trabalharmos alguns aspec-
1 Formado em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas. Mestrando tos técnicos que compõem o fundamento das linguagens visuais como cor, linha,
pelo programa de pós-graduação em Artes da Universidade de Brasília. Currículo Lattes: http:// ponto, planos, plano de fuga, sombra, etc. Vejo também as histórias em quadrinhos
buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4428565U4 como um agente importante no processo identitário e humanizador dos jovens, 15

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uma vez que, as pessoas que conso- em nossa cultura pop há várias portanto, da Cultura, reforçando
mem este tipo de mídia, o fazem décadas, sendo desta forma, consu- o que Vergueiro (2008) afirma:
em parte por identificarem-se com mida por vários jovens e adultos,
elas, ou enxergarem a si mesmo e consequentemente, vez ou outra Há várias décadas, as histórias em
em determinados personagens. nos deparamos com a temática quadrinhos fazem parte do cotidiano
nas salas de aula, seja por parte do de crianças e jovens, sua leitura sen-
Aliado a esta interlocução entre as professor, seja passando de mãos do muito popular entre eles. Assim, a
histórias em quadrinhos e as aulas em mãos trazida de casa por algum inclusão das histórias em quadrinhos
de artes, poderíamos acrescer à aluno, seja cuidada com carinho e na sala de aula não é objeto de qual-
educação estética de que trata zelo por algum dos jovens que as quer tipo de rejeição por parte dos
João Francisco Duarte Jr(2010), coleciona. Waldomiro Vergueiro estudantes, que, em geral, as rece-
que valoriza a sensibilidade (2010), nos fala sobre as HQs como bem de forma entusiasmada, sentin-
humana através dos sentidos, das uma ferramenta para estudarmos os do-se, com sua utilização, propensos
significações ou ressignificações fundamentos da linguagem visual a uma participação mais ativa nas
que os objetos ou que o meio têm na sala de aula através de pontos, atividades de aula [...] A forte identifi-
para as pessoas, que, neste caso linhas, textura, cor, ponto de fuga, cação dos estudantes com os ícones
se daria à linguagem das histó- plano de fundo e etc. E de fato ele da cultura de massa – entre os quais
rias em quadrinhos e seus concei- não está enganado, é possível traba- se destacam vários personagens
tos de acordo com Scott MCcloud lhar de tal forma com os alunos dos quadrinhos -, é também um ele-
(2005), que define as HQs como utilizando páginas de quadrinhos mento que reforça a utilização das
sendo “imagens pictóricas e outras para explicar talvez de forma lúdica histórias em quadrinhos no processo
justapostas em seqüencia delibera- o estudo sobre luz, sombra, ponto didático. (VERGUEIRO, 2008, pg.21)
da”. Portanto, pretendo investigar etc. Também se faz necessário saber
de que forma poderia desenvolver que há outras formas de se trabalhar As histórias em quadrinhos são
o diálogo entre a educação esté- com as HQs nas salas de aulas, pois repletas de mensagens, de ideias,
tica e as histórias em quadrinhos elas são muito mais do que pontos, há sonoridade através das onomato-
nas aulas de artes? Qual a rele- linhas, cores, mas que são repletas peias e estimulam nossa imaginação
vância deste elo na sala de aula? de significados, diálogos, ideias. entre um quadro e outro. São reple-
tas de ícones com o qual nos iden-
Como aponta Vergueiro (2008), tificamos e a respeito disso preci-
Desenvolvimento as HQs são também um proces- samos compreender de inicio dois
so pedagógico, ao permitir a conceitos básicos que são descritos
Começo este capítulo falando sobre identificação com os persona- por McCloud (2005) sobre a HQ e o
algo com o qual tenho contato desde gens, a constituição de proces- ícone. O primeiro é conceito apli-
a infância, as histórias em quadri- sos de conhecimento, prazer, cado por ele as HQs como sendo
nhos, que abreviarei com suas siglas divertimento e alargamento da imagens pictóricas e outras justa-
iniciais HQ. As HQs estão inseridas compreensão e da visualidade, e, postas em sequência deliberada. 16

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Já o segundo, é definido como senti-lo organizadamente, conferin- possibilidades visuais que temos
qualquer imagem que represente do à realidade uma ordem primor- durante o trajeto que percorremos.
uma pessoa, local, coisa ou ideia. dial, um sentido – há muito senti- Isso quando colocamos uma estei-
do naquilo que é sentido por nós. ra dentro de casa e caminhamos
Desta forma, podemos entender Em português, aisthesis tornou-se em uma máquina olhando para a
que as salas de aulas são repletas estesia, com o mesmo significado parede a nossa frente ou assistimos
de ícones e linguagem das HQs, dado pelos gregos (sendo anes- a um programa televisivo, deixando
que vão desde os desenhos nas tesia a sua negação, a incapaci- assim as vivências do mundo lá fora.
carteiras, contra capas de cader- dade de sentir). E desse termo
nos e paredes, até os filmes, dese- originou-se também a palavra Agindo de tal forma, fica evidente
nhos, novelas, seriados, e músicas estética, que, referindo-se hoje que parte de nós, humanos, repro-
discutidos pelos alunos durante as mais especificamente às ques- duzimos tais exemplos de anestesia
aulas. Mas todos estes ícones bem tões artísticas, não deixa ainda de ou ao menos já o fizemos alguma
como a linguagem das HQs nem guardar o sentido geral de uma vez na vida. E tal comportamento é
sempre são discutidas, pensada ou apreensão humana da harmonia transposto para a sala de aula, os
repensada entre os adolescentes e da beleza das coisas do mundo, alunos a medida que crescem vão
ou até mesmo pelo professor, que que os nossos órgãos dos sentidos tornando-se em grande parte anes-
em diversos casos encontram-se permitem. (DUARTE, 2010,p.25) tesiados até se tornarem adultos que
com problemas para conquistar a vivem buscando um sentido racional
atenção dos alunos na sala de aula. Para afirmar que estamos nos par quase tudo o que fazem na vida.
tornando cada vez menos sensíveis,
Sendo assim entra a educação do Duarte Jr(2010), aponta os altos Portanto, meu trabalho não consis-
sensível ou educação estética, e as índices de violência, as guerras, a te em ser fatalista e alegar que
duras críticas tecidas por Duarte banalização da vida, das coisas que somos seres que perderam a capa-
Jr (2010), que escreve sobre como acontecem ao nosso redor. Desde cidade de sentir e que estamos
nossa sociedade prioriza a raciona- um passeio no parque ou pelas ruas fadados a nos destruirmos, ou que
lidade em detrimento ao sensível, da cidade, em que muitas pessoas o conhecimento e ou a percepção
na busca por resultados, por núme- colocam fones de ouvidos e cami- racional deve ser combatida pelo
ros que quantifiquem nossa efici- nham olhando para o chão, muitas sensível, mas sim que é preciso
ência. E o professor não é imune a vezes concentradas em vencer buscar um equilíbrio diário entre a
este sistema, pelo contrário, ele é aquele percurso para manter a boa razão e o sensível. Porém, como o
um agente propagador conscien- forma ou entrar em forma, sendo assunto aqui é a educação estéti-
te ou inconsciente desta aneste- assim, com os fones de ouvidos ca, o sensível ficará mais eviden-
sia que toma o lugar da estesia. anulam os sons dos pássaros, das te que o racional neste trabalho.
conversas entre as pessoas, do
Aisthesis: em grego, a capacida- ambiente a sua volta, e ao olhar Vejo a linguagem das HQs como
de humana de sentir o mundo, de para o chão ignoramos as diversas um dos possíveis pontos de 17

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partidas para se trabalhar a educa- Vivemos num mundo de inte- diversas formas, recusa reconhecer-
ção estética nas salas de aula, ração e de associações, onde se, em qualquer projeto político, não
por ser uma metalinguagem com queremos estar com àqueles com se inscreve em nenhuma finalidade e
vastas possibilidades lúdicas ou quem nos identificamos. E como tem como única razão ser a preocu-
não que possibilita o exercício de nascem esses interesses? pação com o presente vivido coleti-
trabalhar com a subjetividade e vamente. (MAFFESOLI, 1998, p.105)
a [re]significação de mundo dos É certo que a base de tudo isso é
alunos sem necessitar da produ- a situação de face a face. Por con- Na educação do indivíduo, sua
ção de quadrinhos ou tratando taminação, no entanto, é à totali- dimensão imaginativa, emoti-
de aspectos técnicos da confec- dade da existência social que esta va e sensível, ou seja, seu ser
ção de HQs, mas sim lidando com forma de empatia diz respeito. Além como um todo, deve ser coloca-
suas linguagens, com persona- disso, quer seja pelo contato, pela do como origem de todo proje-
gens, histórias, ideias com os percepção, ou pelo olhar, existe to que vise a educá-lo e a forta-
quais nos identificamos, e que nos sempre algo de sensível na relação lecê-lo como principio da vida
surgem através destas linguagens. de sintonia. Como veremos adiante, em sociedade. Pois vale lembrar
é este sensível que é o subtrato do que, a sensibilidade desta pessoa
McCloud (2005) escreve que os reconhecimento e da experiência do constitui, assim, o ponto de parti-
humanos são a única espécie outro.(MAFFESOLI, 1998, p.103) da para nossas ações educa-
centradas em si próprio, e que, nós cionais com vista à construção
temos a habilidade de nos ver em Com isso, Deus, o Espírito e o de uma sociedade mais justa e
tudo, como por exemplo enxergar indivíduo cedem lugar ao reagru- fraterna, que não usem a ciên-
olhos e uma boca olhando para os pamento, sendo assim o homem cia e o instrumentalismo como um
faróis e para-choque de um carro. não é mais considerado isolada- fim em si mesma, mas como um
Além do mais, ele diz que é impos- mente. Portanto, para compre- meio. Deste modo, não devemos
sível enxergarmos um círculo em endermos os sentimentos e as virar as costas para este conhe-
qualquer superfície e dentro de tal experiências que são partilhados cimento sensível que os alunos
círculo haver dois círculos menores em diversos momentos sociais de carregam em suas bagagens.
paralelos uns aos outros com uma nossas vidas, é preciso partir de
linha continuada abaixo destes e outro ângulo de abordagem, ou Como a linguagem das HQs trata de
não vermos um rosto. Portanto, ele seja, estética, aonde Maffesoli subjetividade, criatividade e depen-
atribui a esta centralização em si (1998) vai nos dizer que ele enten- de da percepção de cada um, ela
dos humanos como um dos fato- de como “a faculdade comum nos faz pensar, refletir e sentir. Tal
res que fazem com que nos identi- de sentir, de experimentar”. vivência é reproduzida nos traba-
fiquemos com os personagens de lhos tanto dos docentes quanto
quadrinhos, e que, quanto mais Não podemos deixar de assinalar dos discentes, trabalhos estes que
icônico o personagem, maior a faci- a eflorescência e a efervescência podem se darde formas variadas,
lidade de nos enxergarmos nele. do neo-tribalismo que, sob as mais até porque, de acordo com Duarte 18

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Jr (2008), a arte não é vista ou Desta forma, nos levam a crer que será o número de possibilidades
produzida somente com os olhos, o saber corporal é menos digno de de trabalharmos em sala de aula,
mas sim com o corpo, com o uso nossa atenção, entretanto é ele e de levarmos em conta as subje-
de nossos sentidos que confec- quem me diz como devo chutar a tividades e a cultura trazida por
cionam o sentido dos sentidos. bola para joga-la na cabeça de um nossos alunos para a sala de aula.
companheiro na cobrança de escan-
A cultura nutre a Arte, afirma Marly teio, bem como é o corpo que me diz Portanto, as artes visuais por
Meira (2007), e exige um aprofun- como me equilibrar em cima de uma encontrar-se no campo da subjeti-
damento reflexivo nas condições bicicleta ou patins Duarte Jr (2010). vidade, da estética, da não funcio-
materiais, técnicas, de sensibili- nalidade, têm grandes possibi-
dade e pensamento que afetam lidades de se trabalhar o lado
a sua realização, seja na ativida- Considerações finais sensível das pessoas que nos
de de produzir uma obra, seja na humaniza, combatendo assim
multiplicidade das experiências Vejo como sendo um tanto compli- a anestesia através da expres-
estéticas que ela suscita. O visí- cado discutir quadrinhos nas salas são humana e dos cinco sentidos.
vel é, em arte, uma construção de aula sem que o tema se desvir- Consequentemente nos tornan-
criadora, uma composição de um tue para a produção de HQs por do mais atentos as singularida-
cosmos que possui uma aparên- parte dos alunos, mas procurei des do nosso dia a dia, tendo
cia, onde materialidades e imagens trazer outro olhar para esta mídia maior consciência aos cuidados
dialogam em arte a partir do corpo da cultura, onde trabalhamos atra- necessários para preservarmos
e da corporeidade do ambien- vés de suas linguagens que vão o mundo no qual vivemos, procu-
te como contexto estético. desde os aspectos visuais conven- rando torna-lo um lugar melhor
cionais, até mesmo sua temática, de se viver coletivamente.
Temos na nossa sociedade ainda, enredo e seu sentido para cada
a ideia de que conhecimento é tudo indivíduo, que, não restringem-se Referências
o que pode ser provado através apenas a revista em quadrinhos
de cálculos matemáticos, e desta em si, mas sim nas outras mídias DUARTE JR, João Francisco.
forma, também temos o costume de televisivas, áudio visuais e afins. Fundamentos Estéticos da
atribuir o que sentimos com nosso Educação. São Paulo: Cortez, 1995.
corpo como uma forma de conhe- Ao professor cabe talvez, instigar
cimento mais imprecisa, pois cada os alunos a vivenciar novas expe- _________.A montanha e o vide-
um a percebe de uma forma, sendo riências e para isso é necessá- ogame. São Paulo: Papirus, 2010.
assim e não existindo uma forma rio que o próprio docente esteja
padrão de calcular, este tipo de aberto a caminhar por caminhos _________. O Sentido dos
conhecimento acaba sendo consi- que nem sempre estarão em sua Sentidos: A educação (do) sensí-
derado menos importante, e conse- zona de conforto. Quanto menos vel. 5 ed. Curitiba: Criar, 2010.
quentemente menos confiável. engessados estivermos, maior 19

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MAFFESOLI, Michel. Os tempos


das tribos: o declínio do indi-
vidualismo nas sociedades de
massa. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1998.

MCCLOUD, Scott. Desvendando


os quadrinhos. São Paulo: M.
Books do Brasil Editora Ltda, 2005.

MATURANA, Humberto.
Emoções e linguagem na
educação e na política. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

_________. A Ontologia
da Realidade. Belo
Horizonte: UFMG, 1999.

_________. Da Biologia à
Psicologia. (3 ed.) Porto
Alegre: Artes Médicas, 1998.

MEIRA, Marly. Filosofia da


Criação. Reflexões sobre o
Sentido do sensível. Porto
Alegre: Mediação, 2007.

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Aqui começa
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Resumo

uma história...
Este artigo apresenta uma narrativa se apropriando dos recursos da ficção
para tecer uma série de encontros com importantes teóricos, como: Walter
Benjamin, Umberto Eco, Irene Tourinho e Arthur Efland. A partir destes encontros
fictícios são colhidos argumentos que colaboram para ressaltar a importância
da narrativa como possibilidade de construção de conhecimento, tendo
como principal foco a relação da narrativa com a experiência. Esta narrativa
apresenta o ponto de vista do aluno no processo de ensino/aprendizagem.

Tatiana Duarte Menezes


Palavras-chave: Artes, Educação, Narrativa, Ficção, Experiência.
1
Abstract

This article presents a narrative appropriating resources from fiction to


weave a series of meetings with leading theorists, such as: Walter Benjamin,
Umberto Eco, Irene Tourinho and Arthur Efland. From these fictional
dates are picked arguments that collaborate to highlight the importance of
narrative as a possibility of building knowledge, having as its main focus
the relationship of narrative with the experience. This narrative presents
the point of view of the student in the teaching/learning process.

Keywords: Arts, Education, Narrative, Fiction, Experience.


1 Mestranda na linha de pesquisa Educação em Artes Visuais pela Universidade de Brasília
e bolsista do CNPq. Possui Licenciatura (2013) e Bacharelado (1998) em Artes Plásticas
(UnB). Especialista em Arterapia em Educação e Saúde (2009). Professora tutora na EAD/
UnB - Educação a Distância, em cursos de Licenciatura em Artes desde 2013. Experiência em Sou péssima para acordar cedo, sexta de manhã, balancei, mas ou era
Educação em Arte Visuais na área de Saúde e Social. Desde de 1995 participa de exposições isso ou nada. Matricula feita, primeiro dia de aula2. Sem saber onde era
de Arte. Desenvolve poética com principal ênfase no Corpo. Possui também experiência a sala, fui subindo, subindo, subindo, até o último andar, onde encon-
profissional em ilustração, design gráfico e webdesign. http://lattes.cnpq.br/6815014923485154 trei uma salinha apertadinha. Parece que iria caber, poucos alunos,
mas de repente começou a chegar mais, para surpresa da professora,
2 Pedagogias Anarquistas ministrada pela Prof. Dr. Luisa Gunther no segundo semestre de muitos alunos epeciais3 e foi feita a inclusão. De acordo com a propos-
2014 do Programa de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília – UnB. ta, todos estavam aceitos para cursar esta disciplina (disciplina? A pala-
vra soou estranha...), e a professora refletiu que todos deveriam ter
3 Aluno especial é o termo utilizado pela a Universidade de Brasília para designar alunos que acesso ao mestrado e realizar seus projetos, a seleção deveria ser natu-
cursam disciplinas isoladas, sem constituir vínculo com qualquer curso de graduação ou pós- ral. Imagina se todos tivessem acesso? Sem vestibular, sem seleção,
graduação da instituição. adeus funil, nada de competição. Será que a estrutura aguentaria? 21

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Apresentamos nossos projetos, seu ritmo, alguns minutos a mais percebi estava acompanhando as
cada um com seu aspecto pecu- e eu poderia ser capaz de desfru- aulas das salas ao lado, provavel-
liar, fruto de diferentes vivências tar, trocar, pensar, falar. Como mente, biologia e engenharia.
e percursos específicos, quan- seria se cada um chegasse em um
tas possibilidades dentro de três horário, seguindo o ritmo interno? Volto à atenção para minha sala
palavras: ensino/artes/visuais. A Como chegar atrasada e natural- novamente, uma palavra me trouxe
professora apresentou o plano, mente, sem culpa, sem se sentir de volta: narrativa. Lembrei imedia-
estaremos em companhia de desrespeitando os outros, entrar tamente de um trecho do texto
John Dewey, Walter Benjamin, na sala, sentar e olhar para profes- que li para esta aula: “Daí sua
Lygia Clark, Jacques Rancière, sora, de “cara lavada”? Entrar e crítica à modernidade que, subs-
Jürgen Habermas, Sarah Thorton, dar bom dia com naturalidade? tituindo a narração pela informa-
Raimundo Martins, Michael Ou fingir que é invisível e sentar ção e a informação pela sensação,
Foucault, Imanol Aguirre, Julio achando que ninguém percebeu e provocava a atrofia progressiva
Le Parc, Arthur Efland, citando então evitar o olhar da professo- da experiência e apagava a marca
apenas os meus velhos conheci- ra? Cada um se responsabilizan- do narrador, que proporciona o
dos, alguns nem tão conhecidos do pelo limite que daria aquela que viveu como experiência àque-
assim, para falar a verdade, alguns liberdade. Será possível deixar de les que o escutam.” (BENJAMIN,
desconhecidos. Outras palavras lado anos de condicionamento? 2000 apud NUNES, 2009). Nunca
interessantes surgiram no discur- imaginei que poderia achar apoio
so da professora, será que eu As primeiras aulas foram expositi- para essa ideia maluca de criar
poderia chamá-la de outra forma? vas, teoria, cadeiras azuis, iguais, narrativas dentro do meio acadê-
Apesar de professora ser de certa enfileiradas. Nossa sala está mico e começo a perceber que
forma uma palavra carinhosa, no meio de outras duas e temos não estou só e a descobrir as
que remete a infância... Acabei acesso visualmente a às salas vizi- bases para minha pesquisa.
de recordar lembranças nem tão nhas, graças ao vidro que preen-
carinhosas assim... Que palavra che 1/3 da parede, um grande Alguns dias se passaram e acor-
dúbia. Continuando com as pala- aquário. Quatro horas sentada dei tentando me lembrar de um
vras: Prática/ Poética/ Estética/ com breve intervalo (se eu chegas- sonho que tive, onde encontrei com
Diferença/ Ambiguidade/ Autoria/ se às 8h, é claro), um desafio e Benjamin4 em uma praça muito
Ideia/ Imagem e por aí fomos. tanto. Com o passar das horas, antiga, e ele me contava que a
4 Walter Benjamin (1994). começo perceber que o assunto é arte de narrar é a capacidade de
Benjamin (1892-1940) foi ensaísta, Não ouvi as regras disciplina- “Como estimular a reprodução do trocar experiências, fonte onde os
crítico literário, tradutor, filósofo res, coerente com a proposta não Pirarucu”, depois de alguns minu- narradores recorrem, e pontuou
e sociólogo. A partir deste ponto haveria chamada. Algum alívio tos: “Teorema da função implíci- que a verdadeira narrativa tem em
optou-se por inserir as citações surgiu em mim, pensando o quanto ta”, “Integrais duplas”, “mudanças si, mesmo que de forma oculta,
no rodapé respeitando o ritmo da seria terrível chegar pontualmente de variáveis x=a y=bv”, mas o que uma dimensão utilitária, sendo as
narrativa. às 8h da manhã, cada um com isto tem a ver com arte? Quando melhores narrativas escritas as 22

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que mais se aproximam das histó- toma fôlego, continua dizendo que a um discurso ampliado para além
rias orais contadas por narradores a narrativa é uma forma artesanal das palavras. Ela continuou dizen-
anônimos. Ainda sobre a relação de comunicação que não se inte- do que o discurso era linguagem,
de experiência com a narrativa, ressa pela transmissão de uma oralidade, comunicação, práticas,
Benjamin reforçou que o narrador informação como um relatório, mas processos, trajetos. Então, rela-
extrai de sua própria experiência contém as impressões do narrador. cionou discurso com experiências
ou da relatada por outros, o que estéticas, onde se pode vivenciar e
ele conta e, além disso, integra as Por fim, Benjamin me contou que combinar diversas formas de discur-
coisas narradas à experiência de anda percebendo certo esfacela- so, fala, escrita, gesto, imagem,
seus leitores ou ouvintes. A expe- mento social devido a indivíduos som e que o resultado disto pode
riência adentra a vida do narra- solitários, que vivem experiências ser traduzido na forma de desenho,
dor para em seguida ser retirada individuais e efêmeras ou vividas dança, poesia, música, gravura,
com sua marca. Benjamin me disse isoladamente perpetuando a falsa ou seja, tipos de discurso. Depois
que o narrador tem como maté- percepção de coletividade devido ao desta breve explicação, relacionou
ria a vida humana, que se baseia aumento das distâncias espaços- com discurso, o ver, o fazer e o falar
na experiência de toda uma vida temporais da sociedade contempo- impregnado de subjetividades.
e de uma vida de todos, ou seja, rânea, tendo como consequência o
na coletividade, sendo comum o declínio da narrativa que é a perda Tourinho continuou falando sobre o
narrador iniciar suas histórias com da nossa capacidade de contar assunto e encontrei em suas consi-
uma descrição das conjunturas. histórias e de compartilhar experi- derações algo que sempre disse aos
ências. Ficamos por um tempo em pequenos grupos onde possibilitei o
Continuando nossa conversa, onde silêncio e então agradeci a ele por encontro de crianças, adolescentes,
eu procurava falar o mínimo possí- ter compartilhado comigo tanto adultos e idosos com a arte, deixa
vel, Benjamin afirmou que o declí- conhecimento, nos despedimos e me lembrar exatamente o que ela
nio da narrativa se dá pela difusão ele seguiu caminhando pelo parque disse: “Isso porque, nesse campo,
da informação que já nos chega em direção ao centro da cidade. não temos certo e errado, não
com as explicações dos fatos. Acordei surpresa por lembrar tão premiamos as regras (ou não deve-
Uma coisa que a arte da narrati- claramente do sonho e passei o dia ríamos premiá-las) e, principalmen-
va evita é explicações, permitindo pensando no que conversamos. te, buscamos ressonâncias entre
ao leitor ser livre para interpretar sensações, sentidos, ideias, senti-
5 Irene Tourinho doutora em os eventos. Quanto mais natu- Mais tarde encontrei Tourinho5 e mentos, ações.” 7. Mais na frente,
Currículo (EUA) e Instrução e pós- ralmente uma história é narrada, lhe contei sobre o sonho, ela achou Tourinho citou três palavras que me
doutora em Cultura Visual (ES) sem impor o contexto psicológi- incrível e iniciamos uma conversa. chamaram atenção: ver, sentir e
co ao leitor, mais ela fica gravada Tourinho6 começou a falar sobre pensar, que relacionei com o olhar,
6 TOURINHO (2009) na memória. De repente, Benjamin o discurso, prestei bastante aten- as emoções e a reflexão tão presen-
olha para um pássaro cantando ção para tentar entender do que se tes na forma que acredito que deve
7 (Ibidem, p.142) numa árvore próxima, como quem tratava, parecia que ela se referia ser a educação das artes visuais. 23

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A seguir, ela mencionou “ouvir os É impressionante o encadear de numa areia movediça, quanto mais
silêncios” 8 e novamente lembrei das suas ideias e como nos vai levando a afundava, mais escuro ficava.
minhas práticas e da sensação de pensar em outros aspectos e quando
“ouvir” o não-verbal, aquilo que o percebi Tourinho13 me levou a pensar De repente, vi uma “luz no fim do
indivíduo diz sem falar ou aquilo que sobre a representação, não apenas túnel” e um pensamento me conduz
falamos dando “voz” à imagem. É o como resultado da percepção dos para fora da caverna. Pensei que
caráter antropomórfico da imagem sentidos, mas incluindo o que pode não tenho a pretensão de me embre-
apontado por Tourinho9, lembrei de ser “apreendido pela imaginação, nhar a fundo no campo da linguís-
alguns trechos de sua fala, onde pela memória e pelo pensamento.” 14 tica, seus objetos de estudo e nas
ela se referindo à imagem inverte . Ela disse que a relação estética não estruturas da narrativa. Meu interes-
a seguinte pergunta, “o que pode- pode se limitar a liberar tensões indi- se está voltado para a narrativa no
mos dizer sobre ela?”, que passa a viduais ou sensibilizar os indivíduos, ponto onde ela encontra a experiên-
ser proferida de outra forma dando mas deve criar relações entre conhe- cia e na criação do mundo da obra,
voz a esta imagem, “o que ela diz de cer, produzir e refletir. Por fim, afirma que “... acompanha o movimento de
mim?”10, ou a tratando como sujei- que o discurso visual e sobre o visual transcendência pelo qual qualquer
to na afirmação, “... agindo como “utiliza-se de uma linguagem cons- obra de ficção verbal ou plástica,
sujeito que ocupa lugares, sinali- truída por vivências comuns dentro narrativa ou lírica, projeta para fora
za tempos, provoca sensações e de um contexto e época.” 15 e aprovei- de si mesma um mundo que pode
percepções, além de gerar interações ta para ressaltar o caráter subjetivo chamar o mundo da obra.” 16. Este
entre indivíduos.” 11. Mais uma vez, do discurso sobre o visual que encon- mundo da obra reverbera no mundo
8 (Ibdem, p.143) algo me chama especial atenção em tra cada vez mais espaço e resso- do leitor criando uma experiência
seu discurso, já que ando pensan- nância, fazendo com que a razão e a fictícia. Concluí que o que me inte-
9 Ibidem do em narrar certas experiências sensibilidade possam andar juntas. ressa sobre narrativa é retirar do
estéticas, “O discurso dos indivíduos diverso da experiência vivida uma
10 (Ibidem, p.147) sobre suas experiências com o visual Depois deste encontro com unidade, para que possa ser conta-
não é algo que, necessariamente, Tourinho, fiquei uns dias em casa, da, e do encontro com a experiên-
11 (Ibidem, p.147) a escola tem privilegiado, aprovei- andei procurando algo sobre a cia do leitor possa ser novamente
tado pedagogicamente.” 12. Quase narrativa, sob novos pontos de transformada em diverso, abrin-
12 (Ibidem, p.147) não me atentei a esta frase que ela vista. Folheei alguns livros, que eu do novos caminhos e novas rela-
acabou de dizer, mas ao continuar a na minha ignorância, acho que se ções. Ainda mais se tratando de
13 TOURINHO (2009) ouvi-la é como se algo me alertasse relacionam com linguística. Senti- narrativas ficcionais onde a inten-
que eu estava deixando passar uma me perdida tentando decifrar códi- ção não é estabelecer verdades,
14 (Ibidem, p.150) ideia importante, então pedi que ela gos diferentes, textos com referên- nenhuma pretensão à verdade.
repetisse o que tinha dito e ali esta- cias desconhecidas, que falavam
15 (Ibidem, p.152) vam as duas palavras que tanto me para quem está familiarizado com Finalmente sai daquela caverna
atraíam: discurso e experiência. certos termos. Parecia que estava com muitas galerias internas onde
16 RICOEUR (1995, p.13) dentro de uma caverna, atolada quase me perdi. Já do lado de fora, 24

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

percebi que bem perto havia um o prosseguimento da história, neste a vontade do leitor, indo para além
bosque e resolvi passear por lá. Ao caso a intenção do autor pode ser do universo do discurso. Portanto, o
longe começo a ouvir um eco, o som de nos perdermos em seu bosque. leitor-modelo percebe o que a obra
da voz de uma pessoa e escolhen- deseja lhe transmitir preenchen-
do entre as bifurcações do caminho, Continuamos andando numa trilha do os espaços deixados de forma
cheguei a uma pequena clareira. e mais na frente vi uma bifurcação, proposital e atualiza a obra para o
Sentado ao pé de uma das imen- eu que prestava mais atenção em seu tempo, baseando-se em suas
sas árvores encontrei meu amigo sua fala, nem tinha percebido há próprias experiências de mundo.
Umberto17, meio surpresa com o quanto tempo aquela clareira tinha
encontro, pois nunca podia imagi- sido deixada para trás. Humberto A tarde estava chegando ao fim,
nar encontrá-lo por ali, começamos me falou que estava interessado no lembrei que havia combinado de
uma longa conversa. Mais uma vez leitor, nos mecanismos da leitura e encontrar Arthur21 num café, a esta
eu mais ouvia do que falava, ando da interpretação. Após uma peque- altura nem sabia mais por onde sair
praticando esta difícil “arte” de na pausa, ele retomou me falando daquele bosque, gentilmente expli-
ouvir. É incrível como colocam esta sobre o leitor-empírico e o leitor- quei a Umberto sobre este compro-
palavra “arte” em tudo nos dias de modelo, havia uma diferença ali que misso e pedi que me indicasse o
hoje, ando meio impaciente com ele gostaria que eu entendesse. Os caminho que me conduziria de volta,
isto e me pego fazendo o mesmo. leitores-empíricos, segundo suas ele sorriu e disse que não havia
palavras, são aqueles que “... em caminho de volta, mas que eu pode-
Umberto18 me falou do tempo da geral utilizam o texto como um recep- ria seguir uma pequena estrada ao
narrativa de ficção, que precisa táculo de suas próprias paixões, as fim daquela trilha e logo chegaria ao
ser rápido para criar um universo, quais podem ser exteriores ao texto café. Chegou a hora de me despe-
deixando lacunas que devem ser ou provocadas pelo próprio texto.” 20 e dir, mas com a intenção de encontrá-
preenchidas com a participação do o leitor-modelo é um colaborador do -lo novamente, conversamos muito
17 Umberto Eco, escritor, filósofo, leitor. Ele me pediu para olhar em texto, é o leitor ideal, aquele que não sobre o leitor, mas tenho certe-
semiólogo, linguista e bibliófilo. volta e disse que não foi por acaso sobrepõe suas próprias expectativas za que ele poderia me esclarecer
que nos encontramos ali, o próprio no texto, mas corresponde às expec- sobre outros aspectos da narrativa.
18 ECO (1994) bosque era uma metáfora para o tativas que o autor espera do leitor.
texto narrativo, lembro exatamen- O leitor-modelo é capaz de decifrar Consegui sair do bosque e como
19 (Ibidem, p.12) te de suas palavras “... um bosque as intenções do texto. Humberto me Umberto me disse, logo cheguei
é um jardim de caminhos que se alertou que o autor tem uma inten- ao café que ficava do outro lado
20 (Ibidem, p.14) bifurcam. Mesmo quando não exis- ção, que escreve de uma determina- da cidade. Quando entrei, Arthur22
tem num bosque trilhas bem defini- da forma e que existem limites inter- me esperava sentado em uma
21 Arthur Efland, artista e professor das, todos podem traçar sua própria pretativos que ele, o autor, deseja mesa perto da janela, sentei e
doutor em artes. trilha...” 19. Humberto complemen- ressaltar. Se não fosse desta manei- enquanto pedia um cappuccino
tou dizendo que as vezes o narra- ra, o texto serviria apenas para esti- italiano ele me contou que andava
22 EFLAND (2006) dor deixa inclusive o leitor escolher mular a imaginação de acordo com pesquisando fundamentos sólidos 25

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para argumentar sobre a unida- imagem-esquemáticas e metá- criação de significados pessoais e


de corpo/mente. Ele me disse que foras. Porém, ele me disse que na transmissão da cultura torna-
considerar estas duas instâncias Johnson26 não menciona como se o ponto e o propósito para se
como separadas sempre lhe pare- relacionar a capacidade narrativa ter artes na educação.” 28. Arthur
ceu um absurdo e que esta cisão com a metáfora, mas afirma que afirma a importância de estudar as
excluía a imaginação da cogni- estas duas estruturas tem pontos construções da imaginação já que
ção. Continuou me dizendo que em comum. Continuando, Arthur “É somente nas artes que a imagi-
conheceu Lakoff e Johnson23 que falou sobre a narrativa como um nação é encontrada e explorada
afirmam que a razão abstrata tem componente da cognição imagi- em completa consciência...” 29 e
como base o corpo e seu funciona- nativa, afirmou que nós experen- afirma a importância dos trabalhos
mento. Prosseguiu falando que “A ciamos, compreendemos e colo- de arte e suas metáforas como
projeção metafórica é o meio pelo camos em ordem nossas vidas em possibilidades de construção do
qual o pensamento abstrato apare- estruturas narrativas como histó- mundo e seus significados, ressal-
ce. Isso é importante porque expli- rias que vivemos e indica que nós tando que este seria um propósito
ca como o pensamento abstrato, nascemos inseridos em narrati- educativo para a arte. De repente,
na cognição humana, pode emer- vas complexas e coletivas. Arthur Arthur olha para o relógio e como
gir de experiências corpóreas e disse que a capacidade narrati- que surpreso com o decorrer das
sensoriais.” 24. Isto é revolucioná- va busca recursos na experiência horas, disse estar atrasado para
rio afirmei, já que o pensamen- humana e ressaltou que as narra- a aula que irá proferir, se levan-
to abstrato e racional é tido como tivas partem de um problema ou ta apressado e mal se despediu,
mais sofisticado em detrimento situação como também podem se já saiu pela porta do café vestindo
das percepções corporais, afirmar originar a partir de um ponto-alvo. seu casaco e falando no celular.
que este pensamento abstrato se Ele afirmou que as narrativas lidam
forma a partir das imagens esque- com entendimento que ao contrá- Eu fiquei ali, “no vácuo”, literal-
23 (apud Ibidem) máticas que surgem da experiên- rio explicar algo, não é restritivo. mente me sentindo em órbita com
cia corpórea pode unificar nossa aquela quantidade enorme de
24 (Ibidem, p. 336) atual percepção do indivíduo Arthur citou outro conhecido informação se conectando e fazen-
seccionado, que como esta pala- seu, Bruner27, que percebe gran- do novas ligações, estava com
25 (apud Ibidem) vra sugere, deveria ser indivisível. des implicações da narrativa na a sensação que meus neurônios
educação pela possibilidade de explodiam. Fiquei tentando imagi-
26 (apud Ibidem) Eu já estava empolgada com o construção de significados que nar como colocaria todos estes
rumo da conversa e Arthur conti- ela oferece. Por fim, perceben- encontros no papel e ali mesmo na
27 (apud Efland, 2006) nuou me contando que Johnson25 do as implicações de uma expli- Lan House do café, comecei a digi-
inclui a estrutura narrativa na cação cognitiva da imaginação tar. Finalmente terminei o esboço
28 (Ibidem, p. 341) teoria da imaginação como um no ensino das artes, exclama: do início de algo que provavelmen-
de seus componentes, junta- “Aprofundar o campo da imagi- te ainda não captei direito, com o
29 (Ibidem, p. 342) mente com: categorização, nação e o papel que pode ter na artigo em mãos fui para casa de taxi. 26

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

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da UFSM, 2009, p. 141-156.
BENJAMIN, Walter. O Narrador:
considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov. In: Magia e técni-
ca, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos


bosques da ficção. Tradução
Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

EFLAND, Arthur. Imaginação na


Cognição: o propósito da Arte.
In: Barbosa (org.). Arte/educação
contemporânea: consonâncias inter-
nacionais. São Paulo: Cortez, 2006.

NUNES, Clarice. Walter Benjamin:


Os limites da Razão. In: reflexões
sobre a criança, o brinquedo e a
educação. SP: Ática, 1981: 184-203.

RICOEU, Paul. Tempo e


Narrativa: Tomo II. Tradução
Marina Appenzeller. Campinas,
SP: Papirus, 1995.

TOURINHO, Irene. Educação


Estética, imagens e discur-
sos: cruzamentos nos cami-
nhos da prática escolar. In:
MARTINS, Raimundo; TOURINHO,
Irene (Orgs.). Educação da Cultura
Visual: narrativas de ensino e 27

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Arte, narrativa e
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

produção de sentido:
Delimitar o conceito de narrativa é fundamental para este artigo, e se caracteriza
como seu esforço inicial. Para tanto, utiliza-se principalmente do trabalho

possíveis aplicações
de Sarah Worth (2007) e suas referências. Posteriormente, o texto avança
sobre a polarização conceitual proposta por Jerome Bruner (1991, 2004) e
Sara Worth (2007), que separam conhecimento narrativo e conhecimento

pedagógicas para o
discursivo, destacando suas diferenças. A partir daí, a reflexão ingressa no
campo da comunicação educativa, observando uma possível aplicação para
os conceitos de Worth e Bruner na separação entre ensino formal e escola

conceito de flow
paralela, conforme propostas por Francisco Sierra (2014). Posteriormente, são
retomadas reflexões caras à teoria da complexidade de Edgar Morin (1998) para
propor não a polarização, mas sim a complementaridade das formas narrativa
e discursiva de construção de sentido. Uma visão panorâmica sobre o uso
das narrativas em diferentes períodos e escolas da história da arte é feita, de
modo a permitir observar a gameart e seu vínculo com a presente pesquisa,

Gabriel Lyra Chaves1


buscando apoio em Anelise Witt (2013). A análise avança para o universo dos
videogames e para a incorporação do conceito de flow (fluxo), proposto por Mihaly

Daniela Favaro Garrossini2


Csikszentmihályi (1990) no campo da psicologia e transposto para o campo
dos jogos digitais por Jenova Chen (2007). Para concluir, observa os potenciais
pedagógicos do flow enquanto ferramenta para a criação de uma estrutura que
aproxime recursivamente as estruturas narrativa e discursiva de significação.

Palavras-chave: conhecimento narrativo; conhecimento


discursivo; arte; educação; flow (fluxo).

1 Graduado em História (FCHF/UFG). Mestre em Processos e Sistemas Visuais (FAV/UFG) e Abstract


doutorando em Arte e Tecnologia (IdA/UnB). Além de ilustrador e quadrinista, desenvolve trabalhos
relacionados ao EaD, como tutoria, ensino, planejamento, desenho instrucional e produção Define the concept of narrative is critical for this article, and is characterized as
de conteúdo. Academicamente, pesquisa metodologias de enriquecimento e transposição de his initial effort. Therefore, it mainly used the work of Sarah Worth (2007) and it’s
conteúdo voltadas para sistemas digitais de aprendizagem. <gabrielyra@gmail.com> references. Then the paper addresses the conceptual bias proposed by Jerome
Bruner (1991, 2004) and Sara Worth (2007), which separate narrative knowledge
2 Doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (2010). Mestre em Engenharia and discursive knowledge, highlighting their differences. From there, the reflection
Elétrica (com área de concentração em Telecomunicações) pela Universidade de Brasília enters the field of educational communication, noting a possible application for the
(2003). Graduação em Desenho Industrial pela Universidade de Brasília (2000). Atualmente é concepts of Worth and Bruner in the separation of formal and parallel school, as
professora adjunta da Universidade de Brasília. Áreas de atuação: Tecnologias da Informação proposed by Francisco Sierra (2014). Later, important considerations are taken to
e Comunicação, Metodologia de Pesquisa, Mídias Digitais, Comunicação. Pesquisas realizadas the theory of complexity from Edgar Morin (1998) to propose not the polarization, 28

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

but rather the complementarity of estende por toda nossa vida, uma mudanças geradas na busca do
narrative and discursive forms of vez que a estruturação narrativa é a equilíbrio. Outros teóricos, como
meaning construction. An overview forma padrão para a compreensão de Christopher Vogler (2006) e Joseph
on the use of narratives in different nossa experiência e de nossa presen- Campbell (1995) antes dele, chegam
periods of the art history and art ça no mundo. As narrativas mitológi- a estabelecer uma estrutura arque-
schools is done, in order to allow cas são a forma primordial de expli- típica para esta jornada de busca,
observe the concept of GameArt and cação da realidade, e seu uso está definindo algumas características
its link with this research, seeking amalgamado à jornada da humanida- comuns à maioria das narrativas
support in Anelise Witt (2013). The de, seja na antiguidade, ao longo da humanas, dentro e fora da tradição
analysis advances to the videogames estruturação das religiões ou mesmo ocidental. Ao invés de nos restringir-
universe and the incorporation of no campo da cultural ocidental do mos aos aspectos formais que defi-
the concept of flow, proposed by presente. A título de exemplo, mesmo nem e identificam a narrativa clás-
Mihaly Csikszentmihalyi (1990) in the a criação e organização dos estados sica, compartilhamos com Paiva o
field of psychology and transposed nacionais, fenômeno social moderno desejo de compreender os tipos parti-
into game design by Jenova Chen que ajudou a moldar o mundo como culares de sentido e significação que
(2007). Finally, observes the o conhecemos hoje, dependeu – e, podem ser construídos dentro de uma
teaching potential of flow as a tool em última instância, ainda depende estrutura narrativa, e como estes se
for the creating a structure that – da criação e manutenção de mitos diferenciam da definição clássica
recursively approach the narrative e narrativas (HALL, 2001, p. 51-57), de conhecimento discursivo-analíti-
and discursive structures of meaning. como os heróis nacionais ou o mito do co. É neste sentido que será aberta
povo único. O próprio Jerome Bruner a análise de outros discursos teóri-
Keywords: narrative knowledge; (1991) chega a propor que, de tão cos, também dedicados a este tema.
discursive knowledge; ubíqua, a forma narrativa de signifi-
art; education; flow. cação tenda a passar desapercebi- Para delimitar o que seria narrativa,
da, apesar de seu notório uso, utili- Sarah Worth (2007, p. 2-7) recor-
dade e presença em nossas vidas. re à definição de conexão narrati-
va de Noël Carroll: um conjunto de
Narrar é uma das formas mais anti- Resgatando o trabalho de Tzvetan vestígios que, quando reunidos e
gas e disseminadas de transmissão e Todorov, Vera Lúcia Menezes de relacionados, servem para indicar a
conservação cultural. É um elemento Oliveira e Paiva (2008, p. 261) lembra existência de uma narrativa. Neste
comum à grande maioria das cultu- que uma narrativa ideal costuma conjunto de pistas, uma narrativa
ras humanas. Alguns pesquisado- apresentar uma situação estável, deve relatar transformações trazi-
res, como o psicólogo da educação perturbada por uma força externa. das por uma sequência de eventos
sobre produção de conteúdo digital, Jerome Bruner (1991, 2004), afirmam Ao longo de uma série de aconte- (no mínimo dois), associados por um
análise de redes sociais, governo que esta é a forma primeira de extra- cimentos, o equilíbrio é reestabele- tema, propositalmente organizados
eletrônico e democracia eletrônica. ção de sentido a ser apreendida por cido, criando uma situação análo- de maneira temporal (estrutura de
<daniela.garrossini@gmail.com> nossas crianças, e que seu uso se ga à inicial, mas distinta devido às enredo), e onde os primeiros eventos 29

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narrados funcionam ao menos como se sair bem sem estudar, ou se sair E, de fato, esta estrutura serviu
condições indicativas na compo- mal estudando, sem que isso compro- para nos apresentar o par român-
sição dos eventos posteriores. O metesse a integridade da estória. tico de uma franquia de sucesso
último quesito, o mais importante E este é um dos elementos seduto- no final da década passada, como
no contexto desta pesquisa, esta- res, uma das riquezas da linguagem muitos de vocês devem se lembrar.
belece que os elementos anteriores narrativa. A abertura para que uma
subdeterminam os eventos poste- estrutura de enredo, por mais conhe- O que queremos extrair daqui é
riores, indicando mas não definin- cida que seja, aponte para variações. que, numa narrativa, a sequên-
do a natureza das transformações Hollywood se construiu enquan- cia de eventos precisa ser coeren-
narradas. Para exemplificar, propo- to grande pólo de produção cultural te, mas não verificável em termos
mos a sequência narrativa abaixo: apoiada sobre este aspecto funda- lógicos. Portanto, ao trabalhar
mental, adaptando uma estrutura narrativas, estamos trabalhan-
“A aluna apaixonada não estudou, relativamente uniforme de eventos a do com uma estrutura de pensa-
portanto se saiu mal no exame.” várias situações diferentes. E a flexi- mento distinta daquela que estru-
bilidade da relação entre os even- tura o conhecimento discursivo.
Temos dois eventos (não estudar, tos em uma narrativa pode ser mais
se sair mal no exame), organiza- profunda do que no exemplo acima. Antes de nos aprofundarmos na
dos temporalmente ao redor de separação que Bruner e Worth cons-
um tema (desempenho educacio- Neste sentido, destacamos que a truirão entre pensamento e conhe-
nal, ou as divergências entre vida estrutura dos acontecimentos, dentro cimento narrativo e discursivo,
pessoal e profissional, ou qualquer de uma narrativa, atende ao objetivo fazemos um pequeno adendo para
outro tema identificável, raramen- de construir um discurso verossímil destacar a importância e a ubiquida-
te unívoco em uma narrativa), e – tem por objetivo apenas se asse- de das narrativas em nossa cultu-
onde os acontecimentos anteriores melhar ao real – mas sem nenhum ra atual. De acordo com um site
orientam os posteriores. Reunindo compromisso de ser verdadeiro ou de notícias nacional3, a largura de
os vestígios indicados por Carroll verificável. De fato, quase nunca banda da Internet estadunidense, em
e Worth, temos uma narrativa. o sendo. Por exemplo, se o enredo dezembro de 2014, teve 48% de seu
fosse construído com os vínculos uso ocupado por Youtube e Netflix,
No campo das narrativas, esta orien- narrativos corretos, seria possível meios que suportam narrativas. Se
tação entre acontecimentos ante- contar como a aluna apaixonada foi acrescentarmos a esta conta o cres-
riores e posteriores é geralmente salva de um acidente no estaciona- cente uso de redes sociais, onde
aberta. Não estudar está diretamente mento de sua escola por um vampiro narrativas pessoais são publicadas
relacionado a se sair mal no exame, que brilha se exposto ao sol. Isto não diariamente, e também a quantida-
3 http://g1.globo.com/tecnologia/ mas não é possível inferir a segun- comprometeria o sentido interno da de de narrativas – filmes, séries de
noticia/2014/12/netflix-e-youtube- da a partir da primeira dentro de um narrativa, apesar da incompatibili- TV, livros etc – compartilhadas por
consomem-quase-50-da-internet- modelo lógico ou de um padrão de dade destes acontecimentos com a meios não-oficiais, que incluem os
da-america-do-norte.html determinação. A personagem poderia realidade objetiva em que vivemos. protocolos de rede de natureza P2P 30

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(peer-to-peer) como os torrent, é porque”, caminhos para uma aborda- nos predominantemente sob a forma
possível deduzir que esta porcenta- gem objetiva da realidade. Os resul- narrativa – estórias, desculpas, mi-
gem tende a crescer substancialmen- tados práticos desta abordagem são tos, razões para fazer ou não fazer, e
te, apesar de não termos encontrado inquestionáveis, e resultaram no daí em diante. Narrativa é uma forma
pesquisas atuais com tais números. desenvolvimento tecnocientífico sobre convencional, transmitida cultural-
o qual se organiza a nossa socieda- mente, cujo uso se vê restrito ape-
de. Contudo, a abordagem objetiva nas pelo domínio individual de suas
Pensamento discursivo e deixa de lado aspectos fundamentais formas (...). (Bruner, 1991, p. 04)
da realidade social, como as estrutu-
ras de produção de sentido anteriores Ainda de acordo com Worth (2007,
pensamento narrativo
Como nos aponta Bruner Jerome ao ingresso das crianças no sistema p. 1), o conhecimento narrativo, de
(1991), a história da ciência no de ensino formal, ou as formas sociais organização distinta do discursivo,
ocidente teve como projeto a de conhecer e transmitir conhecimen- permite “saber como seria”, abrin-
busca de uma “verdade” objeti- to que antecederam o surgimento da do caminho para a identificação
va, factual, impregnada nos even- lógica e, principalmente, da aborda- empática. Enquanto o pensamento
tos, externa e independente de seu gem mecanicista de mundo consoli- discursivo se debruça sobre princí-
observador: o conhecimento. Para dada desde a revolução industrial. pios como verificabilidade e não-
atingi-la, a estrutura social moder- contradição, o pensamento narrativo
na elegeu o pensamento discursi- Jerome Bruner ressalta a dinâmica prioriza fazer sentido em detrimen-
vo, definido como uma forma mais do pensamento narrativo: to de ser verificável. Isso coloca a
pura de organização mental. Para estrutura narrativa mais próxima
muitos, a única possível no cami- Como os domínios da construção da forma como nos percebemos
nho da construção científica. lógico-científica da realidade, [o enquanto presença no mundo, e do
domínio narrativo] é bem apoiado modo como organizamos nossas
O Iluminismo, fruto deste processo, por princípios e procedimentos. Ele experiências na esfera psicológica.
teve consequências diretas sobre a possui um ferramental cultural ou
estruturação do sistema de ensino, tradicional disponível, sobre o qual Em A vida como narrativa, Jerome
estabelecendo a hegemonia do seus procedimentos são modelados. Bruner (2004) defende que o pensa-
conhecimento discursivo e treinando (...) Sua forma é tão familiar e ubíqua mento narrativo seria a ferramen-
as crianças como se fossem peque- que ele tende a passar desaperce- ta pela qual maioria dos humanos
nos cientistas, pequenos lógicos, bido, de forma semelhante à nossa extrai sentido de suas experiências
pequenos matemáticos (BRUNER, suposição de que o peixe seria o últi- ao longo da vida. Quando olhamos
1991, p. 04). Neste mesmo senti- mo a descobrir a existência da água. para nossas experiências e procura-
do, Sarah Worth (2007, p. 1) nos Como eu argumentei extensamente mos organizá-la, o mais natural é que
lembra que o conhecimento discur- em outros lugares, nós organizamos o façamos com base em um enredo
sivo é capaz de abarcar duas gran- nossa experiência e nossas memó- autocentrado. Ao rememorar, a sequ-
des proposições: “saber que” e “saber rias sobre os acontecimentos huma- ência caótica de eventos que compõe 31

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nossa experiência é organizada, e prevalecer a percepção analítica da desta área de conhecimento. Para
elos ficcionais são usados para criar realidade, ao passo que, nas comuni- sustentar a argumentação que se
uma malha de sentido. Elos narrati- dades de caráter mais tribal, a postura constrói aqui, vamos nos deter nos
vos. Assim, a organização das memó- holística poderia ser atribuída à supre- três modelos metodológicos de comu-
rias está mais próxima de um proces- macia do hemisfério direito. Com a nicação educativa que o autor aponta,
so de “contação de história” do que disseminação das telecomunicações referenciando Mario Kaplún: ‘o bancá-
de uma estrutura lógica e discursiva. e a partir do advento da televisão, rio, o dos efeitos e o dialógico ou
estaríamos atravessando uma época transformador’ (SIERRA, 2014, p. 36).
de câmbio em nossa forma de perce-
Ensino formal e ber o mundo, deixando de lado uma O modelo de educação bancária,
abordagem estritamente analítica e predominante em nossa estrutu-
observando a crescente influência ra formal de ensino, estabelece
Escola paralela
Segundo Francisco Sierra (2014, p. das imagens na organização mental que o processo educacional deve
66-70), em A Galáxia de Gutenberg, de nossa sociedade. McLuhan diz que organizar os conteúdos de maneira
Marshall McLuhan propõe a conhe- esta seria a transição entre a Galáxia planificada, sequencial e compar-
cida divisão entre meios quentes de Gutenberg e a Galáxia de Marconi. timentada, privilegiando a compe-
– servem o máximo de informação tição sobre a cooperação e o saber
com o mínimo de participação, onde Apesar de estas tendências terem em detrimento do saber fazer. Não
se encaixa a imprensa – e meios sido apontadas em meados do século há fomento à capacidade críti-
frios – transmitem um baixo nível de XX, na segunda década do século XXI ca, e não há preocupação com a
informação dentro de um contexto ainda observamos a estrutura esco- interdisciplinaridade. O educando,
de alta participação, categoria onde lar alheia ao processo, projetando receptáculo vazio, deve ser educa-
se encaixa a televisão. Esta divisão e desenhando currículos de acordo do pelo professor. Quando conclu-
influenciaria o uso do cérebro para com o projeto inicial de modernida- ído o processo, o educando, agora
a decodificação das mensagens: de da Galáxia de Gutenberg, dentro educado, deverá se mostrar capaz
os meios quentes utilizariam mais da concepção ramista de “universa- de recuperar as informações memo-
o hemisfério esquerdo, responsá- lidade” do currículo escolar levan- rizadas, e não de refletir sobre elas.
vel por atividades lineares, lógicas tada e criticada por McLuhan (1972,
e/ou racionais, enquanto os meios p. 182-184). Mas esforços teóricos O modelo dos efeitos, nascido da
frios seriam processados pelo hemis- e metodológicos em direções diver- aplicação dos princípios da ciberné-
fério direito, de caráter simultâneo, sas não são inéditos nem novos. tica e das ciências da informação
holístico e sintético. Esta separa- no campo da educação, se centrará
ção teria consequências diretas na Francisco Sierra (2014, p. 35-44), ao em garantir o sucesso do proces-
forma de decodificação do mundo, fazer um levantamento sobre mode- so comunicativo dentro da educa-
direcionando também a organização los teóricos e paradigmas da comuni- ção, com a transmissão fidedigna da
social: o predomínio do hemisfério cação educativa, procede com uma mensagem. Neste sentido, “a apren-
esquerdo nas sociedades letradas faz dissecação cuidadosa e detalhada dizagem é uma variável dependente 32

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

do processo de transmissão e deco- da transição paradigmática que Modernidade, dualismo


dificação da informação” (SIERRA, atravessamos, e da disponibilida-
2014, p. 42), apontando para a orga- de de abordagens diferenciadas,
e complexidade
nização de programas de ensino os tradicionais agentes socializa- Conforme observamos, na conso-
centrados na máxima eficiência. dores, a família e a escola, ainda lidação do projeto iluminista se
Tanto o modelo dos efeitos quanto o limitam à escola formal o papel estabelece uma antinomia entre
bancário são extremamente centra- de principal estrutura de trans- pensamento narrativo e pensa-
dos na primazia da informação, missão de cultura, principalmen- mento discursivo, evento que pode
observando o processo educativo te de seus aspectos formais. Ao ser analisado como um indício –
como movimento unidirecional – do mesmo tempo, a escola paralela ou sintoma – do aspecto disjunti-
professor para o aluno – e o conhe- – estrutura composta pelo conjun- vo do paradigma da modernidade,
cimento como razão pura, objeti- to dos meios de comunicação de conforme apontado por Edgar Morin
va, dentro dos moldes positivistas. massas –, livre de amarras formais, (1998). Este divórcio, principalmen-
assume um papel muito mais ativo te a partir do século XX, relegou a
O modelo dialógico ou transforma- nesta transmissão, promoven- guarda da estrutura de pensamento
dor, proposto por Mario Kaplún com do a educação informal de vastos discursivo ao ensino formal, enquan-
base nos estudos de Paulo Freire, setores de nossa sociedade. to gradualmente a escola paralela
é um modelo “centrado no proces- tomou para si a estrutura narrativa
so, [que] concebe a educomunica- Apesar de haverem iniciativas que de pensamento, com informações
ção como um processo gerador de incorporam tecnologias de infor- baseada em enredo predominando
sentido. Favorece a apreensão da mação e comunicação à estru- de maneira hegemônica na grade
realidade antecipadora, participati- tura formal de ensino, este movi- de programação de redes de tele-
va e contextualizada” (SIERRA, 2014, mento ainda é tímido, e esbarra visão, no fluxo de tráfego – legal e
p. 39). Ao romper o caráter unidire- constantemente na limitação ilegal – de dados pelo ciberespa-
cional da comunicação no processo imposta pela diferenciação entre ço, ou na própria gestão compar-
educativo, permite que se observe docentes e discentes. O primeiro tilhada das narrativas pessoais
o processo de geração de sentido grupo, majoritariamente educa- proposta pelas redes sociais digi-
como dialógico e participativo, recu- do no modelo bancário e alheio tais, conforme já explicitado.
perando também os aspectos cola- às possibilidades trazidas pelas
borativo e crítico da aprendizagem. tecnologias digitais, não compar- O incremento deste movimento,
tilha a mesma forma mentis dos conduzido pela mídia de massa
Em cada um destes modelos, os educandos, criados num contex- no contexto da escola parale-
aspectos interpretativos da realida- to de hiperconexão. Com isso, as la, pode ser percebido na maior
de variam, o que resulta em dife- agendas dos dois grupos diver- utilização de estruturas narra-
rentes abordagens para a sistema- gem em seus objetivos, dificul- tivas de enredo para organizar
tização da comunicação e para o tando o diálogo e colocando em conteúdos. Anteriormente mais
tratamento de conteúdo. E, apesar xeque o sistema formal de ensino. objetivas, hoje muitas notícias 33

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

veiculadas por órgãos de impren- Arte, indústria cultural


sa se apoiam na exposição de um
contexto normal, na apresentação
e narrativa
de uma força de desequilíbrio e na Quando observamos os diferen-
busca por se recuperar este equi- tes períodos da história da arte,
líbrio, estando muito mais próxi- é possível observar o quanto esta
mas da organização narrativa do esfera de produção de sentido é
que da discursiva. Muito presen- permeada pela influência da narra-
te na linguagem de jornais, tele- tiva. A mitologia é tema da arte,
Imagem 1 (direita) - Claude jornais e revistas, esta tendên- seja na antiguidade, seja no perío-
Monet, Madame Monet e cia tem permeado a construção do medieval, e uma grande parcela
seu filho. Domínio público. do discurso jornalístico atual. das imagens produzidas ao longo
da jornada humana sobre a terra,
Imagem 2 (abaixo) - Pierre-
Auguste Renoir, Le Moulin Ainda dentro da contribuição trazi- além da própria literatura, se debru-
de la Galette. Domínio da por Edgar Morin (1998), desta- ça sobre a representação de mitos
público. camos que a separação conceitual e heróis, ou de acontecimentos,
e dicotômica entre conhecimento sejam eles especiais ou cotidianos.
narrativo e conhecimento discursivo
atendem a um paradigma especí- No período histórico que marca a
fico, o moderno ou lógico-identitá- ruptura entre arte clássica e moder-
rio, e que o mesmo encontra-se em na, especialmente a partir do movi-
processo gradual de desconstrução. mento impressionista, é possível
Alinhada ao conceito de comple- observar o abandono dos grandes
xidade, esta pesquisa propõe a temas e a exaltação do cotidia-
estruturação de uma metodologia no (imagem 1), do europeu médio
que se apoie sobre a recursivida- (imagem 2) e das minorias (imagens
de, onde sistemas distintos criam 3 e 4). Rompe-se com um tipo de
uma estrutura de influência entre narrativa, hegemônica, unificado-
si, gerando retroalimentação ao ra, e cria-se uma nova tendência
invés de antagonismo e oposição. de representação imagética, apoia-
Assim, acreditamos que, se devida- da nos microuniversos individu-
mente estruturadas, as formas de ais. Também se nota o distancia-
conhecimento narrativa e discursi- mento dos temas narrativos rumo
va tendam a se complementar e a à abstração, e não estamos igno-
ampliar a capacidade de compre- rando sua importância na consoli-
ensão, significação e constru- dação da arte moderna e contem-
ção de sentido nos dois campos. porânea, mas fugiremos a estas 34

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

análises e nos concentraremos


em produções que mantém seus
vínculos com o universo narrativo,
tema central do presente artigo.

Mesmo após a consolidação das


vanguardas artísticas e de um claro
Imagem 4 - Vincent Willem van Gogh, aprofundamento em direção ao
O círculo de prisioneiros. Domínio público.
abstracionismo, conforme citado,
o movimento da Pop Art, caracte-
rístico do pós-guerra, dialoga em
maior grau com a cultura de massa
estadunidense e, em muitos casos,
com a exaltação das micronarrati-
vas individuais e com os elementos
da vida cotidiana dentro da esfera
do american way of life (imagem 5).

Na indústria do entretenimento,
que direciona a maior parte de
seus recursos para a criação de
narrativas, hoje percebe-se um
câmbio de foco, com orçamen-
tos de grandes títulos de vide-
ogames ultrapassando os cine-
matográficos desde o final da
década de 2000. E o universo
da cultura de massa, com seus
próprios mitos, lendas e (super)
heróis, também provoca ecos na
produção cultural e artística do
Imagem 3 - Henri de Toulouse-Lautrec, Rue des presente, seja na crítica de Bansky
moulins, the medical inspection. Domínio público. (imagem 6) e sua Dismaland
(Terra Funesta, em livre tradu-
ção), seja no campo daquilo que
Anelise Witt (2013) define como
gamearte: “uma categoria dentro 35

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

da arte e da tecnologia que se da coordenação entre olhos e


utiliza dos games, ou jogos eletrô- mãos, quanto ao aspecto psico-
nicos, para manifestar-se como motor, e no domínio de estratégias
arte” (WITT, 2013, p. 14), sendo mentais para resolução de proble-
que “[o]s gameartes estão inte- mas imediatos e criação de estraté-
ressados na poeticidade e não em gias de médio prazo para a obten-
Imagem 5 (acima e à esquerda) - Roy Lichtenstein,
Drowning Girl, Licensed under Fair use via Wikipedia. vitória ou derrota” (idem, p. 29). ção de objetivos específicos, como
apontam Davood G. Gozli, Daphne
Imagem 6 (acima e à direita) – Banksy, Distorted Little Mermaid sculpture in front O uso contínuo dos videogames, Bavelier e Jay Pratt (2014, p. 160).
of Cinderella’s castle, http://alexrozanski.com/2015/dismaland/ mesmo caracterizado como ativi- Dados indicam que indivíduos
dade lúdica, implica no exercício familiarizados com esta forma de 36

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

entretenimento tendem a adquirir Possibilidades pedagógicas


novas habilidades sensório-motoras
com maior facilidade do que aque-
do conceito de fluxo
les que não possuem o hábito de O conceito de fluxo, confor-
jogar, além de conseguirem absor- me abordado por Mihalyi
ver e gerenciar novos padrões de Csikszentmihalyi e sistematizado
informação com maior facilidade. por Jenova Chen, guarda poten-
Jogos eletrônicos costumam propor ciais de aplicação pedagógica,
um desafio superável, com objeti- no sentido de permitir o envol-
vos claros, combinação que auxilia vimento e a participação imer-
seus usuários a entrarem no que o siva numa atividade de apren-
psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi dizagem, gerando a sensação
(1990, p. 71) conceitua como fluxo de contentamento e concentra-
(flow), um estado mental de profun- ção, e transformando a atividade
da imersão e concentração, onde as numa recompensa em si mesma.
noções de temporalidade e auto-
percepção ficam profundamente Retomamos a separação entre
alteradas. Propor situações que conhecimento narrativo e conhe-
potencializem a possibilidade de cimento discursivo, conforme
atingir este estado mental, contra- levantadas no início deste artigo.
balanceando elementos de difi- Enquanto uma estrutura de signi-
culdade e habilidade, e evitando ficação é mais natural e difundida,
estados prolongados de ansiedade a outra é mais específica e menos
ou tédio é um esforço comum no dominada. Esta separação, que se
planejamento e criação de video- estabelece entre os dois campos, e
games (imagem 7). A pesquisa de entre cada um deles e pessoas em
Jenova Chen (2009) é pioneira em situação de aprendizagem, permi-
incorporar o conceito de flow ao te a estruturação de uma dinâmica
planejamento e criação de videoga- que ajuste os graus de dificulda-
mes, propondo sistemas de Ajuste de e habilidade exigidos à reali-
Dinâmico de Dificuldade (DDA: dade de cada aprendiz. Enquanto
Imagem 7 – gráfico de flow
Dynamic Difficulty Adjustment, no conteúdos e atividades de nature-
original) para equilibrar, automa- za discursiva podem aumentar a
ticamente e de maneira ajustável dificuldade das atividades, conte-
e independente, a quantidade de údos que recebem tratamento
desafio necessária para manter narrativo podem facilitar o proces-
o interesse e a fruição do jogo. so de aprendizagem, ou gerar 37

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

familiaridade com conceitos discur- sensorimotor learning: Evidence SOUSA, João. De Gutenberg
sivos, permitindo o aumento da difi- from a movement tracking task. para Marconi: hiper-texto e hiper-
culdade para que se evite o tédio. In: Human Movement Science. ficção. Lisboa: Instituto Universitário
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Escondendo meu
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

animal: uma poética


Com título homônimo a uma de minhas obras, este artigo apresenta reflexões
acerca de minha pesquisa em pintura, cujo tema principal é sempre o animal

em pintura animalista
e sua condição. Busca-se pensar sobre o que esses seres têm como próprio
e o que é a eles atribuído. Nas pinturas, são apresentadas as relações
existentes entre eles e as relações com os humanos que transitam entre o

na contemporaneidade
afeto, a crueldade e exploração. Bacon, Delacroix, Sanguinetti apresentam-
se como as principais influências além de vivências pessoais, histórias reais
e ficcionais, referências fotográficas e áudio visuais como Herzog. Também
são abordados aspectos formais como a composição a partir das reflexões de
Aumont, Bazin e Wollhein; e o tratamento pictórico e uso da cor, que ao serem
analisados levam a reflexão acerca de seu significado dentro da imagem.
Inferiorizado historicamente como gênero pictórico a pintura animalista tem
na contemporaneidade um período de grande ênfase o que leva a questionar

Alice Maria Vasconcelos Lara1


quais as razões desse recente interesse na imagem animalesca.

Palavras chave: Pintura contemporânea. Animais. Humanos.

Abstract

Named after one of my works, this article presents reflections about my


research in painting, which main theme is always the animal and its condition.
Focusing on what these beings have as a proper and what is attributed to
them. In the paintings, are shown the relationship between them and the
relationships with humans through affection, cruelty and exploitation. So,
I present my main influences as Bacon, Delacroix, Sanguinetti, personal
experiences, real and fictional stories, photographic and audio visual
references as Herzog. They are also addressed formal aspects such as
1 Alice Lara investiga a representação de animais, suas relações com os seres composition from the reflections of Aumont , Bazin and Wollhein; and the
humanos e como essas relações afetam ambos. Em 2013 realizou três individuais, a primeira pictorial treatment and use of color, which when analyzed lead to reflection
intitulada falso mundo maravilhoso aconteceu no Museu Universitário de Uberlândia, a segunda on their meaning within the image. Renegade historically as pictorial genre,
Amores perros foi realizada no Instituto Cervantes de Brasília, e a terceira Entre Artistas foi in contemporaneity the animalistic painting has a period of great stress which
realizada No Espaço Cultural Contemporâneo também em Brasília. Foi premiada em 2012 no leads to question what the reasons for the recent interest in animalistic image.
Arte Pará e participou de outros salões no país como a Salão de Abril em Fortaleza em 2010 e
o salão de Anápolis em 2011. alicemvl@gmail.com Keywords: Contemporary painting. Animals. Humans.
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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Introdução pintores Francis Bacon e Eugène formada pela universidade, como


Delacroix e em outras linguagens para aqueles com quem sempre
Esse artigo se inicia explicitando o estão a série fotográfica On the sixty convivi. Nos espaços institucionais
contexto pessoal e histórico que justi- day, de Alessandra Sanguinetti e o como a Universidade de Brasília
fica que essa pesquisa seja desenvol- filme A caverna dos sonhos esque- onde estudei e nos espaços cultu-
vida na linguagem da pintura e acerca cidos (2011) de Werner Herzog . rais do Distrito Federal, estado
da temática animal. Apresentam-se onde resido, desde meu período de
suas duas principais partes cronologi- Parte-se de avaliações históri- formação, observa-se que a pintu-
camente: a primeira intitulada Amores cas para discutir, na quarta parte, ra é uma linguagem em voga, tanto
Perros que representava rinhas como como a pintura animalesca, que no em suas formas tradicionais como
uma metáfora a humanidade e a passado foi inferiorizada a outros em reflexões sobre suas possibli-
segunda falso mundo maravilhoso gêneros pictóricos, passa junto ao dades e natureza, tornando esses
que em uma crítica à primeira, busca assunto do animal a ser frequen- ambientes propícios à formação e
entender o que os animais têm como te e importante na contempora- articulação entre pintores. Situação
próprio e as incoerências das rela- neidade. Faz- se uma avaliação que pode se constatar pela reali-
ções estabelecidas com a humani- desse novo contexto a partir dos zação da exposição 20 Pintura &
dade. Essas questões são discuti- conceitos de Randy Malamud (2011) Pictorialidade em Brasília, reali-
das em subtemas como taxidermia, e Maria Esther Maciel (2011). zada em 2014, curada por Matias
afeto, domesticação, cárcere e doma. Monteiro, que apresentou um pano-
Apresentam-se na conclusão os rama de pintores dessa geração.
Os aspectos formais estão na segun- resultados dessas reflexões e como
da parte. A composição é analisa- eles podem reverberar futuramen- Na área rural onde sempre morei
da pelas proposições de Richard te dentro da poética analisada. a pintura de animais era um exem-
Wollhein (2002) e também pelas plo de “saber pintar” que estava na
analogias entre cinema e pintu- parede de todas as casas de presti-
ra discutidas por Jacques Aumont Por que pintar animais? gio da vizinhança. São experiências
(2004) e André Bazin (1951 apud que refletem a tradição e o reco-
AUMONT 2004). A cor é pensada por A motivação de pintar vem da nhecimento da pintura enquanto
suas significações como referencia- minha origem em um grupo fami- linguagem da arte como apresenta
das por Israel Pedrosa (2009). Pensa- liar que não frequenta os espaços Michel Archer (2001, p.1) e a ideia
se sobre os tratamentos pictóricos comuns da arte, mas que enten- da pintura animalesca como um
a partir do Gilles Deleuze (2007). de a pintura como uma linguagem símbolo de técnica (ALBERT, 2006,
artística, como uma coisa bela e p). No início a escolha por pintar
Os artistas e obras influenciado- virtuosa. Pintar era uma maneira animais veio como uma fuga da
res ou com os quais essa poéti- de estar tanto num ponto equidis- tão estigmatizada figura humana,
ca dialoga são apresentados na tante de apreciação para o conhe- e pela atração que a beleza desses
terceira parte. Entre eles estão os cimento para o qual havia sido bichos emana. Compara-se ao relato 40

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do pintor animalista Franz Marc massas de tinta que contrastavam falso mundo maravilhoso
(PARTSCH, 2012, tradução nossa, com fundos quase transparentes
p.39) “desde cedo achei as pesso- e foscos. Os cenários onde acon- Ao encontrar uma série de imagens
as muito feias; os animais pare- teciam essas batalhas eram espa- nas quais um hipopótamo (espécie
ciam muito mais belos, mais puros”. ços fechados, nos quais as figuras reconhecida por sua ferocidade)
Para além da beleza atualmente a eram encurraladas para a ação. ajuda diversos animais de outras
temática foi ficando tão enriqueci- espécies como zebras e gnus
da que dentro dela existe a possi- Embora houvesse um conforto na a se salvarem de uma enchen-
bilidade de se pensar tanto sobre realização formal dessas pintu- te, levando- os para as margens,
a condição animal como sobre a ras, era muito difícil lidar com as senti respondidos alguns questio-
condição humana. Abaixo se expli- imagens, de uma natureza degra- namentos pulsantes da pesqui-
cam essas possibilidades a partir de dante, e com a temática. Usando sa. Decidi, começando por essa
dois momentos do trabalho apre- imagens reais de rinha havia um imagem, a delinear em um novo
sentados em ordem temporal. sentimento de alimentação deste rumo para o trabalho. O interes-
evento. Como explica Malamud se principal foi pensar no que é
(2011, p. 360) imagens e outras intrínseco e o que desafia concei-
Amores perros mídias (normalmente) não machu- tos tradicionalmente estabelecidos
cam diretamente o animal, mas sobre esses seres. Partindo disso
A primeira série se intitulou poste- projetam a psiquê humana, retratam desenvolvi a série que foi agru-
riormente, em ocasião de sua seus valores, criam ideias e alimen- pada sob o título de falso mundo
primeira exposição Amores Perros tam seus sonhos, e existe, sim, um maravilhoso, originado a partir de
(2000) com a referência ao filme interesse social recorrente na visu- três pinturas, onde pensava sobre
homônimo do diretor mexicano alidade proveniente da violência fotos nas quais pessoas faziam
Alejandro Iñárritu, uma das prin- contra os animais, principalmente poses apoiadas em animais selva-
cipais influências para sua produ- naquela que se apresenta de forma gens e violentos que se encon-
ção. Com alusão a cenas de rinhas mais distorcida que permite nos travam empalhados, criando um
de cachorros, bastantes visce- distanciarmos do que causamos mundo harmônico e belo, mas
rais, baseadas em fotos de inter- a eles dentro dessas representa- falso. Essa série abriga diversos
2 “Espirito” é um termo que net, essa série foi desenvolvida. ções. Conseguia enxergar a violên- subtemas que até a atualidade
aparece tanto nos escritos de/sobre cia como um aspecto dos afetos reverberam em minha pesquisa e
Francis Bacon (DELEUZE, 2007), Era uma pintura de tratamento pictó- humanos, mas não como o único sobre os quais discorro abaixo.
Franz Marc (apud PARTSCH, rico violento, realizada com cores aspecto. Sempre havia um questio-
2012), Derrida (2002) para designar quentes. Mostrava apenas cães, mas namento sobre a própria justiça com Um desses temas é empalhamen-
a energia, que esta nos/que move era uma metáfora da humanidade a qual lidava com esses animais, to ou a taxidermia, referenciado em
os animais, que lhes dá autonomia com suas dificuldades para amar. pois só os usava como modo de fotos onde os animais são apresen-
e os dignifica frente ao humano Sangue, dentes, carnes e peles eram comparação ou representação sem tados como troféus, que exaltavam
como algo que não é vazio. evidenciados através de brilhantes pensar no que eles tinham próprio. pela ausência do espírito2, a força 41

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e a animalidade que um dia estive algo positivo: as amizades atraves-


naqueles corpos. Era interessan- sam espécies e o tempo delinean-
te pensar no prazer cínico daqueles do a empatia e a memória, qualida-
que se sentiam dignificados juntos des sempre negadas aos bichos.
a restos mortais reavivados devido
a interesses científicos, orgulhos e Outro tema investigado é a domes-
ridicularizações. A paródia parece ticação, palpavelmente o momento
mais importante do que o animal onde se pode perceber a mais inten-
real (MALAMUD, 2011). São incoe- sa ligação humano-animal. Junto
rências instigadoras a tudo que se aos seus donos, bichos recebem
seguiu na pesquisa posteriormente. nomes, lares, identidades, perso-
nalidades, abrigo, alimento, papéis
Nas obras intituladas Escondendo familiares (na família humana), trei-
meu animal (2012) (figura 1) há refe- namento e se adequam de manei-
rência à historia do leão Christian ras muito diversas a vida humana.
que foi comprado ainda filhote em Não há fronteiras sobre o que pode
uma loja de departamento por dois se domesticar: silvestres, selva-
amigos, no ano 1969, em Londres. gens, agressivos... Tudo é passível
Eles o criaram até um ano de idade de domesticação em um mundo que
mesmo com todas as dificuldades, cada vez mais urbanizado e afasta-
quando conseguiram levá-lo a um do do natural (MALAMUD, 2011).
santuário para leões no Quênia. Os
dois amigos só visitaram o leão três Mas o lado obscuro desses afetos
anos depois, mas apesar do temor nunca é negado. Poucos contatos
de que não fossem reconhecidos, ao homem-animal ocorrem de manei-
encontrarem Christian, foram abra- ra que eles não sejam afetados
çados em uma cena emocionante, em suas naturezas. Na história de
onde são reverenciados até pela famí- Cristian, vemos um trajeto de caça,
lia felina construída pelo leão. Essa de cerceamento no espaço domés-
historia mostra que aquilo vivencia- tico e humanizado. Como critica
do pela humanidade como amor está Malamud (2011, p.359) “a conse-
em suas relações com os animais. quência da maioria dos encontros
Referenciada nela desenvolvo a temá- entre humano e animal é a manifes-
tica do afeto que apresentado na série tação do dano pelas vias de poder”.
Figura 1: escondendo meu animal, 60 x 90, óleo sobre tela,
Amores perros como um elemento
2012. Fonte: Produção e registro da própria artista. do sofrimento, o amor reaparece na O Cárcere em Zoológicos, menage-
série falso mundo maravilhoso como ries3 e circos são outra temática. Em 42

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por permitir que se toque em animais nas redes sociais se apresenta-


como leões e tigres, e que é acusa- vam comentários que defendiam o
do constantemente de dopá-los. animal e até ridicularizavam o doma-
dor. É algo associado à ideia ética
O cárcere é a característica da de que na ausência de bem-estar
maioria dos encontros que se pode e uma justiça para os bichos, eles
ter com os animais, a humanidade precisam se defender (JEHA, 2011).
não aprecia pensar neles no mundo
selvagem, pois quase se extinguiu Por outro lado em um processo
o selvagem de forma que prefere recente, as domas tem se torna-
vê-los enjaulados e cerceados de do menos violentas, mais efica-
suas características naturais para zes e seus resultados nos soam
não se ter vergonha dessa extin- mágica ou como uma espécie de
ção (MALAMUD, 2011). O espaço encantamento. A obra Dominação
de cerceamento já era parte de (2013) (figura 3) foi construí-
Amores perros, e posteriormente da com base em vídeos onde o
convertidos em cárcere, em prisão famoso domador de cavalos Monty
e em jaula transformam-se, auto- Roberts realiza as domas não-
nomamente, em um tema. Portas violentas de cavalos chucros.
que se abrem dão liberdade e nos
causam medo do encontro com o
que aquilo aprisionava. É no cárce- Aspectos formais
re que se pode inverter poderes
Wollhein (2002) nos descreve um
Outro assunto é a doma: refletir conceito definido como espectador no
Figura 2: Coração na jaula (homem caído), 120 x 150, óleo sobre
tela, 2012/ 2013. Fonte: Produção e registro da própria artista. sobre isso é o caminho para pensar quadro: é aquela pessoa (ou criatura),
a humanidade em suas tentativas, representada dentro da obra, indica-
muitas vezes violentas, para conse- dora através de seus modos e princi-
Coração na jaula (2012/2013) (figura guir ter propriedade sobre o animal palmente no olhar o que está acon-
2) construí um conjunto de obras e sobre seu íntimo. Subvertendo a tecendo dentro da obra. Haverá por
a partir relatos jornalístico sobre o lógica comum, na obra Mudança nos parte de quem vê a obra, uma identi-
dono de um menagerie nos EUA, que focos de poder (2013) atrações de ficação com o espectador no quadro e
antes de se suicidar soltou todos os circo tomam o poder, matam doma- por essa identificação esse observa-
seus animais. Nas obras Fracassado dor e o transformam no brinquedo dor se imagina estando dentro/sendo
do medo (2014/2015) foi pintado a que antes eram eles próprios, são sentindo, percebendo, pensando e
3 Termo que designa coleção experiência de minha visita ao Lujan situações que se baseiam em vídeos agindo como o espectador no quadro
particular de animais. de Buenos Aires, zoológico famoso cenas reais. Atrelado a esses vídeos faz com o que está ao seu redor. 43

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VI
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Nesta poética são os animais os


espectadores no quadro e por eles
que os observadores irão sentir
o que está apresentado. Estarão
sempre no espaço de protagonis-
tas mesmo que não ocupem um
centro geométrico. Historicamente
inferiorizados é na composição que
serão reposicionados no mundo,
desviaram focos e poderes.
Figura 3: Dominação, tríptico, 120 x 170, óleo sobre tela, 2013.
Fonte: Produção e registro da própria artista. Muitas vezes a composição faz
cortes e apresenta animais e outros
sujeitos de maneira incompleta,
deixando seus olhos e outras partes
de seus focinhos/faces implícitos
o que prejudicariam a experiência
proposta por Wollhein. São o que
ele nomeia como espectador incons-
tante que não podem indicar com
sua visão seu ponto de vista e o que
vêem no quadro. A incógnita que o
Figura 4: Agonizante, díptico 90 x 60 e 50 x 40, óleo sobre tela, espectador inconstante representa
2013. Fonte: Produção e registro da própria artista. é explorada dentro de minha poéti-
Figura 5: Coração na jaula (patas do
ca (figura 5), não como algo esté-
leão), 120 x 150, óleo sobre tela, 2012/ ril, pois conto com a capacidade
2013. Fonte: Produção e registro da imaginativa do observador. É um uso
própria artista. que reforça o papel de outro enig-
mático (DERRIDA, 2002) constan-
temente identificado nos animais.

A composição é feita em esboços,


mas geralmente só é resolvida na
própria tela, onde suas proporções
finais podem ser observadas. Os
cortes produzidos na imagem lidam
tanto com o que é visto, quanto 44

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

com o extracampo e nunca são e personagens, sem propor necessa- fosco e brilhoso também é pensa-
aplicadas molduras para reforçar riamente uma linearidade. Espera- da para evidenciar a figura. Tocar
essa possibilidade. São elementos se com essa sequenciação cons- animais, sempre que possível, é uma
que refletem uma pintura bastante truir uma narração, como banaliza das formas de pesquisar. Pinta-los
educada pela imagem audiovisual. Aumont (2004, p.95). “mas que duas dá margem ao uso de texturas como
imagens, uma após a outra, não se fosse uma forma de tocar, de
Bazin (apud AUMONT, 2004) escapam a uma micronarrativa”. sentir as pelagens, promover uma
caracteriza o quadro fílmico como experiência háptica, um desejo que
centrífugo, pois leva o olhar para As imagens sempre se iniciam em se assemelha a busca de Francis
as bordas, pedindo um fora-de- uma base ocre onde não se produz Bacon (DELEUZE, 2007) para pintar
campo ao contrário do quadro uma justeza do tom uma alter- sensações táteis, embora esse seja
pictórico, que centrípeto, fecha- nativa para evitar a vibração das um caminho do pintor para fugir
se em sua própria composição, cores puras (PEDROSA, 2009). Em da figuração, um interesse que
cerceia o olhar, enquanto o obriga Amores Perros se buscou uma paleta não pertence a esta pesquisa.
a ir para o centro. Contrariando de cores bem quentes: o verme-
essas caracterizações a pintura lho associado à violência, à cólera, Opero entre soluções pictóricas que
(figura 5) que desenvolvo poucas à guerra e à valentia (PEDROSA, poderiam ser consideradas infan-
vezes se utiliza do centro e seus 2009) e o amarelo uma cor que tis e toscas e outras que demons-
elementos estão sempre se distan- transborda as áreas onde é aplicado tram mais virtuosidade. A opção
ciando para a margem se aproxi- e se relaciona ao calor a e a energia por uma delas é influenciada pela
mando mais da imagem fílmica. (PEDROSA, 2009) eram predomi- temática da obra: ao pintar o circo,
nantes nesse período. O azul a mais por exemplo, foi escolhido repre-
Aumont (2004) defende que a profunda das cores, cor dos misté- sentar de maneira mais infantiliza-
pintura muitas vezes inferioriza- rios da alma, símbolo da metafísi- da, enquanto ao pintar tragédias
da ao cinema devido a sua esta- ca e da nobreza (PEDROSA, 2009) buscou-se pintar de forma mais
ticidade, também, a sua manei- começou a ser utilizado a partir do virtuosa. A figura é trabalhada de
ra representa o tempo a partir de momento em que se desejava fazer maneira a ficar inteligível e poder
outros signos e formas. Essa possi- uma abordagem onde universo inte- atuar dentro da imagem, muitas
bilidade de expressão de tempo rior dos seres era o foco. Algumas vezes não é possível indicar ao
na imagem pictórica é um interes- vezes a cor vem de maneira irreal: certo o animal representado, mas
se muitas vezes orientador dentro tigres azuis, cachorros vermelhos... é visível sua expressão e gesto.
dessa pesquisa. A pintura sequen- Atribuindo a eles a significação
cial é uma das maneiras usadas cultural associada à cor usada.
para trabalhar isso em cenas guia- Influências
das por histórias, cada cena em uma As pinceladas trabalham para
tela, assemelhando-se por elemen- concentrar tensão em determinados Não existe pintor mais influen-
tos comuns como cenários, objetos pontos da obra, e a oposição entre ciador e cujo trabalho dialogue 45

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mais com esta poética que Francis ele, faço naturalmente apropriação pinceladas enérgicas que coope-
Bacon. Embora nem sempre de diversas referências da cultu- ram com a emotividade elemento
figure animais, cria em uma zona ra visual como fotos e vídeos. que busco aplicar a minha poética.
de indiscernibilidade entre eles
e os humanos, os transforman- No seu universo não há esperan- On the sixty day, de Alessandra
do em um mesmo ser, os unifi- ças de se libertar da angústia e Sanguinetti, realizada desde 1996,
cado por sombras, ou em cortes do desespero que cercam toda a é uma série fotográfica documental
de carne. O pintor não pede história da humanidade, desenvol- feita nos arredores rurais de Buenos
piedade para com os animais, vendo daí uma poética do irracio- Aires, que relata fenômenos natu-
mas os equipara a humanida- nal (ARGAN, 1992) semelhante à rais e sociais dos agricultores de
de pelo sofrimento (DELEUZE, busca realizada na série Amores pequenos porte e subsistência do
2007), pensando sobre a indús- Perros. Atualmente elementos lugar, que ainda mantém processos
tria da carne e sobre a condi- relacionados ao sofrimento exis- muito antigos de manejo do natural
ção contemporânea do animal. tem em minha poética, para refor- (BLAKE, 2005). O contexto é apre-
çarem o valor e o poder da vida, sentado, mas o foco dessa série são
Sua organização espacial sugere e também pensar sobre alegria, os animais mostrados como real-
palcos, pistas, cômodos e circos beleza e a morte que pode ser mente são e vivem. E como, em seu
lugares que utilizo de maneira bem o símbolo do êxito dos heróis. ciclo dentro do mundo rural, morrem.
mais literal. De maneira fantasmá- A apresentação dos olhares é muito
tica ele propõe cubos que circun- Eugène Delacroix produz imagens cuidadosa, eles nos olham nos tiran-
dam as figuras comparáveis às que visualmente interessam e do do papel de observadores para
jaulas que represento, então em nas quais certos detalhes busco observados, o que pode ser pertur-
ambas as poéticas esse elemen- reproduzir, por meio de estudos. bador e em cenas de caça se mostra
to representa a tensão do cercea- Fascinado por animais domés- o ponto de vista do bicho, nos
mento e um espaço para o delei- ticos, e por aqueles que conhe- aproximando deles (BLAKE, 2005).
te seguro do voyer. Mas em minha ceu em suas viagens a lugares O olhar para gerar empatia é um
poética a figura pode fugir, e considerados em seu tempo exóti- recurso que utilizo em minha obra.
se empoderar da tensão criada cos (GOMBRICH, 2012) o pintor
sobre si. Outro paralelo é obser- executa obras em que a fauna Em outras de suas séries se mantém
vado no uso da cor: peles rosas é presente quando não é prota- a presença da interação humano-a-
quase como carnes vivas, blocos gonista, confiando a eles toda a nimal. Habitamos mundos muito
de cores quentes, pinceladas vigo- emoção que se pode demonstrar semelhantes e na pintura também
rosas no delineamento da figura. ali. Temas como lutas e ataques faço relatos de minha vida como
Fazemos a evidência da carne e de são frequentes e o pintor relata moradora de uma pequena proprie-
sua junção aos ossos (DELEUZE, em seus escritos o quanto enxer- dade rural. Na obra Agonizante
2007), e aos dentes nos utilizando ga beleza nesses momentos (figura 4) (2013) marco o momen-
da angústia que isso gera. Como (GOMBRICH, 2012). Delacroix usa to onde na mesma época meu pai 46

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

fazia delicadas cirurgias enquanto Essa referência fílmica está sempre à pintura de humanos, pois estes
a vaca mais velha que morava em presente para se pensar o período são a mais perfeita obra de Deus.
nossa chácara agonizava e morria. da pré-história, momento quando Fromentin chega a dizer que, devido
os pequenos desenvolvimentos da a sua irracionalidade, um cavalo,
Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos tecnologia ainda não permitiam o como tema, não é algo para se pintar.
(2011), documentário do diretor domínio da natureza e o ser humano
Werner Herzog, graças à tecnologia, estava à mercê, dependendo profun- São pensamentos temporalmente
há uma oportunidade histórica de por damente do animal para sua sobre- distantes que refletem nos discur-
meio de uma filmagem 3D se visu- vivência. Como um período predo- sos pictóricos uma sociedade que
alizar com precisão a quase intoca- minantemente zoocêntrico em que a até a atualidade se mantém antro-
da caverna de Chauvet com pinturas fauna e o humano estavam ambien- pocentrista e cada vez mais esta-
rupestres em excelente estado de talmente ocupando o mesmo lugar belecer piores tratamentos físicos a
conservação. Sua ocupação por seres se assemelhando profundamente seus bichos. Como aponta Derrida
humanos é datada por algo em torno às questões aqui investigadas. (2012) nos últimos duzentos anos
de 30 mil anos e entre as imagens ali essa crueldade chegou ao seu auge,
representadas há intervalos histó- como um produto da era industrial,
ricos de 5 mil anos. Marcações em O êxito da imagem de forma organizada e genocida.
negativos de mãos e pegadas huma-
nas no chão, assim como fósseis de Então, estranhamente em uma
animalista na
animais são propriedade do local. contemporaneidade. corrente quase oposta, nas áreas de
Nas brilhantes paredes está repre- biologia e ciências humanas, a marca
sentada uma vasta fauna, composta As representações de animais estão da contemporaneidade vai ser uma
por leões, panteras, ursos, corujas, espalhadas em toda a história, de “explosão de publicações” (BRAVO,
rinocerontes, hienas, cavalos, bovinos diversas maneiras. Sempre valoriza- 2011, p.221) em diversas partes do
e veados em desenhos que demons- da, apresentava esses seres enquan- mundo, de algo nomeado de Estudos
tram com bastante precisão cada to protagonistas, e coadjuvantes nas Animais (MACIEL, 2011). Nas progra-
espécie. Há uma única imagem que narrativas pictóricas e sua presença mações de televisões pagas, tem-se
aparentemente mostra um humano: era também um sinal de virtuosida- o acesso (no Brasil) a, no mínimo,
é o quadril de uma mulher mistura- de. Como descreve Alberti no ano de quatro canais que se dedicam exclu-
do ao corpo de um bisão. Os pesqui- 1435 (2006): o pintor deveria saber sivamente ou tem grande parte de
sadores que não tinham como saber pintar todas as coisas fossem huma- sua grade dedicada a mostrar faunas
se os leões do período tinham juba, nas e animais enaltecendo a impor- e suas peculiaridades, organiza-
a partir das análises desses dese- tância da pintura de animais. Como dos em roteiros muito semelhantes
nhos sabem que realmente não confirma Félibien (2006) que, embora a filmes. Nas programações infan-
tinham demostrado que de tão anti- exalte a pintura de animais frente tis outra fauna, menos natural, é
gas, essas imagens acompanha- à pintura de coisas estáticas, pois ainda mais corriqueira, quando não
ram inclusive processos evolutivos. estes se movem, diz que ela é inferior é um símbolo da própria infância. 47

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Fazendo uma analogia ao ocorri- sociedade que maltrata e esvazia cultural e evidência nos lugares
do nessas outras áreas de conhe- seus animais, surge a questão dos que frequentava. Inicialmente a
cimento na arte atual, observa-se porquês desse afloramento. Maciel temática animal foi escolhida como
um grande número de artistas que (2011) nos diz que isso acontece por uma oposição estigmatização da
colocam o animal como centro, ou uma tomada mais profunda de cons- figura humana e por influência
parte importante de sua poética. ciência por parte de escritores e artis- do meio rural onde moro, mas se
Joseph Beuys desenvolveu por esse tas que hoje se sentem mais livres mantém por sua rica possibilidade
assunto um interesse tão extremo das amarras alegóricas sobre o tema. de discutir o animal e o humano.
que chegou a fundar um partido Mais pessimista Malamud (2011)
politico para os animais (ARCHER, propõem que o mundo natural está A primeira série Amores perros
2011). Francis Bacon encontrou na cada vez mais bloqueado pela cultura que usava rinhas para metafo-
indiscernibilidade homem-animal visual crescente ao nosso redor, cultu- rizar a humanidade foi abando-
um caminho para pensar a degra- ra que se torna cada vez mais pulsan- nada, enquanto eixo norteador,
dação humana (ARGAN, 1992). te e atraente. E os meios pelos quais devido à degradação nas imagens,
se produz e se acessa essa cultura e um pensamento de alimenta-
Em uma análise de meus conter- também afetam e consomem o mundo ção do ideal da violência contra
râneos e contemporâneos destaco natural reduzindo ainda mais seu esses seres. Saindo da metáfo-
o trabalho dos pintores Bia Leite, acesso. Então o interesse que se teria ra “falso mundo maravilhoso”
Camila Soato Eduardo Lago, Fabio pelo natural passa a ser dedicado aos busca pensar o que era próprio
Baroli, Moisés Crivelaro, Johanna seus simulacros na cultura visual. do animal. Nos subtemas como
van Vitatum, Renata Rinaldi e taxidermia, afeto, domesticação,
Renato Rios. No Brasil temos a pintu- Entende-se que estes artistas cárcere e doma, conclui-se que em
ra de Ana Elisa Egreja, Eduardo pensam no animal, para se apro- sua busca para aproximar-se por
Berliner, Cristina Canale, Wagner priar desse assunto como uma interesse ou afeto o humano quase
Willian, Daniel Lannes, Thiago força, um modo de ir contra a cultu- sempre agride e esvazia a nature-
Martins de Melo e Walmor Corrêa. ra, de externar a natureza que se za do animal. Foram na troca de
Entre outras linguagens desta- nega, mas que vez ou outra atra- poderes, que as naturezas dessas
co o trabalho de Rodrigo Braga vessa a humanidade, a desestabili- relações foram explicitadas.
e Berna Reale. Discutem temas za, a emociona e enquanto conceito
como reprodução, genética, ques- construído historicamente a destrói. Identificou-se, na segunda parte, os
tões de gênero, religiosidade, animais representados nesta poéti-
sonhos, hibridismo, antropomorfis- ca por dois conceitos: o primeiro
mos, folclore, e a própria pintura. Conclusão espectador no quadro, é aquele que
indica tudo que acontece dentro
Constatando que esta representa- Constatou-se na primeira parte que da imagem por seus olhos e gestos
ção se apresenta aflorada tanto nos a pintura enquanto linguagem foi retirando o animal do papel subal-
discursos como na arte, em uma escolhida devida a sua inserção terno que ele ocupa na sociedade; 48

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

o segundo espectador inconstan- apresenta uma humanidade sem discutem o tema inclusive nas artes
te, é um sujeito que por aparecer esperanças, apresento em minha visuais. Apresentam-se dois moti-
visualmente incompleto na obra, obra uma visão mais otimista. vos dessa recente valorização: o
e por isso não pode indicar o que primeiro diz que como cada vez
ali acontece, o que foi articulado Ainda na terceira parte mostrou-se menos se tem acesso a natureza,
a ideia comum dos animais como a importância de Eugène Delacroix a visualidade entra como substi-
algo misterioso. Observou-se que pela visualidade de seu trabalho tuta; o segundo propõem que sem
essas articulações do sujeito modi- e em seu fascínio pelo universo de amarras os artistas trabalham
ficam a forma de compor. Verificou- animalesco e pela violência ineren- mais livremente sobre o tema.
se que a pintura que componho por te a ele. On the sixty day, série foto- Sugeriu-se que o animal repre-
sua organização em elementos que gráfica de Alessandra Sanguinetti senta uma força contra cultura.
trabalham mais com a margem do foi comparada a essa poética por
que com o centro assemelham-se centralizar e explicitar o ambien- Como muitos assuntos aqui discu-
por esse aspecto mais à compo- te onde vivem os animais e que tidos provém da cultura visual,
sição fílmica do que à tradicional por suas semelhanças, mesmo pretende-se continuar a investi-
composição pictórica, inclusive em temas pessoais, universali- gá-la para construir as obras. Essa
em sua possibilidade de produzir zando a temática da pesquisa. O pesquisa já desenvolve um cunho
sequencialidade. Por análise foi filme A caverna dos sonhos esque- político na busca por relações
visto que o uso da cor se adequa cidos de Werner Herzog em sua mais igualitárias entre humanos
ao seu significado social, e que apresentação da pré-história, e animais, um detalhe que dentro
os tratamentos pictóricos oscilan- período em que animais e seres das articulações aqui propos-
tes entre o virtuoso e o tosco se humanos, devido à ausência de tas pretende ser expandido.
adequam muitas vezes aos temas e grandes avanços tecnológicos
buscam gerar sensações associa- estavam muito mais equiparados Obras referênciadas
das ao toque dos pelos animais. se alinharam a busca de igualda-
de promovida por essa pintura. ALBERTI, Leon Battista. Da
Nas analogias feitas na tercei- pintura (Livro II). In A pintu-
ra parte, afirmou-se a importân- Na última parte, confirmou-se que ra –Vol. 10: gêneros pictóricos.
cia do artista Francis Bacon por mesmo sendo considerada impor- Org: Jacqueline Lichtenstein
sua influência/diálogo por temas tante a pintura animalista foi infe- São Paulo: Ed.34. 15-18p
como a animalidade e a cruelda- riorizada historicamente frente a
de e as construções do espaço, e outros gêneros pictóricos, refle- ARCHER, Michel. Arte contemporâ-
por aspectos formais como o uso xo de uma sociedade que tem a nea: uma historia concisa. 1ª ed. São
da cor, e uso de imagens da cultu- crueldade dos animais como um Paulo: Martins Fontes.2001. 264 p.
ra visual para a produção da obra. de seus símbolos. Mas atualmen-
Mas também foram apresenta- te existe um aumento considerá- ARGAN, Giulio Carlo. ARTE
das diferenças: enquanto Bacon vel de reflexões e visualidades que MODERNA: Do Iluminismo Aos 49

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Movimentos Contemporâneos. União, TCU, Espaço Cultural PEDROSA, Israel. Da cor a cor
5ª ed. São Paulo: Companhia Marcoantonio Vilaça, 2014. 196 p. inexistente. 10ª ed. Rio de Janeiro:
das Letras, 1992. 736 p. Senac Nacional. 2009, 256p.
FROMENTIN, Eugène. Os
AUMONT, Jacques. O olho inter- mestres de outrora. In A pintu- PARTSCH, Susanna. Franz Marc.
minável [cinema e pintura]. São ra –Vol. 10: gêneros pictóricos. Los Angeles: Taschen. 2012. 96 p.
Paulo: Cosac Naify. 2004. 272 p. Org: Jacqueline Lichtenstein
São Paulo: Ed.34. 131-137p A CAVERNA dos Sonhos Esquecidos.
BRAVO, Álvaro Fernándes. Direção: Werner Herzog. Zeta
Desenjaular o animal humano. GOMBRICH, Enst Hans. filmes. 2011. 95 min. DVD.
In: Pensar/escrever o animal: HISTORIA DA ARTE. 16ª ed. Rio
enaios de zoopoética e biopolí- de Janeiro: LTC, 2008. 688 p. AMORES Perros. Direção Alejandro
tica. Org. Maria Esther Maciel. González Iñárritu. Altavista Films
Florianópolis: UFSC, 2001. JEHA, Julio. Assassinos de estima- e Z Films, 2000. 135 min. DVD.
ção: O livro das feras, de Patricia
BLAKE, Robert. Sem título. In: Highsmith. In: Pensar/escrever o HISTÓRIA do Leão Christian comple-
On the six day. 1ª ed. Tucson, animal: enaios de zoopoética e biopo- ta. Disponível em <https://www.
Arizona: Nazraeli Press, 2005. lítica. Org. Maria Esther Maciel. youtube.com/watch?v=uWHxCWP-
Florianópolis: ed da UFSC, 2011. GQGA>. Animal Planet. 27 min.
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Acessado em novembro de 2015.
lógica da sensação. Rio de WOLLHEIM, Richard. A pintu-
Janeiro: Zahar. 2007.184 p. ra como arte. 1ª ed. São Paulo: MONTY Roberts inicia um potro de
Cosac & Naify. 2002. 384 p. seis meses. Programa cavalos criou-
DERRIDA, Jacques. O animal los. Direção: Valéria Maciel. 12 min.
que logo sou. São Paulo: MACIEL, Maria Esther. Prólogo. Disponível em < https://www.youtu-
Ed.UNESP. 2002. 93 p. In: Pensar/escrever o animal: be.com/watch?v=7YbUFz-rV0k > .
enaios de zoopoética e biopolí- Acessado em novembro de 2015.
FELIBIEN, André. “A hierarquia tica. Org. Maria Esther Maciel.
clássica dos gêneros”. In A pintu- Florianópolis: ed da UFSC, 2011.
ra –Vol. 10: gêneros pictóricos.
Org: Jacqueline Lichtenstein MALAMUD, Randy. Animais no
São Paulo: Ed.34. 38-45p cinema: a ética do olhar humano.
In: Pensar/escrever o animal:
FERREIRA, Matias Monteiro (org.). enaios de zoopoética e biopolí-
Vinte, pintura e pictorialidade em tica. Org. Maria Esther Maciel.
Brasília, 2000-2014. Catálogo. Florianópolis: ed da UFSC, 2011.
Brasília: Tribunal De Contas da 50

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Diálogos entre
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

Lenora de Barros e
O objetivo deste trabalho é identificar pontos de convergências e intersecções
entre a obra da interartista paulistana Lenora de Barros e o movimento

o neoconcretismo
neoconcreto carioca. O artigo também se propõe a traçar um histórico da artista
contemporânea e a trajetória das tendências construtivas, que se iniciaram com
o cubismo europeu e chegaram ao Brasil por meio da Escola de Ulm, na década

brasileiro
de 1950. A partir disso, aponta-se indícios de possíveis diálogos entre a artista
paulistana e a proposta neoconcreta, que rompeu com o concretismo brasileiro.
Presença textual na obra visual, o corpo como participante da obra e a ideia de
tempo estendido, vivenciado e experienciado parecem ser os principais pontos
de diálogo entre os dois objetos aqui analisados. Lenora de Barros nasceu em
1953 e sua obra transita entre diversas linguagens, tais como a poesia, a prosa,

Raisa Ramos de Pina1


o vídeo, a fotografia e a performance, explorando aspectos visuais, textuais e
sonoros. É filha do também artista plástico Geraldo de Barros e conviveu desde a
infância com poetas concretistas. Sua obra guarda relações com a arte pop, com o
grupo Fluxus, com o concretismo e também com o viés conceitual. Esta pesquisa
se justifica pela bibliografia ainda bastante reduzida a respeito desta artista que
esteve envolvida diretamente com um dos movimentos artísticos brasileiros mais
importantes e que também vivenciou um período muito fértil da história da arte.

Palavras-chave: Lenora de Barros. Neoconcretismo. Texto. Corpo. Tempo.

Abstract

This essay tends to identify identify points of convergence and intersections


between the work of the interartist from São Paulo Lenora de Barros and the neo-
concrete movement from Rio de Janeiro. The article also aims to draw the history
of this contemporary artist and to explain the arrival of constructive tendencies in
Brazil, which began with the European Cubism and arrived here through the Ulm
School in the 1950s. From this, it is pointed out possible dialogues between the
artist and the neo-concrete proposal, which broke with the Brazilian concretism.
Textual presence in the visual work, the body as a participant of the work and
the idea of extended time seem to be the main points of dialogue between the
two objects analyzed here. Lenora de Barros was born in 1953 and his work
1 Raisa Ramos de Pina (raisa.ramosp@gmail.com) é mestranda em Artes Visuais, na linha de moves between different languages such as poetry, prose, video, photography
pesquisa Teoria e História da Arte, na Universidade de Brasília. and performance, exploring visuals, text and sound. She is the daughter of fellow 51

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VI
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

artist Geraldo de Barros and lived capital externo; no âmbito inter- Performance fotográfica ou poesia
since childhood with concrete poets. nacional, o mundo conhecia suas visual. Os dois termos podem ser
Her work keeps relations with pop primeiras formas tecnológicas que empregados para classificar o
art, with the Fluxus group, with the mudariam as comunicações para gênero artístico dessa primeira obra
concreteness and also with the sempre: surgiu o primeiro micro- da paulistana. Interessante notar
conceptual bias. This research is processador, o primeiro videogame, a presença do texto (a poesia) em
justified by the literature still quite a marca Apple. E foi exatamente forma de imagem. Mesmo sem
small about this artist who has nesse contexto, embalada por músi- caracteres, as fotografias expres-
been involved directly with one cas dos Beatles e por performances sam uma mensagem textual poéti-
of Brazil’s most important artistic de Yoko Ono, que Lenora de Barros ca e, por isso, podem ser classifica-
movements and also experienced viu sua personalidade, seus gostos e das como poemas visuais – isto é,
a very fertile period of art history. desgostos, serem construídos. Foi no obras que se situam entre a poesia
fim dessa década tão marcante que e as artes visuais. Arthur Danto,
Keywords: Lenora de Barros. Neo- a artista se formou em Linguística no ensaio Linguagem, arte, cultu-
concrete movement. Text. Body. Time. pela Universidade de São Paulo. ra e texto3, considera a imagem
Aos 20 anos, criou sua primeira naturalmente como um tipo de
obra, Homenagem a George Segal: texto, mas um tipo que transcen-
Lenora de Barros: de a gramática e a sintaxe, porta-
A partir da proposta de um tra- dora de uma narrativa que deve
ser interpretada. Dessa forma,
um histórico
balho dada por um professor da
Foi em 1953, em São Paulo, capi- escola Iadê, em 1973, no qual os não nos parece incomum conside-
tal, que nasceu Lenora de Barros. alunos deveriam fazer uma crítica rar a performance fotográfica de
Por ser filha de artista e conviver à sociedade de consumo, Lenora Barros como poemas visuais. Esse
desde pequena com poetas concre- de Barros criou Homenagem a Ge- mesmo jogo entre imagem e texto
tos e críticos ligados ao mundo da orge Segal, que traz uma sequên- – um dissolvido no outro – apare-
arte, nada mais natural do que seu cia fotográfica da artista escovando ce diversas vezes na obra da artis-
desejo de seguir os mesmos passos os dentes até seu rosto ser com- ta, como em Poema (1980), também
de seu pai, Geraldo de Barros. Viveu pletamente coberto pela espuma. um de seus primeiros trabalhos:
a juventude na década de 1970: O caráter escultórico resultante
no Brasil, a ditadura militar ainda remete às esculturas em gesso do Levada pela intenção de trans-
estava longe de acabar; nas artes artista americano (…). [A obra] foi cender suas ações cotidianas, a
nacionais, Tropicália e neoconcre- originalmente publicada em 1975 poeta multimídia Lenora de Barros
tismo propunham rupturas com a na revista Poesia em Greve. A obra há anos realiza trabalhos bastan-
mentalidade conservadora vigente; na época foi considerada como um te singulares: seus poemas-perfor-
2 XAVIER, 2012, p. 47. o país encarava sua fase de “Milagre poema visual, mesmo valendo-se mances. Em 1980, por exemplo,
Econômico”, com obras de infraes- de uma narrativa visual e não con- Barros decidiu levar até as últimas
3 DANTO, 2014. trutura monumentais e abertura ao tendo um texto propriamente dito.2 consequências a intimidade que 52

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mantinha com sua ferramenta de de São Paulo, a 17ª edição, com


trabalho: a máquina de escrever. poemas visuais realizados pela
Sua língua (órgão fundamental da primeira vez em vídeo-texto. Quatro
fala) provava a máquina (instru- anos depois, participou pela segun-
mento fundamental para o registro da vez do evento, mas desta vez
da escritura, sucedâneo da fala), como curadora da exposição A
até que esta se excita num paro- trama do gosto, em homenagem aos
xismo tenso e sensual. Poema e 30 anos da arte concreta. A década
metáfora da poesia, a sequência de 1990 se mostra bastante produ-
fotográfica abre com a boca exci- tiva: Barros refez sua Homenagem a
tada da poeta para finalizar com o George Segal; integrou a seleção de
mecanismo excitado da máquina. artistas da 24ª Bienal de São Paulo
Da confluência dessas duas exci- (a famosa Bienal da Antropofagia);
tações surge o poema de Lenora participou de exposições em Berlim,
de Barros, surge toda a poesia.4 Paris e Milão, cidade onde morou
por quase dois anos; ao voltar para
Não só em seus poemas-perfor- o Brasil, a artista assumiu os cargos
mances está presente o viés textu- de editora de fotografia do jornal
al que Barros carrega em si. Sua Folha de S. Paulo e de editora de
trajetória mostra que o trânsito da arte da revista Placar; também assi-
artista entre os dois meios (o visual nou, por três anos, a coluna ...umas,
e o textual) é mais intenso e profun- publicada aos sábados no Jornal
do. Durante a década de 1980, ela da Tarde. Essas colunas, por servi-
participou da publicação de diver- rem de espaço de experimentação
Figura 1 – Poema (1980), sas revistas de poesia alternativas. artística e se comportarem como
Lenora de Barros. Foram publicados poemas, foto- uma extensão do ateliê de Barros,
grafias, desenhos e experimenta- não podem ser ignoradas em uma
Figura 1 – Poema
ções da artista nas revistas Poesia análise aprofundada do trabalho da
(1980), Lenora de em greve (que ela também editou), artista. Além disso, poemas textu-
Barros. Navilouca, Pólem, Qorpo estranho, ais e/ou visuais publicados primei-
Código, Artéria e Zero à esquerda5. ramente nas suas colunas depois
Foi nessa última revista, inclusive, se desdobraram em outras obras,
4 CHIARELLI, 2002, p.118. que Barros publicou pela primei- que por sua vez foram expostas em
ra vez sua obra Poema (fig. 1). museus tanto no Brasil quanto no
5 Para mais detalhes dessas revistas, ver XAVIER, 2012, p. 41. exterior6. Recentemente, em 2013
Ainda na década de 1980, Barros e 2014, uma seleção dessas colu-
6 Por exemplo, na 11ª Bienal de Lyon, França, e na Fundación Proa, Buenos Aires. participou de sua primeira Bienal nas ganhou exposição própria, 53

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intitulada Umas e Outras, com novo no ar… nada de novo no ar… sido um assunto já muito traba-
curadoria da professora Glória nada a ver com nada a ver com nada lhado em outras ocasiões, não nos
Ferreira e exibição, primeiramen- a ver…” De frente para as cadei- interessa aqui tanto essa relação,
te, na Casa de Cultura Laura Alvim ras, uma obra recente da artista7. apesar de não podermos ignorá-la;
(RJ) e, depois, no Espaço Pivô (SP). Essa instalação pode ser vista como devemos também ter consciência
uma das que melhor define o traba- do papel importante que o texto e
Apesar de a carreira de Barros datar lho feito por Lenora de Barros: uma a poesia têm em sua obra (apesar
desde o fim da década de 1970, a revisitação constante a sua própria de esse texto e essa poesia às
paulistana só foi se dedicar exclusi- obra e uma apropriação frequen- vezes aparecerem como imagem), e
vamente à carreira artística a partir te e explícita de outros artistas. entendermos o conceito de poesia
dos anos 2000. Ela já havia realiza- visual, que já explicamos anterior-
do, em 1990, a individual Poesia é A trajetória de Barros nos ofere- mente. Com essas informações em
coisa de nada, na galeria Mercato del ce material de sobra para várias mente, partimos agora para uma
Sale, em Milão. Sua primeira exposi- análises interessantes: sua relação análise sobre o neoconcretismo,
ção individual no Brasil foi em 2001, com o grupo Fluxus, com a Pop Art, mas para chegarmos a esse movi-
na Galeria Milan, em São Paulo, a arte conceitual, a arte concreta, mento tão marcante na história da
chamada O que há de novo, de novo, sua forma de construir um espaço arte brasileira, precisamos refa-
pussyquete? O nome, evidentemen- de exposição a partir de instalações zer os passos e desdobramentos
te, ironiza a ideia de que a arte deve sonoras, como o conceito de antro- dos movimentos construtivos que
sempre se reinventar – ideia esta pofagia se desenvolve na sua obra o antecederam, a fim de entender-
que Danto também critica com rela- etc. Gostaríamos de poder abraçar mos como o neoconcretismo pode
ção à arte contemporânea, como o mundo inteiro ao redor da artis- surgir, e com que tipo de proposta.
já dissemos. Após percorrer toda a ta e estudar cada nuance de sua
exposição, o espectador se depara obra, mas como o espaço deste
com a última obra, uma instala- trabalho é limitado e pequeno, Passos para um
ção visual e sonora. Nove cadei- nossa proposta inicial é encontrar
ras equipadas com um retrovisor e pontos de diálogo entre o trabalho
neoconcretismo
fones de ouvido. Pelo retrovisor, é de Barros e o movimento neocon- Apesar de a autora deste trabalho ser
possível ver um vídeo que é exibi- cretista. Do breve histórico aqui crítica a uma análise historicista e
do na parede atrás das cadeiras: traçado sobre a paulistana, deve- evolucionista da arte por não acre-
uma montagem de antigos traba- mos nos ater principalmente ao fato ditar que um movimento necessaria-
lhos da artista, além de um autorre- de que a artista desenvolveu sua mente sucede outro, principalmente
trato de seu pai, Geraldo de Barros. obra com referências explícitas a a partir do início do século XX, acre-
Pelos fones de ouvido, ouve-se um outros artistas e movimentos; que o ditamos que no caso do neoconcre-
sample musical com um jogo de diálogo entre ela e a arte concreta tismo é possível fazer uma concessão
7 Para descrição completa dessa palavras repetido em loop: “novo, é um dos mais evidentes ao longo e analisá-lo a partir do “desenvolvi-
instalação, ver COHEN, 2002. de novo? Novo, de novo? Nada de de sua história, mas que, por ter mento” (não no sentido de melhorias 54

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técnicas, mas de surgimento e indiretamente, provocaria na Holan- trial, resultando na abertura da


desdobramento) de um tipo arte não- da o neoplasticismo de Mondrian Escola de Ulm (…) em 1951.14
figurativa, de tendência construtiva, e Doesburg, e na Rússia o supre-
que foi ganhando força com o tempo. matismo de Malevitch, o raionismo Como se vê, a arte concreta foi
Ferreira Gullar aponta o início de uma de Larionov e o construtivismo de talvez uma radicalização da propos-
ideia neoconcreta a partir do cubis- Pevsner, Gabo, Lissitzky e outros11. ta das tendências construtivas. O
mo de Picasso e Braque, que mostra- termo, criado por Van Doesburg,
ram que era “possível criar uma Essa tendência construtiva da visava inicialmente não batizar
linguagem pictórica expressiva, sem arte chega ao Brasil via Escola de um novo movimento estético, mas
representar o real exterior”8. Gullar Ulm, fundada por Max Bill, repre- redefinir o “conceito de abstração,
afirma que dois fatores foram essen- sentante máximo da arte concre- em busca de uma maior adequa-
ciais para o nascimento da pintu- ta. A escola alemã superior da ção à verdade do trabalho de arte.”
ra cubista: a influência de Cézanne Forma, em muitos sentidos, foi Mas alguns anos depois, Max Bill se
sobre Braque e o gosto de Picasso um “prosseguimento industrial da apropriou do termo, conferindo-lhe
pelas esculturas negras9. “Por volta Bauhaus, adaptado às circuns- outro significado, focado na “auto-
de 1911/12, começaram a apare- tâncias históricas dos anos 50”12. nomia dos processos de produção
cer as primeiras letras desenha- Enquanto o informalismo começa- em arte” e “no caráter construtivo e
das nos quadros cubistas”10. Braque va a se proliferar na Europa e nos sistemático”15. Dessa forma, o artis-
também colava pedaços de jornal Estados Unidos, a América Latina ta, na arte concreta, foi transfor-
em seus quadros. O grupo cubis- – Brasil e Argentina, em particu- mado em um “espécie de designer
8 GULLAR, 1985, p. 13. ta se dissolveu quando a Primeira lar – retomava a tradição cons- superior, pesquisador de formas a
Guerra Mundial se iniciou. Braque trutiva e a transformavam no seu serem aproveitadas pela indústria”16.
9 Idem, p. 4. foi imobilizado em 1914 e esse fato projeto de vanguarda13. Com a arte
marcou o fim do grupo de vanguarda, concreta, as tendências construti- Essa produção se caracterizou pela
10 Idem, p. 7. segundo Ferreira Gullar. Apesar da vas alcançaram a consciência de sistemática exploração da forma
dissolução do cubismo, sua influên- sua maturidade. Essa tradição seriada, do tempo como movimen-
11 Idem, ibidem. cia se estendeu por toda a Europa, to mecânico, e se definiu por suas
pretendia operar duas transfor- intenções estritamente óptico-sen-
12 BRITO, 1999, p. 38. provocando uma espécie de reação mações/continuações básicas: a soriais. Isto é, contra o conteudis-
em cadeia. Gino Severini, pintor ita- incorporação radical de processos mo representacional, propõe o jogo
13 Idem, p. 37. liano que aderiu aos cubistas, fun- matemáticos à produção artística perceptivo – um programa de exer-
dou na Itália, com Marinetti, Boc- – levando às últimas consequên- cícios ópticos que fossem ‘belos’ e
14 Idem, ibidem. cioni, Carrà, Balla e outros jovens cias as ideias de um Vantonger- significativos em si mesmos, que
artistas e escritores, o movimento loo, por exemplo – e o estabeleci- significassem a exploração e a in-
15 Idem, ibidem. futurista. Na Alemanha, Marc, Ma- mento, com suportes mais firmes, venção de novos sintagmas visuais
cke, Kandinsky eram atingidos pela do projeto construtivo de integra- cujo interesse estaria na sua capaci-
16 Idem, p. 38. onda revolucionária que, direta ou ção da arte na sociedade indus- dade de renovar a possibilidade de 55

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comunicação. (…) A arte concreta de procedimentos matemáticos, uma corporificação das experiên-
é um agenciamento estético das além da integração positiva na cias sensoriais. Não à toa, o texto
possibilidades ópticas e sensoriais sociedade. Foi esse o movimento do cita por diversas vezes a fenome-
prescritas pela teoria da Gestalt.17 qual Geraldo de Barros participou nologia de Merleau-Ponty. “A ques-
– assim como Maurício Nogueira tão neoconcreta (…) é impreg-
Para ilustrar a intensa ligação Lima, Luís Sacilloto, Waldemar nar vivencialmente as linguagens
entre a Escola de Ulm e os artis- Cordeiro, Almir Mavignier, Franz geométricas, repropô-las como
tas brasileiros da década de 50, Weissmann, Ivan Serpa etc. –, e manifestações expressivas, recolo-
foi Max Bill quem ganhou o prêmio foram justamente essas caracte- cá-las como objeto de envolvimento
máximo de escultura na primei- rísticas – o objetivismo e a racio- fenomenológico19”. Na contra-mão
ra Bienal de São Paulo, realizada nalização exagerados– que susci- da racionalização vigente então, os
em 1951, com sua obra Unidade taram a crítica de uma parte dos neoconcretas buscavam uma corpo-
tripartida. Além disso, o cartaz artistas que, mais tarde, provoca- reidade da arte por não enxergá-la
do evento, criado por Antonio ram uma ruptura e lançaram outro como máquina ou objeto, como
Maluf, tinha estética concre- movimento: o neoconcretismo. Para faziam os concretistas, mas propon-
ta e apresentava o “jogo percep- Gullar, entretanto, o neoconcretis- do que ela fosse vista como um
tivo” citado anteriormente. mo não deve ser visto como uma “quasi-corpus”20, uma arte com mais
dissidência do concretismo, mas expressão e organicidade, maior
O crítico de arte Ronaldo Brito como uma tomada de consciência envolvimento do espectador – ou
analisa o concretismo como a dos problemas da arte contempo- melhor, transformação do espec-
primeira vanguarda moderna brasi- rânea. As críticas do neoconcretis- tador em participante, o que Hélio
leira. Isso porque, até então, não mo ao concretismo eram similares, Oiticica chamaria de “vivências”.
havia de fato sido realizado um no campo da linguagem visual, às
movimento moderno no campo das criticas de Merleau-Ponty à teoria O desenrolar das tendências cons-
artes visuais no país. A Semana de da Gestalt, no campo filosófico18. trutivas até chegar ao vértice e à
22 ainda não tinha sido entendi- ruptura de seu próprio projeto é
da em sua completude. Além disso, O manifesto neoconcreto publi- mais complexo e profundo do que
Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, cado em 23 de março de 1959 no este artigo é capaz de desenvol-
Cícero Dias, Guignard e Portinari Suplemento Dominical do Jornal ver. Acreditamos, entretanto, que as
17 Idem, p. 41. também não estavam completa- do Brasil, escrito por Ferreira Gullar principais características do concre-
mente livres do caráter representa- e assinado também por artistas tismo e do neoconcretismo foram
18 Idem, p. 56. cional das artes – e a arte moder- integrantes do movimento, como apresentadas, e nos fornecerá infor-
na se inicia com essa ruptura com Lygia Clark, Lygia Pape, Almícar de mações suficientes para o que este
19 Idem, p. 76. a representação. Já o concretismo Castro e Franz Weissmann, conde- artigo propõe: estabelecer pontos de
propunha a arte não-figurativa, nava a aridez objetiva do concre- encontro entre o neoconcretismo e
20 Manifesto neoconcreta in BRITO, não-representativa, o racionalismo tismo. O documento clamava por a obra de Lenora de Barros, assun-
1999, p. 10-11. formalista, objetivista, privilegiador mais sensibilidade, subjetividade, to que desenvolveremos a seguir. 56

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Pontos de encontro serviu de inspiração para Lenora de


Barros, que, algumas décadas depois,
Quando pensamos em um paralelo a fez uma série de trabalhos usando o
ser traçado entre a obra de Lenora de mesmo material21, ou seja, bolinhas
Barros e a obra dos artistas neocon- de ping-pong. Foi em 1990, durante a
cretos, o primeiro ponto que se faz realização de sua primeira exposição
necessário evidenciar é a questão individual, em Milão, intitulada Poesia
mais enfatizada no manifesto neocon- é coisa de nada, que Lenora de Barros
creta: o pedido e a atenção pela trouxe ao público, pela primeira vez,
participação do outro, a criação de suas bolinhas de ping-pong. Como
vivências, a elaboração de uma obra o texto é um elemento praticamen-
“quasi-corpus”, que deve ser percor- te intrínseco à sua obra, as bolinhas
rida, preenchida pelo público – aqui, tinham impressões em sua superfície
não apenas um mero público, mas um que, juntas, formavam a frase título
público participante. Os neoconcre- da exposição em questão. Alguns
tas criticaram a extrema objetivida- anos mais tarde, em 1994, as boli-
de e racionalização dos concretos e nhas voltaram a aparecer no traba-
romperam com a proposta até então lho de Barros, desta vez na instalação
vigente colocando o corpo do espec- Ácida Cidade, dentro da Mostra Arte
tador em posição tão protagonista Cidade – A cidade e seus fluxos, em
quanto a obra em questão. Assim, a São Paulo. Nesta obra, bolinhas de
obra de arte deixou de ser apenas um ping-pong caíam do teto de tempos
objeto, uma matéria, e passou a ser em tempos, e quando batiam no chão,
algo para ser experienciado, vivido. ativavam a parte sonora do trabalho:
Os Bichos de Lygia Clark, por exem- uma voz gutural que dizia “a cidade
plo, pedem o toque e o manuseio do oxida”. Em 2001, na primeira indivi-
Figura 2 – Ping-pong (1966), L. Clark espectador, assim como Ping-Pong dual da artista no Brasil – O que há
(1966), que também pede a participa- de novo, de novo, pussyquete? –, mais
ção do outro (ver figura 2). O material uma vez as bolinhas ocuparam um
usado, inclusive, nesta última obra, lugar de destaque no espaço expo-
já deixa explícito a necessidade de sitivo. Houve ainda outras ocasiões
outra pessoa para compor a obra, isoladas em que a artista desenvolveu
21 Em entrevista, Lenora afirma afinal, não existe ping-pong unilate- trabalhos usando o material espor-
que, a partir de seus trabalhos com ral. A ideia do próprio jogo é ser, no tivo como matéria-prima principal
bolinhas de ping-pong, Lygia Clark mínimo, uma dupla. Uma segunda de suas obras, como em Ping-poems
se torna bastante presente em sua presença é essencial, uma presença para Boris (2000) e Devolução (2008).
obra. Ver XAVIER, 2011, p. 68. participante. Essa obra de Lygia Clark Todos esses trabalhos com bolinhas 57

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de ping-pong, por aparecerem diver- estendida, o tempo como dura-


sas vezes na trajetória da artista, são ção e virtualidade. Ao invés de
batizados pela própria artista como uma obra seca, pontual, estáti-
“ping-poems”. Mas não é apenas na ca, a obra tanto de Lenora quanto
utilização do mesmo material que a dos neoconcretistas é algo para ser
obra de Lenora de Barros apresen- experimentado em sua duração.
ta elementos em comum com Lygia
Clark. A presença do corpo da artista As instalações sonoras de Barros
também pode se equivaler à propos- são uma boa forma de ilustrar essa
ta da neoconcreta (ver figura 3). ideia. Em As paredes têm ouvidos
(2011), apresentada na Galeria Milan,
Apesar de a questão textual ser algo em São Paulo, Barros sonorizou uma
mais inerente aos concretas – prin- parede com alguns versos recitados
cipalmente por conta do movimen- por ela mesma. Próximo à parede,
to da poesia concreta, que foi muito uma mesa de MDF deixava à dispo-
forte dentro da onda concretista sição do público copinhos de vidro,
que chegou ao Brasil –, a presença para que as pessoas pudessem “xere-
de texto é recorrente em diversos tar” melhor, ouvir o que se dizia do
trabalhos neoconcretas também. outro lado da parede. Essas questões
Podemos citar como exemplo relacionais, que estendem o tempo
Lembra (1959), de Ferreira Gullar, de duração da obra, parecem ser um
e Isto não é uma nuvem (1983), elemento em comum entre Barros e
de Lygia Pape. Ambos os traba- os neoconcretas. A fenomenologia
lhos foram classificados, por seus merleau-pontyana também pode-
próprios criadores, como Poema- ria ser algo para debatermos, esta-
objeto e Poema-visual, respecti- belecendo um diálogo entre os dois
vamente. Tais “categorias” – se é objetos de estudo deste artigo, mas
que podemos chamá-las assim – preferimos desenvolver esse ponto
estão bastante sintonizadas com a em outro momento, para darmos a
proposição de Barros, que também profundidade necessária de análise.
desenvolve Poemas visuais. Aqui, essa discussão seria superficial.

O texto e o corpo participante pare- Por enquanto, satisfazemo-nos


cem ser os principais elementos em apontar três pontos de diálo-
Figura 3 – Coisa em si (1990), L. de Barros em comum entre as duas produ- go entre Lenora de Barros e o
ções aqui pesquisadas. Podemos neoconcretismo: a presença do
citar também a temporalidade texto na obra visual, o corpo (do 58

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artista e do público) como partici- brasileira ocupa e nos ajuda a DUVE, Thierry de. Cinco refle-
pante da obra, e a ideia de tempo continuar a escrever a história da xões sobre o julgamento estético.
estendido (tempo vivenciado, arte no país. Uma história rica, Revista Porto Arte. Porto Alegre,
experimentado) dentro da obra. que está longe de chegar ao fim. v. 16, nº 27, novembro/2009.

Contentamo-nos em apenas apon- Referências FOSTER, Hal. Quem tem medo da


tar esses elementos em comum neovanguarda? In: O retorno do real.
entre os artistas por sabermos BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: São Paulo: Cosac & Naify, 1996.
que este é o início de uma pesqui- vértice e ruptura no projeto cons-
sa mais ampla, mas sabemos trutivo brasileiro. 2ª Edição. São GULLAR, Ferreira. Etapas
também que o diálogo entre produ- Paulo: Cosac & Naify, 1999. da arte contemporânea: Do
ções distintas transcende a mera cubismo ao neoconcretis-
similaridade entre obras de arte. CAUQUELIN, Anne. Teorias da mo. São Paulo: Nobel, 1985.
Também não é nosso intuito fazer arte. São Paulo: Martins, 2005.
uma comparação hierárquica, como PAPE, Lygia. Gávea de tocaia.
se a obra de Barros fosse uma mera CHIARELLI, Tadeu. Arte São Paulo: Cosac & Naify, 2000.
cópia dos neoconcretistas. Estamos Internacional Brasileira. São
longe de pensar assim e fazer essa Paulo: Lemos Editorial, 2002. XAVIER, Eduardo de Souza. Coisa
defesa. Apoiamo-nos, entretanto, em si: conversas com Lenora de
em Arthur Danto e sua ideia sobre COHEN, Ana Paula. O que há Barros. Porto Alegre: Zouk, 2011.
a arte contemporânea: a desobri- de novo, de novo, pussyque-
gação desta de se revolucionar a te? In: Artnexus, nº 42, novembro __________. Aspectos da poesia
cada momento. Lenora de Barros de 2002. Disponível em: <http:// concreta brasileira na obra de
tem uma produção própria extre- www.artnexus.com/Notice_View. Lenora de Barros. Monografia do
mamente criativa. Como já apon- aspx?DocumentID=7840>. Acesso Departamento de Artes Visuais
tamos, a apropriação que ela faz em 20 de junho de 2015. da UFRGS. Porto Alegre, 2009.
do trabalho de outros artistas é
extremamente legítima e honesta, DANTO, Arthur. After the end __________. Deslocamentos
justamente por colocar de modo of art: contemporary art and na obra de Lenora de Barros.
tão evidente essas apropriações. the pale of history. Princeton: XXX Colóquio CBHA, 2010.
Isto posto, acreditamos que desta- Princeton University, 1997.
car e selecionar pontos de encon- __________. ...umas, de Lenora
tro entre a obra dela e dos neocon- __________. O descredenciamen- de Barros: trânsitos entre coluna
cretas não diminui a produção da to filosófico da arte. Tradução de de jornal, proposição artísti-
paulistana, muito pelo contrário. Rodrigo Duarte. Belo Horizonte: ca e arquivo. Dissertação do
Serve para entendermos a posição Autêntica Editora, 2014. Departamento de Artes Visuais
atual que a arte contemporânea da UFRGS. Porto Alegre, 2012. 59

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A metalinguagem na Resumo

obra de Velazquéz
Esse artigo tem como objetivo fazer uma análise comparativa entre duas
obras de arte. A primeira obra a ser analisada é uma pintura de 1656, do

e Witkin:
período do barroco europeu, feita pelo pintor espanhol Diego Velazquéz –
Las Meninas. Essa análise tem como base a publicação de Michel Foucault,
“As palavras e as coisas”, de 1966. Já no período contemporâneo, a

uma análise entre


outra imagem é uma fotografia, , feita pelo fotógrafo e artista americano
Joel Peter Witkin intitulada Las Meninas (Auto-retrato, 1998). Nessa
imagem Witikin fez uma releitura do quadro de Diego Velazquéz.

a realidade e a
Palavras-chave: Diego Velazquéz. Joel Peter Witkin. Fotografia. Metalinguagem

representação
INTRODUÇÃO
Michel Foucault em As palavras e as coisas (1966), dedica o primeiro
capítulo à análise da obra Las Meninas, de Diego Velazquéz, pintor espa-
nhol do séc. XVII. Essa pintura concebida no período do barroco europeu,

Bruna Finelli1
coloca a possibilidade de discussão da relação entre a realidade e sua
representação em uma pintura. Foucault estabelece a interpretação entre

Vanessa Madrona
elementos presentes no quadro: o pintor, a imagem refletida no espelho
e a imagem de um homem no último plano que se apresenta “misterio-

Moreira Salles2
so” para o espectador. Essas três análises seriam a base do pensamento
sobre qual a parte da realidade está sendo representada dentro da obra.

Passados 332 anos, o fotógrafo americano Joel Peter-Witkin faz uma


releitura da obra Las Meninas, de Velazquéz, compondo um cená-
rio de elementos próximos da pintura original, porém com perso-
1 Artista plástica e fotógrafa, mestranda do programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais nagens atípicos. Observando a releitura de Witkin, surge a pergun-
Contemporâneos da Universidade FUMEC. ta sobre o que compõe um corpo normal e como socialmente o
conceito de normalidade se define? Witkin tenta dar respostas para
2 Doutora em Filosofia pela USP (Universidade de São Paulo) e professora da Universidade estas questões, com sua obra Las Meninas (Auto-retrato, 1998),
FUMEC. uma versão contemporânea da famosa pintura de Velázquez.

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Análise de Michel Foucault


sobre obra As Meninas,
de Diego Velázquez
Retomo neste artigo a análise da obra
Las Meninas de Velázquez feita por
Michel Foucault em seu livro As pala-
vras e as coisas publicado em 1966.

Foucault inicia o primeiro capítulo de


seu livro discursando sobre a figura do
pintor dentro da obra de Velázquez.

O pintor está ligeiramente afas-


tado do quadro. Lança um olhar
em direção ao modelo; talvez se
trate de acrescentar um último to-
que, mas é possível também que
o primeiro traço não tenha ainda
sido aplicado. O braço que segu-
ra o pincel está dobrado para a
esquerda, na direção da palheta;
permanece imóvel, por um ins-
tante, entre a tela e as cores.3

Quando lançamos o olhar para


o quadro, podemos perceber um
jogo de olhares do qual o espec-
Diego Velázquez, Las meninas, 1656 Fonte: http://www.theguardian.com/
tador faz parte da obra. O pintor,
quando se coloca dentro da imagem,
lança um olhar para quem o obser-
va e nesse caso, o observador é o
3 FOUCAULT, M. As palavras e próprio contemplador do quadro.
as coisas. Trad. Salma Tannus
Muchail. São Paulo: Martins Fontes, Porém, se olharmos detalhadamen-
2002. (p.3) te para o quadro, percebemos um 61

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espelho, e nesse espelho apare- espectador pelo quadro. “No senti-


cem refletidos o rei Luiz IV e a rainha do da profundidade, a princesa se
Mariana, encomendadores da obra. superpõe ao espelho; no da altura, é
Atentamente, o rei e a rainha refle- o reflexo que se superpõe ao rosto.”6
tidos no espelho, tomam o lugar do
espectador. Ou seja, o espectador O jogo de olhares presente na cena,
participa da obra como rei e rainha do quadro de Velázquez, segundo
e eles participam do jogo de repre- Foucault tem a presença do “sujeito”
sentação como se fossem os espec- — que é o mesmo — e esse, foi elidi-
tadores. “A fixidez opaca que ela faz do. E livre, enfim, dessa relação que
reinar num lado torna para sempre acorrentava, a representação pode
instável o jogo das metamorfo- se dar como pura representação.”7
ses que, no centro, se estabelece
entre o espectador e o modelo”.4
2. Análise da releitura da
Ao fundo do quadro, analisando sua
perspectiva, há uma porta aberta
obra de Velázquez feita
representada por cor amarela um por Joel Peter-Witkin
brilho, e nela uma figura humana.
A figura da infanta na pintura origi-
Sobre esse fundo, ao mesmo tempo nal é substituída por Witkin por uma
próximo e sem limite, um homem mulher que não possui os membros
destaca sua alta silueta; ele é visto inferiores, sentada sobre uma estrutu-
de perfil; com uma das mãos retém ra de metal que representa a arma-
o peso de um cortinado; seus pés ção de vestidos da época (crinolina).
estão pousados sobre dois degraus
diferentes; tem o joelho dobrado.5 Essa mulher possui os olhos vela-
dos e em sua armação de metal, a
4 Ibidem (p.5) Pouco se sabe sobre esse homem qual lhe dá a sustentação e suspen-
que aparece na obra de Velázquez. são de seu corpo, possui rodas
5 Ibidem (p.11) Ele é de carne e osso. Indubitável. para que ela consiga se movimen-
Joel Peter Witkin As meninas Talvez esteja entrando na cena. tar. Porém, perto das rodas de
6 FOUCAULT, M. As palavras e as (Auto-retrato), 1998 metal da armação, pode-se obser-
coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. Passamos agora para a figura da var pregos por toda a sua base.
São Paulo: Martins Fontes, 2002. (p.21) infanta. A princesa Margarida ocupa Nesse caso, a presença de defici-
o centro da cena, fazendo com que ência física é identificada por um
7 Ibidem (p.16) um grande X direcione o olhar do corpo que sofre, e muitas vezes 62

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

excluídos por serem sinônimos de segundo a descrição contida na bíblia. propõe ao analisar a pintura barro-
monstruosidade como anomalias. ca.Como na análise de Foucault em
Uma figura hibrída aparece na “As palavras e as coisas”, que identi-
Desta forma o fotógrafo presta fotografia e estabelece a metáfo- fica o local do modelo, do casal real
homenagem a um ser humano ra de sofrimento ao ser represen- que é, como espectador contempo-
privado da vida costumaz. Traz tado por colagens que fazem parte râneo, o receptor dos dias atuais,
a discussão para a sociedade da obra de Juan Miró mas também Witkin através de sua versão pesso-
contemporânea e para a arte. pode remeter a Picasso. Esse híbri- al do quadro de Velázques - Las
do aparece em escala maior que a Meninas - convida o espectador
Ao lado da infanta, a presença de dos personagens da obra e reforça contemporâneo para ter em conta
um cão. Ele parece estar desmaia- a idéia da dor, uma vez que a pintu- a dimensão social da deformida-
do, cansado. O motivo desse cansa- ra feita por Picasso representou o de corporal, do desvio do “normal”
ço pode ser observado em uma sofrimento das pessoas na época e a aceitação do próprio corpo e do
corda que liga o pescoço do cão da 2a guerra mundial quando a direito de expô-lo como deseja.
à mão da mulher. O cão é utiliza- cidade de Guernica, na Espanha foi
do para puxar a estrutura de ferro atacada por bombas de guerra. A presença do próprio Witkin no lugar
que sustenta a mulher. A metá- de Velázquez, valida catalíticamen-
fora de sofrimento e dor, é repre- O rei e a rainha permanecem na foto- te a sua criatividade artística, que
sentada na obra como elemento grafia de Witkin, propondo o jogo do deriva da escolha do tema, no intuito
principal do trabalho de Witkin. olhar, porém desta vez estabelecen- de levar o espectador contemporâneo
do a relação do olhar que a socie- a pensar no papel que ele ocupa na
O fotógrafo, além de trazer as ques- dade contemporanea se volta para sociedade, ou seja, o ponto de vista do
tões de dor, sofrimento, contesta o a situação observada na fotogra- rei e da rainha desse tempo; o ponto
olhar das pessoas “normais” dentro fia: a deficiencia e o preconceito do de vista daquele que detém o poder.
do padrão de normalidade intitula- desvio do padrão de normalidade.
do pela sociedade quando coloca Referências
uma venda no olho da mulher.
CONCLUSÃO FOUCAULT, M. As palavras e as
A figura indubitável na obra de coisas. Trad. Salma Tannus Muchail.
Velázquez também aparece na obra de A fotografia está representada como São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Witkin porém como a representação a metalinguagem da obra e da técni-
de sofrimento máximo para seguido- ca a partir do momento que o fotó- EMBLIN, Richard. Joel-Peter
res da religião católica, o Cristo. Ele é grafo se coloca no lugar do pintura Witkin in Colombia. Montevidéu,
representado com os cabelos gran- na pintura original. Nesse momen- set. 2008. Disponível em: <http://
des, tapa sexo e com a coroa de espi- to pode-se questionar a represen- rising.blackstar.com/joel-pe-
nhos na mão, metáfora de sofrimento tação da realidade presente nessa ter-witkin-in-colombia.html>.
pelo momento em que foi sacrificado obra atravéz do discurso que Foucault Acesado em: 10 de set. 2015. 63

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Brechas na linguagem:
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

compartilhamentos,
Este artigo propõe uma reflexão acerca da linguagem escrita e seus
desdobramentos em arte: escrita, escritura, escuta, palavra. Os questionamentos

criações e intimidades
levantados abordam Roland Barthes, Michel Serres e Manoel de Barros como
aliados para a (des)construção de outra escrita acadêmica sobre arte. Em
busca de maneiras de escapar da doce linguagem codificada (textos analíticos,
críticos, descritivos ou explicativos) abrindo brechas para uma escrita poética.
A poesia integra a face dura da linguagem, seus ruídos, passos, toques na
tua pele, na língua inquieta dentro da boca. Acionando no texto uma mescla
de sabores que necessitam do encontro com o outro para que seu trajeto seja
concluído, perdido, devorado ou desviado. Dentro dos formatos, até onde

Mariana Brites1
sobrevive a poesia? Ainda tem lugar, tem corpo? Como falar de arte sendo
arte? Como tornar o texto mais palatável à imaginação? A escrita é feita
de enxertos de vontades sobre algumas folhas, o corpo é feito também de
retalhos compostos das experiências sentidas. Escrevo esse texto, mas tenho
muito mais que duas mãos. Os estudos em arte, produzindo conhecimento
dentro da universidade, tem a possibilidade de afetar a estrutura que envolve
o próprio código da instituição. A maneira de escrever é também modo de
resistência poética. Não há nada genial em escrever, pois a escrita por si
só é um código dominante, elitista e formal, que dispensa intimidades.

Palavras chave: Escrita. Resistência poética. Poesia.

Abstract

This article proposes a reflection on written language and its development in


art. The questions raised address Roland Barthes, Michel Serres and Manoel
de Barros as allies to the (de)construction of a different academic writing on
art. Persuing different ways to escape the sweet (SERRES) codified language
(analytical texts, critical, descriptive or explanatory) and to open it to a poetic
writing. Poetry is on the hard side of language with its noises, footsteps, touches
1 Performer, performadora, poeta, pesquisadora e atriz. Mestranda em Poéticas Contemporâneas on the skin, the restless tongue inside the mouth. Triggering a mix of flavors that
(PPG_ARTE), com orientação de Maria Beatriz de Medeiros, na Universidade de Brasília – UnB. need the encounter with the other so that your path is completed, lost, swallowed
De 2012 a 2014 integrou a Coletiva Tete a Teta. Desde 2010 integra o Grupo de Pesquisa Corpos or diverted. How far does poetry survive within the common text formats? Does
Informáticos e trabalha em parceria com outrxs artistas. Atualmente pesquisa performances it still have a body? How to talk about art being art? How to make the text more
urbanas e suas possibilidades poéticas de registro. bearable to imagination? Writing is made of grafts over some leaves, the body is 64

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a patchwork of lived experiences. I descritiva ou de função fática) e, ou desviado. Dentro dos forma-
write this text, but I do have much ao mesmo tempo, na criação de tos até onde sobrevive a poesia?
more than two hands. Studies in uma outra forma de organizar o Ainda tem lugar, tem corpo?
art producing knowledge in the código escrito buscando a função Como falar de arte sendo arte?
university have the power to change poética da linguagem. Nesse cami-
the institution’s structure code nho encontro Roland Barthes, Tendo a poesia passado por
itself. Writing is also a way of poetic Manoel de Barros e Michel Serres. tantas fases históricas quando
resistence. There is nothing brilliant aqui for referido o termo poesia
about writing because writing itself Interessa trazer reflexões e escri- sugere-se pensar em um concei-
is the dominant code, elitist and tos de Manoel de Barros, poeta to de poesia em deslocamento,
formal, which exempts intimacies. mato-grossense da roça, junto aos proposto por Manoel de Barros:
pensamentos de Barthes e Serres,
Keywords: Writing. Resistance teóricos franceses de formação Poesia, s.f.
Poetry. Poetry. acadêmica, afim de cruzar teoria
lingüística e filosófica com apanha- Raiz de água larga no rosto da noite
dos de poemas metalingüísticos.
Poesia, qual? A teoria está miscível na própria Produto de uma pes-
poesia, aconchego das palavras soa inclinada a antro
Esse artigo é composto mais de na forma. Os três autores, que são
inquietações do que certezas. De até agora citados, possuem entre Remanso que um riacho faz
dentro do meu quarto, nos cader- si maneiras diferentes na busca de sob o caule da manhã
nos ou na máquina, traço com-tato experenciar na escrita outra forma,
íntimo com a escrita que esquen- movimentam a linguagem nessa Espécie de réstia espantada que
ta enquanto o vento frio entra pela busca criando, cada qual em seu sai pelas frinchas de um homem
janela em um eterno anúncio de nicho, o outro do outro: as palavras
chuva que nunca vem. Escrevo em saborosas de Serres, o prazer em Designa também a arma-
primeira pessoa por que escrevo Barthes e a simplicidade de Barros. ção de objetos lúdicos com
comigo e como essa experiência de os empregos das palavras
escrever em arte me move. Aqui, O campo específico para essa
então, escolhi essa possibilida- conversa é o das escrituras2 Imagens cores sons etc.- geral-
de de me anunciar, manter-me no acadêmicas em Arte, suas possi- mente feito por crianças pesso-
mesmo espaço, não me esquivar. bilidades como registro poético as esquisitas loucos e bêbados
Para que seja possível a conver- acionadoras em potencial uma
sa, percorro o caminho fazendo mescla de sabores que neces- (BARROS, p. 181, 2010)
aliados na decomposição da escri- sitam do encontro com o outro
2 O conceito será explicado em ta-padrão (aquela que se identifi- (leitura) para que seu trajeto seja O texto se torna também pulsan-
seguida. caria como meramente explicativa, concluído, perdido, devorado te em brincadeira com a própria 65

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estrutura da língua, cria esses Se a palavra fosse agora a água científicos (mais facilmente locali-
remansos a que o poeta se refere. no leito de um rio, bem delimitado zado nas áreas de exatas/saúde).
Entretanto, é nesse lugar que por suas margens, a poesia seria o A escritura abarca o que chama-
a poesia se torna o avesso de transbordamento do mesmo. O rio mos de literatura, incluindo a
mansa, é a parte da linguagem que em seu transbordamento transpas- poesia, os devaneios, a possibili-
morde, que dá beira para que a sa sua própria margem, faz curva dade de criação de novas poéticas
imaginação surja. “A palavra poéti- em tudo, umedece e desliza nas e conceitos, é o lugar do jogo no
ca tem que chegar ao grau de brin- normas do percurso usual do rio. texto, entendido como espaço de
quedo para ser séria” (BARROS, Reinventa seu fluxo. Dessa água, sedução. Ou como afirma Barthes
p.345, 2010) e aí reside também o em movimento, nascem plantam “um meio seguro permite distin-
desafio em meio às formatações vagabundas (criações) que se guir a escrevência da escritura: a
exigidas para os textos em arte. Em alimentam de poesia, ervas dana- escrevência se presta ao resumo,
que espaço e como criar esse lugar dinhas que esperam o encontro a escritura não.” (BARTHES, 1979,
de brinquedo? Por quais brechas para que surjam novas possibili- p.68). Essa escrita poética, poesia
escorrer imagens na linguagem? dades. O próprio rio se reescreve ou função poética da linguagem
Pesquisar em artes, auto pesqui- a partir de seu transbordamen- caminham no rastro das escri-
sar-se em artes, é a possibilida- to, bem como a poesia sugere turas, dispensam descrições.
de de transpor também para o novas formas de escrita a partir As escrituras fendem a escrita,
texto, maneiras outras de produ- de um código verbal já existente. E miscigenam-se permitindo que o
zir conhecimento. Produzir, sobre- vice-versa, ou visse-verso, o texto encontro entre ambas seja uma
tudo, outras formas sensíveis de também se mantém inconstante, decomposição da linguagem.
conhecimento que sejam menos não há eternidade que o caiba. Misturando os códigos, as fron-
rígidas e determinantes a ponto teiras se tornam mais fluidas.
que o texto também poético seja
capaz de suscitar os sentidos. O Decompondo a linguagem É preciso então conservar toda a
leitor não só pode receber o escri- precisão desta imagem; isto quer
to, mas compõe com ele. A palavra Na beirada da metalinguagem, dizer que se finge voluntariamen-
catalisa, semeia o acordo silen- desviamos em busca aos meios te permanecer no interior dessa
cioso, de onde podemos retirá-la”. de se subverter o código padrão consciência, e que se vai des-
(SERRES, p. 85, 2001). A poesia para produzir outras maneiras de mantelá-la, abatê-la, desmoroná-
grita, esparrama suas percepções conhecimento em arte. Para que -la, por dentro, como se faria com
e não se fecha em suas impres- as funções da linguagem não se um cubo de açúcar embebendo-o
sões. A função poética da lingua- confundam no decorrer do texto, em água. (BARTHES, p.70, 2003)
gem cria um desvio na função serão utilizados os conceitos de
normativa da língua, propondo Roland Barthes de escritura e Seguindo, na imagem proposta
outras formas de espaço inclusi- escrita. A escrita está para textos por Barthes, em que dois mate-
ve a própria inutilidade dos versos. mais técnicos, não-poéticos e riais totalmente miscíveis entre 66

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si geram outro material, podería- não seria a escritura o próprio Texto em registro
mos deslocar para essa imagem duro e o princípio da decom-
os conceitos de escritura e escri- posição reino da linguagem? O acionamento da escrita como
ta. O resultado de tal mistura modo de registro poético de ações
seria tal qual uma outra escrita Todavia, outrar-se na escri- performáticas pode ocorrer por
para a arte. Michel Serres, em seu ta, aventurar-se na mescla e na n motivos. Dentre eles destaco
livro Os Cinco Sentidos, desfi- busca de um texto possivelmen- alguns possíveis: falta de plane-
la essa possibilidade de escrita, te aberto em significados, inana- jamento (já que muitas das vezes
compõe seu pensamento filosó- lisável por se encontrar no lugar essas ações ocorrem sem prepa-
fico, a partir de um texto poéti- da mistura, é também buscar ro prévio e sendo o registro conse-
co, que tem por intencionalidade a minha própria decomposição quência e não prioridade da ação
transpassar tanto a escrita como enquanto autora. A linguagem é preciso repensar os modos de
a escritura. Durante a leitura do existe em todos nossos meios de registro), pelo não-desejo de regis-
livro é possível sentir a mescla, comunicação e como decompô-la tro audiovisual (ao mesmo tempo
o copo de água com açúcar, sendo ainda possível a transmis- em que através do próprio texto é
entre as funções do texto. Serres são sensível de alguma ideia? possível identificar imagens gera-
aborda em seus livros os concei- das no texto, imagens imagina-
tos de doce e de duro. Embora Decompor-me, e decompor a das, entre autor e leitor) por estar
água com açúcar seja uma mistu- linguagem pela qual me expresso, só em performance e também pela
ra evidentemente doce ao pala- convoca a escritura, o duro, para impossibilidade do registro audio-
dar, mas nesse caso, nessa repensar o próprio reino da lingua- visual devido a regras do próprio
mistura possível de funções de gem (SERRES, 2001) condiciona- espaço onde se está agindo. Essa
um texto, antes ela seria uma do pela sensação de fácil diges- última situação foi um dos fato-
bebida dura, onde a mistura se tão das propriedades do doce. Os res que me levou a gerar o registro
faz inanalisável (p.75, 2001). códigos verbais, ao se desdobra- escrito que se segue. Realizado em
rem em si mesmos, questionam a Santa Fe, bairro da cidade colom-
O doce é acetinado, macio e capacidade de bagunçar ou rees- biana de Bogotá, a ação Coração
licoroso (SERRES, p.111, 2001) truturar a linguagem. Ampliam a da Terra foi impedida pela própria
bem como a função da escri- forma e a poesia compõem uma comunidade de gerar registro. Ao
ta. O doce traz os signos e, com maneira possível de se estar no mesmo tempo em que a comuni-
eles, sua significação, ao passo mundo questionando-o e não dade do bairro que é controlado
que quando o dado (objeto refe- somente aceitando normas. As por milícia, traficantes e prostitu-
rido) se assemelha ao duro palavras dançam dentro do corpo tas (nossas anfitriãs nesse espaço)
caminha próximo às escrituras, que as embala em escritura, não não nos impediram de prosseguir
isto é, toca a pele, rasga certe- estão sozinhas dissociadas do a ação. Desligando as câmeras
zas, deixa dúvidas, gera refle- corpo. Escrituras são sobretudo e fazendo a ação, várias pesso-
xões e ações. A esta maneira, secreções, canal líquido propício. as chegaram até nós curiosas, a 67

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ausência da câmera nos aproxima estava se modelando refletiam


daquela louca que anda nas ruas também novos processos pesso-
do bairro que se chama Shakira e ais. Assim, para o registro da ação,
nos explica o que sentiu a partir da essa outra forma de escrita que se
ação, tipo de sensação que regis- busca, seja escritura, que também
tramos corporalmente. Escrever chamarei de escrita performática, já
registros e revisitá-los é também que nesse texto que tanto Barthes
percebê-los em um lugar onde quanto Barros desejam é necessá-
nem a poesia é capaz de registrar rio o espaço para o jogo - bem como
todas as nuances ocorridas. Esse na performance - as escritas perfor-
lugar de fragilidade do registro mam sensações: escritura e poesia.
potencializa nosso próprio corpo e
memória, cada qual a seu modo, A escrita, a qual estou me referin-
do, é mutante. Ao reler esse texto, já
Criei e recriei durante os quatro dias seria capaz de propor novas forma-
em que estive em performance esse tações e alguns sumiços para as
texto em um caderno pequeno e roto palavras aí congeladas no papel. O
de viagem. Ao retornar para o Brasil, registro poético se permite mudar,
senti necessidade de um suporte embora seja texto não deseja para
que fosse favorável a erros e rasu- si a eternidade que alguns livros
ras bem como meu corpo e minha parecem ter. A partir da leitura, que
escrita estiveram. A máquina de é em si mesma mais uma forma de
escrever surgiu como uma possibi- encontro, é possível em um registro
lidade e nela encontrei uma outra não descritivo que formas varia-
estrutura para conservar a escri- das de interpretação sejam feitas
ta: ela faz ritmo, ela não apaga e e a partir da imaginação literá-
evidencia os erros. Assumi o regis- ria que surjam diferentes imagens
tro antigo. Naquela época já havia através de um mesmo texto.
uns dois meses que a ação tinha
sido feita e transcrevi. Com os erros Assim, a performance, bem como
de uma letra que se entende pouco, a pintura ou o teatro, deixa de ser
que denuncia o balanço do ônibus somente a parte final de um proces-
e os pensamentos incompletos. so de criação e se posiciona em mais
Naquela noite que sentei para essa um lugar de início de desdobramen-
transcrição, revivi o texto e minhas tos em mescla direta com a literatu-
próprias memórias. As costuras e a ra e a função poética da linguagem.
organização visual em que o texto Adquirindo mais potencialidade. 68

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Para a performance é importante AO MORDER A ISCA, INCORPO-


pensar esse lugar mutável enquan- ROU-A O QUE SALVA ENTÃO É
to possibilidade de registro, pois não ESCREVER DISTRAIDAMENTE”
visa registrar ipsis litteris a ação
ocorrida. A busca pelo registro poéti- CLARICE LISPECTOR
co (ausente de vídeos ou fotogra-
fias) vem de corpo afetado pelas Escrever como forma de existir foi,
sensações da performance. O corpo e ainda é, a maneira mais sensível
escreve depois de experienciá-lo. de trazer à superfície minhas sensa-
Nesse sentido, o texto e a pulsão da ções. Depois do corpo, dos batimen-
escrita reconhecem o corpo como tos cardíacos, das viagens que meus
espaço primeiro da experiência, a líquidos fazem por dentro, a palavra
pele como o meio onde as coisas me abrigou num estranho confor-
do mundo se misturam (SERRES, to. Conforto de cama-de-pregos,
p.76, 2001), o texto propõe outras pois o encontro meu com a escri-
imagens, inexatas, esse texto não ta aconteceu quando por dificulda-
é verossímil e seu desejo de ampli- de de espaço de fala, as palavras
tude coincide com a capacidade da escritas soavam como minha própria
pele se afetar e trocar com o mundo. voz que mais uma vez se silencia-
vam numa folha de papel já que
quase nunca eram compartidas com
Construindo laços e outrem. Relativamente contemporâ-
neo aos meus primeiros processos
de criações artísticas, as palavras
dissolvendo destinos:
intimidades e os cadernos foram se tornan-
do cada vez mais eu. E eu cada vez
“ENTÃO ESCREVER É O MODO mais sem-vergonha, no tempo todo
DE QUEM TEM A PALAVRA COMO nós. O caderno carinhosamente
ISCA: A PALAVRA PESCANDO O grita, as escritas afetadas, compu-
QUE NÃO É PALAVRA. QUANDO nham ritmos e formas diferentes.
ESSA NÃO-PALAVRA – A ENTRE- Sempre usei cadernos sem pauta,
LINHA – MORDE A ISCA, ALGUMA gosto do cheio de vazio que a folha
COISA SE ESCREVEU. UMA VEZ lisa tem. Um cheio de vazio como a
QUE SE PESCOU A ENTRELINHA, poesia – superfície de possibilida-
PODER-SE-IA COM ALÍVIO JOGAR des. De alguma forma era o grito
A PALAVRA FORA. MAS AÍ CESSA corpo que ressoava no caderno.
A ANALOGIA: A NÃO-PALAVRA, Nós, eu e o que escrevia, fomos nos 70

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aproximando como numa dança de detalhes na imanência do vivido. O frases soltas, adormece em casa,
uma música totalmente desconheci- texto transpõe o corpo, imagetiza manda cartas e escreve disserta-
da. Ao mesmo tempo em que como sensações, mas não poderá dá-las ção. Escrever compõe também a
Clarice Lispector, Fernando Pessoa, ao exato. O corpo sincero se insere. esfera do indizível. Todos escreve-
Alice Ruiz e Gilberto Gil em suas mos, reorganizamos e compomos
composições propiciam outra sensa- Cadernos e mais cadernos, acumula- com a linguagem que permeia todos
ção: pairar sobre um escrito, uma dos e preenchidos, alguns perdidos, os códigos. Mas escrever, tão somen-
escritura (s)em dúvida, desfrutá-lo. abrigam também outra linguagem, te, não basta. É preciso, ao mesmo
em que os códigos mais doces e dire- tempo que impreciso também, criar
No processo de fazer artístico – prin- tos reinventavam-me na existência na linguagem e na performance
cipalmente com a performance – o no mundo. Assumo a dureza que é seus próprios desvios poéticos. A
caderno se mostrou como parte escrever sobre o meio, no proces- busca do registro de performance
íntegra minha e das ações criadas, so, nesse ponto nevrálgico da escri- através do texto poético é mais uma
comecei a percebê-lo como indisso- ta onde não há doçura. O terreno é forma de (im)precisar a linguagem,
ciável de mim, lá vários apontamen- arenoso em possibilidade, instável, assumindo também o lugar duro de
tos de rotas surgiam, persistiam, mas mas fértil. “O essencial fica sendo registro e ampliando os rastros e
no corpo é que tudo se torna som. a multiplicidade. ” (SERRES, p.273, sensações das ações executadas.
Os processos de criação que trans- 2001) A escritura se apropria do devir
bordavam inclusive a literatura e a e do movimento do próprio corpo e Referências Bibliográficas
partilha dos cadernos (antigos diários da construção de si como espaço de
secretíssimos) surgiu de forma sutil, arte. Se por vezes escrevo, sinto no BARROS, Manoel. Poesia Completa.
esboçando início de um reconheci- escrito voz, movimento, gosto, baba, São Paulo: Leya, 2010.
mento próprio, nesse duro conforto suor e gozo. Escrevo e escorro.
que o ato de escrever me deslocava BARTHES, Roland. O prazer do
e do prazer corporal que me dava. Ao deslocar o ato da escrita das insti- texto. Trad.: J. Guinsburg – São
Codificar e bagunçar mais ainda as tuições que pautam seus conheci- Paulo: Perspectiva, 2010.
minhas sensações vividas, foi então mentos (instituições, editais, ques-
que comecei a me atentar para as tões judiciais) encontramo-nos com BARTHES, Roland. Roland Barthes por
voltas que surgem em alguns escri- poetas populares, línguas indíge- Roland Barthes. Trad.: Leyla Perrone-
tos meus, escritos esses sinuosos de nas, inventadas, códigos pessoais Moisés –São Paulo: Cultrix, 1977.
alvo não muito nítidos. Ao reler-me alfabetizados ou não. “O prazer do
que constatei que sou ruim para fazer texto seria irredutível a seu funcio- LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio
descrições das coisas, mas tudo bem namento gramatical, como o prazer de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
isso não pesa muito aqui. A escritu- do corpo é irredutível à necessidade
ra aparece como a curva do caminho fisiológica. ” (BARTHES, p.24, 2010) SERRES, Michel. Os Cinco Sentidos.
do texto, forma mais cativa de falar A escritura como modo de reinven- Trad.: Eloá Jacobina – Rio de
sensações, de adjetiva-las, compor ção de si escorre pelos muros em Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 71

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VI

Escritos de “artista-etc”
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

Diante do alto desempenho que as universidades conferem à produção artística


desde os meados da década de 1960, e antes, com a guinada da produção de
manifestos e escritos de artistas de vanguarda e, depois, de neovanguarda,
torna-se imprescindível a reflexão sobre o papel da escrita nas atividades dos

Gregório Soares Rodrigues


artistas até a atualidade, que, desde então, revela um lugar de fronteira entre
as atividades teóricas, históricas, críticas e criativas (i.e. poéticas) nessas
produções. O objetivo desta proposta é explorar, de forma especulativa, o

de Oliveira1
panorama das estruturas de agenciamento e funcionamento por meio da escrita,
dentro do contexto da produção artística, e especificamente, partiremos dos
textos e reflexões do artista e pesquisador Ricardo Basbaum, com enfoque
no trabalho “Manual do artista-etc” que possui o caráter de reflexão a respeito
dos trânsitos entre artes visuais e discursos verbais, arte e linguagem,
práticas poéticas contemporâneas e cenário de atuação do fazer artístico.

Palavras-chave: Escritura. Visualidades. Poética. Arte contemporânea.

Abstract

Given the high performance that universities give the artistic production since
the mid-1960s and before, with the shift of production of manifestos and writings
of avant-garde artists and then from neovanguarda, it is essential to reflect
on the Writing role in the activities of artists until today, since then, reveals a
place of frontier between theoretical activities, historical, critical and creative in
these productions. The purpose of this proposal is to explore, speculatively, the
panorama of agency structures and working through writing, within the artistic
production context, and specifically, will leave the texts and reflections of the
artist and researcher Ricardo Basbaum, focusing at work “Manual de artista-etc”
that has the character of reflection about the transits between visual arts and
verbal speeches, art and language, contemporary poetics and artistic practices.

Keywords: Scripture. Visualities. Poetics. Contemporary art.

Esta é uma fala que se inicia no centro de um problema que já pode ser anun-
1 Artista e Mestre em Poéticas Contemporâneas pelo PPG-Arte/UnB. ciado pelo seu título. Ou melhor, independente e antes disso que o título signi-
Email: gregoone@gmail.com fica, o problema é anunciado por ser apenas um título, escrito. Melhor ainda, 72

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

antes de apenas ser um título escri- que tomando para si a preferên- insistindo por manter um pensamen-
to, proposto com palavras, o contex- cia ou a prioridade de dizer o lugar to mais propenso a defender suas
to é de uma fala, de um discurso. de uma escritura “sensível”. Seria diferenças às suas ressonâncias.
Que pressupõe (para não dizer ainda preciso perguntar, então, antes de
que, na verdade, exige), um discurso tudo, dois pontos: 1) o que é uma Minha hipótese provisória, que não
lógico, coerente e, principalmente, escritura sensível, 2) de artista? poderei defender aqui, mas que
verbal. E deste modo apenas pode venho desenvolvendo há quase
acontecer pelo pressuposto de que Começando pelo segundo, pergun- dois anos no mestrado prestes a ser
tal discurso ocorrerá em um deter- to-me pelo lugar do artista, então, concluído, e que é levado em conta
minado contexto, bastante especí- escritor. Minha suposição, pelo que nesta fala, é de que o problema,
fico: acadêmico, histórico etc., que posso entrever neste fundo obscu- na origem e no fim, de compreen-
também pressupõe exigências espe- ro, sem poder entrar em moti- são metodológica (já que coloca a
cíficas. Eu poderia estender mais vos políticos, é que tal proposição questão dos meios para os fins), é o
a descrição deste tapete no qual coloca como fenômenos antagôni- mesmo: o poético em questão; onde
pisamos, que permanece sempre em cos, mais uma vez, o antigo prob- este, por sua vez, define-se pela
perspectiva, para tentar dizer que lema da representação, que situa a pergunta sobre sua origem e fim, tal
o problema que apresento aqui é complexa relação entre as especi- como a famosa figura da serpente
um problema fundo, ou talvez, sem ficidades da palavra e da imagem. valeryana que come o próprio rabo.
fundo, para não dizer (já dizendo), Tal proposição categórica, de
obscuro. E este texto, pretende ser gênero, parece compreender que Diante disso, talvez seja possível
apenas um exercício, um esboço para haver a relevância, ou a confi- fazer uma defesa de que tal figura
para uma escavação que não acaba- guração do tema, o artista tem a “maniqueísta” dos artistas (aparen-
rá aqui, pois contínua, coletiva, em escrita como prática indiferente. Ou temente analfabetos), nunca exis-
coro, como talvez todas as que serão seja, por ser um artista que lidaria tiu. Ou, pelo menos, e talvez mais
apresentadas nessas mesas, nome- com a preponderância do “visual”, necessário, verificar que ela não
adas “escrituras sensíveis”, com do “plástico”, que tem como maté- corresponde com o “artista” que
o objetivo pré-anunciado de lidar ria a imagem, a priori, não lida com se tem configurado no contex-
com a questão metodológica entre a palavra, não lida com o discur- to da arte contemporânea, como
“processos poéticos” e textualidade. so verbal. Sem tentar construir um sabemos, bastante letrado.
cenário histórico e teórico rigoroso
A primeira questão que proponho (que seria necessário), é possível Tal contexto configurador de um
(e talvez já a última, devido o curto pressupor que tal imagem de “artis- corpus de artistas que se utilizam da
espaço-tempo que temos), é pensar ta”, recorre e conserva a clássica “escrita”, ou da “escritura” (enquan-
o porquê se configurou a especifici- pendência cultural entre pintores to ato da escrita), é relativamente
dade de uma (quase) categoria (ou, e poetas e suas matérias poéticas simples de ser identificado a partir
quase gênero) de uma “escrita de também categóricas, que parece das vanguardas modernas até a
artista”. Que adiciona, ainda, como nunca se resolver por completo, uma intensificação a partir das 73

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

décadas de 60 e 70, que além de estes “horizontes de variação” (p. de transformação do virtual “em
constituir uma nova conformação 21) na atuação do artista, que deve um empreendimento concreto”. É
das universidades na formação de se dar pela necessidade das ações e uma linha que, paradoxalmente,
artistas, configura um quadro opera- “negociações permanentes” que são define e une pelo entrelaçamen-
tivo na produção de obras visuais imperativas na atuação da forma- to, borrando a definição espacial
que inclui uma dimensão crítica e, ção da imagem do artista diante (e conceitual) “dentro / fora”. Ela
por isso, já, discursiva, que reverbe- no circuito de arte. Precisamente, é a própria imagem da mancha da
ra a crítica institucional, a teoria e a o uso do “etc” é a compreensão de “linha de fronteira”, da qual recorre
história da arte de maneiras justas que o artista não é um ser alheio à Basbaum para o exercício da atua-
e sobrepostas, ou híbrida, onde cena artística, e, portanto, não basta ção artística (e, já política), “posi-
visualidade e discurso permanecem que ele apenas produza “imagens”, cionando em uma zona intermediá-
entrelaçados, bem como o papel do mas também compreenda (e exer- ria, membranosa” (p. 40), tornando
artista no “circuito de arte”, que por cite a compreensão) que o percur- a linha “permeável, tátil, poética –
sua vez passa a colocar em pauta so que tais “imagens” fazem “fora menos fronteiriça”. O “artista-etc”
questões, por exemplo, de compre- do ateliê”, conforma elas mesmas. poderia ser compreendido, então,
ender o campo de atuação do Neste sentido, o “objeto” e a “maté- como um paradoxo deliberado.
“circuito de arte”, ou seja, suas defi- ria” da obra não são apenas os É, pois, um “modo de ser parado-
nições e agenciamentos, bem como materiais físicos, mas também xal”, para citar uma expressão da
seu próprio papel enquanto agente os metafísicos. Ou seja, não só o Anna Bella Geiger, que caracteri-
formador do cenário artístico). concreto das coisas, mas o concre- za: “um espaço aberto – um mundo
to da linguagem também é maté- aberto/ a coluna vertebral/ a passa-
Portanto, é exatamente no centro ria poética (esta, por sua vez, não gem de um modo de ser a outro”.
desse contexto, ou em sua ponta, é só a literal, mas também a figura-
que se encontra as questões de da). Sendo assim, ela é e não é, ao Deliberado da mesma forma são
uma plasticidade em diálogo (ou em mesmo tempo. Em matéria de escri- as decisões metodológicas, impos-
confronto) com a textualidade na ta, é conteúdo (o que se escreve de tas por tal problema de “escrever
atuação do artista contemporâneo. uma imagem); por outro, é a mate- imagem”. Estas impõem um para-
A citação que utilizo no título desta rialidade residual, literal do termo, doxo no qual é preciso assumir, pois
apresentação já indica, assim, uma o que ocupa espaço, uma substân- elas não funcionam aqui no seu uso
opção, ou, pelo menos, um exem- cia corpórea (com o que, como e comum, como um caminho “seguro”
plo de tentativa de resposta a este onde se inscreve uma imagem). a adotar, no sentido de uma “chave
problema. A referência (talvez óbvia, mestra”, de um manual fixo etc.;
para alguns), é ao livro do também Uma imagem-conceito possível, por são, antes disso, instrumentos de
“artista-etc” Ricardo Basbaum, meio do desenho, como exemplo viagem que afirmam o “metá-” no
chamado Manual do artista-etc desta atuação híbrida, é a propos- sentido etimológico de “método”,
(2013). Basbaum recorre ao “etc” ta “caminhando”, de 1964, por Lygia que está mais para o sentido de
com o objetivo de “apontar” para Clark. Segundo ela, é a possibilidade “trans”, de “depois” (do hodós, do 74

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

caminho), que poderia ser inter- sensível. É possível afirmar que faculdades superiores, que impedem
pretado também como aquilo que justamente aí, nessa “dupla expe- a possibilidade de medir “o peso da
está, de alguma maneira, para fora riência”, segundo Basbaum: sensibilidade” sobre as experiências.
do caminho; ou, que pelo menos,
assume no caminho a possibilidade sensorial e conceitual: [que] o tra- Neste contexto, a atividade poéti-
de transpassá-lo, de modificá-lo, de balho de arte, em toda a sua ma- ca parece ser a que ainda, e talvez
errá-lo, ou por fim, de duvidar do seu terialidade, exercita plenamente desde muito tempo, permanece neste
caráter “-lógico” e desviá-lo. É mais, a capacidade de funcionar como lugar de indecisão intermediária, no
assim, um descaminho, construído ponto de atração, um centro transi- meio e acima da linha; e a tarefa da
no próprio caminhar. As decisões tório que reordena tudo a sua volta; escrita, não necessariamente sensí-
poéticas do “artista-etc”, portan- esta potência de atração é resul- vel por si, parece permanecer com o
to, prezam pelo desvio, pela inse- tado do campo sensorial criado objetivo de produzir imagens sobre
gurança, pelas dúvidas, pelo erro, pelo trabalho, do padrão sensível as imagens, necessariamente sensí-
pela indecisão, que frequentemen- de pensamento que se dá com a veis, erraticamente, nem por isso
te retornam, voltam (ou re-voltam). intervenção; assim, esse campo menos ética e política, compreenden-
sensorial é inseparável da rede do e sentindo, o ser do problema que
O importante, nesta atuação híbri- conceitual que o coloca em ação e insiste, já sabemos, resultar poético.
da, segundo Basbaum, é não cair na que agora se vê forçada a reconfi- Possibilitando que discurso sobre a
“armadilha das cadeias de causa e gurar suas conexões. Assim, o tipo obra e discurso da obra se confun-
efeito, que podem envolver o traba- de escrita que podemos chamar dam, se emaranham, até ser neces-
lho de arte em um relacionamento de prospectiva fabrica estrategica- sário novamente retornar às pergun-
linear, estranho ao seu funciona- mente um sentido de atualidade tas fundamentais, fundas, obscuras,
mento, forçando-o a abandonar seu que designa e desenha a interven- das origens e dos fins, na tarefa da
potencial multiplicante”. O artista, ção proposta (Basbaum, p. 44). própria escritura sensível, tais como
deste modo, é aquele que escreve a que propôs Francis Ponge: “de onde
de dentro do seu trabalho: “intera- Apesar disso, é preciso ao menos vem essa diferença, essa margem
tuando com os trabalhos de modo pontuar, que a pergunta pelo sensí- inconcebível entre a definição de uma
a enfatizar sua atualidade e perten- vel, em relação ao sujeito pensante, palavra e a descrição da coisa que
cimento ao presente: a combina- falante, letrado, admitido artista ou a palavra designa?” (Ponge, 1997,
ção de texto prospectivo e traba- não, permanece tarefa da teoria do p.21). Certamente, esse pergunta só
lho de arte fabrica um agregado conhecimento. É isso que propõe, por pode ser respondida no mesmo tom,
conceitual-sensorial que de fato exemplo, Emanuele Coccia, em uma ou seja, no tom do próprio Ponge:
opera como produção real” (p. 43). física e antropologia do sensível, 2010.
Para ele, as “imagens” é o próprio Como se pode escrever? Talvez se
O que nos insere agora, retor- do sensível, e estas se dão pois trate de uma espécie de piedade, de
nando, por fim, no primeiro ponto “existe algo de intermediário” que, de solicitude, enfim, tenho o sentimen-
da pergunta: sobre a escritura alguma forma, é obscurecida pelas to de instâncias mudas por parte 75

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

das coisas, solicitando que final-


mente nos ocupemos dela, que as
digamos...
Por que não dizer, indo um pou-
co mais longe (ainda não é muito
longe), que os próprios homens, na
sua maior parte, nos parecem pri-
vados de palavras, são tão mudos
quanto as carpas ou os pedregu-
lhos? Não é verdade que eles não
dizem nada, que quando falam o
que dizem é nada – que não expri-
mem nada de sua natureza muda?

Referências bibliográficas

BASBAUM, Ricardo. Manual


do ar sta-etc. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2013.

COCCIA, Emanuele. A vida sensível.


Trad. Diego Cervelin. Florianópolis:
Cultura e Barbárie, 2010.

GEIGER, Anna Bella. Anna Bella


Geiger. Fotogra a além da foto-
gra a, 1972 – 2008. Caixa
Cultural Brasília, 2010.

PONGE, Francis. Métodos.


Trad. Leda Tenório da Mo a.
Rio de Janeiro: Imago, 1997.

76

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Café com ZMário


COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

O Café com ZMário, assim como a culinária performática e relacional, é


pretexto para a criação de encontro e do próprio texto oral sobre nossas
vidas, profissões, amores, desejos, frustrações... A cafeteira, o fogareiro
portátil, as xícaras diversificadas e coloridas e, principalmente, a bebida
estimulante tornam-se meios e objetos estéticos para a produção de uma

José Mário Peixoto Santos1


obra caracteristicamente efêmera. Este artigo apresenta uma descrição
poética com breve análise do Café com ZMário, ação desenvolvida na
fronteira entre a arte e a vida pelo sujeito-objeto da própria criação.

Palavras-chave: Arte Contemporânea. Performance


Art. Composição Urbana. Poesia.

Abstract

Café com ZMário, as well as the performative and relational cuisine, is a pretext
for the creation of the meeting and the oral text about our lives, professions,
loves, desires, frustrations... The coffee machine, the portable stove, the diverse
and colorful cups and mainly the stimulating drink become ways and aesthetic
objects for producing a characteristically mayfly art work. This essay presents a
poetic description with a brief analysis of the Café com ZMário, action developed
on the border between art and life by the subject-object of his own creation.

Keywords: Contemporary Art. Performance Art. Urban Composition. Poetry.

Levo, realmente, uma vida de garçom de café.


Marcel Duchamp

1 José Mário Peixoto Santos – ZMário – (cafecomzmario@gmail.com) é artista visual,


performático e pesquisador da arte da performance. Doutorando pelo PPG-Arte da Universidade O primeiro café a gente nunca esquece...
de Brasília-UnB, na Linha de Poéticas Contemporâneas, onde pesquisa a arte da performance
Implosão da Fonte Nova!
sob orientação da Profa. Dra. Maria Beatriz de Medeiros.
“Quando nasci, um anjo bêbado desses que vivem procurando diamantes
2 Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, em Poema de Sete Faces: “Quando nasci, um nas pedras adormecidas de Igatu sussurrou no meu ouvido: – Vai Zé, faze-
anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida [...]”. (ANDRADE, dor de cafezinho, carregar xícaras na vida! E assim fui cumprir minha sina
1988). A vila de Igatu é um distrito do município de Andaraí, na Chapada Diamantina, Bahia. nessa vida torta sem pai nem mãe”2. Assim principia o texto como literatura 77

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

de cordel intitulado Arte-vida de Os segredos para o preparo


Zé Cafezinho de Igatu: uma estória
feita de café e água boa, desdobra-
de um bom café:
mento poético do Café com ZMário, Água filtrada ou mineral no fogo até
assinado pelo heterônimo perfor- entrar em processo de ebulição. O
mático Zé (do) Cafezinho (2014). café em pó no coador de papel. Água
quente sobre o pó de café. Café coado
Muito antes, naqueles tempos dentro da xícara. Café de dentro da
áureos do ORKUT, me identifica- xícara para o paladar. O aroma toma
va profissionalmente nessa rede o ambiente, “o café tostado faz os
social como vendedor de cafezinho músculos e a pele, desde de manhã
da Praça da Piedade, Salvador- cedo, estremecerem de contenta-
BA. Café a R$ 0,50 e performan- mento”. (SERRES, 2001, p.168).
ce com preço a combinar. Dessa
forma meu Café com ZMário estava O primeiro café (Figura 1) existiu tão
sendo preparado em ambiente somente como cenário: os utensílios
virtual para alguns meses depois para o preparo da bebida em compo-
ser virtualmente degustado duran- sição com as ruínas da já citada
te a implosão do Estádio da Fonte Fonte Nova ao fundo. Café histórico
Nova nessa mesma cidade. Digo esse, cujo assunto principal foi a tal
“virtualmente degustado”, pois, câmera suicida – aquela que estava
nesse primeiro momento em que dentro da arena enquanto ocorria
fui às ruas com os utensílios para a a implosão. Tudo televisionado e
Fig. 1. Café com ZMário, 2011. ZMário na Praça 2 de Julho, realização da obra, não levei o pó transmitido ao vivo pelas emisso-
Salvador-BA. Foto: Arthur Scovino. de café para ser transmutado no ras soteropolitanas de TV e rádio,
líquido estimulante tão apreciado um espetáculo aos olhos públicos.
pelo brasileiro. Logo, tudo foi produ-
zido como ensaio, estudo, experi- Cheguei de bicicleta, levando na
mentação, representação do que mochila um fogareiro elétrico portátil
viria a se tornar o verdadeiro (?) e (onde encontrar um ponto de ener-
puro Café com ZMário. Performance gia elétrica?), um bule de alumínio,
3 A arte relacional (BOURRIAUD, 2008) se caracteriza por um conjunto de práticas artísticas para uns; intervenção urbana para duas xícaras, dois pires, duas colhe-
pautadas nas relações humanas no contexto social e para além dele. O que propõem os artistas outros; arte relacional3 para os rinhas e uma câmera fotográfica. No
relacionais é, justamente, a aproximação com o outro, o público, gerando a partir dessa relação artistas; ação beneficente para os instante em que estava preparando
uma obra de caráter efêmero e imaterial – o que se aproxima da arte da performance em geral no transeuntes, apenas, um café? os objetos para o registro, um pai de
que tange à presença do artista, da obra e do público em dado espaço-tempo. Rirkrit Tiravanija família que estava fotografando a
(1961, Buenos Aires-Argentina) é um dos representantes da arte relacional na atualidade. Um cafezinho! antiga arena esportiva perguntou: 78

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– Você está servindo café aí? câmeras para uma foto, provaram
um café imaginário, durante uma
– Não! Aqui estão, apenas, os conversa cotidiana. Construção
utensílios para uma foto. de intersubjetividades nas frontei-
ras entre a arte e a vida. Não fui
– Ah! Vamos tirar uma foto então! à procura daquele outro, naque-
le primeiro momento de elabora-
De imediato, o senhor assumiu o ção da obra. O que o atraiu então?
controle da situação, pousando com O inusitado do cenário compos-
sua família para o registro do primei- to por cafeteira e xícaras, tendo
ro café (sem café) com ZMário. ao fundo um outro cenário em
Nesse momento, deixei de ser o ruínas? Penso que não... Voltei para
profissional em atividade de expe- casa com a sensação de que por
rimentação para me tornar espec- mais que aquelas xícaras expres-
tador de minha obra por nascer. No sassem o vazio, já se mostravam
olho do outro, no olho de Panoptes, cheias da essência do Café com
pan-ótico, “o melhor vigilante da ZMário: o encontro! (Figura 2).
terra e do ar” (SERRES, 2001, p. 33),
vi minha imagem refletida como
num jogo de espelhos e sedução. Mais uns cafezinhos?
O corpo implica primeiramente Na segunda vez em que apresen-
consciência de si. Essa só se dá tei ou servi o Café com ZMário,
através do outro. O Outro, espe- estava atuando como coordena-
Fig. 2. Café com ZMário (+ Levando os elepês de Gal para
lho distorcido e inalcançável, me dor do ciclo de debates “Fazendo
passear... por Arthur Scovino), 2012. Parque de Esculturas
do MAM-Museu de Arte Moderna. Salvador-BA. Foto: torna sabedora de mim mesma. É Sala”, durante a I Mostra OSSO
ZMário. através do outro que me conhe- Latino-Americana de Performances
ço, me conheço como diferente e Urbanas - MOLA. Evento promo-
construo minha particularidade a vido pelo OSSO Coletivo de
partir dessa diferença, me torno Performances Urbanas4, do qual
sujeito único, subjetividade tão la- fui um dos artistas/fundadores,
crada em mim mesma quanto esse no segundo semestre de 2010.
outro. (MEDEIROS, 2005, p. 165). Durante o evento, a água fervia
4 Blog do Osso Coletivo de sobre uma chapa de metal conecta-
Performances Urbanas. Disponível Nesse breve contato, o eu e o outro da à rede elétrica. O café foi servido
em: <www.coletivosso.blogspot. (o senhor e sua família) comparti- na Praça Pedro Arcanjo e ruas do
com.br>. Acesso em: 8 jul. 2015. lharam o mesmo espaço, trocaram Centro Histórico de Salvador-BA. 79

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Naquela ocasião, conheci um dos sempre. Fruto de extenso trabalho ou fotografia, desse momento fique
filhos do saudoso sambista baiano prático, CU percebe a obra de arte num segundo plano de análise, uma
Batatinha e com ele conversei sobre em contínua transformação com a vez que considero as subjetivida-
a vida, o samba e a própria obra cidade e seus habitantes, ao invés des reveladas durante o encontro
artística no momento em que estava de isolar, ferir, interferir (interven- como principal elemento da obra.
sendo apresentada, ou seja, servi- ção: processo de fora para den- Questionamentos: como salvaguar-
da. Nesse tipo de produção, artista tro, onde algo do fora se impõe ao dar (unicamente através do regis-
e público; arte e vida são constante- dentro), interferir, inter-ferir. (AQUI- tro fonográfico?) algo tão precioso
mente “con-fundidos”. A discussão/ NO; MEDEIROS, 2011, p. 51). e íntimo, que são as estórias sobre
reflexão sobre o trabalho acontece nossas vidas, amores, profissões,
durante a apresentação do mesmo – Dessa maneira, seguia pela cidade expectativas, segredos etc. sem
o que coloca em evidência o caráter em ação (com)positiva: distribuindo ser invasivo, sem perder de vista
metalinguístico da obra. Não desejei xícaras, pires, bule e fogareiro por o caráter confidencial das conver-
nem planejei registrar tal momento sobre as calçadas; nos bancos das sas ocorridas durante o Café com
de descontração durante o café. No praças; entre monumentos, grama e ZMário? Como escrever sobre essa
entanto, uma colega performática que árvores. Compondo e decompondo. arte tão próxima da vida? Segundo
por ali passava capturou o efêmero de Registrava e veiculava as imagens a Profa. Maria Beatriz de Medeiros,
nosso encontro através da fotografia. em meio virtual, na minha página na
WEB6, também como “composição Só seria possível falar em arte a partir
A cada apresentação, pensava em iterativa, isto é, relacional, participa- de sua essência, isto é, como poesia.
abandonar os registros em vídeo tiva, colaborativa”. Na “urbis virtual”, Poesia, momento da linguagem no
durante o Café com ZMário, porém, as imagens revelam que o cafezinho qual o finito é aberto para o infinito,
seguia fotografando – ainda que passa de mão em mão. Cada qual como afirma Valéry para as artes vi-
tão somente os utensílios manusea- recebe o bule, serve o café, bebe, suais. Poesia e artes plásticas, cada
dos durante o preparo da bebida, o passa a seu vizinho; a passagem qual com sua linguagem, abrem o
que restava do encontro, a borra do da bebida estimulante faz dela uma mundo, deixando entrever um outro
5 Blog do Grupo de Pesquisa café, enfim, os resquícios da perfor- estância e um motor de circulação. do mundo, um possível do real. Não
Corpos Informáticos. Disponível mance. Não defino a ação com o Esta descreve o grupo, segue o fio é possível falar sobre arte, escrever
em: <www.corposinformaticos. café como uma interferência ou da relação. O grande bule, quase- sobre arte, com a língua que usamos
blogspot.com.br>. Site oficial: uma intervenção urbana. Em conso- -objeto, traça as relações entre os no cotidiano. Essa linguagem está
<www.corpos.org>. Acesso em: 8 nância com o Grupo de Pesquisa apreciadores de um bom cafezinho, envelhecida, esquadrinhada e desvi-
jul. 2015. Corpos Informáticos5, nas ruas, de uma boa conversa, ele trans- talizada. (MEDEIROS, 2005, p. 53).
proponho Composição Urbana - CU: mite, tece, objetiva aquilo que une
6 Blog do artista/autor. Disponível o grupo. (SERRES, 2001, p. 178). A partir dessas reflexões, decidi
em: <www.zmarioperformer. Esta arte, parte da vida, com a ur- publicar os temas específicos
blogspot.com.br>. Acesso em: 8 jul. bis, compõe (Spinoza, Deleuze e Agora proponho que todo e qual- de cada café através de subtítu-
2015. Guattari) e ao compor decompõe, quer registro em imagens, vídeo e/ los elaborados poeticamente. Da 80

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

mesma maneira, tenho utilizado senhor o compara ao bom chá japo-


a função poética da linguagem, nês, banchá, e o intitula Zen Café.
conjugando realidade e ficção
(autoficção), para reescrever algu- O cafezinho já foi servido num
mas estórias vividas durante os parque de um museu. Um amigo,
encontros regados à cafeína. Arthur Scovino, levou sua vitroli-
nha e os elepês de Gal para passe-
Em mais um café, dessa vez, na ar junto ao café, que ficou pronto
Avenida Paulista, São Paulo-SP no tempo do “Vapor Barato”, barato
(2015), assumi, definitivamente, total. O cafezinho do Zé deve ser
o abandono dos registros video- servido nas ruas, praças, ladei-
gráficos e fonográficos, restando ras. Em tão poucos lugares fecha-
o que denominei de último regis- dos, se fechou. Não cabe, nunca
tro oficial – uma foto capturada coube em sua totalidade. O Café
com o uso do celular (Fig. 3). não é do ZMário, é da rua. Está fora
do museu, da galeria, da despen-
Mesmo que já não ocorram regis- sa e do armário... É de quem chegar
tros, provas cabais do vivido, o que para atiçar a conversa, fazer borbu-
tende a persistir na memória daque- lhas na mente coletiva, tomar a
les que, nas ruas, provam o Café arte para construção de uma outra
com ZMário são os laços sociais, as obra: efêmera, café de efemérides.
relações estabelecidas, a afetividade O artista fala por si. O da rua fala
tecida a cada encontro. Logo, tudo por ele mesmo. A obra, em compo-
seguirá reverberando como frag- sição polifônica, fala por todos.
mentos do efêmero transmutados
em poesia cotidiana e experimental: Pensamentos em ebulição tomam
Fig. 3. Café com ZMário (Último registro oficial), 2015. Av. forma de versos escandidos pela
Paulista, São Paulo-SP. Foto: ZMário. O que é isto? É um cafezinho benefi- métrica do gole a gole. Gargalhadas
cente!? E tem gente que doa moedas desmedidas em colheradas de pó de
de R$ 1,00. Às vezes, se apresen- café, de cristais de açúcar refinado,
tam junto à borra do café um cara demerara, orgânico. Durante tantas
e um coroa. Eles falam de doenças horas de conversas na rua, linhas e
da idade e trocam receitas de efeito círculos de borra de café são traça-
placebo; outros falam de dor de dos em sobreposições, volutas e
amor e do mundo da arte. Uma vovó contravolutas. Café minimalista,
passa com a netinha e solicita uma barroco, esquizoanalítico. O doce-
chávena de café com adoçante. Um -amargo do café é provado numa 81

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

xícara dividida com o outro (com muita conversa, numa galeria, para de peixes, unicórnios, gramofo-
ou sem cigarro) na hora do rush, justificar que o artista não gosta de nes e libélulas aparecem no fundo
no tempo de um racha. Os carros café amargo. De olhos vendados, da xícara de porcelana. Na caneca
param. Um motociclista também enquanto a água fervia e tomava a de esmalte da vovozinha, a borra
já parou. Abastecidos de cafeína cor do café, ele ia por entre xícaras costuma tomar forma de açude,
– C₈H₁₀N₄O₂ –, seguiram a reta. em busca do ponto de ebulição da carcaça de bicho, mandacaru e
performance. Vinte minutos crono- prato de farinha com carne seca.
Asa de xícara quebra, bico de bule metrados por uma lebre lerda de um
quebra, pires quebra também. Nada país de maravilhas: um país tropi- Quantas xícaras de café um homem
é restaurado! Os utensílios do café cal. Um café de vinte minutos é mais branco, heterossexual, adulto, rico,
não são capitalizados como fétiche gostoso na galeria ou na padoca? pós-graduado, consome por dia?
do mundo da arte. O bule da perfor- As horas são intermináveis quando E uma mulher negra, homossexu-
mance “Garçon”, 1976, de Chris a conversa é amarga e as gentes al, adolescente, pobre e analfabe-
Burden, está em alta no mercado frias. Conversa morna ainda desce. ta? Café com leite é luxo. Não se
– o que a re-venda de cafezinhos toma em tempos de vacas magras.
nunca (a)pagará. Para quê? Para Em Curitiba, o café ficou meio Logo, há protesto! O manifesto do
quem? Quanto vale? Vale cafezinho! morno, mas a conversa estava café doce-amargo tem para todos
Café delivery, free, na encruzilhada quente! O fazedor de cafezinho os gostos: Não à glamourização do
das ruas sujas. O cafezinho não se trocava dicas profissionais com cafezinho! Não à gourmetização da
transmuta em mate de coca ou chá uma artista fotógrafa, diarista dos performance! O cafezinho é encon-
de boldo para ser trocado por confi- serviços domésticos. Enquanto um trado em todas as casas de gente
dências, segredos ou memórias. serve café na praça, outro atua comum. É aquele do boteco. Às
Quando o aroma penetra as narinas como funcionário público, outra vezes, sai uma média. Cada um sabe
e toma o corpo inteiro, fala quem limpa banheiros à espera da melhor quanto custa um cafezinho nessa
quer falar. A língua cala e aprecia. luz. Esses nossos eus provando vida... Para mim, o Café é encon-
outras maneiras de ser e estar no tro onde a linha de fronteira entre
Por favor, tire sua porcelana fran- mundo... Criar rostos diversos para o eu do artista e do ser alheio se
cesa do museu e vamos passe- manter a obra viva, em pleno exer- rompeu. Salve, Waly! O cafezinho é
ar com meu cafezinho nas ruas. cício de liberdade. Mãe de santo nosso poema brasileiro de cada dia.
Tenho apenas o café. No truque da hacker também é rosto. Jogar búzios
venda informal, em Salvador e em e abrir um tarot é como tomar um
Bogotá, carrinhos fuleiros de cafezi- cafezinho à espera do dia seguin- Só por hoje... O último
nho passeiam. Nas xícaras também te... é um tipo de café tragado
já foram servidos: vinho; água; para aplacar a ansiedade, embora
cafezinho!?
vodca; Coca-Cola; chá; suco – tudo intensifique ainda mais a sede de O Café com ZMário ainda está sendo
isso também é Café! O café sem cafeína. O que sobra é a borra, processado. A carta está aberta a
açúcar é exceção. Foi tomado com onde o futuro se revela! Imagens sugestões. A cada exposição, mais 82

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

leituras são adicionadas à obra CAFÉ COM ZMÁRIO, 2011, Salvador-


apontando para encorpadas refle- BA. Café com ZMário (+ Levando
xões sobre a mesma. Em muitas os elepês de Gal para passear...).
outras ações, o café continuará Disponível em: https://www.youtube.
sendo servido nas praças de diver- com/watch?v=8knc99r1Kwc
sas cidades. Trata-se de aproximar Acesso em: 10 jul. 2015.
arte e vida, além de subjetividades,
durante a pausa da correria diária, CAFÉ SEM AÇUCAR (Performance
pausa para um café já tão presen- de ZMário), 2012, Salvador-BA.
te no cotidiano do povo brasileiro. II Mostra de Performance da
Galeria Cañizares, EBA-UFBA.
As xícaras estão novamente Disponível em: <http://galeriaca-
ex-postas na praça, no meio-fio, nizares.blogspot.com.br/2012/05/
na rua quente-fria. O café está cafe-sem-acucar-com-zmario.
Fig. 4 e 5. no ponto! Aceita um cafezinho? html>. Acesso em: 10 jul. 2015.
Xícaras do Café Puro? Com açúcar ou adoçante?
com ZMário. CAFEZINHO, Zé. Arte-vida de Zé
Fotos: ZMário. Referências Cafezinho de Igatu: uma estó-
ria feita de café e água boa.
ANDRADE, Carlos Drummond Salvador: Esquizo Editora, 2014.
de. Poesia e prosa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1988. CARROLL, Lewis. Alice no
País das Maravilhas. São
AQUINO, Fernando; MEDEIROS, Paulo: L&PM Pocket, 1998.
Maria Beatriz de (org.). Corpos
Informáticos. Performance, DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.
corpo, política. Brasília: Editora Mil Platôs: capitalismo e esquizofre-
do Programa de Pós-graduação nia. v. 3. São Paulo: Ed. 34, 1996.
em Arte, UnB, 2011.
GRUPO DE PESQUISA CORPOS
BOURRIAUD, Nicolas. Estética INFORMÁTICOS. Blog. Disponível em:
Relacional. Buenos Aires: < www.corposinformaticos.blogspot.
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CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: ______. Site oficial. Disponível


engenheiro do tempo perdido. em: <www.corpos.org>.
São Paulo: Perspectiva, 2012. Acesso em: 10 jul. 2015. 83

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

MEDEIROS, Maria Beatriz em Artes Visuais da Escola de


de. Aistheisis: estéti- Belas Artes-UFBA. n. 4. Salvador,
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da Gastronomia. Disponível
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2011, Salvador-BA. Devaneios
(Luciana Accioly entrevista ZMário).
Disponível em: <https://www.
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SALOMÃO, Waly. Poesia Total. São


Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SANTOS, José Mário Peixoto. Breve


histórico da “Performance Art” no
Brasil e no mundo. Revista de Arte
Ohun. Programa de Pós-Graduação 84

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Rasgar o intransponível
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

Se o mundo reproduz indefinidamente sempre a mesma mensagem (há uma rede


e você faz parte dela), o que fazer frente ao intransponível? Para desestabilizar as
estruturas rígidas que delimitam o espaço, pode-se impingir forças contraditórias
ou fricções intencionais e frequentes sobre elas. Talvez engendrar vazios no
cotidiano encouraçado, a fim de sondá-los e penetrá-los. A arte rasga a rede rija

Claudia Washington1
que confina a vida, cria passagens, vias de transporte, outras paisagens. Este
texto versa sobre a arte que se faz rasgo: Étant donnés: 1. La chute d’eau, 2. Le
gaz d’éclairage…; Vazadores; Experiência nº 2; Cuando la fe mueve montañas;
e O Muro. A busca é por caligrafar seus vazios no sentido da ilegibilidade.

Palavras-chave: Arte. Rasgo. Espaço.

Abstract

If the world reproduces the same message indefinitely always (there is a


mesh and you are part of it), what do we do front to the insurmountable?
For destabilize the rigid structures that delimit our space we can impinge
contradictory forces or intentional and frequent frictions on them. Maybe
engendering the void in the armor-plated day-to-day, scanning and penetrating
them. Art rips the hard mesh that confines life, it creates passages, transport
roads, other landscapes. This text turns about art that makes itself a rip:
Étant donnés: 1. La chute d’eau, 2. Le gaz d’éclairage…; Vazadores;
Experiência nº 2; Cuando la fe mueve montañas; and O Muro. The search
is for doing calligraphy of their emptiness in the sense of the illegibility.

Keywords: Art. Rip. Space.

1. Rabisco Mundinho
1 Claudia Washington (claudia@transitos.org) é doutoranda no Instituto de Artes da
Universidade de Brasília, bolsista Capes, sob a orientação da Dr.ª Maria Beatriz de Medeiros. Não é que seja simplesmente malfeito, é que a coisa se aparenta com o gato
Mestra em Processos Artísticos (UDESC), Especialista em História da Arte Moderna e de energia. Um bolo desordenado de linhas muito evidentes, indiscreto mesmo,
Contemporânea (EMBAP), Graduada em Educação Artística – Artes Plásticas (UFPR). Websites: do qual só vislumbramos a superfície ou um sutil rabisco entre as paralelas
http://transitos.org, http://claudiawashington.wordpress.com. da norma técnica. Não é um buquê perfumado, tem cheiro de fio queimado.
85

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Num contorno rápido trata- centrais de espionagem; etc.3 Uma estabelece infindáveis planos
rei dos limites: rede redundante e paradoxal com e caminhos que estabilizam e
centros de controle definidos, limi- escoam a vida como curso contí-
As formas do mundo contemporâ- tada, rígida, contínua, dobrável, nuo ao mesmo. Continente que
neo intensificam o “controle sobre maleável, variável, adaptável. nos enlaça feito múmias. A arqui-
a produção de signos, de sintaxe tetura, a engenharia (estradas,
e de subjetividade” por meio da Nesse mundo o movimento usinas, lagos artificiais), o urba-
mídia. (GUATTARI, 1990, p. 31) pode ser “vetor de emancipa- nismo são estruturas rígidas que
ção” enquanto “cultivo da produ- ordenam a circulação dos corpos,
O sistema contemporâneo, orga- ção singular de existência” e conformam os lugares, assim
nizado em rede,  também chama- ampliação dos “territórios subje- como o tecido social, o sistema
do de regime da comunicação, tivos”, como na lógica do artista econômico, a normatização cultu-
fundamenta-se na instabilidade e que aceita o acidental e a deriva ral e as instituições de todo tipo.
na desestabilização, exclui qual- em contraponto à “subjetivida-
quer “intenção” por parte dos seus de capitalística”, a “lógica das O espaço é resumido a uma série
atores, privilegia o “continente”, intensidades” considera apenas de confinamentos, os característi-
isto é, os papéis e os seus luga- o movimento na intensidade cos da opressão e os próprios da
res. A rede se repete indefinida- dos processos (GUATTARI, 1990, existência. Tudo parece intrans-
mente, seus diversos canais de p. 27-28). O movimento ainda ponível. Embora não haja remé-
conexões reproduzem sempre a pode ser a circulação no merca- dio ainda para os confinamen-
2 Existem servidores mesma mensagem nas diferen- do da arte e também o conteúdo tos próprios da existência, a arte
livres, pesquisas de transmissão via tes versões técnicas, a tautologia das obras (CAUQUELIN, 2008). frente aos contextos endureci-
rádio, softwares e hardwares livres, é a regra. (CAUQUELIN, 2008) dos pode forçar caminho e atra-
mas nenhum deles com o alcance Essa multiplicidade das rela- vessar os limites do seu próprio
dessas corporações. Os dados O controle exacerbado e a tauto- ções espaço-tempo que confor- sistema, talvez os limites sociais.
sobre as companhias fornecedoras logia compõe o espaço cotidiano mam o movimento e se confun-
de servidores tem referência no fechado. A rede não é descen- dem na prática artística. A As pessoas, nos seus modos de
website http://www.gartner.com/ trada como se supõe. É possível imobilidade e mobilidade são fazer, reinventam no cotidiano
newsroom/id/3118717, acessado identificar centros de poder, por estratégias de resistência ao os usos dos lugares, constituem
em outubro de 2015. exemplo: nas principais compa- sistema e simultaneamen- espaços de movimentação possí-
nhias fornecedoras globais de te plano de comercialização. veis de viver (lugares praticados)
3 Ainda que a rede servidores, sem os quais nenhu- “através das artes do fazer, da
tautológica coexista com ma navegação na web, nos mode- caça não autorizada e das táti-
a disseminação de fluxos los mais populares, pode ocorrer2; 2. O espaço cas de resistência”, escapando
multidirecionais que atravessam nas maiores indústrias farmacêu- do planejamento e da homoge-
fronteiras entre disciplinas e ticas, alimentícias e de pestici- Continente. A rede maleável e limi- neização (CERTEAU, 1994, p. 38).
lugares. das, de produção de armas; nas tada (com doces centros duros) A arte seria então um meio de 86

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

reorganizar o funcionamento do e transposição de obstáculos. É estejam nessas falhas os senti-


poder. Aqui, reorganizar o poder como um leão que ruge subita- dos criativos deste momento.
não é destruir a estrutura (essa mente numa biblioteca. É o vazio
gigante descomunal incomen- no cheio e o cheio no vazio? O É sobre a arte que rasga estru-
surável), é rasgá-la, levando em rasgo é o feito que não se diz turas rígidas que sigo. Uma arte
consideração sua intensidade. só: ele é a borda do rasgado e que envolve cruzamentos com o
o vazio, é espaço de liberda- cotidiano, que efetivamente cria
de forjado no dia a dia. Por ele é passagens, vias de transporte,
3. Rasgo possível sondar, penetrar, varar. outras miradas, que pressiona os
limites daquilo que conhecemos
“A liberdade é uma prática” e nada Rupturas e fissuras são familia- como arte, no sentido da amplia-
da estrutura das coisas garante res ao rasgo, mais sutis ou radi- ção das suas possibilidades de
o seu exercício (FOUCAULT, 1994, cais participam do desvelamen- intervenção no mundo, de remo-
p. 139-140). Se há uma determi- to do mundo. A fissura pode ser delar a paisagem e de fazer surgir
nação do corpo em função do uma possibilidade de mudança de novos modos de relação. Trato
ambiente, notadamente construí- atitude frente ao consenso, pois de uma arte politicamente impli-
do, há a ação deste para produzir toda situação é passível de ser cada e institucionalmente envol-
seu próprio espaço e ampliar seus fendida no interior, reconfigura- vida. Essas proposições artísti-
territórios. Uma fresta tanto pode da sob outro regime de percepção cas contemporâneas exploram
ser libertadora como opressora, e significação, assim modifica o os sistemas, revelam seus fluxos,
deixa ver o que está fora e faz do “território do possível” (RANCIÈRE, evidenciam seus limites. Através
interior um foco de observação. 2012, p. 48). Produzir rupturas do movimento físico rasgam
no tecido sensível das percep- conceitos e espaços cristaliza-
Uma coisa é rasgar, outra é o ções e na “dinâmica dos afetos” dos. A partir de seus procedimen-
rasgo. Rasgar é impingir forças pode ser um objetivo estratégico tos, diferentes entre si, é possí-
contraditórias ou fricções intencio- na arte, para mudar os referen- vel entrever a heterogeneidade
nais e frequentes sobre as coisas. ciais do que é visível e enunciá- contemporânea do fazer artísti-
Pode engendrar vazios no coti- vel, “mostrar o que não era visto, co, suas circunstâncias e seus
diano encouraçado. Rasgar altera mostrar de outro jeito o que não vazios. De maneira que aqui se
mas não destrói. Não é corte, era facilmente visto, correlacio- gatafunha uma caligrafia do que
esgarça as fibras, pode dilace- nar o que não estava correlacio- não se escreve, pois o rasgo não
rar caixas, fragilizar e violentar. nado” (RANCIÈRE, 2012, p. 64). preenche o espaço, não está,
Rasgar é ação tátil, de contato, é Se é impossível traçar preceden- deixa vazar os corpos inteiros, seu
audaz, certeiro, seu tempo indefi- tes para as “rupturas numerosas vazio não é liso nem lei, permite
nível, é prática do lugar. O rasgo e falhas profundas que carac- o movimento no espaço armado
segue em todas as direções, é terizam a arte contemporânea” até os dentes. Rasgar não é pací-
potencial vetor de permeabilidade (CAUQUELIN, 2005, 131), talvez fico, mas pode ser não violento. 87

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3.1. Étant Donnés: 1. La chute


d’eau, 2. Le gaz d’éclairage…

Em Étant donnés de Marcel


Duchamp é o olhar que deve pene-
trar os buracos para dar sentido ao
que se apresenta do outro lado.

No manual de instruções para a


montagem da obra, manuscrito
assinado pelo artista, a minuciosa
descrição nos revela quinze opera-
ções de montagem e esquadrinha
o espaço da instalação. Paisagem,
tijolos e porta: piso de linóleo xadrez,
exatidão angular, armações, luzes
direcionadas para o céu, reflexão
e transparência. Nuvens no céu de
vidro fosco, luz azul, papelão, planos
verticais. Caixas fechadas, selos
de fita adesiva. Interior. Exterior.
Motor. Disco perfurado. Caixa chan-
frada com lâmpada fluorescen-
te. Todos móveis. Blocos numera-
dos. Painéis. Barras de aço fixas.
Painéis que correm horizontalmen-
te e separadamente para permitir
tirar fotos. Grampos e Parafusos.
Imagem 1 - Manual de instruções para montagem de Étant donnés: 1. La chute d’eau, 2. Le Painéis com ligeiro ângulo cônca-
gaz d’éclairage… (Dado: 1. A cachoeira, 2. A iluminação a gás…), páginas 10 e 11. Marcel
vo. Repousos sobre o solo. Bordas.
Duchamp, 1946 – 66. Museu de Arte da Filadélfia, doação de Cassandra Foundation, 1969.
Medidas: 29.5 x 25 x 4.5 cm Molduras. Veludo preto. Nu sem
antebraço ou perna. Delicadeza e
incidências. Pontos: cotovelo na
vara de madeira, braço do nu levan-
tado. Nu no lugar, abaixo a peque-
na aba da dobradiça que suporta a
barra (espinha dorsal) sem forçar. 88

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Perna. Perna na barra de ferro… por Pavilhão da Bienal no Parque do


baixo até a junção com a coxa… Ibirapuera. A vaga retangular sob os
junta não muito precisa escondi- pés suportava uma grade de ferro
da por galhos e folhas mortas. por onde era possível ver o fluxo do
andar inferior, bem como de baixo
Nenhuma palavra sobre os suces- para cima. Mas também interpela-
sivos rasgos da porta, muro, corpo, va o caminhar ereto dos passan-
paisagem. Duchamp passou vinte tes, desestabilizando o espaço liso
anos da sua vida trabalhando em moderno. O caminhar não era impe-
Étant Donnés, finalizou-a próximo dido, o chão continuaria ali nada
aos seus oitenta anos, é obra para seguro. O fluxo vertical do olhar
viver: “(…) é puro erotismo! Mais deslocava a atenção dos corpos. Só
de vinte anos de tesão-arte em o olhar passava, se bem que pode-
estado de sublimação… fascínio ríamos vazar nossos corpos líqui-
de Duchamp pela vida, pela porta dos pelo gradil entre níveis. O olhar
de abertura para a vida, a fonte de superior talvez se achasse mais
vida: a mulher!” (PEIXOTO, 2015). poderoso que o inferior surpreendido
com o observatório elevado. Entre
eles a grade. Os pés sem chão titu-
3.2. Vazadores beariam claudicantes. Os passantes
sob ela assombrados veriam no céu
as solas. Fazer o ar passar, arejar,
avolumar o espaço com a retira-
Não à armadilha tramada no chão, da de material. A grade, necessária
o jeito foi desdobrar a arquitetura e capa – pele e encaixotamento – sem
com certa astúcia formal rompê-la. a qual o corpo despencaria é arma-
Rasgo na face rígida da instituição dilha tramada no chão. Posso dizer
artística. Abrir e entrar ou evadir. décalage, ação de retirar um calço e,
Ao espaço recém-aberto persiste o em consequência, a estabilidade ou
Imagem 2 - \Vazadores, Rubens Mano, controle do tempo e dos movimen- o equilíbrio de alguma coisa; deslo-
2002. 25ª Bienal de São Paulo – Pavilhão tos. Caixa sobre caixa, sobre caixa. camento no espaço ou no tempo;
do Parque do Ibirapuera. Foto: Uol Também vou montar a minha. diferença, discordância, distan-
Entretenimento. ciamento. A arquitetura rasgada.
A primeira proposta foi barrada pelo
controle patrimonial do Estado de A segunda, essa então realizada,
São Paulo. Pressupunha uma aber- foi como um rebatimento da fenda
tura no piso do segundo andar do engendrada no solo para o plano 89

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

horizontal da parede. Uma caixa e lhe comunicar qualquer ocorrên-


de vidro e armação metálica entre- cia. Parece levar ao extremo as
meada na parede, ligando o dentro relações de controle e vigilância.
e o fora do pavilhão da Bienal de
São Paulo. Câmara de transição, Mais que um rasgo na arqui-
cuja entrada/saída requer apenas tetura “Vazadores” provocou
a vontade de abrir uma porta. A um rasgo institucional, desde a
arquitetura, desdobra-se, avança, 25ª edição do evento não são
mas também é rompida. É passa- mais cobrados ingressos.
gem onde brincam o liso, o reflexo
e a translucidez. Célula. Cápsula. 3.3. Experiência nº 2
Casulo. Não há contradição aparen-
te, mas o controle institucional Flávio de Carvalho (Imagem 3)
sobre o fluxo manifesta o rasgo. atravessa em sentido contrário
uma procissão católica. Cria com o
Essa ruptura tem várias implica- corpo uma passagem na multidão,
ções; de saída, deve-se conside- o bloco uniforme é rasgado em um
rar que ao limite físico do traba- único sentido. Poucos meses depois
lho, situado na borda do prédio, o artista publica Experiência nº 2:
sobrepõe-se o limite da própria uma possível teoria e uma experi-
instituição. E a evasão de renda ência, um relato detalhado – uma
provocada por aqueles que in- descrição encarnada, presentifi-
gressarão sem pagar? E o perigo cante – e uma análise do ocorrido
de alguém sair do prédio levando em que ele se diz metade arque-
alguma coisa roubada. A direto- ólogo e metade cínico cético. Em
ria da instituição impôs limites ao seu método um grande número
trabalho. Deveria haver controle da de emoções escapa, como arque-
situação e, para tanto, um segu- ólogo aceita as deformações e
rança ficaria nas imediações, noite perdas que compõe um panora-
e dia. (FARIAS, 2002, p. 251) ma desconexo cheios de vazios.

Imagem 3 - … assistia emocionado ao meu Nessa sobreposição de caixas o Estes vazios não podem ser pre-
desmanchar. Ilustração no livro Experiência n.º artista continua a construir as suas, enchidos pela imaginação porque
2: realizada sobre uma procissão de Corpus- instituiu a vigilância a outros quatro a imaginação elaborando sempre
Christi: uma possível teoria e uma experiência, artistas: coloca uma mesa e duas uma linha fictícia colocaria peças
1931, Flávio de Carvalho, São Paulo. cadeiras na obra de cada um deles relacionadas à sua linha de con-
e contrata um segurança para vigiar duta e provavelmente alheia ao 90

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mecanismo dos acontecimentos. perfurar a crosta astuciosa. rotina tem a vantagem de ser cria-
Os vazios não devem ser preen- dora”. (CARVALHO, 1931, p. 115)
chidos e devem continuar como Parece que em redor das nações,
vazios. (CARVALHO, 1931, p. 33) dos grupos dos homens, dos ob- É rasgo pois, como declara o artista,
jetos do mundo, das coisas do nasce de uma pressão profunda, é
Os vazios, que compõe o proces- universo, se forma uma tensão de defesa contra a extinção, seleciona
so arqueológico por ele definido, superfície, alguma coisa de defen- o que há de mais violento e de mais
deixam claro que sua ação estava sivo, protetora, que evita a desinte- genial para manter vivo o protesto.
longe de um impulso desmedido gração e protege contra o des-
frente a massa. É assim que ele se manchar, contra uma mudança no Após a perseguição pelas ruas,
refere por várias vezes a procis- aspecto. (CARVALHO, 1931, p. 111) acoado num vão entre prédios
são, como massa. Seu relato de a mente do artista finaliza o
penetrar a multidão numa zona Essa tensão de superfície, defen- ato em sparagmos4 ao imagi-
distintamente hostil é povoado de siva e protetora é também estag- nar braços, dedos e mãos surgin-
tensão, surpresa, violência, perigo, nante, por isso é no movimento do de uma multidão ausente que
astúcia, agressividade, carícias, de abandono da rotina, no rasgo o rasgavam aos poucos, sentin-
movimento, tempo e formas. dessa superfície, que se apresen- do alguém enfiar o dedo num dos
ta a liberdade, o encantamento, a seus olhos e puxar a pele rasgan-
O rasgo foi dado já de início, se fantasia. “É o começo de um novo do (CARVALHO, 1931, p. 43).
estendeu e se intensificou a cada mundo” onde a relação de depen-
momento. No princípio foi uma dência dos corpos frente aos objetos 3.4. Cuando la fe mueve montañas
caminhada que de observação, – repetição de movimentos sequen-
olhares, toques, tornou-se fuga. ciais infindáveis – seria substituída Francis Alÿs, propõe a transposi-
Estavam sempre presentes forças a pela sugestividade criativa destes. ção de uma duna. Convida quinhen-
se contradizer, contrastar. Sua ação tas pessoas para formar uma linha
partiu de uma estratégia de enge- Para Flávio de Carvalho o que ocorre e mover com pás a duna de 500
nharia (medição, cálculo) e tática é a substituição da rotina por uma metros de diâmetro a 10 centí-
ancestral: o corpo em alerta, os outra teoria, um pouco mais preca- metros de sua posição original.
4 Sparagmos (do grego: músculos tensos, rígidos. Não perdia vida contra possíveis despotis- O terreno desértico não é vazio,
σπαραγμός, de σπαράσσω nada ao seu redor, mesmo o que mos. A fantasia se afasta da ordem trata-se da periferia habitada da
sparasso “rasgar, puxar, não via. Surpreendeu os elemen- estabelecida mas o processo de cidade de Lima no Peru, um pueblo
despedaçar”) é um ato de rasgar tos da procissão que na passagem sua ascensão é o mesmo que o da jóven. A montanha é movida.
ou desconfigurar, geralmente em não tiveram tempo de raciocinar velha rotina: “depreciação do que
um contexto dionisíaco (tradução nem mesmo de pressentir o seu está em cima e elevação do Eu, No vídeo When Faith Moves
nossa). Disponível em: https:// intento de atravessar. No momen- da personalidade, o processo de Mountains (making of, Imagem 4)
en.wikipedia.org/wiki/Sparagmos . to do perigo escolheu o ataque para mundanismo”. Continua Carvalho: o relato de um dos participantes
Último acesso: novembro de 2015. estabelecer a dúvida. Procurava “A fantasia do revoltado fora da adverte: “A cidade que temos agora 91

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

não seria a que estamos vendo”. O


que é possível entrever nos 10 centí-
metros vazados do horizonte rasga-
do? Expansão urbana, migrações,
abismos entre o grão de areia que
arranha o rosto e a mais alta cúspi-
de. Do alto o longínquo, na desci-
da do humano há pessoas, casas,
ruelas, cotidiano. Poeira nos olhos
pode ser colírio e apesar do suplí-
cio não há lástima nem lágrima.

A linha que avança, força coleti-


va empregada em mesmo sentido
sobre o terreno denso, munida de
pás é intenção compartilhada, ajuda
mútua que torna pequena a imensa
duna, converte o difícil em simples.
A cada pá de areia arrancada do
solo, o espaço é aberto para mais
um passo a frente. A caminhada
em linha é marcha sob palavra de
ordem, é um “marcador de poder”
cuja significância “depende da natu-
reza e da transmissão em um campo
social dado” (DELEUZE; GUATTARI,
2011, v. 2, p. 18) mas “em toda
palavra de ordem há uma peque-
na sentença de morte” (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, v. 2, p. 13). Uma
questão talvez seja fazer desse
agenciamento “campo de embate”
para a concreção de “um momento
Imagem 4 - Cuando la fe mueve montañas, 2002, Francis Alÿs em colaboração com vivo” (PIGNATARI, 1975, p. 91). Será
Cuauhtémoc Medina e Rafael Ortega, III Bienal de Lima, Peru. Participação dos estudantes da que somente no embate podemos
Universidade de Engenharia, da Universidade Católica, da Universidade Federico Villareal de nos sentir vivos? Uma voz ordena:
San Marcos e demais voluntários. “Mantenham a linha”. Alguém se 92

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

questiona sobre a estranheza de Durante o transporte, da penitenci-


se pretender fazer que uma linha ária até a Bienal, os tijolos demar-
reta avance ao redor de um cone, cariam o trajeto ao caírem do
e conclui: “um grupo de pessoas… caminhão. O projeto como percur-
pode fazer algo que de outro modo so corresponderia: a produção dos
seria impossível. Algo absurdo …” tijolos pelos detentos na olaria do
presídio; a construção do muro nos
Parece que ser preciso deixar jardins do parque Ibirapuera por
de ver, morrer um pouco para presos em regime semiaberto; e em
realizar o impossível. sua continuidade dentro da Bienal;
além disso, uma urna transportaria
3.5. O muro ao pavilhão mensagens dos presos.
O público que lesse os recados
Muro, muralha, fortaleza, proteção, poderia respondê-los, também por
separação. Muro é comunicação escrito, depositando as mensagens
cortada. em outra urna. No último dia da
É defesa, mas pode ser prisão. Bienal as duas urnas seriam aber-
O muro traz em si o estigma da dua- tas, expondo as mensagens. A artis-
lidade. Delimita o espaço entre um ta previa que, ao fim do evento, os
e outro. tijolos fossem doados para a comu-
É um espaço de exclusão. nidade mais próxima ao Ibirapuera.
O mecanismo de exclusão do muro Além disso, como ia contar com
é o mecanismo do exílio, da purifi- a ajuda do sistema penitenciário
cação do espaço urbano. de São Paulo para realizar a obra,
Para mim o muro é um sím- dispunha-se a dar como contra-
bolo da construção do ho- partida a montagem de oficinas de
mem. (TOSTES, 2014, p. 82) cerâmica em presídios femininos.
Nada disso aconteceu. Após enviar
Em 1983, Celeida Tostes foi seu projeto à Bienal a artista foi
convidada a expor na 17ª Bienal desconvidada. (SILVA; COSTA, 2014)
Internacional de São Paulo, a artis-
ta propôs a construção de um muro Uma passagem física seria criada,
Imagem 5 - O Muro, Celeida Tostes, 1982. gigantesco que rasgaria o espaço uma nova via comunicativa esta-
Mutirão de construção no Parque Lage, Rio desde a olaria da penitenciária de belecida. A terra e os corpos reclu-
de Janeiro. Foto: Henri Stahl. São José do Rio Preto, passando sos seriam movidos, rasgariam
pelos jardins do Parque Ibirapuera a cidade, ocupariam os jardins.
até o interior do prédio da Bienal. Imenso espaço transitório. O muro 93

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

permearia a cidade e abriria cami- maleabilidade, movimento. Mas O que fazer com vazio? Não se
nho para as palavras enclausuradas. se o lugar de origem da força, o trata simplesmente de fazer o
Seria o furo no sistema. A rigidez centro de poder, pretender fazer vazio? Repito: “A liberdade é uma
crescente dos tijolos de adobo se valer sua forma, sua severidade, prática” e nada da estrutura das
contrapõem a sua maleabilidade ad æternum, ao passo que rasgos coisas garante o seu exercício
primeira, o seu caráter orgânico, sua radicais sejam criados nele e que (FOUCAULT, 1994, p. 139-140).
fragilidade – argila, esterco, capim tal amplitude do vazio ameace a De todo modo o vazio no espaço,
e palha. Uma obra “nômade alimen- sua continuidade, o sistema retor- seja o do artista, seja o do siste-
tando-se dos resíduos da cidade na com a negação total, ou parcial ma, permite o sonho, dá livre
sedentária” (CARERI, 2002, p. 24). através do controle dos fluxos. trânsito físico e/ou imaginário,
mesmo que por um instante. E o
O Muro de Celeida Tostes tornou- Rasgar é objetivo, matérico e corpó- que há depois? Caminho aberto?
se um rasgo nas estruturas rígidas reo, esfacela para todos os lados, Escuta? Violência? Algum tempo
sociais, um vetor de permeabilida- por vezes incontrolável. Enquanto me indaguei sobre o que é o poder.
de e transposição de obstáculos tão movimentos de terra (tijolos, Hoje me pergunto, o que é liber-
vigoroso que não pôde ser reali- montanhas, argila) e sobre a Terra dade? Rabisco indiscernível?
zado sob pena de produzir vazios (miradas, caminhadas, marchas,
imensos impossíveis de sutura. mutirões), operam no espaço sobre- Referências
pondo-se em arquitetura, paisagem,
natureza, contextos tantos (social, CARERI, Francesco. Walkscapes
4. Transposições histórico, científico). E se fossem – el andar como practica este-
movimentos da Terra? Placas tectô- tica. Land & Scapes Series.
A contradição fundamental do nicas, continentes à deriva? Seria Barcelona: Editor GG, 2002.
rasgo é o motor para o atraves- então o grande rasgo do chão, remo-
samento da rigidez das estrutu- delaria a base dos seres da crosta, CARVALHO, Flávio. Experiência
ras: um muro atravessa a cidade e do qual só sentiríamos o sismo. n.º 2: realizada sobre uma procis-
há detentos nos jardins; a marcha são de Corpus-Christi: uma
sob palavra de ordem reinaugura O vazio da memória na arqueolo- possível teoria e uma experiên-
a paisagem, a obstrução dos olhos gia de Flávio de Carvalho é para cia. Rio de Janeiro: Nau, 2001.
leva à visão; atacar para fugir ao continuar vazio. No espaço obje-
encontro de si; construir caixas tivo ele é moeda forte da especu- CAUQUELIN, Anne. Arte contem-
para vazar o liso; fechar a porta lação imobiliária. Não só o artista porânea: uma introdução. São
para penetrar. O mesmo que nos quer o vazio, o sistema também. Paulo: Martins Fontes, 2005.
oprime nos protege (portas, pare- A demolição de casas antigas
des, muros, distâncias, véus), sua em ótimas condições de uso para DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix.
conduta depende do acordo entre empreendimentos modernos é só Mil Platôs: capitalismo e esquizofre-
intensidades, dureza dos corpos, um dos exemplos dessa prática. nia 2, vol. 2. São Paulo, Ed. 34, 2011. 94

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

CERTEAU, Michel de. A inven- org.br/post.php?i=368. Último SILVA, Raquel; COSTA, Marcus de
ção do cotidiano. Petrópolis: acesso: novembro de 2015. Lontra (Orgs.). Celeida Tostes. Rio
Ed. Vozes, 1994. de Janeiro: Memória Visual, 2014.
GUATTARI, Felix. As três ecologias.
DUCHAMP, Marcel. Manual Campinas, SP: Papirus, 1990. VÌDEO. Marcel Duchamp’s installation
of Instructions for the assem- “Étant donnés” at the Philadelphia
bly of Étant donnés: 1° la chute JAMESON, Frederic. Museum of Art in Philadelphia, color,
d’eau, 2° le gaz d’éclairage, 1966. Pós-modernismo: a lógica 1:25 min. Disponível em: https://
Medidas: 29.5 x 25 x 4.5 cm. do capitalismo tardio. São youtu.be/nzMznyyLwyM. Último
Doação de Cassandra Foundation, Paulo: Ed. Ática, 1997. acesso: novembro de 2015.
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23. IPHAN, p. 138-145, 1994. festos 1950-1960. São Paulo: 17ª BIENAL INTERNACIONAL DE
Livraria Duas Cidades, 1975. SÃO PAULO. Catálogo. Editora:
FARIAS, Agnaldo. São Paulo, Ó Quão Maria Otilia Bocchini, São Paulo,
Dessemelhante!. Catálogo da 25ª RANCIÈRE, Jaques. O espec- 1983. Disponível em: http://issuu.
Bienal de São Paulo – Iconografias tador emancipado. São Paulo: com/bienal/docs/namea77ef4.
metropolitanas, livro Cidades. Martins Fontes, 2012. Último acesso: novembro de 2015.
São Paulo: Fundação Bienal de
São Paulo, p. 250-251, 2002. SANTOS, José Mário Peixoto. Imagens:
Publicação eletrônica [mensa-
FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. gem pessoal]. Mensagem rece- Manual de instruções para monta-
25° Bienal de São Paulo, 2002. http:// bida por: <iawashi@gmail. gem de Étant donnés: 1. La chute
www.bienal.org.br/post.php?i=349. com> em 8 de out. 2015. d’eau, 2. Le gaz d’éclairage… (Dado:
Último acesso: novembro de 2015. 1. A cachoeira, 2. O gás de ilumi-
SERRES, Michel. Os cinco senti- nação…), páginas 10 e 11. Marcel
GIL, Thiago. Flávio de Carvalho. dos: filosofia dos corpos mistu- Duchamp, 1946 – 66. Museu de Arte
Arquivo 30ª Bienal de São Paulo, rados – 1. Rio de Janeiro: da Filadélfia, doação de Cassandra
29 Maio 2013. http://www.bienal. Bertrand Brasil, 2001. Foundation, 1969. Medidas: 29.5 x 95

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

25 x 4.5 cm. Disponível em: http:// Fotos: Henri Stahl. In SILVA,


www.philamuseum.org/images/cad/ Raquel; COSTA, Marcus de Lontra
zoomers/1969-41-2pp14-15up.jpg. (Orgs.). Celeida Tostes. Rio de
Último acesso: novembro de 2015. Janeiro: Memória Visual, 2014.

Vazadores. Rubens Mano, 2002.


25ª Bienal de São Paulo – pavilhão
da Bienal, Parque do Ibirapuera.
Foto: Uol Entretenimento. Disponível
em: http://d.i.uol.com.br/album/
rubens_mano_f_001.jpg. Último
acesso: novembro de 2015.

… assistia emocionado ao meu


desmanchar. Flávio de Carvalho,
1931. In Experiência n.º 2: realiza-
da sobre uma procissão de Corpus-
Christi: uma possível teoria e uma
experiência, 1931, São Paulo.

Cuando la fe mueve montañas.


Francis Alÿs em colaboração com
Cuauhtémoc Medina e Rafael
Ortega, 2002. III Bienal de Lima,
Peru. Participação dos estudan-
tes da Universidade de Engenharia,
da Universidade Católica, da
Universidade Federico Villareal
de San Marcos e demais voluntá-
rios. Disponível em: http://www.
art-magazin.de/bilder/11412/full-
size/nc04neg12a-ar.jpg. Último
acesso: novembro de 2015.

O Muro. Celeida Tostes, 1982.


Mutirão de construção no Parque
Lage, Rio de Janeiro, 1982. 96

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Tecno_Bioma:
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

territórios de
Pretende-se nesse artigo explorar as relações entre interagente e vida-
artificial geradas quando os dois tipos de agentes estão presentes num espaço

convivência virtual
de gamearte, assim como as relações entre as vidas artificiais em prol da
modificação desse mesmo ambiente. O trabalho em questão se chama Tecno_
Bioma. Baseado em um trabalho anterior intitulado “Eco_Artificial”, seu foco está
na ampliação de Eco_Artificial para um espaço de bioma artificial criando diversos
ecossistemas artificiais conectados entre si gerando um fluxo de dados entre eles
que permita a evolução e modificação desses ecossistemas através do tempo.

Palavras-chave: seta do tempo, interagente, ecossistema artificial,

Ronaldo Ribeiro da Silva1


vida artificial, gamearte, interagente, tecno bioma.

Fátima Aparecida dos Santos2


Abstract

This article is intended to explore the relationships between intelligent


and life-artificial generated when the two types of agents are present in
a gamearte space, as well as relations between the artificial lives, for the
modification of that environment. The work in question is called Tecno_
Bioma. Based on an earlier work entitled “Eco_Artificial”, its focus is on
expanding Eco_Artificial to an artificial biome space creating several artificial
ecosystems interconnected generating a flow of data between them which
allows the evolution and modification of these ecosystems through time.
1 Graduado em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília (2010), participou de Projetos
de Iniciação Científica da Universidade de Brasília,terminou o mestrado em &quot;Arte e Keywords: arrow of time, interacting, artificial ecosystem,
Tecnologia&quot; pela mesma instituição (2014) e atualmente está fazendo doutorado em Arte e artificial life, gamearte, interacting, techno_biome.
Tecnologia pela mesma Instituição. Atua como colaborador no Laboratório de Pesquisa em Arte
e Realidade Virtual - Midialab onde participou de uma sequência de oficinas do projeto; Cultura
Digital na Escola&quot; em 2014. 1. Introdução
2 Graduada em Design (programação visual) pela UNESP- Bauru em 1997, Mestre em Neste artigo a pesquisa retratada girará em torno da temática mista entre vida
Comunicação e Semiótica pelo PPG-COS da PUC_SP 2001 (defesa em 2002) com a pesquisa artificial e gamearte. A mescla desses temas tornou-se interessante para a
sobre as Linguagens do Web Design financiada pela FAPESP, Doutora em Comunicação e pesquisa devido a sua proximidade conceitual e pelas possibilidades estéti-
Semiótica pelo PPGCOS da PUC_SP em 2007 com pesquisa: Dimensões e linguagens do cas que podem ser exploradas pela mescla desses temas. Pretende-se nesse
design gráfico. Desde de Julho de 2008 é professora Adjunta do Departamento de Desenho artigo explorar as relações entre interagente e vida-artificial geradas quando os
Industrial da UnB (Universidade de Brasília). dois tipos de agentes estão presentes num espaço de gamearte, assim como 97

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

as relações entre as vidas artifi- eco_artificial3. A figura 2 mostras


ciais em prol da modificação desse como três espécies de simbion-
mesmo ambiente. O trabalho em te criados para o gamearte:
questão se denomina Tecno_Bioma.
Nesse contexto, o interagente é um
Baseado em um trabalho ante- observador semi-passivo que pode
rior intitulado “Eco_Artificial” cuja navegar pelo eco_artificial e inter-
a premissa básica é gira em torno ferir discretamente no ciclo de vida
da interação entre dois tipos de dos simbiontes, deixando-os mais
vida artificial e um interagente. A lentos ou mais rápidos de acordo
primeira vida artificial dentro desse com a proximidade deles. Assim, se
ambiente é o Recife Digital cujas estabelece o que até aqui foi deno-
características mesclam aspectos minado de ecossistema artificial ou
Figura 1 - Recife Digital – imagem autoral das favelas urbanas e dos recifes de eco_artificial que seria o conjunto
coral, basicamente ele seu padrão de todos esses os agentes presen-
de crescimento se assemelha ao tes no jogo que ao interagir entre
de um recife de coral e sua forma é si estabelecem relações ecológicas
similar às estruturas cúbicas caoti- básicas, como mostrado na figura 3.
camente organizadas da favela,
uma característica marcante do Dessa forma, o foco da pesquisa
seu padrão de crescimento está no de Tecno_Bioma está na ampliação
fato dele ser ininterrupto, ou seja, da proposta de Eco_Artificial crian-
Figura 2 - Simbiontes - imagem autoral enquanto o gamearte está aconte- do diversos ecossistemas artificiais
cendo o Recife Digital pode crescer conectados entre si gerando um
indefinidamente até tomar conta de fluxo de dados entre eles que permi-
todo o ambiente. A figura 1 mostra ta a evolução e modificação desses
uma das versões do Recife Digital. ecossistemas através do tempo. O
Interagente, também chamado de
A segunda vida-artificial é chamada co-autor da obra, é o ente vivo que
de simbionte, suas características ao acessar o gamearte torna-se um
se baseiam aspectos de microorga- agente ativo do gamearte ao seu
nismos existentes e são, basicamen- redor. Mesmo que ele tenha uma
te se movimentar, comer, se repro- interação essencialmente passiva no
Figura 3 - duzir e morrer. Seu único alimento ambiente; sua participação é impres-
Ambiente
é o Recife Digital, o que ajuda o cindível para que o gamearte possa
do gamearte
Eco_Artificial -
recife a se manter num tamanho acontecer. Vida-artificial é um ente
imagem autoral moderado para a manutenção do autônomo que leva essa designação 98

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

por prescindir ou não da ação de e de que forma eles se relacio- este tempo de ação no interior do
um interagente para dialogar com o nam com trabalho prático a ser gamearte corre apenas quando o
ambiente do gamearte devido ao fato desenvolvido durante o trabalho. interagente está presente, na sua
de ser capaz de consumir elemen- ausência esse tempo fica em suspen-
tos do gamearte, de se reproduzir no Esses conceitos permeiam tanto a so esperando até que o próximo
mesmo e dependendo do sua natu- pesquisa anterior (Eco_Artificial) interagente entre o ambiente.
reza passar modificações hereditá- quanto a pesquisa atual de Tecno_
rias aos seus descendentes median- Bioma. Sua importância para esses Partindo desse pressuposto, Tecno_
te o uso de algoritmo genético4. projetos está na base estrutural das Bioma terá eco_artificiais com fluxos
pesquisas, esses conceitos são o de tempo distintos devido a presença
O artigo tratará dos conceitos envol- ponto de partida do qual todos os ou ausência de indivíduos. Isso torna
vidos na pesquisa como a seta do aspectos do trabalho prático-teóri- o interagente uma peça importante no
tempo, autosimilaridade e o cubo co foi desenvolvido. Eles servem que tange a modificação do ambien-
de metatron. Também tratará da como embasamento teórico para te que o circunda quando ele está
relação entre o tempo e a ação do todos os aspectos comportamentais conectado a um dos eco_artificiais.
interagente dentro do contexto do e estruturais dos gameartes espe-
gamearte Tecno_Bioma. Além desses cificamente. Além disso contribuem Enquanto houver um único intera-
conceitos o artigo trará também das como incremento para a discussão gente dentros dos eco_artificiais, o
discussões feitas com um grupo poética da pesquisa, contribuin- tempo continuará seu fluxo permitin-
de interagentes que experiencia- do para o seu enriquecimento. do ao ambiente sofrer modificações
3 neologismo para ecossistema ram o gamearte e concordaram em diversas e proporcionando experiên-
artificial. deixar suas opiniões registradas para 2.1. Seta do Tempo cias diversas dentro desses espaços.
colaborar com implementação de Assim a última modificação que esses
4 Um algoritmo genético (AG) é uma maior interação entre o intera- O tempo é um conceito chave nessa espaços sofreram fica em suspenso
uma técnica de busca utilizada gente e os elementos do gamearte pesquisa pois permite a modifica- até que o mesmo seja acessado nova-
na ciência da computação para dentro da poética de Tecno_Bioma. ção desses ambientes ao longo de mente para dar continuidade a sua
achar soluções aproximadas em um período de acordo com as intera- evolução dentro da seta do tempo.
problemas de otimização e busca, E por último será feita uma descri- ções entre as vidas artificiais presen-
fundamentado principalmente pelo ção resumida sobre o ambiente do tes e a ação do interagente nesse Essa abordagem do fluxo de tempo
americano John Henry Holland. gamearte e como se dá a interação mesmo ambiente. Ação esta que dentro do gamearte tangencia
Algoritmos genéticos são uma entre todos os entes presentes nele. se dá quando o interagente se rela- diretamente o conceito de seta
classe particular de algoritmos ciona direta ou indiretamente com do tempo (Prigogine, 1996, pg
evolutivos que usam técnicas essas vidas artificiais ou outros inte- 171) no qual o aspecto irreversível
inspiradas pela biologia evolutiva 2. Principais Conceitos ragentes presentes no gamearte. deste é mais enfático tornando-o
como hereditariedade, mutação, um gerador de sistemas comple-
seleção natural e recombinação (ou Neste tópico serão discutidos os A ação do interagente nesse espaço xos diversos que tem nessa irre-
crossing over) (Linden, 2008). conceitos envolvidos na pesquisa é importante devido ao fato de que versibilidade do tempo a pedra 99

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

angular de seu desenvolvimento, na visualização do mesmo diante


consolidação e permanência no do interagente. Pensando nisso,
tempo como processo. depois de um estudo imagético,
optou-se por um desenho matemá-
Diversos sistemas naturais ou arti- tico de nome “Cubo de Metatron”.
ficiais têm no conceito da seta do Trata-se de um cubo formado por
tempo seu fator de complexifica- 13 círculos ligados por 78 linhas
ção, tornando esse conceito impor- sendo um dos componentes de um
tante para diversos segmentos que desenho mais complexo intitulado
precisam de tempo para passa- “Flor da Vida” (Frissel, 2006), como
rem de sistemas simples para siste- demonstrado nas figuras 4 e 5.
mas complexos. Assim conside-
rar esse conceito na estrutura de A imagem foi escolhida por ser
desenvolvimento do Tecno_Bioma simples e ter uma natureza frac-
é essencial para que o sistema tal que permite a sua reprodução
torne-se complexo ao longo do indefinidamente dentro de sua
Figura 4 - Cubo de Figura 5 - Flora da Vida - tempo em que o gamearte ocorra. estrutura tornando o desenho em
Metatron - http://migre. http://migre.me/salw3 si autosimilar em qualquer escala,
me/saluI No próximo tópico serão vistos os como mostrado na figura 6.
conceitos de autosimilaridade e o
Cubo de Metatron e como eles se Sendo a autosimilaridade um outro
relacionam entre si e com a seta do conceito recorrente na Teoria do
tempo dentro dos eco_artificiais. Caos, isso torna o Cubo de Metatron
ideal para representar o gamear-
2.2. A autosimilarida- te Tecno_Bioma por sua estrutu-
de e o Cubo de Metatron ra autosimilar em sua estrutura.

A autosimilaridade é um concei- Tendo esse cubo como representa-


to-chave para a compreensão ção do jogo, tornou-se necessário
dos fractais. Sua premissa básica dar-lhe uma conotação em 3 dimen-
é ser uma estrutura simples que sões para que o mesmo adeqüe-se
se replica infinitamente forman- mais ao gamearte, uma vez que este
do padrões altamente comple- se desenvolve em realidade virtual
xos ao longo do tempo. de três dimensões. Transpor o dese-
nho do “Cubo de Metatron” para o
A forma como a estrutura se conso- plano tridimensional foi relativa-
Figura 6 - Fractal Tree - http://migre.me/salKX lida é também um fator importante mente simples, pois o seu desenho 100

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

em cubo está numa perspectiva ligadas a 3 linhas, e ir complexifi-


isométrica5. Usando essa perspec- cando6 esse desenho a medida que
tiva ortocêntrica como desenho de outros eco_artificiais forem adicio-
referência num programa de mode- nados a trama de linhas e esferas
lagem e animação 3D para cons- até forma o cubo final de Metatron.
truir o cubo, bastou ajustar a pers-
pectiva do programa para o modo
ortocêntrico e construir o cubo no 3. Metodologia
mesmo ângulo mostrado no dese-
nho do Cubo fazendo com que suas Para gerar um maior diálogo entre
dimensões coincidirem com o dese- a pesquisa e a figura do interagen-
nho o mais precisamente possível. te, foi adotado como ferramenta de
pesquisa a utilização do método
Apesar da transposição ter sido de grupo focal para avaliar possí-
simples, foi surpreendente desco- veis elementos que surgissem do
brir que o cubo possuía, na ínte- diálogo com os interagentes que
gra, 16 esferas e 80 linhas ao aceitassem fazer parte do grupo
invés da quantidade de círculos e focal que foi desenvolvido. Um
linhas do desenho bidimensional, grupo focal é uma forma de agrupar
como demonstrado na Figura 7. idéias e impressões acerca de um
objeto dentro de um grupo interati-
Embora a imagem se assemelhe a vo cuja a discussão é mediada por
um modelo atômico, sua estética um moderador que trata de compi-
é apropriada para a representação lar as impressões dos participantes
geral do jogo, na qual pretende-se acerca desse objeto para um propó-
que cada uma das esferas assinala- sito específico (Laguna, 2005).
das no cubo seja, metaforicamente,
Figura 7 - Cubo de Metatron 3D – imagem do autor um eco_artificial diferente interliga- Com o intuito de experienciar o
do aos outros por meio das linhas gamearte foi criado um grupo de
que os intercomunicam totalizando 5 interagentes. A partir da expe-
16 eco_artificiais quando a última rimentação foi proposta uma
5 A perspectiva isométrica é um caso particular de projeção cilíndrica ortogonal. O sistema de versão do gamearte estiver pronto. discussão guiada com o grupo
eixos da situação a ser projetada ocorrerá na perspectiva, se vistos no plano, de forma equi- focal com o objetivo de refle-
angular a 120º (Dozzi, 1986, pg16). Desta forma, é possível traçar uma perspectiva isométrica Como proposta ainda em desenvol- tir sobre as experiências desses
através de uma malha de retas desenhadas a partir de ângulos de 30º (Machado, 1983, pg 207. vimento, pretende-se aqui apresen- com o ambiente do Tecno_Bioma
tar somente a primeira versão do 1.0 e levantar sugestões que auxi-
6 Do verbo “complexificar” que significa: v.t. Tornar mais complexo ou mais complicado. jogo o qual terá apenas 3 esferas liem na ampliação do diálogo da 101

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

obra com o interagente. Foi deixa- permitir que mais de um interagente


do que cada participante do grupo acesse os ambientes para que esses
de discussão jogasse cerca de 5 a possam interagir e interferir com
10 minutos no jogo e depois disso esse ambiente em conjunto, etc.
a discussão guiada tinha início.
O primeiro deles é em relação ao
Dessa forma, com essas contribui- comportamento dos simbiontes,
ções, o gamearte terá uma poéti- a nova possibilidade permitirá ao
ca mais plural devido ao fato de interagente interferir no tempo de
suas ampliações serem motiva- vida dos simbiontes, em sua veloci-
das não só por reflexões do autor, dade de locomoção e na sua repro-
mas por também ter a contribui- dução, como exposto na figura 8.
ção de interatores e suas sugestões
para o desenvolvimento da obra. Essas opções vão permitir ao inte-
ragente ter um diálogo com o
ambiente mais elevado que a mera
5. Resultados iniciais observação dos eventos gerados
pela segunda interatividade ante-
riormente disponibilizada. Embora
da pesquisa
Com base nas discussões feitas esses fatores citados sejam deter-
com o grupo de interagentes e nas ministas, a imprevisilidade da
mudanças na interface do jogo que mudança desses fatores sobre os
foram sugeridas por estes para eco_artificiais continua ativa, pois
aumentar a interação do interagen- esses fatores são apenas pontos
te com os eco_artificiais presen- de partida para o comportamen-
Figura 8 - variáveis iniciais do simbionte – tes no gamearte, alguns estudos tos dos simbiontes começarem
imagem do autor já começaram a ser implemen- sua vivência no jogo. Como eles
tados visando esse aumento. irão agir de acordo com as mudan-
ças implementadas pelos intera-
Os interagentes do grupo deram gentes no ambiente é um resul-
sugestões como: dar a eles a possi- tado que segue sendo observável
bilidade de interferir na expectativa apenas com passar do tempo para
de vida e população dos simbiontes, se expressar adequadamente.
deixar que o interagente se tornas-
se um dos simbiontes para que Outra implementação sugeri-
este compreendesse o ecossiste- da pelos interagentes do grupo
ma a partir do ponto de vista desse, de interagentes pesquisados foi 102

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

a de permitir ao interagente se proposta interativa a ser desenvol-


tomar o lugar de um dos simbion- vida futuramente dentro de Tecno_
tes e ver o gamearte a partir desse Bioma, pois diversas sugestões por
ponto de vista em terceira pessoa, eles feitas, poderiam não ter sido
como demonstra a figura 9. pensadas para o desenvolvimen-
to do gamearte se não tivessem
Com essa perspectiva o interagen- sido mencionadas pelos interagen-
te poderá ter uma nova possibili- tes do grupo de discussão. Seus
dade de interação com o ambien- pontos de vista foram importantes
te que lhe permitirá compreender para se chegar às propostas apre-
alguns aspectos do comporta- sentadas, desse modo a experi-
mento dos simbiontes que, de mentação de outros interagentes
outra forma, ele provavelmente com o gamearte poderá ser um dos
não teria de sua perspectiva de fatores de modificação do traba-
observador (primeira pessoa). lho a medida que este for sendo
construído ao longo da pesquisa.
Figura 9 - modo de 3ª pessoa – imagem do autor Algumas opções em relação ao
recife digital foram também propos-
tas. Opções como a quantidade 6. Discussão e conclusões
de cubos geradas a cada intervalo
de tempo e a duração desse inter- Os aspectos iniciais da pesquisa
valo. Como no caso dos outros começaram com uma expansão do
aspectos citados, essas variá- trabalho anteriormente desenvolvido
veis apenas determinam esta- na pesquisa, durante o desenvolvi-
dos primários dos eco_artificiais. mento do gamearte e das reflexões
Ao longo do tempo de jogo a ação necessárias a sua estruturação,
sobre esses aspectos iniciais do novos elementos começaram a deli-
gamearte possivelmente tornarão near novas perspectivas as quais só
o ambiente mais imprevisível de estão começando a serem explora-
acordo com a passagem do tempo. das na pesquisa. Os resultados preli-
As opções relacionadas ao recife minares alcançados quanto a propo-
digital são mostradas na figura 10. sição de novos elementos interativos
no ambiente para um maior diálo-
O diálogo com o grupo de intera- go do interagente com este meio,
gentes que aceitou participar da sugerem caminhos que apontam
experiênciação com o gamear- possivelmente para a construção
Figura 10 - variáveis iniciais do recife digital – imagem do autor te foi preponderante para a atual de espaços colaborativos nos quais 103

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

dentro de Tecno_Bioma cuja comple- LAGUNA, Fabrício. Um guia


xidade sistêmica ainda é uma incóg- para o Corpo de Conhecimento
nita que só a passagem do tempo de Análise de Negócios (TM).
pode vir a ser capaz de delinear. IIBA, Canadá, 2005.

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Arquivo:
COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

Resumo

atravessamentos
Na arte contemporânea é possível apontar variadas práticas sobre arquivo: em
sua concepção usual, que engloba tratar, inventariar, organizar, classificar, guardar

e aberturas na Arte
obras e documentos; em processos experimentais e inventivos que buscam a
extensão ou desconstrução do termo; ou ainda em sua concepção inversa, como
experiência desprovida de resto. O artigo trata destas possibilidades a partir

Contemporânea
das leituras Mal de Arquivo: uma impressão freudiana de Jacques Derrida e A
Arqueologia do Saber de Michel Foucault. Apresenta documentações de ações
por mim desenvolvidas que constam em arquivo pessoal, na tentativa de buscar
abertura do arquivo como potência poética. O texto assume caráter especulativo,
como fluxo de um pensamento desprovido de perspectivas conclusivas.

Palavras-Chave: Arquivo. Arte Contemporânea. Poética.

Lúcio de Araújo
Abstract
1
In contemporary art it is possible to identify different practices about archive: in its
usual conception, which includes to manage, to inventory, to organize, to classify,
to store works and documents; in experimental and inventive processes that
pursue the extension or deconstruction of the term; or in its reverse conception,
as an experience devoid of remainder. The article treats these possibilities from
the readings Archive Fever: A Freudian Impression by Jacques Derrida and
The Archaeology of Knowledge by Michel Foucault. It presents documentation
of actions developed by myself contained in personal archive. The attempt is
to look for the opening of the archive as poetic potential. The text takes on a
speculative basis, as flux of a thought devoid of conclusive perspectives.

Keywords: Archive. Contemporary Art. Poetics.

Gestos, aberturas, atravessamentos


1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em Arte do Instituto de Artes da
Universidade de Brasília (UnB), linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, sob orientação Busco a ampliação das noções de arquivo em relação a arte. Penso na potên-
da Dr.ª Karina Dias; Especialista em História da Arte Moderna e Contemporânea (EMBAP), cia poética desse encontro por meio de operações artísticas que provocam
Graduado em Educação Artística – Artes Plásticas (UFPR). Websites: http://luciodearaujo. tensões espaço-temporais sobre acumulações de experiências, dados arma-
wordpress.com/; http://transitos.org. Email: lucio@transitos.org zenados e conjuntos serializados. Assim, proponho uma viagem em arquivo, 105

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um atravessamento em universos engloba fotografias, áudios, vídeos, em seu esquadrinhamento, racio-


documentais. A tentativa é estabe- publicações, cadernos, anotações, nalização e nomeação, a partir de
lecer movimento ao que foi reunido, cartografias, esboços, restos, obje- um centro estabelecido, em cará-
incitar variações enunciativas, esti- tos, lembranças, narrações e memó- ter homogenizado, de modo contí-
mular suas atualizações, perceber rias. Imerso nesse conjunto de mate- nuo e sistemático, pressuposto em
outras possibilidades, como sinal de riais estabeleço como roteiro de tempo cronológico, sob guarda,
expansão, em múltiplas direções. viagem um percurso autobiográfico, confinado em local apropriado, com
Uma investigação cuja perspecti- no qual reviver ganha dimensão de procedimentos a fim de assegu-
va se delineia a partir da evidên- um profundo mergulho no oceano do rar a preservação e permanência,
cia de meu fazer artístico e que tem autoconhecimento, tendo como guia criteriosamente definidos por uma
sentido derivativo, ao passo que o horizonte. Nessa trajetória artística gerência que delimita o que (e como)
percorre, em movimento espiralado, encontro indícios dessa verve arqui- deve ser arquivado. Um hercúleo
caminhos trilhados, agita singula- vística em processos diversos de esforço que pressupõe garantias
ridades, fenômeno capaz de gerar Vitoriamario, Orquestra Organismo, de mantenimento de uma história
novas percepções, pontos de fuga, Coletivo E/Ou, Trânsitos e Antitotem, e o direito de acesso por gerações
aberturas criadas, que (des)alinham os quais atravessarei de modo futuras de um passado devidamen-
eixos, transformam prismas, viabi- breve. Previamente cabe efetuar te registrado, sistematizado e de
lizam conexões, sentidos e signifi- algumas considerações sobre certas algum modo disponível à consulta.
cados. Compreendo arquivo como noções de arquivo, dando desta- São práticas comuns da arquivísti-
conjunto de passos dados. Nos que aos pensamentos de Foucault e ca inventariar, organizar, classificar,
acasos do percurso, dos desvios, Derrida, abrindo os horizontes das preservar documentos, artefatos e
saltos e tropeços estabeleço desdo- produções artísticas mencionadas. obras. Como conjunto de informa-
bramentos indetermináveis que ções registradas em suporte espe-
recontextualizam seus conjuntos, cífico, o documento desse tipo de
vínculos e dissociações temporais. Variações de arquivo arquivo é concebido em uma ampla
A postura é a do reconhecimento gama de possibilidades materiali-
de práticas artísticas obstinadas a Desde o iluminismo o termo arquivo záveis como mídias digitais, mídias
multiplicidade, tramadas e revisi- é usualmente designado à preser- analógicas, documentos de estado,
tadas, colocadas à prova em cada vação da memória de determina- impressos, jornais, cadernos de
instante. Um gesto de (re)invenção. da cultura, compreendido como campo, anotações, objetos pesso-
conjunto de documentos históricos ais, itens de coletas, entre outros,
O arquivo que menciono que ordenam informações sobre que se justificam em sua dimensão
reúne um conjunto de documen- pessoas, lugares e eventos. De início de prova de determinados aconte-
tos acumulados em diversas ações considera sua pretensão de ordem cimentos e discursos. De fato, em
artísticas por mim desenvolvidas nos e de governo, no sentido de começo muito o arquivo mantêm as noções
últimos anos, consolidados agora em e comando que o termo etimologica- da racionalidade iluminista-moder-
arquivo de artista. Material esse que mente supõe (DERRIDA, 2001, p.11), na, apoiado em modelos sob uma 106

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perspectiva histórica homogenei- se relacionar com processos inven- a década de 1960 em seu ateliê/
zante, com pretensa busca pela tivos, que buscam tanto a elabora- arquivo/labirinto. Para Cristina
verdade e com vista ao retorno à ção como a extensão ou descons- Freire o caos é a ordem, por esse
origem (COSTA, 2010, p. 62). No trução do termo; nesse sentido um paradoxo ela identifica uma inten-
entanto, o arquivo, enquanto sujei- arquivo é passível de transformação, ção que converge em invenção:
to aos caprichos do tempo, mais do pode ser recombinável, atualiza-
se voltar ao passado também pode do indefinidamente, potência poéti- O labirinto expressa essa von-
determinar o futuro. Para Derrida, a ca, de modo paradoxal ao mesmo tade imemorial e simbólica
questão do arquivo não se limita ao tempo âncora e abismo. Sob o viés de representar o infinito, em
passado, mas sim a própria ques- experimental, um artista se depara eterna mutação na figura do
tão do porvir, “a questão de uma com um mundo, dentro do mundo. espiral. Essa constante dinâ-
resposta, de uma promessa e de E irremediavelmente o aceita como mica, manifesta na vontade de
uma responsabilidade para amanhã” possibilidade, impinge ação sobre abraçar o universo numa tota-
(DERRIDA, 2001, p.50). Nesse senti- arquivo, ao tempo que também o lidade tangível, está presente
do, as noções de arquivo caminham amplia. Em análise geral, Rosângela nesse arquivo, e guardar é ali
ao exploratório, ao recombinató- Cherem aponta virtudes do arquivo sinônimo de revitalizar formas
rio, em que enxergo arquivo como que revelam enorme valor criativo e comuns de conceber o fazer ar-
desafio, em sua finitude ilimitada, portanto, de interesse aos artistas: tístico. (FREIRE, 2006, p.169).
inclinação topológica, furor tempo-
ral, que tensiona de modo ines- Concebido como um inesgotável Para Bruscky, revisitar
gotável as contrições do tempo. arsenal imagético, nele coexis- seu arquivo é o meio de retomar
Portanto não é exagero pensar que tem todo tipo de referências e in- ideias deixadas de lado em outros
o arquivo é composto pela varia- terlocuções que constituem o re- espaço-tempo e que permane-
ção de tempos – presente, passa- pertório, seja plástico ou teórico, cem dotadas de enorme potencial
do e futuro, que se embaralham, que os artistas trazem e proces- para desencadeamentos artís-
se impregnam em seus limiares. sam no interior de seu trabalho. ticos. Simultaneamente, esse
É ali, ainda, que são germinadas espaço fornece as coordenadas
De outro modo, há a exten- as noções operatórias com as para análise de sua poética.
são do arquivo como memória quais eles definem suas solu-
desprovida de materialidade, cuja ções matéricas e de fatura, bem Destaco duas noções parti-
volubilidade lhe é inerente. Ainda, como reconhecem e proces- culares sobre arquivo. Elaboradas
a concepção inversa do arquivo, o sam suas articulações poéticas. por dois pensadores pós-moder-
Anarquivo, que estabeleço como (CHEREM, 2013, p. 2065-2066). nos, deflagram suas intensida-
experiência desprovida de resto ou des, efetivam singularidades,
dada ao esquecimento. Me interessa Paulo Bruscky compreende o ampliam horizontes epistemo-
pensar que as diferentes concepções potencial do arquivo, o artista arma- lógicos, extremamente críticos,
de arquivo de algum modo podem zena variados documentos desde revolvem os limiares acerca da 107

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

importância que o arquivo estabe- do enciclopedismo do século XVIII e longe de ser apenas o que nos
lece sobretudo a partir da segun- perspectiva historicista das ciên- assegura a existência no meio
da metade do século XX. Ambos cias humanas, esta vinculada a do discurso mantido, é o que
os livros, apesar da idade de publi- continuidade, tradição, origem, diferencia os discursos em sua
cação dos originais, permanecem verdade, evolução, linearidade. O existência múltipla e os espe-
atuais a qualquer pesquisador que autor propõe ainda noções rela- cifica em sua duração própria.
propõe pensar as relações entre cionadas à topologia dos limiares (FOUCAULT, 2009, p. 147).
arte e arquivo, são eles: Mal de do saber, como a descontinuidade,
Arquivo: uma impressão freudiana ruptura, transformação, diferen- Ao longo das páginas Foucault
de Jacques Derrida e A Arqueologia ça (COSTA, 2010, p. 63). O termo trama sua teoria enunciativa que
do Saber de Michel Foucault. empregado por Foucault trata de se inclina à percepção da diferen-
compreender um jogo de rela- ça destituída de uma matriz iden-
ções de nível discursivo, segundo titária, como “origem esquecida
Limiar do arquivo suas regularidades específicas: e recoberta”, mas ao movimento
difuso de nossa existência, relacio-
Quarto grande livro escrito por Arquivo é, de início, a lei do nado à “dispersão do que somos
Michel Foucault, A Arqueologia que pode ser dito, o sistema e fazemos” (FOUCAULT, 2009, p.
do Saber foi publicado em 1969 e que rege o aparecimento dos 149). No limite, trata-se de um “Lado
representa um marco fundamental enunciados como acontecimen- de Fora” dobrado em subjetivida-
na trajetória do pensador. Em sua tos singulares. Mas o arqui- de na qual dispersão e heteroge-
proposta de elaborar uma teoria vo é, também, o que faz com neidade se conectam pelos vetores
dos enunciados o autor denomina que todas as coisas ditas não transversais em uma topologia das
arquivo “o sistema geral da forma- se acumulem indefinidamen- multiplicidades, proporcionando o
ção e da transformação dos enun- te em uma massa amorfa, não atravessamento dos níveis estrutu-
ciados” (FOUCAULT, 2009, p. 148). se inscrevam, tampouco, em rais no tempo e no espaço. Quanto
Arquivo não estaria portanto rela- uma linearidade sem ruptura e a sua noção de raridade, compre-
cionado ao conjunto de documen- não desapareçam ao simples ende que os enunciados apesar
tos sobre o passado que determi- acaso de acidentes externos, de desprovidos da necessidade de
nada cultura guarda em seu poder, mas que se agrupem em figu- originalidade (longe de se expri-
ou ainda vinculado as institui- ras distintas, se componham mirem em termos como origem ou
ções responsáveis em registrar e umas com as outras segundo começo), emitem singularidades ao
conservar os discursos escolhi- relações múltiplas, se mante- se presentificarem como regularida-
dos para serem disponibilizados nham ou se esfumem segundo des enunciativas, ou seja, através
como lembrança oficial. Foucault regularidades específicas; […] do acúmulo se conserva e por suas
opera um deslocamento no sentido Longe de ser o que unifica tudo aberturas se transmite, se repete
conceitual do termo, tece fina análi- o que foi dito no grande mur- em diferença. “O enunciado é em si
se à ideia de racionalidade incisiva múrio confuso de um discurso, mesmo repetição, embora o que ele 108

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repete seja outra coisa – que pode, Arquivo e seu mal: vocação, silenciosa, destruidora
contudo, ser semelhante e quase do arquivo” (DERRIDA, 2001, p. 21).
idêntica” (DELLEUZE, 2005, p. 23). Portanto, verifica-se que o arqui-
duas faces da mesma
Delleuze percebe que a arqueolo- moeda em sismo vo traz em si uma ambiguidade,
2 Moisés e a religião gia de Foucault se contrapõe as como duas faces da mesma moeda,
monoteísta de Sigmund Freud, técnicas de formalização e inter- Jacques Derrida apresenta sua em que se tem de um dos lados o
Zakhor. História Judaica e Memória pretação utilizadas pelos arqui- conferência O conceito de arqui- desejo de memória e no outro, o
Judaica e O Moisés de Freud. vistas. “O enunciado é, ao mesmo vo. Uma impressão freudiana no dia desejo da destruição. Paradoxo que
Judaísmo terminável e interminável tempo, não visível e não oculto” 5 de junho de 1994 em Londres, se desdobra na seguinte condição
do historiador Yosef Hayim (FOUCAULT, 2009, p. 124). Apesar na ocasião do colóquio intitula- observada pelo autor: “todo arqui-
Yerushalmi. de se referir ao dito, o enunciado do Memória: a questão dos arqui- vo […] é ao mesmo tempo institui-
não se faz perceptível de imediato, vos. A pesquisa por ele apresenta- dor e conservador. Revolucionário
3 Em Gramatologia, a o que requisita esforço no senti- da derivou no livro Mal de Arquivo: e tradicional” (DERRIDA, 2001, p.
desconstrução está relacionada do da descoberta e invenção: Uma impressão Freudiana. A partir 17). Nessa circunstância irresolu-
ao questionamento da clausura das leituras de Freud e Yerushalmi2, ta verifica-se que as distinções são
histórica de gestos e pensamentos, Há que perseguir as séries, Derrida estabelece, através de seu abaladas, momento em que o sismo
sentido delineado pela passagem: atravessar os níveis, ultra- método de desconstrução3, uma atua sobre o princípio nomológi-
“Um motivo a mais para não passar os limiares, nunca se crítica ao arquivo que escapa da co do arquivo, gesto voraz defla-
renunciarmos a estes conceitos é contentar em desenrolar os concepção tradicional provenien- grado nos limiares de sua nature-
que eles nos são indispensáveis fenômenos e os enunciados te do campo da história, “tecido em za, nas hesitações históricas, em
hoje para abalar a herança de segundo uma dimensão hori- torno da dupla oposição conceitu- suas fronteiras ontológicas, como
que fazem parte. No interior da zontal ou vertical – mas formar al verdade material/verdade histó- a moeda quando lançada à sorte,
clausura, por um movimento oblíquo uma transversal, uma diagonal rica” (BIRMAN, 2008, p. 106), pois em seu vertiginoso giro, momen-
e sempre perigoso, que ocorre móvel, na qual deve se mo- percebe que o discurso psicanalíti- to cujas faces indefinidas insurgem
permanentemente o risco de recair ver o arquivista-arqueólogo.” co concebido e modulado pelo bloco pela reabertura: “um sismo que não
aquém daquilo que ele desconstrói, (DELLEUZE, 2005, p. 32). mágico é propriamente um discur- poupa nenhum preconceito classi-
é preciso cercar os conceitos so do arquivo no qual se configu- ficatório e nenhuma organização
críticos por um discurso prudente e A leitura de A arqueologia do saber, ra uma estranha força de efeito do arquivo. A ordem não está mais
minucioso, marcar as condições, o a partir da tentativa de ampliação inverso, uma pulsão contrária ao garantida” (DERRIDA, 1995, p.15).
meio e os limites da eficácia de tais das noções de arquivo, faz pensar desejo de memória, inclinada ao
conceitos, designar rigorosamente na atitude política que o arqui- esquecimento. Esse apagamento
a sua pertencença à máquina que vo sustenta, no que ele traz como Freud define como pulsão de morte. Arquivo de artista
eles permitem desconstruir; e, discurso e o que deixa de fora. Para Violência denominada por Derrida
simultaneamente, a brecha por onde o autor, arquivo está relacionado como febre de arquivo ou mal de Acionar o arquivo é provocar o
se deixa entrever, ainda inomeável, o com a diferenciação dos discur- arquivo. A “pulsão de morte é, acima sismo, é não garantir, é arriscar. É
brilho do além-clausura (DERRIDA, sos em sua existência múltipla e os de tudo, anarquívica, poderíamos recombinar ou descombinar, atri-
1973, p. 16-17).” especifica em sua duração própria. dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por buindo errância em presentificação. 109

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É lançar-se ao ilimitável finito,


seja pelo gesto, por suposição
ou instinto, seja por devaneio ou
pura diversão. Tendo em mente
as noções de arquivo já esboça-
das, perseguindo as noções perdi-
das ou não inventadas, comparti-
lho meu arquivo pessoal, repleto
de restos de procedimentos, de
operações artísticas, de limiares.
A perspectiva é de sua abertura.

Vitoriamario
Condivíduo de caráter anárquico,
identidade aberta, Vitoriamario é
uma máscara vazia de uso coleti-
vo cujo propósito é a resistência
político-cultural. Na guerrilha das
comunicações, os desvios e deva-
neios vitoriamarianos são difundi-
dos por meio de manifestos detur-
pados, páginas web desatualizadas,
spamails, usuários em redes sociais
com senha aberta, textos plagiados,
falsificações de mitos, publicações
de álbuns musicais, simulações de
entrevistas, apropriações de vídeos
e fotografias. Após ter anunciado
seu suicídio em 1999, já em estado
de decomposição foi identifica-
do pelos algoritmos de busca em
Vitoriamario. Saci: Qual seu real valor? 2015. Arquivo pessoal. Apodrece e Vira Adubo, uma de suas
páginas web veiculada no início
dos anos 2000, onde estão reuni-
das diversas elucubrações sobre a 110

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COLETIVO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE

cultura do excesso, banalização da


ordem, denúncia da propriedade
(sobretudo intelectual), desconstru-
ção de comportamentos alienantes
e opressivos, além da vulgarização
da história linear, dos concei-
tos de originalidade e de autoria:
“Vitoriamario confunde-te por muito
menos” (VITORIAMARIO, 2004).

Orquestra Organismo
Coletivo de caráter artístico-ativis-
ta, Orquestra Organismo promo-
veu diversas ações relacionadas
a agenciamentos poéticos que se
destacaram: pelo aspecto cola-
borativo e gestão horizontal; pela
reflexão sobre os recursos tecno-
lógicos, sobretudo no pensamen-
to sobre a utilização e difusão de
ferramentas voltadas ao conheci-
mento aberto (software e hardwa-
re livres), contextualizado e de
constante recombinação simbóli-
ca; e pela construção de métodos
centrados no processo de pesqui-
sa e experimentação. Entre suas
variadas ações destaco Hackeando
Catatau, espaço web para publi-
cação e documentação. De cará-
Orquestra Organismo. Caverna Kernel. Museu da Gravura. Curitiba-Pr. 2009. Arquivo pessoal. ter aberto e participativo, o blog
era desprovido de delimitação
editorial, embora o conteúdo em
geral assumisse tendência poéti-
ca. Desafiatlux (2005) e ConSerto 111

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(2007) continham em suas propos- de Caminhos para Casa foram reali-


tas a transformação do espaço zados acionando memórias e dese-
ofertado em um núcleo de experi- jos dos usuários do próprio termi-
mentação participativo, em encon- nal, relativos a recodificação do
tros periódicos abertos aos mais espaço urbano. Na Descartografia,
variados tipos de ações artísti- as pessoas foram convidadas a
cas, convergindo poesia, música intervir em um mapa dado – uma
e artes visuais. Interfaces (2008) versão oficial adaptada aos limites
viabilizou uma casa/laboratório, na geográficos de nossa investigação.
qual o grupo desenvolveu pesqui- As localidades representadas no
sa artística em arte e tecnologia mapa passaram a agregar diferen-
em ambiente de imersão e intensa tes nominações, foram apagadas e/
convivência, assumindo as rela- ou redesenhadas, surgiram novas
ções do cotidiano como método convenções existenciais a partir
artístico coletivo. O conjunto de do território vivido. Memórias de
situações geradas nesse ambien- Caminhos para Casa é um regis-
te culminou na mostra Caverna tro gráfico construído a partir
Kernel (2009)realizada no Museu do acúmulo das lembranças dos
da Gravura em Curitiba. Todas indivíduos, em desenhos de traje-
essas ações geraram em seus tos percorridos e em palavras que
processos uma densa e caótica traduziam a experiência cotidiana
documentação. O coletivo encer- desses percursos. Em Recartógrafos
rou suas atividades em 2010. (2010) foi desenvolvida uma carto-
grafia colaborativa da área de
risco chamada Pequeno Espaço, a
Coletivo E/Ou produção de um mapa hidrográ-
fico e a publicação do catálogo
A partir de 2008 o Coletivo E/Ou, Recartógrafos. Entre 2012 e 2013 o
composto pelos artistas Lúcio coletivo concentrou-se em propos-
de Araújo, Claudia Washington e tas museográficas, com montagens
Coletivo E/Ou. Memórias de caminhos para casa
Newton Goto, propôs uma série expositivas de cunho compilatório,
(Descartógrafos). Terminal de ônibus do Pinheirinho,
Curitiba-Pr. 2008. Arquivo pessoal.
de intervenções urbanas. Em como a instalação Re(des)cartógra-
Descartógrafos, propôs reinventar fos que agregou em mídias diversas
mapas da região sul da cidade de a materialidade fugidia das inter-
Curitiba e municípios limítrofes a venções e organizou um conjunto
partir de um terminal de ônibus. Os de arquivos acumulados em sua
mapas Descartografia e Memórias poética descartográfica. Desde o 112

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início das experiências cartográfi- Trânsitos tem como processo central


cas observa-se uma inclinação ao a proposta Trânsito à Margem do
arquivo, presente tanto em proce- Lago (2009-2011), onde o desloca-
dimentos da produção de imagens, mento é ação fundamental à amplia-
no acúmulo e camadas de inter- ção de territórios, a produção e
venções criadas pelos participan- distribuição de arquivos constituin-
tes, nas compilações posteriores do novos espaços de atuação. A
dadas pelos registros e documen- ação propôs uma deriva ao redor do
tações, nas propostas expositivas Lago Artificial da Usina Hidrelétrica
e em suas escolhas de montagem. de Itaipu. Além disso foram reali-
zados o encontro Relações de
Fronteira, a publicação Caderno
Trânsitos de Viagem4 e o vídeo À Margem.

Nas incursões e derivas realiza- Esse conjunto é composto por


das em parceria com a artista ações efêmeras cujos arquivos
Claudia Washington desde 2008, foram parcialmente publicados
um processo que agrega mobilida- em ambiente web5 e expostos na
de, produção audiovisual, fotográ- mostra Cinco Lagos no Museu da
fica, gráfica, textual e publicação. Fotografia da Fundação Cultural de
Lúcio de Araújo e Claudia Washington. Arquivo Spaniol A proposta trata de estratégias de Curitiba em 2012. Essa exposição
(Cinco Lagos). 2011. Arquivo pessoal. tomada de espaço, modos de fazer partiu dos arquivos não publica-
que configuram um campo cria- dos em um primeiro momento, cuja
4 Washington, C. et al. Trânsito à Margem do Lago: Caderno de Viagem. Curitiba tivo móvel. Claudia Washington abordagem curatorial considerou a
: edição do autor, 2010. Publicação realizada de maneira colaborativa. Seu processo de define tal estratégia como: natureza dos registros e das situa-
elaboração deu-se em três etapas: a primeira partiu do convite a pessoas que, por seus fazeres ções que os geraram para confor-
e modos de estar, dialogam com questões sobre as quais o projeto Trânsito à Margem do o plano gerado por aqueles que mar cinco ambientes: Anunciación,
Lago se debruça; a segunda etapa ocorreu ao longo da deriva realizada durante os 30 dias de alguma maneira sentem ou Vila C, Travessia, Outras Palavras,
do mês de janeiro de 2010, assumindo um caráter mais processual (ao passo dos encontros percebem os limites a eles im- Rádio Marangatu e ainda o Plano
e acontecimentos, novos conteúdos eram agregados ao Caderno – fotocopiado e distribuído pingidos pelo modo de organiza- de Inundação da Capital. A propos-
durante o percurso, esse material foi um importante objeto para novas relações); a terceira etapa ção da vida cotidiana. A partir de ta expositiva incluiu também duas
aconteceu após o retorno a Curitiba, também agregou contribuições de colaboradores e somou algumas delas é possível tornar palestras e a publicação do catá-
parte da documentação gerada durante a deriva. visível aquilo que é omitido, saber logo Todavia Rohayhu6. Cinco
como se move o opressor, ocu- Lagos ainda acionou arquivos de
5 http://transitos.org par áreas restritas e tomar co- outros participantes e instituições,
letivamente espaços de tirania. procurando relacionar distintas
6 Washington, C. et al. Todavia Rohayhu. Curitiba : Claudia Washington, 2012, v.1. p.32. (WASHINGTON, 2011, p. 57). fontes documentais e desejos. 113

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Antitotem
No projeto Antitotem, objetos
sonoros nos fluxos da cidade
propus, por meio de objetos
eletrônicos e seus sinais sonoros,
experiências sensoriais voltadas
ao espaço vivencial. Esses objetos,
dispostos em espaços específicos
que a cidade oferta, sugerem
outros caminhos, tensionam
rotas, sinalizam o entorno, criam
diálogos, estabelecem presença,
preenchem lacunas, evidenciam a
ausência, reinventam tecnologias
que possibilitam a interatividade
e ampliam dinâmicas espaço-
temporais. Em potencial, são
catalisadores de percepções sobre
a materialidade da cidade, ou
seja, antes de ser uma ação da
pessoa sobre o objeto é a escuta
do espaço habitado. Os objetos
são caixas sonoras compostas
por circuitos e componentes
eletrônicos. A manipulação desses
instrumentos gera uma gama
de timbres, ritmos e espectros
sonoros no ambiente. Cada objeto
é acompanhado de registro em
vídeo referente à instalação do
Lúcio de Araújo. Ocupação da base de pedra da escultura Luar do Sertão de João Turin (Antitotem). mesmo em locais estratégicos da
Rótula viária do Centro Cívico, Curitiba-Pr. 2012. Arquivo pessoal. cidade, de esquemas de fabricação
e tutoriais, parte deles publicados
em página web própria.7
7 http://transitos.org/antitotem/oficina_antitotem.html 114

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Em todas as propostas descritas singular relação de junção e distân- de mobilidade, de deslocamen-


acima o arquivo nasce de ações cia com o tempo: “a este adere to, como nomadismo pós-moder-
criativas e se estabelece como através de uma dissociação e um no. Uma guinada transgressiva, um
espaço de investigação. Ao ser anacronismo” (2009, p.59). Para o poder vital que se opõe as diversas
acionado por novas práticas autor, o contemporâneo se instaura formas de clausura, pois é desejo
experimentais revela seu potencial na confluência de diversos tempos, de rebelião contra a funcionalida-
de recombinação, se entrega em na relação especial entre presen- de, contra a redução do mundo em
novas singularidades, em ilimitados te, passado e futuro, bem como simples engrenagem mecanicis-
desdobramentos. Assim, a ação nos limiares do visível e não-visível, ta da sociedade. Uma postura que
artística sobre o arquivo tem a do dito e não-dito, do memorial e privilegia o exterior, aberta ao ao
propriedade de ampliar o que Félix imemorial. O contemporâneo se faz mundo e aos outros, cujo reconhe-
Guattari denomina como territórios no momento em que há atitude no cimento não se dá no estado de
existenciais, ou seja, de “sustentar sentido de transformar o tempo, a coisas existentes, mas na “aspiração
a produção de existentes singulares partir de uma cesura que o divide e o do que poderia ser” (2001, p.32).
ou de resingularizar conjuntos descontinua, no movimento de inter-
serializados” (GUATTARI, 1996). polação que introduz uma essencial Na evidência da impotência de
heterogeneidade. Contemporâneo domesticação do contemporâneo,
é estabelecer o encontro entre uma vez que precede a palavra,
Abismo contemporâneo os tempos e as gerações. em sua latência deflagra o lugar
no não nomeado. Nesse momen-
As práticas artísticas e vivências Para Michel Maffesoli, diferentemen- to o arquivo se aproxima de sua
recentes abordadas, se relacionam te do compromisso moderno com origem, instante em que a liber-
de diferentes modos às noções de a permanência, controle, fecha- dade pulsa no presente do caos.
arquivo aqui vistas. Mais do que mento, normatização e domesti-
delimitar suas especificidades e cação, o contemporâneo carrega Referências
tipologias, me interessa a abertu- em seu íntimo o desejo de errância
ra ao contemporâneo para qual o como “sede de infinito” (2001, p.21), AGAMBEN, Giorgio. O que é o
arquivo nos conduz irremediavel- expressa a necessidade do vazio, contemporâneo? Em: AGAMBEN,
mente, o choque das existências da perda, do que foge da ordem Giorgio. O que é o contem-
as quais nos deparamos no infini- das coisas ou contabilizações, do porâneo? e outros ensaios.
to instante do inominável. Arrisco, codificável e identificável. O autor Chapecó: Argos, 2009. p. 53-73.
ainda que brevemente, um salto em privilegia o presente, o cotidiano, no
sua multiplicidade por pensamentos sentido hedonista, como “a suces- ARAÚJO, Lúcio. Orquestra
que lançam o arquivo em diversas são de instantes preciosos por sua Organismo: Poética do agencia-
possibilidades e caminhos. Giorgio própria fugacidade” (2001, p.29). mento coletivo. Monografia apre-
Agamben sugere que o contemporâ- Enfatiza a modulação contempo- sentada à Escola de Música e Belas
neo paradoxalmente comporta uma rânea de desejo de outro lugar, Artes do Paraná para obtenção do 115

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116

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