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1590/S1413-24782022270065
ARTIGO
Cultura digital, imaginários de trabalho
docente e a profissionalização do ensino:
a série Rita
RESUMO
Esta pesquisa documental objetiva identificar imaginários de trabalho docente
expressos/difundidos na série Rita (Netflix, por streaming), protagonizada por uma
professora. Da análise, emergiram os imaginários de trabalho docente: solitário e
individualizado; temporalizado, regrado e rotinizado; conflitivo; técnico; apartado
do debate social e com práticas pedagógicas tradicionais; submetido a relações
autoritárias, competitivas, ameaçadoras, disciplinares e punitivas. Tais imaginários
correspondem a concepções antigas de ensino (como vocação e ofício) e a uma
socialização docente marcada pela feminização — avessas às formas contempo-
râneas de ensino e à ideia de docência como profissão. A abordagem considera o
contexto da cultura digital que incide nas formas de percepção e representação da
docência no espaço público da educação, expressando/difundindo imaginários que
atravancam o debate social da profissionalização docente.
PALAVRAS-CHAVE
profissionalização do ensino; formação de professores; trabalho docente; socialização docente;
cultura digital.
I
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, SP, Brasil.
II
Prefeitura Municipal de Campinas, Campinas, SP, Brasil.
III
Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil.
INTRODUÇÃO
O artigo dialoga com as áreas de educação e comunicação para vislumbrar, no
cenário da cultura digital contemporânea1 os imaginários sociais acerca da docência
resultante da observação de uma produção midiática. Diante da formação cultural
mais ampla, mira faceta pouco abordada do processo de socialização profissional
de professores, que diz respeito à imagem da docência na sociedade, podendo
tensionar ou impulsionar a ideia da docência como uma profissão. No contexto da
cultura digital, busca enriquecer o debate social do processo de profissionalização
e desenvolvimento profissional docente.
Nóvoa (2017) afirma ser necessário pensar a formação de professores como
formação profissional: pautada pela ideia de continuum (formação inicial – indução
profissional – formação continuada), ou seja, produzida em lugar comum entre a
formação e a profissão e com abertura da escola ao espaço público da educação, no
diálogo com a sociedade, a consolidar a posição de cada pessoa como profissional e
a própria posição da profissão – sendo a exposição pública uma delas. Aponta ainda
a necessidade de identificar como se atrai e recruta estudantes para as licenciatu-
ras dirigindo atenção para fatores que levam alguém a se interessar, a aprender a
ser, a se sentir, a agir, a conhecer e a intervir como professor. Com isso, adquire
relevância o debate sobre a imagem da docência e das instituições de formação de
professores. Essas relações com a sociedade são também observadas por Imbernón
(2011), quando identifica fatores que possibilitam ou impedem o desenvolvimento
profissional docente.
Gatti et al. (2019) também consideram que mudanças na formação docente
requerem a compreensão da sociedade contemporânea e de seus cenários – incluindo
as tecnologias de socialização e educação, que tanto produzem processos inclusivos
quanto excludentes. Contudo as autoras ressaltam ser incomum, nos estudos de
formação de professores e trabalho docente, focalizar o professor para discutir os
efeitos dos atuais processos midiáticos sobre as imagens de docência, escola e edu-
cação. Nessa linha, Ramalho, Nuñez e Gauthier (2004) realçam a importância de
estudos das representações da docência para fomentar o debate sobre a profissão
e a profissionalização.
Diante dessas constatações, este artigo analisa um produto da indústria
cultural e objeto da cultura digital (a série dinamarquesa Rita, veiculada interna-
cionalmente pela Netflix), uma vez que ele é protagonizado por uma professora e
apresenta tramas da vida e do trabalho docente, em cenas dramáticas e cômicas,
ambientadas em cenários escolares, domésticos e urbanos, nos quais a protagonista
se relaciona com personagens dos grupos sociais escolar e familiar na construção de
representações sobre a docência – que, como outras produzidas pela mídia, confluem
à padronização e à conformação estética e de comportamentos.
turais formalizados, de maneira que a forma escolar só pode ser captada em uma
configuração social de conjunto e na ligação com a transformação das formas de
exercício do poder. A forma escolar é composta de regras, tempos, rotinas, sinais,
objetificação e codificações que não deixam lugar para o improviso. Ela implica em
apropriação de saberes e aprendizagem de relações de poder.
As salas de aula apresentam formato tradicional, com mobiliários e recur-
sos básicos, como mesa do professor, carteiras dos alunos, lousa e giz. Nelas, os
professores ministram cada qual sua disciplina, de modo solitário. O ensino como
ato privado é criticado por Cochran-Smith (2012) ao propor a desprivatização da
prática e o trabalho colaborativo entre os pares. As características de isolamento,
falta de apoio e compartilhamento de saberes entre os pares geram vulnerabilidades,
sofrimentos e mal-estar em professores que repercutem nos processos de inserção na
profissão e de desenvolvimento profissional docente (Cavaco, 2014; Tardif, 2016).
Nas cenas de aulas, a figura docente está predominantemente posicionada
à frente da classe, na maioria das vezes em pé e raramente sentada ou circulando
entre as carteiras (enfileiradas ou em formato de u) supervisionando a disciplina
dos alunos – que ficam sentados sozinhos, em duplas ou grupos. As aulas sempre
começam com o docente pedindo silêncio aos estudantes, depois seguem com
explanação oral ou atribuição de tarefas. Predomina a aula expositiva, por vezes
com apoio de recursos como lousa e giz e/ou slides. Há centralidade na figura do
professor e assimetria na relação comunicativa: o professor fala e os alunos ouvem.
A intervenção destes se dá mediante solicitação da palavra (nem sempre autoriza-
da) – o que, no caso da aluna Rosa, acarreta incômodo à Rita. A trama segue com
conflitos professora-aluna e interferência da família de Rosa, resultando em queixas
da professora para a coordenação e direção escolar e, em contrapartida, repreensões
e questionamento da autoridade da professora (episódio 1).
Tais representações do ensino e do trabalho docente são referentes às práti-
cas pedagógicas tradicionais, centradas na figura docente, em sua autoridade e na
aula expositiva (enfoque conteudista). Nóvoa (2020) observa que as representações
desse modelo escolar (forma escolar ou gramática da escola) perduram desde a se-
gunda metade do século XIX e, mesmo sob crítica, permanecem inalteradas, sendo
referenciadas pela sala de aula, com regularidade temporal, currículo disciplinar,
estrutura didática baseada na lição e nos professores lecionando individualmente a
alunos agrupados por turmas, idades e nível de progresso em aprendizagens. A vi-
são tradicional do ensino tem raízes na história escolar e na trajetória educacional
das pessoas, que concebem o ensino a partir da própria experiência (Tardif, 2016).
Grützmann (2019), revisando estudos de Maurice Tardif e Cecília Borges,
considera indispensáveis, na análise da construção dos saberes e da identidade
docente, as interações do professor no trabalho diário para a sala de aula ser espaço
privilegiado. Como os saberes docentes são relacionais (Borges, 2004) e o objeto
de trabalho do professor é formado por seres humanos (Tardif e Lessard, 2005),
fica suposto que:
As salas de aula também são cenários de reuniões de Rita com pais de alunos
para tratar de problemas comportamentais e disciplinares e constituem lugar de
encontros da professora com seus filhos (que a procuram, na escola, para tratar de
assuntos pessoais e familiares).
Na série Rita, a relação da professora com os estudantes ocorre, geralmente,
de maneira individualizada e conflituosa. A relação professor-alunos tem como eixos:
dinâmicas de perguntas e respostas; preocupação da professora com a socialização
dos alunos; problemas de comportamento e indisciplina dos alunos; relação entre
escola e família (insatisfações, reclamações e interferências dos pais); temas tabu
(violência, drogas, sexualidade, inclusão, alimentação); problema das regras escolares
e sua subversão, que envolve disciplina dos alunos e dos professores. Numa das cenas,
Rita faz bolos em sua casa e os leva à escola para o estudante Viktor distribuir aos
seus colegas no intervalo, favorecendo a socialização deste com os companheiros
– mas os pais de Viktor repudiam o uso de açúcar na dieta familiar e cobram da
escola a política antiaçúcar. Rita não somente quebra as regras escolares; assume
riscos para proteger o aluno Viktor de seus pais. Pacheco, Filipack e Vieira (2019,
p. 450) identificam alguns estereótipos da imagem do bom professor no cinema:
“os bons professores assumem esses riscos, sempre sobre eventos relativamente sem
importância, para provar que eles se preocupam com seus alunos.”
Na medida que os conflitos e os problemas da relação professor-estudantes
(que envolvem a socialização, o comportamento e a disciplina) ganham destaque
na trama (e tomam, inclusive, dimensões que envolvem outros atores sociais: fami-
liares dos alunos, gestores escolares, membros de comitês e das comissões especiais
e supervisores), as práticas de ensino e os processos pedagógicos e formativos são
relegados a um patamar inferior. A complexidade da docência reduz-se às dimensões
relacionais. Tardif (2013, p. 555) assinala que o ensino, na idade da vocação, era
um trabalho moral, de modo que o espírito de sacrifício e de servir, o amor pelas
crianças, o disciplinamento e o controle do corpo e do comportamento das crianças
eram “virtudes femininas tradicionais”, para justificar a ausência de formação das
professoras para o trabalho, cujas tradições pedagógicas orientavam-se no controle
dos alunos.
O contraponto à representação tradicional do ensino (da forma escolar) é
apresentado com a chegada, na escola, da professora iniciante Hyordis, que traz
ideias inovadoras, criativas e com propostas de atividades temáticas sobre respon-
sabilidade e engajamento social. Atrelados a atividades de aulas de artes, Hyordis
faz com que outros ambientes, além da sala de aula, sejam explorados com novas
práticas de ensino. Assim, a área de convivência se transforma: ora em palco de show
de talentos, ora em amplo ateliê de pintura. Também é feita visita ao museu de artes
e os alunos são levados a um laboratório para criar esculturas de argila e vendê-las
em leilão solidário para construção de poço artesiano na África. Contudo a inovação
das práticas pedagógicas só ocorre após desconfortos, conflitos e resistências dos
Destacamos outro aspecto: em sua sala de aula, Rita foi, várias vezes, sur-
preendida por pais de alunos que questionam, reclamam e buscam interferir de modo
autoritário em posturas, comportamentos, decisões e ações da professora relativas
à educação dos seus filhos e às estratégias de ensino. Isso expõe a falta de limites,
a fragilidade da autonomia docente e, também, as dificuldades de reconhecimento
social do conhecimento e do saber docente.
Tardif (2013, p. 568) destaca que “os conhecimentos dos professores são en-
raizados no trabalho e em suas experiências” (...) e “estão profundamente encorados
em sua experiência de vida no trabalho”. São, portanto, elaborados a partir de sua
prática, do cotidiano, do saber-fazer e pela interação e socialização com os pares e
outros agentes – entre os quais, os alunos. Há várias cenas que entrecruzam a vida
pessoal e profissional de Rita: situações de ensino a levam a pensar nas relações
afetivas e familiares (como filha, mãe, mulher e amante) e episódios sociais a con-
duzem a pensar na sua condição docente e no seu trabalho.
Sobre a formação de professores numa perspectiva profissional, Nóvoa
(1997; 2009; 2014) afirma a relação entre a pessoa e o profissional e sugere que
o desenvolvimento profissional deve ter dupla perspectiva (individual e coletiva):
desenvolvimento pessoal (produzir a vida do professor) e desenvolvimento profis-
sional (produzir a profissão docente). Wunsch e Alves (2020) destacam a dialética
entre disposições inerentes ao sujeito e à formação profissional: uma vez conectadas,
tais disposições correlacionam pessoa e profissional, proporcionando sentimento de
bem-estar do sujeito somente consigo e com suas práticas profissionais.
Nas aulas, Rita dedica esforços para chamar a atenção, controlar a disciplina
e para acolher, integrar e envolver os alunos na turma e nas atividades de aula –
ainda que, para isso, subverta algumas regras da escola. Tardif (2016) ressalta a
importância de o professor saber reger a sala de aula e estabelecer relação com os
alunos, uma vez que essa relação constitui o espaço onde são validados a compe-
tência e os saberes docentes. A sala de aula e a interação com as turmas de alunos
testam o eu profissional e os saberes do docente, pois o ensino se desenvolve em
contexto de múltiplas interações que são condicionantes da atuação do profes-
sor. Tardif (2016) realça os saberes experienciais ou práticos dos professores, um
conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários para a profissão docente
e que não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. Tais saberes
formam representações que auxiliam os professores a interpretar, compreender e
orientar a prática cotidiana em todas as suas dimensões, pois se referem à cultura
docente em ação.
Não houve aulas conjuntas de docentes nem projetos ou práticas interdisci-
plinares, de colaboração entre os pares. Para Vaillant (2016), as instâncias de apoio e
de trabalho colaborativo, como possibilidades de reflexão sobre as práticas, resolução
conjunta de problemas e de desenvolvimento profissional docente, ajudam a romper
com o isolamento característico da docência.
As dificuldades de reconhecimento social da professora e do trabalho docente
são postas a partir de interações de Rita e de Hyordis com alunos, pais dos alunos,
os pares, os gestores e até os próprios familiares – notamos que, na temporada
estudada, não está em questão o reconhecimento social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo documental da série Rita (Netflix) permitiu identificar os imaginá-
rios de trabalho docente nela expressos/difundidos, assim sintetizados, como trabalho:
1. solitário na sala de aula, individualizado com alunos e pais de alunos;
2. conflitivo (tradição e inovação; submissão às regras e subversão das regras;
escola e família);
3. temporalizado, regrado, rotinizado;
4. técnico;
5. apartado do debate social e com práticas pedagógicas tradicionais (con-
teudista e disciplinar/comportamental);
6. submetido a relações autoritárias, competitivas, ameaçadoras, discipli-
nares e punitivas;
7. sujeito a jogos e disputas de poder e autoridade que seguem hierarquias
e lógicas de uma sociedade estratificada, patriarcal e moralista.
REFERÊNCIAS
SOBRE OS AUTORES
Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial
ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.
Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
- Código de Financiamento 001.
Contribuições dos autores: Conceituação, Investigação, Analise Formal, Metodologia,
Escrita – Primeira Redação: Penteado, R. Z.; Costa, B. C. G.; Budin, C. J.; Escrita – Revisão
e Edição: Penteado, R. Z.; Costa, B. C. G.; Curadoria de Dados: Penteado, R. Z.; Budin,
C. J.; Obtenção de Financiamento: Penteado, R. Z.