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quimeras em diálogo

______. Le Principe de la chimère. Une anthropologie de la mémoire. Paris, Éditions rue O espaço quimérico.
d’Ulm-musée du quai Branly «Aësthetica»), 2007.
______. “l’univers des arts de la mémoire. Anthropologie d’un artefact mental”. In: Annales Percepção e projeção nos atos do olhar1
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Carlo Severi
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Vi toda uma paisagem refratar-se no olho de uma pernalta que
VELTHEM, Lucia Hussak van. O Belo é a Fera. A estética da produção e da predação entre os
mergulhava: os mil círculos que encerram cada vida, o azul sus-
Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 2003.
surrante do céu tragado pelo lago, a emergência num outro lugar
VIDAL, Lux (org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP/EDUSP, 1992. – eis o que são as imagens: a emergência num outro lugar.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerín- franz marc (1996 [1914])
dio”. In: Mana. Estudos de Antropologia Social, 2(2), p. 115-144, 1996.

Figura 1: Enguerrand Quarton, Coroamento da Virgem, detalhe, 1454, óleo sobre painel. Museu
Pierre de Luxembourg, Villeneuve-lès-Avignon © Musée Pierre de Luxembourg/
Giraudon/The Bridgeman Art Library.

1 Este texto foi originalmente publicado em francês na revista Gradhiva, n. 13, 2011, traduzido para o
português por Alberto Goyena, com revisão técnica por Els Lagrou.

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O museu Pitt Rivers de Oxford possui uma argola de marfim singular, encon- Essa primeira definição, que intencionava aludir aos modos de funcionamento
trada na Sibéria (Figura 2). Veem-se nela duas formas idênticas que podem ser de certa quantidade de exemplos específicos, suscitou novos debates e pesquisas
interpretadas de maneiras diferentes: como o contorno de uma cabeça de lobo no marco de uma teoria antropológica da memória. Dentre as questões provo-
ou como o corpo inteiro, provavelmente, de um leão marinho. Esse objeto não cadas, um primeiro grupo concerne à interpretação etnográfica: como apreciar,
constitui unicamente a representação de dois animais diferentes pelos mesmos em novos campos, a capacidade heurística da noção de quimera? Seria possível,
meios visuais; ele é testemunho de um ato do olhar. Inserindo uma linha curva em a partir dessas primeiras análises, definir um tipo geral de representação, a qual
dois contextos diferentes, a imagem passa da representação pela imitação de um se poderia chamar de “quimérica”, da mesma forma como se fala, por exemplo, de
animal à interpretação complexa e plural de uma forma. Enquanto traço material, representações “realistas”, “abstratas” ou “simbólicas”? Como identificar modos de
a representação faz emergir um trabalho mental, uma série de operações mentais variação, no espaço ou no tempo, das representações quiméricas? Conforme defi-
(ou, simplesmente, de pensamentos) que se associam a uma linha e que dela fazem nida nos primeiros exemplos, a representação “quimérica” seria própria das artes
surgir, em ambos os casos, uma parte invisível ou potencial. não ocidentais? Se for o caso, como diferenciar o que seria próprio das quimeras
Há alguns anos, havíamos proposto chamar de quimérica esse tipo de repre- ameríndias, oceânicas ou africanas de tudo aquilo que a tradição ocidental deno-
sentação (Severi, 2003), assinalando que ela se caracteriza pela condensação da minou de imagem fantástica, dupla, ambígua ou simplesmente, segundo a recente
imagem em alguns traços essenciais. A condensação engendra, por projeção, definição de Dario Gamboni (2004), imagem “potencial”?
uma ou mais interpretações da forma. Aquilo que pode ser visto é considerado, Outros questionamentos concernem aos aspectos mais propriamente lógi-
implicitamente, uma parte de outra forma, cuja presença é imputada e eventual- cos desta noção. Se o essencial da ideia de quimera não diz respeito a um tipo de
mente representada. Num ato do olhar como esse, o invisível prevalece sobre o imagem definida por uma morfologia específica, mas sim ao tipo de operações
visível e parece indicar o contexto. Formulamos a hipótese de que, nas tradições mentais que a invenção e a apreensão desse tipo de imagem implicam (seleção
habitualmente chamadas de “orais”, esta estrutura, “por indícios”, confere à ima- de traços visuais, projeção, indução, estabelecimento de sequências etc.), cabe
gem um aspecto particular que lhe permite desempenhar um papel crucial nas perguntar: o que distingue a representação quimérica? Qual o exercício do pen-
práticas sociais, tanto ligadas à memorização como à consolidação de um saber. samento que a caracteriza e que permite, eventualmente, opô-la a outros modos
A saliência visual destas imagens, ligada à mobilização da inferência que elas de pensamento?
implicam, pode se tornar, assim, um traço mnemônico capaz de veicular e de Algumas questões foram também formuladas a partir de um ponto de vista
preservar sentidos. mais próximo da estética. Concordaremos, dentro dessa perspectiva, que um dos
efeitos da representação quimérica é intensificar uma imagem graças à mobiliza-
ção de seus aspectos invisíveis. Mas poder-se-ia objetar, a rigor, que toda obra de
arte suscita um trabalho do pensamento concernente ao que não está material-
mente representado. Todos os clássicos do pensamento estético moderno desta-
caram esse ponto. Em seu Essais sur la peinture (Ensaios sobre a pintura), Diderot
já descrevia com grande precisão esse jogo do olhar, essa máquina que faz surgir,
através de um cálculo cuidadoso do espaço e das proporções, a parte invisível de
um quadro:

Tentem, meus amigos – escrevia ele ao se dirigir, em particular, aos desenhistas –,


supor toda a figura transparente e foquem o olhar no centro: de lá vocês observarão
todo o jogo exterior da máquina; vocês verão como certas partes se dilatam, enquanto
outras se encurtam; como há as que encolhem, enquanto outras inflam; e, perpetua-
mente ocupados de um conjunto e de um todo, vocês lograrão mostrar, na parte do
Figura 2: Argola siberiana de leão marinho em marfim, museu Pitt Rivers, Oxford.
objeto que seu desenho apresenta, toda a correspondência com aquilo que não se vê,

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e, oferecendo apenas uma face, vocês forçarão minha imaginação a ver a face oposta;
só então direi que vocês são desenhistas surpreendentes (1951: 1.118).

Como precisar, desse terceiro ponto de vista, o que é próprio à apreensão


estética da representação quimérica? E como conceber, posto que toda obra de
arte supõe uma reflexão, uma imagem que não fosse quimérica?
O esforço no sentido de buscar responder a esses questionamentos pode nos
permitir não apenas afinar nossas ferramentas de análise (e até esclarecer alguns
mal-entendidos), mas também renovar nossa compreensão sobre o tipo de exer-
cício do pensamento que se exprime no seio de uma tradição iconográfica. Passa-
remos, assim, da perspectiva que leva a definir uma tipologia das representações
à identificação da lógica das relações representadas pela imagem no seio de uma
tradição. Para mostrar como é possível operar essa mudança de perspectiva, tenta-
remos inicialmente precisar a definição e os desenvolvimentos possíveis da noção
de quimera, a partir dos três pontos de vista identificados: o morfológico, o lógico
e o estético. Em um segundo momento, tentaremos mostrar como essa nova abor-
dagem permite interpretar um caso etnográfico preciso.
Retomemos os questionamentos suscitados pelo debate sobre a representação
quimérica e consideremos a questão, levantada segundo uma perspectiva estética,
da singularidade do quimérico no que tange à relação estabelecida entre a obra de
arte e as operações do pensamento.
Figura 3: Anônimo, A Trindade, século XVIII, óleo sobre madeira (43,5 x 28,5 cm).
Museu Carolino Augusteum, Salzburgo.

i Nessa perspectiva, a obra ultrapassa e até se opõe à imagem. A partir daquilo


que vê, o sujeito que se constitui como observador faz emergir uma experiência
O artista deve saber oferecer mais ao espírito do que ao
olhar... é próprio da pintura poder representar as coisas
estética, a qual, ainda que parcialmente imaginada pelo artista, só se realiza plena-
invisíveis, situadas no passado ou no futuro. mente no seio do olhar do observador. De Goethe – para quem “o mundo exterior
winckelmann, Réflexions sur l’imitation carece de cor: somente a fagulha de luz que reside no olho confere ao mundo o seu
de l’art des Grecs, 1973. cromatismo” (2000 [1808: 21]) – a Lévi-Strauss – em La pensée sauvage (O pensa-
mento selvagem), que falava de um observador “que se sente, confusamente, mais
No aforismo acima, Winckelmann formula um dos fundamentos do pensamento criador que o próprio criador” (2008: 586) –, a ideia da obra como resultado de um
estético moderno: longe de mobilizar um processo de percepção passivo ou mecâ- diálogo travado por meio de um ato do olhar (e não pela simples percepção visual)
nico, a obra do artista suscita sempre no observador um ato do olhar. Numa per- desenvolveu-se ao longo de toda uma tradição de pensamento. Em L’Œil du Quat-
cepção próxima à de Diderot, Winckelmann afirma que aquilo que emerge na trocento, Baxandall (1985) formulou uma versão particularmente clara que pode
experiência estética é resultado de um diálogo entre o que é exibido sobre uma tela servir como introdução às análises propostas neste artigo. Em um breve capítulo
pintada e o processo de exploração/interpretação, onde o observador desempenha dedicado à relação entre experiência ótica e conhecimento cultural, o historiador
um papel paralelo ao do autor. inglês sugere um tipo de experimentação visual. Observemos a Figura 4. O que
ela representa?

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das mesmas convenções – como se as convenções visuais referidas por Baxandall


constituíssem uma sorte de gramática da cultura, cujas regras seriam fáceis de
enunciar ou de fixar para sempre. Instável, variável segundo o contexto, ligada à
hipótese ou à inferência, sempre em reconstrução, a relação entre percepção pas-
siva e olhar interpretativo pode variar não somente de um indivíduo a outro, mas
Figura 4: Santo Brasca, plano do Santo Sepulcro em Jerusalém, Leonardus Pachel e Uldericus também conforme o tipo de diálogo que uma convenção visual (ou o conjunto de
Scinzenzeler, Itinerario alia Santissima ctttà di Gerusalemme, Milão, 1481: 58v. uma tradição iconográfica) propõe ao olhar de um observador. Desse ponto de
vista, se quisermos compreender o que é próprio da representação quimérica, será
Pode-se ver, por exemplo, uma forma redonda, muito vagamente traçada, necessário atentar para os tipos e as modalidades de representação que a relação
ladeada de projeções alongadas em forma de L. Ou então, de um ponto de vista entre projeção e percepção implica. Para compreender as quimeras será central
mais geométrico, um círculo chapado sobre um retângulo truncado. A percepção identificar as coordenadas do espaço quimérico. Consideremos agora a convenção
possível dependerá, para além do processo mecânico que rege a percepção visual, visual que nos é mais familiar, a da perspectiva ocidental.
“das capacidades interpretativas, das categorias, dos modelos e dos hábitos de
dedução e de analogia” que formam o que se poderia chamar de “estilo cognitivo” ii
de um dado observador (Baxandall, 1985: 48). Saber que essa imagem provém de
uma descrição da Terra Santa publicada em Milão, em 1481, e que ela está acom- A relação mais simples entre percepção e projeção é sem dúvida a de encas-
panhada da legenda “Esta é a forma do Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus tramento (enchassement), que leva a inscrever o exercício de uma operação no
Cristo” traz dois elementos importantes para a percepção da imagem. Primeira- marco conceitual fornecido pela outra. Portanto, a projeção se exerce em um qua-
mente, segundo Baxandall, o observador poderá se referir a possíveis experiên- dro visual virtualmente fixo, a exemplo do observado na perspectiva ocidental.
Nesse sentido, projetar significa tornar-se capaz de traduzir indicações estáticas,
cias, por meio de certas convenções representacionais. Ele, ou ela, julgará, talvez,
dispostas sobre uma superfície, em indicações de profundidade dotadas de um
que a imagem se destaca da projeção plana. Trata-se de uma convenção de leitura
movimento implícito, antes mesmo de começar a se decifrar o significado de uma
segundo a qual, uma vez observadas verticalmente, as linhas que representam os
imagem. Tal tipo de apreensão da imagem, que nos parece tão familiar, está longe
muros periféricos de um edifício se desenham a partir do solo. Em seguida, se
de ser universal. Ele foi analisado em detalhe, sobretudo por Florensky (1992),
estivermos familiarizados com a arquitetura italiana do século XV, deduziremos
como um dispositivo cultural de funcionamento ótico. Mas é, sem dúvida, em
pelo desenho que o círculo representa uma edificação redonda, talvez coberta por
Le problême de la forme (O problema da forma), de Hildebrand (2001 [1893]), que
uma cúpula, que as alas retangulares são vestíbulos e que o quadrado no inte-
encontramos, de um ponto de vista formal, a descrição mais clara desse processo
rior do círculo designa o espaço onde se localiza a tumba (ibid.: 49). São três as
de decifração da profundidade, por meio da percepção de imagens dispostas sobre
variáveis que, ligadas à cultura, agem no modo como nosso espírito interpreta
uma superfície plana – ao qual a existência mesma da perspectiva enquanto con-
formas que, até então, poderiam parecer desprovidas de sentido: “uma variedade
venção visual nos habituou.
de modelos, de categorias, de métodos dedutivos; o treinamento numa série de
Sigamos o raciocínio do autor: a obra de arte suscita operações do pensa-
convenções para representar as coisas e, finalmente, a experiência baseada nos
mento, escreve Hildebrand, porque, longe de se basear na observação direta do
modos plausíveis de visualizar aquilo sobre o que não temos mais do que uma
real, ela resulta de um processo complexo de rememoração da imagem real:
informação incompleta” (ibid.). Chegaremos à conclusão de que em todo ato do
olhar, tal como ele se exerce em uma dada cultura, a percepção como processo Ver e representar um objeto são dois processos muito diferentes: para obter uma prova
fisiológico e a projeção de certos saberes adquiridos encontram-se estritamente disso, observe um objeto atentamente e dê-lhe as costas. O que resta em seu espírito
é muito diferente da primeira impressão que teve: uma parte da imagem desapare-
associadas. Como operações mentais, elas são indissociáveis de todo ato do olhar.
ceu, mas outros traços persistem. O primeiro ato é uma percepção; o segundo é uma
Contudo, isso não significa que essa relação entre percepção e projeção, definidora representação. O ato que preside a representação é, portanto, próprio da lembrança e
do processo de construção cultural de uma imagem, se estabeleça sempre dentro não da percepção (2001[1893]: 122).

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trabalha sempre “lá, onde as representações do espaço são produzidas inconscien-


temente” (ibid.: 228). Atingir esse substrato, torná-lo sensível, é, ao mesmo tempo,
explorar o trabalho do olhar e suscitar o sentimento inconsciente do espaço.
Não será necessário retomar aqui outros aspectos da concepção de Hilde-
brand sobre a forma. Atenhamo-nos apenas a um ponto essencial: sua definição
oferece um modelo, ao mesmo tempo abstrato e elementar, da relação de encas-
tramento entre percepção e projeção que se realiza no seio da convenção visual da
perspectiva. No seio dessa convenção, que se tornou dominante no Ocidente, só
se pode apreender a forma (e, portanto, interpretar corretamente a perspectiva),
fazendo surgir, a partir de indicações dispostas sobre uma superfície, a profundi-
dade e o movimento implícito que caracterizam uma representação.
Fundador do formalismo, mais teórico do espaço estético do que historiador
de arte, Hildebrand apresenta apenas uma interpretação idealizada das relações
que podem ser estabelecidas entre percepção e projeção. Na verdade, a história
das práticas ligadas à perspectiva está longe de se reger apenas pelas regras da
geometria. Uma vez que o quadro se fixa sob o modelo albertiano, tais práticas
originaram progressivamente um espaço partilhado, com suas permanências,
Figura 5: Véronèse (Paolo Figura 6: Juan de Flandes, A seus problemas típicos, seus dilemas, seus reencontros e suas ressonâncias. Sua
Caliari), presumido decapitação de São João Batista, complexa evolução se situa, sem dúvida, no longo prazo (dans la longue durée).
autorretrato como caçador, detalhe, entre 1496-1499. © Dando prosseguimento à reflexão de Baxandall e de Shearman (1992), Svetlana
afresco da villa Maser, detalhe, Musé d’Art et d’Histoire, Ville de
1560-1561, Vicence © 2011. Genève, inv. no CR 365/
Alpers (2005) comparou esse espaço a um laboratório científico onde o artista, seu
Foto Scala, Florença. Foto Bettina Jacot-Descombes. modelo e seu mecenas desempenham cada um, ao seu modo, um papel essencial.
No interior desse universo (uma espécie de teatro do olhar, onde, do Quattrocento
Logo, a memória visual propriamente dita é a “matéria mental” sobre a qual aos impressionistas, todo elemento da cena pode variar: a ideologia do mecenas,
o artista intervém. O seu trabalho implica, segundo a expressão de Hildebrand, as técnicas da representação, a atitude do modelo ou mesmo, como mostrou Fried
uma constante “avaliação das aparências”. Mas essa atenção dada ao real não visa (1990), seu modo de se dirigir ao observador), diversas modalidades de relação
à imitação da natureza, mas, sim, à identificação de um princípio organizador da entre projeção e percepção são possíveis. Mesmo correndo o risco de simplificar,
percepção que se exprime pela presença de uma forma. O conceito não designa, pode-se dizer que o meio mais simples de se mobilizar uma projeção para inter-
para Hildebrand, nem um fenômeno próprio à aparência do mundo exterior nem pretar uma imagem inscrita sobre a superfície plana, desde a Renascença, consiste
um aspecto da experiência que pertenceria somente à atividade artística. O senti- em conferir-lhe um valor simbólico. Baxandall (1985, 1989) e Settis (2005) mos-
mento da forma, para ele, remete “à percepção inconsciente do espaço que orienta traram, por exemplo, que toda iconografia religiosa da Renascença italiana está
constantemente o nosso olhar”. Tal “sentimento” (que hoje chamaríamos, prefe- rigorosamente codificada a partir das instruções detalhadas que a Igreja ditava aos
rencialmente, de reflexo inconsciente) orienta constantemente nossos movimen- artistas, a fim de orientar e instigar a imaginação dos fiéis. Retenhamos aqui o
tos e marca a presença do nosso corpo no espaço. Nesse marco conceitual, toda exemplo da representação de Cristo, do qual Baxandall mostrou que ela não estava,
imagem que nos permite ver a profundidade e o movimento implícito, como na de forma alguma, relegada à imaginação. Sua figura devia acompanhar a descrição
convenção visual da perspectiva, visa à representação do espaço através das ope- dada num relatório supostamente enviado por Lentulus, governador da Judeia,
rações do olhar, e não à imitação da aparência. Hildebrand conclui que o artista ao Senado romano. Lentulus (sem dúvida um personagem legendário), que teria

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conhecido Cristo, dizia ser ele “um homem de estatura mediana ou baixa... seus
cabelos eram da cor de castanha madura e caíam retos até a altura das orelhas e,
em seguida, formavam cachos grossos até os ombros... sua testa era vasta, polida e
serena, seu rosto era desprovido de rugas, e sua barba, da mesma cor dos cabelos,
assemelhava-se à primeira barba de um rapaz”.

Figura 7: Albrecht Dürer, Hieroglifos para o Arco do Triunfo do imperador Maximiliano,


por volta de 1515. Coleção privada/The Bridgeman Art Library. Figura 8: Jérôme Bosch, O martírio de Santa Liberata, óleo sobre painel (104 x 119 cm).
Palácio dos Dogos, Veneza. © Palazzo Ducale/The Bridgeman Art Library.
Poucas pinturas, de fato, contradizem esse modelo (Baxandall, 1985: 91).
Deve-se sublinhar, contudo, que no interior desse marco iconográfico, admitia-se A referência à antiguidade grega, latina ou egípcia produziu, naturalmente,
inteiramente que o aspecto conceitual de uma representação poderia contradi- uma iconografia convencional muito influente, analisada pela escola de Warburg
zer sua verossimilhança. Atenhamo-nos à representação de Jesus Cristo como um e sobre a qual não insistiremos aqui. Contudo, retomando Baxandall, notaremos
rapaz: em um Coroamento da Virgem, pintado por volta de 1454, perto de Avignon, que esses dados iconográficos de base não são mais do que um repertório, relati-
Enguerrand Quarton, para mostrar que não pode haver diferença entre o Pai e o vamente estável, o qual se pode citar, modificar, contradizer ou renovar conforme
Filho, os representa com rostos idênticos (Figura 1) (Baschet, 2008: 170-172). De a ocasião.
maneira análoga, Bramantino, na mesma época, pinta uma Virgem com criança, Pensemos nos “hieroglifos” desenhados por Dürer, por volta de 1515, para o
cujos traços são tão próximos aos de um rapaz que o quadro pareceu enigmático Arco do Triunfo do imperador Maximiliano (Figura 7). Neles, toda uma tradição
durante muitos anos. Suida mostrou que se tratava, para os mecenas da obra, por iconográfica neoegípcia (Barasch, 2003; Panofsky, 1943; Wittkower, 1977) foi com-
um lado, de relembrar a natureza divina do Cristo – que pode também contrariar pletamente reinventada, no que diz respeito tanto ao estilo como ao significado
as aparências e surgir através do rosto de sua mãe – e, por outro lado, de evocar, dos símbolos. Para além da tradição cristã, tais usos da imagem simbólica pare-
por meio da semelhança da mãe com o filho, uma definição canônica e mais rara cem se organizar, conforme reconheceu Warburg (2010), segundo dois eixos: ou
da Virgem como “Virgem Mãe, Filha de seu Filho” (Vergine madre, figlia del tuo remetem ao retorno do Antigo (segundo o uso italiano) ou se referem à tradição
figlio, disse Dante no Canto XXXIII do Paraíso) (Suida, 1953: 98-100). Encontramos à francesa, que Warburg identificou quando estudou as tapeçarias da Borgonha,
os mesmos jogos de “semelhança impossível” em Bosch, quando ele dá à Santa das coleções dos Medici, em Florença (ibid.: 5). Esse modo francês (rapidamente
Liberata, sacrificada na cruz, o rosto de Cristo (Figura 8). Mais tarde, um anônimo difundido em toda a Europa, incluindo a Itália) consiste em situar as cenas extraí-
alemão do século XVIII (inscrevendo-se em tradição muito antiga) não hesitará das de um texto antigo, do Evangelho ou da Bíblia, em uma época contemporânea
em representar a trindade como uma figura tripla de rapaz (Figura 3). à do artista e de seu mecenas. A Degola de São João Batista (Décollation de Saint

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Jean-Baptiste), de Juan de Flandes (Figura 6), pintada em 1496-1499, oferece um semifictício, semirreal, no qual aquele que olha fica enredado. Descobre-se o que
exemplo marcante das variações inovadoras do simbolismo. O mestre flamengo Shearman, ao retomar a definição clássica de Riegl (2009 [1902]) e os trabalhos de
(que faz alusão a um texto de Mateus, que trata da beleza sensual de Salomé e da Gombrich (1969, 1982), chamou de transitividade da perspectiva. Trata-se de sua
crueldade que ela demonstrou ao demandar a Herodes a decapitação de São João capacidade, inteiramente formal, de suscitar a presença de um observador enga-
Batista) nos mostra a princesa acompanhada de uma dama de sua corte. Vestida, jado na imagem. Enquanto convenção visual, ela implica não somente a existência
assim como sua companheira, em um traje muito elegante, Salomé parece perfei- de um “ponto de fuga”, que organiza em um espaço coerente a percepção da pro-
tamente indiferente diante do guarda que, consternado, lhe mostra a cabeça deca- fundidade, mas também de dois campos visuais: um situado no interior do quadro
pitada de João Batista. Ao fundo, pousados sobre o muro que circunda o castelo, e outro que se projeta para o exterior do espaço pintado, marcando assim o lugar
há dois pavões maravilhosos. Em contraposição a uma luz vespertina dourada, as implícito do observador (Shearman, 1992: 36).
aves parecem elegantes, indiferentes e cruéis, assim como as damas. Essa primeira
analogia adquire uma intensidade singular, ao passo que o observador percebe
que o pintor superpõe, face ao eixo damas/aves, outro eixo análogo relacionado
às cabeças do guarda e do santo decapitado, representadas com traços marcados
pela dor, quase idênticos. A encarnação de uma crueldade controlada, sem emo-
ção aparente, se opõe a uma representação tão intensa do sofrimento que chega a
ser quase uma alucinação. Seria muito difícil encontrar exemplo mais eloquente
do estilo à francesa: inteiramente dedicado à invenção de imagens, o texto e seu
simbolismo estão presentes, sem que nada remeta explicitamente ao Evangelho.

iii
Inspirado pela antiguidade, pela tradição religiosa ou pelos costumes da vida na
Corte, o simbolismo é testemunha do trabalho de projeção de diferentes sabe-
res, os quais, na Renascença, se associam à interpretação visual de um quadro.
Mas esse trabalho da projeção (esse ato do olhar que, face à obra, mobiliza um
saber adquirido), que vimos até aqui operar no nível semântico, pode ir além da
decifração de imagens simbólicas e adentrar no espaço mesmo da representação.
O marco formal da perspectiva (e o tipo de articulação que ele supõe entre per-
cepção e projeção) deixa, então, de aparecer como um dado a ser reproduzido
mecanicamente e tende a adquirir um aspecto reflexivo. A hipótese sobre a qual
se destaca a perspectiva como convenção visual, quer seja, a existência de uma
continuidade entre o espaço pintado e o espaço real (e, em particular, da parte
do espaço real, a qual se pode chamar de liminar, na medida em que ela “designa
a fronteira do espaço representado sem dele fazer parte” [Shearman, 1992: 59]),
deixa de funcionar de modo implícito e emerge como sujeito da representação.
O olhar do observador passa, então, da decifração dos significados simbólicos
das figuras à interpretação da ação representada e do espaço que ela implica. Surge Figura 9: Andrea Mantegna, São Sebastião, em torno de 1459, têmpera sobre painel (68 x 30 cm).
Kunsthistorisches Museu de Viena. © Kunsthistorisches Museum/
uma série de gestos, de olhares e de posturas, supondo a existência de um espaço Ali Meyer/The Bridgeman Art Library.

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torna possível a perspectiva, se mostra, como Hildebrand o definiu, “um reflexo


inconsciente do espaço que orienta inconscientemente a posição do corpo e do
olhar” (2001 [1893]: 228). Compreende-se que esse tipo de encastramento opera,
a fortiori, quando o olhar do observador interpreta uma representação simbólica,
cuja percepção da profundidade (bem como a do movimento implícito) fornece
o contexto formal. Ora, quando a estratégia da representação se torna, através
do surgimento de uma reflexividade do enquadramento, “transitiva”, a imagem
deixa transparecer um deslocamento inédito entre aquilo que é exibido e o que é
inferido por projeção. O marco da percepção e o tema iconográfico simbolica-
mente interpretado não estão mais tão estritamente associados, a ponto de um
não ser percebido sem o outro. Como nessa misteriosa nuvem que Mantegna pin-
tou em forma de cavaleiro em seu São Sebastião de Viena (Figura 9), torna-se
visível alguma coisa da ordem da convenção inconsciente que tacitamente rege a
percepção visual do espaço (Damisch, 1972; Gamboni, 2011: 147-156). Mostra-se aí
o processo da projeção. Excepcionalmente dissociado do quadro perceptivo, que
comumente oculta a existência desta, ele deixa traços sobre a imagem. O encas-
tramento entre percepção e projeção, que normalmente permanece no estado de
“sentimento inconsciente do espaço” (Hildebrand), revela suas limitações, permi-
tindo se entrever seu caráter fictício.
Tal maneira de pôr em evidência o espaço liminar aparece bastante cedo na
Figura 10: Andrea Del Sarto, Virgem com harpias, 1517, óleo sobre painel (178 x 207 cm).
Galerie des Offices, Florence © Galleria degli Uffizi/The Bridgeman Art Library. Renascença, por volta de 1530. Shearman mostrou que, nessa época, Andrea del
Sarto, em Virgem com harpias (Vierge aux harpies) (Figura 10), insere na sua com-
Quando a operação da projeção se volta para a moldura da representação, a posição estranhas “nuvens de incenso”, que só podem vir do altar originalmente
imagem inclui no espaço fictício que ela mostra certos elementos do espaço real situado sob o quadro. Logo comentado e louvado por Vasari (que fala com admi-
onde se situa. Representa então, por assim dizer, nela mesma, as condições de sua ração de uma “fumaça de nuvens transparentes sobre a arquitetura” surgindo por
própria percepção. Tal mise en abyme faz emergir aquilo que se poderia chamar trás do grupo de figuras [citadas por Shearman, 1992: 60]), essa invenção con-
de aspectos pragmáticos do ato do olhar.2 Esse tipo de composição (que inclui na fere sem dúvida “uma estranha propriedade atmosférica” (Shearman, 1992: 59) à
cena apresentada suas condições de percepção visual) marca uma relação nova composição. Mas designa também, indiretamente, um espaço liminar que marca
entre o exercício da percepção visual e o da projeção. Vimos que, no âmbito da a fronteira entre aquilo que a composição exibe e o espaço no qual essa mesma
perspectiva, eles se articulavam por encastramentos. Ora, essa relação implica composição se situa. Destarte, a presença da fumaça revela, por excesso, o estatuto
que o aspecto convencional da visão, quadro da atividade de interpretação, não ficcional da pintura e o grau cuidadosamente calculado da ilusão que ela gera.
seja representado como tal. Quando o espectador traduz indicações dispostas Veronese inventará, deste mesmo jogo, uma versão, ao mesmo tempo profana,
sobre uma superfície plana, por projeção, em termos de profundidade e de movi- elegante e vertiginosa, nos afrescos que pintou na villa Maser (Figura 5). Juan de
mento implícito, as coordenadas formais do quadro que orientam a percepção Flandes dará, por sua vez, uma versão dramática e espetacular. Morando até o
desaparecem da consciência. O “sentimento da forma”, na convenção visual que final de sua vida na Espanha, pintará uma série de composições, datadas de por
volta dos anos 1505-1506, onde um São Miguel armado, inteiramente coberto por
2 O nível de análise que Karl Bülher chamou, em sua teoria da linguagem (1990 [1934]), de EU, AQUI,
AGORA do enunciado se tornaria assim pertinente para a representação visual, o que permitiria reno-
uma couraça metálica negra, esmaga sob seus pés um animal monstruoso (Figura
var a interpretação da “agência” (no sentido Gell [1998]) atribuída à imagem. 11). Sobre a superfície preta da armadura, a qual reflete a luz, Juan pinta verdadei-

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ras visões do Apocalipse, onde parecem surgir campos de batalha devastados e iv


cidades incendiadas, como em um espelho escuro e semiopaco refletindo o espaço
Interpretação do significado simbólico, projeção do quadro, explicitação e explo-
onde o observador se encontra. Como na Degola de São João Batista (Décolla-
tion de saint Jean-Baptiste) exposta no Museu de Arte e de História de Genebra, o ração dos atos do olhar onde percepção e projeção se articulam. Operações esté-
simbolismo está presente, mas as condições de sua interpretação mudaram. Não ticas desse tipo não são próprias nem da Renascença nem do maneirismo nem do
se trata mais de decifrar um sentido oculto, mas de estabelecer uma nova relação período barroco. Poder-se-ia até mesmo pensar que um grande mestre do século
XX, como Barnett Newman, na esplêndida série dos Onements pintada em Nova
entre o espaço da ficção e o lugar do observador. A invenção da armadura-espelho
de São Miguel faz do observador (até então simples “leitor” do sentido simbólico) York nos anos 1950 (vide Figura 1), explora, pelos meios da pintura abstrata, pre-
um protagonista da cena representada: a cidade incendiada e suas cenas de vio- cisamente, o traço dessa dupla presença do observador. Por meio de uma calibra-
lência encontram-se, graças ao segundo plano da representação que a imagem gem exata das dimensões da tela e da intensidade da luz, o observador se situa na
espelhada situa no exterior do quadro, atrás de suas costas. frente e, simultaneamente, dentro do espaço infinito e anicônico que a imagem
apresenta. De Juan de Flandes a Andrea Del Sarto, de Bramantino a Mantegna, de
Dürer a Barnett Newman, fica claro que os deslocamentos entre tema iconográfico
e enquadramento, entre percepção e projeção, não são nem episódicos nem raros
na nossa tradição.
Uma imagem pode esconder outra (Une image peut en cacher une autre), expo-
sição dedicada à ambiguidade visual, realizada no Grand Palais em 2008, permite
dar um passo além. Jean-Hubert Martin e Dario Gamboni demonstraram que
os jogos reflexivos mobilizam, cada um a seu modo, tanto o simbolismo como
o quadro da representação, não sendo próprios a uma época ou a uma cultura
específica. A relação entre o quadro perceptivo e seu conteúdo, que rapidamente
pusemos em evidência, no que diz respeito à convenção visual da perspectiva (e
que, na nossa tradição, vai constituir um dos eixos da modernidade, de Piranesi
a Goya, de Manet a Newman, a Jasper Johns ou a Markus Raetz), pertence, sem
dúvida, aos termos constitutivos de toda representação pela imagem. Toda tra-
dição iconográfica possui sua própria transitividade, se ela for definida como a
forma implícita da ilusão (ou do apelo ao olhar) que ela implica.3 É, então, do
ponto de vista das formas da relação entre projeção e percepção que poderemos
agora voltar ao conceito de quimera, no intuito de precisar segundo quais moda-
lidades esta relação entre reflexividade do quadro e espaço liminar, por um lado,
e entre percepção e projeção, por outro, pode se estabelecer no caso da represen-
tação quimérica.

3 As análises que Gell (1996, 1998) dedicou às técnicas que em certas artes não ocidentais tendem a
capturar o olho numa representação labiríntica devem ser indubitavelmente interpretadas como caso
de transitividade. Outro exemplo é o da arte funerária chinesa e, notadamente, de certa quantidade
Figura 11: Juan de Flandes, Tríptico de São Miguel, detalhe, em torno de 1506. de monumentos funerários (datados de entre 618 e 713, dinastia T’ang), onde, como demonstrou
Museu diocesano, Salamanca © Album/Oronoz/akg-images. recentemente Jonathan Hay (2010), a representação da tumba é disposta do ponto de vista do espírito
do morto.

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o espaço quimérico carlos severi

Mas detenhamo-nos ainda sobre um ponto concernente à distinção entre efeito dessa invenção é o de tornar perceptível (e, portanto, pertinente) um espaço
ambiguidade visual e representação quimérica. A imagem dupla ou potencial e, vazio. Se, por um ato do olhar consciente, concentrarmos nossa atenção no con-
de maneira mais geral, o universo de deslocamentos visuais que pode se estabe- torno dos cabelos, dispostos em volta da testa e até o queixo do guerreiro, não é a
lecer entre percepção e projeção foram utilizados, na tradição primitivista, como imagem do celebrante que aparece no espaço que devém subitamente sensível em
uma chave para interpretar tudo aquilo que, nas artes não ocidentais, mobiliza a torno do objeto, mas sim um conjunto de indícios (realizados com uma destreza
ambiguidade visual. Foi possível, nessa perspectiva, comparar um nu de Degas, extraordinária) de sua presença imputada. Quando, no seio do olhar, o elmo e o
que se revela, simultaneamente, interpretável como uma paisagem (Figura 24), a guerreiro aparecem juntos, não é uma imagem dupla que surge, de forma alguma.
uma cimeira A-tshol da tradição baga, onde vários seres são representados simul- Se recorrermos à linguagem analítica de Peirce (1978), constataremos que, para
taneamente (Figura 14). Podemos ver, de fato, se lermos a imagem da esquerda designar um ser plural, a invenção do escultor evoca, por um lado, um ícone, e,
para a direita, a cabeça de um homem, e, da direita para a esquerda, a forma de um por outro, um índice, sob a forma de fragmento visual.
pássaro. Passaríamos, em seguida, a uma pintura de Arcimboldo, e, daí, a Dalí ou Temos aqui, no que tange aos exemplos de representação dupla ou composta
a Johns. Em todos esses casos, veríamos na obra o mesmo espírito de “dupla signi- que pudemos evocar, duas transformações radicais. Por um lado, a reduplicação da
ficação” ou decifração de uma imagem implícita. Trata-se de um erro que deriva imagem nunca é encontrada no universo das representações quiméricas, do qual
de uma redução drástica, não das “significações” evidentemente diferentes de suas Elmo de Filipe V da Macedônia é um modelo memorável. Até mesmo nas situações
imagens, mas, precisamente, da estratégia de invenção visual que se faz, a cada de elaboração formais mais acabadas, a representação plural é sempre composta
momento, presente na obra. Como veremos, uma imagem dupla, ou composta, por uma imagem dada a ver e por um pensamento suscitado. Por outro lado, o
não é necessariamente quimérica. surgimento da cabeça invisível do jovem guerreiro, ainda que implícito, não apa-
rece como um deslocamento marginal em relação a um modelo de organização
v do espaço que, assim como a perspectiva, possui uma existência independente. A
pluralidade é, nesse caso, como em todos os exemplos de representação quimérica
Consideremos mais um exemplo. O museu Getty possui um elmo muito singular, que estudamos, o princípio mesmo da organização do espaço que orienta, em um
conhecido tradicionalmente como o Elmo de Filipe V da Macedônia, datado de mesmo movimento, tanto o exercício da percepção como o da projeção. Não se
entre 350 e 300 antes de Cristo (Figura 13). Trata-se, à primeira vista, de uma ima- trata, nesse caso, de um espaço fictício, regido por regras abstratas (por exem-
gem múltipla: sobre o topo do elmo surge de fato a representação de um animal plo, como visto aqui, geométricas), onde uma transgressão apareceria no nível
mítico, uma espécie de grifo com bico de pássaro. Esse detalhe levou especialis- do simbolismo ou da transitividade da imagem. O elo entre o visível e o invisível
tas a interpretarem-no como um objeto ritual, provavelmente associado ao culto coincide aqui com a definição mesma do espaço: sem essa pluralidade do olhar,
que o rei Filipe dedicava ao herói Perseu. Mas o artefato nos interessa também que é imediatamente oferecida, não surgiria nenhum espaço liminar entre aquilo
por outra razão. Nele, aparece uma invenção que nos permitirá precisar nossa que é exibido e inferido. O caminho da imagem quimérica é, portanto, diferente
linguagem e nossas ferramentas de análise, tanto no que diz respeito à morfolo- do caminho da imagem dupla.
gia da representação quimérica como para esclarecer a lógica icônica operante. Voltemos à já citada cimeira baga (Figura 14). Se é verdade que há, nessa repre-
Ao redor do rosto, nessa zona do elmo que Riegl (2009) e Shearman (1992) nos sentação, uma elaboração pela imagem de uma fronteira entre o que é mostrado e o
ensinaram a chamar de liminar (compreendendo a testa e as sobrancelhas como que é oferecido à projeção (cabeça humana ou pássaro), não se percebe aí nenhum
o limite extremo), o autor desse admirável artefato gravou, muito levemente, com desdobramento. Como no elmo (cujo princípio ela multiplica, já que podemos
uma destreza técnica extraordinária, os contornos das sobrancelhas e os rastros interpretá-la segundo diferentes direções, da direita para a esquerda e vice-versa),
de uma cabeleira. Esses cabelos, dispostos habilmente sobre a testa e ao redor das e como na quimera hopi (Figura 12), que analisamos alhures (Severi, 2007), essa
orelhas, onde se juntam aos pelos da barba, marcam a fronteira entre o artefato e cimeira não é dupla. Os contornos que marcam aqui a fronteira entre percepção
a pessoa cuja presença é imputada. Imediatamente compreendemos que, de fato, e projeção (os temas visuais “pássaro”, “nuvem”, “relâmpago” etc.) não funcionam
pertencem ao jovem guerreiro que, supostamente, deve portar o elmo. O primeiro como ícones ecoando outras imagens, mas como índices de uma presença a ser

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decifrada. Não temos aqui, portanto, como na paisagem-mulher de Degas (Figura partida, uma definição que compreenda, nas operações de pensamento suscitadas
24), interferência ou eco entre duas representações icônicas no interior de uma pela imagem, tanto os aspectos puramente ópticos como o conjunto de processos
mesma definição do quadro visual. Onde procurávamos uma reduplicação, encon- de dedução deflagrados pela representação (assim como o conjunto de fenômenos
tramos uma articulação inédita entre a imagem de uma totalidade e a de um frag- de projeção que ela suscita). Digamos, portanto, que é quimérica toda imagem
mento, funcionando não como uma revelação do que é simplesmente implícito, que, ao designar um ser plural por meio de uma só representação, mobiliza suas
mas como a prefiguração possível de uma presença inteiramente diferente e, na partes invisíveis, por meios puramente ópticos ou por um conjunto de inferências.
maioria das vezes, antagonista. Não desvendamos aqui, nem de forma potencial,
nem materialmente realizada, a presença de dois ícones remetendo, por ambigui-
dade ou duplo sentido, um ao outro. O que caracteriza essa representação, e a torna
plenamente quimérica, é a sua remissão, mediante uma indicação icônica fragmen-
tária, a uma presença representada por índices, que só se torna imagem quando o
olhar, ao mobilizar “capacidades interpretativas, categorias, modelos e hábitos de
dedução e de analogia”, que formam “aquilo que se pode chamar de estilo cogni-
tivo” de um dado observador (Baxandall, 1985: 48), funciona por projeção.

Figura 12: Pássaro-serpente hopi, cerâmica policromada. Estilo D. Figura 13: Anônimo, Elmo de Filipe V da Macedônia, século IV a.C., bronze (28 x 20 x 66 cm)
© The J. Paul Getty Museum, Villa Collection, Malibu, California.
A leitura do Elmo de Filipe, assim como a da cimeira baga, nos permite for-
mular duas primeiras indicações sobre o grau de complexidade que caracteriza a A partir dessa primeira definição, será possível responder a três interrogações
representação quimérica. A primeira concerne à passagem da ambiguidade visual que surgiram a propósito da noção de quimera: uma questão morfológica (como
do estatuto de deslocamento entre projeção e percepção (no marco de um espaço definir um tipo geral de representação quimérica? Trata-se de uma representação
formulado por meios ópticos independentes) ao estatuto de princípio organizador típica das artes não ocidentais?), uma questão lógica (qual o exercício do pensa-
do espaço. A segunda diz respeito ao estabelecimento de uma articulação lógica mento que caracteriza esse tipo de representação?) e uma questão estética (o que é
entre uma representação icônica e uma marca indiciária de presença. Poder-se-ia próprio da apreensão de uma representação quimérica?). Do ponto de vista mor-
concluir que, se quisermos compreender as representações quiméricas, não será fológico, é próprio desse tipo de representação um princípio de organização do
suficiente assimilá-las prematuramente a um fenômeno de ambiguidade visual. espaço que, ao deflagrar diversos tipos de projeção, faz do deslocamento entre uma
Será necessário, pelo contrário, apreciar com exatidão as condições de possibili- forma exibida e uma forma imputada o meio para engendrar uma ilusão especí-
dade que caracterizam sua própria complexidade. Assumiremos, como ponto de fica (no sentido que Gombrich [1969] e Florenski [1992] atribuíram a esse termo).

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Nessa perspectiva, em vez de uma tipologia das iconografias (que diferenciaria versa. Longe de inscrever-se em um marco visual fixo, a quimera reflete um jogo
imagens “realistas“, “abstratas“ ou “simbólicas”), será preferível uma tipologia dos constante de pressuposição recíproca entre percepção e projeção, já que, no âmago
espaços, definidos como o conjunto de formas possíveis da relação, estabelecida desse tipo de espaço, a projeção e a percepção apenas se exercem quando estabele-
pela visão pura ou pela inferência, entre forma e fundo. Concluiremos, assim, que cem uma complementaridade provisória – a forma e o fundo, o fragmento e a tota-
uma representação fragmentária, mas não plural – como o quadro n° 1, Losango lidade, o focalizado e o periférico –, intercambiando incessantemente os seus papéis.
com quatro linhas e cinza (Lozange avec quatre lignes et gris), de Mondrian4 –, ou
plural, mas não fragmentária, não são, nem uma nem outra, representações qui-
méricas no sentido que nos propomos dar ao termo.
Do ponto de vista lógico, reservaremos o termo “quimérico” à articulação
específica entre representação icônica (por imitação e convenção) e indicação
indiciária (visual, tátil ou outra) de uma presença cujo modo de existência, sobre-
tudo mental, não se realiza materialmente. Trata-se de uma imagem imputada
pelo pensamento, da qual a realização nunca é considerada mais do que um índice
(exatamente como na argola siberiana de Pitt Rivers). Tal índice pode aparecer na
forma de um fragmento indicando a região liminar da imagem, como no caso do
Elmo de Filipe V, ou segundo a ordem de uma série de fragmentos, como no caso
da cimeira baga ou da quimera hopi.
Do ponto de vista estético, enfim, o que caracteriza o espaço quimérico não
é nem uma relação estável de encastramento entre percepção e projeção, como na
representação simbólica no quadro da perspectiva, nem um deslocamento episó-
dico, onde o quadro da percepção se torna objeto mesmo da projeção. Trata-se,
acima de tudo, de uma relação instável, de forma alguma casual, de complemen-
taridade alternada entre o tema iconográfico e seu espaço liminar. No seio desse
espaço, um fragmento visual pode de fato tornar-se inteligível graças ao fundo no Fgura 14: Cimeira baga antropo-zoomorfa, Guiné.
qual ele surge. O inverso, contudo, é sempre possível. No âmbito dessa convenção © Musée du Quai Branly/Foto Thierry Ollivier, Michel Urtado.
visual específica, o fundo poderá alternar seu papel com a forma: é exatamente o
que acontece, em duas etapas, na argola siberiana dupla que nos serviu de ponto Por mais que a decifração de significados esteja sempre presente (como se
de partida. É assim que, no âmbito de um ato do olhar que visa à designação de um verá nos exemplos da Amazônia que vamos estudar), esse jogo de complementa-
ser múltiplo, uma imagem, cujo sentido é adquirido por projeção, funciona como riedade possível entre tema e enquadramento não abrange, em primeiro lugar, o
um princípio (latente ou realizado) de construção (ou de quadro organizador) da nível do simbolismo. Se o fragmento que se oferece à interpretação projetiva tem
percepção do outro. um sentido (designando, por exemplo, dentro de um sistema como o da Costa
No seio de uma representação quimérica há, no enquadramento, uma refle- Noroeste, uma barbatana, uma cabeça, um bico de pássaro, uma cauda, ou, no da
xividade que existe paralelamente a um registro de interpretação simbólica. O Amazônia, uma onça, um abutre, ou uma anaconda), o que torna possível o jogo
que é dado como marco de percepção (ainda que sob a forma elementar de um de remissões é seu caráter fragmentário e, portanto, sua relação com o marco que
fundo) pode sempre tornar-se princípio de interpretação projetiva (portanto, forma engendra uma forma específica de reflexividade; esse sentido está muito longe
enquanto testemunho das operações do olhar, no sentido de Hildebrand), e vice- daquilo que identificamos no caso mais familiar da perspectiva. É esse jogo inces-
sante entre fragmento e quadro reflexivo que, como veremos nos casos amazôni-
4 Imagem disponível em: <http://www.flickr.com/photos/99154192@N02/9327531672/>. Acesso em out. 2013. cos, torna o espaço quimérico iterativo, recursivo e potencialmente infinito.

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Retomemos, para concluir essas primeiras reflexões sobre a representação desses caçadores e agricultores amazonenses. Trata-se de um longo ciclo de histó-
quimérica, a máscara haida, cujo estudo nos permitiu, com outros exemplos, rias que relatam os episódios sangrentos de um conflito percebido pelos indígenas
formular um conceito. A interpretação projetiva de certos traços de imagem (“é como dominando todo o universo. O conflito opõe Wanadi, personagem positivo
um rosto!”) fornece, em um primeiro momento, o marco visual para designar a associado ao sol e que preside a cultura dos humanos (técnicas de agricultura, de
presença de um ser humano, ainda que um detalhe, como o nariz, seja de difícil pesca, de caça, de fabricação de artefatos etc.), a seu irmão gêmeo Odosha, encar-
interpretação. Todavia, é sempre possível inverter o jogo: quando, ao se interpretar nação do mal, dos infortúnios, das doenças e da morte. Esse conflito cósmico não
o nariz do rosto como um bico, diz-se “é um corvo!”, o resto do rosto humano se representa, para os Yekuana, um simples esquema explicativo da origem do uni-
curvará a representar, como numa espécie de anamorfose espontânea, a cabeça de verso. Remontando à origem dos tempos, a luta entre esses dois irmãos inimigos
um pássaro ao redor desse bico. Mais uma vez, o enquadramento tornará possível nunca termina: ela marca a vida quotidiana dos homens e carrega consigo, amiúde,
a interpretação projetiva e vice-versa. Aquilo que, no sistema ocidental, não apa- consequências trágicas. Essa ruptura de equilíbrio corresponde a uma dissimetria
renta ser mais do que um deslocamento episódico ou excepcional torna-se aqui original entre o bem e o mal, e entre a existência dos humanos e de seus inimigos
um princípio de organização do espaço, que poderíamos chamar de ilusão sem potenciais, animais ou vegetais. Para os Yekuana, o mal sempre prevalece sobre
perspectiva, não mais fundado na percepção de uma profundidade, mas, acima o bem. É por isso que Wanadi, seu aliado, habita uma região afastada do céu e
de tudo, na apreensão dos limites (e das relações possíveis) de uma dada imagem. mantém poucas relações com o mundo de baixo. Seu gêmeo Odosha, cercado de
Tal princípio pode se desenvolver, seja em termos de visão, na oposição dual à seus demônios (comumente representados como “mestres” invisíveis dos animais
série, seja nas relações possíveis entre imagem, som, palavra e representações do e plantas), é uma figura sempre presente, próxima e ameaçadora. O que explica
movimento. Vale precisar: nenhum dos traços por nós identificados é suficiente também que Odosha possa ser representado mediante uma extensa série de
para definir um tipo iconográfico canônico da representação “quimérica”. O tra- seres maléficos – macacos, serpentes, onças ou canibais estrangeiros –, enquanto
balho que nos permitiu sua identificação leva a uma operação diferente: trata-se Wanadi, refugiado em seu céu, é o único a defender os indígenas. De fato, cada
de esclarecer, para além da quimera como representação, por um lado, as coor- ato ligado à pesca, à caça ou à agricultura se realiza, de acordo com os Yekuana,
denadas do espaço quimérico e, por outro, uma lógica das relações expressas pela contra a vontade de uma multidão de “mestres invisíveis” que possuem os animais
imagem. Uma quimera não representa seres, mas relações, possíveis ou pensadas e as plantas. Esse universo povoado de inimigos potenciais, sempre ameaçadores,
como tais, entre seres. A ideia de representação quimérica não se inscreve em uma é o de Odosha e seus demônios. Cada ato necessário à vida dos humanos suscita,
tipologia das iconografias, mas em uma lógica das relações icônicas, que se desdo- então, uma vingança esperada, mesmo que constantemente conjurada por cantos
bra tanto nas imagens como nos atos do olhar que elas implicam. específicos. A esse princípio de dissimetria entre o bem e o mal associa-se a ideia
de um processo de transformação constante de um no outro: toda aquisição cul-
vi tural (quer se trate de armas, de cestos, de ornamentos ou de pinturas corporais) é,
para os Yekuana, o resultado de uma transformação do mal ou dos seres que dele
Vejamos agora um exemplo dessa lógica das relações entre os seres, que a ima- dependem. Provém daí a ideia de uma constante ambiguidade que atinge todos os
gem quimérica permite formular em termos icônicos. Consideremos duas tradi- seres do universo: tudo aquilo que é útil e benéfico (incluindo a cestaria decorada
ções iconográficas ameríndias, nas quais a representação quimérica constitui sem pelos homens como preparação para seu casamento) inclui uma “parte transfor-
dúvida a convenção visual dominante: os Yekuana e os Wayana. Trata-se de popu- mada” de um ser maléfico.
lações de caçadores e agricultores tropicais, falantes de diferentes línguas da famí- Guss (1989) demonstrou que a memória visual da mitologia depende de uma
lia caribe, e que vivem hoje em dia na região do Alto Orinoco, entre o Brasil e a iconografia específica, que restitui uma espécie de “catálogo” desses seres e seus
Venezuela. O caso das cestarias yekuana, em que toda sorte de criatura mitológica nomes. De fato, em lugar de tentar representar este ou aquele episódio em um
é representada, nos permitirá introduzir os primeiros elementos de nossa análise. espaço mais ou menos “realista”, a cestaria yekuana reflete um nível mais profundo
Os trabalhos de um certo número de etnólogos (Civrieux, 1970; Wilbert, 1981) de organização do saber mitológico: cada ser encontra-se associado, por meios
nos permitiram adquirir um conhecimento relativamente detalhado da mitologia puramente gráficos, à sua parte invisível. Como vimos, os dois importantes moti-

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vos dessa mitologia são a oposição constitutiva entre dois grandes grupos de perso- então, nessa série iconográfica aparentemente simples, uma organização do espaço
nagens e a ideia de um processo de transformação contínua que a todos afeta. Essas propriamente quimérica que se complexifica a partir de uma forma elementar, oni-
metamorfoses têm duas modalidades. Por um lado, pode-se ter a noção de uma presente e em transformação. No seio desse espaço, todo ser (inclusive o próprio
criatura múltipla que (como Odosha) “assume a forma” de toda uma série de outros Wanadi) resulta da forma de Odosha. Acréscimos, variantes, relações de inclusão,
seres. Caminha-se, conforme esse ponto de vista, do indivíduo à série. Por outro de repetição e de inversão se estabelecem entre tais formas e manifestam, assim,
lado, esse processo de metamorfose incessante (onde a ideia do bem é resultado de uma unidade profunda. O universo quimérico da mitologia é traduzido em termos
um processo de domesticação do mal) pode conduzir a dotar uma mesma criatura visuais por meio dessa técnica que interage ao mesmo tempo com o simbolismo e
de uma ambiguidade constitutiva que configura simultaneamente uma instância com um tipo específico de reflexividade do marco (cadre).
positiva e negativa. Passa-se, assim, de uma série de seres à representação de um
único ser complexo. A iconografia yekuana permite traduzir em termos visuais, de vii
forma sucinta e precisa, esses dois princípios de organização do mundo mítico. Os
termos visuais que traduzem os nomes dos espíritos derivam todos de um mesmo Esse tipo de iconografia, na qual a representação dos seres é indissociável da repre-
tema gráfico, uma espécie de “T” invertido que representa Odosha. Toda a série de sentação de suas relações, não é algo excepcional ou isolado, se considerada toda a
outros personagens da mitologia é engendrada a partir desse primeiro tema grá- região amazônica. Uma breve análise da cestaria wayana, vizinhos dos Yekuana na
fico, mediante transformações geométricas simples. Tais grafismos traduzem, ao região do Alto Orinoco, permite demonstrar que essa lógica imagética, fundada
mesmo tempo, a multiplicidade de animais (macaco, serpente e sapo) e sua uni- na noção de variação a partir de um conjunto de modelos gráficos relativamente
dade, como formas derivadas de um mesmo ser original. Os diferentes persona- elementares, pode ser adotada para atingir grande complexidade. Encontra-se
gens são assim construídos a partir de uma única forma básica, em um sistema que entre os Wayana uma concepção da representação iconográfica (e mesmo certos
permite representar não apenas seres bem identificados, mas também suas pos- temas gráficos, como o que é associado à onça [Velthem, 2003: 352-356]) muito
síveis relações. Essas relações entre figuras (analogia, inclusão ou transformação) próxima à dos Yekuana. Para eles, assim como para seus vizinhos, uma represen-
indicam uma organização interna própria de um sistema de representações que se tação iconográfica se organiza sempre em torno de motivos geométricos simples
baseia em um critério único: trata-se sempre de representar, pela via quimérica, como o triângulo, o quadrado, a espiral e as linhas cruzadas ou paralelas. Para eles,
a pluralidade potencial de cada criatura mitológica. Mas o debate não se encerra também, o universo desse tipo de representação concerne apenas ao relato mitoló-
aqui. A técnica visual descrita implica também em um jogo de forma e fundo que gico, a seu comentário e a sua memória – ainda que esse exercício de memorização
permite representar (por meio de uma interpretação reflexiva do marco que engen- das histórias tradicionais pareça menos formalizado entre os Wayana, para quem,
dra, como em toda representação quimérica, um jogo de complementaridade entre segundo Lucia Hussak van Velthem, encontramos, acima de tudo, um esquema
projeção e percepção) ao mesmo tempo um ser específico e uma de suas possíveis narrativo geral, referente à predação, que oferece, no entanto, inúmeras ocasiões
metamorfoses. Essa possibilidade de uma representação em forma de ser poten- para comentar em termos míticos experiências ligadas à vida quotidiana. Mas a
cialmente duplo diz respeito a vários personagens da mitologia: os macacos, os etnografia wayana se distingue daquela das populações vizinhas pela complexi-
morcegos ou os sapos. O exemplo mais marcante é, sem dúvida, o do tema gráfico dade do discurso relativo à representação visual. Um tema geométrico não é ape-
chamado de woroto sakedi (“máscara do onça”, Figura 15), que representa alternada- nas, para os Wayana, a marca ou o emblema gráfico de um ser mitológico. Ele é o
mente, dependendo do foco de atenção, a forma ou o fundo da imagem, Odosha ou reflexo de um conhecimento específico, denominado wayaman, que se encontra
Awidi, quer seja, uma de suas transformações em forma de serpente. Reconhece-se metaforicamente situado na pupila daquele ou daquela que conhece a técnica da
aqui a relação instável, de complementariedade alternada, entre o tema iconográ- cestaria. O wayaman é a “figura invertida” de um espírito, em forma humana, que
fico e seu espaço liminar e entre percepção e operações de projeção, que caracte- se apresenta na pupila daquele ou daquela que fabrica o objeto e que se constitui
riza o espaço quimérico. De fato, como sublinhou Guss, o verdadeiro sujeito dos como o verdadeiro “autor” do objeto. Esse tipo de conhecimento (ou melhor, essa
grafismos yekuana não é esse ou aquele personagem, mas “a relação dinâmica em perspectiva, esse tipo de olhar que revela a “verdadeira natureza” da cestaria) diz
forma de transformação latente” de um no outro (1989: 106, 121-124). Encontramos, respeito, acima de tudo, à forma dos objetos. Concebida como um “pensamento”,

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mas também como o reflexo desse “outro” habitante dos olhos de quem constrói dos homens. A casa é um lugar “habitado pelos peixes tukuxi”, representados com
um artefato e que, por assim dizer, “guia sua mão”, tal forma não se revela ple- outros seres no pilar central da cobertura da grande casa cerimonial. Os peixes
namente, senão quando o objeto é confeccionado seguindo as regras da técnica são também representados como “colibris de bico comprido”. Quando os homens
tradicional, permitindo ao artefato revelar sua verdadeira natureza e mostrar-se mascarados “agem como peixes”, eles se tornam, ao mesmo tempo, “colibris de
“semelhante a um ser vivo”. De fato, segundo a tradição wayana, os artefatos, os bico comprido”.
humanos e os não humanos podem (e às vezes devem) partilhar a mesma deco-
ração. É assim que eles “assumem a mesma pele”. Essa noção é muito importante,
uma vez que, para os Wayana, “a pele, ou melhor, a pele pintada conforme um
esquema reconhecível representa um elemento que permite identificar a natureza
de um ser, o meio pelo qual é possível definir sua especificidade própria” (Vel-
them, 2003: 129). Na medida em que os artefatos e, notadamente, os artefatos de
uso ritual usam a mesma pele que os seres predadores ancestrais – cujos modelos
são a anaconda, o urubu e a onça –, eles são sempre pensados como “réplica” ou
“imitação”. Por conta dessa “identidade do desenho”, os artefatos podem “dançar”,
“falar” ou mesmo “atacar”, como fazem os predadores. De fato, os Wayana não se
limitam a afirmar, como os Yekuana, que a cestaria é “objeto-corpo”. Posto que seu
criador fabricou a primeira mulher humana utilizando precisamente a técnica do
trançado, segundo acreditam, um único processo “engendra”, inclusive em ter- Figura 15: O tema “máscara da onça” (woroto saketi), cestaria yekuana.
mos sexuais, os artefatos e os humanos. Diz-se não apenas que a cestaria, como
outros seres vivos, é dotada de palavra, de movimento (ibid.: 197) ou de sexo (ibid.:
135), mas também que os humanos e os animais, precisamente porque eles podem
portar os mesmos grafismos sobre a pele, são compostos da mesma matéria dos
artefatos. A ideia de “pele pintada – explica Lucia Hussak van Velthem – é indisso-
ciável das ideias de cópia e de reprodução, uma vez que é por meio desse elemento
que, conforme os Wayana, todo ser é engendrado. A produção de todo indivíduo
supõe a produção de uma nova pele, um ato técnico que se funda na observação
de um modelo preexistente” (ibid.: 240). Desse ponto de vista, a pele de um recém-
nascido está “simbolicamente associada a um tecido de plumas”. A de um adulto é
sempre pensada como um entrelaçado de desenhos, como uma cestaria decorada. Figura 16: O tema complexo “caranguejo/olho de anta”, cestaria wayana.
Em poucas palavras, no universo wayana, a identificação entre humanos e arte-
fatos não se funda em uma semelhança direta, mas sim na ideia de que todo ser Essa ideia de transformação potencial e incessante de todos os seres está
vivo é definido por uma decoração ou um desenho específico, representando ao muito disseminada no universo amazônico. Entre os Yekuana, ela se exprimia
mesmo tempo a pele, seu emblema e seu nome visual. por meio da oposição de dois irmãos inimigos, Wanadi e Odosha. Os Wayana
Contudo, nos enganaríamos ao pensar que a aparência dos seres do mundo partilham dessa ideia de uma dualidade original dos seres. Para eles, também,
está fixada, para os Wayana, conforme modelos preestabelecidos. No mundo dos os seres do mundo se dividem em predadores e não predadores. Essa foi, aliás,
Wayana tudo que existe está em processo de transformação constante. Todo ser uma das primeiras tarefas realizadas por seu criador mítico, o qual, segundo eles,
pode assumir, a cada instante, a “pele” de outro e até, por vezes, a de vários ouros literalmente construiu o universo distinguindo os predadores dos outros, tanto
seres simultaneamente. Velthem lembra o caso das danças que acontecem na casa os animais como os vegetais e os humanos. Não se trata aqui, de forma alguma,

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assim como entre os Yekuana, de seres individuais dotados de uma personalidade que caracteriza o caso wayana é aquela que vai da representação de diferentes indi-
distinta. Enquanto os Yekuana inventam personagens paradigmáticas, os Wayana víduos (personagens, como já dissemos) à representação de membros de classes,
raciocinam por classes. Em lugar de opor Wanadi a Odosha, eles distinguem dife- e até mesmo, como no caso da dança ritual, à representação daquilo que podería-
rentes modos de existência que podem caracterizar qualquer indivíduo de qual- mos chamar de séries de séries de seres quiméricos.5
quer natureza – animal, vegetal, humana ou artefato. Profundamente enraizada Como pode essa lógica complexa, e a ontologia que ela implica, ser traduzida
no pensamento tradicional, essa categorização é também lexicalizada na língua. em termos visuais? Devemos pensar que o caso wayana não tem mais nada em
Tomemos o exemplo da anaconda, como um dos modelos do predador. “Seus atos comum com aquele, mais simples, dos Yekuana, que parecia limitar-se à tradução
predatórios – prossegue Velthem – possuem um caráter tão paradigmático que visual de uma série restrita de nomes próprios? Ou devemos admitir que essas
não apenas remete sempre à dimensão sobrenatural, mas pode também se aplicar categorias de complexidade crescente, vistas em curso durante a ação ritual, per-
a toda outra espécie animal. [...] Essa concepção permite atribuir a outros seres, tencem somente à dimensão da exegese, sendo apenas discurso, sem relação com
como às larvas de borboleta, às centopeias, aos peixes e aos pássaros, instintos de a iconografia?
predação num marco sobrenatural, associado à anaconda” (ibid.: 105). Inversa- A representação de seres individuais na forma de motivos geométricos sim-
mente, nessa ocasião, a anaconda “portará o nome e a pele desses animais”. Van ples, como identificada entre os Yekuana, não está de forma alguma ausente na
Velthem assinala que: “A identificação desse par de seres é sinalizada pelos sufi- tradição wayana. Van Velthem menciona 47 temas gráficos para as cestarias e 29
xos okoin e koimë, que significam “enquanto anaconda” e se aplicam ao nome de para a cerâmica. Ainda assim, os Wayana não se contentam, como os Yekuana,
uma espécie específica.” (ibid.) Haverá, por exemplo, sob a denominação de kia- com simples listas de temas. Eles jogam com um princípio de classificação dos
po-koimë, o “tucano enquanto anaconda”, representado como uma serpente pro- temas gráficos reagrupados em três categorias distintas: aqueles que “pertencem”
vida de um bico longo e cuja pele é coberta de plumas de cores contrastantes. Da às pinturas corporais de anaconda, os que são associados à pele da onça e os que
mesma forma, emprestar-se-á a um pássaro formigueiro, considerado “enquanto se referem à pele de “monstros antropomorfos” (uma categoria que abrange os
anaconda”, a imagem de um réptil que canta como um pássaro. Um processo aná- inimigos, logo, os Brancos). Alguns motivos visuais, que guardam sua significa-
logo diz respeito à onça, cuja presença é assinalada por outro sufixo (kaikuxin), a ção específica, são, em seguida, associados à designação de grupos ou categorias
qual engendrará seres que, como o roedor quatipuru, podem ser considerados e de seres. Consideremos um primeiro caso. “Uma das formas paradigmáticas da
denominados “enquanto onça”. Temos aqui o exemplo daquilo que gostaríamos predação é o ato de ‘ferir, picar, perfurar’” (Velthem, 2003: 327). O ato que os sin-
de chamar de “quimeras verbais”, designando seres múltiplos e cambiantes, defi- tetiza, “flechar” ou “atingir atravessando a pele”, é característico de um artefato, a
nidos como membros de uma só classe, a partir de uma categorização construída flecha, e de vários animais, como cobras, vespas, escorpiões e certas aves, entre elas
por meio de um sufixo comum. O conceito de série, também presente na tradi- a cegonha maguari (Florida caerulea). “Essa ave, reconhecida como o protótipo
ção iconográfica dos Yekuana, aparece aqui sob uma forma muito mais complexa. dos seres que picam, é representada, no seio da iconografia wayana, pelo motivo
O exemplo mais claro dessa profusão de séries nos é oferecido pelas danças de ‘bico de maguari’ (Figura 17), cujo contorno gráfico indica uma posição de vigi-
iniciação masculina, analisadas por Van Velthem, em que as máscaras vestidas lância própria desse animal. [...] De fato, o grafismo representa a flecha enquanto
pelos neófitos designam um ser múltiplo, não apenas constituído por espíritos artefato, assim como qualquer animal, enquanto predador, que deve ‘atingir sua
diferentes (arara, falcão, peixe, sol, arco-íris), mas também por formas múltiplas presa ao modo de uma flecha’. A flecha redobrada poderá, portanto, designar de
desses espíritos “enquanto” encarnações de diferentes predadores: onças, urubus maneira indeterminada ‘tudo aquilo que pica”. Temos assim uma primeira forma
ou anacondas (ibid.: 212). Passa-se assim da quimera à série de seres quiméricos. de sair da representação de um ser individual para passar à representação da série.
Com essa dupla série de marcas corporais dos neófitos, o conceito de representa- Uma vez estabelecido, esse princípio se aplica a outros casos. “Um tema gráfico
ção quimérica alcança um nível de complexidade até agora desconhecido. O ritual
torna-se lugar de transformação, onde os jovens rapazes mascarados, progressiva- 5 Os seres considerados enquanto anacondas seriam aqueles capazes de estrangular e de devorar os
humanos. Aqueles que associamos às “larvas de borboleta”, considerados “enquanto onças”, com-
mente, “portarão a pele pintada” com uma série de espíritos animais, vegetais ou preenderiam, por sua vez, todos os seres capazes, de maneira quase imperceptível, de “morder do
humanos, sujeitos também a inúmeras metamorfoses. A transição lógica essencial interior” os humanos, por exemplo, por meio de doenças (Velthem, 2003: 320).

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wayana”, prossegue Velthem, “pode ser múltiplo e referir-se, simultaneamente, a eles mesmos híbridos (anacondas-jacarés e peixes que “possuem características
vários seres” (ibid.: 313). A imagem se decompõe, então, em diversas partes, pos- próprias dos mamíferos e das aves”), mas cuja série representa, em seu conjunto,
suindo cada uma significados independentes. É desse modo que o tema gráfico do a “raia enquanto anaconda”. Estamos diante de uma espécie de uso recursivo do
“caranguejo” (Figura 16) contém aquele que designa o “olho de anta”. A interpre- mesmo princípio de categorização. O ser quimérico wayana não se contenta em
tação se efetua, nesse caso, seguindo o que Velthem chamou de “diálogo interno” associar vários fragmentos de seres diferentes em um só corpo: graças ao princí-
das formas no interior dos temas gráficos. Essa representação de um ser por meio pio de autonomia dos desenhos em relação às diferentes superfícies onde podem
de temas gráficos que designam suas possíveis transformações também pode se aparecer, pode associar temas gráficos diferentes em um só corpo, assim como
realizar através do desenho de um só animal “portando em sua pele” os temas temas diferentes em corpos diferentes, eles mesmos combinados em sequências
gráficos que representam outros seres. É esse o caso da onça-caramujo (Figura 18). que representam coletivamente, como na maruana, seres sobrenaturais concebi-
dos como séries de transformações (a raia enquanto anaconda).

Figura 18: O tema onça-caramujo, pintura wayana.

Figura 17: O tema da cegonha maguari, cestaria wayana.


Notemos também que, mesmo quando ocorre, sob formas diversas, a pas-
Essas representações de um único “ser complexo” ecoam em diversos docu- sagem da designação de seres específicos à representação de séries de estatuto
mentos coletados por Barcelos Neto (2002) entre os Wauja do Alto Xingu, entre lógico diferente, a iconografia wayana permanece ligada à representação de listas
os quais encontramos representações de anacondas sobrenaturais definidas de nomes próprios, ponto cuja importância foi sublinhada alhures (Severi, 2007).
por sequências de temas gráficos, que se referem a outros animais (ver página Não obstante, os nomes próprios não mais designam personagens individuais
190, figura 2). Mas o sistema wayana é ainda mais complexo. Estudamos, até o (mesmo “disfarçados” ou transformados, como podiam sê-lo entre os Yekuana,
momento, casos nos quais uma única representação iconográfica se refere a vários Odosha ou Wanadi), e sim séries organizadas de seres. Os nomes traduzidos em
seres do mundo. A iconografia wayana possui também o caso inverso, no qual termos visuais por temas gráficos funcionam entre os Wayana como “definições
séries de desenhos designarão coletivamente um único ser. Encontramos aí a verbais” que mobilizam vários nomes de espécies. No que tange à memorização de
noção de predador ancestral, um ser que, manifestando-se por meio de uma série nomes, assistimos ao estabelecimento de um duplo processo. Um único tema grá-
de metamorfoses, encontra-se representado como um ser coletivo ou serial. A fico representa o nome visual de uma série de seres reunidos em uma única classe,
ilustração mais eloquente desse processo nos é fornecida pelas pinturas que deco- mediante a utilização de critérios taxonômicos distintos. Ou uma série de temas
ram, como já assinalamos, a roda de teto (maruana) da casa cerimonial (Figura gráficos, dispostos em sequências ordenadas, ilustra a série de transformações que
19). Vemos aparecer uma série de temas gráficos que remetem a diversos seres, designam a “verdadeira natureza” de um único ser.

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Resta um terceiro caso de figura, onde o ser ancestral não é representado


diretamente, mas encontra-se designado apenas pela relação, expressa em termos
exclusivamente visuais, que ele pode manter com outros seres. É o caso, por exem-
plo, do roedor quatipuru, que pode ser representado em sua relação com outros
animais, sem ser necessariamente figurado. Veremos outra maneira de traduzir
em termos visuais o conceito de “quimera verbal”, típica da estética da predação
wayana, em que vários tipos de “passagem à série” são utilizados. Sigamos a des-
crição dada por Velthem, pois ela nos permite uma aproximação com o conceito
wayana de iconismo. Guiada, certamente, por seus interlocutores, Velthem dis-
tingue, por um lado, o ukuktop, a “imagem perceptual” do animal tal como visto
na floresta próxima à aldeia, com sua morfologia, seu comportamento típico, o
alimento que prefere, e, por outro, o mirikut, tema gráfico que designa esse mesmo
animal na iconografia tradicional da cestaria (Figuras 21). “Embora todo mirikut
seja naturalmente uma imagem, segundo a distinção formulada explicitamente
pelos Wayana, nem toda imagem tem o estatuto de mirikut”, assinala Velthem Figura 20: O quatipuru e o tema quatipuru, cestaria wayana.

(2003: 317). Isso permite de fato interpretar a verdadeira natureza (ou “decifrar a
A interpretação indígena dessas imagens advém da interpretação de um tema
pele pintada”) do animal do qual se tem uma imagem cotidiana. Vejamos como
isolado por contraposição a um grupo de temas. Uma vez reconhecida a seme-
pode se realizar essa constante operação de exegese das aparências. Tomemos o
lhança dos temas (mirikut) com as “imagens perceptuais” (ukuktop) desses dois
exemplo do quatipuru e do maguari, um pequeno roedor e uma variedade de
animais, será afirmado primeiramente que o mirikut difere da imagem dos ani-
cegonha que fazem parte do meio familiar dos Wayana. São representados na ico-
mais, por representar seus “duplos sobrenaturais”. O tema geométrico não repre-
nografia tradicional por dois temas gráficos: a dupla flecha que já conhecemos
senta (apenas) um ou outro animal (familiar e inofensivo), mas sua “réplica mons-
(Figura 17) e uma figura geométrica que poderíamos associar a uma representação
truosa e normalmente invisível” (2003: 319). Lembramos que a tradição wayana
“realista” do quatipuru (Figura 20).
distingue diferentes classes de temas, os quais pertencem a diferentes predadores.
Considerando os dois temas desse ponto de vista, reconhece-se que a dupla flecha
e o pequeno roedor denominado quatipuru “pertencem ambos” às pinturas cor-
porais que figuram no ventre da anaconda. É a esse predador que eles estão asso-
ciados. Poderão, inclusive, enquanto membros de uma série, fazer parte de sua
representação. O tema do quatipuru se traduziria, nesse caso, como escreve Vel-
them, por “imagem (ukuktup) e pintura corporal (imirikut) da anaconda” (ibid.:
317). Contudo, enquanto representação de um ser invisível, o tema do quatipuru
contém também uma possível referência a outro predador, a onça. Por quê? Basta
associá-lo ao tema da onça (Figura 21) para perceber que um único detalhe os dis-
tingue: a cauda, voltada para o exterior, no caso do quatipuru, e para o interior, no
caso da onça (ibid.: 318). Essa comparação traz um “ponto de conexão” inesperado
entre os dois temas gráficos, que permaneciam invisíveis quando se tratava de
Figura 19: Roda de teto (maruana), séc. XX, Estado do Pará, rio Paru do leste, Brasil, associar o roedor quatipuru à cegonha maguari. Esse aspecto em comum não diz
Wayana-aparaí © Musée d’Ethnographie de Genève (MEG). Foto Jonathan Watts. respeito apenas aos grafismos, mas também aos dois seres representados. Deve-se

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concluir que esses dois animais (considerados sob o ponto de vista revelado por e de projeção, orientado pela tradição. O confronto entre os temas do quatipuru
seu mirikut) possuem “um corpo de felino”, o que confirma a natureza da onça (ou e da onça, que se desdobram simultaneamente no plano da presença marcante
melhor, o modo de existência possível “enquanto onça”) do quatipuru. Reconhe- (junção de corpos “felinos” em comum) e da saliência (cauda orientada no sentido
cemos aqui o caráter essencialmente serial da iconografia wayana: um ser nunca oposto, para o exterior ou para o interior), nos oferece um exemplo claro. O gra-
é pensado apenas em sua singularidade. Ele é sempre definido pela “pele pintada” fismo wayana (mirikut) é, portanto, uma espécie de nome visual, que utiliza traços
que ele veste, enquanto membro de uma classe ou de uma sequência de “modos icônicos provenientes da imagem natural (ukuktop) de vários seres para construir,
de existência” possíveis. serialmente, a imagem de seres complexos. Se não estivessem também presos em
um processo de encarnação constante e provisório, esses seres complexos, que
escapam à vista, seriam percebidos como puramente concebidos, porque escapam
da vista. Essa atenção dada aos aspectos potenciais e implícitos da representação
por temas gráficos, sujeitos a se fragmentarem e multiplicarem constantemente,
em uma espécie de movimento perpétuo da representação rumo à dimensão
quimérica, sugere que a lógica dessas iconografias ainda pode ser aprofundada.
Seria possível, por exemplo, transferir esses procedimentos de referência serial
de imagens a outros meios de expressão, além da visão. Tal hipótese de traba-
lho nos levaria a estudar as relações que se estabelecem, notadamente, entre os
Wayapi – habitantes da mesma região que os Wayana –, entre seus temas gráficos
Figura 21: O tema da onça, cestaria wayana. e suas “imagens sonoras”, que assumem a função de representar os predadores e
suas metamorfoses, como, por exemplo, nas suítes musicais chamadas de touré
A propósito desse tipo de representação, Van Velthem está certa ao falar de (Beaudet, 1998), função assumida até aqui somente pelos grafismos. Passaríamos
“formas mnemônicas” (2003: 319). Como foi possível constatar em outros casos assim das sequências dos Yekuana, organizadas segundo uma ordem geométrica
(Severi, 2007, 2009), diferentemente de como acontece com as relações semióticas, simples, às representações seriais dos Wayana, para atingir, em seguida, um nível
as relações mnemônicas não se estabelecem entre um signo (ou desenho) e seu de complexidade ulterior onde as séries de representações seriam compostas tanto
referente. Trata-se de um conjunto de inferências visuais baseadas na decifração de imagens visuais como de imagens sonoras. Poderíamos, em seguida, utilizar
de imagens complexas, que estabelece uma relação entre, por um lado, a memória outro meio de expressão e perceber o uso que certos cantos xamânicos fazem da
espacial relacionada aos temas gráficos e, por outro, a memória das palavras. A efi- onomatopeia verbal, deflagrada como uma verdadeira imagem sonora dos seres,
cácia das práticas ligadas à memorização das tradições iconográficas não se deve à permanecendo lexicalizada enquanto signos linguísticos na língua indígena. Em
tentativa mais ou menos bem-sucedida de imitar o caminho da referência própria suma, até aqui esboçamos alguns elementos de um campo de investigação vastís-
à escrita, mas à relação que essas práticas estabelecem entre diferentes níveis de simo, ainda a ser explorado.
elaboração mnemônica. Os casos yekuana e wayana designam, nesse sentido, dois Concluamos, por ora, que as tradições iconográficas aqui brevemente estuda-
diferentes graus de complexidade de um mesmo espaço quimérico. Claro está que das, Yekuana e Wayana, recorrem a meios comparáveis, quer se trate da represen-
reencontramos, na decifração dos temas gráficos wayana, os dois princípios que tação geométrica de séries de traços (que pode ser constantemente reduzida a seus
governam a memorização dos nomes próprios dos Yekuana, ordem e saliência. O componentes elementares ou organizada em uma configuração mais complexa),
estabelecimento de uma ordem afeta as séries iconográficas ligadas às “séries de quer da relação entre iconografia e linguagem, também variável. Em ambos os
seres” organizadas por categorias de predadores. A consolidação de uma saliência casos, a representação do mundo dos espíritos conserva sempre seu caráter semio-
própria a cada tema permite a identificação de cada termo da série e de cada série ticamente híbrido, “ao mesmo tempo representativo e conceitual” (Velthem, 2003:
no interior daquilo que denominamos de “séries de séries”. Em ambos os casos, 306), uma vez que seu iconismo, ainda que refinado e frequentemente imprevisí-
a prática da decifração de imagens quiméricas supõe um exercício de inferência vel, está sempre associado a um nome próprio ou a uma definição verbal do ser

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representado (que poderíamos chamar de nome-série). No seio desse último sis- rico designa uma relação instável, de complementariedade alternada entre o tema
tema, do qual o universo permanece limitado ao relato mitológico, será estabele- iconográfico e seu espaço liminar e entre a percepção e as operações de projeção.
cida uma dupla relação entre a representação iconográfica e a sua definição verbal. Este trabalho de análise nos permitiu concluir que a representação quimé-
Em alguns casos, as séries de seres ou de “nomes próprios complexos” serão repre- rica é, antes de tudo, uma representação das relações expressas pela imagem. Desse
sentadas com um único tema gráfico, assim como acontece com certos predadores. ponto de vista, ela não se inscreve numa tipologia de representações iconográficas
Em outros casos, serão utilizadas séries de temas gráficos designando um único ser. (“realista”, “anicônica”, “abstrata” etc.), mas sim em uma lógica de relações icôni-
Isso se passa com a raia enquanto anaconda, mediante sua evocação como “nome cas. A análise de duas tradições amazônicas, nas quais a representação quimé-
de uma série” ou com o quatipuru enquanto onça, como o termo intermediário rica constitui a convenção visual dominante, nos permitiu mostrar até que ponto
implícito designado pela justaposição parcial de seu tema gráfico com o da onça. a designação por projeção de uma presença imputada engendra a ideia de uma
Tanto para os Yekuana como para os Wayana o espaço quimérico está pre- essência própria dos seres quiméricos. No caso yekuana, essa essência é represen-
sente, com seu característico jogo constante de complementariedade instável tada por grandes personagens concebidos como seres submetidos a uma constante
entre percepção e projeção. A diferença entre essas duas iconografias diz respeito, transformação, presentes nas narrativas mitológicas. No caso wayana, a essência
por um lado, à passagem da representação dos indivíduos “personalizados” à de daquilo que é quimérico se desenvolve em uma lógica plural onde vemos aparecer,
séries de seres em transformação constante e, por outro, à quantidade de termos no lugar dos personagens, classes (e, por vezes, classes de classes) de seres híbri-
intermediários, de caráter linguístico ou iconográfico, utilizados para designar um dos. Nessas tradições, como em outros lugares da Amazônia, a representação qui-
ser específico. Enquanto o trabalho etnográfico nos levaria a pensar em tradições mérica se associa à definição essencialista de uma classe de seres cujos traços defi-
diferentes, a análise dos temas iconográficos, tal como das operações mentais que nidores jamais coincidem com aqueles que, no seio do mundo humano, animal ou
eles implicam, revela uma unidade subjacente. Em ambos os casos opera uma vegetal, definem uma espécie. O jogo incessante entre fragmento e marco (cadre),
mesma lógica ligada à representação quimérica das relações. e entre percepção e projeção, que torna o espaço quimérico iterativo, recursivo e,
dentre os Wayana, potencialmente infinito, designa não apenas uma estética, mas
viii também um modo de existência dos seres sobrenaturais no mundo amazônico.
Concluímos que o estudo da representação quimérica permite ampliar entendi-
Para responder aos debates suscitados pela noção de representação quimérica, mentos e visões não apenas a respeito das artes, mas também da ontologia dessas
tentamos inicialmente elaborar novos instrumentos de análise para o campo da tradições. Eis aqui, sem dúvida, uma das questões antropológicas do espaço qui-
antropologia das imagens. A partir de um breve estudo da perspectiva, convenção mérico, cujos primeiros elementos procuramos esboçar.
visual que nos é mais familiar, definimos a apreensão de uma imagem como uma
relação, variável e específica a uma tradição, entre um quadro perceptivo e o exer-
referências bibliográficas
cício da projeção de saberes adquiridos, ou das “categorias interpretativas” (Baxan-
dall, 1985: 48) neles implicadas. A análise nos levou a concentrar nosso estudo em ALPERS, Svetlana. Les Vexations de I’art. Vélasquez et les autres. Paris: Gallimard, 2005.
noções potencialmente universais, tais como a interpretação do simbolismo por BARASCH, Moshe. “Renaissance Hieroglyphics”. In: ASSMANN, Aleida; ASSMANN, Jan
projeção, a transitividade das imagens, a reflexividade do marco e os atos do olhar. (ed.). Hieroglyphen. Munique: Fink Verlag, p. 165-191, 2003.
Em seguida, aplicamos essas noções à representação quimérica. Esta nos pareceu, BARCELOS NETO, Aristóteles. A arte dos sonhos. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia,
do ponto de vista morfológico, fundada em um princípio de organização do espaço 2002.
que faz da relação entre uma forma exibida e uma forma imputada pelo pensa- BASCHET, Jérôme. L’lconogrophie médiévale. Paris: Gallimard, 2008.
mento o meio para engendrar uma ilusão específica. Do ponto de vista lógico, BAXANDALL, Michael. L’Œil du Ouattrocento. Paris: Gallimard, 1985 [1972].
pudemos concluir que o tipo de operação mental suposta nessa representação ______. Les humanistes à la découverte de la composition en peinture, 1350-1450. Paris:
baseia-se em uma articulação específica entre representação icônica e indicação Gallimard, 1989 [1986].
indiciária. Do ponto de vista estético, por fim, concluímos que o espaço quimé- BEAUDET, Jean-Michel. Souffles d’Amazonie. Paris: Société d’ethnologie, 1998.

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