2 Os argumentos mais conhecidos da crítica ao funcionalismo residem no fato de que o seu pressuposto de integração
social e cultural inibe a percepção do conflito e da mudança o que resulta numa visão imobilista e conservadora
da realidade.
3 De maneira sucinta, o específico, o singular e o universal são níveis diferenciados e não-excludentes da produção
do conhecimento. O específico, em geral, refere-se aos objetos de pesquisa; o singular refere-se ao contexto social
mais abrangente no qual o objeto está inserido; o universal expressa as tendências históricas da organização
social dominante, ou seja, do modo de produção capitalista.
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cultural, desconsiderando as múltiplas possibi- evitar que as “comunidades culturais” perma-
lidades de trocas e composições, envolvendo neçam em constante conflito.
sujeitos plurais. A educação intercultural não se proporia
Nos Estados Unidos, as preocupações em a substituir as tarefas fundamentais do ensi-
torno do multiculturalismo surgem também a no na escola, mas a alargar as preocupações
partir da década de 1970. O estabelecimento existentes, insistindo sobre a influência que
da política conhecida como « ação afirmativa », exercem as culturas umas sobre as outras.
que garante cotas de ingresso das minorias Desse modo, ela não diria respeito apenas às
crianças que portam
A educação intercultural não se proporia a substituir signos diferenciais e
à sua capacidade de
as tarefas fundamentais do ensino na escola, mas a enfrentar uma situa-
ção de vida diferente,
alargar as preocupações existentes, insistindo sobre a mas a todas as crian-
influência que exercem as culturas umas sobre as outras. ças e sua capacidade
de tirar proveito da
realidade pluricul-
raciais e mulheres no trabalho e na escola, tural, ou seja, diria respeito ao vivido concre-
resultou desse momento. Mas os mecanismos to de todas as crianças, que, inclusive, pode
discriminatórios e racistas, mesmo coibidos, não não incorporar o pluriculturalismo.
deixaram de existir. Essa política sempre en- Entende-se que a educação intercultural não
frentou resistência para ser implantada, mas seria uma disciplina escolar entre outras mas,
atualmente vem sendo sistematicamente antes, o princípio fundamental que subenten-
criticada. Ela é considerada pela maioria dos de toda a atividade escolar. Isso exigiria que a
americanos como “discriminação ao contrário”, instituição escolar reexaminasse, revisasse e
por oferecer vantagens diferenciadas aos ne- alargasse as suas normas e, a rigor, seu cur-
gros e às mulheres, num momento em que a rículo, na medida em que é nele que a orienta-
crise e as dificuldades de emprego atingem a ção da escola se concretiza. Também exigiria
todos. que as atividades interculturais ultrapassas-
Com a aproximação dos campos do conhe- sem o quadro estreito da escola, assegurando
cimento da Antropologia e da Educação, foram o estabelecimento de relações duráveis entre
definidas as grandes linhas do multicultu- alunos, capazes de resistir aos conflitos cultu-
ralismo, marcadas pela tradição culturalista. rais entre sistemas de valores diferentes.
Essa corrente de pensamento representou um No entanto, quando esses objetivos e o pe-
avanço em relação às perspectivas etno- queno histórico da educação intercultural são
cêntricas e evolucionistas. O culturalismo pro- confrontados com as experiências práticas,
punha o esforço de compreensão da diversida- percebe-se o distanciamento progressivo des-
de humana, negando que ela pudesse ser sas em relação à teoria que as informa e os
explicada por determinações biológicas ou geo- riscos de banalização tornam-se evidentes.
gráficas. Para essa corrente, as fontes dessa O pressuposto geral de que todas as crian-
diversidade estariam na cultura e no ças deveriam ser o público alvo da proposta
particularismo histórico. educativa intercultural é abandonado na práti-
Essa mesma corrente de pensamento for- ca, quando se evidencia uma preocupação
neceu as bases teóricas para as propostas vol- centrada na diferença do “outro”. Além disso,
tadas para a educação intercultural na Euro- ao ser desconsiderado que o processo cultural
pa. Porém, os europeus, e particularmente os implica dinamismo, transformação e
franceses, tomam a questão da diferença cultu- reinterpretações, são inevitáveis os deslizes que
ral com reservas, temendo que a sociedade enfatizam os aspectos mais superficiais e fol-
multicultural enfraqueça a idéia de nação e os clóricos da “cultura dos diferentes”. Também
riscos do relativismo absoluto. A perspectiva aí se percebe um descompasso entre as linhas
européia parte da análise dos limites do mestras da “pedagogia intercultural”, tal como
multiculturalismo americano que, ao propor o vem sendo definida pelos seus defensores, e
reconhecimento da diferença, não consegue sua prática.
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Na verdade, esses descompassos entre teo- mente a compreensão dos mecanismos históri-
ria e prática, ou seja, entre aquilo que se pro- cos será capaz de superar.
fessa como necessário e o que é passível de ser Ao se considerar o terreno do intercultural
realizado, não são de todo condenáveis, visto o despojado de contradições e conflitos, mesmo
terreno plural e escorregadio no qual se pre- que prenhes de boas intenções, as propostas
tende atuar. Tão plural e escorregadio que são nessa direção são carregadas de ingenuidade
múltiplas as experiências possiveis. e, na grande maioria dos casos, expostas à mani-
Uma importante característica desse terre- pulação daqueles que querem despolitizar a
no plural e escorregadio é que não apenas a cultura e toda a vida social. Nesse sentido, tais
prática, mas também a literatura sobre a edu- propostas escorregam na lógica que parado-
cação intercultural tem um caráter militante. É xalmente pretendem combater.
produzida por pessoas engajadas em experiên- Por essa razão, pode ser considerada
cias de escolarização de grupos diferenciados e falaciosa a proposta de uma educação
dirigida àqueles que estão convencidos de sua intercultural como sinônimo de uma educação
necessidade. Tal constatação não tem valor harmônica de respeito às diferenças. Na ver-
condenatório na medida em que se considera dade, trata-se de dar uma conotação nova e
justa a causa da militância, apesar da fragili- positiva ao fenômeno das relações entre as cul-
dade tateante de sua prática, desenvolvida sob turas que sempre esteve marcada pelo signo
a forma de julgamentos e recomendações. No da dominação. Negar a existência de forças so-
entanto, os educadores e defensores da educa- ciais que se impõem ante o desejo de constru-
ção intercultural parecem colocar a carroça ção de uma «sociedade feliz» não basta para
na frente dos bois, supondo que um certo nú- transformá-la.
mero de problemas é resolvido se a cultura à O debate em torno da diversidade cultural
qual pertencemos é conhecida. é travado entre duas principais posições. De
A multiplicidade de experiências é desen- um lado, a diversidade cultural podendo ser
volvida a partir de um mesmo princípio e do compreendida exclusivamente no contexto par-
mesmo objetivo de tornar a educação ticular em que foi elaborada, sem qualquer de-
intercultural o instrumento através do qual a terminação universal, caracterizando a posi-
instituição escolar pode atingir melhor os seus ção relativista. De outro, a compreensão da di-
objetivos de democratização, igualdade de versidade cultural sendo informada pela uni-
chances e desenvolvimento cultural. Porém, ao versalidade humana racionalista ou anti-
serem mascaradas as relações de poder e do- relativista.
minação entre os gru-
pos em contato, é im-
pedida a percepção do O pressuposto geral de que todas as crianças deveriam
caráter contraditório ser o público alvo da proposta educativa intercultural é
do processo de reco-
nhecimento da diver- abandonado na prática, quando se evidencia uma
sidade cultural. Mesmo
que teoricamente seja preocupação centrada na diferença do "outro".
algumas vezes reivin-
dicada essa leitura mais abrangente da ques- O problema da posição relativista é que ela
tão, isso não tem sido capaz de influenciar as acaba sendo presa de uma análise redutora ao
práticas levadas a cabo. centrar sua atenção apenas no contexto parti-
Finalmente, a situação de discordância en- cular no qual a diversidade é produzida, per-
tre discurso e prática pode ser explicada pela dendo-se de vista o contexto histórico global no
lógica societária em que ambas as instâncias qual essa e outras particularidades estão mer-
estão mergulhadas. Essa lógica é histórica e gulhadas. Ao ser negada a possibilidade de com-
presentemente informada, em escala global, pelo preensão da singularidade, a partir da compa-
capitalismo. Assim, mesmo a perspectiva euro- ração com outras particularidade existentes, é
péia de educação intercultural, com a intenção inviabilizada a sua própria compreensão.
de superar o multiculturalismo americano, es- No caso das propostas de educação
barra em obstáculos de várias ordens que so- intercultural, o elemento complicador é que se pro-
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cura discutir a cultura como imune ao processo ma sobre a necessidade quase compulsiva da
transformador. Supõe-se que as culturas diferen-ação prática e sobre a crença de que essa prá-
ciadas, mesmo em contato com outras, permane- tica, por si, será capaz de promover grandes
çam com as mesmas caraterísticas originais. transformações sociais.
A perspectiva anti-relativista ou racionalista Tal característica não deve ser considera-
é vista como sendo incapaz de explicar os da como negativa ou pejorativa na medida em
que, sendo um espaço
de conflito, na escola
Negar a existência de forças sociais que se sempre haverá lugar
para a prática - que
impõem ante o desejo de construção de uma pode animar a reflexão
teórica - e a utopia que
"sociedade feliz"não basta para transformá-la. se quer perseguir. No
entanto, “o pragmatis-
mo utópico” está expos-
particularismos, uma vez que esses são reduzi- to ao perigoso risco de uma prática sem
dos a uma estrutura permanente, definida pe- parâmetros rigorosos de reflexão, que pode des-
los universais da ação e pensamentos huma- lizar em direção ao efeito contrário daquilo que
nos. Dessa perspectiva afastam-se as propos- se pretendia alcançar.
tas de educação intercultural, mas contradito- Analisando os princípios que deveriam
riamente reclamam pela explicação da parti- perspassar a educação intercultural, é possí-
cularidade das expressões culturais, decorren- vel ter uma idéia de como o “pragmatismo
tes de processos migratórios, historicamente utópico” pode gerar distorções. É curioso veri-
definidos. ficar como a crítica que seus defensores diri-
Como decorrência da opção preferencial- gem à sociedade permanece fora dos muros da
mente relativista que norteia as propostas de escola. Assim, a desigualdade, a injustiça, os
educação intercultural, no seu encaminhamento conflitos de classe e de cultura existentes na
prático e teórico, há dificuldade de conciliar sociedade, de alguma maneira seriam neutrali-
as dimensões universal e singular da condi- zados no contexto escolar que se tornaria, des-
ção humana. E quando iniciativas são feitas se modo, uma realidade a-histórica.
nessa direção, perde-se de vista que essa con- Em síntese, os artigos da LDB que tratam
ciliação não pode ocorrer sem conflitos ou con- da educação diversificada e particularmente
tradições já que a universalidade é presente- da indígena estariam negligenciando o papel
mente definida pela organização social capita- da língua nacional como instrumento de po-
lista, marcada por contradições e pela desi- der e de dominação; as contradições de clas-
gualdade. se que atravessam a instituição escolar - e
que a língua, como a cultura, não são imunes
Os riscos e as ao processo de transformação social -, o pro-
cesso educacional é violento em si, com efei-
armadilhas na LDB tos amplificados sobre aqueles que são porta-
dores de uma língua e cultura sujeitas à do-
Em que pese as resistências, é inegável que minação porque ocupam baixas posições na
certos avanços foram feitos na ótica de uma estrutura social. Isso porque o processo edu-
perspectiva intercultural em educação. Esses cacional molda as consciências a um certo
avanços dizem respeito, sobretudo, à tipo de organização social. Além disso, a ge-
sensibilização crescente dos educadores ante neralização subjacente ao conceito «comuni-
a problemática da população escolar cultural- dades indígenas», escamoteia sua expressão
mente diversificada. Contudo, o engajamento de plural.
professores e pessoas comprometidas com a A avaliação de que a escola é responsável
questão possui uma característica particular- por uma parte não negligenciável da forma-
mente significativa a qual chamaria de ção para a cidadania, mas que continua a vi-
“pragmatismo utópico”. Expressão que comporta ver em um universo monocultural onde ape-
termos aparentemente paradoxais, ela infor- nas a cultura dominante tem direito de ex-
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pressar-se, não merece retoques. Não menos sem o crivo da educação formal e do importan-
atraente é a idéia de que uma sociedade em te papel que os movimentos sociais organiza-
perpétua mutação cultural deve educar as cri- dos têm a cumprir, mas que devem estar aten-
anças em uma ótica intercultural, em vista de tos para a linha tênue que separa o respeito à
sua inserção plena na vida social econômica diferença, de sua negação.
contemporânea. Para isso, a proposta inter-
cultural deveria basear-se numa pedagogia que
se constrói em atos e se desenvolve na con- A guisa da conclusão
frontação, na experiência e na análise, diri- A questão da educação e da diversidade
gindo-se para toda a população escolar sob o cultural é complexa e, sem uma reflexão aten-
risco de, ao ser reservada para os «diferen- ta, não se poderá evidenciar os melhores cami-
tes», reforçar estereótipos. nhos a serem trilhados. Mas, a recente experi-
Se o “pragmatismo utópico” não é um mal ência de outros países e, sobretudo, a compre-
em si, ele desliza para um terreno perigoso quan- ensão histórica desse processo, será um norte
do tenta purificar a escola dos males da socie- importante para os educadores comprometidos
dade. Nesse momento, seu discurso passa a com a transformação. Voltar os olhos para o
ter apenas efeito de retórica e, por isso, não se passado, buscando avaliar as lições vividas no
apresenta como alternativa viável ou substan- Brasil e no plano internacional, é exigência
tivamente diferente do que já é conhecido. Po- imprescindível para não cometermos os mes-
der-se-ia replicar que se pretende simplesmen- mos erros, os mesmos equívocos. A começar
te oferecer, na escola, uma formação humanista, pela crença de que a problemática sobre diver-
ao que poderia ser respondido que se trataria sidade cultural é uma “novidade”.
de um “humanismo inútil”. Isto porque a esco- A Antropologia se constituiu, enquanto dis-
la não pode renunciar a inculcação de regras ciplina, entre os séculos XVIII e XIX, em torno
e convenções sociais da modernidade ocidental da preocupação de compreender a diversidade
capitalista, da qual é fundadora e guardiã, em cultural. O conhecimento produzido pelos
nome do relativismo cultural que proteja os in- antropológos, não imunes ao processo históri-
divíduos de uma violência e de uma imposição co, sofreu transformações e foi objeto de crítica
arbitrária que lhes é feita. interna. Limites teóricos foram apontados nas
Tal renúncia impediria os grupos cultural- formulações sobre as diferenças e o próprio
mente diferenciados de transitar da socializa- “olhar” da antropologia alargou-se quando as
ção primária dada pela família, em direção à “sociedades primitivas” sofreram o irrefutável
socialização secundária da objetividade soci- efeito da universalização capitalista.
al, mantendo-os na sua particularidade e pri- Não se pode dizer que entre os antropológos
vando-lhes do acesso à liberdade que o domí- haja consenso na maneira de conhecer e in-
nio dos códigos da sociedade onde ele viverá terpretar a diversidade cultural humana que
confere à um indivíduo. Assim, o que pode e percorre um gradiente cujos pólos são as pers-
deve fazer a escola para promover sua pró- pectivas culturalistas ou relativistas, de um
pria transformaçao é devolver ao discurso es- lado, e anti-relativistas ou racionalistas, de
colar aquilo que é hoje ocultado: o uso social outro. Mas a sua experiência reflexiva sobre
que é feito dos conhecimentos que ela trans- a questão não pode ser negligenciada ou me-
mite. nosprezada, sob o risco de se pretender
Por fim, esses riscos e armadilhas apon- “reinventar a roda” e, com isso, desavisada e
tam para a possilidade de serem obtidos me- acriticamente alimentar a manutenção da
lhores resultados em propostas desenvolvidas mesma ordem social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Ruth (org.). A aventura antropológica - teoria e pesquisa. 2.ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986.
DURHAM, Eunice Ribeiro. A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspecti-
vas. In: CARDOSO (org.). Op. cit., 1986.
VALENTE, Ana Lúcia E. F. Usos e abusos da Antropologia na pesquisa educacional. Pro-posições, nº 20,
Campinas, pp,54-64, 1996.
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