Você está na página 1de 25

INTERCULTURALIZAR

DESCOLONIZAR
DEMOCRATIZAR:
uma educação “outra”?
Copyrigth@2016 Vera Maria Candau

Organização
Vera Maria Candau (org)

Coordenação editorial e revisão


Adélia Maria Nehme Simão e Koff

Projeto gráfico e capa


Rodolpho Oliva

Autores/autoras
Adélia Maria Nehme Simão e Koff, André Luiz Sena Mariano,
Augusto Cesar Gonçalves e Lima, Carla de Oliveira Romão,
Carmen Teresa Gabriel, Catherine Walsh, Cinthia Monteiro de Araújo,
Cristiane Correia Taveira, Daniel Mato, Daniela Frida Drelich Valentim,
Edson Diniz, Emilia Freitas de Lima, Fidel Tubino, Helena Maria Marques Araújo,
Isabell Theresa Tavares Neri, Ivanilde Apoluceno de Oliveira, Kelly Russo,
Luiz Fernandes de Oliveira, Marcelo Gustavo Andrade de Souza,
Miriam Soares Leite, Stela Guedes Caputo, Susana Beatriz Sacavino,
Vera Maria Ferrão Candau, Wilson Cardoso Júnior

Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida, duplicada ou transmitida


por quaisquer meios sem a prévia autorização da organizadora.

FICHA CATALOGRÁFICA

2016
Viveiros de Castro Editora Ltda
Rua Visconde de Pirajá, 580 Loja 320
Ipanema, Rio de Janeiro/RJ
Cep: 22410-902
Organizadora
Vera Maria Candau

Rio de Janeiro, 2016


A Educação Intercultural parte da afirmação
da diferença como riqueza. Promove processos
sistemáticos de diálogo entre diversos sujeitos
-individuais e coletivos-, saberes e práticas na
perspectiva da afirmação da justiça -social,
econômica, cognitiva e cultural-, assim como
da construção de relações igualitárias entre
grupos socioculturais e da democratização da
sociedade, através de políticas que articulam
direitos da igualdade e da diferença.
(GECEC, 2014)
Apresentação
O Grupo de Estudos Cotidiano, Educação e Cultura(s) (GECEC),
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-
-Rio, está completando no presente ano vinte anos de atividades.

Desde 1996, estamos desenvolvendo, de modo sistemático e articu-


lado, uma linha de pesquisa que aborda diferentes dimensões da
problemática das relações entre educação e cultura(s). Foram anos
de intenso trabalho e produção de livros, artigos, comunicações
em congressos, capítulos de livros, palestras, cursos, assim como
de teses e dissertações que, sempre referidos a uma pesquisa-eixo
de caráter institucional, permitiram aprofundar e discutir diver-
sas questões presentes tanto na produção acadêmica, quanto na
dinâmica da sociedade em geral e, particularmente, no contexto
educacional.
7
A problemática das diferenças culturais vem adquirindo cada vez
maior visibilidade social e suscitando acirradas polêmicas em di-
versos espaços, da grande mídia às redes sociais, dos movimentos

Apresentação
sociais às salas de aula. Relações étnico-raciais, diversidade sexual,
questões de gênero, pluralismo religioso, relações geracionais, cul-
turas infantis e juvenis, saberes curriculares, entre outros, são te-
mas que provocam tensões, reações de intolerância e discriminação,
assim como suscitam diversas iniciativas orientadas a trabalhá-los
numa perspectiva orientada à afirmação democrática, ao respeito
mútuo, à aceitação da diferença e à construção de uma sociedade
em que todos e todas possam ser plenamente cidadãos e cidadãs.

No trabalho que vimos realizando, algumas afirmações foram ad-


quirindo cada vez maior centralidade na perspectiva de se aprofun-
dar esta problemática nos contextos educativos.

A primeira delas refere-se à relação entre diferenças culturais e


direitos humanos. O discurso sobre os direitos humanos tem uma
longa trajetória histórica e está intimamente relacionado com as
lutas sociais. No entanto, a configuração que adquiriu está forte-
mente marcada por referenciais da modernidade, tendo no cen-
tro de sua construção as questões da igualdade, da liberdade e da
universalidade. Hoje, vários grupos questionam a pertinência desta
construção e se perguntam se esta pode ser referência para se reco-
nhecer as diferenças culturais, os diversos modos de situar-se diante
da vida, dos valores, as várias lógicas de produção de conhecimen-
tos, práticas e visões de mundo.
Partimos do ponto de vista de que a relação entre questões refe-
ridas à justiça, superação das desigualdades e democratização de
oportunidades, e as que dizem respeito ao reconhecimento de di-
ferentes grupos socioculturais se faz cada vez mais estreita. Neste
sentido, a problemática dos direitos humanos, muitas vezes en-
tendidos como direitos referidos à igualdade, fundamentalmente
individuais, civis e políticos, se amplia e, cada vez mais, se afirma
a importância dos direitos coletivos, culturais e ambientais. Nes-
ta perspectiva, igualdade e diferença não podem ser vistos como
pólos que se contrapõem e sim como pólos que se exigem mutua-
mente. Esta articulação entre igualdade e diferença, redistribuição
e reconhecimento (Fraser, 2001), tem sido um eixo central das pes-
quisas que vimos desenvolvendo e orientando.

A segunda afirmação que estrutura nosso trabalho tem que ver


8 com a relação entre multiculturalismo e interculturalidade. Parti-
mos do reconhecimento de que estas são expressões polissêmicas.
Na América Latina muitos autores as contrapõem, entendendo o
multiculturalismo como a afirmação das diferenças em suas espe-
INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

cificidades e a interculturalidade colocando a ênfase no aspecto


relacional.

No entanto, assumimos a posição de que o multiculturalismo ad-


mite diferentes posições que podem ser sintetizadas em três: as-
similacionista, diferencialista e interativa (Candau, 2009). A abor-
dagem assimilacionista parte da afirmação de que vivemos numa
sociedade multicultural, no sentido descritivo. Uma política assimi-
lacionista - perspectiva prescritiva - vai favorecer que todos se in-
tegrem na sociedade e sejam incorporados à cultura hegemônica.

No caso da educação, promove-se uma política de universaliza-


ção da escolarização. Todos e todas são chamados a participar do
sistema escolar, mas sem que se coloque em questão o caráter
monocultural presente na sua dinâmica, tanto no que se refere
aos conteúdos do currículo, quanto às relações entre os diferen-
tes atores, às estratégias utilizadas nas salas de aula, aos valores
privilegiados etc. Quanto ao multiculturalismo diferencialista ou,
segundo Amartya Sen (2006), monocultura plural, esta abordagem
parte da afirmação de que quando se enfatiza a assimilação termi-
na-se por negar a diferença ou por silenciá-la. Propõe então colocar
a ênfase no reconhecimento da diferença e, para promover a ex-
pressão das diversas identidades culturais presentes num determi-
nado contexto, garantir espaços em que estas possam se expressar.
Afirma-se que somente assim os diferentes grupos socioculturais
poderão manter suas matrizes culturais de base. Algumas das posi-
ções nesta linha terminam por assumir uma visão essencialista da
formação das identidades culturais. São então enfatizados o acesso
a direitos sociais e econômicos e, ao mesmo tempo, é privilegiada
a formação de comunidades culturais consideradas ‘homogêneas’
com suas próprias organizações - bairros, escolas, igrejas, clubes,
associações etc. Na prática, em muitas sociedades atuais terminou-
se por favorecer a criação de verdadeiros apartheids socioculturais.

Estas duas posições, especialmente a primeira, são as mais frequen-


tes nas sociedades latino-americanas. Algumas vezes convivem de
maneira tensa e conflitiva. São elas que em geral são focalizadas
nas polêmicas sobre a problemática multicultural.

No entanto, nos situamos numa terceira perspectiva, que propõe 9


um multiculturalismo aberto e interativo, que acentua a intercul-
turalidade, por considerá-la a mais adequada para a construção de
sociedades democráticas e inclusivas, que articulem políticas de

Apresentação
igualdade com políticas de identidade.

Afirmamos também o caráter original do desenvolvimento da pers-


pectiva intercultural na América Latina, assim como a relevância
que vem adquirindo, especialmente a partir dos anos 90. Em di-
versos países do continente provoca uma intensa produção biblio-
gráfica e fortes discussões. Diferentes dimensões -política, ética,
social, jurídica, epistemológica e educacional- são analisadas e ob-
jeto tanto de debates por atores da sociedade civil, como ocasião
de desenvolvimento de pesquisas e outras iniciativas. Também tem
estimulado a elaboração de políticas públicas centradas ou que
contemplam esta temática.

Na realização de nossas pesquisas temos privilegiado o diálogo


com diferentes autores latino-americanos e estimulado o aprofun-
damento na educação intercultural crítica, na perspectiva assina-
lada por Tubino (2005, p. 5):
A assimetria social e a discriminação cultural tornam inviável
o diálogo intercultural autêntico. Por isso, não se deve come-
çar pelo diálogo e sim pela pergunta pelas condições do diálo-
go. Ou, dizendo de modo mais preciso, é necessário exigir que
o diálogo entre as culturas seja em primeiro lugar um diálogo
sobre os fatores econômicos, políticos, militares etc., que con-
dicionam atualmente o intercâmbio franco entre as culturas
da humanidade. Esta exigência é hoje imprescindível para não
se cair na ideologia de um diálogo descontextualizado, que se
limitaria a favorecer os interesses criados da civilização domi-
nante, não levando em consideração a assimetria de poder que
reina hoje no mundo. Para que o diálogo seja real, é necessário
começar por visibilizar as causas do não diálogo, o que passa
necessariamente por um discurso de crítica social.

A interculturalidade crítica quer ser uma proposta epistemológica,


ética e política orientada à construção de sociedades democráticas
que articulem igualdade e reconhecimento das diferenças cultu-
rais, assim como a propor alternativas ao caráter monocultural e
ocidentalizante dominante na maioria dos países do continente.

Um terceiro eixo articulador do nosso trabalho tem sido, particu-


10 larmente no que se refere a educação escolar, a afirmação de que
estamos chamados a “reinventar a escola”. (Candau, 2010)

A problemática da educação está na ordem do dia e abarca diferen-


INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

tes dimensões: universalização da escolarização, qualidade da edu-


cação, projetos político-pedagógicos, dinâmica interna das escolas,
concepções curriculares, relações com a comunidade, função social
da escola, processos de avaliação no plano institucional e nacional,
formação de professore/as, violências no/do contexto escolar, entre
outras. É possível detectar um crescente mal-estar entre os profis-
sionais da educação. No entanto, acreditamos que este mal-estar
exige que nos enfrentemos com a questão da crise atual da escola
não de um modo superficial, que tenta reduzi-la à inadequação de
métodos e técnicas, à introdução das tecnologias da informação e
da comunicação de forma intensiva, ou ao ajuste da gestão escolar
à lógica do mercado e da modernização. Pensamos que a crise da
escola se situa em um nível mais profundo.

Nesta busca nos situamos e consideramos a interculturalidade um


elemento central neste processo de “reinventar a escola”, articulan-
do igualdade e diferença e construindo sujeitos, saberes e práticas
comprometidos com o fortalecimento da democracia e a emanci-
pação social.

Hoje temos como referência fundamental de nossas pesquisas a


concepção de interculturalidade crítica que construímos coletiva-
mente no GECEC:
A Educação Intercultural parte da afirmação da diferença
como riqueza. Promove processos sistemáticos de dialogo en-
tre diversos sujeitos -individuais e coletivos-, saberes e práti-
cas na perspectiva da afirmação da justiça -social, econômica,
cognitiva e cultural-, assim como da construção de relações
igualitárias entre grupos socioculturais e da democratização
da sociedade, através de políticas que articulam direitos da
igualdade e da diferença (2013).

Gostaríamos simplesmente de ressaltar a primeira afirmação: a


educação intercultural parte da afirmação da diferença como ri-
queza. Parece uma afirmação óbvia, mas não é. O termo diferença,
em depoimentos de educadores/as, em várias das pesquisas que
realizamos, é frequentemente associado a um problema a ser resol-
vido, à deficiência, ao déficit cultural e à desigualdade. Somente em
poucos depoimentos, a diferença é articulada a identidades plurais
que enriquem os processos pedagógicos e devem ser reconhecidas 11
e valorizadas. No entanto, se não logramos mudar de ótica e situ-
ar-nos diante das diferenças culturais como riquezas que ampliam
nossas experiências, dilatam nossa sensibilidade e nos convidam a

Apresentação
potencializá-las como exigência da construção de um mundo mais
igualitário, não poderemos ser atores de processos de educação
intercultural na perspectiva que assinalamos. E, para tal, estamos
chamados a desconstruir aspectos da dinâmica escolar naturaliza-
dos que nos impedem de reconhecer positivamente as diferenças
culturais e, ao mesmo tempo, promover processos que potenciali-
zem esta perspectiva.

Além de especialistas de diferentes países latino-americanos, a


quase totalidade dos autores e autoras que integram a presente
publicação participaram do GECEC em diversos momentos de sua
trajetória acadêmica e profissional: como estudantes do programa
de pós-graduação -Mestrado e Doutorado- da PUC-Rio ou como co-
legas que realizaram seu pós-doutorado no contexto deste grupo
de pesquisa. Todos foram/são atores, construtores dos caminhos
que trilhamos nestes 20 anos.

Estes profissionais estão hoje vinculados a diferentes universida-


des do país, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade
Federal Fluminense, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Uni-
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Universidade Federal de São Carlos e Uni-
versidade do Estado do Pará, assim como ao Instituto Nacional de
Educação de Surdos e a equipe da organização não governamental
Novamerica. Têm exercido nas respectivas instituições funções de
gestão, assim como atividades de ensino, pesquisa e extensão e re-
alizam consultorias a diversos órgãos públicos e privados. Coorde-
nam equipes de pesquisa relacionadas com a temática das relações
entre educação e cultura(s), possuem uma expressiva produção
acadêmica e são atuantes em associações nacionais como a Anped,
entre outras, participando comprometidamente do debate público
sobre as questões educativas e sociais.

Agrupamos os artigos da presente publicação em quatro grandes


blocos. O primeiro -Interculturalidade, Decolonialidade e Educação:
perspectivas - está integrado por textos de autores latino-america-
nos com os quais temos mantido uma intensa interlocução: Fidel
Tubino, da Universidade Católica do Peru, que trata das relações
entre formação cidadã e educação intercultural, Catherine Walsh,
12 da Universidad Andina Simón Bolívar, sede Equador, focalizando as
“brechas decoloniais”, bem como suas implicações para o trabalho
acadêmico e político e Daniel Mato, da Universidade Nacional de
Três de Fevereiro (Untref), Argentina, que analisa questões sobre as
INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

relações entre universidade e diversidade cultural e epistêmica no


contexto latino-americano. Foi incluído também um trabalho de
minha autoria sobre as contribuições para a Educação Intercultural
do pensamento de Boaventura Sousa Santos, conhecido sociólogo
da Universidade de Coimbra, com o qual também temos mantido
um intenso diálogo, particularmente nos últimos anos. A produção
destes autores tem provocado discussões e alargado nossas inquie-
tudes e buscas na perspectiva da afirmação da interculturalidade
crítica e suas implicações para os processos educacionais.

O segundo bloco, -Conhecimentos, Políticas, Enfoques e Educação In-


tercultural- está integrado por textos que abordam determinadas
políticas públicas como a versão preliminar sobre a Base Nacional
Comum Curricular, proposta pelo MEC, e que tem suscitado ampla
discussão na área acadêmica, concretamente sobre o ensino de
história, de autoria de Carmen Teresa Gabriel; este também é o
foco de um segundo texto orientado a desconstruir o caráter mo-
nocultural de sua abordagem e oferecer elementos para a constru-
ção de “outras histórias possíveis”, de Cinthia Monteiro de Araujo.
Outros textos abordam temas relativos às políticas de ação afirma-
tiva no ensino superior dirigidas a estudantes negros, de Daniela
Valentim Drelich, assim como a implantação das leis 10.639/2003
e 11.645/2008, em escola de ensino fundamental situada próxima
de uma comunidade quilombola do Rio de Janeiro, de autoria de
Augusto César Gonçalves e Lima. Integram também este bloco o
trabalho de Luís Fernandes de Oliveira que nos oferece elementos
para repensar a luta antirracista no Brasil, em especial, no campo
educacional sob a perspectiva da interculturalidade, e o de Susana
Sacavino que aborda tema que vem adquirindo especial relevância
na América Latina, as relações entre descolonização e educação.

Sujeitos, Diferenças e Processos Educativos é a temática do terceiro


bloco. Nele são abordados temas pouco trabalhados na literatura
pedagógica e importantes para a perspectiva da educação intercul-
tural. Kelly Russo e Edson Diniz tratam de trajetórias de estudan-
tes universitários indígenas no Estado do Rio de Janeiro. Miriam
Soares Leite e Carla de Oliveira Romão da persistência do sexismo
na educação escolar da juventude. Helena Maria Marques de Araú-
jo e Stela Guedes Caputo focalizam as crianças como sujeitos em
espaços de educação não formal, o Museu da Maré e os terreiros. 13
Finaliza o bloco, Cristiane Correia Taveira, abordando processos de
construção pedagógica que assumem as especificidades das pesso-
as surdas.

Apresentação
O quarto e último bloco, está centrado em temas relativos às Prá-
ticas Pedagógicas, Formação de Educadores e Interculturalidade. Pro-
cura oferecer caminhos para a construção de práticas educativas
interculturais e o enfrentamento de preconceitos e discriminações
presentes muitas vezes nos âmbitos educativos. Adélia Maria Neh-
me Simão e Koff analisa a pertinência do trabalho centrado em
projetos para a educação intercultural. Wilson Cardoso Júnior trata
do ensino de artes visuais antirracista. Marcelo Andrade de como
enfrentar a intolerância religiosa na escola, a partir da perspectiva
intercultural. Ivanilde Apoluceno de Oliveira e Isabell Theresa Tava-
res Neri analisam experiências de educação não formal a partir das
contribuições de Paulo Freire à perspectiva intercultural. Emília
Freitas de Lima e André Luiz Sena Mariano, assim como Vera Maria
Candau, focalizam temas referentes à formação de professores e
interculturalidade. Os primeiros a partir de questões sobre os sabe-
res docentes e a segunda apresenta uma experiência realizada com
professores em serviço.

Por esta breve descrição, é possível afirmar que os textos que inte-
gram a presente publicação abordam diferentes temáticas, a partir
de diversos olhares e perspectivas, com referenciais teóricos e en-
foques plurais. Constituem um significativo mosaico das problemá-
ticas que afetam as questões relativas às diferenças culturais hoje.
Esta é uma característica inerente a esta linha de investigação, a
pluralidade analítica e crítica, o incessante alargamento de suas
preocupações e perspectivas.

No entanto, tendo presente esta diversidade dos textos, é possível


identificar uma busca comum, presente de modo explícito ou im-
plícito em todos os trabalhos, a necessidade de reinventar a educa-
ção e a escola, a superação do caráter monocultural, euro-usa-cên-
trico e homogeneizador das práticas educativas. Consideramos que
este é o desafio do momento. E, neste sentido, Interculturalizar,
Descolonizar e Democratizar são referentes fundamentais. Fica o
interrogante: é possível construir uma Educação “Outra”? “Outra”
na perspectiva que nos propõe Catherine Walsh (2005):
O conceito de interculturalidade é central à (re) construção de
um pensamento crítico-outro -um pensamento crítico de/des-
14 de outro modo-, precisamente por três razões principais: pri-
meiro porque está vivido e pensado desde a experiência vivida
da colonialidade [...]; segundo, porque reflete um pensamento
não baseado nos legados eurocêntricos ou da modernidade e,
INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma


volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido
seu centro no norte global” (WALSH, 2005, p. 25).

Esta publicação só foi possível tendo presente todas as pessoas que


participaram/am do GECEC nestes 20 anos: mestrandos, doutoran-
dos, pós-doutorandos, profissionais de outras instituições, bolsistas
de iniciação científica e de apoio técnico. A todos agradecemos sua
participação ativa crítica e comprometida. Também foi/é funda-
mental a disponibilidade, interesse e colaboração dos funcionários
e docentes do Departamento de Educação da PUC-Rio. Sem vocês
não teria sido possível o desenvolvimento do GECEC. Não poderia
deixar de mencionar também o CNPq que tem viabilizado financei-
ramente a realização dos diferentes projetos institucionais que re-
alizamos nestes 20 anos. Sua ação é fundamental para o contínuo
aperfeiçoamento da produção científica no nosso país. A todos e
todas agradeço profundamente e desejo que possamos continuar
investindo na construção de uma educação que responda aos de-
safios hoje colocados pela nossa sociedade.

Vera Maria Candau


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDAU, Vera Maria. Educação escolar e cultura(s): multiculturalismo, univer-


salismo e currículo. In: Didática: questões contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora
Forma&Ação, 2009.
__________________ Reinventar a Escola. In: CANDAU, V. M. (Org.). Reinventar a
Escola. Petrópolis: Vozes, 7ª ed. 2010.
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era
pós-socialista. In: SOUZA, Jessé. (Org.) Democracia hoje: novos desafios para a teoria
democrática contemporânea. Brasília: Editor Universidade de Brasília, 2001.
SEN, Amartya. O racha do multiculturalismo. Suplemento Mais. Folha de São Paulo,
17 de setembro, 2006.
TUBINO, Fidel. La interculturalidad crítica como proyecto ético-político. Encuen-
tro Continental de Educadores Agustinos. Lima, enero 2005.
Disponível em http://oala.villanova.edu/congresos/educación/lima-ponen-02.html
WALSH, Catherine. (Ed.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial: reflexiones lati- 15
noamericanas. Quito: Universidad Andina Simon Bolivar/Abya-Yala, 2005.

Apresentação
INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

Sumário
1 INTERCULTURALIDADE, DECOLONIALIDADE E EDUCAÇÃO:
PERSPECTIVAS p. 21

Por que a formação cidadã é necessária


na educação intercultural? p. 22
Fidel Tubino

Universidades e diversidade cultural e epistêmica


na América Latina: experiências, conflitos e desafios p. 38
Daniel Mato

Sumário
Notas pedagógicas a partir das brechas decoloniais p. 64
Catherine Walsh

“Ideias-força” do pensamento de Boaventura Sousa Santos


e a educação intercultural p. 76
Vera Maria Candau

2 CONHECIMENTOS, POLÍTICAS, ENFOQUES


E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL p. 99

Nação, diferença e temporalidade:


uma análise discursiva da BNCC de história p. 100
Carmen Teresa Gabriel

Conhecimento Escolar e Interculturalidade:


por outras histórias possíveis p. 126
Cinthia Monteiro de Araujo

Educação intercultural crítica e ação afirmativa:


avanços e desafios p. 144
Daniela Frida Drelich Valentim

A cultura escolar e os quilombolas: uma experiência


de aplicação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 p.160
Augusto César Gonçalves e Lima
A razão do outro: uma perspectiva histórica intercultural
como referência para a educação p. 174
Luiz Fernandes de Oliveira

Educação descolonizadora e interculturalidade:


notas para educadoras e educadores p. 188
Susana Sacavino

3 SUJEITOS, DIFERENÇAS E PROCESSOS EDUCATIVOS p. 205

Interculturalidade combina com universidade?


Trajetórias de estudantes universitários indígenas
no Estado do Rio de Janeiro p. 206
Kelly Russo e Edson Diniz

Da persistência do sexismo na educação escolar da juventude:


sobre gênero, heranças e multiplicações p. 226
Miriam Soares Leite e Carla de Oliveira Romão

Transformando a palafita em casinha:


INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

as memórias do Museu da Maré através das crianças p.250


Helena Maria Marques Araújo

Pesquisar crianças em terreiros:


diálogos e alianças necessárias p. 266
Stela Guedes Caputo

Em busca de uma didática da invenção surda p. 282


Cristiane Correia Ttaveira

4 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, FORMAÇÃO DE EDUCADORES


E INTERCULTURALIDADE p. 303

Educação intercultural crítica e trabalho centrado em projetos:


um diálogo produtivo para reinventar a escola p. 304
Adélia Maria Nehme Simão e Koff

Uma aproximação à interculturalidade nas práticas pedagógicas


escolares: qual o lugar dos saberes docentes? p. 322
Emília Freitas de Lima e André Luiz Sena Mariano

Cotidiano escolar e práticas interculturais p. 342


Vera Maria Candau
Vozes de educandas em práticas pedagógicas interculturais
freireanas p. 358
Isabell Theresa Tavares Neri e Ivanilde Apoluceno de Oliveira

Ensino de artes visuais antirracista:


reflexões sobre uma prática pedagógica p. 376
Wilson Cardoso Junior

Intolerância religiosa como experiência escolar:


viver, narrar e aprender p. 394
Marcelo Andrade

Perfil dos autores p. 419

Sumário
INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

PARTE 1
21

INTERCULTURALIDADE,
DECOLONIALIDADE
E EDUCAÇÃO:
PERSPECTIVAS
Porque a formação
cidadã é necessária
na educação
intercultural
22

Fidel Tubino
INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

Doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain


(Bélgica); Professor principal do Departamento de Humanidades
da Pontifícia Universidade Católica do Peru; Coordenador da
Rede Internacional de Estudos Interculturais (RIDEI).
E m nossos países, a educação intercultural é basicamente fun-
cional, não crítica. Quando não evidencia e desconstrói as causas
estruturais e os processos históricos que estão na base da estig-
matização cultural, oxigena o modelo social vigente, sem gerar al-
ternativas viáveis. Em nossas sociedades pós-coloniais, a educação
intercultural bilíngue tende a se limitar à revitalização etnolinguís-
tica de nossos povos indígenas. Sem dúvida, isso é muito importan-
te, na medida em que permite reforçar a autoestima individual e
coletiva dos grupos socioculturais, injustamente inferiorizados. No
entanto, limitar-se a essa questão não é suficiente. É como atacar
os efeitos sem analisar as causas.

A estigmatização sociocultural é um problema relacional de mão


dupla. O estigma é uma marca socialmente menosprezada, que
desumaniza quem a encarna. A estigmatização atua como um obs- 23
táculo, que impede as pessoas de desenvolver suas capacidades
valiosas e exercer seus direitos fundamentais. É, portanto, um pro-
blema ético e, ao mesmo tempo, de cidadania.

Porque a formação cidadã é necessária na educação intercultural


Em nossos processos primários de socialização, assimilamos, de
maneira não deliberada, um conjunto de classificações hierarqui-
zadas de categorias, que agrupam as pessoas em função de uma
série de atributos, que despertam, nos outros, “expectativas nor-
mativas”1, sensações, pressupostos e atitudes, ou seja, projeções.

Um estigma é um atributo que colocamos e projetamos, de ma-


neira inconsciente, em uma pessoa, por seu pertencimento a um
grupo social, categorizado como socialmente menosprezado. Isso
gera “projeções” desumanizantes e desqualificadoras, que anulam
simbolicamente a pessoa. Nojo, rejeição, medo são algumas das re-
ações involuntárias que os estigmas produzem. Dessa forma, “um
indivíduo, que poderia ser facilmente aceito em uma relação social
comum, adquire uma característica que pode impor-se à força à
nossa atenção, anulando o chamado que nos fazem seus outros
atributos”2. Pode ser um traço fenotípico, uma maneira de falar, um
costume. Por isso, “é provável que, ao ficarmos frente a um estra-
nho, as primeiras aparências nos permitam prever em que catego-
ria ele se encaixa e quais são seus atributos, ou seja, sua identidade

1 GOFFMAN, Erving. Estigma. Bs. As.: Amorrurtu Ed., p. 14, 2008.


2 GOFFMAN, Erving. Estigma. Bs. As.: Amorrurtu Ed., p. 16, 2008.
social”3, que se parece mais com o estereótipo estabelecido do que
com sua real identidade.

Os estigmas definem, não um conjunto de pessoas (discriminados e


discriminadores), mas papéis de interação social. Assim, por exem-
plo, uma pessoa pode assumir papel de estigmatizador frente à
outra que possui o mesmo estigma sociocultural, ao se encontrar
em uma posição social privilegiada. O mais grave é que os estigmas
geram crenças impensadas, que funcionam como disparadores de
atitudes depreciativas. Assim, “cremos, por definição, que a pessoa
que tem um estigma não é totalmente humana”4.

Segundo Goffman, existem três tipos fundamentais de estigmas.


Aqueles que estão associados a deformidades físicas, os que estão
relacionados ao “caráter do indivíduo” (por exemplo, perturbações
24 mentais, vícios) e os chamados “estigmas tribais”5. Entre esses últi-
mos, encontram-se os estigmas culturais e etnorraciais. No presen-
te trabalho, me limitarei a analisar as origens dos “estigmas tribais”
socioculturais nas sociedades pós-coloniais e como podemos res-
INTERCULTURALIZAR, DESCOLONIZAR, DEMOCRATIZAR: uma educação “outra”?

ponder a seus efeitos sobre o conhecimento de suas causas.

Postularei que desconstruir esse padrão de relação perversa, en-


raizada no imaginário social, é a tarefa fundamental da educação
intercultural. Isso implica em fazer dela um espaço que permita
problematizar e desnaturalizar a estigmatização cultural, mediante
a visibilidade e o questionamento de suas causas atuais e suas ori-
gens históricas. Para desfazer esse padrão de comportamento, é ab-
solutamente necessário recriar a educação intercultural e ampliar
seu campo de influência para as elites hegemônicas da sociedade.
Estamos diante de tipos de interação social, que “marcam” as pes-
soas, reduzindo suas possibilidades vitais de crescimento humano.

Para abordar essa problemática a partir da educação, não basta


transpor o modelo de educação intercultural bilíngue, que hoje é
ensinado aos estudantes indígenas que habitam as zonas rurais e
estudantes não indígenas que moram nas zonas urbanas. Generali-
zar a educação intercultural implica em reinventá-la, articulando-a
à educação ética e cidadã que nossas sociedades demandam. Signi-
fica revisá-la criticamente, tanto em nível conceitual como peda-

3 GOFFMAN, Erving. Estigma. Bs. As.: Amorrurtu Ed., p. 14, 2008.


4 GOFFMAN, Erving. Estigma. Bs. As.: Amorrurtu Ed., p. 17, 2008.
5 GOFFMAN, Erving. Estigma. Bs. As.: Amorrurtu Ed., p. 16, 2008.
gógico, levando em conta que “a interculturalidade identifica e dá
significado a processos de construção de um outro conhecimento,
de uma outra prática política, de um outro poder social (e estatal)
e de outra sociedade”6.

Na América Latina, a interculturalidade, como deve ser, não se li-


mita a fixar um conjunto de competências que tornem possível a
comunicação entre pessoas de culturas diferentes. Estamos cons-
cientes de que, por baixo desses problemas comunicativos, há uma
problemática de fundo que deve ser desvelada, para possibilitar a
construção das condições de um diálogo intercultural autêntico.

Por essa razão, “parte-se da afirmação de que a interculturalida-


de aponta para a construção de sociedades que assumem as di-
ferenças como constitutivas da democracia e que são capazes de
construir novas relações, verdadeiramente igualitárias entre os 25
diferentes grupos socioculturais, o que supõe empoderar aqueles
que foram historicamente inferiorizados”7. No presente trabalho,
desejo expor as razões pelas quais considero uma necessidade his-

Porque a formação cidadã é necessária na educação intercultural


tórica recolocar o sentido da educação intercultural em nossos
países, a partir de uma perspectiva crítica e libertadora8. Para tal,
começarei apresentando, de maneira geral, a problemática de fun-
do à qual a interculturalidade crítica responde como projeto social
ético-político, considerando que “o grande desafio, tanto da edu-
cação intercultural como da educação bilíngue, é contribuir para
romper as relações assimétricas de poder que existem no país e
buscar a construção de uma sociedade mais igualitária e justa, na
qual todos e todas nos reconheçamos igualmente valiosos e impor-
tantes e tenhamos as mesmas oportunidades de desenvolvimento
pessoal e coletivo por fazermos parte de um povo”9. Em segundo
lugar, tentarei analisar os alcances da educação intercultural con-
vencional e as possibilidades que a educação cidadã intercultural

6 WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago


e GROSFOGUEL, Ramón. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. Bogotá:
Siglo del Hombre Editores, p. 47, 2007.
7 CANDAU, Vera Maria. Diferenças culturais, interculturalidades e educação em direitos huma-
nos. In: Educ. Soc., v. 33, n. 118, p. 244, 2012.
8 A esse respeito, considero vital “atualizar” a obra de Paulo Freire, pois, quando a educação in-
tercultural se utiliza como instrumento de afirmação intracultural acrítica, converte-se em um
tipo de educação “bancária” e um meio de domesticação das consciências. Perde, portanto, sua
dimensão libertadora. A educação para a autonomia é o horizonte no qual deveríamos colocar
a educação intercultural e vice-versa. Ver FREIRE, Paulo. Pedagogía de la autonomía. México:
SXXI, 1996.
9 MINISTERIO DE EDUCACIÓN. Hacia una educación intercultural bilingüe de calidad. Pro-
puesta pedagógica. Introducción. Lima: MINEDU, p. 10, 2013.

Você também pode gostar