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Arte como Método Mutante

Claudia Washington
claudia@transitos.org

Resenha da palestra proferida por Rita L. Irwin – artista, pesquisadora e professora titular de Arte-educação
e Estudos Curriculares da University of British Columbia, em Vancouver, Canadá – no Seminário Métodos
Visuais e Cultura das Imagens, realizado na Universidade de Brasília, em 2015.

A pesquisadora tratou do que ela denomina a virada para o conhecimento emergente


da a/r/tografia. Trata-se de uma metodologia de pesquisa baseada na prática de arte do
professor e do artista. Nessa perspectiva, tais segmentos nunca agem sozinhos. No caso
detalhado pela pesquisadora, o professor é considerado também estudante, pelo seu
posicionamento especial no momento em que se candidata ao professorado para lecionar no
ensino secundário, especificamente no Programa de Formação de Professores da
Universidade de British Columbia, no qual a palestrante atua. Essa situação de professor-
estudante, como chamarei vez ou outra, compartilhada por um grupo de pessoas, estabeleceu
a condição da criação artística e do experimento pedagógico. Enfatiza-se a ideia de aprender a
aprender de forma coletiva e participante, como um processo de conhecimento criativo que
não imita, ou se estabelece como, uma forma predeterminada de pedagogia.
Como introdução ao contexto de produção, os participantes foram indagados sobre os
modos pelos quais sua prática artística poderia prover um entendimento dos meios de torná-lo
pedagógico. A questão remete ao nexo sociocrítico, que estimula um engajamento social,
material e discursivo, caro ao contexto em que opera o Programa de Prática Social Dedicado
à Arte Contemporânea, onde todo o corpo está envolvido. A pergunta que iniciou os trabalhos
funcionou como um marco a ser sublinhado em todo o decorrer da pesquisa.
Duas estratégias foram concebidas:
Investigação dialógica 1: produzir um breve curriculum vitae com base na expressão
pessoal, em oposição à mera quantificação, para promover a interação com processos
dialógicos expressivos, abarcando as características físicas e as motivações próprias, no
sentido da representação de si mesmo. Embora talvez fosse difícil para os professores-
estudantes imaginar como esta atividade serviria para suas futuras práticas de ensino na escola
secundária, ela contribuiu para a instauração de uma forma relacional de arte, pedagogia e
prática colaborativa entre os participantes, reforçando o compromisso com o processo.
Significativas interpretações e entendimentos pessoais da experiência ocorreram dentro de um
processo circular de investigação hermenêutica, num ir e vir dialógico.
Investigação dialógica 2: Liberdade sem medo (Summerhill). O livro de Alexander
Sutherland Neill publicado em 1960 que versa sobre a escola como um ambiente democrático
e de autorregulação serve como material básico para a participação do grupo numa residência
de três semanas na Access Gallery. O trabalho desenvolvido pelas artistas-educadoras Hannah
Jickling e Helen Reed contou com colaboração dos professores-estudantes. Cada um deles
recebeu uma cópia do livro para interferir no texto, escrever nas margens, desenhar sobre as
páginas e inserir qualquer tipo de apontamento sobre ele. O conjunto dos livros modificados
foi exposto sob o título de Summerhill, Revisado. A prática objetivava provocar o pensamento
crítico, explorar a intersecção entre arte e pedagogia e desconstruir estereótipos sobre arte e
educação. As intervenções criaram as condições para questionar práticas pedagógicas nas
artes visuais.
A partir disso, a pesquisadora trata de alguns conceitos operantes nos dois
procedimentos investigativos acima apontados. Um deles é o de Intraventions (Intravenções),
ou seja, a prática de autorreflexão e conexões possíveis em meio e entre propostas
participativas que transitam pela arte, educação e pesquisa acadêmica, que leva em
consideração também a multiplicidade de papéis em que seus agentes estão envolvidos. O
outro trata do conhecimento emergente, que se dá em espaços de emergência, entendida como
um processo onde se configuram propriedades que nunca existiram antes e em algum
momento eram inconcebíveis ou inimagináveis. Caracteriza a arte pedagógica como uma
epistemologia temporária, cujos métodos de ensino criam a condição para um diálogo entre
arte e pedagogia.
Trata, então, do retorno dos professores-estudantes em relação à transformação daquilo
que projetavam inicialmente. Por exemplo, o curriculum vitae que não era considerado como
um projeto de arte passou a sê-lo quando finalizado o processo. A experimentação de recriar
os livros e expô-los contribuiu para a compreensão desse fazer. Trouxe também a indagação
sobre a autoria em processos colaborativos em arte, que neste caso reforçou a hierarquia entre
artistas e participantes, pois na divulgação do evento apenas os nomes das artistas foram
publicados.
Por fim, a pesquisadora faz uma reflexão sobre as formas pelas quais exercícios como
os aqui descritos podem ajudar a mudar para melhor as práticas da arte e da educação
contemporâneas. Reforça que os processos abertos e os métodos adotados pelos artistas hoje,
particularmente aqueles que envolvem arte e prática social, contradizem a estrutura do sistema
escolar. Nesse sentido, a arte pode ser tomada como um método pedagógico, de desconstrução
e construção.
A pesquisa apresentada nos remete a uma variedade de situações em que a arte e a
educação são consideradas como uma matéria amalgamada. Ao tratar da produção de arte
daquele que irá ensiná-la, podemos pensar em um nó com o qual não é raro nos depararmos,
que pressupõe uma necessária conformação do professor de arte como artista. Porém, a
pesquisadora não trata do assunto delimitando este ou aquele perfil para o professor de arte,
mas se direciona à forma de ação dele, ou seja, ao estabelecimento de um ambiente
compartilhado onde se aprende a aprender. Ao focarmos na maneira como isso pode ocorrer,
parece indiferente se o professor se considera ou não artista, o que fica é a maneira como pode
atravessar diferentes campos posicionando-se como um aprendiz experiente, capaz de orientar
pessoas no sentido de elas próprias encontrarem maneiras singulares de aprender.
Jacques Rancière (2012) trata da ideia de emancipação intelectual a partir do
pensamento de Jacotot. Distanciando-se de uma certa lógica pedagógica que opõe o mestre e
o ignorante, delineia a figura do mestre ignorante, aquele que ignora a desigualdade das
inteligências e cujo trabalho está em transpor os caminhos daquilo que já sabe àquilo que
ignora. Ele não ensina seu saber aos alunos, mas os incita a se aventurarem por esses
caminhos, comparando e traduzindo. O autor usa essas noções para tratar do espectador na
arte contemporânea, que para ele, em muitos casos, sofre de uma subordinação prévia pela
suposição de seu lugar passivo. Certa arte contemporânea retomaria então a lógica pedagógica
que constrói um abismo entre atividade e passividade, que reitera as desigualdades entre
mestres e ignorantes.
Se muitos dos processos da arte contemporânea que envolvem prática social
problematizam a relação entre proponente e participante (mestre e ignorante), é importante
ressaltar que a questão da autoria identificada na segunda investigação dialógica, apontada
pela pesquisadora palestrante, é algo recorrente nesse tipo de produção, que tende a suplantar
a referência aos colaboradores e dar ênfase aos artistas/articuladores, especialmente quando
vinculados a instituições como museus, galerias e institutos. Não podemos nos esquecer das
forças institucionais e mercadológicas que hoje comercializam práticas artísticas críticas.
Nesse contexto, é relevante pensar no que André Luiz Mesquita (2008, 16) nos
apresenta. Ao tratar dos aspectos cooperativo e de participação social presentes na produção
artística entre 1990 e os dias atuais, ele ressalta a aproximação entre os domínios da arte e do
ativismo. Para ele, o ativismo é uma ação que visa a mudanças sociais ou políticas. Enquanto
a arte política tende a ser socialmente preocupada, a arte ativista tende a ser socialmente
envolvida. No seu entendimento, a convergência entre arte e ativismo ocorre pela recorrência
de ações coletivas, e é no coletivo que o ativismo encontra a sua realização criativa, onde o
indivíduo busca afinar sua própria singularidade (2008, 11). Encontramos parâmetros para o
que possam ser idealmente esses processos colaborativos entre arte e educação, a meu ver,
mais alinhados com o perfil ativista, pois interagem diretamente com as forças sociais
políticas e econômicas, prezando pelo coletivo.

Referências:

BLANCO et al. Modos de hacer: arte crítico, esfera pública y acción directa. Salamanca:
Universidad de Salamanca, 2001.

KWON, M. Um lugar após o outro: anotações sobre site specificity. Tradução: Jorge Menna
Barreto. Arte&Ensaios. Rio de Janeiro, EBA-UFRJ, n. 17, dez. 2008, p. 166-185. Texto
originalmente publicado na revista October 80, primavera, 1997, p. 85-110.

MESQUITA, A. L. Insurgências poéticas: arte ativista e ação coletiva (1990-2000).


Dissertação apresentada ao Departamento de História da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de mestre em História Social. São Paulo, 2008.

NEILL, A. S. Liberdade sem medo (Summerhill). São Paulo: Ibrasa, 1973.

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Summerhill. https://en.wikipedia.org/wiki/Summerhill_%28book%29. Último acesso: outubro


de 2015.

Summerhill, Revised. http://accessgallery.ca/events-2/summerhill-revised/. Último acesso:


outubro de 2015.

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