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11/23/22, 12:30 PM Lélia Gonzalez, onipresente | Cultura | EL PAÍS Brasil

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Cultura
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Lélia Gonzalez, onipresente


Mulher, negra, intelectual e ativista foi pioneira nas discussões sobre
relação entre gênero e raça, ao propor uma visão afro-latino-
americana do feminismo. A abrangência de seu pensamento, que
atravessa filosofia, psicanálise e candomblé, pode ser vista em uma
nova coletânea, a primeira em uma editora comercial

Lélia Gonzalez em imagem sem data. Segundo a amiga Ana Maria Felippe, era uma das fotos de que ela mais gostava.
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DANIELA MERCIER
São Paulo - 25 OCT 2020 - 20:01 BRT

Para entender e desconstruir o lugar do negro na sociedade brasileira, Lélia


Gonzalez (Belo Horizonte, 1935-1994) esteve em todos os lugares. Filha de
pais pobres, um operário negro e uma empregada doméstica descendente de
indígenas, teve a oportunidade de estudar e se formou historiadora e filósofa.
Já “perfeitamente embranquecida, dentro do sistema”, encontrou no mundo
acadêmico contradições e barreiras sociais que a levaram para a militância no
feminismo e no movimento negro. Lançou mão da psicanálise e do
candomblé para explicar a cultura brasileira. Foi intelectual, ativista e
política: participou da formação do PT, foi do PDT, atuou nas discussões sobre
a Constituição de 1988 e integrou o primeiro Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher, na mesma década. Correu o mundo e, ao representar o Brasil em
debates sobre as condições de exploração e opressão dos negros e das
mulheres em eventos nos Estados Unidos, na África e na América Latina,
conjugou experiências e criou um marco conceitual para a compreensão da
identidade brasileira e de seus irmãos de continente: a amefricanidade.

“Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu
aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”, resumiu Angela
Davis, ícone do feminismo negro norte-americano, ao visitar o Brasil em 2019,
num indicativo de que os brasileiros precisam reconhecer mais a sua própria
pensadora, uma das pioneiras nas discussões sobre a relação entre gênero,
classe e raça no mundo.

MAIS INFORMAÇÕES
Por todos os lugares —sociais e geográficos— onde esteve em
seus 59 anos de vida, Lélia Gonzalez deixou uma produção
intelectual intensa e original, que mistura saberes e vivências
de diversas áreas e marcou uma geração de militantes negras.
A abrangência e a atualidade de seu pensamento podem ser
Octavia E.
Butler: a vistas na coletânea Por um feminismo afro-latino-americano,
ressurreição da lançada nesta segunda-feira pela editora Zahar. A obra reúne
grande dama da
ficção científica textos de 1975 a 1994, período que compreendeu o
fortalecimento de movimentos sociais e a redemocratização,

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processos dos quais Gonzalez participou ativamente. O livro


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abrange ensaios acadêmicos, artigos para a grande imprensa e
jornais alternativos, entrevistas e registros de palestras em
diversos congressos internacionais —ela dominava o inglês, o
Maya Angelou, francês e o espanhol.
uma vida
completa

Não se trata propriamente de um resgate, mesmo que alguns


desses textos tenham sido garimpados em bibliotecas do
exterior e traduzidos para o público brasileiro pela primeira
vez. A filósofa sempre foi uma autora lida entre os intelectuais
negros, e parte da produção apresentada agora circulou em
A vida de
Carolina de
outras publicações acadêmicas e independentes —em vida,
Jesus além da Gonzalez publicou os livros Lugar de negro (1982, em parceria
favela do
Canindé, seu com o argentino Carlos Hasenbalg) e Festas populares no
quarto de Brasil (1987). Porém é só agora que seu trabalho é difundido
despejo
por uma grande editora comercial. “É muito difícil aceitar que
uma autora tão relevante, tão expressiva, tenha ficado no
ocultamento por tanto tempo”, afirma a socióloga Flavia Rios, uma das
organizadoras do novo livro e coautora de uma biografia de Gonzalez. Ela
explica que é recente o interesse do mercado editorial por autores negros e
que, quando isso ocorreu, privilegiou os estrangeiros. No caso das mulheres,
uma primavera feminista forçou a aposta em escritoras negras norte-
americanas, como Davis, bell hooks e Audre Lorde, e africanas, como a
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. “Então Lélia Gonzalez ficou de certa
forma marginal nessa produção, principalmente devido a esse perfil editorial
que gera a invisibilidade de certos autores. As editoras demoraram a
entender que existe um público para eles”, afirma Rios, que é professora da
Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Gonzalez em Dacar (Senegal), em 1979.


ARCHIVO PERSONAL

“Lélia Gonzalez é uma intérprete do Brasil, e esse é um lugar que os


intelectuais negros ainda não conseguiram ocupar na sociedade brasileira”,
afirma Márcia Lima, também organizadora da nova coletânea e professora do
Departamento de Sociologia da USP, ressaltando o silenciamento da
produção de pessoas negras também na academia. Esse processo, chamado
de epistemicídio, foi estudado pela filósofa e educadora Sueli Carneiro,
referência no feminismo negro e uma admiradora do trabalho de Gonzalez.
“Nunca encontrei Lélia Gonzalez como referência bibliográfica de nenhuma
das inúmeras disciplinas que cursei em mais de uma década na universidade
e, no entanto, ela é uma pensadora determinante na formação política e
intelectual das mulheres negras de minha geração”, comenta Carneiro. Para
Lima, o predomínio de autores brancos na bibliografia de cursos só está
sendo quebrado pela pressão dos jovens negros, hoje maioria dos
ingressantes nas universidades públicas do Brasil, que estão reivindicando a
leitura de outros —e outras— intelectuais. “É uma mudança que vem mais
pela força e pela demanda da juventude negra, feminina e feminista, do que
uma mudança de paradigma das universidades”, analisa.

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Apesar do atraso, a obra de Gonzalez está na ordem do dia. Ao propor uma


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nova visão do feminismo, que considere o caráter multirracial e pluricultural
da América Latina, em contraposição à visão eurocêntrica, ela discutiu, ainda
nas décadas de setenta e oitenta, o que hoje se aproxima dos conceitos de
feminismo interseccional (que incorpora as desigualdades de raça e classe) e
decolonial (que questiona a ordem econômica e de pensamento de grupos
dominadores). “Por um feminismo afro-latino-americano”, o texto que dá
nome à coletânea, foi apresentado em 1988 na Bolívia. Nele Gonzalez afirma
que o movimento de mulheres na América Latina repete práticas de exclusão
e dominação racista das quais “negras e indígenas são testemunhas vivas”.
Usando conceitos da psicanálise de Jacques Lacan (1901-1981), questiona o fato
de mulheres não brancas serem o objeto de análise de outros sujeitos,
“faladas, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação
que nos infantiliza” —em seus textos, é comum o uso da primeira pessoa do
plural para tratar das questões sociais.

“É inegável que o feminismo, como teoria e prática, desempenhou um papel


fundamental em nossas lutas e conquistas, na medida em que, ao apresentar
novas questões, não apenas estimulou a formação de grupos e redes mas
também desenvolveu a busca por uma nova maneira de ser mulher”, escreve
a autora, uma feminista de primeira hora. “[Mas] Lidar, por exemplo, com a
divisão sexual do trabalho sem articulá-la com a correspondente ao nível
racial é cair em uma espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um
discurso masculinizante e branco”, escreve Gonzalez.

Tanto Lima quanto Rios ressaltam que o texto de Gonzalez se coloca na


vanguarda ao trabalhar a desigualdade de gênero e raça incluindo a questão
do território —primeiro nacional e depois continental. “A visão da Lélia é rara
por pensar além do nacional”, afirma Rios. “O feminismo norte-americano,
que a gente lê e traduz bastante, pensa em uma situação a partir da sua
própria realidade. A gente se reconhece nela, mas Lélia dá um passo a mais
ao pensar no continente, e faz isso nos anos oitenta. Mesmo uma Angela
Davis, que depois se internacionalizou ao abordar a questão palestina, não
tinha feito isso ainda”, salienta. “É uma ideia muito poderosa em termos
históricos, principalmente porque o Brasil tem uma tendência muito grande
de se distanciar da América Latina por questões como a língua”, afirma Lima.

No início, Lélia de Almeida

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Lélia de Almeida, que teria feito 85 anos neste 2020, foi a penúltima de 18
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filhos. Nascida em Belo Horizonte, aos sete se mudou para o Rio de Janeiro
após um acontecimento insólito na vida de uma família sem oportunidades.
Um de seus irmãos, 15 anos mais velho, foi convidado para jogar futebol no
Flamengo —era Jaime de Almeida (1920-1973), que se tornaria ídolo rubro-
negro na década de quarenta e foi pai de Jayme de Almeida Filho, ex-
treinador do clube.

Mesmo na nova cidade e recebendo “tratamento de neta” pelos pais, a menina


lutou para escapar do “esquema ideológico internalizado pela família”, em
que se estudava até a escola primária e, “depois, todo mundo ia à batalha em
termos de trabalho para ajudar a sustentar o resto da família”, como ela
mesma contou em uma entrevista e como também registram seus biógrafos
Flavia Rios e Alex Ratts. Chegou a trabalhar como babá de filhos de diretores
do Flamengo, mas reagiu e conseguiu seguir os estudos. Aluna dedicada, nos
anos cinquenta concluiu o secundário no tradicional colégio Pedro II, de
ensino público, onde teve uma formação erudita clássica. “Passei por aquele
processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico
brasileiro, porque na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos,
eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra”, afirmou, no
depoimento para o livro Patrulhas ideológicas, de 1980.

Três momentos: aos 31 anos, na década de sessenta; aos 37, nos anos setenta; e aos 45, nos oitenta.
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A jovem se graduou em história e geografia pela Universidade do Estado da


Guanabara, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Depois, fez
filosofia na mesma instituição. “Na faculdade eu já era uma pessoa de cuca já
perfeitamente embranquecida, dentro do sistema. Eu fiz filosofia e história. E,
a partir daí, começaram as contradições.” As reflexões sobre a questão racial
se acentuaram na época do seu casamento com o espanhol Luiz Carlos
Gonzalez, amigo da faculdade, em 1964. A família do rapaz branco não
aceitava a relação. “Pronto, daí aquilo que estava reprimido, todo um processo
de internalização de um discurso ‘democrático racial’ veio à tona, e foi um
contato direto com uma realidade muito dura”, relatou.

A vida da então professora mudou com a morte do marido, por suicídio, um


ano depois. Foi quando ela, já com 30 anos, mergulhou em duas áreas nas
quais buscou cura e autoconhecimento e que acabaram virando referência
em seu trabalho: a psicanálise e o candomblé.

“Com a Lélia era assim: ela começava a se interessar por psicanálise, então ia
na livraria e comprava tudo de Freud, tudo de Jung. Ela lia tudo de um
assunto, não lia só uma coisa”, conta a amiga Ana Maria Felippe, de 76 anos,
que era ainda adolescente quando conheceu Lélia Gonzalez —de quem foi
aluna no colégio e depois na faculdade de filosofia. “A Lélia foi um facho de
luz que apareceu na minha frente e eu me agarrei nele”, brinca Felippe.
Durante anos, ela manteve um site em homenagem à pensadora e atualmente
alimenta a página do Facebook Memorial Lélia Gonzalez.

As incursões de Gonzalez em áreas tão distintas fizeram dela uma referência.


Em 1975, ela ajudou a fundar o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras e o
Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Em 1976, ministrou o primeiro curso
institucional de cultura negra do país, na Escola de Artes Visuais do Parque
Lage. Flavia Rios, da UFF, aponta que com essas temáticas Gonzalez tinha
uma relação íntima, mas também prática, de produção do saber. “Para a Lélia
era tudo conhecimento”, afirma Rios. Felippe reforça essa visão: “Sem saber o
palavrão da transdisciplinaridade, ela já fazia isso”, diz.

Em seus textos, além de combinar saberes, Gonzalez adota um estilo peculiar,


com uso de uma linguagem informal e irreverente para abordar esses
conceitos. Em “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, artigo apresentado
em 1980, ela disserta sobre o papel da mulher negra no processo de formação
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cultural do país e questiona a origem dos lugares sociais da população negra,


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desconstruindo o trabalho de cânones homens e brancos. “Cabe de novo
perguntar: como é que a gente chegou a este estado de coisas, com abolição e
tudo em cima? Quem responde é um branco muito importante (pois é
cientista social, uai) chamado Caio Prado Jr. Num livro chamado Formação do
Brasil contemporâneo, ele diz uma porção de coisas interessantes sobre o
tema da escravidão”, escreve. Em outro trecho, tendo sublinhado que os
negros estariam “na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o
determina a lógica da dominação”, ela provoca: “Neste trabalho assumimos
nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.

Lélia Gonzalez e Angela Davis nos Estados Unidos, em 1984.


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“Lélia era griot, era falante”, comenta sua amiga Felippe, que lembra que a
pesquisadora falava muitas vezes de improviso, com base em tópicos, em suas
aulas e palestras, modulando o seu discurso conforme a reação do público.
“Ela tinha todo o fundamento teórico, mas ela queria chegar na pessoa.”
Conseguia: “Desde que vi e ouvi Lélia Gonzalez pela primeira vez, me decidi
politicamente pela militância na questão da mulher negra”, recorda Sueli
Carneiro. A diretora do Geledés Instituto da Mulher Negra assistiu a uma
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palestra de Gonzalez no fim dos anos setenta, em um seminário feminista na


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Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, no qual ela era a única oradora
negra. Carneiro relata que Gonzalez tinha carisma inigualável. “O que mais
me impactava em sua fala era sua capacidade de traduzir as experiências e
vivências das mulheres negras como se ela tivesse o poder de perscrutar
corações e mentes, sintetizar e vocalizar, dores e inquietações que nos
afligiam e que não conseguíamos elaborar por nós mesmas”, relata a
pensadora paulistana, hoje com 70 anos. Carneiro conta que fundação do
Geledés, por exemplo, foi influenciada pelo Nzinga, coletivo de mulheres
negras criado por Gonzalez e outras ativistas em 1983.

Pensamento e ação

Foi perto dos 40 anos que Lélia Gonzalez, já uma intelectual respeitada,
começou a militar no movimento negro. Era a década de setenta, época em
que, como ela narrou no livro Lugar de negro, “uma negadinha jovem
começou a atentar para certos acontecimentos de caráter internacional, a
luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e as guerras de libertação dos
povos negro-africanos de língua portuguesa”, reavivando a articulação
silenciada pelo golpe militar de 1964. O trabalho na difusão da cultura afro-
brasileira já havia levado a pesquisadora participar do Grêmio Recreativo de
Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, fundada pelo sambista Candeia
(1935-1978) no Rio, e a entidade foi uma das apoiadoras de uma mobilização
que surgia em São Paulo e que depois viraria nacional: o Movimento Negro
Unificado (MNU), lançado em 1978 em um ato que marcou a volta dos
protestos de rua por justiça racial no país em plena ditadura. Gonzalez foi a
escolhida por Candeia para representar a escola de samba na manifestação e,
a partir daí, ela ajudou a fundar e a consolidar o movimento.

Tornou-se ativista, e foi na sua própria casa, no Cosme Velho, que ocorreram
muitas das reuniões com os militantes, conta o filho Rubens Rufino, de 59
anos, sobrinho biológico, mas criado por ela. Aos sábados, os dois
participavam de encontros com outros intelectuais negros no Teatro Opinião,
ambiente de protesto e resistência que tinha à frente nomes como Ferreira
Gullar (1930-2016). “Eu tinha 15 anos e ela me levava para eu começar a
entender a questão do racismo, que eu já sentia na pele. Com esses debates,
eu consegui superar situações muito graves que vieram depois”, afirma o
Rufino.

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Gonzalez se manteve pensadora no movimento: defendia, por exemplo, a


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importância do conhecimento das raízes africanas para a conscientização dos
militantes, e por isso elogiava a dinâmica das articulações no Rio e na Bahia.
“O negro paulista tem uma puta consciência política. Ele já leu Marx,
Gramsci, já leu esse pessoal todo. Discutem, fazem, acontecem etc. e tal. Mas
de repente você pergunta: você sabe o que é iorubá? Você sabe o que é axé?”,
contou em entrevista. Segundo Rios, a vivência no candomblé foi
preponderante na sua visão política. “Mesmo sendo muito marxista na sua
análise, ela entendeu que o candomblé tinha um lugar social, cultural e
espiritual importante e que isso não era alienante. Ela vê com bons olhos a
experiência da religiosidade no mundo da política”, afirma.

Gonzalez influenciou na conscientização e mobilização de mulheres negras,


pois viu que, assim como no movimento feminista havia a manutenção da
ideologia racista, o movimento negro tampouco escapava da mentalidade
machista, o que apontava para a necessidade de um espaço próprio de
discussão. “Foi a partir da convivência com essas irmãs que passei a me
preocupar e trabalhar sobre a nossa especificidade. E nesse trabalho tem
dado para sacar, por exemplo, que pelo fato de não ser educada para se casar
com um ‘príncipe encantado’, mas para o trabalho, a mulher negra não faz o
gênero da submissa. Sua prática cotidiana faz dela alguém que tem
consciência de que lhe cabe batalhar pelo ‘leite das crianças’ [...], sem contar
muito com o companheiro (desemprego, violência policial e outros efeitos do
racismo e também do sexismo)”, escreveu em Lugar de negro.

Em 1981, Gonzalez começou a fazer palestras para o recém-criado Partido dos


Trabalhadores. “Ela estava sendo convidada para entrar para o partido, que
fazia a sua primeira reunião para tratar da questão racial no Brasil. Deu um
show”, conta a atual deputada federal Benedita da Silva —candidata do PT à
Prefeitura do Rio—, que a conheceu naquela época e se tornou sua amiga. Já
na sigla, Lélia Gonzalez concorreu em 1982 a deputada federal. “Fui a segunda
mais votada. Dancei por oitocentos votos, mas foi uma experiência
interessante”, contou em 1986 em uma entrevista para o extinto O Pasquim.
Após o pleito, ela passou a trabalhar como assessora da colega de partido,
eleita vereadora. “O que eu gostava na Lélia era que, apesar de ser quem era
[uma intelectual renomada], ela era uma pessoa simples. Acho que uma outra
pessoa na posição dela não ia querer ser assessora de uma Benedita
vereadora, primeiro mandato, mas ela foi. Escrevia minhas palestras, me
levou a muitos lugares”, relembra a deputada, hoje com 78 anos.

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Lélia Gonzalez em livros


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Por um feminismo afro-latino-americano (Zahar, 2020)


Organizado por Flavia Rios e Marcia Lima. Mais abrangente coletânea de
textos de Lélia Gonzalez até agora, reúne ensaios acadêmicos, artigos para
a grande imprensa e mídia alternativa, discursos e palestras
internacionais elaborados pela autora de 1975 a 1994, além de entrevistas
com ela.

Lélia Gonzalez - Primavera para as rosas negras (UPCA, 2018)


Organizada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas, esta coletânea
independente foi a pioneira em recuperar os trabalhos da autora, em uma
seleção abrangente que também inclui entrevistas. A introdução é da
historiadora Raquel Barreto, especialista nas obras de Gonzalez e de
Angela Davis.

Lélia Gonzalez (Selo Negro, 2010)


Escrito por Alex Ratts e Flavia Rios. Biografia de Lélia Gonzalez conta a
trajetória de vida da pensadora com uma abordagem sociológica e com
dados históricos do movimento negro no Brasil. Faz parte da coleção
'Retratos do Brasil Negro', que já perfilou nomes como Sueli Carneiro e
Abdias Nascimento (1914-2011).

Festas populares no Brasil (Index, 1987)


Escrito por Lélia Gonzalez a partir de imagens de diferentes fotógrafos.
Foi a incursão da autora, que acompanhou os trabalhos de campo em
festividades por todo o país, na antropologia. A editora Boitempo
anunciou recentemente a intenção de reeditar a obra, mas ainda não há
data para publicação.

Lugar de negro (Marco Zero, 1982)


Escrito por Lélia Gonzalez em parceria com o sociólogo argentino Carlos
Hasenbalg (1942-2014). Na clássica obra, a pesquisadora aborda a história
do movimento negro desde o golpe de 1964, incluindo a criação do

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Movimento Negro Unificado (MNU). A Zahar pretende relançar o livro em


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2021.

A atuação da pesquisadora no partido não foi sempre pacífica. Em 1983, em


um artigo intitulado “Racismo por omissão” e publicado no jornal Folha de
S.Paulo, ela criticou a ausência da temática racial em uma peça do PT
veiculada em rede televisiva nacional. “O ato falho com relação ao negro e que
marcou a apresentação do PT pareceu-me de extrema gravidade não só
porque alguns oradores que ali estiveram possuem nítida ascendência negra,
mas porque se falou de um sonho; um sonho que se pretende igualitário,
democrático etc., mas exclusivo e excludente. Um sonho europeizantemente
europeu”, escreveu. “Ela foi generosa. Falou de omissão, mas poderia ter
falado outras coisas”, comenta, com humor, Benedita da Silva, que diz que a
reflexão proposta pela colega foi importante para a sigla. “Aí o partido
começou a discutir criar um núcleo para a questão racial e depois o núcleo
passou a ser uma secretaria. Hoje nós temos uma secretaria de igualdade
racial.” Três anos depois de escrever o artigo, Gonzalez saiu da legenda e se
filiou ao PDT —concorreu a deputada estadual pelo Rio, mas novamente não
se elegeu.

A intelectual teve outras atuações relevantes no mundo da política: participou


da Assembleia Nacional Constituinte, escrevendo discursos e elaborando
propostas do movimento negro, e integrou o primeiro Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher, formado no Governo José Sarney (1985-1990) para
promover políticas contra a discriminação de gênero e do qual também saiu
insatisfeita com o andamento das discussões. “Na política ela não conseguia
fazer a essência dela funcionar", comenta o filho.

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Benedita da Silva, então vereadora do Rio, e Lelia Gonzalez em viagem a Nairobi (Quênia), em 1985.
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Acostumada a uma agenda intensa, Lélia Gonzalez reduziu as aparições


quando, em 1992, foi diagnosticada com diabetes mellitus. Com a doença,
emagreceu, chegando a pesar 45 quilos, e teve como sequelas hipertensão e
problemas cardíacos. “Foi um período muito triste. Ela não queria receber
ninguém”, conta Benedita da Silva. Mesmo precisando de ajuda para se
locomover da casa para a universidade, ela concentrou as energias que
restavam na atividade acadêmica e continuou a dar aulas no Departamento
de Sociologia e Política da PUC-Rio. Em 10 de julho de 1994, dois meses após
ser escolhida diretora desse departamento, ela sofreu um infarto do
miocárdio e morreu, aos 59 anos.

Para Flavia Rios, todos os lugares por onde Gonzalez passou confluíram para
uma linha de pensamento nem sempre associada à sua imagem, mas
importante de ser ressaltada nos tempos atuais: a defesa da democracia. “Ela
esteve na formação das principais organizações que lutaram contra a
ditadura. No movimento negro, no movimento feminista, nos dois principais
partidos de oposição que emergiram no final da ditadura, na Constituinte, no
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conselho de mulheres. Ela não só pensou a democracia como ela esteve na


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base dessas instituições.” Segundo ela, a intelectual e ativista atrelava a justiça
racial e de gênero a um regime político de liberdades e igualdades.

Em 18 de novembro no 1983, às vésperas do Dia da Consciência Negra, Lélia


Gonzalez discursava nas ruas do Rio: “Vamos à luta, companheiros, para que a
exploração e a opressão terminem nesse país. Para ser uma democracia
racial, esse país precisa ser efetivamente uma democracia”.

Mais informações

“O papel da extrema direita é fazer a


população oprimida se reestruturar. Nós
temos que derrotá-la”
DANIELA MERCIER | SÃO PAULO

“Não se pode pensar a democracia real


no Brasil se o racismo não for um ponto
central”
DANIELA MERCIER | SÃO PAULO

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