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● “(...) Num mundo que é bem o nosso, tal qual o conhecemos, sem diabos, sílfides nem
vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste
mundo familiar. Aquele que vive o acontecimento deve optar por uma das soluções
possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, um produto da imaginação, e nesse
caso as leis do mundo continuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se
verificou realmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida por leis
desconhecidas para nós. Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão, ou então existe
realmente, como os outros seres vivos, só que o encontramos raramente. O fantástico
ocupa o tempo dessa incerteza; assim que escolhemos uma ou outra resposta, saímos
do fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico
é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais, diante de um
acontecimento aparentemente sobrenatural.” (p. 146)
● “(...) ‘Quase cheguei a acreditar’: eis a fórmula que melhor resume o espírito do
fantástico. A fé absoluta, como a incredulidade total, nos levam para fora do fantástico;
é a hesitação que lhe dá vida.” (p. 148)
● “(...) O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das (...) personagens;
define-se pela percepção ambígua que o leitor tem dos acontecimentos narrados; esse
leitor se identifica com a personagem. É importante precisar desde logo que, assim
falando, temos em vista não tal ou tal leitor particular e real, mas uma ‘função’ de leitor,
implícita no texto (da mesma forma que está implícita a de seu narrador). A percepção
desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma precisão que os movimentos
das personagens.” (p. 149)
● “(...) Para se manter, o fantástico implica pois não só a existência de um acontecimento
estranho, que provoca uma hesitação no leitor e no herói, mas também um certo modo
de ler, que se pode definir negativamente: ele não deve ser nem poético nem alegórico.”
(p. 149)
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● “A outra série de elementos que provocam a impressão de estranheza não está ligada
ao fantástico mas ao que se poderia chamar de ‘experiência dos limites’, e que
caracteriza o conjunto da obra de Poe.” (p. 157)
● “(...) fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de não ter sido explicado,
racionalizado, nos sugere a existência do sobrenatural. O limite entre os dois será
portanto incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos pormenores nos
permitirá sempre decidir.” (p. 157)
● “Existe afinal um maravilhoso puro que, da mesma forma que o estranho, não tem
limites nítidos: obras extremamente diversas contêm elementos de maravilhoso. No
caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação
particular nem nas personagens nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os
acontecimentos contados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses
acontecimentos. Os contos de fadas, a ficção científica são algumas das variedades do
maravilhoso; mas eles já nos levam longe do fantástico.” (p. 159)
● “(...) A condenação de certos atos pela sociedade provoca uma condenação que ocorre
no próprio indivíduo, proibindo-o de abordar certos temas tabus. O fantástico é um meio
de combate contra uma e outra censura: os desencadeamentos sexuais serão mais bem
aceitos por qualquer espécie de censura se pudermos atribuí-los ao diabo.” (p. 159)
● “Podemos concluir que, desse ponto de vista, a introdução de elementos sobrenaturais
é um meio de evitar a condenação que a sociedade lança sobre a loucura. A função do
sobrenatural é subtrair o texto à ação da lei e, por esse meio, transgredi-la.” (p. 160)
● “(...) toda narrativa é movimento entre dois equilíbrios semelhantes mas não idênticos.
No começo da narrativa, haverá sempre uma situação estável, as personagens formam
uma configuração que pode ser móvel mas que conserva entretanto intatos certo número
de traços fundamentais.” (p. 160)
● “A narrativa elementar comporta pois dois tipos de episódio: os que descrevem um
estado de equilíbrio ou de desequilíbrio e os que descrevem a passagem de um a outro.”
(p. 161)
● “(...) A relação do sobrenatural com a narração torna-se então clara: todo texto
fantástico é uma narrativa, pois o elemento sobrenatural modifica o equilíbrio anterior,
ora, esta é a própria definição da narrativa; mas nem toda narrativa pertence ao
maravilhoso, se bem que exista entre eles uma afinidade, na medida em que o
maravilhoso realiza essa modificação de maneira mais rápida. Torna-se claro, afinal,
que a função social e a função literária do sobrenatural são uma única: trata-se da
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