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O Pantáculo

Publicação interna destinada aos Membros Ativos da Tradicional Ordem Martinista

Nº 20 – 2012
TRADICIONAL ORDEM MARTINISTA
Grande Heptada
Grande Loja da Jurisdição Caixa Postal 4450 – 82501-970
de Língua Portuguesa Fone: (41) 3351-3000
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Bacacheri – Curitiba – Paraná – Brasil www.amorc.org.br

Índice
Editorial
Hélio de Moraes e Marques...............................................................................................2
A guerra santa, mobilização coletiva em detrimento da vida da alma humana
Didier Lafargue.................................................................................................................3
O homem triplo: corpo, alma, espírito
Jean-Claude Mondet.......................................................................................................10
Porque a alma é preciosa
Poema de Ephrem de Nisibe...........................................................................................19
Queda e redenção do homem na aritmosofia martinista
Claude Prépetit................................................................................................................20
O Shabbat Divino
Jean-Guy Riant................................................................................................................30
Carta de Augustin Chaboseau (1891)
Documentos extraído dos Arquivos da TOM................................................................42

Capa: “O Teclado Cósmico”, Nicomedes Gomez

Exceto em caso de menção especial, os artigos publicados nesta revista não representam o
pensamento oficial da T.O.M., apenas o de seus autores. Os manuscritos não incluídos não
são devolvidos.

O Pantáculo é editado e impresso na Grande Loja da Jurisdição de Língua Portuguesa – AMORC, Curitiba,
Paraná, e é distribuído anualmente a todos os martinistas da TOM – Tradicional Ordem Martinista, de Língua
Portuguesa. É traduzido do Pantacle, editado pela Grande Loja da Jurisdição de Língua Francesa. Todos os
direitos de reprodução, sob qualquer forma, são reservados à Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis – AMORC.
Editorial
Estimados Irmãos e Irmãs,
Saudações diante das Luminárias da Tradicional Ordem Martinista!
É com muita alegria que lhes enviamos a edição anual da Revista “O Pantáculo”, 2012. Sempre
aguardada com muita expectativa por todos os estudantes Martinistas de Oratório, os mesmos
verificarão, na medida em que começarem a ler os artigos, o que sempre se constatou nas edições
anteriores: tratar-se de um precioso material de apoio ao estudo, pesquisa e prática no Oratório.
“A Guerra Santa”, artigo de Didier Lafargue, enfoca o percurso do homem ao tentar impor
a sua crença como a única que leva ao altar da Iluminação, quando a única guerra que pode ser
aceita é a guerra que se trava consigo mesmo. É no interior do “Ser” que é necessário transmutar
o grande inimigo que se opõe ao aperfeiçoamento espiritual. Ou seja, transformar os valores
inferiores, que muitas vezes são presentes no “Homem da Torrente” - como, por exemplo: a
vaidade, o ego, o orgulho e a sede de poder - em elevados valores que levam ao “Novo Homem”.
O segundo artigo, “O Homem Triplo: Corpo, Alma, Espírito”, de Jean-Claude Mondet, nos
inspira a ultrapassar nossos limites de busca e compreensão, em direção ao conhecimento que nos
é apresentado desde o início de nossa afiliação martinista. Muitos pensadores e filósofos citados
neste artigo ajudam nossa compreensão: Empédocles, Aristóteles, Fílon, Descartes, Plotino,
Louis-Claude de Saint-Martin e até Freud.
Dois outros artigos enriquecem nossos estudos e pesquisas: “Queda e Redenção do Homem
na Aritmosofia Martinista”, de Claude Prépetit, e “O Shabbat Divino”, de Jean-Guy Riant. Aliás, o
Shabbat, na prática exotérica, é o momento de regozijo. No esoterismo aplica-se ao Conhecimento
para a transformação da natureza do homem, edificando sua Catedral Interior sob sólidas
fundações Espirituais e Cósmicas.
E para encerrar esta edição, uma preciosidade: uma reprodução da carta de Augustin
Chaboseau a Charles Barlet, num contexto histórico valiosíssimo para todos os Martinistas.
Chaboseau, co-fundador da Ordem Martinista com Papus, exerceu a função de Grande Mestre da
Tradicional Ordem Martinista de 1931 a 1946, e exprime na carta seus sentimentos mais íntimos
de preocupação e cuidado face aos desafios inevitáveis que viriam.
Também é importante ressaltar que em 2013 registraremos três momentos importantes para
o Martinismo: 1) 18 de janeiro será o 270º ano de nascimento de nosso Venerado Mestre, Louis-
Claude de Saint-Martin; 2) 14 de outubro será o 210º ano de sua transição; 3) três Heptadas
estarão comemorando 20 anos de fundação, marco importante e especial para nossa Jurisdição,
com o início das atividades de Templo Martinista e a instalação do processo Iniciático regular,
ininterrupto, dentro das diretrizes da Suprema Grande Loja, através de nosso Soberano Grande
Mestre, Irmão Christian Bernard. São elas: a Heptada Martinista Curitiba TOM (12/04/1993);
a Heptada Martinista Brasília, TOM (30/06/1993); e a Heptada Martinista Niterói, TOM
(05/12/1993).
Amados Irmãos e Irmãs, não permitamos que o vigor, o entusiasmo e a determinação do
início de nossa caminhada se percam. Iniciamos como “Homens da Torrente” e buscamos a
redenção para nos tornarmos “Homens de Desejo”. Que possamos espelhar em nosso “Coração”
a imitação do “CRISTO CÓSMICO”, infinito em Amor, Bondade e Sabedoria, para que possamos
penetrar no Coração de DEUS e o D’ele em nós.
Que a Eterna Luz da Sabedoria Cósmica nos Ilumine sempre! Amém!

Hélio de Moraes e Marques


Grande Mestre
A Guerra Santa
mobilização coletiva em detrimento
da vida da alma humana

Didier Lafargue

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 3
O
homem sempre foi tentado pelo demônio da guerra santa. Sejam
elas religiosas ou não, as ideias que as sustêm sempre exprimem uma
renúncia à sua liberdade pessoal.

A essa expressão “guerra santa”, não se pode senão ficar chocado inicial-
mente pela antinomia aparente existente entre os dois termos, na medida em
que pode parecer inconcebível que uma guerra possa ser santa. Que caiba ao
homem a necessidade de às vezes fazer a guerra para se defender, não há dúvi-
das. Deificar a guerra, contudo, e colocá-la num pedestal afirmando fazê-lo em
nome de um princípio sagrado, é legitimá-la de maneira excessiva, tornando
dificil sua limitação. Todavia, em sua fraqueza, o homem cedeu a essa tentação,
independentemente da natureza de suas ideias.

Guerra Santa e Religião


A existência da guerra santa parece naturalmente ligada ao fenômeno
religioso. Ela é favorecida por uma crença do tipo monoteísta. O culto do Deus
único, o princípio superior que ele representa e a ideia de absoluto que ele
sustenta tornam possível a expansão de todas as energias a fim de que triunfe a
causa em questão. Sobretudo a liberdade que ela traz ao homem, revelando-se a
ele, no caso do Antigo Testamento e se encarnando no caso do NovoTestamento,
dá à criatura o livre-arbítrio que lhe permite escolher tanto bem quanto mal
todos os seus atos.

De início, ignora-se que é uma inferioridade psicológica que motiva esse élan.
As guerras santas nascem geralmente de situações onde reina certa apatia moral,
que exige compensação pela afirmação de uma vontade coletiva sob o império de
uma aura divina. Foi esse o caso na península arábica povoada por tribos divididas
umas contra as outras, objeto de desdém por parte das civilizações circunvizinhas.
Um profeta de nome Maomé tentou unificá-las em nome do todo-poderoso Alá
e impulsioná-las à conquista do mundo. Essa jihad suscita naturalmente, por
reação, a existência de uma outra guerra santa a que chamamos “cruzada”. O
nascimento desta nos deixa perplexos: como uma religião de caridade e de amor
pode gerar um tal desejo de violência? As condições particulares que viram sua
emergência no mundo ocidental permitem responder a essa questão. O medo do
Islã, por muito tempo contido, havia provocado uma reação geral. As mazelas do
tempo, a penúria, as epidemias e as inundações precisavam ser esquecidas, então,
em uma violenta onda de expansão.

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Contudo, trabalhando para o triunfo da Cruz, o cruzado apenas obedecia a
um princípio deixado no exterior de si próprio, segregando-o do mundo sensível.
“Eu via Santo Agostinho transmitindo aos Anglo-Saxões, da ponta das lanças
romanas, o credo cristão e Carlos Magno impondo gloriosamente aos pagãos
conversões tristemente célebres. Em seguida as hordas saqueadoras e mortíferas
das armadas de cruzados e, dessa forma, como um golpe de misericórdia, a
empáfia do romantismo tradicional das cruzadas me saltou aos olhos”1, afirmava
o psicólogo Carl Gustav Jung. Entre essa luta comum empreendida em nome de
um ideal religioso afirmado e uma autêntica vida espiritual do indivíduo em
sua intimidade consigo, a relação permanece bastante frágil. Assim, vemos que
Deus é uma realidade muito difícil de se perceber. Além disso, por muito tempo
o homem hesitou em querer encontrá-Lo.

Aí nos é dada a oportunidade de nos interrogarmos sobre a fé, sobre o que


ela representa realmente na compleição da personalidade humana e sobre toda
a distância que a separa da noção de crença.

Se as crenças nos vêm do fundo da alma e se impõem à nossa consciência, a


fé vai mais longe naquilo que se refere à nossa vontade e nos incita a fazer uma
escolha. Ao homem ela fornece a força e a unidade que apenas o sentimento
de Deus lhe permite obter. “A fé pode mover montanhas”, costuma-se dizer.
É preciso ainda que ela caminhe lado a lado com toda a humildade desejável
e com uma certa dose de autocrítica pessoal. Sem dúvida isso foi necessário
a Abraão quando, deixando a Mesopotâmia, submetido à influência daquilo
que para ele não eram senão falsos deuses, lançou-se impetuosamente a uma
aventura aparentemente sem esperança, ao cabo da qual encontrou Deus e
fundou o povo hebreu. Muito justamente a fé, quando corretamente assumida,
dá uma força de alma que nos permite realizar as coisas mais grandiosas. Ela
não deixa de ser uma faca de dois gumes, pois o homem pode usar tanto bem
quanto mal a liberdade que lhe é própria. De fato, se dispuser de abnegação
suficiente para canalizar essa energia para proveito maior de seus semelhantes,
ele se torna uma admirável personalidade, como a manifestada por grandes
santos como Francisco de Assis ou Vicente de Paulo. Porém, se não tiver nele
a força moral necessária para assumir a liberdade de que foi investido, cria-
se então nele uma depressão que exige absolutamente uma compensação.
Esta se afirma com todos os excessos possíveis, nos quais caíram seres como
Savonarole ou Torquemada. “O fanatismo é o irmão sempre presente da
dúvida”2, dizia Jung.

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Com efeito, revelando-se à sua criatura, o Todo-Poderoso a munia com
uma terrível responsabilidade da qual, todavia, nem sempre se mostrou digna.
Por isso o homem, durante milênios, preferiu dirigir sua adoração para uma
pluralidade de deuses com todo seu cortejo de ritos, os quais ofereciam menos
liberdade mas também mais segurança.

Laicização da Guerra Santa


Os princípios religiosos não são os únicos motores capazes de mobilizar as
multidões. Longe disso. Valores ditos “sagrados”, sem nenhuma relação com as
religiões constituídas, podem produzir o mesmo efeito. Foi assim que os filósofos
do Iluminismo, opondo-se aos princípios defendidos pela Igreja, criaram novos
dogmas e inúmeras palavras de ordem às quais aderiram as paixões. Em nome
da Razão, da Felicidade, da Liberdade e da Tolerância, a Revolução Francesa
se materializou em guerra santa e soube se mostrar implacável em sua luta
contra “a intolerância e o fanatismo”. Jamais o poder das palavras foi tão forte e
a maiúscula a elas associada apenas traduzia o caráter frio e abstrato das ideias
veiculadas – as que se impunham a uma sociedade reprimida em suas ambições
e mantida numa situação subalterna em nome do respeito aos privilégios.
Valores laicos substituíam os valores religiosos e sempre em nome deles foi
empreendida a guerra santa!

Os regimes totalitários do século XX não ficaram devendo à expressão desta


ideia. Como desejavam se assegurar da fidelidade das almas do interior do país,
seus governantes se dedicaram a monopolizar as energias contra um inimigo
exterior, no mais das vezes imaginário. Assim fez a Alemanha nazista engajada
em sua cruzada contra o Judaísmo e o comunismo; o bloco comunista em sua
luta contra o mundo capitalista. Todos os excessos eram então permitidos em
nome de um ideal assim afirmado. Ainda em nossos dias a religião justifica
a violência, a do Islã legitimando os atos terroristas, a do governo americano
promovendo a guerra contra o Iraque em conformidade com a “vontade do
Todo Poderoso”. Aí se evidencia o papel mantido pela ideologia no cimento das
sociedades e a relação existente entre ela e a livre expressão da personalidade.

É conhecido o sentido revestido por esse termo depois que foi formado
o grupo de ideólogos, no final do século XVIII, sob a égide de Destutt de
Tracy. Contudo, desde sempre todas as comunidades humanas foram guiadas
por princípios reconhecidos por todos, dando a seus membros os meios de

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definir suas ações. Por muito tempo esse papel foi cumprido pela religião, seja
ela expressa sob a forma de ritos ou de dogmas. A ideologia que animava a
sociedade então era fonte de vida na medida em que assegurava a coesão social
e cada um podia dela extrair seus próprios valores.
O perigo começa quando, a pretexto do bem público, ela exige de todos uma
adesão sem falhas, subordinando toda moral à execução de seus objetivos. A
Igreja conheceu um tempo assim, os excessos da Inquisição testesmunham isso.
Se há muito tempo ela renunciou a tais pretensões é o Estado que, atualmente,
faz o cidadão correr esse risco.
“Nos primórdios da cristiandade, era a Igreja que reivindicava o poder total,
tanto temporal quanto espiritual! A Igreja não tem mais, em nossos dias,
essa pretensão, que foi assimilada pelos Estados totalitários que reclamam o
poder não apenas temporal, mas também espiritual.” 3

E Jung acrescenta que em épocas diferentes e em outros contextos, os homens


eram animados pela mesma psicologia:

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“O absolutismo da “civitas Dei’”, da cidade de Deus, personificado pelos
homens, se assemelha excessivamente à “divinização” exaltada pelos
partidários do Estado, e as consequências morais que um Ignácio de Loyola
extrai da autoridade da Igreja – qual seja, os objetivos santificam os meios
– antecipam perigosamente o uso da mentira como instrumento de alta
política. De um lado como de outro uma submissão total à Fé é exigida.
A pessoa se encontra assim amputada de sua liberdade, de sua liberdade
perante Deus para uns, de sua liberdade perante o Estado para outros, o
que tanto num caso como no outro, é cavar sua tumba .”4

Guerra Santa e Poder


Assim observamos que, além da vontade de lutar em nome de Deus ou no de
Allah, a vontade de fazer triunfar a Razão, a nova ordem do Grande Reich ou o
princípio de uma sociedade sem classes e sem Estado, é sempre o demônio do
poder que possui e domina o homem. Quando uma comunidade escolhe deter-
minado caminho, é a sua própria identidade que ela manifesta e que quer impor
à força. É esta a relação que faz da guerra santa a expressão do nacionalismo. O
nacionalismo expressa sempre tudo o que caracteriza uma determinada comu-
nidade humana, sua posição geográfica, sua história, suas tradições culturais,
traços que fazem sua originalidade e sua diferença em relação aos outros povos.
Combatendo por esses valores, ela tenta se impor ao resto do mundo, ou mesmo
afirmar seu desejo de dominação de outras sociedades humanas.

Agindo dessa forma, o homem trai seu orgulho. Não realmente consciente,
irresponsável, ele se deixa guiar por uma força poderosa saída de seu inconsciente
coletivo que, ao invés de ser canalizada, atrofia sua liberdade. Consagrado ao
ilimitado e a um idealismo insensato, frutos de sua “semelhança com Deus”, tenta
criar o paraíso na Terra. Para além dos princípios motores suscitanto a adesão das
multidões, apenas um deus se impõe em definitivo ao indivíduo, Moloch, o deus
devorador dos humanos. Outrora, os homens sacrificavam seus filhos ao antigo
deus de Canaan. Hoje em dia Moloch desapareceu. Tirano interior, ele renasce
sob a forma de ideias abstratas sem raízes verdadeiras, às quais os homens se
sacrificam, sacrificando também sua alma, sem nenhum discernimento.

Interiorização da Guerra Santa


Colocada no pináculo, a guerra santa exalta as mais baixas pulsões humanas.
Se os homens tivessem maior lucidez, encarariam a guerra pelo que ela

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realmente é, ou seja, o maior dos flagelos humanos. A paz e o progresso geral
da humanidade não poderão nunca ser obtidos por meio de ordem coletiva,
ardores guerreiros dos quais só podem resultar miséria e devastação, mas
sim por meio de uma honesta reflexão do indivíduo sobre si mesmo. Cultura,
filosofia, educação lhe darão os valores apropriados que lhe permitirão o bom
uso de sua liberdade e recusar doutrinamentos artificiais.

Portanto, compreende-se que a única guerra santa que pode ser aceita é a
guerra que se trava consigo mesmo. Para isso, o Antigo Testamento oferece
imagens que podem ajudar nossa busca pessoal. Na verdade podemos ver nas
vitórias e nas derrotas impostas pelo Senhor ao povo hebreu uma correpondência
com os dilaceramentos vividos pela alma humana. Num plano unicamente
metafórico, as guerras empreendidas por Israel representam no interior do
indivíduo o confronto entre o bem e o mal e as únicas armas das quais pode
dispor, são apenas de ordem espiritual.
Notas
1 Jung, C. G., Ma vie [Minha vida], Paris, Gallimard, 1973, p.286.
2 Jung, C. G., L’âme et la vie [A alma e a vida], p.254.
3 Jung, C.G., C.G.Jung parte, p.103
4 Jung, C.G., Présent et avenir, p.65

Ilustrações:
p. 3 Pintura mural da antiga capela dos Templários de Cressac (Charente) séc.XII;
P. 7 Os Cruzados combatendo os turcos, miniatura;
P. 9 Extraído de Aurora consurgens, tratado de alquimia do séc.XV (Zurich Zentralbi 172).

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O homem triplo:
corpo, alma, espírito
Jean-Claude Mondet

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D
esde o início de sua afiliação, o martinista é colocado em presença
da divisão triádica do universo, cuja derivação no homem pode
ser o ternário corpo, alma, espírito. O objeto de seu trabalho estará
relacionado particularmente com a espiritualidade que, evidentemente, se liga
com o espírito. Mas o que podemos entender por esse termo? Intelecto, alma,
são outra coisa? As oposições habituais corpo e alma, matéria e espírito, são
equivalentes? O que elas encobrem? Para esclarecer essas noções, nem sempre
muito claras em nosso “espírito” mas que se relacionam à natureza do homem
e dessa forma interessante para os martinistas, vamos examinar a maneira pela
qual ela foi concebida através dos séculos.

Da Antiguidade Grega…
É aí que aparece a noção de logos, que continua a nos interessar em razão
principalmente do evangelho de João: “No começo, o logos…” Quinhentos anos
antes do “logos” do evangelista, Heráclito (540-480aC) o descrevia como um
princípio superior que a alma humana, a psychê , não pode perceber. Para ele era
o logos que religava o homem a Deus e que lhe permitia elevar-se até a realidade
divina, o que pode ser compreendido como a percepção do reflexo de Deus em
nossa alma.

Empédocles (morto em torno de 490aC) precisa melhor estas noções


descrevendo o homem como triplo, com um corpo (soma), uma alma (psyché)
e um espírito (noùs). Platão, um pouco mais tarde (428-348aC) apresenta uma
visão bem dualista do homem que só se compõe, segundo ele, daquilo que se
vê e daquilo que não se vê. O homem tem um corpo e uma alma e na apologia
de Sócrates, em Fédon, ele mostra o velho filósofo desejoso de se desligar do
corpo, que incomoda sua alma, na procura da verdade. Segundo Platão, o corpo
é uma verdadeira prisão para a alma. A alma, de origem divina e imortal, é
naturalmente boa; está em harmonia, mas se desarmoniza pelas paixões, as
cóleras, os medos do corpo que a abriga. Na morte, ela é liberada e pode, enfim,
se expandir.

Aristóteles (384-322aC) não concebia um corpo material que abrigasse uma


alma de origem divina. Retoma e aprimora a teoria de Empédocles. Para ele,
a alma faz parte do corpo; ela nasce e morre com ele e é ela que lhe permite
viver. O espírito, o nous, é a parte da alma capaz de perceber o pneuma, ou
sopro divino, e que dá ao homem sua dimensão espiritual. A dualidade humana

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essencial não se situa mais entre o corpo e a alma, mas entre o conjunto corpo-
alma e o espírito.

Na sequência, esses conceitos foram ainda retomados e burilados por


numerosos filósofos. Podemos citar Filon (13aC-54 dC), judeu de Alexandria,
pleno de ideias gregas e judaico-cristãs, que estabeleceu três graus de evolução
do homem segundo seu nível espiritual. Depois encontramos Orígenes,
Augustin de Hipona, Thomas de Aquino e um retorno ao dualismo com
Descartes. Para este último, a alma, sede do pensamento, é imortal e deixa o
corpo quando as funções vitais não a retém mais. O famoso “Penso, logo existo”
limita, consequentemente, nossa existência a esse breve instante no qual a alma
está presente no corpo.

Para Freud, totalmente ateu, a crença na existência de uma alma provém


dos primitivos animistas que pensavam que o corpo abriga um princípio
que o anima, que é imortal e pode se reencarnar. A morte consiste então no
abandono desta alma que vai animar um outro corpo. Freud considerava
que, em realidade, “projetamos” alguns elementos de nosso psiquismo, que
coexistem com o que percebemos pelos sentidos e que estão latentes em nós;
é o que nomeia ”inconsciente ”. Sobre essas bases é que teriam nascido todas
as nossas concepções de vida depois da morte, que podemos generalizar como
toda concepção de um pensamento exterior ao homem. É o medo da morte que
levou à crença em uma inteligência supra-humana.

… Até o Homem Triplo Moderno


Atualmente, fora do círculo dos especialistas, reina a maior confusão sobre
essas noções e me parece que é o pensamento dualista que prevalece no público,
sob a influência talvez da religião. Para os cientistas, a existência de um princípio
imortal é uma noção religiosa não-demonstrável e, consequentemente, não
afiançável. O espírito é assimilado ao intelecto e a espiritualidade se limita à
busca de Deus, mas descobre-se agora, com surpresa, que pode existir uma
elevação espiritual sem um Deus concebido como uma pessoa, através do
budismo , por exemplo. É também o que afirmam alguns pensadores do início
do século XXI, como Michel Onfray, Luc Ferry, André Comte-Sponville etc.

Parece que o martinista deve ter uma visão que ultrapasse a das ciências
humanas, que só se interessam pelo homem enquanto animal pensante. A noção

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de espiritualidade é totalmente estranha à psicologia, ao passo que, em revanche,
o espiritual integra o psicológico. Vejamos então a concepção do homem triplo,
que nos interessa de perto, tal como é conhecida nas grandes tradições, como
é por nós compreendida desde a Renascença e seu redescobrimento por alguns
antropólogos e filósofos atuais (ver Fromaget, Michel: Corps, Âme et Esprit,
Albin Michel, 1991).

O corpo: é o corpus dos latinos, o soma dos gregos, o bassar dos hebreus. É
relativamente simples, trata-se de nossos ossos e carne aos quais tendemos a
nos identificar e nos quais vemos, normalmente, a totalidade de nossa pessoa.
Ele tem suas necessidades puramente fisiológicas, destinadas a assegurar sua
sobrevida e a da espécie, e que orientam muitos indivíduos para o prazer
advindo de sua satisfação: repouso, alimento, bebida, sexualidade.

A alma : essa palavra vem da anima latina , cujo sentido é “o que anima” . É
a psyché grega e o nefesch dos hebreus. Podemos descrevê-la como uma força
vital animando o corpo do qual ela faz parte, já que morre com ele. Ela inclui o
mental e os sentimentos, é um tipo de intermediária entre a matéria do corpo e
o espírito, que logo iremos ver. Ela pode se voltar em direção a um ou ao outro e
assim sendo, atrair a pessoa seja para aspirações espirituais, seja para o lado das
preocupações puramente materiais.

O Espírito que nos interessa aqui não é o intelecto, também escrito com
maiúscula. Os latinos o chamavam spiritus, os gregos pneuma (ou nous,
conforme as escolas), e os hebreus rouah’ (h’ representa h gutural). É igualmente
um intermediário, uma interface em linguagem moderna, mas desta vez entre
a alma e uma entidade exterior a ela, uma abertura para um outro mundo
que pode ser Deus para os crentes ou, para muitos, alguma coisa indefinível,
inacessível ao espírito humano.

Espiritualizar-se não é adquirir um espírito religioso ou começar a acreditar


no Deus das religiões. É simplesmente voltar sua alma para o espírito, é admitir
que nosso corpo não é nosso único elemento e que estamos ligados a uma
realidade que nos escapa e para a qual queremos nos elevar. Nesta visão, matéria
e espírito não estão em oposição, mas fazem todos os dois parte do Todo que é
ao mesmo tempo Um.

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O Homem Triplo e a Iniciação Martinista
O Martinismo nos ajuda a tomar consciência das diferentes partes que
constituem nosso indivíduo e depois a unificá-las. Uma vez isso feito, não nos
tornamos puros espíritos, mas deixamos de ficar sujeitos às vontades e desejos
de nosso corpo. Não os negamos, mas não lhe obedecemos, somos nós também
Um, somos humanos. Esta é uma das mensagens mais profundas que nos
transmite a tradição.

Esta tripartição do homem gera consequências. Dando continuidade à


concepção de Filon, o filósofo neoplatônico Plotino (205–270), discípulo da
escola de Alexandria, define, no terceiro século, três categorias humanas em
função de suas preocupações e correspondendo às três divisões que já vimos.

O homem carnal está preso às coisas do corpo e só procura os prazeres


materiais, como os da mesa e dos sentidos. Estes prazeres não são repreensíveis
por si só, mas são perigosos, já que podem levar aos excessos. Se não perder a
medida, o homem poderá exercitar a amizade, mas ele não irá procurar uma
elevação espiritual.

O homem psíquico, ao contrário, não se interessa unicamente pelo que é


material, mas procura a paz e a harmonia; ele quer se melhorar e melhorar o
mundo, sente às vezes uma necessidade que faz dele um homem de desejo,
este desejo não sendo o de uma satisfação material, mas o da satisfação de uma
necessidade indefinível.

O homem espiritual vai mais longe já que, procurando o invisível atrás


do visível, ele acredita que o mundo que conhece não é a totalidade daquilo
que existe. Admite um princípio criador que pode ser Deus e que não sabe,
forçosamente, definir.

É evidente que neste domínio toda divisão é artificial e que há tantos tipos
de homens e de mulheres quanto de humanos. Mas este método está de acordo
com o método martinista, que nos faz identificar nossas dualidades e nossos
antagonismos para equilibrá-los por um terceiro termo, que se pode aplicar ao
homem triplo de Plotino.

Plotino, entretanto, via o homem classificado para sempre na sua categoria,


enquanto que o Martinismo quer evoluir. Ele vai começar identificando diversas

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 14
tendências: as necessidades de seu corpo provenientes de sua parte animal e à
frente de tudo, a necessidade de perpetuar a espécie; os desejos de sua alma,
incluindo o amor aos outros, e as necessidades de melhorias da condição
humana graças a seus sentimentos, os de moral, de justiça, as noções de dever
e de responsabilidade. Tudo isso conduz, logicamente, ainda que todos estejam
longe de passar por isso, a uma necessidade de transcendência, de encontrar seu
lugar na imensidão do universo, diante do qual o homem espiritual se sente ao
mesmo tempo pequeno e parte integrante.

O martinista é estes três homens ao mesmo tempo, se não realmente, pelo


menos potencialmente. Em 1875, Haeckel, o fundador da filogênese (que trata
da formação das espécies), escrevia: “A ontogênese (que trata da formação dos
indivíduos) reproduz resumidamente a filogênese”. Dito de uma outra maneira,
o indivíduo, no seu processo de evolução pessoal, passa pelos estágios que a
espécie passou desde sua origem animal até seu estágio atual. Ele falava, claro,
da passagem do estágio de recém nascido ao estágio do adulto formado, mas
não poderíamos ver aí o processo iniciático?

Não se propõe nosso sistema a conduzir seus adeptos do estágio de homem


puramente carnal àquele de homem espiritual? Não parece ser exatamente isso
que acontece ao candidato que efetua sua primeira entrada no Templo, sendo uma
espécie de recém nascido que será conduzido até o estágio do Superior Incógnito?

Além do mais, como não ver essas três fases representadas nos três grandes
pilares cabalísticos aos quais o candidato se dirige: a Força, a do corpo bem
entendido, a Beleza – dos sentimentos –, e a Sabedoria, aquela que alcança o
Iniciado pelo viés do espirito?

Encontramos essas três fases nos três graus com esta originalidade que o
rito parece inverter na ordem das coisas e incitar a penetrar em si mesmo em
busca da alma ali escondida. Sua Beleza animará então a Força do Iniciado e a
Sabedoria do Superior Incógnito.

Outros Ternários Humanos


Louis-Claude de Saint-Martin, bem conhecido dos martinistas, apresenta
esta evolução de uma maneira imagética através dos seus escritos. Para ele, o

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homem começa por ser um “homem da torrente ”, na qual ele é levado como
graveto, sem nada controlar de seu destino. Torna-se então um “homem de
desejo”. O desejo, sendo a vontade de alguma coisa que não se tem, no espírito
de Saint-Martin trata-se claramente do desejo de Deus. O terceiro estágio é o do
“novo homem”, ou homem-espírito.

Percebe-se que esta passagem do homem através esses três estados bem
parecidos àqueles que descrevemos, estava bem de acordo com o espírito
do século XVIII. Penso na influência iluminista, obviamente, que vinha em
complemento, às vezes em oposição, à influência racionalista ilustrada pelos
enciclopedistas. O “espírito” das Luzes se situa na verdade, para nós, ao nível do
desejo de compreender , logo ao nível do intelecto. Em nossa terminologia, ao
nível da alma e não do “Espírito”.

Há uma maneira fácil de diferenciar os três tipos de homens: é pela sua


abordagem da palavra “amor”. A língua francesa é, neste domínio, pobre em
seu vocabulário e designa pelo mesmo termo coisas muito diferentes. Assim,
para o homem carnal o amor refere-se ao corpo, logo à atração física, ao
desejo de posse do ser amado e ao ato carnal realizado com ele. É o eros dos
gregos, em seu sentido de amor físico. Para o homem psíquico, não é mais
o aspecto unicamente sexual que é o dominante, mas um sentimento que
exclui qualquer vontade de posse, é desinteressado, não pede forçosamente
reciprocidade nem é, necessariamente, dirigido a um único ser, mas aos
seres humanos. É a philia dos gregos, que se aproxima da amizade, porém
com um sentido muito mais forte. Enfim, o terceiro estágio, o do homem
espiritual, diz respeito ao amor agapè dos gregos, que é um amor sublime, o
amor que Deus experimenta por sua criatura e que gostaria que ela sentisse
por ele e por seus semelhantes. É o ágape que contém o verdadeiro sentido
do mandamento de Jesus a seus discípulos: “Amai-vos uns aos outros, como
eu vos amei.”

Para terminar com estas noções de antropologia ternária, não é inútil


assinalar o que a tradição bíblica afirma, mas que só dificilmente encontramos
nas traduções francesas. É preciso para isso voltar às versões gregas ou hebraicas.
Assim, no início do Gêneses, é o rouah de Deus que planava acima das águas,
o espírito. Mais tarde, depois de receber o sopro divino, pneuma, o homem de
barro torna-se uma alma viva, nephesch h’ ayah.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 16
No entanto, deve permanecer claro para todos que a tripartição do homem
é apenas uma maneira de apresentar as coisas para explicar o funcionamento
do espírito (com minúscula…) humano. Ela é uma ajuda, decompondo em
etapas o processo de espiritualização daquele que é apenas, em seu início, um
ser muito carnal. Cada passo, feito de determinadas dualidades, apóia-se sobre
os precedentes e leva ao início do seguinte. O homem constrói dessa forma sua
unidade corpo, alma, espírito porque é UM.

Conclusão
Vemos que esse assunto é extremamente vasto e longe de estar esgotado.
Tentamos mesmo assim concluir dizendo que o homem é limitado e que

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 17
só pode perceber o que lhe está relacionado. Tem, no entanto, a intuição do
absoluto, sem limites, que poderíamos chamar Princípio primeiro ou criador,
e que se situa em uma dimensão que lhe escapa completamente. Seu espírito
situa-se na quintessência da alma, a força que o anima e governa intelecto e
sentimentos. Ele aspira ultrapassar seus próprios limites e se aproximar desse
absoluto. É a isso que chamaremos espiritualidade, que visa nos fazer escapar de
nosso contexto puramente biológico.

Este processo exige muita humildade, porque reconhece que algo se sobrepõe
a nós, nos ultrapassa. Mas ele nos dá ao mesmo tempo muita coragem, “força
de alma”, pois nos conduz a uma progressão individual, fora dos caminhos
balizados pelas religiões e que são apenas vias particulares de espiritualidade,
distantes do universalismo que propiciam a iniciação e a via martinista.

Ilustrações:
p. 10 e 17: pranchas extraídas de : De Supernaturali, ROBERT FLUDD (1919);
p. 18, desenho extraído dos Symboles Secrets des Rosicruciens des XVIème et XVIIème
siècles (Altona,1788) p.50

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 18
“Porque a alma é ainda mais preciosa
do que o corpo,
E precioso é o espírito, mais ainda do que a alma,
E a divindade mais oculta do que o espírito.
Da beleza da alma, se revestirá o corpo
quando vier o final,
A alma revestirá a beleza do espírito,
O espírito terá em sua aparência
a mesma Majestade.
O corpo se verá elevado à categoria da alma,
A alma, à categoria do espírito,
O espírito à altura onde está a Majestade,
Enquanto dela se aproxima com
apreensão e amor.”

Ephrem de Nisibe (séc.IV)


Hymnes sur le Paradis (IX 20-21)

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 19
Queda e Redenção
do Homem na
Aritmosofia Martinista
Claude Prépetit

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 20
N
o livro “O Livro da Sabedoria”, o rei Salomão estabeleceu a relação
entre o número e a Criação, afirmando que “Deus regulou tudo com
medidas, números e pesos”, e Martinès de Pasqually, em seu “Tratado
da reintegração dos seres”, escreveu que “todo número é coeterno com o Criador,
e foi pelos diferentes números que o Criador formou tudo, todas as convenções
de criação e todas as convenções com sua criatura”.

Os números constituem uma linguagem simbólica que representa as leis que


Deus utilizou para criar o universo. Eles dão assim acesso ao conhecimento das
Leis Divinas, expressando dessa forma sua sabedoria, quer dizer: esta Sophia
que presidiu a criação do universo e que continua a lhe assegurar o equilíbrio e o
dinamismo. Não é sem motivo que a palavra “aritmosofia” é usada para designar
a ciência dos números, que distingue as matemáticas profanas das matemáticas
teosóficas que revelam a Sabedoria Divina. Através deste texto, vamos evocar a
cosmogonia martinista tal como descreve Martinès de Pasqually em sua obra
fundamental, que é o “Tratado da reintegração dos seres” e à luz da ciência
sagrada dos números, tal como revelada pelo Filósofo Desconhecido, Louis-
Claude de Saint-Martin, em sua obra póstuma “Os Números”. De uma maneira
geral, este livro descreve a queda e possível redenção do homem. Indica a via
que o homem em exílio no mundo material deve seguir para reintegrar o reino
da luz.

Os Números na Cosmogonia Martinista


Na imensidade divina, Deus manisfesta sua quaternidade pela emanação
dos primeiros seres em quatro classes: os espíritos superiores denários, os
espíritos maiores octonários, os espíritos inferiores setenários e os espíritos
menores ternários. Esta emanação foi realizada em conformidade com a ciência
sagrada dos números, segundo as leis de ordem e de harmonia. A cada ser, seus
limites ou seu número ou ainda sua vibração, já que o número é de natureza
vibratória. Quando faz-se a soma dos números atribuídos a estes quatro grupos
de espíritos, obtém-se o número 10 ou denário (10+8+7+3 = 28 = 2+8 = 10),
o primeiro Poder divino que só pode ser operado pelo Criador. Tudo vem da
década na qual entra a soma dos quatro primeiros números e estes na unidade
onde tudo começou (1+2+3+4 = 10 = 1+0 = 1).

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 21
A prevaricação de certos espíritos setenários e ternários, isto é, a utilização
de seu livre-arbítrio em oposição às leis divinas para tentar criar assim como
Deus, será para Deus a oportunidade de criar um universo temporal para contê-
los, limitar suas ações desordenadas e servir de cenário para reconciliação com
Ele.

Primeiro Ele emancipa os espíritos setenários que lhe permaneceram


fiéis, em três classes: o primeiro grupo recebeu um poder superior denário,
o segundo, um poder maior setenário, o terceiro um poder inferior ternário.
Estes três primeiros grupos formam os três primeiros círculos da Imensidade
Supraceleste, um mundo destinado a servir de intermediário entre a Imensidade
Divina e a Criação universal. Quanto aos fiéis espíritos ternários da Imensidade
Divina, foram, por sua vez, emancipados para compor o círculo denominada
“Eixo Fogo Central Incriado” , cercando a Criação universal e devendo servir
de prisão aos seres perversos.

No interior do Eixo Fogo Central Incriado, a Criação universal é composta


de dois níveis: o mundo celeste e o mundo Terrestre. A esta prisão é necessário
um carcereiro que seja também um educador e um agente de reintegração
universal. E assim Deus emana à sua imagem e à sua semelhança uma nova classe
de espíritos denominados “menores espirituais quaternários” para completar a
quádrupla essência divina que deve constituir a Imensidade Supraceleste. Os
menores quaternários tornam-se assim superiores aos outros espíritos porque
não são maculados: é a humanidade. Depois Deus separa desta nova classe um
espírito particular que terá por missão vigiar os demônios e ajudá-los em sua
reintegração: é Adão, o homem-deus do universo.

Os Números no Quadro Universal


O Quadro universal representa, de uma maneira simbólica, os mundos
visível e invisível e os vínculos que os unem seguindo a cosmogonia martinista.
Neste Quadro, o denário é onipresente, seja diretamente seja pelo número
quatro. Imagem da própria Divindade, o denário deve fazer a reconciliação
de todos os seres, fazendo-os retornar à unidade. A imensidade supraceleste é
constituída de espíritos denários (10), do quaternário que contém em si mesmo

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 22
o 10 (1+2+3+4 = 10), e também da associação 7+3 dos espíritos setenários e
inferiores ternários, que compõem 10 quando reunidos. Os mundos celeste e
terrestre quando associados fazem 7+3=10 (as 7 esferas unidas às três essências
espirituais) No Quadro Universal, tudo é um reflexo do denário que manifesta
suas potencialidades. Sempre neste Quadro, o universal temporal é constituído
de três mundos: divino, espiritual e material, o primeiro estando associado ao
número 4, o segundo ao número 7 e o último ao número 3.

A Força do Menor Quaternário


Segundo o Gênesis, , o homem foi criado no sexto dia à imagem e semelhança
do Divino, que é de essência quaternária. O “Tratado da reintegração dos seres”
fala também de um ser quaternário emanado diretamente da Divindade, sem o
concurso de nenhum poder intermediário. Que relação existe entre o sexto dia
e o quaternário do homem? A prece de abertura do Shabbat começa por essas
palavras em hebraico: symwh vlbyv svy que se traduz por “No sexto dia
, os céus foram terminados”. Dizendo de outra forma, no sexto dia, ou na sexta
diferenciação, o sistema obtido foi terminado. E pegando a primeira letra de
cada palavra da frase em hebreu (Notarikon) , temos o prazer de descobrir o
nome inefável de quatro letras: Y-H-V-H (hvhy), nome dado a Moisés pelo
próprio Divino no monte Sinai. Este tetragrama sagrado contém, supostamente,
todas as leis da criação do homem, criação à imagem do Divino.

O quaternário menor é bem a imagem do denário que manisfesta a Unidade


icognoscível no mundo espaço-temporal. Ele recebe do Criador o augusto nome
de Homem-deus da terra universal e foi posto no Paraíso terrestre, no centro da
Imensidade celeste onde todas as forças estão equilibradas: 1,2,3,4,5,6,7. O 4 é
um número central. Neste lugar, o menor quaternário estava destinado a receber
a energia divina que emana do centro invisível da Criação para transmiti-la em
seguida para todo o universo. Na Criação universal, Adão estava em relação
constante com o Pensamento Divino, e deveria agir nos mundos divino (4),
espiritual (7) e material (3). Chamado a trazer de volta para o Divino os espíritos
prevaricadores e a ser o agente da reintegração universal, precisou revestir-se
de um corpo para entrar no mundo celeste, temporal, sensível. Então se fêz
conhecer sensivelmente através do setenário, o invólucro do quaternário, quer

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 23
dizer, o produto da explosão do quaternário, 4x4 = 16 = 7, sendo o próprio 4 o
corpo ou invólucro de 1 (1+2+3+4 = 10 = 1+0 = 1).

A Queda de Adão
Infelizmente, Adão por sua vez incorre também em erro depois que o
príncipe dos espíritos decaídos lhe sugeriu engendrar sozinho uma outra
criatura, que dependeria dele como ele próprio dependia de Deus. Atribuindo-
se o princípio do Ser Divino, Adão dividiu e subdividiu a quádrupla essência
divina, acrescentando 1 ao 4. A segunda prevaricação está associada ao
quinário (5 = 4+1). Assim que Adão consumou sua vontade delituosa, o
Criador, por sua onipotência, transmutou seu corpo glorioso em um corpo de
matéria semelhante àquele resultante de seu terrível procedimento. Ele perdeu
o lugar que ocupava no centro da Imensidade celeste e foi exilado no mundo
da matéria.

Adão havia ofendido seu Criador, profanado o nome sagrado de Deus, em


outras palavras, destruído a harmonia da relação entre céus e a terra, ideia
expressa do ponto de vista da Cabala pela mutilação do nome sagrado dividido
em duas partes . O sublime quaternário tinha sido violentamente separado em
dois binários, isto é, em dois termos de oposição: Iod, He – Vav, He acarretando
assim a perda de sua potência e do Verbo criador. Desde esta época adâmica,
os menores espirituais permaneceram na Imensidade Supraceleste descendo à
matéria à medida em que novos corpos eram produzidos por seus genitores
terrestres.

Antes da queda, o quaternário era superior ao setenário. Mas com a queda,


o quaternário se tornou submisso ao setenário. Na verdade, além da primeira
classe de espíritos setenários colocados na Imensidade celeste para serem
depositários da lei do Criador e os guardiães das diferentes partes do universo
corporal, uma segunda classe de seres espirituais setenários foi associada à
direção e à conservação do homem, ou menor quaternário, em razão de sua
queda. Esta segunda classe setenária forma os diferentes agentes do Espírito-
Santo encarregados de sustentar e defender o homen nos diferentes ataques que
ele recebe durante seu tempo de provação.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 24
O Reconciliador e o Reparador
Após a primeira prevaricação, a Divindade agiu por poderes emanados
(10,7,4,3 ) para realizar sua justiça e molestar os seres perversos. O homem estava
encarregado do papel de reparador. Ao longo da segunda prevaricação, isto é,
na prevaricação do homem, a Divindade agiu por ela mesma. Em sua bondade
sempre infinita, Deus envia um segundo Adão, o Filho ou Reconciliador,
portador do espírito de Cristo, duas vezes forte, já que em sua essência integra
o quaternário duplamente e é chamado por Martinès de “Espírito Octonário”
(4+4=8). A missão de Cristo tinha um duplo aspecto, o de “Reconciliador”
e o de “Reparador”. Ele devia, de início, trabalhar pela reconciliação dos
menores levando-os a fazer a experiência interior do Cristo, esse intermediário
indispensável à reconciliação.

A função reparadora de Cristo consistiu em abrir, pela purificação, um novo


caminho, permitindo aos homens transpor alguns planos espirituais que lhes
eram inacessíveis até então. Esta via permite aos menores primeiro se reconciliar
com o Divino, reencontrar sua forma gloriosa e seu lugar original e, em seguida,
realizar a ação divina para qual eles foram emanados e depois emancipados na
Criação universal.

O TeTragrammaTon ou TeTrakTys de Pitágoras aspirava à regeneração do


homem. Este desejo é expresso na Cabala pelo triplo Tau hebraico ou os três T
equivalentes à letra Shin (w), que atribuída aos idiomas, representa também
o Verbo, isto é, a Divindade ela mesma, enquanto manifestada pela Palavra.
Para o Filósofo Desconhecido, a vigésima –primeira letra do alfabeto hebraico,
triplo por sua forma, é um complemento do Grande Nome. A letra Shin (w)
foi então introduzida no nome sagrado mutilado, de maneira a reunir os dois
fragmentos: Iod He Shin Vav He (hvwhy).

Este novo Nome de cinco letras, emblema da redenção, lê-se em hebraico


Ieschouah. É o nome do Nazareno e vemos que o número 5, antes destruidor da
harmonia, torna-se, sob a nova disposição, o número abençoado da reintegração
do homem no seu estado original de pureza. Eis porque diz-se que na ação de
Cristo 5 vale 8 e 8 vale 5.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 25
O Caminho da Redenção
Apesar da desobediência do homem, lhe foi atribuído numerosos recursos
devendo servir à sua redenção. É a mão de um Pai que o castigou mas é também
o coração de um Pai que vela por ele, mesmo quando a justiça condena a criatura
decaída a ser banida da presença de seu Criador. Porque o lugar de onde vem o
homem é ordenado com tal sabedoria que, voltando atrás e seguindo em sentido
inverso os mesmos caminhos por onde se perdeu, lhe está assegurado retomar a
mesma posição primitiva, ser investido novamente de tudo aquilo do qual havia
sido despojado e encontrar-se naquele ponto central onde - e somente ali- ele é
capaz de possuir algum poder de gozar algum repouso. A vontade é o ponto de
convergência da salvação do homem.

Quando consideramos de um lado as três forças do universo que a tradição


martinista associa à trindade chamada “Providência – Vontade – Destino” , e
de outro as três faculdades utilizadas por Deus para criar o Universo, a saber
“Pensamento – Vontade – Ação” – faculdades que também gozava o homem
andrógino quando vivia na Sabedoria Divina –, podemos constatar que entre a
tríade da Força e a tríade da Faculdade existe um ponto comum , é a “Vontade”
colocada no centro. Se Adão teve uma má vontade de agir contra o Criador, o
pensamento, em revanche, lhe tinha sido sugerido pelos “espíritos perversos”.

Dessa forma, ele não é responsável por este mau pensamento. É a vontade
que submete o ser, seja ao mau pensamento demoníaco, seja ao bom pensamento
das criaturas angelicais. Ora, se o homem se encontra hoje exilado no mundo
material, é em consequência de uma má utilização de sua vontade. Na verdade,
se a Vontade divina não tivesse sido transgredida, o homem não estaria aqui.
Já que a Vontade divina foi violada, é esta Vontade divina que deverá ser
restaurada, e o homem só poderá voltar às suas origens através de um bom uso
de sua vontade. Para efetuar sua redenção, é necessário também que a vontade
livre e o consentimento do homem se unam aos desígnios da Providência. “A
revivificação da vontade”, nos diz o Filósofo Desconhecido, “é a tarefa principal
de todos os seres culpados.”

Para abordar o devir da natureza universal e o devir do homem encarnado


na matéria, devemos lembrar uma lei muito importante que estipula ser

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 26
preciso três fases da ação para completar o círculo: o Princípio, o Progresso ou
Desenvolvimento e o Termo ou Complemento, correpondendo aos três tempos
do processo: Produção ou Emanação, Conservação e Reintegração. O Princípio
corresponde à raiz do ser que manifesta vida ou existência. O Desenvolvimento
ou Progresso corresponde à força ou à faculdade do ser: ele se expressa no
quadrado. O Termo ou Complemento corresponde também à força e à faculdade
do ser, mas se expressa pelo cubo, que é a ultima potência a qual pode se elevar
um ser para conhecer suas verdadeiras propriedades ou faculdades, ou ainda
seu destino.

Analisemos as etapas da redenção do homem através dessa lei e à luz dos


números 3, 7 e 4, que são os números correspondentes aos mundos terrestre,
celeste e divino.

• 3 é o ternário em seu princípio, é o modo universal segundo o qual tudo


se opera e se produz; 9, saído do quadrado de 3 ( 3 x 3 =9), é o progresso
e o desenvolvimento de 3 que seguiu seu curso no mundo material, este
mundo de limitação, de matéria e de aparência que só vive pela ação dos
seres ternários encarregados de operá-lo. A última potência da matéria
é o cubo de 3 isto é, 9 x 3 ou 3 x 3 x 3 = 27 (27 = 2+7 = 9) que é o
termo da natureza universal. É nesta fase que a matéria assimilada ao
mal ( 2 ) restitue o espírito ( 7 ) à sua liberdade primitiva separando-o
do número 2 sobre o qual o espírito se elevará. O número 27 nos mostra
igualmente que o universo, tendo sido concebido em inteira perfeição
pelo número setenário, será igualmente reintegrado por este mesmo
número na imaginação daquele que o concebeu (as 7 trombetas do
Apocalipse). O ternário é operado pelo senário. Assim como também o
corpo ou invólucro terrestre por seus elementos constitutivos (1+2+3 =
6). No término da natureza universal, o ternário reintegrará o senário e o
homem reinará de novo sobre as seis regiões do universo.

• 7 é o setanário em seu princípio; 49, saído do quadrado de 7 (7 x 7 = 49),


é o desenvolvimento de 7 que se torna superior ao homem no seu exílio.
Em razão de sua queda, o homem passou do 4 ao 9, o 9 sendo equivalente
ao 0 na aritmosofia, porque é neutro. A união do 4 com o 0 dá 40, número

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 27
da provação e 49 = 40+ 9 torna-se a potência do espírito, ou do Divino,
e do temporal no homem, aprisionado na matéria e no temporal. A
elevação de 7 ao cubo dá 7 x 7 x 7 = 49 x 7 = 343 (343 = 3+4+3 = 10).

É nos elementos deste cubo que se vê claramente a destinação do homem


primitivo, o quaternário posicionado entre dois ternários, visto estar colocado
entre o triângulo superior das faculdades divinas, da qual tudo absorvia
(Pensamento, Vontade, Ação) e o triângulo inferior das essências espirituais
sobre o qual dominava (enxofre, mercúrio, sal). Ao centro desses dois triângulos
entrelaçados (as duas colunas de oposição), o menor quaternário realizará a
junção perfeita com seu guia espiritual (4 e 7 serão confundidos).

• 4 é o quaternário em seu princípio; 16, saído de 4 x 4 = 16, é o


desenvolvimento. 16 = 1+6 = 7 é o invólucro do homem quaternário
no mundo material antes da sua queda. A elevação de 4 ao seu cubo
dá 16 x 4 = 4 x 4 x 4 = 64 (64 = 6 + 4 = 10). Ao atingir esse termo o
homem é novamente assimilado ao denário: 6 + 4 = 10, e o número 4
se acha liberado do senário temporal ao qual estava submetido durante
sua expiação e que agora se desliga dele para deixá-lo livre e retomar seu
princípio de ação material. Este número 64 nos lembra a assinatura do
Superior Incógnito, mostrando o homem quaternário regenerado (cruz)
dominando as seis regiões do universo (6 pontos). Envolvidos pelas
dobras do manto, tornamo-nos “Silenciosos”, e portando máscara, somos
“Desconhecidos”.

A Reintegração
Neste estágio, nem tudo terminou para o homem quaternário. Tomando o
caminho inverso de seu desdobramento:

• O ternário retornará ao senário, que é sua origem; a raiz 3 é a expressão de


6, porque 3 só se expressa graças ao 6, através seus elementos constitutivos,
a saber: 6 = 1+2+3, ou de outra maneira, o 6 se dá a conhecer no mundo
material pelo viés do 3;

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 28
• O senário reintegrará o setenário que ele manifesta no plano material
(1+2+3+4+5+6) = 21 = 3 x 7 ou “ação ternária dos sete seres espirituais
ligados à direção das coisas temporais”;

• O setenário, invólucro do quartenário (4 x 4 = 16 = 1+6 = 7), a ele se


amalgamará.

Só restará agora fazer retornar o quaternário à sua fonte denária ou unitária,


porque 4 provém de 1, como mostra a sua soma teosófica: 1+2+3+4 = 10 = 1+0
= 1.

O ser perverso, tendo ampliado seus crimes pela queda do homem, atraiu
sobre si as forças e poderes de dois agentes. Assim estes dois agentes, que são
o homem e o Cristo, serão os depositários da espada vingadora dos crimes.
Quando o invólucro universal das trevas for dissolvido, quando o fogo do
espírito tiver consumido todos os defeitos dos homens e ele tiver purificado sua
essência, então todos os seres temporais formarão em torno do ser perverso uma
barreira luminosa e transparente que ele nunca poderá ultrapassar. É neste lugar
de aflição que estarão, para os seres perversos e os menores não reconciliados,
os choros e o ranger dos dentes do qual fala a Escritura.

Ao final dos tempos, os espíritos ternários cessarão de emanar as essências


espirituais e o universo espaço-temporal, esse mundo ilusório, progressivamente
desaparecerá na Imensidade divina. Então o 4 terá retomado seu lugar no seio
da Unidade divina, a redenção será total e tudo estará consumado!

Ilustração:
p.20, “A Rosa Cósmica” extraida do L”Amphitheatrum sapientae aeternae “(1595) de Heinrich
Khunrath.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 29
O Shabbat Divino
Jean-Guy Riant

“Louis-Claude de Saint-Martin
nos fala de um mundo pútrido,
lamentando-se em seu leito de
dores, esperando a libertação pela
ação espiritual do homem de desejo,
do homem-espírito. E como não ser
arrebatado pelo questionamento
sobre o repouso do Criador,
aquele que a Bíblia dá
o nome de Eterno?”
O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 30
A
literatura sagrada é um vasto terreno de pesquisa, no qual os indícios
são salpicados aqui e ali, a fim de guiar o pesquisador em direção às
verdades sublimes. Estas “maravilhas eternas semeadas em nosso mundo
perecível” inundam tanto o coração quanto o espírito de luzes implementadas
pelo seu autor, o Grande Arquiteto do Universo. Às vezes, estes indícios são
tão assinalados que um leitura literal é suficiente para revelá-los. Quem, ateu
ou crente, místico ou materialista, nunca foi questionado, ao menos uma vez,
em suas leituras de um livro santo por um texto parecendo claramente ilógico?
Vocês o teriam compreendido. Sendo místicos podemos perceber esses indícios
deixados pelos iniciados de nossa Tradição. Consagrando este momento à busca
espiritual, tentemos desvendar uma dessas famosas chaves de leitura e, quem
sabe, aí encontrar uma porta.

O Evangelho de São João, de um esoterismo fascinante, se é que ainda é


importante ressaltar isso, encerra uma compilação de textos sagrados relatados
desde os tempos mais antigos. Estes últimos explicam a origem do mundo
e da humanidade, assim como o objetivo que a humanidade tem, por dever,
alcançar. No entanto, se o homem investido de toda a força do mundo celeste,
ensinando mesmo os anjos, deve concorrer à reintegração do universo pelo
seu trabalho espiritual, não deveria ele começar a estudar, em suas origens, os
planos estabelecidos para esta concretização espiritual? Não é nestes planos que
descobriremos o instrumental de uma evolução suficientemente interior para
abrir os caminhos reais do coração? Para chegar à Terra Prometida evocada no
Evangelho de São João, é preciso logicamente partir do livro primeiro: o Gênesis.

Martinès de Pasqually incitava seus alunos a não se perder em discussões


estéreis sobre o Gênesis. Certamente, se ele fixa em 6 mil anos o “tempo” da
Criação, ele repete sem parar que o tempo não é um tempo, mas a duração de
“uma operação”. Quanto ao sétimo dia, é um mistério e faz parte desses indícios
evocados pela sua irracionalidade aparente. Na verdade, deixam-nos imaginar
por um lado, que a Criação foi perfeitamente integralizada durante este sétimo
dia e por outro, que Deus repousou de seu trabalho.

Isto é questionável! Um mundo perfeito? No entanto, em seus escritos Louis-


Claude de Saint-Martin nos fala de um mundo pútrido, gemendo sobre seu leito

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 31
de dores, esperando sua lilbertação pela ação espiritual do homem de desejo,
do homem-espírito. E como não ser arrebatado pelo questionamento sobre
o repouso do Criador, aquele que a Bíblia dá o nome de Eterno, que em sua
força celeste emana os seres e os mundos, do qual Isaias nos diz que: “ele não
se esgota nem se cansa”? Uma tal antinomia é dificl de conceber, ao menos no
plano puramente humano. Eis uma das maravilhas eternas que se manifesta.
Cabe-nos tentar desvendá-la…

Para iluminar nossa reflexão, o Gênesis deve ser considerado em seu


conjunto; precisaremos então começar pelo… começo!

Este texto revela-se, numa primeira abordagem, como uma sequência


de sucessivos acréscimos. Deus parece criar as diferentes partes do mundo
juntando-as umas às outras em uma ordem cronológica, dando ao universo
e à terra o aspecto que lhe conhecemos hoje em dia… Martinès Pasqually,
no entanto, já tinha dado a chave: são tempos de “operação”. Não é tanto a
cronologia do ato que deve nos interessar, mas sim sua natureza. E desde as
primeiras linhas, tudo se torna diferente… Não devemos perder de vista, para
começar, que esta narrativa sagrada foi escrita por antigos Iniciados cuja visão
de mundo não tinha nada a ver com a visão de hoje. A chave para compreensão
deve ser procurada nas naves de pedra da arte sagrada e religiosa.

Um dos grandes pórticos da imensa Catedral Saint-Marc de Venise, ostenta


desde o séc. XIII um mosaico representando o Gênesis. No interior de três círculos
concêntricos centralizados por um quarto (que nos lembram os quatro mundos
do Quadro Universal de Pasqually: o mundo terrestre, o celeste, o supraceleste
e o divino), pode-se aí observar principalmente Deus em pleno ato de Criação.
Entretanto, esses não são representados evidentemente como acréscimos:
percebemos Deus manejando uma esfera negra que, progressivamente, se separa
e, obedecendo à ordem divina, segue diferentes etapas tais como mencionadas
no Gênesis. Eis então a chave de leitura, e queiram me perdoar este irreverente
anacronismo que ilustra muito bem nosso propósito: “Deus não brinca com
Lego”. Conclusão? Se desejamos realmente apreender a essência do texto que
impregna o Gênesis, é preciso então se interessar pela natureza do ato divino e
não pela sua aparente cronologia.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 32
No primeiro dia, o ponto de partida é uma uniformidade, uma natureza
homogênea e indiferenciada, que se decompõe sob o efeito da divina operação.
Essa homogeneidade não é outra coisa que a luz ela mesma!

1. Para sermos poéticos, digamos que na manhã do primeiro dia tudo era
luz… Depois Deus separou as trevas dessa luz original.

2. No segundo dia, ele diferencia as águas celestes e terrestres.

3. No terceiro dia, é a terra que é separada da água terrestre e depois esta


última que vai ser diferenciada em seu aspecto matricial, já que dá
nascimento aos vegetais.

4. O quarto dia vê a criação de luzes no céu, separando dia e noite.

5. O quinto dia é a criação dos animais aquáticos e voadores.

6. Por fim no sexto dia, aparecem os animais bem como o homem, a quem
se pede dominar a Terra e seus habitantes.

Vamos prestar bastante atenção sobre a natureza do ato de criação nos


primeiros seis dias do Gênesis. Podemos distinguir dois grandes períodos: cada
um de três dias que, apesar de suas aparentes semelhanças são, ao contrário,
radicalmente diferentes em sua “natureza operativa”, como dizia Pasqually.
Esses dois períodos incluem em si respectivamente os três primeiros dias e os
três últimos dias. Por que? Percebemos o que diferencia esses dois períodos
criativos?

No primeiro período, ou seja, nos três primeiros dias, o Divino cria o que
é permanente, essencialmente estável e perene: o céu, a terra, a luz, as trevas,
as águas terrestres e celestes, todos saídos de uma matriz luminosa original.
Na terra aparecem os vegetais, que dão ervas e sementes, árvores e frutos,
segundo sua espécie. Que estabilidade, que perenidade são simbolizadas pelos
vegetais? Para compreender por que este reino é citado, é preciso assimilar as
cosmogonias da época. O vegetal, no espírito de nossos antigos, era a imagem

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 33
da força adormecida, a gestação “do milagre das possibilidades”. O vegetal
simboliza aqui a potência de um princípio-força, que ainda não se consagrou à
ação. É a potência de um princípio matricial que coroa a terra.

Para sintetizar esses três dias, eles aparecem como uma referência eterna,
que avaliza a expressão martinezista “antes dos tempos”. É , no final das contas,
o tempo sagrado que é descrito aqui nesta primeira parte do Gênesis, o tempo
das leis eternas. Acrescentemos que tudo nos leva a pensar que o Criador não
cria, mas faz emanar essa luz eterna.

No quarto, quinto e sexto dias, ao contrário, observaremos que tudo é


diferente na natureza do ato divino. A eternidade, se decompondo, torna-se
numérica e observa uma dualidade. Assim sendo, o tempo e o espaço, tais como
os vivemos, tornam-se indispensáveis. O versículo 16 do capítulo 1 é, sobre isso,
claramente explícito:

“Elohim faz os dois grandes brilhos, o grande brilho para governar o


dia e o pequeno brilho para governar a noite.”

A criação dos animais vem simbolizar o espaço e sua conquista, porque o


Criador ordena a multiplicidade do fundo dos mares aos céus, o que não é o
caso para os vegetais. O reino animal representa aqui, sem dúvida, a aplicação
das leis fundamentais da vida, formando todos os instintos que encontram sua
origem na Sabedoria Divina. Se nos referíssemos à linguagem do Tratado da
Reintegração, poderiamos falar de “culto”, no mesmo sentido que Pasqually o
empregava, sobre seres espirituais emanados do Criador, sendo o “culto” nesse
caso a aplicação de leis servindo para preencher uma função, não comportando,
entretanto, nenhuma margem de liberdade individual. Vemos através destes
três dias a “criação da ação”. Deus insufla no seio da Criação o movimento e a
dinâmica. Uma leitura atenta nos mostrará que ao contrário da primeira trindade
de dias, esta aqui se inscreve muito mais nos atos de criação e não de emanação.

Esta breve análise e o simbolismo dela emanado, demostram que estes seis
dias corporificam admiravelmente, mas de maneira velada, as forças do símbolo
martinista, a união divina dos contrários, na imbricação destes dois triângulos

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 34
formando os seis dias do começo do mundo. Estes seis dias terminaram? Falta
Adão, falta a humanidade.

Adão, que aparece no sexto dia, recebe uma missão bem particular, traduzida
no Gênesis por “dominar a terra inteira”. Ele deve, dessa maneira, ter na Criação
uma ação voluntária, não somente consciente, mas disciplinada. A consciência
do homem deve, tal como a flecha de sagitário, estar direcionada a um objetivo
divino.

Tão logo enunciado, e provavelmente para guiá-lo nesta liberdade, o Criador


lhe dá então todo o reino vegetal como alimento e não por acaso… O homem é
dotado de um poder suplementar frente a todas as outras criaturas: ele pode e deve,
como acabamos de ver, ter um papel ativo voluntário no universo para cumprir
uma missão. Contudo, como um ser livre e criador, ele pode, como sublinham os
ensinamentos, se perder nos meandros de seu próprio poder, nas consequências
de sua própria força. Deve então, para ser bem sucedido, se alimentar do princípio
estável representado pelo vegetal, quer dizer, do “tempo sagrado”.

Dito de outra forma, adotando o ponto de vista espiritual, ele deve agir sobre
o plano terrestre se nutrindo regularmente das luzes do mundo celeste, a fim
de ali revelar os princípios do poder divino. Ele mostrará depois os caminhos
aos seus irmãos e irmãs humanos, condição sine qua non de sua reintegração
e da reintegração da Natureza. Neste caso, teria Deus podido parar na manhã
do sétimo dia, considerando que sua obra terminara? Parece que não. Não
obstante, o capítulo 2, versículo 2, refere que “Elohim acaba no sétimo dia a
obra que havia feito”.

Apesar do grau de respeito ao Antigo Testamento que lhe devota, Saint-


Martin não avaliza a ideia de que este mundo esteja terminado. O Criador
repousaria enquanto sua criação permanece inacabada e gemendo de dores?
Após ter analisado a Criação e os planos ali introduzidos, é preciso agora
debruçar-se sobre a natureza desse repouso para compreendê-lo. Mais uma vez,
vamos em busca da chave. Não nos interessa o ato de repouso em si, mas a sua
“natureza operativa” . Este período de ausência divina serviria a algum objetivo?
E qual seria ele?

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 35
Se o grande iniciado Moisés nos confiou o texto do Gênesis e a Cabala, é
talvez no coração das práticas religiosas mosaicas que poderemos encontrar o fio
de Ariadne. Não podemos evocar o sétimo dia da Criação sem imediatamente
pensar em uma prática milenária: o Shabbat. Na religião judáica, o sétimo
dia, repouso do Criador, é respeitado sob a forma de um período particular
durante o qual numerosas ações cotidianas são regidas estritamente e algumas
até mesmo proibidas. Se na prática exotérica o shabbat é o momento de regozijo,
ele é, no esoterismo, de importância capital para a transformação da natureza
interior do homem, assim como para a edificação de sua catedral interior sob
sólidas fundações espirituais e cósmicas.
Os planos originais estão nesse “tempo sagrado”. Voltar a ele regularmente pela
oração, pela meditação, pela disciplina de sua consciência, permite incessamente
o poder de reajustar o objetivo. De outro modo, sucede como depois da Queda:
o homem sente mas esquece e, em sua mais negra inconsciência, se desvia de
sua missão primeira e do seu glorioso destino. Seu poder não está mais a serviço
do Criador. Além disso, a etimologia da palavra “shabbat” significa “guardar” ou
“se lembrar”. E o homem, por sua natureza quaternária, é o guardião dos planos
do Grande Arquiteto. O shabbat divino serviria ao homem para rememorar sua
missão celeste e, na afirmativa, com que objetivo?

Para alguns de seus Mestres, a Cabala fala do shabbat, do “repouso”, como de


uma “consagração”, quase mesmo uma “santificação”. Ora, é exatamente porque
pode-se considerar que aquilo que é santo deve ser separado. Para se convencer
disso, só é necessário retomar o simbolismo do grande Templo de Jerusalém.
O Santo dos Santos estava separado do resto do Templo; a multidão exotérica
não podia ali penetrar. Só os Iniciados podiam, por seu grau de consciência
espiritual, penetrar e realizar ritos precisos porque, enquanto conhecedores, eles
sabiam que nenhum gesto era anódino, o menor deles fazia ressoar a Eternidade,
fonte borbulhante do “tempo sagrado”.

Os gestos inconscientes, automáticos, ali não têm lugar. A santificação


exige um culto ao Divino em toda consciência, livre, uma vontade de fazê-lo
de corpo e alma. Ainda que não seja esse o foco de nossa proposta, é provável
que encontrássemos aqui um elo com a prática dos sacrifícios de animais nos
templos, práticas aliás consideradas caducas pela graça divina da encarnação de
Ieschouah, segundo sua palavra escrita nos Evangelhos.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 36
O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 37
Como vimos, os animais rendiam ao Criador um “culto”, isto é, o cumprimento
das leis decretadas, sem margem de libertade. Mesmo Saint-Martin dizia a esse
respeito, no “Ministério do homem-espírito”, que o animal, por sua sabedoria
inata, rendia melhor seu culto ao Divino que a própria humanidade. Seu amor
profundo pelos humanos não o fazia desacreditar seu próximo em favor do
animal, mas lamentava – e nós o compreendemos enquanto discípulos de seus
ensinamentos –, que o homem não fosse mais espiritual e que não se esforçasse
em seu serviço pelo ministério. Voltando rapidamente aos sacrifícios, matar
o animal era fazer morrer a parte inconsciente, instintiva ou automática, para
fazer entrar na parte consagrada do Templo a natureza humana em sua mais
pura origem, com o manto do Divino e a máscara de sua igualdade original
entre irmãos e irmãs de uma mesma família.

A consciência dessa santificação fraternal e espiritual torna santo aquele


que é seu depositário em nome de suas práticas e seus estudos, o estado ideal
sendo o de viver essa conciência de maneira permanente como uma beatitude
no sentido mais sagrado. Enquanto que as práticas martinistas podem fazer
reviver este retorno à fonte primeira, torna-se um dever mergulhar novamente
no mundo profano e afastar-se, mesmo que por pouco tempo, dessa fonte de
arrebatamento interior.

Essa separação seria assim necessária para um retorno mais luminoso,


visando uma consagração voluntária. Aliás, talvez seja o tipo de separação da
qual trata o Gênesis quando o repouso do Criador é mencionado. Ainda que
paradoxal, não é absurdo considerar essa separação como uma possibilidade de
santificar o conjunto da Criação, já que o Divino deve voltar a atuar na Criação,
e evidentemente, não de qualquer maneira…

Voltemos à Cabala para compreender e desta vez interessemo-nos pelas


letras do alfabeto hebraico.

Tradicionalmente é a sétima letra do alfabeto hebraico que simboliza o


shabbat, o sétimo dia , sendo ZAYIN esta letra. Frisamos desde já que ela é uma
letra de poder. É representada pelo desenho de uma arma cortante. Uma arma,
como vocês o sabem é, desde os tempos mais antigos, um símbolo de poder.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 38
Infelizmente, porém, muito raramente foram mãos dotadas de uma consciência
plena que manejaram essas armas, transcendendo os automatismos do aspecto
mais sombrio da natureza humana… Eis aí um trabalho para servir à causa da
reintegração. No plano espiritual zayin simboliza a ideia de penetração incisiva
de uma força, de uma vontade. Neste caso ela pode ser lida zeyin, que significa
“armar”. Armar a mão? Claro que não: armar a consciência do homem para seu
combate espiritual contra as forças sombrias que estão nele.

Como acabamos de mencionar, essa vontade deve ser conscientemente


disciplinada e dirigida a um objetivo de harmonia com o coração da Criação.
Como? Zayin detém a resposta e nos remete, vamos vê-lo, à necessidade da
lembrança divina.

Zayin em hebraico contém a raiz zon, que significa “se nutrir” . Em um


plano simbólico, o Antigo Testamento contém inúmeras alusões ao fato de que
o Eterno “nutriu” seu povo com coisas de ordem celeste. No sentido espiritual,
isso nos remete à essa diretriz do Criador no sexto dia, intimando o homem a
se alimentar do “reino vegetal”, alimentando sua alma e seu espírito das luzes
divinas. Na Cabala, segundo alguns autores, a força desta letra de poder reside na
sua pronúncia absolutamente peculiar. É um duplo indício que nos aproxima da
boca do homem, e isto não é sem significado. O simbolismo do corpo humano
é uma decodificação de toda a Criação. No caso de zayin, que evoca a boca,
consideraremos os maxilares e a língua para nossos objetivos.

Os maxilares, coroados pelos dentes, são o reflexo exato um do outro, num


aspecto que poderíamos qualificar de “contrário”. Ligando-os por linhas retas a
alguns dentes, estudantes viram nele um pantáculo oculto.

Os contrários se contemplam, se tocam, mas não se interpenetram.


Representam na mística o tecido dos dois mundos: o visível para o maxilar
inferior e o invisível para o maxilar superior. Um está mais próximo do abdomen
e o segundo mais próximo da cabeça e representam, dessa maneira, uma parte
do aspecto triplo do homem. Como vocês sabem, o aspecto triplo é simbolizado
respectivamente pelo abdômen, ilustrando a ação no plano terrestre e o
Supraceleste pela cabeça que corresponde ao espírito. “Você cita apenas dois”,

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 39
me dirão vocês! Sim, porque a pronúncia de zayin simboliza o terceiro aspecto,
aquele que corresponde ao tórax.

Pronunciar zayin exige um certo treino, até mesmo uma certa educação
da boca. Segundo certos cabalistas, uma pronúncia certa obriga a colocar a
extremidade da língua entre os dentes de uma maneira tão hábil que é preciso
repetir inúmeras vêzes. Representações na mística cristã ilustram isso de
maneira notável, mostrando o aspecto universal da Tradição. Elas incluem na
boca de um santo, por exemplo, a presença de uma espada. Ora, como acabamos
de ver, zayin tem a forma de uma arma cortante… É o que encontramos, aliás,
no Apocalipse de São João, capítulo1, versículo 13: “Em meio a candeeiros, um
semelhante a Filho de homem” e o versículo 16 precisa “ de sua boca sai uma
espada de dois fios, seu rosto brilha como o sol resplandece sua força”. Esta letra
zayin, que representa o shabbat divino, o sétimo dia, só pode ser pronunciada de
maneira perfeitamente correta se nos aplicarmos com afinco à sua pronúncia.
Não está aí, num certo sentido, a busca de uma palavra perdida? Como não
fazer uma ligação imediata com o Logos, o Verbo?

É então o terceiro aspecto da “trindade da natureza humana” que está


representado: é mais uma vez a vontade, que corresponde ao tórax, e logo ao
coração do homem. Além do mais, isso nos lembra também nossa missão
original tal como o Criador nos tinha definido, porque na ressonância dos
mundos a imensidade celeste corresponde ao tórax do homem, lá onde reina
a fonte cardíaca do amor. Nossa primeira missão era a de trazer de volta os
anjos rebeldes pela via do amor, ajudados por Ieschouah… Não foi no interior
da Imensidade celeste que eles foram aprisionados? Que caminho mais seguro
para sua redenção na misericórdia divina poderiam eles adotar que não o do
coração do homem, trabalhando ele também, através deste ato de amor, à sua
própria reintegração?

Percebemos finalmente que o repouso do Divino, seu afastamento da


criação terrestre, serve finalmente a esta causa universal: permitir ao homem
reconquistar seu ministério. A separação aparece aqui em toda sua espiritual
finalidade. Se ainda fosse preciso confirmar isso, é a própria letra que pode nos
responder pelo seu valor numérico:

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 40
Zayin em seu valor pleno representa 67

Em sua soma teosófica 6 + 7 = 13

3 + 1 nos dando 4

Dessa forma, a letra nos remete à Imensidade Supraceleste por seu valor
quaternário. Qual é, segundo os ensinamentos martinistas, a única criatura no
plano terrestre que tem a natureza quaternária e que pertence à família dos seres
espirituais emanados?

Para concluir esse breve estudo do Gênesis e de sua relação com o shabbat,
ele pode nos permitir compreender a que ponto nós carregamos uma
responsabilidade mística, tanto em relação à grande família humana quanto em
relação a Deus ele próprio. Podemos compreender aqui que se finalmente ele se
retirou, foi porque por sua grande benevolência ele deixou ao homem de desejo
a possibilidade de se expressar, para se reabilitar livre e voluntariamente em sua
verdadeira natureza espiritual. É um imenso ato de amor da parte do Eterno em
nossa intenção.

Ilustrações:
p.30 Menorah de uma Bíblia Sefardita do séc.XIII (British Library);
p. 37 “A criação dos animais” MINDEM VON BERTRAM (1345-1415)

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 41
Carta de
Augustin Chaboseau
à Charles Barlet

O
documento que reproduzimos a seguir foi extraido dos arquivos da
Tradicional Ordem Martinista. Trata-se de uma carta-resposta enviada
por Augustin Chaboseau (1868-1946) a um destinatário que não é
designado. Esta carta, proveniente da venda de um lote de arquivos de Charles
Barlet (1838-1921), é provável que lhe tenha sido endereçada. O documento
não está datado, no entanto o texto de Augustin Chaboseau, fazendo referência
ao Ensaio sobre a Filosofia Budista (Essai sur la philosophie boudhique), obra
que ele havia publicado em 1891, torna possível situar esta carta num período
ligeiramente posterior a essa publicação.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 42
Esta carta se situa então em uma época em que o Martinismo começa
a se organizar graças aos esforços conjugados de Papus e de Augustin
Chaboseau. Assim como os dois, Charles Barlet (François Charles-Albert
Faucheux) é um dos membros do Supremo Conselho da Ordem Martinista.
Erudito e mais velho que a maior parte dos outros membros – ele tem
cinquenta e três anos enquanto Papus só tem vinte e sete e Chaboseau
vinte e três – Barlet às vezes faz figura de mestre ao lado de seus jovens
amigos. Ainda que seu papel se conserve discreto na Ordem Martinista, ele
permanece sendo um dos personagens mais influentes dos meios ocultistas
do fim do século XIX e do início do XX.

O documento que reproduzimos aqui mostra que, em 1891, Augustin


Chaboseau tenta, não sem dificuldades, viver de sua pluma. Sua carta evoca
as contrariedades que acarreta esta situação. Ele confia a seu interlocutor
que graças ao apoio de seus amigos, Papus e Lucien Lejay, consegue enfrentar
essa penosa situação. Anuncia a seu correspondente a saída iminente de seu
último livro, “O misticismo contemporâneo”( Le Mysticisme contemporain) ,
que deve ser publicado pela Editora Alcan na coleção “Biblioteca de Filosofia
Contemporânea” (Bibliothèque de philosophie contemporaine). Precisa ainda
que esta obra menciona o Martinismo, os espiritualistas, os teósofos, os
neo-cabalistas, os neo-cristãos, os alquimistas... Este livro foi impresso?
Não encontramos traços nem dele nem dos outros projetos anunciados a
Charles Barlet.

A carta nos permite entrar na intimidade de um personagem que tem


um papel particularmente importante na história do Martinismo. Augustin
Chaboseau, co-fundador da Ordem com Papus, terá nas mãos o destino do
Martinismo depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Tendo a morte de
Papus provocado uma dispersão na Ordem, é ele que a reorganizará sob o nome
de “Tradicional Ordem Martinista”, da qual será Grande Mestre de 1931 a 1946.

A redação

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 43
Caro Mestre,
Acabo de receber seu cartão. Estou comovido que o senhor não me tenha esquecido
e não guarde rancor pelo meu silêncio, e ao mesmo tempo envergonhado por ter
permanecido tanto, tanto tempo sem lhe dar sinal de vida. Acredito compensar
alguns destes dias por uma carta que será uma verdadeira brochura sem dúvida,
porque tenho uma infinidade de coisas a lhe dizer, e uma multidão de conselhos a
solicitar de sua indulgente benevolência . Enquanto isso, mando-lhe esta.
O que me impediu de lhe escrever foi um encadeamento ininterrupto de
vicissitudes materiais, acidentes de saúde, trabalhos insanos para viver – ah!
bem bem sei eu! – e do qual saio somente a esta hora! Devo dizer que o apoio
moral e muitas vezes material destes admiráveis amigos que são Papus e Lejay,
contribuíram em muito para me impedir de naufragar.
Além do trabalho que me impõe uma modesta situação na “Petite République”
(Goblet – Lockray – Milbrand – Malon) e os compromissos com folhetins, traduções,
livros de (palavra ilegível) para crianças, tudo coisas mal pagas, mas enfim pagas,
e muito distantes da arte e da filosofia, o que faz com que não se possa assiná-las
com seu nome. Eu pude dar à Alcan, que me havia encomendado para a Biblioteca
de Filosofia Contemporânea (Bibliothèque de philosophie contemporaine), um
livro intitulado “O Misticismo Contemporâneo” (Le mysticisme contemporain).
Será publicado em uma semana e assim que sair o senhor receberá, e será obrigado
a me dar sua opinião claramente, como o senhor teve a bondade de fazer com o
miserável “Buddhisme”.
Eis os capítulos:
1. Os Martinistas 2. Os Espíritas e Modernos Espiritualistas 3. Os
Swedenborguianos 4. Os Teosofistas (o senhor, St. Yves) 5. Os neo-budistas 6. Os
neo-cabalistas 7. Os Martinistas 8.Os Adivinhadores 9. Os Neo-gnósticos e os
Alquimistas (Doinel, Poisson, Tiffereau) 10. Os neo-cristãos (Péladan,Jhourney)
11. Os “Salutistas” 12. Os socialistas sentimentais (os últimos Fourieristas, St
Simonistas , Maçons místicos, etc).
Acredito que será publicado um volume de novelas que acabei de escrever;
estou em conversação com Perrin sobre o livro, do qual não sei ainda o título e que

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estudará: 1. Paracelso; 2. Boehme; 3. Swedenborg; 4.Saint-Martin; 5. Saint-Simon;
6. Fourrier (sic) e 7. Wronski. Os números 2, 3, 4 e 6 estão prontos. Suplico-lhe não
falar nada sobre isto a quem quer que seja, nem mesmo a Papus. Eu lhe direi o
porquê em minha próxima (carta).
Igualmente em conversação:
1º com Rainwald, seja para um “Tratado de Fakirismo” (Traité de Fakirisme),
segundo os originais (a primeira palavra ainda nem está no papel), seja para um
livro sobre Lemúria e Atlântida (a documentação está toda terminada).
2º com Alcan, para 1894, na “Biblioteca de Filosofia Contemporânea”
(Bibliothèque de philosophie contemporaine), uma “Filosofia do Paganismo”
(Philosophie du Paganisme); 1º Orfeu, Pitágoras e os Mistérios; 2º Sócrates,
Platão e Aristóteles; 3º Plotino, Porfírio e Jâmblico. A terceira parte está pronta há
um ano. É simplesmente uma reformulação das três introduções que Guimet me
pediu para as três obras que sairão nos “Anais” de seu Museu, tradução das obras
completas (o que ainda não foi feito em nenhum idioma), de Jâmblico, Porfírio e
Plotino. Dois terços de Jâmblico já estão prontos.
Como o senhor pode ver, não estou brincando em serviço. Talvez assim desculpe
meu silêncio que, aliás, conto romper a partir de agora a ponto de temer que logo
logo seja o senhor a se queixar do excesso contrário.
Creia-me, querido Mestre,
do todo seu em emoção e razão,
Augustin Chaboseau
Vanves,10 Rue Raspail
(Seine)

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Documento TOM

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Documento TOM

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Gérard Anaclet Vincent
Encausse (Corunha, Espanha,
13 de julho de 1865 — Paris,
França, 25 de outubro de
1916), mais conhecido pelo
pseudônimo de Papus, foi um
médico, escritor, ocultista,
rosacrucianista, cabalista e
maçom. Fundou com Augustin
Chaboseau o Martinismo
moderno.

O Pantáculo – Nº 20 – 2012 – 52

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