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A CONDIÇÃO HUMANA EM HANNAH ARENDT E O TRANSUMANISMO:

ASPECTOS ONTOLÓGICOS

Joici Antônia Ziegler1


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo, tem por objetivo realizar uma análise e um contraponto, a partir do
conceito de Condição Humana desenvolvido por Hannah Arendt e o transumanismo. Arendt,
em sua obra, evidencia aquilo que é mais prescindível para que a humanidade seja assim
conceituada. Não há como destoar ou dissociar Condição Humana de Transumanismo, aqui
colocados como um condicionante e necessário para o outro. Para haver transumanismo,
precisa existir humanismo primeiramente, e este possui uma condição – a humana. A
abordagem do texto irá recair sobre a singularidade dos homens e a liberdade que lhes é
própria, no qual Arendt projeta um tratamento sistemático, que se desenvolve por meio do que
ela denomina de vita activa – em oposição a vita contemplativa. O transumanismo, sendo
considerado como uma vertente ligada ao desenvolvimento e evolução do corpo humano pelo
uso da tecnologia avançada

DESENVOLVIMENTO

1. A Condição humana em Hannah Arendt

O século XX foi marcado na história por algo devastador – guerras.


Tanto a primeira como a segunda guerra mundial deixaram um ponto que
jamais será esquecido. O holocausto - período histórico lamentável, que é
citado de forma mundial, trouxe grandes lições para a humanidade. Nesse
período histórico se destacaram grandes personagens intelectuais, e dentre
eles – Hannah Arendt. A filósofa nasceu em 1906, na Alemanha, doutorou-se
em filosofia, vivenciou os horrores da guerra, se exilou em outro país, e a partir
de então dedicou sua vida a desenvolver teorias que pudessem explicar o que
1
Advogada; Docente; Mestra e Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação
Strictu Sensu em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões – URI – Santo Ângelo/RS. Licenciada em Filosofia pela UNINTER; Pós-Graduada
em Filosofia na Contemporaneidade pela URI; Cursando Licenciatura em Letras na
UNINTER. E-mail – joiciantonia@yahoo.com.br
ocorreu nos períodos que são considerados os mais assombrosos dos últimos
tempos.

Após o final da segunda guerra mundial, muitas questões vieram à tona


diante de tamanha barbárie. Nesses reflexos do pós-guerra, Arendt escreve
sua obra prima, entre os anos de 1945 e 1949, assim considerada por alguns
estudiosos, a qual intitulou de As Origens do Totalitarismo - livro que ficou
conhecido como a gênese das obras de referência nesse tema e se
transformou em um clássico da filosofia política, embora a autora não
perseguia a ideia de ser reconhecida como ligada à política. O livro foi
originalmente publicado em 1951, onde a autora elenca ensaios escritos com
títulos que o dividem em: Antissemitismo; Imperialismo e Totalitarismo.

No ano de 1957, Arendt publica outra obra de destaque no cenário


mundial – reflexiva ainda, com a perda da humanidade ocorrida na guerra,
Arendt transporta seus sentimentos para o papel ao compor palavras, linhas e
parágrafos acerca de sua percepção do que é o ser humano e sua condição
humana – aquilo que é inerente e caracteriza o ser humano enquanto tal. Na
obra A Condição Humana – que Arendt planejava intitular Amor Mundi (amor
ao mundo), título diretamente relacionado a uma concepção agostiniana,
lembrando que Arendt escreveu sua tese de doutorado sobre a concepção do
amor em Santo Agostinho.

Após Arendt se consagrar com a obra As Origens do Totalitarismo, no


ano de 1951, embora tenha causado polêmica, lançou a autora no cenário
político e filosófico mundial. Já no ano de 1958, Arendt não deixou por menos e
publicou A Condição Humana, que será destaque aqui em vários pontos que
fazem conexão com o transumanismo.

Não há como destoar ou dissociar Condição Humana de


Transumanismo, aqui colocados como um condicionante e necessário para o
outro. Para haver transumanismo, precisa existir humanismo primeiramente, e
este possui uma condição – a humana. A abordagem recaí sobre a
singularidade dos homens e a liberdade que lhes é própria, no qual Arendt
projeta um tratamento bem sistemático, que se dá por meio do que ela
denomina de vita activa – em oposição a vita contemplativa.
No início da obra, a visionária autora já evidencia essa conexão, não usa
a palavra transumanismo, no entanto, traça linhas que nortearam e conduziram
ao transumanismo. Para Arendt, (2017, p. 2) “os homens não tardam a
acompanhar as descobertas da ciência e o desenvolvimento da técnica, e
ajustar-se a eles, mas, ao contrário, estão décadas à sua frente”. Arendt parte
de uma frase, emblemática para ela, mencionada por um cientista russo, onde
refere que “a humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra”.

Arendt, já em 1958 prevê que a técnica unida à vontade do ser humano


de transigir alguns limites que até então eram vistos como ultrapassáveis e
nessa toada, com clareza, expõe que (ARENDT, 2017, p. 2):

O artifício humano do mundo separa a existência humana de todo


ambiente meramente animal, mas a vida mesma permanece fora
desse mundo artificial, e por meio da vida o homem permanece ligado
a todos os outros organismos vivos. Desde já algum tempo um
grande número de investigações científicas tem buscado tornar
“artificial” também a vida e cortar o último laço a manter o homem
entre os filhos da natureza. O mesmo desejo de escapar do
aprisionamento à Terra manifesta-se na tentativa de criar a vida em
uma proveta, no desejo de misturar, “sob o microscópio, o plasma
seminal congelado de pessoas de comprovada capacidade, a fim de
produzir seres humanos superiores”, e “alterar (-lhes) o tamanho,
forma e a função”; e suspeito que o desejo de escapar à condição
humana também subjaza a esperança de prolongar a duração da vida
humana para além do limite dos 100 anos.

Arendt, esteve além do seu tempo, prevendo há muito tempo as


inovações que hoje são realizadas no corpo humano. No entanto, a autora
chama a atenção para que com tantas e abrangentes pesquisas a
característica inerente do humano que é Ser Humano seja transgredida e
transformada também em algo artificial e por seu turno prejudicar a vida
orgânica na Terra. Nesse viés, Arendt (2017, p. 3), questiona se:

A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso


conhecimento científico e técnico, e essa questão não pode ser
decidida por meios científicos; é uma questão de primeira grandeza,
cuja decisão, portanto, não pode ser deixada a cientistas profissionais
ou a políticos profissionais.
Arendt, já em meados do século passado, atenta para essa
metamorfose ou para “esse homem do futuro, que os cientistas nos dizem que
produzirão em menos de um século, parece imbuído por uma rebelião contra a
existência humana como ela tem sido dada”. E a partir de então se insere no
debate o viés humano, o qual já se coloca em xeque, há cerca de 70 anos
atrás pela autora.

A filósofa, também demonstra e empreende uma crítica acerca dos


efeitos destrutivos que o ideal de abundância, de querer expandir em todos os
sentidos, e por via direta atinge tanto o meio ambiente quanto o ser humano.
Arendt (2022, p. 144), afirma que:

A possibilidade introduzida pelo contínuo desenvolvimento da


automação permite-nos indagar se a utopia de ontem não terminará a
ser a realidade de amanhã até que a humanidade, inteiramente
“libertada” dos grilhões da dor e do esforço, pudesse livremente
“consumir” o mundo inteiro e produzir diariamente o que desejasse
consumir. A quantidade de coisas que apareceriam e desapareceriam
a cada dia a cada hora no processo vital de tal sociedade, seria, na
melhor das hipóteses irrelevante para o mundo, caso este e seu
caráter de objeto pudessem suportar o temerário dinamismo de um
processo vital inteiramente motorizado.

Na obra A Condição Humana, Arendt, já no início do texto, realça uma


divisão importante. Para a autora, a condição humana não é a mesma coisa
que natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que
o homem impõe a si mesmo com o objetivo de sobreviver, e essas condições
possuem o condão de suprir a existência do homem, variando de acordo com o
lugar e o momento histórico do qual o homem é parte integrante.

Nesse sentido, todos os homens são condicionados, até mesmo aqueles


que condicionam o comportamento de outros tornam-se condicionados pelo
próprio movimento de condicionar. Sendo assim, somos condicionados por
duas maneiras, quais sejam: primeiramente somos condicionados por nossos
próprios atos, por meio daquilo que pensamos, do que sentimos, nos aspectos
subjetivos e internos do condicionamento; em segundo, pelo contexto histórico
que vivemos, a cultura, os amigos, a família; que são caracterizados como
elementos externos do condicionamento.
Para complementar, a filósofa elenca, como já mencionado, e também
organiza e caracteriza a condição humana em três aspectos essenciais,
fundamentais para uma vida activa, sendo que para cada uma delas
corresponde uma das condições básicas sob as quais a vida foi concebida e
dada aos homens. São eles, o trabalho, a obra e a ação. Nas palavras de
Arendt (2017, p. 09):

O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do


corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e
resultante declínio estão ligados às necessidades vitais produzidas e
fornecidas ao processo vital pelo trabalho. A condição humana do
trabalho é a própria vida. A obra é a atividade correspondente à não-
naturalidade (unnaturalness) da existência humana, que não está
engastada no sempre-recorrente (ever-recurrent) ciclo vital da
espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. A obra
proporciona um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de
qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras é obrigada cada
vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a
transcender todas elas. A condição humana da obra é a mundanidade
(worldliness). A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os
homens, sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à
condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o
Homem, vivem na Terra e habitam o mundo.

O que se denota da leitura do texto transcrito acima é que as três


atividades e suas respectivas condições possuem uma relação com as
condições tidas como gerais para a existência humana, ou seja, o nascimento
e a morte, a natalidade e a mortalidade. A condição humana compreende algo
mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são
seres condicionados, ou seja, tudo aquilo com a qual eles entram em contato
torna-se imediatamente uma condição de sua existência. A objetividade do
mundo e a condição humana complementam-se uma a outra, por ser uma
existência condicionada.

Em assim sendo, tem-se que a existência humana seria praticamente


inviável, ou até mesmo impossível sem as coisas, e estas, por sua vez seriam
um monte de artigos incoerentes, um não mundo, se esses artigos não fossem
condicionantes da existência humana.
A questão da técnica em Martin Heidegger os prospectos para o futuro do
homem

Em princípio, remonta-se ao sofista Protágoras (séc. V a.C.) a célebre


frase “o homem é a medida de todas as coisas”. Não fazendo registro ao
interregno cristão, ao que se tem noticiado, provém do período clássico a
origem e referência ao humanismo moderno e ao que dele deriva. Immanuel
Kant (1724-1804), trouxe uma dúvida que paira no ar e no semblante dos
filósofos acerca dessa proposição. A partir de Kant, se propõe um pensamento
humanista moderno debruçado em uma pergunta objetivamente clara: o que é
o homem?
A pergunta acerca do que é o homem também foi levantada por
Friedrich Nietzsche, que por sua vez, conforme Francisco Rüdiger (2011, p.
12), “antes de Heidegger, Nietzsche é quem realmente inaugurou um campo de
pensamento trans-humanista ou pós humanista”. Contrapondo a questão
humanista com a transumanista, Heidegger, leitor de Nietzsche chamou a
atenção para a pergunta e colocando algumas balizas para frear esse
pensamento em que se pode traduzir em “como poderemos sacrificar a
evolução do homem de modo a favorecer a produção de uma espécie superior
à do homem? ”Nietzsche, Vontade de Poder)
Na concepção de Zaratustra, de Nietzsche, o homem deve buscar ir
além da sua inicial condição de homem, superando a si mesmo, sendo que
essa é a sua real condição na história. Para Nietzsche (Zaratustra, prólogo 4),
“o homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem”.
Rüdiger (2011, p. 12), após traçar um histórico acerca da conceituação
da ideia de humanismo, traz à baila o que se destaca no momento atual:

Derivação plebeia e rude ideia encontra-se hoje nos porta-vozes da


tecnocultura contemporânea, segundo os quais o sujeito humano será
sublimado pela máquina e convertido em organismo cibernético. Para
um grupo relevante de pessoas com formação científica (técnologica,
na verdade), está na hora de pensar se não podemos levar uma outra
forma de existência, após a mesma ser transferida para uma rede
artificial, através da substituição das células cerebrais por circuitos
eletrônicos e conexões funcionais semelhantes. Quem sabe,
defendem, pode estar a nosso alcance livrar a mente das limitações
do corpo muito frágil em que ela está alojada.
Heidegger adotou uma posição intermediária entre o humanismo, que
por certas vezes criticou, no entanto, não se posicionou a favor do super-
homem. Na análise de Rüdiger (2011, p. 12) sobre a posição de Heidegger em
contexto, afirma que:

Em sua visão, somos seres aos quais está interditado o próprio


conhecimento e, por isso, somos algo que só em parte é humana e
que, embora corra perigo, não irá se esgotar na tecnologia
maquinística, salvo na hipótese de destruição. Nenhum de nós pode
saber com certeza o que somos, o que é o homem, se ele é uma
transição, um sentido, ‘uma tempestade que varre nosso planeta, um
retorno ou um enfado para os deuses’.

Seguindo no viés da concepção da técnica e no tocante ao seu


envolvimento diretamente relacionado e entrelaçado com o ser humano,
Rüdiger (2011, p. 14), destaca que:

Desde bom tempo, verifica-se que a técnica, encarnada primeiro no


homem, mas, em seguida, na máquina e agora em redes de
maquinismos com que, enredados, formamos um novo mundo,
acabou se tornando uma força tracionadora de toda a existência.
Pensá-la através de Heidegger significa extrapolar as hipóteses mais
extremas em curso nesse contexto e indagar de onde provém sua
hegemonia e valorização, de onde vem seu imperialismo planetário,
sem sucumbir, em sua propaganda, mas também sem temor
humanista e reacionário. Significa procurar onde se origina seu apelo
silencioso, fascinante e perturbador aos olhos da humanidade. Em
suma, perguntar qual é a essência ou sentido desse poderio, à luz de
uma reflexão histórica e filosófica.

Heidegger é um autor que tende a ser visto e reconhecido, como um


filósofo da técnica, devido ao fato de ter buscado nas suas raízes as
concepções acerca da técnica, pode-se afirmar, que o mesmo, deve ser visto
como o pensador que vai na essência propriamente dita da técnica, pois para
Heidegger, nas palavras de Rüdiger (2014, p. 23) “o sentido da técnica não é
algo técnico”. Diferentemente do que parece representar a técnica vai muito
mais além do que a simples condição de ente e coisa que parece demonstrar.
No que concerne ao ponto de vista moderno e mais utilizado, tem-se
que a filosofia da técnica causa uma impressão ambígua até, eis que em
tempos modernos, técnico representa aquilo que justamente exclui a reflexão –
a filosofia. Nesse sentido, a técnica é um liga/desliga, opera/não opera,
produz/não produz, sabe/não sabe, uma maquinação evidenciada, sendo que
mesmo que ocorram problemas estão ali para serem solucionados justamente
pela técnica enquanto mecânica.
Com essa força “tracionadora”, mencionada por Rüdiger, Heidegger já
trazia sua preocupação quanto ao fato de a técnica ser capaz de ressignificar a
vida humana na terra. Heidegger (Holzwege, p. 336), antevia que “o ser
humano está a ponto de se apoderar da totalidade da terra em sua atmosfera,
de arcar e obter para si, sob a forma de forças, o escondido reino da natureza e
submeter o curso da história à planificação e à ordem de um governo terrestre”.
A partir de então, o autor, passa a tecer questionamentos, mesmo não se
posicionando nem a favor e nem contra esse processo de tecnicização. Em
Contribuições (2015, p. 194), Heidegger atenta para que:

Será a tecnicidade a passagem histórica para o término, a derradeira


queda do home na condição de animal tecnificado e que, assim,
perde inclusive a animalidade originária que o ligava aos demais,
como um abrigo e, assim, algo capaz de servir de fundamento para
[repensar e levar] nossa existência?

Definição de TCHENE: (grego, “arte, “ofício”), habilidade humana


baseada em princípios gerais e que pode ser ensinada. Nesse sentido, uma
habilidade manual como carpintaria é uma techne, mas também o são as
ciências tais como medicina e aritmética.
Jean Pierre Dupuy (2017, p. 46), enuncia uma consequência do uso
alargado da tecnologia em seres humanos e afirma que “pela primeira vez
Deus tem um rival”, eis que:

As tecnologias convergentes pretendem substituir a natureza e a vida


e se tornar os engenheiros da evolução. Evolução que, até agora,
consiste em fundamentalmente uma simples “bricolagem”. Ela pode
imobilizar-se em caminhos indesejáveis ou impasses. É por isso que
o homem pode ser tentado a tomar seu lugar e se tornar o designer
dos processos biológicos e naturais. O homem pode participar da
fabricação da vida.
Nesse viés de construção e fabricação da vida, tem-se como destaque a
importância e a atualidade sobre o tema do transumanismo que está crescendo
no cenário mundial em termos de pensamento contemporâneo. É notório que o
desenvolvimento estrondoso da técnica e da antropotécnica2 – na versão de
Peter Sloterdijk, estão presentes e avançam a passos largos e não há meios
para frear. A técnica está posta e precisa necessariamente ser discutida
academicamente e por toda sociedade.

O transumanismo é apenas um segmento das mutações que passam a


ocorrer na atualidade. O tema é assunto da obra intitulada A Morte de Morte de
Laurent Alexandre, médico cirurgião francês e pesquisador - que se encontra a
frente das pesquisas da empresa DNAVision – líder europeu em genética e
genoma, vai a fundo no assunto e assim expressa (ALEXANDRE, 2018, p. IV):

O irresistível avanço das biotecnologias, porém, já estão ocorrendo.


Suas consequências sobre o homem e sobre a própria natureza da
vida humana não terão comparação com todas as mudanças
econômicas que se anunciam e sobre as quais temos praticamente
um excesso de informação. Esta revolução mereceria um encontro
mundial pelo menos tanto quanto o aquecimento climático, ou ainda
mais.

É fato que os progressos genéticos, as nanotecnologias, as máquinas


auxiliando os homens, a explosão dos robôs e sua utilização na medicina vão
remodelar a humanidade nos próximos anos. Laurent Alexandre, enfatiza que
as imensas transformações que nos esperam não podem ser comparadas a
absolutamente nada que já tenha sido vivenciado na história da humanidade.
Para o pesquisador (ALEXANDRE, 2018, p. XI):

As mudanças futuras vão superar em extensão, em rapidez e em


impacto tudo o que a humanidade conheceu no passado. A futura, o u
melhor, as futuras revoluções reunirão em um único processo todas
as formas de mudança que as rupturas anteriores da História haviam
provocado separadamente. Isso será verdadeiro sobretudo no campo
da medicina: estamos às vésperas de uma profunda transformação

2
No seu mais recente livro, Você tem que mudar sua vida! Peter Sloterdijk anuncia a virada
antropotécnica (Sloterdijk, 2009). Partindo da percepção que o próprio homem geraria o
homem, a antropotécnica é o conjunto de técnicas desenvolvidas para alterar, modificar e
otimizar o comportamento e o corpo humano.
que fará com que o conjunto dos progressos médicos do século XX
seja considerado como microacontecimentos.

Veja-se, que resta evidenciado que há várias razões para levar o


transumanismo a sério, bem como sua relação com as tecnologias e seu
reflexo na esfera civil. Primeiramente devido ao seu lastro histórico e
crescimento, bem como está diretamente ligado ao interesse da sociedade em
relação às suas promessas no tocante ao melhoramento da saúde e
desenvolvimento do corpo físico enquanto evolução e aprimoramento.

O transumanismo e seus diversos aspectos vieram a luz com um certo


aspecto apocalíptico, incompreensível e até não seriamente trabalhado dentro
da academia, pois havia uma compreensão ou pré-compreensão muito limitada
do assunto. No entanto, quando uma explosão de tecnologia se tornou
presente na vida de muitos, o assunto passou a ser mencionado e pesquisado
com seriedade. Erick Felinto e Lucia Santaella ao se debruçar sobre as teorias
de Vilén Flusser3, em O Explorador de Abismos (2012, p. 9), e mencionam que:

A maior parte das críticas acerbas ao pós-humanismo vinha se dando


na moldura de uma compreensão limitada do conceito. Em essência,
ela se resumia a entender que o pós-humanismo unicamente como
expressão de uma vontade de potência técnologica, dedicada à
expansão da vida humana e à superação de seus limites por meio da
tecnologia. Em última estância tratar-se-ia de obter a imortalidade –
prometida pelas religiões no plano espiritual e agora adaptada a uma
“tecno-espiritualidade” profana atípica da existência cibercultural –
através do emprego fáustico da tecnociência.

Mas primeiramente, nos reportemos ao termo ou origem do


transumanismo. O termo transumanismo remonta a figuras como Julian Huxley
– irmão de Aldous Huxleu, primeiro diretor geral da Unesco e presidente da
Sociedade Eugenística inglesa e também autor de Admirável Mundo Novo -
romance publicado em 1932, que narra uma história que se passa na cidade de
Londres no ano 2540, o romance antecipa desenvolvimentos em tecnologia

3
Filósofo nascido em 1920, de descendência tcheca, mas naturalizado brasileiro, onde viveu
cerca de 30 anos. Foi um dos primeiros a perceber a importância das tecnologias de
informação na sociedade que emergia na segunda metade do século 20. Considerada como
uma das mais fecundas e ricas em abordagens filosóficas para pensar o papel da imagem e
a condição existencial humana na contemporaneidade.
reprodutiva, manipulação psicológica e condicionamento clássico, que se
combinam para mudar profundamente a sociedade. O romance é considerado
um grande clássico da literatura mundial.

O termo se expandiu entre os estudiosos e se tornou celebre com Nick


Bostrom, quando este fundou a entidade de pesquisa The World
Transhumanist Association (WTA) e a Humanity+. Nick Bostrom, juntamente
com David Pearce, é cofundador do Future of Humanity Institute da
Universidade de Oxford.

O debate acerca daquilo que carrega o termo transumanismo está em


expansão no cenário mundial. A discussão é fluída e encontra autores
consagrados, que diante da evidente importância do tema, se debruçaram para
escrever e disseminar suas opiniões. Luc Ferry, filósofo francês de destaque
na filosofia contemporânea (2018, p. VIII), traz o tema do transumanismo em
seu recente livro A Revolução Transumanista, onde, de maneira bem objetiva,
articula que:

A ideia global é que estamos vivendo uma terceira revolução


industrial, e o núcleo dessa terceira revolução industrial é o que
chamamos de NBIC. N de nanotecnologias, B de biotecnologias,
particularmente o sequenciamento do genoma humano e a
ferramenta de edição do DNA que se chama Crispr-Cas9. Depois o I,
de informática, os big data e a internet dos objetos. E o C é o
cognitivismo, isto é, a inteligência artificial (IA), o coração do coração
dessas quatro inovações.

Tautológico mencionar que a tecnologia está presente em tudo na


atualidade. O caminho a ser trilhado é de expansão tecnológica nas diversas
áreas, como referido por Ferry, e dentro dessa expansão, o segmento mais
impactante toca diretamente na pesquisa sobre o melhoramento humano – que
possui algumas denominações, mas que aqui, inicialmente será transcrito
como transumanismo. Ferry (2018, p. XXVIII), evidencia que:

De fato, chegou o momento de tomarmos consciência de que uma


nova ideologia se desenvolveu nos Estados Unidos, com seus
profetas e sábios, suas eminências e seus clérigos, sob o nome de
“transumanismo”, uma corrente cada vez mais poderosa apoiada
pelos gigantes da Web, a exemplo do Google, e dotada de centros de
pesquisa com financiamentos quase ilimitados. Esse movimento já
suscitou milhares de publicações, colóquios e debates apaixonados
nas universidades, nos hospitais, nos centros de pesquisa, e em
círculos econômicos e políticos.

No Brasil, o assunto ganha destaque nas palavras de Jelson Oliveira e


Wendell E. S. Lopes, os quais destacam a importância do transumanismo
(2020, p. 11-12):

No geral, o tranumanismo reúne teóricos de várias áreas


conhecimento, que poderiam ser considerados bioliberais, porque
compartilham uma crença comum: a de que a tecnologia deveria ser
usada para o pretenso melhoramento da condição humana. Seu
discurso otimista, em realçam à tecnologia, recorre às fantasias e às
mitologias que remontam a tempos remotos, mas que, agora, saem
dos filmes de ficção científica para se tornarem uma promessa
emoldurada em discursos científicos, cujo êxito, em alguns pontos, já
pode ser evidenciado, e cujos investimentos financeiros de
portentosos montantes fazem acreditar que sua realização pode ser
uma possibilidade próxima.

A discussão que se iniciou ao entorno do transumanismo e da evolução


tecnológica que o precede, fez com que um grupo de cientistas, no ano de
2002, publicasse um relatório chamado Converging Technologies for Improving
Human Performance. Nanotechnology, Biotechnology, Information Technology
and Cognitive Science4. Este relatório contou com a presença e assinatura de
mais de 50 cientistas, trazendo recomendações para os governos e demais
instituições, com o objetivo de aumentar a atuação nas pesquisas e divulgação
de um futuro pós-humano, partindo de cinco áreas prioritárias, quais sejam: a
cognição e a comunicação humana, a saúde humana e as capacidades físicas,
a melhoria de grupos humanos e dos resultados sociais, a segurança nacional,
e a unificação da ciência e da educação.

Após a publicação deste relatório, houve uma resposta, publicada em


2004, pela União Europeia, intitulado Converging Technologies – shaping the
future of European Societies5, o qual firmou posição no sentido de que as
4
Disponível no site da Casa Branca: http://goo.gl/osbyog. Acesso em: 29nov. 2021.
5
Disponível em: http://goo.gl/UvLv5y. Acesso em: 29nov. 2021
tecnologias avançadas deveriam se restringir somente entre no uso
terapêutico. Mas a discussão acerca do uso das tecnologias prosseguiu e em
2009, surgiu um novo relatório nominado Human Enhancement6, onde,
segundo Oliveira (2020, p. 11), “passou a reconhecer o transumanismo como
ator central no desenho do futuro da humanidade, em continuidade com as
ideias iluministas e humanistas da modernidade”.

A partir deste relatório, assumindo expressamente que as novas


tecnologias possuem um papel visionário e devem atuar sim, no sentido de
dirimir as divisas “entre terapia reparadora e intervenções que visam trazer
melhorias que se estendem para além de tal terapia. Como a maioria delas
derivam do domínio médico, eles podem aumentar as tendências sociais de
medicalização quando usadas cada vez mais para tratar de questões
patológicas” (2009, p. 6).

O relatório destaca alguns pontos essenciais a serem seguidos. Maria


Clara Marques, em seu artigo intitulado Transumanismo e o futuro (pós-)
humano, enumera e

O humano, já fortemente afetado pela ciência e tecnologia, pode


ser ainda mais beneficiado, por exemplo, com a superação do
envelhecimento, de deficiências e do sofrimento involuntário; (2)
haja vista os riscos das biotecnologias, deve haver um esforço de
sua investigação e compreensão, a fim de reduzir riscos e
acelerar as aplicações, cujos efeitos sejam benéficos; (3) através
da elaboração de políticas, deve-se respeitar os direitos e
autonomias individuais, defender o bem-estar de toda forma
senciente de vida, demonstrando nossas responsabilidades
morais com as 347 gerações vindouras; (4) deve-se permitir a
vasta disponibilização de um amplo rol de técnicas de
melhoramento de suas próprias vidas, associada à liberdade de
escolha individual de usá-las ou não.

Não somente com relatório é que o transumanismo se delineia, mas a


partir de uma Declaração Tansumanista, que fora publicada no ano de 1998,
assinada por cientistas como: Anders Sandberg, Gustavo Alves, Max More,
Holger Wagner, Natasha Vita-More, Eugene Leitl, Bernie Staring, David
Pearce, Bill Fantegrossi, Ralf Fletcher, Alexander Chislenko, Lee Daniel

6
Disponível em: http://goo.gl/1crTir. Acesso em: 29nov. 2021
Crocker, Darren Reynolds, Keith Elis, Thom Quinn, Mikhail Sverdlov, Arjen
Kamphuis, Shane Spaulding, e Nick Bostrom7.

Para esses signatários e visionários do transumanismo “o ser humano


deverá ser aletrado radicalmente no futuro e, para isso, é preciso que a
tecnologia tenha liberdade para seguir adiante, sem qualquer amarra”
(OLIVEIRA, 2020, p.12). Oliveira (2020, p. 59), ao trazer a ideia do que
pretende o transumanismo, afirma que:

O transumanismo, com isso, pretende não apenas melhorar a


espécie, mas com o apoio da tecnologia, fabricar uma pós-
humanidade, leia-se, outra humanidade, formada por seres
humanos pretensamente mais fortes, capazes de viver de forma
híbrida com as máquinas, orientados por uma inteligência artificial
superior à humana atual e, quem sabe, vivendo de forma indefinida
no tempo.

Não destoando do conceito de transumanismo trazido por Nick Bostrom


(2005, p. 25), e sua visão futurista na qual afirma que “chegará um dia em que
nos será ofertada possibilidade de aumentar nossas capacidades intelectuais,
físicas, emocionais e espirituais muito além daquilo que aparece como possível
nos nossos dias”.

É evidente que o movimento transumanista alicerça sua base em


promessas futuristas com prognóstico positivo. Vejamos o que diz em uma
reconhecida passagem de um texto de Max More (1993):

Como os humanistas, os transumanistas privilegiam a razão, o


progresso e os valores centrados sobre o bem estar, ao invés de uma
autoridade religiosa e externa. Os transumanistas estendem o
humanismo colocando o em questão os limites humanos por meio da
ciência e da tecnologia combinadas com o pensamento crítico e
criativo. Nós colocamos em questão o caráter inevitável do
envelhecimento e da morte, nós procuramos melhorar
progressivamente nossas capacidades intelectuais e físicas, assim
como nos desenvolvermos emocionalmente. Nós vemos a
humanidade como uma fase de transição no desenvolvimento
evolucionário da inteligência. Nós defendemos o uso da ciência para
acelerar a nossa passagem de uma condição humana a uma
condição transumana ou pós-humana. Como disse o físico Freeman
Dyson: “A humanidade me parece ser um magnífico começo, mas
não a palavra final”. Nós não aceitamos os aspectos indesejáveis de

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Disponível em: http://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-declaracion/. Acesso em
29 nov. 2021.
nossa condição humana. Nós colocamos em questão as limitações
naturais e tradicionais de nossas possibilidades. Nós reconhecemos.
Nós reconhecemos a absurdidade que existe em se contentar e
aceitar humildemente os limites ditos “naturais” de nossas vidas no
tempo. Nós prevemos que a vida se estenderá além dos confins da
terra – o berço da inteligência humana e transumana – para habitar o
cosmos.

Para Adriano Godinho, o transumanismo não passou despercebido. O


autor, ao explanar acerca do transumanismo afirma que “o ser humano rompe
com sua própria biologia e passa a assumir as rédeas de seus estágios
evolutivos vindouros, que emergem movimentos como o transhumanismo”
(GODINHO, 2022).

CONCLUSÃO

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