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humanos1
Idelber Avelar
RESUMO
Este trabalho parte da premissa desenvolvida por Dipesh Chakrabarty em um ensaio recente,
“The Climate of History”. Segundo Chakrabarty, no Antropoceno – a nova era em que os seres
humanos causam dano de tal magnitude ao meio ambiente que passam a ser agentes geológicos
capazes de interferir com os processos mais básicos da Terra –, já não se sustenta a tradicional
distinção, relativamente estável desde Hobbes e Vico, entre história natural e história humana. O
trabalho argumenta que as discussões recentes acerca do Antropoceno renovam a relevância do
perspectivismo ameríndio, desenvolvido pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro,
e baseado na observação de uma recorrente teoria dos povos ameríndios acerca de um estágio de
indiferenciação originária entre humanos e animais, no qual a condição original comum não é a
animalidade, como costuma ser o caso na filosofia ocidental, mas a humanidade mesma. A abundância
de narrativas ameríndias nas quais os animais, as plantas, a Terra e os fenômenos metereológicos
veem a si mesmos como humanos é então analisada como um impulso antropomórfico que contém
– paradoxo só na superfície – um grande potencial antiantropocêntrico. Afinal, num mundo em que
todos podem ser humanos, “ser humano não é tão especial”. O contraste entre o antropocentrismo
ocidental e o antropomorfismo ameríndio é então desenvolvido com referência às Constituições do
Equador e da Bolívia, que pela primeira vez conferem aos animais, às plantas e aos corpos d’água
a condição de sujeitos jurídicos dotados de direitos. A conclusão aponta para o conceito de direitos
não humanos como tarefa política urgente para a era do Antropoceno.
Palavras-chave: Antropoceno. Perspectivismo. Direitos não humanos. Antropocentrismo.
Antropomorfismo.
ABSTRACT
This paper starts from a premise developed by Dipesh Chakrabarty in the essay “The Climate
of History”. According to Chakrabarty, in the Anthropocene – a new era in which human beings
do damage of such magnitude to the environment that they become geological agents capable of
altering the most basic physical processes of the Earth –, a dichotomy that had been relatively
stable since Hobbes and Vico experiences a major crisis. The article argues that recent debates
around the Anthropocene renew the relevance of Amerindian perspectivism, developed by Brazilian
anthropologist Eduardo Viveiros de Castro. Ameridian perspectivism springs from a recurrent theory
1
Este artigo é uma tradução de “Amerindian Perspectivism and Non-Human Rights”, no prelo com a revista Alter/
Nativas, da Ohio State University. A tradução foi feita pelo próprio autor. Para obras publicadas em outras línguas
que não o inglês, as citações foram refeitas a partir das línguas originais, como nos casos de Foucault, Clastres e
Lévi-Strauss, ou foram usadas as edições brasileiras correspondentes, como no caso de Ludueña e Agamben.
Idelber Avelar é Professor do Departamento de Espanhol e Português da Tulane University (New Orleans,
EUA).
1 ANTROPOTÉCNICA E TANATOPOLÍTICA
O conceito de direitos humanos sempre esteve atravessado pelo problema de
sua necessária, mas impossível, universalidade. Por um lado, os direitos humanos não
significariam nada se o conceito não se estendesse à totalidade dos homens e mulheres,
a toda a comunidade humana na Terra. Por outro, as origens europeias de sua formulação
geram dúvidas sobre sua universalidade e sobre o que está em jogo cada vez que eles
são evocados ou defendidos. A tensão entre o universal e o particular está no centro
das lutas em torno dos direitos humanos, e meu objetivo aqui não é resolvê-la, e sim
colocá-la em diálogo com reflexões desenvolvidas nas últimas décadas pelo antropólogo
brasileiro Eduardo Viveiros de Castro sob a rubrica do perspectivismo ameríndio e com
minhas próprias observações das experiências boliviana e equatoriana na produção de
Constituições que redefinem o alcance dos direitos humanos. Esse diálogo se insere no
contexto que Dipesh Chakrabarty recentemente designou, num ensaio notável, rasura
da fronteira entre natureza e cultura, à luz da inédita crise ambiental provocada pela
mudança climática. O objetivo aqui será perguntar o que acontece com os direitos
humanos a partir do momento em que levamos em consideração algumas críticas recentes
ao antropocentrismo, fio condutor que une o ensaio de Chakrabarty, as Constituições
andinas e a obra de Viveiros de Castro.
Ilustre entre as reflexões contemporâneas sobre os direitos humanos é a referência
feita pelo filósofo italiano Giorgio Agamben às origens do termo na Revolução Francesa.
Em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, Agamben parte de Hannah Arendt para
mostrar que na própria Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, há uma disjunção
entre os dois termos que designam os sujeitos dos direitos, na medida em que “homem”
supostamente inclui “cidadão”. Há algo aporético, portanto, na conjunção “e” que conecta
“homem” e “cidadão”, já que o segundo termo parece estar incluído no primeiro. Agamben
mostra como os direitos supostamente naturais, biológicos adquiridos pelos humanos no
próprio ato de nascer (tal como previstos pelo Artigo 1 da Declaração: Les hommes naissent
et demeurent libres et égaux en droits) são assombrados pelo requisito paradoxal de que
esses direitos sejam validados por referência a uma construção histórica, não natural, o
Estado nação. O Artigo 3 da mesma Declaração estabelece que os direitos humanos se
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Em The Disorder of Women: Democracy, Feminism, and Political Theory, Carole Pateman faz a interessante
observação de que, dos três grandes componentes do slogan da Revolução Francesa – igualdade, liberdade,
fraternidade –, este último sempre foi o menos estudado e interrogado, o que se relaciona com a aporia descrita
acima, pela qual, de um termo explicitamente marcado, se exige que represente a humanidade enquanto tal.
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Um dos grandes momentos da tese “Censura: Ensaio sobre a ‘servidão imaginária’“, de Alexandre Nodari, é a
recuperação do vínculo entre censo e censura, na medida em que esta também implica “a criação de um regime
de controle e medição do sensível” (NODARI 2012, p.10). A biopolítica de Michel Foucault é um bom marco para
se pensar as relações entre censo e poder, mas os vínculos com a censura permanecem obnubilados, já que o
paradigma foucaultiano entende o poder como produção do dizível. A tese de Nodari é um grande contraponto
a esse paradigma.
Este ensaio de Chakrabarty, uma das grandes meditações do nosso tempo, sugere
que uma distinção com a qual já estamos acostumados, a saber, tempo geológico versus
tempo humano, pode estar se aproximando de sua crise definitiva. A temporalidade da
Terra como processo longo e extenso, que engloba um tempo humano que empalidece
e encolhe em comparação com ele, precisa agora ser compreendido no contexto de um
conjunto de atividades que têm o poder de causar dano permanente, significativo ao
planeta. Se um dia pensamos que os fatos geológicos eram tão grandiosos que nada que
os humanos fizéssemos seria capaz de mudá-los, nós precisamos agora pensar o fato de
que o desmatamento, a desertificação, a queima de combustíveis fósseis, a acidificação
dos oceanos e várias outras atividades humanas destrutivas transformaram os processos
mais básicos da Terra. Em outras palavras, o tempo antropológico alcançou o tempo
geológico.
A principal conclusão tirada por Chakrabarty acerca do advento do Antropoceno
é que já não seria possível escrever as histórias da globalização, do capital e da cultura
sem tomar em conta, ao mesmo tempo, a história da espécie. Há tantos de nós cortando
tantas árvores e queimando tantos fósseis que a história de nossa cultura já não pode
ser separada da história da natureza. Enquanto que durante o Holoceno poder-se-ia
argumentar em defesa de uma separação mais ou menos clara entre a natureza e a cultura,
uma distinção relativamente estável entre a temporalidade do planeta e a temporalidade
da história humana, nós nos tornamos agentes geológicos em tal grau que é a própria
dicotomia entre natureza e cultura que deve ser questionada. Enquanto que “durante
séculos, os cientistas pensaram que os processos da Terra eram tão grandes e poderosos
que nada que pudéssemos fazer poderia mudá-los […] que as cronologias humanas eram
insignificantes em comparação com a vastidão do tempo geológico” (ORESKES apud
CHAKRABARTY, 2009, p.206), a nossa época é caracterizada por uma convergência
inédita entre ecologia e cultura, em virtude da qual já não é possível separar a história
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Em Sociedade contra o estado, Pierre Clastres resolve a questão aparentemente paradoxal de uma forma de
poder não coercitivo ao assinalar sociedades ameríndias nas quais se exige do chefe a generosidade extrema e
a obrigação de manter-se desprovido de bens materiais. O sistema se baseia na premissa de que “o chefe não
transmite nada senão sua dependência sobre o grupo” (2011, p.45).
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A interseção entre o Direito e os estudos do meio ambiente já é um vasto campo, sobre o qual não tenho condições
de falar como especialista. Para aqueles que, como eu, vão se aproximando do problema, o primeiro capítulo do
clássico The Rights of Nature, de Roderick Nash, que parte de John Locke, oferece um relato útil do conflito entre
o antropocentrismo da teoria do direito natural e uma “noção mais fraca, mas persistente, que leva diretamente
ao conceito de comunidade expandida sobre o qual se sustenta a ética ambientalista” (19-20). Ciméa Barbato
Bevilaqua, “Chimpanzés em juízo”, resenha dois processos judiciais, um no Brasil e outro em Serra Leoa, nos
quais chimpanzés foram reconhecidos como sujeitos jurídicos.
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Há uma vasta bibliografia documentando a ilegalidade e os impactos ecocidas da Usina de Belo Monte. Para
uma compilação comentada de cinquenta textos que detalham esse ataque aos direitos dos povos indígenas da
região do Xingu, ver Idelber Avelar “Cinquenta leituras sobre o ecocício de Belo Monte”.