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ARTIGO
ANTONIO, Maria Carolina de Araujo. A dimensão
terapêutica do segredo. Reflexão antropológica sobre a
psicanálise e a regulação dos afetos. RBSE 10 (29): 302–
320, ISSN 1676-8965, Agosto de 2011.
http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html
Introdução
Este presente artigo refere-se às formas de subjetivação mobilizadas pela
psicanálise lacaniana1 no processo terapêutico2, através de mecanismos de
categorização dos afetos3 e de codificação das emoções. As análises aqui
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Psicanálise lacaniana refere-se à psicanálise orientada pelos ensinamentos de Jacques Lacan (1901-1981),
psiquiatra e psicanalista francês que propôs uma releitura da obra freudiana por meio da lingüística, filosofia
e do estruturalismo. Destaca-se pela crítica radical ao modelo tradicional e institucional de ensino e prática
clínica determinado pela International Psychoanalytical Association (IPA), fundada por Freud em 1910.
Com isso, foi responsável por uma cisão no campo psicanalítico, criando uma nova Escola de psicanálise que
atraiu inúmeros seguidores. Mais informações sobre essa vertente e sua constituição, vide Elisabeth
Roudinesco “Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento”. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
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Por “terapêutica” refiro-me aos recursos que uma sociedade disponibiliza aos indivíduos que considera
física ou mentalmente doentes (Figueira, 1978, p.47). Tal categoria abarca práticas como medicina,
psicanálise, psiquiatria, psicologia, umbanda, homeopatia, etc.
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Utilizo a categoria “afeto” para determinar o conjunto de experiências na relação com o outro que se
manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões, acompanhados sempre de impressões de dor ou
prazer, satisfação ou insatisfação, agrado ou desagrado, alegria ou tristeza.
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A etnografia foi realizada entre os anos de 2008 e 2009, em que convivi e conversei com as psicanalistas de
uma clínica lacaniana e também realizei diversas entrevistas com pessoas que faziam análise não na clínica em
questão, mas em outras clínicas lacanianas da cidade. Aparecerão ao longo do texto trecho de entrevistas e
conversas com duas psicanalistas da clínica observada, Helena e Beatriz, e dos analisantes com quem
conversei, que me possibilitaram traçar uma rede de sociabialidade psicanalítica, já que um me indicava outra
pessoa que também fazia análise e podia contribuir com a pesquisa.
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Analisante é o termo utilizado pela psicanálise lacaniana para designar o sujeito em análise. Esclareço que as
palavras e/ou frases em itálico ao longo do texto referem-se ao campo semântico “nativo” e/ou a palavras em
idioma estrangeiro.
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ANTONIO, Maria Carolina A. A Metonímia do Desejo: Estudo Etnográfico da Clínica Lacaniana em
Londrina-Pr. Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal de São Carlos, março, 2010.
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Segundo Coelho (2010), por micro política das emoções entende-se a capacidade que as emoções têm de
atualizar, na vivência subjetiva dos indivíduos, aspectos de nível macro da organização social.
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De acordo com Figueira (1978, p.74), “A idéia de que ela [psicanálise] fornece uma Weltanschauung não
poderia ser aceita pelos seus praticantes, que pretendem, inclusive, trabalhar inspirados pelo ‘princípio de
neutralidade’. Não obstante, se pensarmos o tratamento do vértice dos efeitos que produz nos analisandos, tal
idéia não soaria tão absurda. Observaríamos que, para muitos (em determinados períodos de terapia
particularmente marcados pelo isolamento), a lógica psicanalítica é aceita integralmente e aplicada a todos os
domínios de sua experiência com um rigor de fazer inveja ao hiperdeterminismo do pensamento mágico”.
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“Saberes psi” são saberes produzidos a partir de meados do século XVII, como um conjunto de
representações e concepções culturais que podem ser chamadas de psicológicas na medida em que se referem
à determinação dos modos de existência, funcionamento e perturbações de uma psyche humana (Duarte,
1997).
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Segundo Foucault (1992), dispositivo pode ser definido como “um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
admistrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas (...) estratégias de relações
de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (op.cit. p.245-246).
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Ab-reação é um termo introduzido por Freud e Breuer para definir um processo de descarga emocional,
pela qual um sujeito se libera do afeto ligado à recordação de um acontecimento traumático, permitindo
assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico (Roudinesco e Plon, 1998).
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Segundo Freud (2010a), o aparelho psíquico se organiza mediante uma hierarquia de instâncias
subordinadas, a saber, Id, Ego e Superego, numa profusão de impulsos que frequentemente se antagonizam e
são incompatíveis.
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Efeito catártico refere-se à catarse, método retomado por Freud e Breuer no estudo da histeria, segundo o
qual atraveés da fala um sujeito consegue eliminar seus afetos patogênicos, revivendo os acontecimentos
traumáticos a que eles estão ligados (Roudinesco; Plon, 1998 p.107)
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Método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os pensamentos que ocorrem, quer a partir
de um elemento dado (palavra, número, imagem de um sonho), quer de forma espontânea. Solicita-se ao
paciente dizer tudo o que pensa e sente sem nada escolher e sem nada omitir, ainda que lhe pareça
desagradável de comunicar. Constitui processo específico da técnica psicanalítica (Antonio, 2010).
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Termo introduzido por Freud para designar um processo constitutivo do tratamento psicanalítico
mediante o qual os desejos inconscientes do paciente concernentes a objetos externos passam a se repetir no
âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos. A
transferência é classicamente reconhecida como o terreno em que se dá a problemática de um tratamento
psicanalítico, pois são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução que
caracterizam este (Roudinesco, Plon, 1998).
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O complexo de Édipo foi formulado por Freud em ligação direta com a questão da proibição do incesto; é
a representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da criança pelo genitor do sexo
oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo sexo. A psicanálise procura encontrar a estrutura
triangular do Édipo, afirmando sua universalidade nas culturas mais diversas, e não apenas naquelas em que
predomina o modelo famíliar ocidental. Deleuze e Guattari (2010), em O anti-Édipo, criticaram o
edipianismo freudiano, que reduz a loucura a um núcleo familiar de tipo burguês e patriarcal.
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A castração está em estreita relação com o complexo de Édipo e, mais especificamente, com a função
interditória e normativa da figura paterna, que leva a criança a recalcar o desejo incestuoso sobre a mãe.
Segundo a lógica psicanalítica, é o peso do processo civilizacional, a atuar através da estrutura edípica, que
impõe ao humano o recalque das suas pulsões, constituindo o inconsciente. É no terror da angústia
inconsciente de castração que habita a gênese das manifestações neuróticas. (Roudinesco e Plon, 1998).
Abstract: This article refers to ethnography of the Lacanian clinic of psychoanalysis, and aims
to examine how this creates therapeutic dispositive of production and control of the emotions
through a “secret dimension”, established in the speech of the analysands. In considering the
suffering as a result of the moral impossibility to achievement and expression of a repressed
desire, psychoanalyses build a secret content in the life of the analysands, with the power to
cause both the disease and the healing. The psychoanalytic clinic is regarded here as a space for
observation the context in which emotions are produced, understand and regulated by micro-
political process of daily life. From a critical analysis of the conception of sexuality operated by
the psychoanalyses knowledge, we see how the therapy inherits its epistemological precepts
from classical traditions of Christian thoughts and psychiatric knowledge. The article also
shows the relation between the regulatory character of therapeutics models and the production
of the person engendered by it. Keywords:
Keywords: Lacanian Psychoanalysis; Secret; Emotion; Sexuality.