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SUSANA SCRAMIM ORGANIZAGAO AL TERI DADES NA POESIA RISCOS, ABERTURAS, SOBREVIVENCIAS ILUMIPURAS Copyright © 2016 Susana Seramim Copyright © desta edicao Editora Tluminuras Ltda Capa e projeto grafico Eder Cardoso / Iluminuras sobre Terugvende Duadtster.c1944-48 (Steen IV}, Victor Delhez gfavura em madeira modcada dighatmente Revisao Brune d’Abruzzo oar Re ere CIP ~ BRASIL. CATALOGAGAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI CIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RI £82 Alteridades na poesia: riscos, aberturas, sobrevivéncias / organizacao Susana Seramim. ~ 1 ed. - $80 Paulo: Tluminuras, 2016 160 p.: 23m, ISBN 978-85-7321-491-8 1 Poesia brasileira ~ Histéria e eritiea. 1. Seramimm, Susana 16-29685. CDD: 86991 CBU: 821.134.3(81}-1 2016 EDITORA ILUMINURAS LTDA, Rua Inacio Pereira da Rocha, 389 - 05432-Oll - Sao Paulo - SP - Brasil Tel./Fax: 55 11 3031-6161 iluminuras@iluminuras.com.br www.iluminuras.com.or A POESIA NAO PENSA (AINDA) Raul Antelo 1. NAUFRAGIO DA CONSTRUGAO Jorge Luis Borges argumentava que se 0 fim do poema fosse 0 assombro, seu tempo nao se meditia em séculos, nem mesmo em dias ou horas, mas, talvez, tao somente em alguns poucos minutos, porque, além do mais um poeta nao é bem um inventor mas um descobridor. Com efeito, em um dos contos de O Aleph, “A busca de Averroes”, Borges aborda 0 paradoxo mais tarde tetomado por Heidegger € Agamben: o escritor cria a obra mas, na verdade, € a obra que cria 0 escriton, porque toda obra é um simbolo do homem que foi enquanto a escrevia, e que, para escrever essa narrativa, ele foi obrigado a ser aquele homem e que, para ser aquele homem, teve de escrever essa narrativa, ¢ assim por diante, até o infinito. E.a seguir, Borges conclui, entre parénteses, que, no instante em que deixamos de acreditar nele, Averroes desaparece. No original, cada obra seria “un simbolo del hombre que yo fui, miencras la escribfa y que, para redactar esa narracién, yo tuve que ser aquel hombre y que, para ser aquel hombre, yo tuve que redactar esa narracién, y asi hasta lo infinito, (En el instante en que yo dejo de creer en él, Averroes desaparece)”. Gostaria, portanto, nas paginas que seguem, de analisar, no campo da poesia, 0 desaparecimento, precisamente, da criagdo ou invengao, em beneficio da descoberta. © parti pris, em poucas palavras, 0 do nauftégio da construgao e, para tanto, seria conveniente voltarmos a Averroes. Ponderando, em 2005, a contribuigéo de Averrocs para uma teoria do co- nhecimento, Agamben classificou os pensadores em duas tendéncias, “quella che afferma che gli uomini pensano ¢ che il pensiero definisce, in questo senso, la loro natura’, que seria a posi¢ao de Badiou, quando se interroga “o que pensa © pocma?”, e uma segunda, “quella che sostiene che gli uomini non pensano (o non pensano ancora)”. Averroes pertence a este segundo grupo e, nesse sentido, averroistas seriam todos aqueles que de Dante a Spinoza, de Artaud a Heidegger, subscreveram essa tese. Porém, Agamben avalia também que, para além da ane- dota, nessas intermiténcias do pensamento, habita, precisamente, aquilo que é préprio do homem, a imaginagao. Agamben tem muitas diferengas com Badiou. Uma delas, por exemplo, refe- te-se a0 tempo messifinico. Mas sejamos justos com Badiou. Mais do que afirmar que 0 poema pensa, Badiou coloca a nogio de que hé uma légica, no poema, que a1 RAUL ANTELO coincide com o desejo do real. Em um livro recente, A de recherche du réel perdu,' Badiou, assumindo a palavra do mestre, Lacan, define o real como o impasse da formalizagao. Ou melhor ainda, @ real é 0 ponto do impossivel de formalizar. Ou seja que 0 real seria um point de pensée, que devemos tomar nao como uma tépica, um ponto de pensamento, mas como uma impossibilidade de qualquer pensamento, de toda racionalizagio. Dizer que 0 real é 0 impasse da formalizagao significa que ele rompe, cle quebra toda formalizagao, com o qual se afirma o paradoxo de que, pela via de uma impossibilidade, afirma-se a possibilidade: o imposstvel existe. A arte do possivel nos persuade, perversamente, de que a politica é puro semblante e isso deve ser admitido. Mas, se queremos a politica do real, é preciso afirmar, pelo contrério, que o impossivel € possivel. Relembremos o velho Lautréamont, resgatado, ali, por Manuel Bandeira: a poesia cnuncia as relagdes existentes entre os primeiros princtpios e as verdades secundérias da vida. A poesia descobre as leis que fazem viver a politica tedrica, a paz universal. Alain Badiou, ¢ bem verdade que menos confiante na paz do que no conflito, apoia-se entéo num poema profético, “As cinzas de Gramsci” (1954) de Pasolini. O poema se passa num cemitério onde se enterram os nao catélicos. Af esté Grams € para Pasolini ai comeca 0 nao-lugar de Gramsci na Itélia de 1954 (e na Itélia de hoje). H& af um point de réel. Mas, a rigor, Gramsci nao estd enterrado na Teili seu ttimulo nio fica longe do de Shelley, por exemplo. E este exilio de Gramsci da Histéria tem uma conoracéo a mais. Gramsci, que buscou o real da Historia, jaz num lugar que obedece & lei maior do mundo ocidental, a do semblante ¢, nese sentido, se poderia dizer que, no mundo contemporineo, o real é o impasse de qualquer divertimento, de toda leveza, trivialidade ou futilidade. E a tese alids de Guy Debord, 0 mundo ¢ espetaculo. Pasolini chama essa vontade de se agarrar ao semblante de substicuigao da vida pela sobrevivéncia, que ¢ uma forma de renunciar & paixéo de estar no mundo. E para ilustrar essa nogdo, Badiou cita essa passagem de “As cinzas de Gramsci”. Tomemos a tradugao de Mauricio Santana Dias: E sentes como nesses seres distantes que, em vida, gritam e riem naqueles seus transportes, nesses miseros casatios onde se consuma o incerto e expansivo dom desta existéncia — a vida que nao é mais que arrepio; corpérea, coletiva presengas sentes a auséncia de toda religito verdadeiras nao vida, mas sobrevivencia, » Alain Badiow. Ja recherche dt réel pend, Patis: Fayand, 2015, 92 A POESIA NAO PENSA (AINDA) — talvez mais alegre que a vida — como de um povo de animais, em cuja arcana agonia no houvesse outra paixio que nfo a do operar cotidiano hhumilde fervor a que di um senso de festa ahumilde corrupgio. Quanto mais é vio — neste vazio total da histéria, nesta pausa sussrrante em que a vida eala — todo ideal, melhor se manifesta a estupenda, adusta sensualidade quase alexandrina, que tudo tinge e impuramente acende, quando aqui no mundo algo desmorona, ¢ se arrasta ‘mando na penumbra, retornando a pracas ermas, a oficinas vis...” Destaquemos a expressdo “'umile corruzione”. Enquanto o circo continua, enquanto a vida torna-se sobrevivéncia do mero espetaculo, condena-se a corrupgao visivel, material, corriqueira. Sacrificam-se alguns grandes corruptos para salvar a humilde corrupgao, essa que permite a formalizacio. Muito cmbora a grande corrupgao, essa nfo seja sequer contemplada. Nao é conceituada. Ela é invisfvel 2 formalizagao. Mas outra ideia importante do trecho citado por Badiou é a da impossibilidade de situarmos o tempo. O poema é de 1954 mas sé adquire sua pungente significago hoje em dia € por isso que vemos 0 mundo na penumbra, retornando a pragas ermas, a oficinas vis (“il mondo, nella penombra, rientrando in vuote piazze, in scorate officine”). Entio a pergunta do pocma é: 0 que resta no mundo quando se perde toda convicgao, toda religido. O final do texto deixa isso bem claro. Ele conclu: E um rumor, a vida, e estes perdidos dentro dela a perdem serenamente, se tem 0 coracio pleno: ei-los, pois, gozar paupérrimos a noite: ¢ potente, niles, inermes, por eles, 0 mito renasce... Mas eu, com o peito consciente * Pier Paolo Pasolini. “As cinzas de Gramsci’. In: Poemas, ed. A. Berardinelli, M. Santana Dias: trad, M. Santana Dias. Sao Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 77-9. No original: “E senti come in quei lontanif esseri che, in vita, ridano, ridono, in quei loro veicol in quei gramif cascggiati dove si consuma Pinfido! ed espansive dono delsiscenza —f quella vita non & che un brivide:! corporea, collettiva presenzay/ senti il mancare di ogni religione/ vera: non vita, ma sopraveivenzal — forse pit lieta della vita — come/ d'un popolo di animal, nel cui arcano! orgasmo non ci sia altra passione! che per Voperare quotidiano:/umile fervore cui di un senso di festal Vumile coruzione. Quanco pitt & vano! — in questo vuoto della storia, in questa/ ronzante pausa in cui la vita tace —/ ogni ideale, meglio & manifesaf la stupenda, adusca sensualied/ quasi alessandrina, che unto minia/ e impuramente aecende, quando qual nel mondo, qualcosa cella, esi esscinalil mondo, nella penombra, rientrandof in yuote piazze, in scorate officine..”, 93 RAULANTELO de quem apenas na histéria tem vida, poderei agir com pura paixao ainda, se sei que nossa histéria aqui se finda? Vejase: a histéria acabou, que é a mesma tese de Godard, sé hé historia(s). Mas Pasolini ngo é Fukujama. Entao, dirfamos, 0 que esté terminado, para Pasolini, para Badiou, ¢ a histéria como formalizagao, mas isso nao impede, antes estimula, que se busque uma histéria dos impasses da formalizagio. $6 que, a meu ver, a histéria dos impasses da formalizagdo se chama arqueologia. Ela busca arrancar as méscatas democréticas do modernismo, para retomarmos 0 titulo de um livro em que Rama tentava pensar a modernidade latino-americana com base em Nietzsche ¢ nao mais de Hegel ou Adorno, Ou antes, surge a necessidade de pensar 0 moderno nao mais sob a perspectiva de uma dialética negativa, adotniana, em que se a poesia é ruim, a sociedade ¢ ainda pior, mas pela via de uma dialética afirmativa, que nos leve a ponderar a criagio de vida. Badiou ainda se vale de mais um exemplo pasoliniano, o poema “Vitéria’, ¢ dele cita este fragmento em que o homem contemporanco aparece como um ser dilacera- do, aquilo que marca o dpice da reflexao brasileira sobre literatura e sociedade, Mas Pasolini, crente profanador, vai além e diz: Ma egli, eroe ormai diviso, manca ormai della voce che toca il cuore: si rivolge alla ragione non ragione, alla sorella triste della ragione, che vuole capire la realra nella realta, con passione che rifiuta ogni estremismo, ogni temerita.! Conelui-se que, pata praticar uma poesia (ou sua leicura), que explore os impas- ses da formalizagao, ¢ imprescindivel essa temeridade que nos fornece a construgao de uma arqueologia, justamente para resgatarmos aquilo que néo cessa de nao se dizer. Por isso, uma leitura arqui-filolégica, uma leitura feita a partir da expansio dos arquivos, que se dedique a caprar os pontos de impasse da formalizacio, é uma forma de ativar o principio do poema do poema, de que jé falava Schlegel alids, ou, de que, assim como o mundo é um poema, 0 poema é também um mundo de associac6es ¢ correspondéncias. Como diz. Max Jacob, “o mundo num homem, tal é © poeta modemo’, ideia que vem de Baudelaire mas vai até Octavio Par. * Pier Paolo Pasolini, 2015, pp. 81-3. No original: “Eun brusio la vita, ¢ questi persi/ in essa, la perdono serena mente, se il cuore ne hanno pieno: a godersi/ eccoli, miser, la sera: ¢ potentel io ess inermi, per ess, il mito rinasce... Ma io, con il cuore coscientef di chi solcanco nella storia ha vita! potrd mai pit: con pura passione operate se so che la nostra storia & finita?”. * Pier Paolo Pasolini. “Vittoria, Poesia in forma di rosa (1964), “Appendice” (1964). In: Tite le poesie. Mila: Metidiani Mondadoti, 2003. 94 A POESIA NAO PENSA (AINDA) Por isso, decomposta ¢ recomposta a série da tradigéo, quebradas as pontes entre um poema ¢ 0s outros poemas, ou entre os poemas ¢ as imagens, ¢ até mesmo entre elas mesmas, porque cada imagem pode ser, nao s6 um indicio de outra imagem, mas a parceira de um poema, s6 nos resta remonté-los (e remonté-las) para produzir ovas descargas esclarecedoras. Ho que tentam herdeiros da linhagem Mallarmé- -Benjamin, como Jean-Luc Godard ou Georges Didi-Huberman. De um lado, 0 poema, conjunto auténome, fechado em si mesmo, é uma construgio heterogénea, mas é também um bloco compacto de recusa ao semelhante ¢ trivial, ao espetacular. Porém, ao mesmo tempo, ele tem a leveza do gesto incipiente ¢ inaugural de una festa cfvica, tal como um cetimonial comunitério. De um lado, a-vida por vir concen- tra-se, formalizada, no sdlido poema modernista; porém, de outro lado, essa mesma vida se dinamiza no desenho, no rascunho de um espaco comum transfigurado. Ha, portanto, nessa estratégia dliplice, uma evidente separagéo entre textos, imagens povo, algo que define tanto aos textos quanto as imagens, como separacées, divisdes ¢ impasses entre aquilo que se pode dizer ¢ aquilo que se pode ver. A leitura arqui- filolégica move-se entio entre essas muiltiplas separagées, miscuradas, entreveradas e superpostas, aproximando o distante (a aura) pelo mesmo recurso da separagao (a montagem). Acredita, em suma, que é reconfigurando que se cria ‘Tomemos, a titulo ilustrativo, um exemplo brasileiro. Manuel Bandeira, quem, no fim da guerra, coletou uma série de definigées de poesia, conservou uma de Paul Valéry, “poesia € a tentativa de representar ou de resticuir por meio da linguagem articulada aquelas coisas ou aquela coisa que os gestos, as légrimas, as caricias, os beijos, os suspiros procuram obscuramente exprimir”.’ Vale dizer que a poesia se torna metodo de depuragéo do pathos. Ora, num dos poemas de Agrestes, de 1985, Joao Cabral de Melo Neto aborda a questo do método da construcio poética de Paul Valéry, que nao € sentio o método da imaginagio: Desrucavo Sosre os Capernos be Paut. VALERY Quem que poderia a coragem de viver em fience da imagem do que faz, enquanto se faz, antes da forma, que a refaz? Assistir nosso pensamento a nossos olhos se fazendo, assistr a0 sujo ¢ 20 difuso com que se fiz, e € reto e é curve. S6 sei de alguém que tenho tido a coragem de se ter visto * Manuel Bandeira. “Antologia de definigées de poesia”, Lemas e Artes. Rio de Jancito, 14 jul. 1946, 95 RAUL ANTELO, nese momento em que sé poucos slo capazes de ver-se, loucos de tudo o que pode a linguagem: Valery — que em sua obra, i margem, revela os tortuosos caminhos gui, partindo do mais mesquinho, vo dar ao perfeito cristal que ele executon sem rival. Sem nenhum medo, deu-se 20 huxo de mostrar que o fazer € sujo. Essa ideia valeriana de ver-se vendo, que possibilita, mais tarde, a Lacan, elaborar a.questio da pulsio escépica, tem, em um artista belga, Victor Delhez, um excelente exemplo. Em uma gravura chamada Trés autorretratos, Delher. representa-se a si préprio, um homem qualquer olhando um artista que, por sua vez, contempla uma caveira. Essa vaniras contemporinea monta uma cena semelhante & do “Pés-poema” de Murilo Mendes. Delhez nao é um artista conhecido no Brasil e, para apresen- télo poderfamos recordar que era amigo de Michel Seuphor, quem prefaciou alids seu primeiro trabalho, ¢ que comeca como gravurista em madeira mas, premido por questdes econémicas, vem para a América Latina, mora em Buenos Aires, na se em Mendoza. Nos anos 1920, Delhez ainda ensaia radiografias A maneira de Man Ray, e em uma delas, também um autorretraro, podemos captar essa ideia que nos propunha Valéry ¢ mais tarde retomaria Joao Cabral. Essa mesma questo anacrénica aparece também nas montagens de Delhez para os primeitos mtimeros de Sur, onde o artista belga pratica experiéncias de museu imagindrio ou atlas Mnemosyne. Com efeito, logo no primeiro mimero da revista, inicios de 1931, Borges reedita, pela terceira vez, aliés, “Séneca en las orillas”, um desses textos em que o escritor permite-se duvidar da existéncia da prépria literatura Bolivia, ¢ finalmente insta € prope, em seu lugar, a leitura. Interessa destacar des meu ver, é a leitura que Delhez faz das imagens de escritas de outrora, frases esquivas em carros prestes a desaparecer, de tragao animal, na cidade jf modernizada. Delhez, hos propée, entéo, um tableau de recortes em obediéncia a uma quarta dimensio da cena, Mas h4, no texto, uma frase emblemdtica que Borges, alias, encerra entre parénteses: se texto que o mais relevante, a (Essa possessio temporal € 0 infinico capital “erioulo”, tinico. Podemos exaltar a demora ao plano da imobilidade: possessio do espago.)" [Esa posesién temporal es el infinito capiral criollo, el vinico, A Ja demora la podemos exaltar a inmovilidae! posesién del espacio.)” Jorge Luis Borges. “Seneca en las orillas”, Str 1, verdo 1931, p. 175. % ‘A POESIA NAO PENSA (AINDA) Ora, as imagens de Delhez para as inscrigdes de carros, ou das hélices e srultifevas naves do século XVIII, muito em sintonia com as protoformas da arte de Blossfelde, so esse infinito capital que indica posse temporal e, em tiltima andlise, se conectam no s6 com as apocalipticas visées de Delhez de arquitetura ¢ nostalgia, mas também com as ilustragoes que ele mesmo realiza pata As flores do mal de Baudelaire. Hi af uma intima pressuposicio, de autoria indecidivel, entre texto (de Borges) e imagem (de Delhez). No caso do Borges, verificamos uma critica & apropriagio do espago, porque, em ultima instancia, Séneca, um marginal, um espanhol filosofando em latim, torna a se marginalizar nas inscrigdes de cartos portenhos, e a operacdo nos mostra que a demora é usada para dinamizar a prépria leitura, tormando-a differance. Mas, observando com mais cuidado, constatamos a convergéncia, tanto nas ponderagdes de Cabral, quanto na experiéncia da dupla Delhez-Borges, daquilo que lemos em um dos poemas, um “Diptico”, de Museu de Tudo, que tem como epigrafe “The aged eagle”. DIPTICO A verdade € que na poesia de seu depois dos cinquenta, nessa meditagio areal em que ele se desfez, quem tenta encontrar ainda cristais, formas vivas, na fala frouxa, que devolvem seu tom antigo de fazer poesias com coisas. Cabral usa, nesse diptico (poesia-imagem ou poesia-filosofia), uma palavra fora de uso, areal, que remete ao contato mas que também eventualmente, é negagio do real ou postulacéo do Real. Jean-Luc Nancy nos explica que Aréalist (a-realidade) é uma palavra em desuso, que significa a natureza ou a propricdade de rea. Acidentalmence, a palavea também cabe para sugerit a falta de realidade, out uma reali- dade ténue, leve, suspensa: aquela do espagamento que localiza um corpo, ou em um corpo. Pouca realidade do (fundo), com efeito, da substincia, da matéria ou do sujeito. Mas € essa pouca realidade que torna areal todo o real, no qual articula-se ¢ trama-se o que foi nomeado a arquitetdnica dos corpos. Nesse sentido, a a-realidade é o ens realizsinaum, a poténcia maxima do existir, na extensio total de seu horizonce. Simplesmente, o real enquanto areal retine 0 infinico do maximo de existéncia (qua magiscagitari non potest) a0 absoluto finito do horizonte ateal, ssa “reunido” nao é uma mediacio: e 0 que corpo quer dizer, 0 que corpo quer dizer ou dar a pensar, ¢ precisamente is, ¢ que aqui nio hd mediagio. O finito ¢ o infinito nao passam um no outro, no hé dialéica entre eles, eles no sublimam o lugar em ponto, nio concentram 2 2-tealidade em um substrato, E 0 que corpo quer dizer, mas com cerco querer-dizer que hé de set retirado em préprio a dialética significante: corpo ndo pode querer dizer um sentido real do corpo de seu horizonte real. ‘Corpo’ deve entio ver sentido na propria extensio (inclusive na ex- tensio da patlaura ‘corpo'...). Essa condigio ‘significante’ (se ainda € possivel designé-la assim) é inaceitével, impraticivel para nosso discurso. Mas ela éa condigito reallareal de qualquer sentido posstvel para um mundo de corpos. E. por isso mesmo que um ‘pensamente’ do corpo precisa ser, 7 RAULANTELO com ou sem etimologia, uma pesagens real e, por isso, um rogue, dobrado-desdobrado segundo aa-realidade” Por isso, poderfamos captar certa pungéncia do real recuando ao que hé de mais arcaico ¢ formalizado na poesia brasileira. Mesmo af, acima de tudo af, arde uma histéria ainda nao rearmada. No prélogo da Prosopopeia, “dirigido a Jorge @’Albu- querque Coelho, Capitéo e Governador da Capitania de Pernambuco, das partes do Brasil da Nova Lusitdinia’, Bento Teixeira declara que Se é verdade 0 que diz Hordcio, que Poetas ¢ Pintores estio no mesmo predicamento; e estes para pintarem perfeitamente uma Imagem, primeiro na lisa tivoa fazem rascunho, para depois irem pintando og membros dela extensamente, até realgarem as cintas, e ela ficar na fineza de sua perfeigios assim cu, querendo dibuxar com obstardo pinzel de meu engenho a viva Imagem da vide c feitos memordveis de vossa merce, quis primeiro fazer este rascunho, para depois, sendo-me concedide por vossa mercé, ir mui particularmente pintando os membros desta Imagem, se niio me faltar a tinta do favor de vossa mercé, a quem peco, humildemente, receba minhas Rimas, por serem as prinicias com que tento servi-lo* Bento Teixeira segue afa ligéo de Filipe Nunes (Arte pactica e da pintura, e symme- tria, com principios da perspectiva. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1615), que se repetiria ainda em Calderén de la Barca (Tizrado defendiendo la nobleza de la pintura. Cajén de sastre literato. Madri: F. M. Nifo, 1781). Mas, em todo caso, 0 que me interessa descacar, em poucas palavras, € que, por sua proximidade com o desenho, a poesia brasileira nao nasce definitivas nasce, porém, como rascunho. Mais perto de nés, Lezama Lima diré que a distancia da poesia ao poeme ¢ intocével. Suas vicissitudes podem suportar até mesmo serem romanceadas, porque a poesia ¢ 0 ponto mével do poem ¢ seu trajeto é como uma espiral semelhante ao céu estrelado de Van Gogh.’ Lezama Lima corrobora assim o que dissera Teixeira Pinco: a literatura € rascunho e, com efeito, a poesia brasileira também nasce, em suma, como rascunho. Assim sendo, a leitura dessa pocsia deveria, portanto, passar pela reconstrugao de uma arealidade, a de verivir. Eis seu livto de areal Mas o que é um rascunho? A palavra provém de rascar, “arranhar; riscar”, seu significado inicial. Depois passou a significar “esbocar, fazer os tragos iniciais de uma obra’, Sua origem é 0 verbo latino rasicare, e este, por sua vez, vem de rado, vadere. Dai vem também raster, rastrum. Na América, na Colémbia, por exemplo, rascar, que jé existe, alids, em Dom Denis, significa também bebedeira, tomar um porte. E esta ideia nos leva a pensar no rascunho como uma embriaguez da obra ou, como aponta Jean-Luc Nancy, uma embriaguez reciproca, da poesia na filosofia e da filosofia na poesia. Jean-Luc Nancy. “58 indices sur le corps. In: Corpus, Paris: Metallé, 2006, p. 149. Ha uma traducio, em portugués, anterior lids ao texto em francés, na Revista de Comunicagao e Linguagens (n. 33, Lisboa, 2004). ® Bento'Teixcira. Prosopopeia. Rio de Janeiro: INL, 1972, " “La distancia de la poesia al poema cs intocable. Sus vieisitudes pueden soportar hasta ser novelables. La poesia es cl punto volante del pocma. Su trayeeto es como una espiral semejante al cielo estrellado de Vann Gogh”. José Levama Lima, Le eiatidad hechizada, Havana: Unién, 1970, p. 147. 9% ‘A POESIA NAO PENSA (AINDA) A embriaguez leva consigo 0 legado do sacrificio: a comunicagio com 0 sacrtem por meio do fluido € seu derramamento, a excegio, o excesso, 0 fora, © vedado, 0 divino, A embriaguer. setia, definitivamente, o triunfo de am sactificio, cuja vitima setia 0 préprio sacrificador. No limite, no qual o sacrificador de todos 08 sacrificios permanece intacto, Baraille reconhecia, para concluir, um carter cdmico. Sem sombra de divi vex, cOmica, jé que o embriagado nao desaparece nela sem resto, e volta da embriaguez en- vergonhado, desiludido, desenganado, em ocasides da prépria embriaguez. E, no entanto, 0 rechago estrito a se embriagar manifesta, ao apenas um rechago, mas inclusive uma ignorancia da existéncia e da proximidade de um fora, ¢ de uma rachadura no dique, através do qual esse fora pode se escapulin.” la, a embriaguez ¢ também, por sua E isso ndo poupa nem mesmo um poeta como Novalis, quem dizia que a poesia é 6 real absoluto, auténtico niicleo de sua filosofia, “Quanto mais uma coisa é poética, tanto mais € também real”, defini¢éo que também agradava a Bandeira. Mas néo salyando Novalis, nem mesmo Hegel é poupado. O absoluto ¢ 0 separado, 0 diferente, Nao apenas 0 desvinculado ou 0 desprendido ~ solutum — mas 0 completamente aparte — ab —, 0 retirado ¢ redobrado em si, cumprido para si, 0 perfeio — perféctum —, acabado, completo, totalmente efecuado em ¢ para si, Girando sobre si infinitamente, voltando vertiginosamente sobre seu centro e assim, exatamente assim, apro- ximando-se de mim, amontoando-se ao redor ¢ 0 mais préximo de mim pesada imobilidade."* Ou ainda: O absoluto é esse desejo, essa vertigem de desejo infinito. E 0 amontoamento, 0 arroubo, 0 I g deslumbramento do desejo tensionado em direcéo & proximidade mais proxima, em ditegio a0 extremo, em direcao 20 excesso do préximo que, no seu excesso, chega mais perto que 0 préximo, infinitamente perto e, por tanto, sempre infinitesimalmente longe. Sempre mais perfeicamente perto. Didi-Huberman sos alerta para o fato de que, no fim de Rua de mio tinica, Benjamin também discrimina ciéncia de embriaguez. Relembremos o fragmento: A CAMINHO DO PLANETARIO Se, como fez uma vex Hillel com a doutrina judaica, se tivesse de enunciar a doutrina dos antigos em toda concisio, em pé sobre uma perna, a sentenca teria de dizer: “A Terra pertencerd unicamente aqueles que vivem das forgas do cosmos”. Nada distingue tanto 0 homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiencia césmica que este dltimo mal conhece. O naufrigio dela anuncia-se jd no florescimento da astronomia no comego da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, ‘Tycho Brahe certamente nfo eam movides unicamente por impu tificos. Mas, no entanto, ha no acentuar exclusive de uma vinculacio ética com universe, a0 qual a astronomia muito em breve conduziu, um signo precursor daquilo que tinha de vir. O trato antigo com o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez. & embriaguez, decerto, a experiéncia na qual nos asseguramos unicamente do mais préximo ¢ do mais distante, e nunca de um sem 0 outro. Isso quer dizer, porém, que somente na comunidade 0 homem pode comunicar em embriaguez com o cosmos. Eo ameacador descaminho dos Jean-Luc Nancy. Embriagues, trad. Nicolis Gémer, Lams: La Cebra, 2014, p. 20. "Jean-Luc Nancy, 2014, pp. 3: "Jean-Luc Nancy, 2014, pp. 49-50. 9 RAUL ANTELO modernos considerar essa experiéncia como irrelevante, como descartivel, ¢ deixi-la por conta do individuo como devaneio mistico em belas noites estreladas. Nao, ela chega sempre sempre de novo a seu termo de vencimento, ¢ entio povos ¢ geragdes Ihe escapam tao pouco como se patenteou da maneira mais terrivel na ultima guerra, que foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as poréncias edsmicas. Massas umanas, gases, forgas elétricas foram langadas 20 campo aberto, correntes de alta frequéncia atravessaram a paisagem, novos astros cergueram-se no céu, espago aéreo e profundezas maritimas ferveram de propulsores, ¢ por toda parte cavaram-se pocos sactificiais na Mae Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetiria, ou seja, no espirito da técnica. Mas, porque a avidez de Iucro da classe dominante pensava resgarar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade ¢ cransformou o leito de népcias em um mar de sangue. Dominagio da Natureza, assim ensinam os imperialistas, € 0 sentido de toda técnica. Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominagéo das criancas pelos adultos como o sentido da educagio? Nao é a educaggo, antes de tudo, a indispensdvel ordenagao da relagio entre as geragdes e, portanto, se se quer falar de dominacio, a dominagdo das relacoes entre geragdes, € nio das criangast E assim também a técnica nao ¢ dominagao da Natureza: ¢ dominagio da relagdo entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie esto, decerto, hé milénios, no fim de sua evolusa mas a humanidade como espécie estd no comeso. Para ela organiza-se na técnica uma physis qual seu contato com 0 cosmos se forma de modo nove e diferente do que em povos ¢ farnslias. Basta lembrar a experiéncia de velocidades, por forga das quais a humanidade prepara-se agora para viagens a perder de vista no interior do tempo, para ali deparar com ritmos pelos quais 0s doentes, como anteriormente em altas montanhas ou em mares do Sul, se fortaleceréo. Os Luna Parks so uma pré-forma de sanatérios. © calafrio da genuina experiéncia césmica nao esté ligado Aquele mimiisculo fragmento de natureza que estamos habituados a denominar “Nacureza”. Nas noites de aniquilamento da tiltima guerra, sacudiu a estrutura dos membros da humanidade um sentimento que era semelhante & felicidade do epilético. E as revolras que se seguiram eram 0 primeito ensaio de colocar © novo corpo em seu poder. A poténcia do proletariado é 0 escalio de medida de seu processo de cura. Se disciplina deste nao o penetra até a medula, nenhum raciocinio pacifista o salvaré. O vivente sé sobrepuja a vertigem do aniquilamento na embriaguez da procriacio."” Benjamin nos diz, em poucas palavras, que a astronomia cientifica introduziu no mundo uma relagio de puro saber instrumental e ético que acabou por destruir a relacZo de embriaguez dionisfaca que os antigos mantinham com 0 cosmo. A Histéria, a partir de 1918, toma para si essa vertigem negativa, que s6 pode ser vivida como embriaguez revoluciondria quando experimentada em comunidade € assim elabora-se a vertigem do aniquilamento na embriaguez da procriagao."* Ora, antes mesmo de Benjamin, Araripe Jr. também nos fornece um exemplo interessante de embriaguez revolucionéria. Sabemos que, em 1893, ¢ nas paginas do Jornal do Brasil, 0 ctftico reivindica Gregérie de Matos, como caso exemplar de uma teoria da obnubilagio."> Ou seja, defende a ideia de que nada se vé sob a luz do sol tropical. E de noite, porém, quando vemos universo; ou, em outras palavras, na linha Mallarmé, Blanqui ou Benjamin, o erftico da obnubilagio entende que a eternidade ‘Walter Benjamin. Rua de mio sinica, trad, Rubens Rodrigues Torres Filho, José Carlos Martins Barbosa. ‘ Paulo: Brasiliense, 1987, p. 69. “4 Georges Didi-Huberman, “Livresse des formes et lllumination profane”, ln: Images Re-oues (En ligne]. Hors-série 2 | 2010, document 3, p. 3. STA. Araripe Jt, Literatura Brazileina — Gregbria de Matias. Rio de Janciro: Fauchon & Cian 1894. 100 A POESIA NAO PENSA (AINDA) dos astros s6 se vé através das constelagées. Mas Araripe Jr. também reivindicou Raul Pompeia como um escritor que potencializaria a contingéncia mallarmeana a partir da convicgao de que a obra de arte ¢ uma maquina de emogées." no entanto, Araripe sempre defendeu 0 panamericanismo, que ele considerava uma auténtica maquina do mundo. “O nosso socialismo consiste em nao deixar que a Europa entre na nossa economia; basta que nos entre na imaginagao.”"” Para resistir a esse progressive processo de aniquilamento, bem no inicio do século XX, muitas sio as iniciativas que a arte moderna nos propds pata se incorpo- rarem substancias ao corpo. Em 1914, por exemplo, Raymond Roussel imaginou, em Locus solus, a possibilidade de reter 0 tempo pela injegio de ressurrectina. Mais adiante, em 1928, época da Bauhaus e Macunafma, Alexander Fleming descobria as propriedades da penicilina, que s6 se exploraria em grande escala na guerra seguinte, apartir de 1943, quando Jackson Pollock expunha pela primeira vez em Nova York."® Mas antes ainda da primeira conflagracio, ¢ apesar de que sua légica ja estivesse efetivamente ativa, Araripe Jr. chegou a pensar, em 1909, que a crepusculina fosse a “medula substantifica das coisas humanas’."” Incrédulo, com efeito, perante os discursos degenerativos, ao estilo Max Nardau, que dominavam por entio a cena, acreditava que a crescente hegemonia norte-americana era mera consequéncia de um movimento epicicloidal civilizatério que assim naturalizava um sistema hierdrquico de engrenagens planetério, e por isso lancava vistas a0 Oriente, vendo na China essa origem que renovaria 20 Ocidente. Por varios motivos a interpretagio de Araripe equiparava a situagio, to enorme quanto isolada, do Brasil com a da China.2” O acontecimento da espiral cultural, em Araripe, duplicava assim 0 acontecimento crepuscular, esse sonho vespertino cuja metéfora mais contundente ¢ a poética de Mallarmé, aludindo sempre ao desaparecimento como tal. Na espiral, 0 novo sempre arte algo do velho que com ele também desaparece. Porém, assim como o primo antepassado de Araripe escreveu Lracema, romance fundacional no qual o nome da india anagramatiza o da propria América, 0 herdeito entendia que as redes simbélicas, na sua disposicao de avaliar 0 que acontecia na cultura, deveriam captar 0s dados como uma “imagem de cinematégrafo”, uma protese sensivel que ja nao se identificasse com a espiral de Goethe, nem com o he- No plano politico, v Aratipe Jr. Raul Pompeia. “O Atenew" 0 romance pricoldgico. Desterro: Cultura ¢ barbérie, 2013. A. Araripe Jr. Obra critica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, v. III (1895-1900), 1966, p. 219. “Lémergence, au d’but des années 80, d'un axe italo-germanique qui, pour la premigre foi en Europe, relevait le défi américin et proposait une peinture qui, d'inspiration néofigurative et de cradition classique, renouait avec le passé et balayait le puritanisme imposé par lx Guerre froide et ses séquelles culturelles — abstraction gestuclle, minimalisme, art conceptuel, rogacons faits pour des palais contrits ex des ventres hypocrites — est isi lige la redécouverte es vertus de la pate et du pain, ces formes évoludes de la cucillerre duu champignon sauvage. Dans le méme temps, les vertus de la pénicilline, comme on U'a dic, cédaiene devant la poussée du sida, opportunément venu nous rappeler que nous étions mortels et, 3 ce titre, animaux de jouissance autant que de mortification.” Jean Clair. De Cinvention simudtanee. De la penicilline & de Vaction painting, ct de son sens. Paris: ’Echoppe, 1990. ' Raul Pompeia. Obna critica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, v, III (1895-1900), p. 219. * Raul Pompeia. “A doutrina de Monroe", Revista Americana, Rio de Janciro, t. 1, fasc. II (dez. 1909), pp. 288-90. 101 RAUL ANTELO licoide de DeGreef, meras figuras geométricas planas, ¢ propunha pensar a questo, ent retanto, por analogia, com aquilo que se discutia por volta de 1900, em termos de uma quarta dimensao: Por isso parece que a epicycloide & a que mais se prescava a suportar 0 que inevitavelmente existe de aleatorio em toda a hypothese sociolégica.”" Assim, Araripe Jr. sirua-se em uma particular linhagem que pensa 0 tempo e © poder em termos espiralados, Hé uma longa ttadigéo ocidental imaginando a catdstrofe da histéria nesses termos. Sandro Botticelli, por exemplo, antes mesmo da Dai mai em o emblema parafisico de Ubu Ro: descoberta de Colombo, pinta um mapa do Inferno, ilustrando a Comédia de inte, em forma cicloide. O jesuita Athanasius Kircher grava, em 1679, uma das ores utopias ocidentais: A Torre de Babel. O jé citado Victor Delhez nos fornece, suas gravuras, potentes retomadas de Babel, mas mesmo ao final do século XIX, L Relembremos era, precisamente, uma espit que, na época de sua criagéo, em maio de 1896, Jarry resenha o Didrio de um anar- guista, de Augustin Léger, e nessa leirura traga 0 auténtico retrato desse portador da condecoracio da espanainal: 2 Raul Pompeia, 1909, p. ‘Um homem, por meio de maquinas inventadas por ele, ou reencontradss a partir de eradigdes perdidas para o resto, golpeia & distancia, ¢ segundo seu prazer, a qualquer um que atrapalhe sua liberdade perfeica. Forgas perto das quais a eletricidade dos fondgrafos e microfones de Edison, demasiado material, sio rudimentérias, mudam o mundo enquanto seguem sendo tio parecidas is causas naturais (caracteristica da obra do génio), que sem absurdo nfo se pode negé-las. O Natural ¢ 0 Sobrenatural esto as suas ordens. E por um lapso de vida, Deus lhe cedeu seu lugar de Sintese. Se nao caminha sobre o mar, como o outro Deus, € porque isso se poderia ver. Assim seria o proprio anarquista A, Léger transcreve de modo muito verossimil a evolugio, a partir de um tempo remoto, de um opperrrérrrio overrier] primata destes tempos burgueses ¢ evolutives, operirio para 0 qual dois séculos de progresso e civilizacao (entre eles o nosso, porgue isto acontece por volta do ano 2000) “determinaram” sua superioridade de espirito; que seu officio de tipdgrafo 0 ajude “a seguir as grandes correntes do pensamento contemporineo, ao sopro das quais se avivam as luzes naturais”, ¢ que complete sua educagio pela noite nas silas de leitura, Aproveita para “rechagar, por meio de suas préprias forgas, o jugo da superstic¢éo” gracas também, no enranto, a Lourdes e outras obras dos “mestres do pensamento”. Sua fe a Torre Eiffel, “que voltaremos a encontrar sempre, imperecedoura, indestrutivel, eterna como a ciéncia que a edificou”. Actedita o tempo inteiro ter atingido alguma coisa, sucessivamente militar, socialista ce anarquista, 0 que seria a continuacao mais acessvel. Episédio do militar um pouco celebrado, € entio sujeito na vertigem, horrorizado de franquear com armas e projéteis a viga elevada do 92, ® Jean-Hughes Sainmont via em Ubu uma personagem prodigiosa, construido por sobrio e seguro escultor dramé- 102 tico, mesmo que Ubii Rey nao seja, para falar com propriedade, uma eriagéo literdria, porque “a arte, no sentido «em que era encendida até eno, est ausence nesta obra"; 6, no entanto, una eriagdo jd que “toda arte consist sempre em suprimir a arte”, Za continuagio acrescenca que, das trésalmas que distinguia Plasto, da cabeza, do coragio ¢ da gidouille, a tripa espiralada, “esta iilrima somente, nele, deixou de ser embriondria. Eo simbolo selvagem desse ser intestinal, cruel ¢ abjeto, medo e rapacidade, inconscientemente gracioso como 0 sic todos os homens detrés das suas fachadas, sem se atrever a confessi-lo: seu duplo rebainede, J. Hughes Sainmont. "Ubi ola creacidn de un mito”. In: Alfred Jarry. Petaflsoa: epttomes, recenas, instruments y lecciones de aparato, trad. Margarita Martinez. Buenos Aires: Caja Negra, 2009, pp. 98-9. (A POESIA NAO PENSA (AINDA) portico, consegue passar porque nele se lé o Cédigo Penal, como mais tarde dispararé em um Fourmies qualquer, porque associou tal ordem monossilébica a uma crispagio falange do indice dircito, 20 que néo se pode negar, pois acreditou ter lido Darwin ¢ Spencer. Sensagio incémoda: muitos acontecimentos superpostos em caixas, explosdes eélebres, etc, Livro que tenderia a demonstrar que os opperrnérrrios anarquistas s40 péssimos literatos, € cujo herdi finalmente ¢ guilhorinado depois de beber, assim como € conveniente.”* segunda Mas nao muito depois de Araripe Jr., um grande contingente de artistas pensaré a questo do tempo e o movimento, quase fos mesmos termos que 0 paradoxo de Zenao: quanto mais o mundo gira, mais paralisado ele fica. Dois anos depois do artigo de Araripe, Marcel Duchamp pinta, em Paris, 0 Nw descendo a escada: nesse mesmo momento, na Irélia, Anton Giulio Bragaglia, que se deslumbraria pelas potencialidades anacrénicas do circo nos pampas, ensaia suas fotodinamicas com movimentos circulares. Os trabalhos de Giacomo Balla (1912), a Conseruci@o em es- piral de Boccioni (1913), a Celebragiio patriética (1914) de Carlo Carra se inscrevem nessa mesma linha. Estando em Patis, 0 chileno Joaquin Edwards Bello, que jé tinha presenciado uma sorte de Poremkim tropical, a rebeligo dos marinheiros negros no Rio de Janeiro de 1910, adere ao dadafsmo com um manifesto que sé conhecerfamos em 1921, “Espiral E] primer paso firme que dio ef dadaismo en el mundo fue en 1919, cuando nuestro jefe Tristan Teara, dijo — Sefiores: DADA no significa nada. Desde ese dia el dadaismo ha seguido progresando. —La dimensidn del infinito 0 arquitectura del silencio, de todo lo constantemente silenciaso, fue el punto de partida de la gran revolucién estética. Considerando los seres y las cosas como una pura ilusién, perfodos de evolucién, el artista médium puede transformar sorprendiendo al dempo. — Rebusca estética hacia el infinito, sujetindose a las normas de Ia concentracién espiral y giracoria. Sello de correo, maquinaria de reloj, barémetto, sartenes. Kangunt, foca, pingitinos, albatros, — La tiltima gran guerra, espiral silenciosa en el planeta, proporcioné a los nervios de Europa Ja necesaria laxitud, He ahi la verdadera importancia de la guerra América, equilibrio vacuno, repugna a DADA, — Laseudo solidez mental americana reird el chiste cien afios después. América es simplemente abono. ESTAFA, — DADA es bueno porque no concede ninguna importancia a la eternidad. — Historia, policia privada, cocina, box, medicina, todo es DADA. En todas partes esté DADA, DADA DA DADA DAR. — Todo DADA es cometa, mévil, materia sideral con espermatozoides vivos y saltones. DADA chocari con la absurda geometria de los astros. — Lacordillera de los Andes, tragedia espiritual sin comparacién posible, tiene una grandeza » Alfred Jarry. “Notice bibliographique: Augustin Léger— Journal d'un anarchiste”, Mereure de France, maio 1896, pp. 294-5 (radugio de trechos proposta pelo autor). 103 RAULANTELO que escapa a todas las disciplinas. El arco de triunfo y las pirgmides son monumentos absurdos, pantanales. Todo monumento es pensamiento antigiratorio: ¢s momia o manifestacién cadaverizante. Més vale un poste de celéfonos con su marafa de alambres en cualquier pueblo chato, con la condicién de que pueda ser mas feo toda — La verdad durard una hora a lo sumo, La materia es inmortal porque se destruye a cada instance EVOLUCION. — DADA destruiré a DADA, — DADA seré perseguido por los gobernantes. — Conelusién: DADA es lo infinitamente giratorio que forma el SILENCIO del todo. DADA es fermento astronémico, oblongo, gaseoso sin exageracién y de color amarillo, Pero no significa nada.” Apesar de anarquista, a espiral de Joaquin Edwards, como se vé, esta em linha direta com a torre de Tatlin para celebrar a III Internacional (1919-1920) ou com os calembours porn de Duchamp, em Anémic cinema (1926), que além de dissolverem decomporem as formas (as normas), mostram-nos a crescente visibilidade da entropia de massas. Por meio dessa mesma hipétese epicicloidal, Araripe Jr. elabora, portanto, uma inédica situacao de Brasil no novo cendrio global, que nao desdenha a légica imperial, ou seja, a dinamica de ascensio ¢ queda do poder, & maneira nietzschiana, mas preserva também para o pais uma nova dindmica hiperestésica ou, em extremo, hiperpolitica. (Ora, quem deante de um globo terrestre der-se ao trabalho de tragar uma linha acompanhando © movimento da civilizacio occidental (...), a partir do Imperio de Alexandre, ha de verificar que essa linha no fim de contas traduz um movimento comparavel ao epicycloidal, realizada a operacao em t6rno do Mediterraneo. Partindo do extremo desse mar, isto é, das bocas do Nilo e-da Asia Menor, a civilizagao humana, durante 0 periodo referido, rodou para © Occidente, envolvendo povos diversos na forma de pequenos circulos, e voltou, por ultimo, ao ponto de partida, depois de realizadas as revolucGes que constituem © que nos compendios se chama a historia antiga, Resta, entretanto, saber se essa marcha envolvente circular fechou-se ou rompeu-se, decompondo-se em outro movimento epicycloidal, Com certeza decompés-se. (..) A catastrophe foi completa, O desastre era inevitavel. E a Europa despendeu muitos seculos a expiat o grande “crime” da philosophia hellenica, ajoelhada deante de bispos, de papas, de reformadores, de prorestantes, illuminados, que andaram a resolver pela politica e até pelas foguciras questées de consciencia ¢ da salvagao eterna, — questdes que uma nagio asiatica empedemida jé havia alids eliminado do seio dos seus conselhos ¢ da arte de governo havia muitos seculos passados.”* Na verdade, Araripe apresenta a histéria nacional no marco da internacional, © esta, por sua vez, como uma histéria de saque, tema tao antigo como a propria globalizagao.® Em suma, a teoria que Araripe Jr. elabora em 1909, um ano antes % Joaquin Edwards. Metamorfasis. Santiago (Chile): Nascimento, 1979, pp. 13-5. >A. Araripe Jr. “A doutrina de Monroe”, 1966, pp. 292-3. % “3 comienzos del siglo XVI se expusieron en Ancwerpen piezas de oro de Tos autecas, sin que nadie hubiera planteado siquicra la pregunta por su duefio legal: Alberto Durero contempls con sus propios ojos esas obras de un arte de otro mundo completamente diferente, Sin los iconos interiores de los reyes la mayoria de los 104 A POESIA NAO PENSA (AINDA) da rebelido anarquista ¢ uma década antes que os dadafstas, ¢ abertamente ficcional ¢ espacial, uma vez que a multiplicidade dos ciclos, que reproduzem, no inicio do século XX, aquilo que a histéria descreve relativamente ao progresso da cultura gre- co-romana, revela que essa aco “no mais se exerce sobre um plano, porém sobre a esfera”, hipdtese que, infelizmente, Araripe logo abandona, porque “isto levar-me-ia a prolongar estas consideragées até uma regiao filos6fica, na qual eu nio desejo entrar por modo algum”.” O obnubilado recusa assim a embriaguez. Marca, sem querer talvez, a vitéria dos José Verissimo e da formalizacéo do moderno. “Tal questo se reativaria, recentemente, em duas leituras divergentes de Mallarmé. ‘Alain Badiou leu em varias ocasiGes o poeta da contingéncia, mas sempre a partir da hipétese de que a cra dos grandes poetas estava concluida, Em outras palavras, as grandes revolugées também chegaram ao seu fim ou pelo menos jé nao podem ser justificadas apelando a suas narrativas origindrias. Para Badiou, Mallarmé, apesar de nao ser elegiaco, nem ditirambico, também jé nao é lirico. Para poder Ié-lo, busca, no entanto, a Nogéo, o Numero, a Cifra, porque o isolamento, cujo emblema é a cena-muiltipla, fixa a separacdo e se constitui na operagéo suprema de sua poética. Mas como, em tltima instincia, Badiou propoe um Mallarmé que seria um Wagner sem mitologia explicita, seu discipulo, Quentin Meillassoux, enfatizou, no entanto, a busca nele de um novo cerimonial, que seria uma forma de afirmar a demanda do politico por trés da politica. Nessa cambalhota, Mallatmé se reconciliaria assim com Wagner, fazendo com que os movimentos da historia fossem alternativamente ridiculos e sublimes, novos ¢ recorrentes, reais ¢ icticios, o que nao seria exatamente uma falha de certezas revoluciondrias anteriores, mas sim a instalagio, envolvente e epicicloidal, de um parcimonioso salvez, que algasse a ceriménia da leicura a uma eterna hesitacéo entre 0 solenc ¢ 0 ittisério, o enigmatico e sua constelagio.” Mas essa constatagao nos obrigaria a recuat, mais uma ver, as ideias de Araripe, a sua reivindicacao da obnubilagao e, nesse sentido, caberia relembrar que, no uni- verso colonial, predomina a auséncia de caritas e, com ela, impera a metamorfose incessante como lei, Ougamos Gregério de Matos: Nasce 0 Sol, ¢ nao dura mais que um dia, Depois da Luz se segues noite escura, dirigentes expedicionarios de la globalizacién temprana no habrian sabido para quién —excepro para si mismos — tenian que conseguir sus éxitos: pero, sobre todo, no habrfan expetimentado a través de que clase de reconocimiento podian saberse completados, justificados y transfigurados, Incluso las atrocidades de los conquistadores espafales en Suramérica y Centroamérica son metdstasis de la fidelidad a majestades patrias, aque se hacen reptesentar en el exterior con medios extraordinarios. Por eso el ritulo de virrey no sélo tiene significado juridico y protocolario, sino que es, a la vez, una categoria que llega psicopoliticamente al fondo de la Conquista misma, Quedaron sin escribir los libros de los virreyes. Por su causa los reyes europeos estin pre~ sentes siempre y por doquier en las expansiones externas del Viejo Mundo, aunque ellos mismos nunca visiten sus colonias.” Peter Sloterdijk, Exel mundo inzerior del capital. Para una teoriafioséfica de la globalizacién, wad Isidoro Reguera. Madri: Sirucla, 2010, pp. 156-7. * Araripe Jr. "A doutrina de Monroe”, 1966, p. 295. * Alain Badiou. Condiciones, pref. F. Wahl; trad, Eduardo » Quentin Meillassous. “Badiou and Mallarmé: The Event Molina e Vedia. México: Siglo XI, 2002, id the Perhaps”. Parrhesia, n. 16 (2013), pp. 35-47. 105 RAULANTELO. Em tristes sombras morre a formosura Em continuas tristezas a alegria. Porém acaba o Sol, par que nascia? ¢ formosa a Luz & por que nao dura? Como a beleza assim se teansfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, ¢ na Lu, fate a firmeza, Na formosura nao se dé a constincia, E na alegria sinta-se tristeza Comeca 0 mundo enfima pela ignorancia, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstancia” Dessa nogio de que a firmeza conserva dentro dela mesma a inconstincia, ou seja, que 0 real seria 0 impasse da formalizacio, deriva a narrativa com que Frei Vicente do Salvador nos diz, na Historia do Brasil, que a expedi¢ao que derrota os batavos ¢ define a Bahia e o Nordeste para os portugueses, ou seja, a expedicao que inventa o Brasil, partiu de Cabo Verde no Carnaval ¢ chegou 2 Bahia na Péscoa.”" Deste modo, frei Vicente aventa a hipstese de que o Brasil nasce, portanto, nao definitivo, fagaz, entre duas datas méveis na circulagio dos astros. E isso nao 6 porque, como queria Bento Teixeira, a imagem é sempre um rascunho, um esboco, ‘mas porque a prépria sociedade ¢ concebida, desde o inicio, como anémica, quebra € subversio temporaria da ordem social, ou seja, a sociedade brasileira é fruto de uma embriaguez carnavalesca, mesmo que salva pela Paixdo de Cristo. 2. QUEM LE O POEMA? Aceitando a conclusio proviséria de que 0 naufrégio da construgo conota a fantasmagorizacao do Autor, caberia entao indagar de que modo podemos coneeber o leiror de um poema. Tomemos o percurso que Giorgio Agamben nos fornece para responder a essa pergunta nao sem antes relembrarmos 0 texto do qual ele parte © que também cita Raul Pompeia, em uma das Cangdes sem metro. Trata-se de “O infinito” de Leopardi: s+ Cosi tra questa Immensic’ s annega il pensier mios E il naufeagar m’é dolce in questo mare. Na tradugao de Ivo Barroso: -girio de Matos. Pormas escolbidos. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 13, Vicente do Salvador. Histévia do Brasil. Ed. revista por Capistrano de Abreu. $0 Paulo/ Rio de Janeiro: Weiseflog Inmdos, 1918, p. 563. 106 A POESIA NAO PENSA (AINDA) Imensido se afoga 0 pensamento: E doce ¢ naufiagar-me nesses mares. Relembremos entéo aquilo que Agamben nos diz em A linguagem e a morte: Pois certamente a poesia O infinito foi escrita para ser lida ¢ repetida inéimeras veres, © nés 2 compreencemos perfeitamente sem nos deslocarmos até aquele lugar préximo a Recanati (admitindo-se que tal lugar tenha existido algum dia) que algumas forografias nos mostram precisamente com a legenda: a colina ’O infinite, Aqui se revela o particular estatuto da enunciagio no discurso poético, © qual consticui o fundamento da sua ambiguidade ¢ da sua transmissibilidade: a instincia de discurso, & qual 0 shifier se refere, € 0 prdprio ter-lugar da linguagem em geral, ou seja, no nosso caso, a instincia de palavra em que qualquer locutor (ou leitor) repete (ou Ie) 0 idilio 0 énfinite. Como na anilise hegeliana da certeza sensfvel, aqui 6 Iso jf 6 sempre um Nio-isto (um universal, um Aguélo): mais precisamente, a instancia de discurso é desde o prinefpio confiada 3 meméria, mas de forma que memorével é a propria inapreensibilidade da instancia de discurso como tal (¢ nao simplesmente uma instancia de discurso histérica ¢ espacialmente determinada), a qual funda assim a possibilidade da sua infinita repeticao. No idilio leopardiano, o este indica jd sempre além da sebe, para lé do ultimo hhorizonte, na directo de uma infinidade de eventos de linguagem. A palavra poetica acontece, pois, de tal modo que o seu acontecimento escapa jé sempre em direcdo ao futuro ¢ ao passado, ¢ o lugar da pocsia ¢ sempre um lugar de meméria e repetigz0, Isco significa que o infinito do idflio leopardiano nao é simplesmente um infinito espacial, mas , também ¢ primordialmente, um infinito cemporal.® Mas Agamben ainda retomatia esses mesmos argumentos no preficio ao livro de Emanuele Coceia sobre a imaginacéo: Se il letcore medievale di Averro®, in una drastica contrazione fra Cordova e Atene, si ricrovava contemporaneo di Aristorele, qui, nel punto in cui il commentatore sembra prendere a oggerto se stesso, a essere condotta alla sua rivelazione @ la forma stessa del commento. Uno dei compiti che il libro si propone &, infact, l'interprecazione del? averroismo attraverso Pesposizione della sus forma, Ma questa forma — Ia forma-commento, appunto — si presenta come la forma sressa del pensiero. Em “Ideia da tinica”, Agamben também cita Paul Celan: “La poesia é l'unicita destinale del linguaggio. Dunque non — mi sia permessa questa verita banale, oggi che Ia poesia, come la veriti, sfuma fin troppo spesso nella banaliti — dungue non la dupl A essa citacio de Celan, 0 proprio Agamben acrescenta: Questa vana promessa di un senso della lingua & il suo destino, cio® la sua grammatica ¢ la sua tradizione. Linfante che, pietosamente, raccoglie questa promessa ¢, pur mostrandone la vaniti, decide tuctavia la verieh, decide di ricordarsi di quel yuoto e di adempierlo, & il poeta ” Giacomo Leopardi. Poesia e prosa, ed. Marco Lucchesi, tad. Ivo Barroso. Rio de Janeizo: Nova Aguilar, 1996. * Giorgio Agamben. A linguagen ea morte, Um semindrio sobre o lugar de negatividade, rad, Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2006, pp. 104-5 » Giorgio Agamben. “Introduzione”. In: Emanuelle Coveia, La trasparenca delle immagini. Aveiro’ e Laverroismo. Milo: Bruno Mondadori, 1995, p. x. “ Giorgio Agamben. Idea della prosa. Milgo: Keltrineli, 1985, p. 29 107 RAULANTELO Ma, in quel punto, Ja lingua sta davanti a lui cosi sola ¢ abbandonata a se stessa, che non Simpone pitt in alcun modo — piustosto (sono ancora parole, tarde, del poeta) si espone assolucamente. La anita delle parole ha qui veramente raggiunto Paltezza del cuore. Em A comunidade gue vem, por iiltimo, 0 filésofo nos diz: Come nella calligrafia del principe Myskin, nell'ddiote di Dostocvskij, che pud imirare senza sforzo qualsiasi scritcura e frmare in nome altrui (*l'umile igumeno Pafnuzio ha firmato qui"), il particolate ¢ il generico diventano qui indifferenti, e proprio questa @ I"idiozia’, ciot la particolarita del qualunque. Il passaggio dalla potenza all'atto, dalla lingua alla parola, dal comune al proprio avviene ogni volta nei due sensi secondo una linea di scintillazione alterna in cui natura comune e singolarita, potenza ¢ atto si scambiano le parti e si compenctrano a vicenda, Lessere che si genera su questa linea & essere qualunque ¢ la maniera in cui egli passa dal comune al proprio e dal proprio al comune si chiama uso — owvero exbes.” Se resumimes © percurso constatamos que o poema apela a uma certa idiotia. Nao se dirige a um individuo em particular mas a uma exigéncia, uma ver que ele est situado para além do necessario ¢ do posstvel. E essa caracteristica conota mais uma, no menos paradoxal, a de que todo poema ¢ inesquecivel, embora sempre se esquesa, 0 que, em tiltima andlise, demonstra que 0 poema € ilegivel. E, com efeito, em ‘A quem se dirige a poesia?”, Agamben responde que sta fala sustenta-se, como diria Vallejo, “por el analfabeto a quien escribo”. Mas o que significa dizer que um poema dirige-se a uma exigencia? Uma exigéncia nunca coincide com as categorias modais com as quais estamos familiarizados. © objeto da exigéncia nfo ¢ nem ne- cessétio nem contingente, nao é possfvel ou impossivel. No entanto, pode-se dizer que uma coisa exige ou demanda outra, quando a primeira coisa é, a outra também fem que ser, sem que necessariamente a primeira esteja implicando logicamente a segunda ou forgando-a a existir no Ambito dos fatos. Uma exigéncia é simplesmente algo além de toda necessidade ¢ toda possibilidade. E similar a uma promessa que s6 pode ser cumprida por aquele que a recebe. Nesse ponto, Agamben nos relembra, mais uma vez (cssa seria, de fato, uma cena irradiante da sua filosofia), que Benjamin escreveu alguma vez que a vida do Principe Myshkin exige permanecer inesquecivel, mesmo quando todos a esquecam. Da mesma forma, 0 poema exige ser lido, mesmo que ninguém o leia. Isto tam- bém pode se formular dizendo que, conforme a poesia demanda ser lida, ela deve permanecer sempre ilegivel. A essas alturas, Agamben associa essa exigncia com aquilo que Cesar Vallejo escreveu quando, ao definir a intengao final ¢ a dedicatéria de quase toda sua poesia, nio encontrou outras palavras a nao ser dizer que elas existiam pelo analfabeto a quem escrevo. & importante nos determos na formulagao aparentemente redundante “pelo analfabeto a quem escrevo”, pondera Agamben, porque, nessa formula, “pelo” significa menos um “para” finalista ou de destinacio, do que em “lugar de”; tal como Primo Levi disse que ele dava testemunho por — * Giorgio Agamben, 1985, pp.30-1. Y Giorgio Agamben. 1.2 comunita ebe viene. Tarim inaudi, 1990, pp. 21-2 108 A POESIA NAO PENSA (AINDA) isto é, “no lugar de” — aqueles chamados Muselmanner que, na gitia de Auschwitz, nunca puderam dar testemunho. Em suma, que o verdadeiro destinatario da poesia ¢ aquele que nao esté habilica- do para lé-la, Mas isso também significa que 0 livro, que é destinado a quem munca 6 ler4 — 0 iletrado — foi escrito por uma mao que, em certo sentido, ndo sabe ler e que é, portanto, uma mio iletrada. A poesia é aquilo que devolve a escritura ao lugar de ilegibilidade de onde provém, e aonde ela continua se ditigindo.* Mas nao é s6 Vallejo que conta aqui. Lezama Lima também nos fornece um outro exemplo de destinacio difusa. Se verificarmos 0 primeiro verso de Morte de Narciso, “Danae teje el tiempo dorado por el Nilo”, vemos, por exemplo, que Dénae “rece o tempo” que previamente o Nilo dourou, mas isso nos simula que a deusa tece um fio negativo (hilo, nihile) de ouro. Tecer manifesta a ago de um presente dilatado. Essa atividade € uma poténcia: o dispositive da trama supde o tecido, 0 fio da vida, o texto ¢ a textualidade, 'Trata-se, de fato, de uma cena de sintaxe, que deverd reordenar, com sua capacidade barroca de somar objetos ¢ sujeitos, 0 carter do proceso textual; o mecanismo artistico capaz de restituir 0 sentido e, certamen- te, a diferenga cultural de uma visio do mundo capaz de incorporar o dissimil, reconciliar os opostos, ¢ em tiltima andlise, ativar 0 didlogo. A sintaxe é 0 prinefpio da trama, a inteligéncia da incorporacao ¢ a politica interpretativa de demorar na significagao. Um dado da mitologia cldssica (Danae) interage (tece) a temporalidade de uma outra histéria antiga (gito). Portanto, essa figura metaférica, fundacional de um discurso mitopoético, constrdi-se com base nesses nomes ilustres, com base nessa trama de tempos dissimeis, que é a histéria cultural. Mas essa nova instancia do discurso poético, por isso mesmo, s6 se cumpre em outra trama de articulagoes, a leitura, Imediatamente, cada nome abandona seu arquivo original, que ¢ o modo de falar e de produzir novos discursos, para agora ingressar em um novo regime discursivo: 0 operativo do poema, onde os objetos se liberam de sua linhagem e onde séo projetados em compensagio em um presente incessante, que flui como outro rio, ¢ cria assim uma nova geotextualidade para o poema. Voltaremos, mais adiante, a questo dos fluxos geogréficos e temporais. Oswald de Andrade buscava também, nos anos 40, 0 orfismo na poesia. Lembremos que, em Um homem sem profissdo, 0 orfismo é associado inequivo~ camente & prdpria antropofagia, na medida em que Oswald podia ter o pior dos conceitos da Igreja, mas isso nao abalava nele um sentimento de experigncia religiosa do mundo, que ele mesmo decodificava com um “diciondrio de toremismo drfico”, ativo jé em idade infantil: Durante a provacio a angiistia a minha certeza drfica se robustece. A minha confianga no sobrenatural parece definitiva, Essa certeza drfica é uma alavanca presa geralmente & paré- quia mais préxima de cada um. A f que move montanhas. Dai a forga das religides que se gio Agamben. “To Whom in Poetry Addressed?”, trad. Daniel Heller-Roazen, New Observations, n. 130, 2015. 109 RAUL ANTELO contradizem, se bastem entre si, mas dominam 0 mundo humano, toremizando a seu modo © tabu imenso que ¢ 0 limite adverso — Deus, Por isso, niio se encontra povo primitive ou nagio civilizada sem a exploragao sacerdotal desse filio encantado que tece nossa esperanga imarcescivel. E a transformagao do tabu em totem.” Como entender, portanto, o elemento drfico em um poeta como Oswald? Ele guarda alguma relacio com o elemento érfico em Rilke. O proprio poeta alemao dizia que os versos no so, como muita gente acredita, sentimentos (temo-los sem- pre muito cedo), sio experiéncias.*" E, nessa linha, Furio Jesi argumentaria que “la nozione di un rituale di vita ¢ soprattutwo di un rituale de poesia ha evitato a Rilke di tidursi al silenzio anziché di praticare la poesia”. E lembremos que, ao abordar as Flegias, Jesi nunca hesitou em [é-las como simples ocasides retdricas para evitar 0 silencio. E poesia que néo tem nada para dizer mas que, no entanto, fala, 0 que pode ser entendido como confirmagio do niicleo assemantico da propria lingua- gem poética. Flas seriam, como antecipara Croce, um “poema didascalico, opera conclusiva” que, enxertando e montando uma série de topoi, recorrentes na poctica de Rilke, nos apresentam a linguagem do poeta como um instrumento cego, puro e mudo. Coincidentemente, em 1989, Jean-Christophe Bally, problematizando a questao da representagdo em poesia, raciocinava que, a partir do romantismo, hé uma evidente substituicao do hino pela prosa, ao passo que, na arquitetura, a equi- valéncia seria 0 abandono da fachada em beneficio da passagem, tal como teorizada por Benjamin. Nas artes plisticas, essa reviravolta adquire as feicbes do abstrato ¢ do informe, ao paso que, na musica, enfim, ela provoca que, abandonada a estrutura, todo acontecimento musical, como previra Adorno, se reduza a um confronto, a sés, com ele mesmo. Ora, desse processo, Bally conclui que toda a histéria da literatura moderna poderia ser resumida como a lura entre aquilo que busca colocar 6 sujeito para além de sua autoposi¢ao na linguagem ¢ aquilo que, pelo contrétio, busca reencontrar 0 charme da vocagéo oratéria sublimada."* Nesse sentido, o fim do hino coincidiria com a emergéncia do dispar ¢ do esparso. Mais recentemente, Giorgio Agamben propés um certo paralelismo entre imagem-propaganda e hino-doxologia. Na coincidéncia entre ambos os polos, imagem ¢ hino seriam linguagens sem con- tetido e, assim como as elegias de Rilke lamentam ¢ celebram, porque s6 no ritual ® Oswald de Andracle. Uns homnem sem profisste: sob as ordens de mamie. 3. ed, Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 1976, p. 89. (Obras completas, v. 9) ® Manuel Bandcira. “Antologia de definigdes de poesia’. Lets Artes, Rio de Janciro, 14 jul. 1946 Burio Jesi. “Rilke ¢ la poetica del rituale”, In: Letterarura ¢ mito, Con un saggio di Andrea Cavaletti. Tarim: Einaudi, 2002, p. 108. * “Se Orfeo & il pocta di una poesia dotata di contenuto, ammaliatrice, celebratrice, che dice ¢ cclebra la vetiti percid ammalia, la kore é la petsonificazione di una poesia che ¢ pura occasione retorica per non tacere, perché rion si pud totalmente racere, cioé perché il poeta non pud divenire fino in fondo oggetto, La fanciulla morea, ls ore, dei Sonetti, che net Sonetti prevale si Orfeo, & la fanciulla morta, la kav, Ia Lamentazione (Klage) delle Elegie: & Zelegia, il lamento che non ha altro contemuo che il feo di scogliere deliberatamente di non tacere, siccome non & possibile essere al tempo stesso pocta vivo e strumento muto, alice che ‘cieco & puro’ dell'inconoscibile.” Furio Jes. 1 zempo della eta, ed. Andrea Cavalerti. Roma: Nottetempo, 2014, pp.161-2. © Jean-Christophe Bally. La fin de Hymne. Paris: Christian Bourgois, 2015, pp. 130-1 uo A POESIA NAO PENSA (AINDA) da celebrago pode dar-se também a lamentagao, Agamben nos diz que o hino é “la radicale disattivazione del linguaggio significante, la parola resa assolutamente inoperosa e, tuttavia, mantenuta come tale nella forma della liturgia’. Mas como a liturgia, sendo originariamente, na Grécia, um servigo piiblico, torna-se, no cristianismo, uma cisto do opus dei, que gera, assim, uma aporia, em que se retine e separa tanto 0 mistério quanto o ministério, isto é, tanto 0 ato soterio- logico eficiente, quanto 0 servigo comunitétio dos clérigos, 0 opus operatum e o opus operantis Ecclesiae, ou ainda, em outras palavtas, afastam-se 0 poder ¢ 0 oficio, en- tendido esce como suspensao temporiia daquele,"* 0 objetivo do elemento érfico na poesia é, portanto, emancipar o hiato entre os dois fendmenos" e, indo alm deles, descobrir outros fendmenos, que emergem do intervalo entre eles mesmos, criando, na verdade, a possibilidade de ler movimentos fenomenais que se produzem gracas 2 outros, afenomenais, situados entre 0 oral ¢ 0 escrito, entre 0 passado ¢ o futuro ow entre a semidtico € 0 semantico, para assim postular uma quarta dimensio da cultura, que se firma, precisamente, a partir do dado néo-dimensional dela mesma. Isto posto, caberia pensar que, tanto o “Cantico dos canticos para flauta ¢ violao”, quanto “O Escaravelho de Ouro” ilustram esse proceso érfico ¢ circular em Oswald de Andrade. © primeito, um hino ao himencu, em que a palavra torna-se simples- mente inoperante, na medida em que ja nao ha, no ato, qualquer transcendéncia. Quanto ao escaravelho, hermético sinal egipcio por meio do qual, invertendo o raciocinio de Sloterdijk, Oswald tornar-se-ia um desconstrutor derrideano da meta- Fisica da presenca, ele devolve a0 poema a nogio da dissidéncia, muito presente no poema homénimo de Maiakévski, que pée distancia em relagao & propria ideia de comunidade ou identidade. Essa certeza rfica totemiza, a seu modo, o tabu imenso que €o limite adverso — Deus. Daf que 0 esforco da poesia brasileira pés-modernista (de que os derradeiros poemas oswaldianos sio mais do que ilustrativos: so a soleira indispensével para entender a poética de Haroldo de Campos) j4 nao se reduza a uma disjungio: ser (Deus) versus nao-ser (Diabo). © diabo quer nao-ser, ow seja, deseja nonada. Sua fala, mais do que simples transformagao do tabu em totem, é uma Teo(a)logia. Em outras palavras, trata-se, no érfico oswaldiano, de plasmar 0 que Hatoldo de Campos chamou de pés-utdpico: ele é a finitude da buena dicha, a pura tyché. Sua leitura esvazia, mas também abre, 0 apetite do rermite silenciew, para desfazer © né borromeano do dizer (0 bien dicho) ¢ permitir que a palavra ressoe como buena dicha, uma falsa moeda na palma da mao de uma vidente ou quiromante. Encerra-se entio nessa cifra toda a tematica do cerimonial, oscilando entre novo e velho, abjeto e sublime, irrisdrio ¢ solene, isto é, a constelacio e a noite. Como ainda diré o “Canto érfico”, de Drummond: “ Giorgio Agamben, Opus Deis archeologi dell ufcio. Home saver, Il, 5. Tarim: Bolliti Boringhieri, 2012, p. 38 © Ibid “Ver Giovanni Urbani. Per une archeologia del presente. Seritti sull'arte conremporanca, ed. B. Zanatdis pref. G. Agamben eT. Montanari, Milo: Skies, 2012 ul RAUL ANTELO No duelo das horas tua imagem atrayessa membranas sem que a sorte se decida a escolher. As artes pécreas recolhem-se a seus tardos movimentos. Em vao: elas nao podem. Amplo, vario tum espago estelar espreita os signos que se farzo docura, convivencia, espanto de existir, e mo completa caminhando surpresa nousro corpo.” Uma das linhas de fuga desse orfismo oswaldiano pode ser facilmente constatada, pouco depois, no cinema de Jean-Luc Godard. Com efeito, 0 método compositivo de Godard obedece, em poucas palavras, a um certo olhar de Orfeu. poucas p: No imenso exercicio de montagem que sio as Histoire(s) du cinéma, Jean-Luc Godard entéo vée revé, ele rerorna a um niimero considerdvel de momentos fomades por um miimero con- siderdvel de cineastas. O resultado € uma gigantesca montagem de citagées destinada (...) a destacar “imagens dialéticas” nas quais, enfim, certos passados ou “outroras” tém a chance de sc tornar “legiveis”. Legiveis de uma legibilidade que emerge tio somente por meio do evento produzido pela montagem, a saber, a colisio desses “passados citados” com o presente ou o “agora” daquele que revé, re-cita, remonta e reencontra. Nesse sentido, as Histoire(s) du cinéma assemelham-se muito a uma busca (récherche) do tempo perdido. Busca ou pesquisa do tempo por visdes ¢ revises interpostas ou, mais ainda, recompostas em uma economia de citagdes — enquadramento de imagens ou de frases — cuidadosamente montadas e remontadas, E uma récherche, ndo somente no sentido de uma “retomada” ou de uma anaminese, mas também no sentido de uma série experimental € exploratéria de “remontagens” sucessivas a partir de um corpus abrangente de planos cinema- togrificos, de imagens fixas, de textos ¢ de sons recolhidos lé ¢ ed. Nesse sentido, o cinema de Godard, como a poesia oswaldiana, pratica uma arqueologia do presente. Mas para melhor esmiugé-la ¢ avalid-la, é bom nao esquecer, contudo, que em texto de 1961, “Introduce aos vasos érficos”, José Lezama Lima também elaborou uma poética coincidente com a do tiltimo Oswald, mesmo quan- do invoca o ove de Eros, par do Urutu (1928) de Tarsila, que nasce precisamente da noite érfica para ordenar 0 Caos. © orfismo nunca se contentou com a hipéstase no reino dos sentidos, de uma esséncia ou figh- ra divina derivada da presenga dos deuses da natureza, estabelecia como que um circulo entre o deus que descende o homem que ascende como deus. Impregna essas duas espirais, que se complementam num cfrculo, na plenitude de um fiers lagos, ou seja, num mundo de total alcance religioso, mostrado numa teogonia em que o homem surge como um deus, coralino galo das pradeiras bem-aventuradas. Desaparecem os fragmentos habitéveis do temporal, para dar passagem a uma permanente histéria sagrada, escrita, desde logo, em tinta invistvel, mas rodeada de um coro de melodioso hieratismo. Tanto a luz como o cone de sombras, penetram © Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, pp. 412-4. * Georges fuberman, Pais cités par JLG. L'il de Pbimotre, 5, Patist Minuit, 2015, pp. 70-1 u2 A POESIA NAO PENSA (AINDA) nas possibilidades do canto, até o sombrio Hades, a morada dos mortos “que vivem”, sempre que o canto, que antes respondia presumidamente & luz, responde também na noite dos mortos. Os raptos, as perseguicdes dos familiares mais préximos eo encontro de dois deuses, continuam no mundo subterranco seu furor, como se a luz aquecesse os sentidos na plenitude do meio-dia estival. Nesse hierus logos do oxfismo, a deusa que passeia do vale sombrio a luz, se com a caminhante aflita que vai do sorriso 4 sombra devoradora, Uma teme ser raptada, a outra se orienta ate as vozes conhecidas, as eternas figuras que atravessam © patio do coscume. encontra A deusa atravessa assim 0 escuro da noite érfica, que se diferencia da noite unitéria e essencial. A noite de Parménides, um continuo que sempre afirma a existéncia do Uno, opée-se assim & de Orfeu, noite inacabada, que morre mas renasce, aportando assim um noyo saber. A dispersio drfica carrega entio sua prdpria unidade, a0 nos trazer 0 conhecimento ritual que surge com a noite. © canto inicidtico de Orfeu, com sua sedutora disseminacao por toda a natureza, discrimina-se assim dos rituais politicos ou civicos, porque, tanto em seu culto quanto no mito, Orfet aparece dissociado do grupo, da comunidade, da polis. Se a virtude fundamental da polis éa moderagao, 0 decoro ¢ 0 autocontrole (a sophrosyne), Orfeu ignora esses atributos ¢ nao é nem mesmo heroico, como o lutador timbrado pela areré, ¢ portanto é alheio ao hino civico e épico de seu tempo. Orfeu é uma figura complexa, um xama, uma figura liminar que, ao reunir 0 dionisiaco com 0 apolineo, encatna a coincidentia oppositorum de Nicolau de Cusa. tava Orfeu do lado dos que por asticia sabiam 0 nao sabes, ou seja, fingiam o nao saber, a inocéncia, © calmo pascer dos animais do tempo sem tempo? Ou estava situado no perfodo apolinco, em que havia uma ambivaléneia entre 0 saber ¢ o nao saber? Na realidade, o periodo Srfico teaz uma solugao que nao é mais a do perfodo apolineo. Traz um novo saber, am novo descenso ao inferno.” A seu modo, 0 sentimento érfico é também uma meditacio sobre 0 Tieté, jd que, segundo Lezama, A medida que se aprofunde o periodo compreendido entre esse século XV a.C. e 0 século XX a.C., epoca da mais poderosa relagio entre a cultura grega e a egipcia, ird se decifrando © mistério da existéncia real de Orfeu, a causa da submersio de sua figura ¢ os elementos obscuros que despertou e que foram a causa de sua ruina e de sua morte. Observe-se que a divindade com quem Caliope ¢ infiel a Apolo, representa a divindade de um tio, ¢ que depois de morto Orfeu, sua cabeca é arrancada do corpo e lancada a um rio, onde continua até que outras divindades hostis decidem oculté-lo pelo fogo.”! E provavel que uma fonte desse orfismo pottico, tanto de Oswald de Andrade como do préprio Lezama Lima, provenha da obra dos noves helenistas, como Gilbert Murray ou Werner Jaeger. Com efeito, este tiltimo nos informa que, nas or gias drficas, nao restritas a um sé lugar, encontramos uma espécie de ritos religiosos © José Lezama Lima. A dignidade ds poesia, ead. Josely Vianna Baptista. Sio Paulo: Acica, 1996, pp. 247-8. ® José Lezama Lima, 1996, p. 252. *' José Lezama Lima, 1996, p .255. us RAULANTELO (tehetat), dos quais nao ha provas antes dessa época, apesar de que se supunha terem. sido fandados por Orfeu. Como indica ironicamente Platio, profetas ambulantes ¢ mendicantes promulgavam regras pata a purificagio do homem dos pecados come- tidos a outra pessoas piedosas, tanto por meio da palavra oral, quanto por meio de optisculos. Eles chamavam, também, de brficas certas regras ascéticas de abstinéncia. Junto com prescrigdes de se abster de carne ¢ seguir uma dieta puramente vegeta- riana, vinha um mandamento que ordenava a justica na conduta da vida. Assim a religiosidade drfica tomou a forma de um bem definido Biog ou forma de vida; mas, 0, que requeriam certo grau de treinamento e, por conseguinte, tornava necessdria uma classe de homens profissionalmente prepatados para levé-los adiante.”” Mas, para além da conotagao wittgensteiniana do orfismo como forma-de-vida, € um fato que essas experiéncias serviam para o sentimento (TtaGeiv) deslocar a pedagogia (j1cSeiv), jé que também, envolvia a observagao de certos rituais de sacrificio, exorcismo e expia La experiencia de lo Divino en las iniciaciones se caracteriza como una verdadera pasién del alma en contraste con el simple conocimiento intelectual, que no necesita de una telacién especialmente calificada con su objeto, Una afirmacién como ésta nos lleva a concluir que para los iniciados era la divina naturaleza del alma misma, preservada de todo mal por su propia pureza inmaculada, una garantia de su susceptibilidad a las influcicias divinas.** Ora, a nogio corrobora a circularidade da linguagem poética jé que uma expe- rigncia sem hinos nem rituais é uma experiéncia sem metafisica, sem deuses ¢ cujo Xinico trabalho consiste no fluro do desencantamento do mundo. Heinrich Heine avangara essa ideia em “Les dieux en exil” (1835), ensaio publicado na Revue des deux mondes em 1853. Em 1880, porém, Mallarmé retomaria a ideia, em seu ensaio sobre os deuses antigos, admitindo que a linguagem tivesse se separado absoluta- mente da lingua das trocas, ¢ questionando-se também acerca da sobrevivencia contemporinea de mitologias tao arcaicas. Nous percevons donc, nous autzes modernes, mieux que ne le firent les peuples classiques, combien, dans leur forme primitive, ces on-dit étaient naturels en méme temps que dotés dune beauté et d’une véricé merveilleuses.** © Werner Jaegget. La teologia de ls primerasfilsofosgriegos, tad. J. Gaos. México: Fondo de Cultura Econémi 1952, p. 63. E, mais adiante, completa: “Gracias a una infatigable capacidad para animar el mundo pan- teisticamente, vuelven los viejos dioses a nacer en un nuevo sentido. El proceso evolutivo conduce desde los dlivinos personajes de la vieja religidn popular de Grecia hasta los divinos poderes y la divina Naturaleza de los Fildsofos y tedlogos. Las fzerzas deificadas de la natutaleza constituyen un estrato intermedi encre la vieja fe realista en particulares personajes divinos y la etapa en que lo Divino se disuclve por completo en el Universo. Aunque se las concibe como fuerzas naturales e incluso como partes de la naturaleza, siguen llevande nombres personales. En este respect siguen representando el pluralismo hondamente arraigado de la religidn griega. Pero a pesar de este punto de conracto estén muy lejos de las viejas divinidades del culto. Sus nombres silo son tun cransparente velo arcaizante que no oscurece en modo alguno su cardeter puramente especulativo. Aunque Ia Filosofia significa la muerte para los viejos diases, es ella misma religiéns y las simienes sembradas por ella prosperan ahora en la nueva teogonia” (p. 76). Werner Jnegger, 1952, p. 92. % Seephane Mallarmé. Ocuvres Completes, ed. H. Mondor. Pasis: Gallimard, 193 pe 1164, 4 A POESIA NAQ PENSA (AINDA) Mallarmé via seu tempo como passagem & agio. Se, no passado, reis ¢ deuses di- tavam & multidao o que esta deveria fazer, agora as massas querem ver pelos préprios olhos, ver com olbos livres. A arte seré cada vex menos intensa, gloriosa ou rica; mas em compensacao os artistas sero cada vez mais andnimos e impessoais, dissolvidos no suftégio universal. Dirfamos, portanto, que, do mesmo modo que Lezama, também Oswald de Andrade reescreve a antropofagia sub a luz do orfismo. Jé no final de 1946, 0 poeta sente-se inclinado a reescrever 0 manifesto de 1928, e propde, na Revista Académica, uma estrutura bipolar em que o artista determina a obra, mas a obra, paralelamente, determina o artista. © antropéfago habitard a cidade de Mars. Terminados os dramas da pré-histéria, Socializados os meios de produgio. Encontrada a sintese que procuramos desde Prometeu. Quando terminarcm os tltimos gritos de guerra anunciados pela era atémica, Porque “o homem cransformando a nacureza, transforma a sua propria nacurcza’, Mars. Nessa ldgica foi escrito um poema como 0 ja citado BUENA DICHA H4 quatrocentos anos Desceste do trépico de Capricémnio Da tfbua carbunculosa Das velas Que conduziam pelas estrelas negras palido escaravelho Dos mares Cada degredado insone incolor Como o barro Criards 0 mundo Dos risos alvares Das colas infecundas Dos fartos tigres Semearés dios insubmissos lado a lado De ddios frustrados Evocarés a humanidade, 0 orvalho ea rima Nas lianas construirés o palécio rérmita E da terra cereada de certos, Balida cle sinceros cincerros Na lua subirss Como a tua esperanga O espago € um cativeiro.” Youssef Ishaghpour, Aux arigines de lirt moderne, Le Manet de Bataille. 2. cd. Paris: La Diflérence, 1995, p. 28. © Oswald de Andrade, “Mensagem ao antropdfago desconheciso da Franca antéttiea". In: Bieta ¢ politica, ed. Maria Eugénia Boavencura. Sio Paulo: Globo, 1992, p. 286. * Oswald de Andrade, O Santeiro do Mangue e outros poemas, fixagio do texto ¢ noras de Haroldo de Campos. $0 Paulo: Globof Secretaria de Estado da Cultura, 1991, p. 45. us RAULANTELO Nessa mesma época, pés-histérica ¢ arquiantropofgica, Pierre Boulez levava 0 ideal construtivo do pensamento serial dodecafénico ao extremo. Enquanto verdade da forma musical, esse ideal nao temia seguir uma tendéncia varias vezes presente no modernismo: a reconstrugio da racionalidade da forma musical a partir de parime- tros fornecidos pela racionalizagio cientifica, “Quando se estuda o pensamento dos matemiticos ou dos fisicos de nossa época sobre as estruturas (do pensamento légico, das matemdticas, da tcoria fisica...), percebe-se, claramente, 0 imenso caminho que os muisicos ainda devem percorrer antes de chegar & coesio de uma sintese geral.”** A afirmacao nao podia ser mais clara: o ideal da razéo musical deve ser procurado no pensamento estructural que anima as matematicas ¢ a ciéncia. Fato que nao escapou a Adorno quando argumentava ser possivel afirmar que os serialistas nao inventaram arbitrariamente a matematizacéo da miisica, mas confirmaram, entretanto, um desenvolvimento que Max Weber, em sua sociologia da miisica, identificou como a tendéncia dominante da mais recente hist6ri musical — a progressiva racionali go da musica, quando ela alcanga sua realizagéo na construgao integral. O préprio objeto da poesia, para 0 Oswald dos anos 40, é fragmentério, tanto quanto o era para Maurice Blanchot, quem elaborava, paralelamente a essas leituras, um pensamento € uma fala por fragmentos, cujo objetivo Ultimo era dizer e pensar 0 objeto enquanto cle nao pressupée nenhuma toalidade prévia da qual ele derivaria, mas, ao contrério, a ideia era deixar esse fragmento derivar por si mesmo, fazendo da distancia, da divergéncia e do descentramento, uma afirmagio propositiva de uma nova relagéo com o Exterior, itredutfvel & unidade. Como mais tarde diria Deleuze, € preciso conceber cada fragmento como se fosse dotado de um mecanismo propulsor, ec longe de serem simples processos psiquicos, as projegdes, as introjegdes, as fixagbes, as regressdes, as sublimacdes so auténticos mecanismos cosmo-antropoldgicos. O homem reataria assim com um destino que € preciso ler nos astros ¢ planetas ¢, como dor: ele implica uma profundidade extensiva do céu, com aproximagées ¢ distanciamentos sem meio-termo, nimeros inexatos, uma abertura de nosso sistema, em suma, toda uma filosofia-ficgio, aca- tando a premissa de Dryden de que a ficgao ¢ a esséncia da poesia, mas abonando também a nogio de Heidegger, para quem mundo e mundo césmico nfo eram sindnimos. Como sabemos, Giorgio Agamben também se questionou, em seu livro sobre infincia ¢ histéria, de 1978, acerca da existéncia persistente de uma dupla significa- fo na linguagem, porque ¢ fato que o homem, ao cer uma infincia, ou seja, a0 se sabemos, o pensamento planetério nao é unific expropriar da infancia, a fim de se constituir como sujeito na linguagem, rompe com © mundo auténomo do signo ¢ transforma a pura lingua em discurso humano, em outras palavras, opera a passagem do semistico para o semantico. Na medida em que cle tem uma situagio in-fans, de nao-fala, ou seja, na medida em que ele ndo é na- turalmente falante, o homem s6 pode entrar na lingua, enquanco sistema de signos, % Pierre Boulez. Aponiamentos de aprendie. Sao Paulo: Perspectiva, 1983, p. 244. ne 4 POESIA NAO PENSA (AINDA) sea transformar radicalmente, ao constitui-la como discurso, Daniel Heller-Roazen, tradutor de Agamben para o inglés, pensa igualmente que a crianga seria capaz de articular uma amplissima variedade de sons jamais registrados em uma tinica lingua, ou mesmo em um conjunto de linguas. No apogeu do balbucio, a crianca nao conhece limite para a ctiagio, mas as criangas perdem assim toda a sua capacidade fonica na passagem do estado pré-linguistico & aquisigio de suas primeiras palavras. Isso poderia ser facilmente explicado, estrutural ou funcionalmente, pela estrutura simbélica e social, mas o surpreendente é que muitos outros sons, frequentes no bal- bucio, desaparecem também na lingua adulta, sendo reconquistados pela crianga sé depois de longos esforgos, que podem romar quase uma vida, como atesta o Primeivo caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, escrito a0s 37 anos. A existéncia da lingua néo equivale automaticamente & existéncia do sujeito, porque a lingua materna, ao tomar posse do novo falante, nega-sc a tolerat nele a menor sombra de outra linguagem adémica. Para Heller-Roazen, a0 menos duas consequéncias devem emergir da vor abandonada pelos sons que habitavam a ctianga na origem: uma lingua € um ser dotado de fala, razao pela qual ele aventa a hipétese de que as linguas adultas devem reter ainda que mais nao seja um vestigio, uma sobrevivéncia, do balbucio infantil. Uma ecolalia, resto desse balbucio indistinto e imemorial cujo apagamento possibilitou a linguagem, é a cinza da qual se constitui a linguagem postica ¢ 0 exemplo acabado disso, para Heller-Roazen, é a letra aleph do hebraico, som dificilimo de emitir que teria sido por isso mesmo esquecido. E também, como se sabe, 0 ponto, deslocado ¢ periférico, sulista, a partir do qual Borges vislumbra o orbe.” A desativacio inoperante que Agamben nos prope para ler um poema coincide, portanto, com esse balbucio. E uma experiéncia que atravessa seus escritos desde longa data. Em 1993, no ensaio sobre Bartleby la formula della creazione, lemos: Benjamin ha espresso una volea il compito di redenzione che egli affidava alla memoria nella forma di un'esperienza tcologica che il ricordo fa col passato. “Cid che la scienza ha stabilito” gli scrive “pud essere modificaro dal ricordo. Il ricordo pud fare dellincompiuto (la felicita) tun compiuto, ¢ del compiuto {il dolore) un incompiuto. Questo & reologia: ma, nel ricordo, noi facciamo un “esperienza che ci vieta di concepire in modo fondamentalmente ateologico Ja storia, cost come nemmeno ci é consentito di scriverla direttamente in concetti teologici”. UI ricordo restituisce possibiliti al passato, rendendo incompiuto 'ayvenuto e compiuto cid che non @ stato, Il ricordo non & né Pavvenuto, né Vinavvenuto, ma il loro potenziamento, il loro ridiventare possibili. E in questo senso che Bartleby revoca in questione il passato, lo richiama: non semplicemente per redimere cid che & scato, per farlo essere nuovamente, quanto per riconsegnarlo alla potenza, all ‘ indifferente verita della caucologia. Il “preferirei di no” @ la restitutio in integrum della possibilica, che lx mantiene in bilico tra Paccadere e il non accadere, tra il poter essere ¢ il poter non essere. Esso & il ricordo di cid che non é stato. © Daniel Heller-Roazen. Fealilias, Sobre 0 exquecimento das lnguat, trad, Fabio Akcelrud Du da Unicamp, 2010, passim, iorgio Agamben. Bartlhy, la formula delle ereazione, Macerata: Quodlibet, 1993, p. 79 1. Campinas: Edivora uz RAUL ANTELO Em 1996, em Categorias italianas, num fragmento sobre anagogia, Agamben comega dizendo: Nas indagagdes modernas sobre as escruturas métrieas, o eseriipulo da descrigao raras vezes vem acompanhado de uma adequada inteligéncia do seu significado na economia global do texto poctico. A parte alguns acenos de Hélderlin (da teoria da cesura na Anmerkung a tradugio de Edipo), de Hegel (a rima como compensacio do dominio do significado tematic), de Mallarmé (a crise de vers que ele deixa como heranga & poesia europeia do Novecentos) ¢ de Kommerel (o significado teolégico — ou melhor, atcolégico — dos Freirhytlmen), uma filosofia da. metrica falea, de resto, quase que toralmence em nosso tempo. E possivel extrair da anatomia especial do corpo de n’Ayna alguma ideia nesse sentido? Em todo caso, ¢ certo que a consciéncia de um poeta nfo pode ser indagada sem que se leve em conta suas escolhas técnicas, Num ensaio sobre poeta italiano Giorgio Caproni, o mesmo Agamben nos diz: Em Caproni, todas as figuras da ateologia chegam & sua despedida. A despedida é verdadeira- ‘mente a hora tpica do segundo Caproni, entendendo como segunda a estagdo que se anuncia com “Despedida do viajante ccrimonioso”, em 1965. [A coletinea com este nome tem, na edigio Garzanti de 1999, a data de 1960-1964 ¢ o poema em si, a daca de 1960 — A.EB.] No entanto, enquanto a infidelidade hélderliniana fazia questo precisamente que “2 memséria dos celestes nao findasse”, aqui domina uma sébria “deciséo de abrir mao”, tipica da Ligtria, em que também o pdthos ateolégico é definitivamente posto de lado ¢ a meméria dos divinos © dos humanos se eclipsa, deixando o campo livre a uma paisagem agora jé completamente vazia de figuras. Por isso Caproni conseguiu exprimir, sem sombra de nostalgia ou de niilismo, talvez mais do que qualquer outro poeta contemporineo, o ethos e, quem sabe, quase a Stimmnung da “solidao sem Deus” de que fala o Inserto do Franco cacador.* Em 2007, finalmente, em O Reino ¢ a Gléria, escteve: Oikonomia ¢ ctistologia sono — non soltanto storicamente, ma anche geneticamente — so- lidali ¢ inseparabili: come nell’economia la prassi, cosi nella cristologia il Logos, la parola di Dio, viene sradicato dall’essere ¢ reso anarchico (di qui le costanti riserve di molti fautori dell’ortodossia antiariana contro il termine homousias, imposto da Costantino). Se non si intende questa originaria vocazione “anarchica’ della cristologia, non & possibile comprendere né il successive sviluppo storico della teologia cristiana, con la sua latente tendenza ateologica, né Ja storia della filosofia occidentale, con la sua cesura etica fra oncologia ¢ prassi. Che Crisco sia “anarchico” significa che, in ulsima istanza, il linguaggio ¢ la prassi non hanno fondamento nellessere. La “gigantomachia” intorno allessere &, anche ¢ prima di tutto, un confflitto fra essere ¢agire, fra oncologia ed economia, fra un essere in sé incapace di azione e un'azione senza essere — ¢ fra i due, come posta in gioco, l'idea di liberea. Mas, pouco depois, em 2008, em Signarura rerum, retoma o que dissera em 1993, no ensaio sobre Bartleby: © Giorgio Agamben, Categorias ialianas. Fitudos de poética e literatume, cad. Carlos E. S. Capela, Vinicius N. Honesko ¢ Fernando Coelho. Florianopolis: Editora da UPSC, 2014, pp. © Giorgio Agamben. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, trad. ¢ org. Aurora Fornoni Bernardini. Floriandpolis: Editora da UPSC, 2011, p. 30. ® Giorgio Agamben. IL regu e li gloria. Vicenza: Neri Pozza, 2006, pp. 74-5. us

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