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AS INGERÊNCIAS PSICOLÓGICAS DE FIÓDOR DOSTOIÉVSKI EM

CONSONÂNCIA COM O EXISTENCIALISMO

“Apenas Dostoiévski, o grande destruidor da


integridade, o eterno dualista, penetra esse mistério.
É o único que consegue analisar perfeitamente as
emoções. A integridade dos sentimentos perde sua
forma, como se seus personagens tivessem uma
alma diferente de todos os que vieram antes.

Stefan Zeigst

RESUMO: O presente trabalho aborda a influência de Fiódor Dostoiévski na literatura mundial,


bem como sua contribuição para a formação do existencialismo. Inicialmente, se fará uma
apresentação biográfica do autor, para depois adentrar em suas obras e então destacar, a
grandiosidade de suas histórias e personagens para a literatura mundial. O mote central repousa
em fazer a aproximação entre a literatura de Dostoievski e as ingerências psicológicas que o
autor desenvolve a partir de seus personagens. Muitos deles, com uma abordagem considerada
existencialista. O tema se justifica na atemporalidade da obra do autor e também sua
importância no cenário literário e filosófico mundial. A análise se faz de forma bibliográfica
referente às obras de Dostoievski, bem como a literatura especializada no tema.

Palavras-chave: Fiódor Dostoiévski. Existencialismo. Literatura.

1. Introdução

A fascinação pelos autores russos é algo indescritível. Eles encantam leitores


de todos os lugares, de todas as épocas, idades e grau de intelecto. Uma obra de
Dostoiévski jamais passa despercebida, ela atrai, chama, seduz e embriaga o atento
leitor. Não há como ficar na superfície – é preciso mergulhar sem medo de que o ar
possa faltar, sem receio de voltar a respirar. A respiração não some – embora o
mergulho, a cada página, se torna mais profundo e a fenda do abismo se abre em
determinados encontros ou desencontros. Tragédias, mortes, metafisica, temas que
Dostoiévski vivenciou na gélida e escura Sibéria, em que viveu seus anos de

1
condenado – lhe impingem um ar de vida – sim, de vida, pois é essa vida que o fez
construir personagens que encantam e destroem um leitor, mas que não o
esquecem.
A par disso, destaca-se em suas obras, um conteúdo nitidamente
existencialista – corrente filosófica em destaque na França a partir dos anos 1945,
com a produção da obra de Jean Paul Sartre intitulada O Existencialismo é um
Humanismo. Essa abordagem filosófica destaca a existência do ser humano em
primeiro lugar, sendo que nas palavras de Sartre (2010, p. 18) “a existência precede
a essência” – ou seja, o homem, primeiro vem ao mundo e é, e depois se
conscientiza do que está ao seu redor, sendo ele próprio o causador e responsável
pela sua vida.
Nesse limiar, é que a ligação se faz com os personagens criados por
Dostoiévski com grande desenvoltura e maestria. Os personagens criados no âmago
de Dostoiévski sempre ficam postos nas luzes da ribalta para brilhar e se eternizar
na memória dos leitores.
O trabalho se divide em duas partes, sendo a primeira se constitui a partir de
uma abordagem histórica da vida e obra de Dostoiévski e a composição de seus
personagens, que vivem intensamente e sim, pode-se afirmar – muitos deles, de
maneira condizente com o existencialismo conduzido por Sartre, que será abordado
na segunda parte do texto. Esse é o mote do trabalho, realizar a ligação entre
Dostoiévski e o existencialismo com vistas a demonstrar que essa existência
precede e vive nos personagens dostoiévskianos, bem como em muitos de nós.

2. Dostoiévski e seu legado

Há uma clássica frase afirmando que “ostra feliz não faz pérolas”,
transportada para a vida de Dostoiévski, a verossimilhante se impõe. Dostoiévski
produziu muitas obras que são consideradas pérolas da literatura russa e
mundial. Ao analisar a biografia de Dostoiévski, denota-se que o autor, talvez
não tenha sido – pelo menos em grande parte da vida – “uma ostra feliz”, face a
esse fato, produziu inúmeras pérolas.
Nascido em 03 de outubro de 1821, nobre e russo, filho de médico, Fiódor
Mikhailovitch Dostoiévski transitou por experiências intensas e trágicas que o

2
poderiam ter levado a uma morte prematura ou a uma vida de fracassos. No
entanto, sua genialidade e resiliência fizeram com que superasse as dificuldades
vivenciadas e o fizesse produzir clássicos literários surpreendentes.
Dostoiévski começou a escrever ainda jovem. Considerado escritor,
filósofo, jornalista, com formação acadêmica em engenharia – profissão que não
atuou, pois se dedicou à arte de produzir histórias e personagens - intensos
personagens, como Raskolnikóv, Príncipe Micha, os irmãos Karamázov, com

Aliôcha, Dmítri e Ivan Karamázov, Aleksei Ivanovitch, Sônia, Nicolai Stavróguin e


tantos mais. Produziu, após ser liberado do presídio de Omsk, em 15 de
fevereiro de 1854, novelas, romances, contos jornalísticos e fictícios, também
atuou como editor e redator de sua própria revista, a qual fundou juntamente
com seu irmão, Mikhail.
A revista O Tempo, teve seu lançamento em setembro de 1860, embora o
nome de Fiódor Dostoiévski não pode aparecer, tendo em vista sua condição de
ex-presidiário. Mesmo assim, a presença de seus traços literários estava
presente e bastante acentuada. A dedicação a revista lhe definiu a rotina de
cerca de cinco anos seguidos, nos quais todas as suas energias eram
destinadas ao trabalho de editor e colaborador. A redação da revista ficava na
própria residência do irmão Mikhail, onde segundo Joseph Frank (2021, p. 359),
Dostoiévski “trabalhava dia e noite e só se afastava de sua mesa para dormir.
Ele escrevia a partir da meia-noite e prosseguia até as cinco ou seis da manhã;
dormia então até duas ou três da tarde e começava o dia por volta dessa hora”.
Dostoiévski dedicou-se a escrever e denunciar as questões sociais que
estavam acontecendo na Rússia, como a desigualdade extrema. Nas suas
revistas, seu tom ácido, incorporado ao sentimento de revolta da população em
geral, traduzido na primeira frase da publicação da revista, entoa que “vivemos
numa época extremamente notável e crítica”1 a , que nas palavras de Frank:

As revistas dos irmãos Dostoiévski, primeiro O Tempo e, depois, sua


sucessora A Época (Epokha), assumiram o lugar na literatura de porta-
vozes de uma tendência sociocultural independente chamada de
pótchviennitchesdtvo. Os pótchviennitchesdtvo tinham por princípio
ajudar a promover uma nova síntese cultural russa a partir da fusão do
povo e seus superiores cultos. Por outro lado, para a intelectualidade

1
O trecho consta na publicação da primeira edição da Revista O Tempo, publicada em setembro de
1860.
3
radical, todas as outras questões eram secundárias em face da melhoria
da sorte dos camponeses, da maneira que consideravam mais
compatível com a justiça social. (FRANK, 2021, p. 352)

Após o tempo dedicado às revistas, Dostoiévski abre espaço para o que lhe
consagrou como escritor: os romances. Suas obras mais importantes foram as
literárias, onde abordou, entre outros temas, o significado do sofrimento e da culpa;
o livre-arbítrio; o cristianismo; o racionalismo; o existencialismo; o niilismo; a miséria
social e humana; a violência; o assassinato; o altruísmo; além de
analisar transtornos mentais, muitas vezes ligados à humilhação, ao isolamento,
ao sadismo, ao masoquismo e ao suicídio.
As vivências desses personagens refletem o âmago do próprio autor,
onde em duas fases distintas perfectibilizam a sua maestria. Na sua primeira
fase, o ainda jovem Dostoiévski escreve Gente Pobre (seu primeiro romance
publicado, em janeiro de 1846, quando o autor tinha 24 anos). Nesse romance, os
personagens são humildes habitantes da cidade russa de São Petersburgo,
denunciando a miserabilidade de um segmento enorme da população. O romance
constituiu a primeira manifestação do romance social no país dos Czares. Mas
Dostoiévski vai muito além disso, muito mais do que um romancista social - ele entra
em suas personagens e sonda e desvela as profundezas das suas almas, em um
sentir e dialogar com elas.
A Rússia é um país que produz gênios e políticos de destaque, guerras e
revoluções. O ar gélido de seu imenso território penetra nos pulmões e vai de
encontro ao que é mais sublime e também mais aterrorizador nos homens.
Dostoiévski, após se envolver com a política, mais precisamente fazer parte do
Círculo Petrachévski2, teve resultados inesperados e muito dolorosos.
Dostoiévski foi preso em 23 de abril de 1849, jovem ainda, foi julgado e
condenado no dia 13 de novembro do mesmo ano. Essa condenação fez com
que na manhã de 22 de dezembro, Dostoiévski fosse levado para o pelotão de
2
No início de 1940, Petrachévski, começou a convidar seus amigos mais próximos para frequentar
sua casa e conversar, e então passou a se tornar o Círculo Petrachévski. Um grupo que envolvia
discussão literária, formado por diversos intelectuais considerados socialistas em São Petersburgo. O
grupo era organizado por Mikhail Petrashevski, que era seguidor do socialista francês Charles
Fourier. Dentre os membros do grupo, havia escritores, estudantes, funcionários públicos e também
oficiais do exército. Apesar de não haver qualquer ponto de vista uniforme em questões políticas, a
maior parte deles se opôs à autocracia do czar e ao sistema de semi-servidão. Dostoiévski era parte
integrante do referido grupo e contribuía com seus escritos.
4
fuzilamento. Em prontidão para ser executado – houve uma remissão da sua
pena que se transformou em uma condenação à prisão na gelada Sibéria. Esse
acontecimento transformou sua vida, o transformou de um homem comum à um
gênio da psicologia e da existência humana.
Na prisão, altera completamente sua visão de vida e mundo, e então, dá
início à sua segunda fase como autor, externando em suas obras a magnitude
humana face a todos os entraves que a própria humanidade proporciona aos
seus semelhantes, em termos de degradação, humilhação e também resiliência
e bondade.
Quando Dostoiévski finalmente é libertado das correntes siberianas, sua
mente e suas mãos anseiam por escrever, e então, um novo autor ressurge – como
uma Fênix que renasce das cinzas. Em sua memória, e em seu corpo, estão
presentes todos os fatos ocorridos no decorrer dos miseráveis quatro anos presos, e
então, Dostoiévski os transporta para o papel na condição de Memórias da casa dos
mortos.
Dostoiévski poderia ter se banhado no rio Lete 3, para esquecer dos
fatídicos acontecimentos vivenciados na prisão, no entanto, agindo como uma
ostra pronta para produzir sua pérola, busca na memória - desvela e não
encobre, todos os detalhes da crueldade de ser um prisioneiro de trabalhos
forçados. O sofrimento, a dor do flagelo do corpo físico e psicológico e então,
transporta para o papel sua percepção dos anos que ali viveu, escrevendo
Memórias da Casa dos Mortos, livro que o eleva e o coloca como o grande autor
russo. Stefan Zeigst, em um texto que exalta a vida e obra de Dostoiévski,
menciona que:

Foram três vezes em que a vida o ergueu e depois o derrubou. Ainda


jovem, experimentou o doce sabor da glória. Seu primeiro livro deu-lhe
um nome, mas logo foi novamente apanhado pelas duras garras que o
atiraram de volta ao anonimato: a prisão, a Katorga, os campos da
Sibéria. Em seguida, mergulha novamente, porém mais forte e com mais
coragem; suas Memórias da casa dos mortos deixam a Rússia em
alvoroço. Até o czar derrama lágrimas sobre as páginas dos livros, que
fez a juventude russa apaixonar-se por Dostoiévski. Funda uma revista e
sua voz atinge todo o povo; surgem os primeiros romances. (ZEIGST,
2021, p. 23)

3
Na mitologia grega, Lete é um dos rios do Hades. Para aqueles que bebem de sua água ou, até
mesmo, mergulham ou tocam na sua água experimentariam o completo esquecimento, todos os
resquícios da memória são apagados. Lete simboliza o esquecimento.
5
Assim, o ponto nevrálgico da existência do autor foi vivenciado na prisão,
onde sua sensibilidade e genialidade foram maximizadas, memorizou todas as
funções dos condenados, de como se vivia, ou melhor – sobrevivia; como o dia
era preenchido por atividades obrigatórias; os serviços forçados; os pés
acorrentados e descalços em um ambiente que beirava 40° negativos; a morte
rondando cada “forçado” a todo instante; a maldade humana vertendo nos olhos
dos administradores da prisão – mas também, a remissão daqueles que sentiam
que o sofrimento do corpo poderia levar à libertação dos “pecados” outrora
cometidos. Zeigst, refere que:

Por quatro anos, todo o seu horizonte mantém-se limitado por mil e
quinhentas estacas de carvalho. Nelas, marca dia pós dia os quatro
vezes 365 dias, entalhando com lágrimas nos olhos. Seus companheiros
são criminosos, ladrões e assassinos; seu trabalho é partir alabastro,
carregar tijolos, retirar neve com a pá. A Bíblia é o único livro permitido.
Um cão sarnento e uma águia aleijada são seus únicos amigos.
Dostoiévski padece quatro anos na ‘casa dos mortos’, no subsolo, uma
sombra entre as sombras, sem nome e esquecido. (ZEIGST, 2021, p.
38)

Nesse livro, retrata parte das atrocidades vivenciadas, descrevendo os


acontecimentos lamentáveis ocorridos com alguns colegas de prisão, mesmo que
sob a ótica de uma história vivenciada por um personagem que fora condenado por
assassinar sua esposa. Dostoiévski, não se atreveu a narrar os fatos fidedignamente
como se seus fossem, prudente, inventou uma “entrada” para seu texto.
Otto Maria Carpeaux (2018, p. 11), no prefácio de Memórias da Casa dos
Mortos, escreveu que “o livro é uma crônica exata dos quatro anos passados na
prisão de Omsk. É estritamente autobiográfico. No entanto, Dostoiévski resolveu
disfarçar esse fato. Apresentou as memórias como as de um criminoso
condenado a dez anos de prisão por ter assassinado a “mulher”. Ainda, no que
tange à Memórias da Casa dos Mortos, Carpeaux enuncia que:

Com efeito, Memórias da Casa dos Mortos não é uma grande


reportagem, mas obra de arte literária. Para saber isso, basta
acompanhar, passo a passo, os fatos reais daqueles quatro anos e os
fatos narrados. Tudo corresponde, realmente, à verdade. Mas nem tudo
que se passou está narrado. Memórias da Casa dos Mortos caracteriza-
se como obra de arte pela seleção dos fatos narrados, seleção
possibilitada por aquela serenidade que os críticos incompreensivos
denunciam como masoquismo e cumplicidade. Não foi, aliás, nada
omitido com o fim de abrandar a dura e terrível realidade dos fatos; mas
6
só para distribuir melhor as luzes e as sombras, como um terrificante
quadro de Goya. E certos episódios – o de banho, por exemplo, ou o da
representação teatral – foram elaborados com uma arte que quase
lembra (embora só quase) certos episódios de Madame Bovary.
(CARPEAUX, 2018, p. 14)

Dostoiévski, envolto em sua concha (ou presídio), protege sua pérola


(sua mente), e inicia Memórias da casa dos mortos com a descrição do
ambiente ali vivido – inóspito:

O nosso presídio erguia-se no limite da fortaleza, mesmo dentro do


bastião. Se alguém se lembrasse de olhar através dos intervalos do
muro para a luz do sol, não veria nada...isto é, veria unicamente uma
nesguinha de céu por cima do alto baluarte, de dia e de noite,
passeavam as sentinelas; e logo a seguir pensaria, se esse alguém, que
teriam já decorrido muitos anos, voltaria a olhar pelas fendas do muro e
tornaria a ver o baluarte, as mesmas sentinelas e essa mesma
nesguinha de céu, não desse céu que fica sobre a prisão, mas de outro
céu, longínquo e livre. (DOSTOIÉVSKI, 2018, p. 25)

A constante angústia para aqueles que habitam a prisão, onde a


incerteza é o sentimento que os acompanha constantemente. A expectativa de
uma possível vida após ganhar a liberdade, se esvai a cada espancamento e
acoite, a cada noite sem alimento e cobertor. A vida, simplesmente definha a
cada dia na prisão, onde a angústia faz e refaz em um constante devir. Ela não
cessa, e sim, se reconstrói a cada instante nas percepções dos apenados
Após a publicação de Memórias da Casa dos Mortos, que o elevou e o tornou
conhecido em toda Rússia, fazendo com que até o czar Nicolau 4 se emocionasse ao
ler, conforme mencionado por Zeigst. Seu sucesso o alavancou a altos patamares
com as obras como Crime e Castigo, O Idiota e Os Demônios. Foi entretanto, já
próximo da morte que Dostoiévski consolidou-se um dos maiores escritores de todos
os tempos com sua obra-prima Os Irmãos Karamazov. Dostoiévski se torna o
grande e incomparável autor russo, para muitos literatos e críticos, mais ficando ao
lado de Tolstói e Gógol, mas sim à frente destes.
Um dos temas mais abordados pelo autor e que permeia toda sua vida como
um todo, é a presença de Deus. De destacar que, apesar de as vezes nos

4A referência se faz ao czar Nicolau II (1868-1918), que foi o último czar russo da longa dinastia dos
Romanov que governou entre 1894 e 1917.

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transparecer que Dostoiévski não era cristão, eis que seus personagens são
intrincados de miserabilidade e também de questionamentos, no entanto, se tem
evidencia de que provavelmente a maior influência nos trabalhos de autor foi
justamente a figura de Jesus Cristo, em forma de pessoa, o símbolo, o que o fez por
meio da Bíblia e da interpretação ortodoxa.
Dostoiévski nunca deixou de ser cristão e teve intenso contato com o texto
bíblico na prisão, onde apenas este texto era permitido. Muitas de suas obras
contêm reflexões sobre o cristianismo e inclusive apologias, como é o caso de O
Idiota, o tipo cristão perfeito, o mito do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov,
entre outros. Deus é presença constante nas obras e na vida de Dostoiévski, além
do capítulo específico de o Grande Inquisidor, a metafísica cristã é o elemento que
direciona, acaricia, aperta, machuca, encanta ao mesmo tempo em que desativa,
destrói e amargura seus personagens. Zeigst, ao fazer referência a presença de
Deus em Dostoiévski, ressalta que:

Este Deus é o problema oculto em todas as obras de Dostoiévski: o Deus


que existe dentro de nós, o Deus que existe fora de nós, e a forma como
sentimos seu despertar. Como um homem verdadeiramente russo, o maior
de todos eles e o que mais se aproximou da essência desse povo de
milhões de pessoas, a pergunta por Deus e a imortalidade é “a mais
importante da vida”, como ele próprio afirmou. Nenhum de seus
personagens a pode eludir: ele cresce como uma sombra de suas ações,
ora correndo à sua frente, ora perseguindo-os no remorso. Não há
escapatória a esta pergunta e, ao tentar negá-la, Kiríllov, o mártir do
pensamento de Os demônios, precisa se matar para matar Deus, e
apaixonadamente acaba por provar sua existência inevitável. (ZEIGST,
2021, p. 128)

Dostoiévski é enaltecido por críticos literários de todos os países, e não


passa despercebido pela caneta de Carpeaux, que em sua coletânea de História da
Literatura Ocidental, dedica uma parte para o autor russo, fazendo a ligação entre o
Deus de Dostoiévski e a filosofia existencialista do mesmo, afirmando que:

O cristianismo de Dostoiévski é radical: é a religião “existencial” de uma


angústia que vê aberto, aos seus pés, o abismo da anarquia e da danação
eterna. Essa angústia de Dostoiévski é incomensuravelmente mais radical
que a angústia de semelhantes espíritos europeus, que sempre guardam
um restante de disciplina humanista: pois Dostoiévski é místico eslavo.
(CARPEAUX, 2012, p. 411)

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Para Carpeaux “os romances de Dostoiévski são vastos panoramas sociais
de composição incoerente, mas compostos de concisas cenas dramáticas nas quais
os conflitos ideológicos se condensam”, (2012, pg. 414). Esses conflitos que surgem
no âmago dos seres humanos são causados pelos conflitos existenciais, que muitos
surgem da própria liberdade e das escolhas realizadas ao longo da vida.
Essa abertura para a cristandade, não se manifesta como forma de redenção,
mas sim de vivência. Todas as situações que se apresentam na vida cotidiana não
permeadas por algo divino, seja maravilhoso ou penoso. Há um Deus sempre
presente, e esse Deus dispõe das forças e transporta para os humanos enquanto
seus semelhantes. Mas também é um Deus que desperta inquietudes, que faz o dia
amanhecer e também anoitecer, é a luz e a escuridão, onde a dualidade e a
ambivalência se mostram nos momentos mais sofridos de Dostoiévski – como
ocorre por ocasião da morte de deu filho, a sensação é somente de escuridão.
Nesse viés, Zeigst, refere que:

O Deus de Dostoiévski – é a origem de toda a inquietação, a origem dos


opostos, simultaneamente o sim e o não. Diferentemente das pinturas dos
antigos mestres, ou dos escritos dos místicos, em que ele levita suavemente
acima das nuvens, ema elevação tranquila e bem-aventurada – o Deus de
Dostoiévski é a centelha primordial que une os extremos desses contrastes
primeiros: ele não é um ser, mas um estado, um estado de tensão. Assim
como os homens, como o homem que o criou, é um Deus insuficiente, que
não se rende à batalha, em que o pensamento não se esgota, e que não se
satisfaz com nenhum fervor. É eternamente inacessível, o maior tormento
de todos e é por isso que o clamor de Kirilov irrompe também dentro de
Dostoiévski: ‘Deus me atormentou por toda a minha vida! ”. (ZEIGST, 2021,
p. 128)

Muitos autores e críticos literários se debruçaram com o fito de historiar a vida


e obra de Dostoiévski, Joseph Frank é um deles. Considerado o biógrafo que mais
escreveu sobre o autor, com uma biografia de mais de três mil páginas sobre
Dostoiévski, onde revive momentos da vida do autor com emoção e precisão, como
quando se refere a experiência de Dostoiévski na leitura da Bíblia, mais
precisamente no livro de Jó. Nessa perspectiva, Frank, menciona que:

Anos mais tarde, quando estava lendo mais uma vez o Livro de Jó,
Dostoiévski escreveu à esposa que ele o punha em estado de “estase
insalubre” que quase chorava. ‘É uma coisa estranha, Ánia, este Livro é
um dos primeiros que me impressionaram, quando eu ainda era quase
uma criança. “Há uma alusão a essa experiência reveladora do jovem
rapaz em Os Irmãos Karamazov, quando Zossima relembra ter ficado
impressionado com uma leitura do Livro de Jó com a idade de oito anos e
9
sentir que “pela primeira vez na minha vida recebi conscientemente a
semente da palavra de Deus em meu coração. (FRANK, 2010, p. 60)

A partir do excerto, comprova-se que sim, a existência de Deus é o mote para


a criação de muitos de seus personagens, a partir de sua vivência e da sua fé. A
partir da passagem do Livro de Jó, Dostoiévski criou o personagem Ivan Karamazov,
que vai contra a injustiça de Deus, na célebre passagem de O Inquisidor do livro
Irmãos Karamazov. Sua alma, se vê constantemente interpelada a prosseguir
mesmo diante de todas as agruras que a vida lhe impôs. A sua resiliência emocional
e física, que mesmo acometido de diversas doenças, dentre elas a epilepsia que o
deixava tantas vezes transtornado e o impedia de escrever, de certa forma serviu
como propulsor para sua maestria na escrita.
Todas as obras de Dostoiévski possuem um elemento de dor, sofrimento e
muita angustia. A preparação de Raskólnikov para assassinar a agiota a quem lhe
emprestava dinheiro, e de relance, também, a sua velha irmã, a qual apareceu no
local no momento do assassinato é permeada de angústia e sofrimento, ao mesmo
passo que possa com o ato de tirar a vida dela possa lhe ser a salvação financeira
posterior. No entanto, após cometer os assassinatos, Raskólnikov, se encontra em
estado de digressão e com a ajuda de sua amada Sonia, se arrepende e por meio
da angústia que lhe assola, em um estado de catarse, confessa seus crimes com
imenso arrependimento e sentimento de culpa.
A nitidez do sentimento de angústia com que Dostoiévski compõem seus
personagens resta evidente, desvelada a olhos nus para o leitor, que atento às suas
palavras reporta-se a uma sociedade permeada de sentimentos conflitantes e
desafiadores. A angústia, teve respaldo para outros autores – filósofos, que
conseguiram captar, a partir de Dostoiévski inúmeras ingerências.

3. A ligação entre o traço existencialista sartriano e a obra de Dostoiévski

Dentro da filosofia, há várias correntes e movimentos – um deles, é o


existencialismo, tendo como autor de destaque, o filósofo francês Jean Paul Sartre,
o qual consolidou essa corrente com sua obra O Existencialismo é um Humanismo.
Nela, o autor destaca - em cores primárias, que o homem, é o único responsável por

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suas vivências enquanto ser, primeiro existe em si, e depois percebe, sente o mundo
ao em torno, transporta e irradia elementos para o mundo externo.
Sartre revela a essência do existencialismo em sua célebre frase “a existência
precede a essência”, e para explicar essa definição, apresenta uma comparação ao
se referir ao existencialismo:

Quando consideramos um objeto fabricado, como um livro, ou um corta-


papel, por exemplo, esse objeto foi fabricado por um artífice, inspirado em
um conceito; ele tinha como base o conceito de corta-papel e, também, uma
certa técnica de produção anterior que faz parte do conceito e que no fundo
é uma fórmula. Desse modo, o corta-papel é simultaneamente um objeto
que se produz de determinada maneira e que, por outro lado, possui uma
utilidade definida, e não se pode supor que um homem produza um corta-
papel sem saber para que tal objeto serve. Então dizemos que, para o corta-
papel, a essência – ou seja, o conjunto de procedimentos e das qualidades
que permitem produzi-lo e defini-lo – precede a existência; desse modo a
presença diante de mim de tal corta-papel ou de tal livro está determinada.
(SARTE, 2014, p. 18)

Na ótica do existencialismo sartriano, o ser humano não possuí uma essência


que o determine, que guie a sua existência. Dessa forma, terá que encontrar uma, e
fará isso a partir de escolhas que acontecerão na vida e que ocorrerão na sua
relação com o mundo. Não há determinação, e sim escolhas, que vão desde as mais
simples e cotidianas até aquelas que nos exigem mais tempo para serem tomadas,
todas possuem um sentido e um valor, aja vista que cada escolha é também uma
renúncia.
Sartre percebe isso de uma forma universal, de que escolho o que é o melhor
para mim diante da situação na qual estou inserido. E esta dinâmica se estenderá
por toda nossa vida em diferentes esferas, já que a todo momento estamos fazendo
escolhas e elas revelam os valores que, pela liberdade, elegemos para o mundo.
Nesse viés, o entendimento que se segue é que, por existencialismo,
entende-se uma doutrina que torna a vida humana possível e que, mas que também
declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade
humana, e essa subjetividade é o elemento norteador dos seres humanos enquanto
perfectibilizam sua trajetória. Compreender o ser humano enquanto totalmente
responsável pela sua vida e essência, isto é, sem a influência da metafísica, sem um
Deus a guiar a humanidade por determinados caminhos – esse é o mote do
existencialismo – existir e ser senhor de si, a partir de suas escolhas pessoais. E
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aqui, a imbricação com Dostoiévski se apresenta, eis que seus personagens são
construídos amparados em suas escolhas, definidas a partir de reflexão e angústia,
próprias do ser humano.
Nessa perspectiva, para Sartre, não existe algo que anteceda o ser humano
que seja capaz de determinar sua existência. A intenção é negar qualquer forma de
valores preexistentes no mundo que poderiam justificar e definir as condutas
humanas em si, não há destino. Como o existencialismo sartriano é uma filosofia
ateia, pretende-se também excluir a ideia dos valores religiosos, negando assim,
conceitos que dizem respeito a certo e errado, bem e mal que estão vinculados a
esses tipos de crença. Sartre nega qualquer tipo de essência que tem a intenção de
explicar e determinar a existência humana.
O existencialismo também destaca, a subjetividade humana como limiar de
desenvolvimento de cada ser. Ainda que seja ateu, para o autor, mesmo que Deus
não exista, há ao menos um ser cuja existência precede a essência, ou seja, um ser
que existe antes de poder ser definido por algum conceito, ou alguma limitação e
que tal ser é o homem ou, como diz Heidegger, a própria realidade humana.
Mas o que realmente significa afirmar que a existência precede a essência?
Para Sartre, significa que o homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e
se define em seguida.

Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em


posse daquilo que ele é responsável por si mesmo, não queremos dizer que
o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que ele é
responsável estritamente por sua individualidade, mas que é responsável
por todos os homens. Há dois sentidos no termo subjetivismo e nossos
adversários se aproveitam desse duplo sentido. Por um lado, subjetivismo
expressa a escolha do sujeito individual por ele mesmo e, por outro,
significa a impossibilidade humana de ultrapassar essa subjetividade.
(SARTRE, (2014, p. 20)

Os existencialistas, tanto Heidegger quanto Jean-Paul Sartre, consideram o


ser humano como um ser livre para fazer de si o que quiser, pois, ao contrário de
outros seres ele é capaz de refletir sobre sua existência, e tal consciência converte-
se em total liberdade. Mesmo tendo nascido sem um sentido predefinido, sendo um
ser-aí colocado no mundo em determinada situação com um tempo, local, família e
convivência escolhidos por ele, o ser humano é um ser de possibilidades, podendo
se definir de acordo com as suas escolhas. Sartre propõe fazer uma retomada

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acerca da responsabilidade do ser humano por sua própria vida. Com isso, o autor
afirma que:

A primeira decorrência do Existencialismo é colocar todo homem em posse


daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por
sua existência. E quando dizemos que o homem é responsável por si
mesmo, não queremos dizer que ele é responsável estritamente por sua
individualidade, mas que é responsável por todos os homens. (SARTRE,
2014, p. 26)

Segundo Heidegger, o ser humano, como ser-aí, estando no mundo, não é


um mero objeto e sim, possibilidades, encontrando-se, dessa forma, diante da
necessidade de alcançar o que o filósofo chama de transcendência existencial, não
bastando para tanto existir, é necessário também transcender a existência,
ultrapassá-la, projetando-se e indo além do que está posto para se construir como
ser.
Nesse sentido, a existência é poder-ser, é possibilidade de ser, de se
expandir, de não mitigar a própria existência, não minimizar, mas sim maximizar
todas as possibilidades que o ser possui enquanto ser vivente. O ser humano possui
a necessidade de projetar e nesse aspecto, o mundo apresenta-se como uma
ferramenta para que ele alcance seu objetivo, projetando e construindo seu próprio
mundo.
Por essa razão, Heidegger considera que o ser humano é um ser-no-mundo,
pois é diante do mundo e por meio dele que o homem precisa se construir. O mundo
é assim, uma construção humana: construindo-o e modificando-o, a pessoa constrói
e modifica a si mesma, e consequentemente seu em torno de vivência
(HEIDEGGER, 2018).
Nessa construção e composição do ser, um elemento imprescindível, é a
angústia - conceito desenvolvido pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard
(1813-1855), para o qual, a angústia é tomada como uma condição fundamental da
existência humana, e também como propulsor para a vivência de uma vida
autêntica, que será enfatizado por Heidegger, principalmente em Os conceitos
fundamentais da Metafísica: Mundo - Finitude – Solidão. Para Kierkegaard, cada
indivíduo por mais que deseje fugir, não encontra fuga da mesma, pois ela propicia
ao homem a liberdade por meio das possibilidades que a mesma visualiza antes da
concreção do que antes era mera possibilidade.
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A angústia direciona o homem não para uma liberdade abstrata, mas para a
real liberdade que exige compromissos e responsabilidades àquele que busca ser
autêntico frente sua própria determinação de personalidade, que se dá pela escolha
da escolha. A partir daí este indivíduo já não permanece no instante da decisão, mas
torna-se ele mesmo um ser que existe com suas diversas características e sujeito às
contingências da vida.
Sartre foi o expoente do existencialismo, mas não foi o único a desenvolver
essa corrente filosófica. Autores como Albert Camus, que inclusive era seu amigo e
muito conviveram juntos e desenvolveram ideias semelhantes no que tange à
influência e difusão do existencialismo. Camus, se destacou como escritor em seus
romances existencialista como O Estrangeiro, A Peste, O Homem Revoltado e o
ensaio intitulado O Mito de Sísifo.
Essas obras, discutem de forma eloquente o absurdo da condição humana,
onde cada ser humano é responsável por suas ações e por via disso de suas
consequências, boas ou más. Sendo que uma característica marcante e presente
nos personagens é a angústia. Nessa perspectiva, Sartre destaca:

O existencialista costuma declarar que o homem é angústia: isso significa o


seguinte: o homem em que se engaja e que se dá conta de que ele não é
apenas o que escolhe ser, mas também um legislador que escolhe ao
mesmo tempo o que será a humanidade inteira, não poderia furta-se do
sentimento de sua total e profunda responsabilidade. Obviamente, muitas
pessoas se mostram ansiosas; mas nossa opinião é que elas mascaram
sua angústia e tentam mascará-la. (SARTE, 2014, p. 21)

A ligação entre os personagens de Dostoiévski e o existencialismo sartriano,


perpassa por toda obra ao autor francês. Sartre lia Dostoiévski com esmero e o
interpretava com precisão. Em O Existencialismo é um Humanismo, cita Dostoiévski,
na passagem, talvez mais clássica e eloquente do autor russo, que em Os Irmãos
Karamázov – a qual no capítulo intitulado O Grande Inquisidor, o personagem Ivan
Karamázov passa a narrar um poema, por ele construído acerca de Deus e da sua
existência enquanto salvador da humanidade.
No poema de Ivan Karamazov, quando Deus finalmente retorna à terra,
conforme prometido, ocorre uma inversão; Deus não é recebido com honra e
exaltação, mas sim com blasfêmia. As pessoas o acusam de ter largado,
abandonado a humanidade, por ter deixado que a mesma se destruísse, que

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ocasionasse tanto mal a si mesma. No decorrer do poema, Deus, não é exaltado, e
sim conduzido preso pelo grande inquisidor representado na figura da própria igreja.
O poema de Ivan Karamázov, questiona toda a existência da metafisica
divina, e pergunta por onde Deus estivera por mais de quinze séculos após prometer
retornar à terra e dizimar o mal da humanidade, bem como por andou enquanto o
mal habitava e se fazia presente, enquanto crianças passavam fome e mulheres
eram torturadas até a morte. Para Dostoiévski, ao evidenciar uma local em que não
há mais milagres, por meio de seu personagem Ivan, narra que:

No meu poema quem aparece em cena é Deus; é verdade que Ele não diz
nada, apenas aparece e se retira. Quinze séculos se passaram desde que
Ele prometeu voltar ao seu reino, há quinze séculos Seu profeta escreveu: -
“Ele está próximo”. – “Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos
do céu, nem o filho, mas só o Pai”, como ele mesmo disse, nesta terra. Mas
a humanidade o espera com a mesma fé e fervor. Oh, com uma fé mesmo
maior, pois há quinze séculos o céu deixou de das provas aos homens.
(DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 274)

A angústia – sentimento que prevalece na filosofia existencialista, se


manifesta na voz do personagem Ivan Karamazov ao transpor para o leitor, a
ausência de Deus na Terra por séculos e pelas atrocidades ocorridas na sua falta e
mesmo assim a fé existe, no entanto, no poema é afastada ou repelida pela demora
de Deus em retornar à Terra para abarcar o sofrimento da humanidade. Nessa
perspectiva, cabe transcrever um dos trechos mais polêmicos de Sartre, onde o
autor cita Dostoiévski.

Se Deus não existisse, tudo seria permitido. É este o ponto de partida do


existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe,
consequentemente, o homem encontra-se desamparado, pois não encontra
nem dentro nem fora de si mesmo uma possibilidade de agarrar-se a algo.
Sobretudo, ele não tem mais escusas. Se com efeito, a existência precede a
essência, nunca se poderá recorrer a uma natureza humana dada e definida
para explicar alguma coisa; dizendo de outro modo, não existe
determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se
Deus não existe encontraremos à nossa disposição valores ou ordens que
legitimem nosso comportamento. Assim, nem atrás de nós, nem à nossa
frente, ou no domínio numinoso dos valores, dispomos de justificativas ou
escusas. Nós estamos sós, sem escusas. É o que exprimirei dizendo que o
homem está condenado a ser livre. (DOSTOIÉVSKI, 2014, p. 24)

Em Irmãos Karamázov, o autor encarrega o próprio ser humano como


responsável pela sua trajetória de vida. Não há que justificar as circunstâncias da

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vida em Deus, não se pode responsabilizá-lo pelos acontecimentos. Em Irmãos
Karamazov (200, p. 281), a elementar passagem afirma que “vão ficar surpresos e
pensar que somos deuses, quando consentirmos, encabeçando-os, em carregar o
pesado fardo da liberdade, que os amedronta, e em reinar sobre eles, pois afinal vão
sentir medo de serem livres”.
Dostoiévski não nega a existência de Deus, mas sim coloca o homem como
o senhor de seu próprio destino – senhor de sua existência e com isso, o homem é o
responsável por suas conquistas ou lamentos, pois é livre para viver e agir conforme
os princípios que elencar em sua vida e tornar prioridade. O autor, se aproxima
ainda mais do existencialismo ao expressar em Irmãos Karamazov que:

Sem uma ideia clara do motivo da existência, o homem prefere renunciar à


vida, mesmo cercado por montes de pães, prefere destruir-se a permanecer
na terra. É assim mesmo, mas eis o que aconteceu: em vez de apossar-se
da liberdade humana, Tu resolveste ampliá-la? Tu te esqueceu de que o
homem prefere a paz, até mesmo a morte, à liberdade de distinguir entre o
bem e o mal? Para o homem, não há nada mais atraente do que o livre
arbítrio, mas tampouco existe algo mais doloroso. (DOSTOIÉVSKI, (2020, p.
282/283)

Essa liberdade que assombra, que coloca os humanos como eternamente


responsáveis por suas escolhas, por essa condenação de ser livre, conforme afirma
Sartre (2014), está presente em Ródion Raskólnikov, personagem central de Crime
e Castigo, onde por decisão pensada e bem elaborada, comete o assassinato, por
meio de machadadas, de uma senhora idosa com quem ele possuía uma dívida
financeira. Com o objetivo único de não precisar efetuar o pagamento de seu débito,
eis que este lhe causava extrema angústia devido ao fato de estar miseravelmente
falido, sem dinheiro algum para fazer o pagamento, então, a saída mais plausível foi
cometer o crime.
No entanto, na cena do crime - por desastre, surge a irmã da senhora
assassinada e Raskólnikov diante da situação acaba majorando seu crime para um
duplo assassinato, e completa a tragédia - por sua livre escolha e decisão. Seu livre
arbítrio fez a escolha e a angústia extrema, a partir de então impera em sua
consciência e em seu modo de agir. O existencialismo impera.
Após esses assassinatos, Raskólnikov passa a vivenciar sentimentos nunca
não antes sentidos e tampouco esperados. O personagem intencionava
simplesmente se livrar de uma dívida, mas o peso da liberdade de escolha começa a
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cobrar seu preço. A sua mente, seu caráter e sua moral começam a questionar se
foi correto cometer um crime, seja pelo motivo que for, embora nesse caso, tenha
sido extremamente desnecessário e sem justificativa. A sua escolha bate fortemente
em sua consciência em todos os momentos, e a partir de então, Raskólnikov, possui
uma nova liberdade de escolha – seguir em silêncio ou confessar à polícia seus
assassinatos, mesmo que isso possa lhe tolher a liberdade de ir e vir.
No emblemático Sonho de um homem ridículo, escrito em 1877, os dilemas
construídos na narrativa textual, continuam atuais e com muito mais ênfase. As
amarguras da existência evidenciadas por um homem que busca, por meios
desesperadores encontrar o remédio para suas dores da alma, encontra respaldo
em uma passagem onírica. Ao prefaciar a obra O Sonho de um homem ridículo,
Sidarta Ribeiro, afirma que:

E o tempo passa e o sofrimento se alastra, e a gente pasta. Por que é que


não despertamos de uma vez por todas? Por que é que a palavra da
verdade insiste em não raiar, apesar de todos a repetirem nas igrejas de
todas as crenças? Por que a redenção não vem de uma vez nos livrar da
dor? E, no entanto, assim como o personagem de Dostoiévski, nunca
estivemos tão perto do paraíso. (RIBEIRO, 2021, p. 16)

O texto expressa uma profunda viagem ao mais íntimo do ser humano, suas
dores, seu sofrimento, vivenciados até mesmo nos sonhos, e o sonho é algo tão
peculiar que só cabe a existência de quem o sonhou, a partir de suas vivências e
ansiedades, como no texto de Dostoiévski.
A existência de cada ser humano é peculiar, intrínseca a cada ser. Sartre
teve essa percepção e a elevou a nível mundial de discussão, debate e início de
uma nova filosofia e estudo do ser humano. Autores grandiosos como Fiódor
Dostoiévski e Jean Paul Sartre, tiveram a felicidade de deixar um legado com seus
conhecimentos e sensibilidades sobre o que mais nos toca profundamente – a
existência.

4. Considerações finais

O trabalho objetivou traçar algumas linhas relacionando a obra de


Dostoiévski com a corrente filosófica existencialista. As obras de Dostoiévski
encontram-se permeadas de analises, ingerências e personagens com conteúdo

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nitidamente existencialista. Existencialismo que evidenciado por Sartre, vislumbra a
própria vivência do ser humano enquanto ser por si, enquanto procura do homem no
próprio homem, abandonando a concepção de Deus e de um destino previsto para
cada um. Ampara suas bases em duas frases icônicas de Sartre “a existência
precede a essência” e “estamos condenados a ser livres” (SARTRE, 2014).
É nessa liberdade existencial em que o ser humano é lançado, jogado ao
mundo que o rodeia e em que habita, fazendo com que cada qual seja responsável
por suas vivências, e a partir dela constrói sua própria essência enquanto ser. Para
Sartre, não há um Deus que conduz, guia e decide pela humanidade – isso
implicaria em uma total ausência de responsabilidade de todos os atos enquanto
cidadãos. Ao contrário disso, Sartre defende que se a humanidade é perversa,
insana, ou boa e generosa depende somente de cada um que a compõe.
Não podemos mais é negligenciar o sofrimento humano, fechar os olhos para
não ver, blindar o coração para não sentir. Para que a dor aplacada de forma
espiritual seja eliminada é preciso eliminar também a dor material. Precisa-se
urgentemente construir bases da felicidade, como um todo.

Referências

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Editora Leya, 2012. São
Paulo.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Editora Martin Claret, 2008. São Paulo.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias da Casa dos Mortos. Edição Nova Fronteira,


2018. Rio e Janeiro.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Edição Nova Fronteira, 2018. Rio e Janeiro.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. Martin Claret, 2013. Rio e Janeiro.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Sonho de um Homem Ridículo. Editora Antofágica, 2021.


Rio de Janeiro.

FRANK, Josepf. Dostoiévski: Um escritor de seu tempo. Companhia da Letras.


São Paulo, 2010.

HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da Metafísica: Mundo -


Finitude – Solidão. Editora Forense Universitária, 2015. Rio de Janeiro.

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KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Editora Penkal, Rio de Janeiro,
2022.

SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Editora Vozes de


Bolso, Rio de Janeiro, 2014.

SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia Fenomenológica.


Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2011.

TANASE, Virgil. Dostoiévski: biografia. Editora L&PM POCKET. Porto Alegre,


2012.

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