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Stefan Zeigst
1. Introdução
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condenado – lhe impingem um ar de vida – sim, de vida, pois é essa vida que o fez
construir personagens que encantam e destroem um leitor, mas que não o
esquecem.
A par disso, destaca-se em suas obras, um conteúdo nitidamente
existencialista – corrente filosófica em destaque na França a partir dos anos 1945,
com a produção da obra de Jean Paul Sartre intitulada O Existencialismo é um
Humanismo. Essa abordagem filosófica destaca a existência do ser humano em
primeiro lugar, sendo que nas palavras de Sartre (2010, p. 18) “a existência precede
a essência” – ou seja, o homem, primeiro vem ao mundo e é, e depois se
conscientiza do que está ao seu redor, sendo ele próprio o causador e responsável
pela sua vida.
Nesse limiar, é que a ligação se faz com os personagens criados por
Dostoiévski com grande desenvoltura e maestria. Os personagens criados no âmago
de Dostoiévski sempre ficam postos nas luzes da ribalta para brilhar e se eternizar
na memória dos leitores.
O trabalho se divide em duas partes, sendo a primeira se constitui a partir de
uma abordagem histórica da vida e obra de Dostoiévski e a composição de seus
personagens, que vivem intensamente e sim, pode-se afirmar – muitos deles, de
maneira condizente com o existencialismo conduzido por Sartre, que será abordado
na segunda parte do texto. Esse é o mote do trabalho, realizar a ligação entre
Dostoiévski e o existencialismo com vistas a demonstrar que essa existência
precede e vive nos personagens dostoiévskianos, bem como em muitos de nós.
Há uma clássica frase afirmando que “ostra feliz não faz pérolas”,
transportada para a vida de Dostoiévski, a verossimilhante se impõe. Dostoiévski
produziu muitas obras que são consideradas pérolas da literatura russa e
mundial. Ao analisar a biografia de Dostoiévski, denota-se que o autor, talvez
não tenha sido – pelo menos em grande parte da vida – “uma ostra feliz”, face a
esse fato, produziu inúmeras pérolas.
Nascido em 03 de outubro de 1821, nobre e russo, filho de médico, Fiódor
Mikhailovitch Dostoiévski transitou por experiências intensas e trágicas que o
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poderiam ter levado a uma morte prematura ou a uma vida de fracassos. No
entanto, sua genialidade e resiliência fizeram com que superasse as dificuldades
vivenciadas e o fizesse produzir clássicos literários surpreendentes.
Dostoiévski começou a escrever ainda jovem. Considerado escritor,
filósofo, jornalista, com formação acadêmica em engenharia – profissão que não
atuou, pois se dedicou à arte de produzir histórias e personagens - intensos
personagens, como Raskolnikóv, Príncipe Micha, os irmãos Karamázov, com
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O trecho consta na publicação da primeira edição da Revista O Tempo, publicada em setembro de
1860.
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radical, todas as outras questões eram secundárias em face da melhoria
da sorte dos camponeses, da maneira que consideravam mais
compatível com a justiça social. (FRANK, 2021, p. 352)
Após o tempo dedicado às revistas, Dostoiévski abre espaço para o que lhe
consagrou como escritor: os romances. Suas obras mais importantes foram as
literárias, onde abordou, entre outros temas, o significado do sofrimento e da culpa;
o livre-arbítrio; o cristianismo; o racionalismo; o existencialismo; o niilismo; a miséria
social e humana; a violência; o assassinato; o altruísmo; além de
analisar transtornos mentais, muitas vezes ligados à humilhação, ao isolamento,
ao sadismo, ao masoquismo e ao suicídio.
As vivências desses personagens refletem o âmago do próprio autor,
onde em duas fases distintas perfectibilizam a sua maestria. Na sua primeira
fase, o ainda jovem Dostoiévski escreve Gente Pobre (seu primeiro romance
publicado, em janeiro de 1846, quando o autor tinha 24 anos). Nesse romance, os
personagens são humildes habitantes da cidade russa de São Petersburgo,
denunciando a miserabilidade de um segmento enorme da população. O romance
constituiu a primeira manifestação do romance social no país dos Czares. Mas
Dostoiévski vai muito além disso, muito mais do que um romancista social - ele entra
em suas personagens e sonda e desvela as profundezas das suas almas, em um
sentir e dialogar com elas.
A Rússia é um país que produz gênios e políticos de destaque, guerras e
revoluções. O ar gélido de seu imenso território penetra nos pulmões e vai de
encontro ao que é mais sublime e também mais aterrorizador nos homens.
Dostoiévski, após se envolver com a política, mais precisamente fazer parte do
Círculo Petrachévski2, teve resultados inesperados e muito dolorosos.
Dostoiévski foi preso em 23 de abril de 1849, jovem ainda, foi julgado e
condenado no dia 13 de novembro do mesmo ano. Essa condenação fez com
que na manhã de 22 de dezembro, Dostoiévski fosse levado para o pelotão de
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No início de 1940, Petrachévski, começou a convidar seus amigos mais próximos para frequentar
sua casa e conversar, e então passou a se tornar o Círculo Petrachévski. Um grupo que envolvia
discussão literária, formado por diversos intelectuais considerados socialistas em São Petersburgo. O
grupo era organizado por Mikhail Petrashevski, que era seguidor do socialista francês Charles
Fourier. Dentre os membros do grupo, havia escritores, estudantes, funcionários públicos e também
oficiais do exército. Apesar de não haver qualquer ponto de vista uniforme em questões políticas, a
maior parte deles se opôs à autocracia do czar e ao sistema de semi-servidão. Dostoiévski era parte
integrante do referido grupo e contribuía com seus escritos.
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fuzilamento. Em prontidão para ser executado – houve uma remissão da sua
pena que se transformou em uma condenação à prisão na gelada Sibéria. Esse
acontecimento transformou sua vida, o transformou de um homem comum à um
gênio da psicologia e da existência humana.
Na prisão, altera completamente sua visão de vida e mundo, e então, dá
início à sua segunda fase como autor, externando em suas obras a magnitude
humana face a todos os entraves que a própria humanidade proporciona aos
seus semelhantes, em termos de degradação, humilhação e também resiliência
e bondade.
Quando Dostoiévski finalmente é libertado das correntes siberianas, sua
mente e suas mãos anseiam por escrever, e então, um novo autor ressurge – como
uma Fênix que renasce das cinzas. Em sua memória, e em seu corpo, estão
presentes todos os fatos ocorridos no decorrer dos miseráveis quatro anos presos, e
então, Dostoiévski os transporta para o papel na condição de Memórias da casa dos
mortos.
Dostoiévski poderia ter se banhado no rio Lete 3, para esquecer dos
fatídicos acontecimentos vivenciados na prisão, no entanto, agindo como uma
ostra pronta para produzir sua pérola, busca na memória - desvela e não
encobre, todos os detalhes da crueldade de ser um prisioneiro de trabalhos
forçados. O sofrimento, a dor do flagelo do corpo físico e psicológico e então,
transporta para o papel sua percepção dos anos que ali viveu, escrevendo
Memórias da Casa dos Mortos, livro que o eleva e o coloca como o grande autor
russo. Stefan Zeigst, em um texto que exalta a vida e obra de Dostoiévski,
menciona que:
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Na mitologia grega, Lete é um dos rios do Hades. Para aqueles que bebem de sua água ou, até
mesmo, mergulham ou tocam na sua água experimentariam o completo esquecimento, todos os
resquícios da memória são apagados. Lete simboliza o esquecimento.
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Assim, o ponto nevrálgico da existência do autor foi vivenciado na prisão,
onde sua sensibilidade e genialidade foram maximizadas, memorizou todas as
funções dos condenados, de como se vivia, ou melhor – sobrevivia; como o dia
era preenchido por atividades obrigatórias; os serviços forçados; os pés
acorrentados e descalços em um ambiente que beirava 40° negativos; a morte
rondando cada “forçado” a todo instante; a maldade humana vertendo nos olhos
dos administradores da prisão – mas também, a remissão daqueles que sentiam
que o sofrimento do corpo poderia levar à libertação dos “pecados” outrora
cometidos. Zeigst, refere que:
Por quatro anos, todo o seu horizonte mantém-se limitado por mil e
quinhentas estacas de carvalho. Nelas, marca dia pós dia os quatro
vezes 365 dias, entalhando com lágrimas nos olhos. Seus companheiros
são criminosos, ladrões e assassinos; seu trabalho é partir alabastro,
carregar tijolos, retirar neve com a pá. A Bíblia é o único livro permitido.
Um cão sarnento e uma águia aleijada são seus únicos amigos.
Dostoiévski padece quatro anos na ‘casa dos mortos’, no subsolo, uma
sombra entre as sombras, sem nome e esquecido. (ZEIGST, 2021, p.
38)
4A referência se faz ao czar Nicolau II (1868-1918), que foi o último czar russo da longa dinastia dos
Romanov que governou entre 1894 e 1917.
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transparecer que Dostoiévski não era cristão, eis que seus personagens são
intrincados de miserabilidade e também de questionamentos, no entanto, se tem
evidencia de que provavelmente a maior influência nos trabalhos de autor foi
justamente a figura de Jesus Cristo, em forma de pessoa, o símbolo, o que o fez por
meio da Bíblia e da interpretação ortodoxa.
Dostoiévski nunca deixou de ser cristão e teve intenso contato com o texto
bíblico na prisão, onde apenas este texto era permitido. Muitas de suas obras
contêm reflexões sobre o cristianismo e inclusive apologias, como é o caso de O
Idiota, o tipo cristão perfeito, o mito do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov,
entre outros. Deus é presença constante nas obras e na vida de Dostoiévski, além
do capítulo específico de o Grande Inquisidor, a metafísica cristã é o elemento que
direciona, acaricia, aperta, machuca, encanta ao mesmo tempo em que desativa,
destrói e amargura seus personagens. Zeigst, ao fazer referência a presença de
Deus em Dostoiévski, ressalta que:
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Para Carpeaux “os romances de Dostoiévski são vastos panoramas sociais
de composição incoerente, mas compostos de concisas cenas dramáticas nas quais
os conflitos ideológicos se condensam”, (2012, pg. 414). Esses conflitos que surgem
no âmago dos seres humanos são causados pelos conflitos existenciais, que muitos
surgem da própria liberdade e das escolhas realizadas ao longo da vida.
Essa abertura para a cristandade, não se manifesta como forma de redenção,
mas sim de vivência. Todas as situações que se apresentam na vida cotidiana não
permeadas por algo divino, seja maravilhoso ou penoso. Há um Deus sempre
presente, e esse Deus dispõe das forças e transporta para os humanos enquanto
seus semelhantes. Mas também é um Deus que desperta inquietudes, que faz o dia
amanhecer e também anoitecer, é a luz e a escuridão, onde a dualidade e a
ambivalência se mostram nos momentos mais sofridos de Dostoiévski – como
ocorre por ocasião da morte de deu filho, a sensação é somente de escuridão.
Nesse viés, Zeigst, refere que:
Anos mais tarde, quando estava lendo mais uma vez o Livro de Jó,
Dostoiévski escreveu à esposa que ele o punha em estado de “estase
insalubre” que quase chorava. ‘É uma coisa estranha, Ánia, este Livro é
um dos primeiros que me impressionaram, quando eu ainda era quase
uma criança. “Há uma alusão a essa experiência reveladora do jovem
rapaz em Os Irmãos Karamazov, quando Zossima relembra ter ficado
impressionado com uma leitura do Livro de Jó com a idade de oito anos e
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sentir que “pela primeira vez na minha vida recebi conscientemente a
semente da palavra de Deus em meu coração. (FRANK, 2010, p. 60)
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suas vivências enquanto ser, primeiro existe em si, e depois percebe, sente o mundo
ao em torno, transporta e irradia elementos para o mundo externo.
Sartre revela a essência do existencialismo em sua célebre frase “a existência
precede a essência”, e para explicar essa definição, apresenta uma comparação ao
se referir ao existencialismo:
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acerca da responsabilidade do ser humano por sua própria vida. Com isso, o autor
afirma que:
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ocasionasse tanto mal a si mesma. No decorrer do poema, Deus, não é exaltado, e
sim conduzido preso pelo grande inquisidor representado na figura da própria igreja.
O poema de Ivan Karamázov, questiona toda a existência da metafisica
divina, e pergunta por onde Deus estivera por mais de quinze séculos após prometer
retornar à terra e dizimar o mal da humanidade, bem como por andou enquanto o
mal habitava e se fazia presente, enquanto crianças passavam fome e mulheres
eram torturadas até a morte. Para Dostoiévski, ao evidenciar uma local em que não
há mais milagres, por meio de seu personagem Ivan, narra que:
No meu poema quem aparece em cena é Deus; é verdade que Ele não diz
nada, apenas aparece e se retira. Quinze séculos se passaram desde que
Ele prometeu voltar ao seu reino, há quinze séculos Seu profeta escreveu: -
“Ele está próximo”. – “Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos
do céu, nem o filho, mas só o Pai”, como ele mesmo disse, nesta terra. Mas
a humanidade o espera com a mesma fé e fervor. Oh, com uma fé mesmo
maior, pois há quinze séculos o céu deixou de das provas aos homens.
(DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 274)
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vida em Deus, não se pode responsabilizá-lo pelos acontecimentos. Em Irmãos
Karamazov (200, p. 281), a elementar passagem afirma que “vão ficar surpresos e
pensar que somos deuses, quando consentirmos, encabeçando-os, em carregar o
pesado fardo da liberdade, que os amedronta, e em reinar sobre eles, pois afinal vão
sentir medo de serem livres”.
Dostoiévski não nega a existência de Deus, mas sim coloca o homem como
o senhor de seu próprio destino – senhor de sua existência e com isso, o homem é o
responsável por suas conquistas ou lamentos, pois é livre para viver e agir conforme
os princípios que elencar em sua vida e tornar prioridade. O autor, se aproxima
ainda mais do existencialismo ao expressar em Irmãos Karamazov que:
O texto expressa uma profunda viagem ao mais íntimo do ser humano, suas
dores, seu sofrimento, vivenciados até mesmo nos sonhos, e o sonho é algo tão
peculiar que só cabe a existência de quem o sonhou, a partir de suas vivências e
ansiedades, como no texto de Dostoiévski.
A existência de cada ser humano é peculiar, intrínseca a cada ser. Sartre
teve essa percepção e a elevou a nível mundial de discussão, debate e início de
uma nova filosofia e estudo do ser humano. Autores grandiosos como Fiódor
Dostoiévski e Jean Paul Sartre, tiveram a felicidade de deixar um legado com seus
conhecimentos e sensibilidades sobre o que mais nos toca profundamente – a
existência.
4. Considerações finais
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nitidamente existencialista. Existencialismo que evidenciado por Sartre, vislumbra a
própria vivência do ser humano enquanto ser por si, enquanto procura do homem no
próprio homem, abandonando a concepção de Deus e de um destino previsto para
cada um. Ampara suas bases em duas frases icônicas de Sartre “a existência
precede a essência” e “estamos condenados a ser livres” (SARTRE, 2014).
É nessa liberdade existencial em que o ser humano é lançado, jogado ao
mundo que o rodeia e em que habita, fazendo com que cada qual seja responsável
por suas vivências, e a partir dela constrói sua própria essência enquanto ser. Para
Sartre, não há um Deus que conduz, guia e decide pela humanidade – isso
implicaria em uma total ausência de responsabilidade de todos os atos enquanto
cidadãos. Ao contrário disso, Sartre defende que se a humanidade é perversa,
insana, ou boa e generosa depende somente de cada um que a compõe.
Não podemos mais é negligenciar o sofrimento humano, fechar os olhos para
não ver, blindar o coração para não sentir. Para que a dor aplacada de forma
espiritual seja eliminada é preciso eliminar também a dor material. Precisa-se
urgentemente construir bases da felicidade, como um todo.
Referências
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Editora Leya, 2012. São
Paulo.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Editora Martin Claret, 2008. São Paulo.
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KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Editora Penkal, Rio de Janeiro,
2022.
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